escritos políticos de simon bolivar - texto 2° fichamento

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EDITORA DA UNIVERSIDADE EST ADUAL DE CAM PIN AS UNICAMP Reitor: Carlos Vogt Coordenador Geral da Universidade: Jose Martins Fil ho Conselho Editorial: Pereira Chagas, Alfredo Miguel Ozorio de Almeida, Antonio Carlos C6iar Francisco Ciacco (Presidente), Eduardo Gwmaraes, Herm6genes de Freitas Leitao Filho, Jayroe Antunes Maciel Junior, Luiz Cesar Marques F1l ho, Geraldo Severo de Souza A vii a Dire tor Executive: Eduardo Guimaraes SIMON BOLIVAR ESCRITOS POLITICOS Tradufao: JAQUES MARIO BRAND JOSELY VIANNA BAPTISTA

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Page 1: Escritos políticos de Simon Bolivar - Texto 2° fichamento

EDITORA DA UNIVERSIDADE EST ADUAL DE CAM PIN AS

UNICAMP

Reitor: Carlos Vogt Coordenador Geral da Universidade: Jose Martins Filho

Conselho Editorial: A~cio Pereira Chagas, Alfredo Miguel Ozorio de Almeida, Antonio Carlos B~nnw~, C6iar Francisco Ciacco (Presidente), Eduardo Gwmaraes, Herm6genes de Freitas Leitao Filho, Jayroe Antunes Maciel Junior, Luiz Cesar Marques F1lho, Geraldo

Severo de Souza A vii a Dire tor Executive: Eduardo Guimaraes

SIMON BOLIVAR

ESCRITOS POLITICOS

Tradufao: JAQUES MARIO BRAND

JOSELY VIANNA BAPTISTA

Page 2: Escritos políticos de Simon Bolivar - Texto 2° fichamento

I I F ICRA CATALOGRAfiC A ELA BORADA PELA

BIBLIOTECA CEr-ITRAL- UNICAMP

[\1))8e Bolfvar, Stm6n

Escri too;; polrtico$ I S im6n Bo\fvar: uadu~ao: JJques Mano Brand, Josely Viann.1 Baptista. Cam pinas, S P : Editora da UN ICAMP, 1992.

(Col~ao Repcn6 riosl

Tradu~iio de : Escritos Polfticos.

I. Am~rica Espanhola • Polfti""" c govemo. 2. Am<!rica Espanhola • Condi~ Sociais. I. Tftulo.

ISBN 85-268·0233-X 20. CDD· 320.98 • 309.8

fndiccs para catilogo sistem<itico:

1. Am<!rica Espanhola • Polftica c govcmo 2. Am~rica Espanhola · Coodi96es sociais

Col~ao Rcpcn6rios

Projeto GrMico

Camila C•sarino Cona E/io.na Kuunbaum

Coordcnac;ao Edi tori aJ C~n Silvia Palma

Editora~ao

Nfvia Maria Funandu

Rcv isio Tb:n ica Angda MariaN. Tigiwa

Prcpara~ao

Marco Antonio Storani

Revisio Vania T. tk Castro Torr-s

Maria Claria Sampaio VilJac RoSX2 Dalva V. do Na.scrrvnto

Composic;ao

Gilnwr Nascinvnto Saraiva Silvia H. P . Campos Go~alvu

Mo ntagcro

E dni!son T risrao

1992 Editora da Unicamp

Rua Cc:cn io Fcltri n, 253

320.98 309.8

Cidadc Univcrsit.Uia - Bario Geraldo CEP. 13084-11 0 - C ampinas- SP- Brasil

Tel.: (0 192) 39-3720 Fax: (0 192) 39· 3157

SUMARIO

TNTRODU<::AO DE GRACIELA SORIANO .7

41 L

II.

III .

IV .

MANIFESTO DE CART AGENA (1812) Mem6ria dirigida aos cidad aos da Nova G ranada por urn c araquenho ...... . . . .. .. . .. .... .

CARTAS DA JAMAJCA (1815) ... . . ... ... . Resposta de urn americ ana meridicnal a urn cavalheiro desta ilha ... .. ......... . ........ . Carta ao editor da Gazeta R eal da Jamaica .

DISCURSO DE ANGOSTURA (1819) D iscurso pronunciado pelo Libertador ante o Congresso de Angostura, em 15 de fevereiro de 18 19 , data de sua instala~ao ............. . ... .. ... .

DISCURSO ANTE 0 CONGRESSO CONSTITUINTE DA BOLfVIA (1825) Discurso do Libertador ao Congresso Constituinte da Bolfvia ... .. . .. .... . .. . .. .. .... . . .

41

53

53 75

8 1

. 8 1

109

V . PROJETOS PAN-AMERICANOS (1824- 1826) . . 109

121 Aos governos das Re publicas da Colombia, do Mexico, do Rio da Prata, do Chile e da G uatemala 12 1 AS. Exa. o grande marechal de Ayacucho, Antonio Jose de S uc re . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 Ao gene ra l dom A nto nio Gutierrez de Ia F ue nte . . . 128

'I

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VI. CARTA A DANIEL FLORENCIO O'LEARY (1829) .. ... .. . ....... . . .

VH. CARTA A JUAN JOSE FLORES (1830)

A S. Exa. o general Juan Jose Flores

VIU. QUADRO CRONOLOGICO . ...

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139

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INTRODU9A0

Com esta sel~iio de textos de Sim6n Bolfvar, pretendemos apresentar ao leitor ainda niio familiarizado com o seu pensa­mento e as circunstiincias que o levaram a atuar politicarnente, esse personagem marcante e de tanta relevancia na hist6ria uni­versal do infcio do seculo XIX, wna vez que seus atos foram decisivos para a independencia dos povos hispano-americanos e , conseqiientemente, para a modificas;ao da estrutura da ordem polftica mundial.

Sabemos da dificu1dade da tarefa a que nos propomos, pois embora tenha sido relativamente facil reunir num volume de poucas paginas o principal do pensamento politico de Bolivar, o mesmo niio acontece quando tentamos resumir, nesta pequena introdus;ao, dados biograticos com os aspectos ideol6gicos, po­liticos e hist6ricos mais essenciais e indispensaveis para a me­thor aprecia<;iio dos textos selecionados.

Por outro !ado, o fato de Bolfvar ter compartilhado do destino de grandes personalidades hist6rico-polfticas, ou seja, ter sido wna figura tanto louvada e mitificada quanto denegrida, toma ainda mais diffcil o manuseio das fontes - por sinal nume­rosfssimas - l por todos os que desejam conhecer a vida e os feitos dessa personalidade que, em momento algum, deixou de ser objeto de controversias, orientadas antes por impulsos emo­cionais do que por rigor intelectual.

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Esse 6 o motivo pelo qual nossa breve introduc,:ao ira abor­dar apenas os aspectos mais objetivos, mais e videntes e mais uti!izados, sem ter a pretensiio de dar interpreta<(6es o ri g ina is nem esclarecer pontos obscuros ou suscetfveis de pole mica que , embora possam servir de objeto de in vestigac,:ao hist6rica, e sca­pam dos lirnites da simples apresentac,:ao . Contudo, cabe des ta­car o fato de que, tratando-se de urn personagem tiio discutido, as atitudes relacionadas a ele oferecem ampla margem d e polari­dade, que viio desde a considerac;iio mftica - ou quase mftica -ao mais absoluto desdem ou desconhecimento de sua situac,:ao hist6rica (como o demonstram alguns manuais . de hist6ria uni­versal) . Al6m disso, 6 oportuno lembrar que muitas ve ze s se uti­lizaram fragmentos isolados de seus escritos para justificar de ­terminadas situac;6es ou posic;6es polfticas inteiramente alheias a s suas concepc;6es, que levaram a interpretac,:6es deformadas de sua vida e de seu pensarnento.

No que diz respeito a primeira posic,:iio, c hegou- se ao e x­trema de se tentar p roteger o her6i contra supos tos ataques , c u­jas naturais fraquezas humanas, quando niio conhecidas, des fi­guram-se ate transformar-se em virtudes . Tal pers pectiva tern origem na reatualizac;ao do antiqiifssirno dualismo mftico secula­rizado pelo Ilurninismo, que contrap6e a era da luz a era das tre­vas.

A guerra de emancipac;iio da Espanha divide a hist6ria da America em dois tempos - antes e depois da independencia -. com uma tendencia a irnprimir conotac;oes ideol6gicas opostas ~ Antes da independencia tudo era escuridiio, servidiio, subrnissao a monarquia absoluta; com a independencia surgem a luz , a so­berania nacional, a liberdade republicana. Nesse sentido, Bolf­var e sua gera<;ao adquirem o significado de salvadores e he r6 is que dividem a Hist6ria, arrancando os povos das tre vas , funda n­do nac;oes e abrindo caminho para a liberdade. Assim, ele e vista nao somente como o fundador da patria, mas como aque le que constantemente a fundamenta, como o arque tipo ao qual e preciso sempre retornar para se reencontrar o rumo certo, o pen­samento Iucido, a norma moraL Converte-se, entiio, no eixo de uma religiao patri6tica sabre a qual se sustenta a comunidade

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nacional ou, para sermos rnais exa tos, as comunidades nacionais dos pafses bolivarianos, em cirna de uma diversidade de tendl!n­c ias e de interesses particulares. Mas, se a religiiio da patria e historicamente necessaria para assentar sabre bases s6lidas o projeto vital dos novas povos, niio e menos certo que tende a desviar a correta perspectiva historiognifica, que trata de saber "como as coisas exatamente se passaram" e nao de fonnular uma imagem do passado que sirva de pressuposto para se en­frentar problemas existenciais. De um lado temos a Hist6ria; de outro, a apologetica. Uma diz respeito a uma atitude intelectual; outra, a urna atitude existencial. Ambas tern sua razao de ser; ambas atendem a perspectivas, objetivos e interesses distintoo, sem que, todavia, seja o caso de se procurar entre as duas wna soluc;iio intennediana, por tratar-se de realidades distintas e irre­dutfveis.

Por outro lado, enquanto Bolfvar ainda vivia, ja apareciam - em contraponto dialetico ao entusiasmo pelo heroi - seus de­tratores e adversarios polfticos, dentro e fora dos pafses boliva­rianos, dando infcio a urna visiio de Bolfvar distanciada da ante­rior' a medida que, tendendo a investigac;iio impertinente, ao an­tipatico pedantismo analftico ou a rna interpretac;iio dos mais ir­relevantes detalhes, buscavam entre todas as explicac;6es possf­veis a menos nobre, a que produzia urna irnagem totalmente de­formada de Bolfvar no sentido negativo. Essa literatura moveu­se, as vezes, pelo desejo de real~ar miticamente a figura de Jose de San Martfn em detrimento da figura hist6rica de Bolfvar, co­mo se a Hist6ria nao fosse bastante ampla para cooter os dois.

Mas o autentico Sim6n Bolfvar, o propriamente hist6rico niio e menos her6i que os do panteiio. Simplesmente, como ja dissemos, trata-se de outra coisa, de urna realidade distinta. Em todo caso, foi urn dos homens rnais significativos de seu tempo, niio apenas n a America espanhola mas em todo o mundo; urn homem no plano ideol6gico de sua epoca, portador da bandeira da liberdade no momento exato em que esse conceito ganha no­vo conteudo na pr6pria Europa; criador de bases nacionais numa epoca em que nem mesmo no Velho Mundo a ideia de nac;iio en­contra-se plenamente dermida; que pretende restaurar o "equilf

9

.,

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brio do universo" quando a His t6ria comec;a a ser menos euro­peia que mundial ; urn perso nagem his t6rico, dec isivo, no qua l reunem-se o esplrito cu lto da epoca, o genio militar e a capaci­dade polftica do cstadis ta, c uja o bra se proje ta para alem d o momento his t6ric o em que vive para condicionar a vida hist6rica do futuro; enfim, o princ ipal representante de uma geraf:!aO de homens que pretendem dar ~ A.rn:erica espanhola uma fisionomia pr6pria, autentica, e ate mais adiantada, talvez, em alguns as­pectos, ~ realidade europeia.2 Nunca, ate entilo- e depois, por muito tempo - a A.rn:erica espanho la esteve tao em dia com as correntes hist6rico-polfticas mundiais como no primeiro ten;o do seculo XIX. Nesse sentido, Bolfvar e sua geraf:!ao constituem a negac;ao mais absoluta da "lenda negra" da Espanha. Muitos anos haveriio de passar - mais de urn seculo - ate que a America espanhola volte a ter uma presenc;a semelhante na hist6ria mun­dial. Eis o significado hist6rico indiscutfve l de Bolivar.

Como dissemos, nossa introduc;ao a esta selec;ao de textos lirnita-se a fornecer urn esquema dentro do qual seja possfve l compreender os aspectos biogn\ficos do personagem em func;ao dos trac;os politicos, sociais e ideol6gicos de seu tempo, bern como a servir de referencial para cad~ urn dos escritos escolhi­dos , razao pela qual se destacam alguns aspectos mais que ou­tros , de acordo com sua relevancia para o nosso objetivo.

Esse esquema se complementa com uma cronologia que contribui para a apreciac;ao mais clara do marco hist66rico da independencia hispano-americana e da vida do mais irnportante de seus protagonistas. Incluimos, alem disso, urn rriapa com as campanhas de Bolfvar, para que o leitor possa melhor avaliar urn dos fenomenos mais caracterfsticos do empreendirnento protago­nizado por ele e pelos demais integ rantes do Exercito d a GrJ.­Colombia: a incessante mobilidade das tro pas atraves de territ6-rios ainda hoje de diffcil acesso, pela magnitude das distanc ias e pelas caracterfsticas do terreno, o qual prop6e problemas Iogfs ti­cos de extraordinana dificuldade. Tratamos, co ntudo , de nao sobrecarregar esta introdus;ao - que, como tal, prescinde - com urn m1mero excessivo de notas para que s ua le itura seja mais fluente.

lO

I i, .l.

os textos foram escolhidos levando-se em conta a obra de Bolivar em seu conjunto e sua vinculac;ao com os acontecirn:~­tos da epoca. Seria irnpossfvel apresentar seu pe~samento politi­co isolado de fatos, pois nao se trata de urn te6nco puro da po-

li · mas de urn homem de ~ao - embora dotado de ampla uca, . das as cultura politica - inserido em circunstancias detenruna . ,

·s necessariamente tinha de refletir em termos polfucos e qwu . . . propor soluc;6es politicas. Esta e a razao pela qu~ t~to lDSlSU-

mos, numa simples apresentac;ao, em expor a traJet6na do per­sonagem e os fatos que o cercaram. sem o que qualquer apre­sentac;ao de seus escritos estaria incompleta.

A 24 de julho de 1783- no mesmo ano em que a Inglater­ra reconhecia a independencia dos EUA, mediante a assinatura do Tratado de Versalhes e o conde de Aranda apresentav~ se~ projetos a Carlos ill .-3 nasce em Caracas, capital da Cap1tarua Geral da Venezuela, Sim6n Bolivar. Era o quarto filho de dom Juan Vicente Bolfvar e d e dona Concepci6n Palacios, mantua­nos 4 descendentes de ricas, ilustres e poderosas famflias na hist6ria dos dois seculos anteriores de vida colonial, cujas rafzes na Penfnsula os historiadores acreditam localizar em terras do pafs basco, Galfcia e Castela.

A fisionomia polftica do territ6rio venezuelano nao havia sido definida ate o ano de 1777, quando pel a Real Cedula de Carlos ill cria-se a Capitania Geral, continuando assirn wn pro­cesso de integrac;3o que comec;ara no ano anterior com a criac;ao da Intendencia Real da Fazenda, e que prosseguini, em 1786, com a instalac;ao da Real Audiencia e, em 1793, com a fundac;ao do Real Consu1ado de Caracas. Anteriorrnente, as provfncias que passaram a constituir a nova entidade polftica colonial ~e­penderam altemadamente das Reais Audiencias de Sao Dom1n­gos e de Santa Fe de Bogota, de modo que soment~ ao final do Seculo llustrado aqueles territ6rios comec;am a se vmcular defi­nitivamente e a se organizar polftica, economica e administrati­vamente numa unidade que sera mantida nos anos posteriores de vida independente .

Em fins do seculo XVUI, Caracas era uma cidade tranqiiila e aprazfvel que vivia do comercio e do trabalho agricola, cuja

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importancia para o imperio espanhol era bern pouco relevante e cujos habitantes, nem muito ricos nem muito pobres, nao tinham motivos para grandes preocupa<;6es com sua subsistenc ia. O s participantes dos estratos sociais mais elevados interessavam-se pelas novas ideias que circulavam na Europa, encontrando meios de inteirar-se delas apesar do controle exercido pela me­tr6pole; nos momentos de 6cio recreavam-se com os encantos da musica ou do teatro, em meio a wn clima ameno e a uma paisa­gem invej~vel, aspectos esses reconhecidos e considerados por viajantes estrangeiros dignos de credito como o bariio de Hum­boldt, o conde de Segur ou Fran~ois De Pons. 5

Calculava-se que a popula<;ao de Caracas, na ocasiao, era de 30 a 40 mil habitantes, sendo constituida por minoria branca (De Pons estima em 10 mil almas mais ou menos), maioria de gentes de cor (amerfndios e mesti<;os), cerca de 18 mil, e o res­tante (que alguns calculam aproximadamente em 7 mil e outros em 14 mil) de escravos, cujo numero, em toda a Venezuela da epoca, nao parecia ultrapassar OS 60 OU 70 mil da popuJa<;ao to­tal calculada entre 700 mil e urn milhao de habitantes.

A estratificagao social dessa popula<;ao se estabelecia com base nas disposig6es contidas nas I....eis das fndias, nas quais era possfvel constatar princfpios sociais estamentais; nas dife­rentes categorias economicas; na cor da pele e na possibilidade de exercfcio do poder publico, o que era particulannente irnpor­tante para demarcar as diferen<;as entre os brancos crioulos e os brancos peninsulares que ocupavam os altos cargos . A distribui­gao das fung6es de govemo nos domfnios espanh6is era feita de acordo com a concepgao descendente do poder, do monarca aos quadros da burocracia, que atuavam nos dominios ultramarinos como agentes do Estado absolutista. Entretanto, no nfvel dos cabildos tambem estava presente a concep<;ao ascendente do po­der, uma vez que os dirigentes do Ayuntamiento* eram eleitos livremente entre os vizinhos. Os brancos peninsulares, pelo fato de terem nascido e residido na Espanha, estavam mais pr6ximos

• Corpora<;ao semelhante 1i Camara Municipal com urn presidete (prefeitos) e con­selheiros e vereadores.

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da sede do poder central e gozavam, por isso, de maiores poss i­bilidades de acesso a burocracia que os americanos, cuja penna­nencia na metr6pole custava tempo e dinheiro, fonte dos c<Jrgos e empregos publicos; alem disso, as disposi<;6es das Leis da<> fn­dias proibiam todo tipo de rela<;ao familiar entre os altos funcio­narios e os habitantes da circunscri~ao onde se exercia o cargo. Decorre entao que, na maioria dos casos, a interven<;ao dos brancos crioulos no govemo colonial reduzia-se aos cabildos -cuja relativa independencia se afirrnara desde o seculo XVI- e que quase todos se dedicassem ao cultivo de suas terras, ao exercfcio das armas ou as atividades comerciais.

A farnfl ia dos Bolivar - radicada no territ6rio desde os primeiros tempos da epoca colonial - pertencia a este ultimo grupo, o qual mantinha uma tensa rivalidade na. distribui<;ao e demarcagao dos limites dos_poderes govemamentais com os fun­cionruios peninsulares. Dom Juan Vicente Bol!var, pai de Si­m6n, era um caracterfstico representante desse estrato social. Conhecido proprietario de terras e leal sudito, fora tambem CO­

ronel do Batalhao de Milfcias de Brancos Voluntaries dos Vales de Aragua, comandante por Sua Majestade da Companhia de Volantes de Yaracuy e oficial da Companhia de Nobres Aventu­reiros, criada em 1786, alem de participar de atividades comer­ciais ainda que nao diretamente mas por interposi<;ao de pessoa, como conseqiiencia da explora<;ao dos produtos agrfcolas de suas fazendas .

Nesse ambiente Sirn6n Bolfvar vive seus primeiros anos. Com a morte do pai aos tres anos e da mae aos nove, passa a tutela primeiro de seu avo materna e depois do tio dom Carlos Palacios, a quem parece Bolfvar escolhera como tutor quando contava dez anos. Assirn, 6rfiio desde muito cedo, nao encon­trou carinho familiar maior que o de sua ama-de-leite, Hip6lita, que alguns dizem ter sido para ele pai e mae ao mesmo tempo. Suas duas irmas casam-se muito jovens e deixam Sirn6n e o ir­mao mais velho sob os cuidados de parentes, que zelam por sua forma~ao.

A educagao de urn jovem caraquenho de origem mantuana, na epoca, tendia a seguir o modelo de forma~ao ministrada na

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Espanha aos jovens nobres e era freqi.iente que as fanulias ricas desejassem enviar seus fllhos para os estudos na Peninsula, es ­peci<tlmente o s da carreira militar. 0 jovem Bolivar inic ia sua forma<;ao iqtelectual na aprazfvel Caracas, onde tern como mes­tres os names rnais reputados daquele perfodo. Entretanto, con­sidernndo seu tutor - o que coincidia, parece, com os desejos do proprio Sim6n - que sua educa<;ao nao estaria coropleta sem uma estada na Espanha, onde tinha posi<;ao influente outro tio seu, Esteban Palacios,6 empreende viagem com destino a Madri, passando pelo Mexico e Havana. Ja na Espanha, alem de com­pletar sua educa<;ao, dedica-se as divers6es pr6prias de sua ida­de e condi<;ao, a custa de dispendios pelos quais algumas vezes recrirnina-o seu tutor. Em 1825, urn quarto de seculo mais tarde, Bolfvar escreve a Francisco de Paula Santande7 o seguinte:

... niio deixei de ser educado como um menino de distifl{;iio pode ser na America sob o domfnio espa­nhol . . . ... niio e certo que minha educ~iio tenha sido des­cuida.da, wna vez que minha mae e meus tutores fi­zerarn todo o possfvel para que eu estudasse; conse­guircon para mim mestres de pri.meira ordem eni meu pa(s. Robinson (SimOn Rodrfguez) . . . foi meu mestre de primeiras letras; de belas-letras e de geografia, nos­so fanwso Bello; criou-se uma academia de mate­matica s6 para mim pelo padre AndUjar, muito esti­mulado pelo bariio de Humboldt. Depois manda.rarn­me para a Europa para continuar minhas matem.dti­cas na Academia de San Fernando; aprendi os idio­mas estrangeiros com mestres excelentes de Madri; tudo sob a orie~iio do sabio marques de Uztaris, em cuja casa vivi. Ainda. muito criQfl{;a, talvez cedo demais, derarn-me li90es de esgrima, de d.an9a e de equit~iio. Certamente niio aprendi nem a filosofia de Arist6teles nem os c6digos do crime e do delito; mas quem sabe M. de Mollien niio tenha estu.p.ado

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I 1 I I

tanto como estudei Locke, Condillac, Buffon, D'A­lembert, Helvetius, Montesquieu, Mably, Filangieri, Lalande. Rousseau, Voltaire, Bollin, Berthot e todos os cidssicos da Antigui.dade, tanto fil6sofos, histo­ri.adores, oradores como poetas; e todos os classicos modernos da Espanha, FrQfl{;a , Iealia e grande parte dos ing leses.

Talvez Bolfvar tenha exagerado, poise impossfvel que em tao pouco tempo tivesse estudado tanto; tais leituras - assim como outras, entre as quais se contam as obras de Ferguson, Bentham e Constant- teve de faze- las noutras fases de sua vida. Alem disso as circunstiincias nas quais escreveu essa carta erarn propfcias ao exagero. 8 Mas o certo e que - como provam os textos desta sele<;ao- fora durante os anos de juventude que en­contrara os autores que exercerao sabre ele influencia, espe­cialmente Rousseau, a cujo pensarnento ja o orientara seu ultra­rousseauniano mestre Robinson (Sim6n Rodriguez) .

Na Madri do rmal do seculo, da qual tao boa mostra nos deixou Goya, bela cidade, de "boa planta", segundo urn teste­munho da epoca, na qual

a onda de prosperidade preparada pelo rein.ado de Fernando VI e impulsionada pelo reino criador de Carlos III se quebrava no de Carlos IV em espuma de cor, movimento e alegria de viver ... , 9

passou Bolfvar urn ano. Tambem esteve em Bilbao e em Paris e, regressando a Espanha, casa-se com Marfa Teresa Rodriguez del Taro, pertencente a honradas fanu1ias espanholas e crioulas mas radicada em Madri.

Casado, retorna para a Venezuela em 1802, levando na bagagem ideias e formas educacionais adquiridas no Yelho Mundo. Mas, em seguida, morre sua esposa eo jovem viuvo re­gressa a Europa buscando alfvio para sua dor. Viaja de ssa vez pela Espanha e pela Italia, tendo sido acompanhado neste ultimo pais por seu antigo mestre Sim6n Rodriguez. Tern a oportunida-

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de de estar em Paris quando Napo1eao e proclamado e coroado imperador em 1804. assistindo a coroac;ao do mesmo em Milao. no ano de 1805. Voltando a America do Sui vai a Hamburgo , passa pelos EUA e chega a Venezuela em maio de 1807. Quase quatro anos no exterior dao a Bolfvar uma visao da Europa e uma perspectiva mais ampla para contemplar a America. Ele mesmo dim rnais tarde:

... acredito que em Caracas ou em San Mateo niio teria tido as ideias que surgiram durante minhas viagens e na America niio teria acwnulado a expe­riencia nem feito o estudo do mundo, dos homens e das coisas que tanto me serviram no decorrer de mi­nha carreira polftica .. _to

Por algum tempo dedica-se ao cultivo e a adminis trac;ao de suas fazendas. Ja em 1809 e nomeado juiz principal de Yare. embora residisse em seus sftios de San Mateo. confinado por uma suposta participac;ao numa conspira<;ao, a 19 de abril de 1810, data em que o Cabildo* de Caracas. em conseqiii!ncia dos eventos ocorridos na Espanha por causa da intervenc;ao napo­leonica. desacata a autoridade do capitao-geral dom Vicente Emparan. tendo em vista formar uma " junta" que govemasse em nome de Fernando Vll. Mas nao se manteve muito tempo alheio ao cenario politico. pois a mesma junta. encarregada de gover­nar. envia uma missao economica a Londres, na qual figuravam Bolfvar e Andres Bello. A missao fracassa. mas proporciona-lhe a ocasiao de contemplar de perto o sistema parlamentar e as ins­tituic;6es britiinicas. cujas virtudes nao deixara de destacar em muitos de seus escritos.ll

De volta a Venezuela. participa em C aracas da exaltas:ao polftica popular. Assiste as reumoes da Sociedade Patri6tica , clube organizado segundo o mode lo frances o nde os jovens mais exaltados expunham opini6es. sendo livre o acesso inclus ive as

* Cabildo: junta ou agremias;ao de soeorro mutuo.

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I

mulheres e aos que nao fossem brancos. Entre os frequentadores inclufa-se tambem Francisco de Miranda, a quem Bolfvar conhe­cera durante sua estada em L o ndre s e que re tomara a Vcnt!zue la depois de prolongada ausenc ia. Contudo, as assemblcia-; polfti­cas " oficiais" . por assim dizer, eram realizadas na sede do Con­gresso que havia se reunido invocando os princfpios expostos a 19 de abril de 1810, as quais assistiam OS representantes da maioria das provfncias que constitufa a Capitania Geral da Ve­nezuela. Embora formalmente esse Congresso nao tenha sido constitufdo com a finalidade especffica de decidir a separac;ao da Espanha. veio a faze-lo a 5 de julho de 1811 , como resultado da convicc;ao da maioria dos representantes quanto a necessidade de dar esse passo e da pressao sobre ele exercida pela Sociedade Patri6tica. Em conseqiiencia de tal atitude deu-se a elaboras:ao de wna C arta Constitucional. inspirada fundamentalmente na Constitui<;ao norte-americana e na Declarac;ao dos Direitos do Homem e do Cidadao. francesa, de 1789, que foi promulgada e pos ta em vigor naquele mesmo ano. Tal documento preconizava o s istema federal e contemplava o exercfcio rotativo do poder pelos membros de urn triunvirato, mas ambas as disposi<;:6es eram pouco adequadas para consolidar o nascimento e a existen­c ia polftica de urn pafs cuja integrac;ao estava Ionge de ser efeti­va. Miranda - auxiliado nisso por Bolivar - des aprovou o pro­je te e posteriormente os fatos lhe deram razao: come<;ou-se a po r em questao a legitimidade do Congresso; as provfncias de Coro, Maracaibo e Guayana, que nao tinham enviado delegados. pro­nunciaram-se a favor da unidade com a Espanha; Valencia, se­gunda povoac;ao em importiincia da nascente republica. lan<;ou contra ela urn exercito; a partir de Coro. e fazendo adeptos pelo caminho, avanc;ava com mais de quinhentos homens Domingo Monteverde. capiUio espanhol da Marinha. A todos esses fatos veio somar-se o .terrfvel terremoto que destruiu grande parte d a c idade de Caracas. na Sexta-Feira Santa de 1812. 0 clero , parti­dario da uniao com a Espanha, interpretou-o como expressao d a ira divina que assim castigava os dissid entes, interpreta<;:ao que e ncontrou junto a popula<;ao aterrorizada. Diante de uma situa­<;ao tao delic ada. o Congresso outorgou poderes extraordinarios ao debil Poder Executive, d ecretou a pena de morte aos traido-

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res e nomeou generalfssimo - mais tarde ditador - Francisco de Miranda. Bolfvar, e m segundo plano, foi incumbido de defender a prac;a principal: Puerto Cabello. Mas a causa do rei ganhava a cada dia mais ades6es e a republica recem-nascida estava ainda muito fragil. Perdidos os arredores de Caracas, tendo sido traido por Bolfvar em Puerto Cabello, nao restava a Miranda- soldado de formac;ao europeia e veterano das grandes revoluc;6es de seu tempo , posto a frente de urn exercito indisciplinado e inexpe­riente - outra safda que a rendic;ao, cujas condic;6es nao foram curnpridas por Monteverde uma vez dominada a s ituac;ao. Traido pelos seus, entre os quais se encontrava Bolfvar, Miranda foi entregue a Monteverde, preso e enviado a Espanha, onde morreu quatro anos depois na prisao de La Carraca. Alguns patriotas fa­ram presos e enviados a Peninsula, enquanto outros conseguiram fugir ou sair do pais com passaporte obtido por recomendac;ao das autoridades realistas. Esse foi o caso de Bolivar, que primei­ro se dirigiu a Cur~ao e mais tarde a Cartagena das fndias, na Nova Granada (hoje Colombia) .

Sao essas, portanto, as circunstiincias em que Sim6n Bolf­var escreve sua Mem6ria dirigida aos cicladaos da Nova Gra­nada por urn caraquenho, na qual exp6e as causas da queda da "Primeira Republica" - aceitas depois sem reservas por quase todos os historiadores - e onde tern destaque sua critica ao sis­tema federal adotado pelos constituintes de 1811. 12

Uma vez na N o va Granada, agitada pela !uta entre os par­tidarios do sistema federal e os do centralisrno, e ameac;ado pelo partido da Espanha, Bolfvar obtem com dificuldade o desejado a poio do Con gresso daquele pais; s6 lhe sao concedidos setenta homens na obscura aldeia de Barrancas, com os quais da infcio, a duras penas, a sua incansavel carreira de caudilho militar. Em duas semanas, e com tao escassos recursos, consegue a liberta­c;ao do Baixo Magdalena, fazendo uma rapida e ntrada em Cu­c uta, cidade fronteiric;a entre a Nova Granada e a Venezuela, no caminho de Caracas, objetivo principal de seus projetos de li­bertac;ao, onde chega a 7 de agosto de 1813 , depois de percorrer mil milhas desde Cartagena. Sete semanas antes havia comec;ado em Trujillo a que seria conhecida como a "campanha admira-

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vel", formalizando por decreta uma guerra de rnorte contra es­panh6is e canarios,13 que de fato ja existia. Mas o triunfo, con- . quanto indiscutfvel, era ainda muito tenue: tinha atravessado mas nao dominado totalmente o pais. 0 resto do ano passa-se em confrontos entre partidarios da independencia e os do rei e, a 5 de dezembro, a Batalha de Araure da aos patriotas urn triunfo que teria sido decisivo nao fosse a sombra de Boves, marinheiro asturiano, caudilho de urn exercito com maioria de mestic;os -hostis ao general do grupo dos brancos crioulos partidarios da independencia -, que se projetava, ameac;adoramente, dando a guerra urn novo conteudo social e ~todos que levaram a perda dessa "Segunda Republica" em 1814, em cujo infcio do ano se reunira em Caracas nova Assembleia para decidir os destinos da nru;ao. As hastes de Boves chegaram ate Caracas, cuja popula­c:rao aterrorizada fugiu em massa para o leste do pais enquanto este se autonomeava "Govemador desta Provfncia, Presidente cia Real Audiencia, Capitiio-Geral e Chefe politico da Venezue­la, Comandante do Exercito Espanh.ol".

Com os fugitivos de Caracas seguiu BoHvar para o leste como chefe nominal de uma nac;ao que se desfazia. Ainda nao se convertera na figura principal da causa patri6tica que viria a ser mais tarde. Diante da impossibilidade de chegar a urn acordo com os outros chefes reunidos no leste do pais, consegue ir ate Cartagena para informar ao Congresso da Nova Granada e deci­dir a retomada da Iuta. Enquanto isso, morria Boves na Batalha de Urica.

Na Nova Granada o horizonte dos patriotas nao se apre­sentava mais claro, com Cartagena insubordinada e Bogota has­til. BoHvar e nomeado general das Forc;as Armadas da Uniao, mas diante da intransigencia dos pr6prios patriotas divididos embarca com destino a Jamaica em maio de 1815. Tres meses antes partira da Espanha uma expedic;ao de quinze mil home ns sob o comando do general Pablo Morillo, com a missao de e li­minar essas "disc6rdias entre irmaos". Em abril a expedic;ao chega a Margarita e, poucos meses depois, obtem a pacifica<yao de Caracas e prepara urn ataque a Nova Granada. Em pouco te mpo estava restaurado o poder espanhol em ambos os paises,

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restando aos patriotas nao mais que algumas regi6es na zona leste.

Na Jamaica, Bolfvar publicou numerosos escritos com o objetivo de atrair a aten~ao munclial - em especial a da lnglater­ra - para a America espanhola, com o intuito de combater a pro­paganda contniria 1'1 revolu~ao e difundir os pontos de vista d~s pafses hispano-americanos. Mas o mundo p6s-napole6nico mio

pc1recia demonstrar grande interesse pelas causas revoluciona­rias. Das cartas escritas nessa ilha, duas sao de especial impor­tancia: 14 uma conhecida propriamente como Carta da Jamaica e outra dirigida ao redator ou editor da Gazeta Real da Jamaica, ambas datadas de setembro de 18 15. A primeira tern sido inten­samente estudada e criticada pelos historiadores. Nela esta pa­tente a inten~ao de chamar a aten~ao munclial para a causa da li­berdade da America, seguindo as linhas da "Ieoda negra" ao pintar com as cores mais cinzentas a epoca espanhola. Apresenta ainda urn quadro geral da America de entao, assirn como o pres­sentirnento - sabre a base de conhecimentos que Bolfvar possufa acerca da sociedade e da vida polftica do Novo Mundo- sabre o destino desses pafses, com tal acerto que tern sido chamada de "carta profetica". Ela tambern contem reflex6es acerca da fun­damenta~ao juridica do movimento de emancipa~ao, dos tra~os caracterfsticos da sociedade americana, da inconveniencia do sistema federal - tema constante dos escritos bolivarianos -, bern como da ideia de fazer do Movo Mundo uma nova na~ao que, como defende tambem em outros escritos, contribua para restaurar o "equilibria do universo". A segunda carta faz refe­rencia a constituigao social da America espanhola: nela trata Bolfvar de convencer todos de que a causa dos americanos 6 uma s6 - independencia em relagao a Espanha -, sem diferengas de cor ou de ra~a. 0 texto apresenta particular importiincia par­que mostra a consciencia que teria Bolivar em relagao ao pro­blema que, para 0 exito da gerra, constituia a atitude adversa dos g:IUpos dos nativos nao-brancos 1'1 causa patri6tica. Seu inte­resse em criar uma "consciencia americana" ante a Espanha e em demonstrar que nao existiam motivos sociais na a<;ao das hastes de Boves e outros caudilhos realistas fazia sentido, uma

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vez que na Venezuela a guerra se decide a favor da inde penden­c ia quando a maioria da popula<;:ii.o - quasc toda e la mesti<;:a -abandona a causa do rei para scg uir os caudilhns patriotas como Jose Antonio Paez.

Na Jamaica, Bolfvar tarnbem nao se demora. Logo segue para o Haiti onde, corn o apoio do presidente Pction, organiza uma expedigao na qual e nomeado comandante-chefe; assim, em meados de 1816, estava rnais uma vez na Venezuela, onde a guerra ate a morte nao perdera vigor em nenhum dos !ados, ten­do como cenarios principais a regiao dos llanos* e a Ilha de Margarita.

No decorrer dos tres anos seguintes, o desenvolvimento da libertagao da Venezuela rnuda de rurno gragas a tres fatores es­senciais: em prirneiro Iugar ocorrem alteragoes na constituigao do Exercito patriota. 0 Exercito da Capitania G eral da Vene­zuela tinha sido - assim como a pr6pria circunscric;:ao adrninis­trativa - de bern pouca importancia; as tropas que Miranda co­mandou em 1812 o levaram a rendi<;:ao, e as que comandou Bo­livar em 1813 e 1814 foram destrogadas pelas hostes de Boves. Tratava-se, agora, de colocar as coisas sobre outras bases. Bo­ves e Monteverde venceram, porque tinham a seu !ado os estra­tos baixos da popula<;ao - os grupos de nativos indios e mesti­s;os, que desconfiavam dos patriotas, cuja rnaioria era de brancos crioulos. Surge dai o interesse em declarar a liberta<;ao dos es­cravos e fomentar a adesao dos mestigos, em levar acliante uma especie de levee en masse que decidisse a guerra a favor da in­dependencia. Coincidiarn assirn a crescente demanda de homens exigida pela nova etapa da guerra com os postulados igualitarios de 1811 ( cuja realiza<;ao imediata talvez fosse en tao indesejavel) e com as reivimlicac;:6es a que aspiravam os mestic;:os. Em se­gundo Iugar, a direc;:ao do rnovimento unifica-se nas maos de Bolivar, cuja capacidade e forte personalidade neutraliza intri­gas e ciumes dos dema.is chefes patriotas (Mariiio, Urdaneta,

~ Llanos: planfcies da bacia do rio Orenoco, habitadas por pastores, ca<;:adores e pes­cadores, na sua maioria fndios e mesti<;:os.

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Paez, Santander), aos quais nao resta outra altemativa senao a de reconhece-lo comandante-chefe. Em terceiro Iugar, mudam os objetivos estrategicos dos partidarios da independencia. Ja nii.o se trata de controlar Caracas, meta principal das campanhas an­teriores de 18 17, mas de dominar a regiao dos llanos e a do Orenoco, o que permitia uma melhor integrao;:ao das foro;:as repu­blicanas e as comunicao;:6es com o mundo exterior atraves do rio.

Assim, tres anos mais tarde, no ano de .J.819, encontramos os patriotas em Angostura, preparando-se para a reuniao de um Congresso Constituinte. Os legisladores ouvem Bolfvar pronun­ciar urn discursol5 no qual esboo;:a seu primeiro projeto de Constitui<;ao a ser submetido a considera<;ao dos membros da Assembleia. Surge entao urn Bolfvar mais maduro, consciente da necessidade de lano;:ar as bases da existencia polftica do pafs sa­bre fundamentos ideol6gicos diferentes dos de 1811' no que e possfvel identificar os resultados de sua formac;:ao ch'issica e das leituras de Montesquieu, Rousseau e Bentham, sem aderir, con­tudo, cegamente as ideias expostas por esses pensadores, mas antes assimilando-as a intenc;:ao de procurar o melhor carninho para a convivencia polftica num pafs com diferenc;:as sociais, culturais e geognificas que lhe eram bern conhecidas. Em tal projeto, Bolfvar define-se pela divisao de poderes em numero de quatro, acrescentando aos tres classicos urn "poder moral", ne­cessaria a urn povo que aspira a ser virtuoso - clara manifesta­c;:ao de sua preocupac;:ao com os problemas do meio aos quais trata de neutralizar atraves da instituic;:ao desse poder - de sua formac;:ao chissica (ouve-se o eco dos eforos e censores) e da possfvel influencia derivada da exaltac;:ao da "virtude" pelos re­volucionarios franceses. Para os tres outros poderes prop6e co­mo modelo a Constituic;:ao britanica, mas nao sua "irnitac;:ao ser­vil ", devendo-se destacar que via no estabelecimento d e urn Se­nado hereditano a base da continuidade do sistema. Seu pensa­mento centra-se na busca da solidez e estabilidade polfticas -pelo que reitera mais uma vez a crftica ao sistema federal - das quais depende equilibradamente a felicidade do povo cujo em­penho primeiro deve ser alcanc;ar a virtude. Tais qualidades po-

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lfticas, fundamentadas num incipiente espfrito nacional , hao de derivar necessariamente do equihbrio entre a vontade geral e a autoridade publica, obtida pela separac;ao, harmonia e efica.c ia dos quatro poderes, dos quais o Poder Executivo tera de ser o mais forte, mas o Legislative, o de maior peso, pelas suas atri­buic;:oes, devido ao "numero dos legisladores" e a hereditarieda­de dos cargos do Senado. Constantemente presente esta sua va­lorizac;:ao pela liberdade e igualdade: a luta pelo supremo bern da Iiberdade caracterizou sua vida nos ultimos tempos e constituiu o objetivo dos patriotas da Nova Granada e da Venezuela, paf­ses cujo futuro comum entusiasma Bolivar. A igualdade, para ele, e 0 princfpio fundamental do sistema: e impossfvel ser livre numa sociedade escravista, por isso implora ao Congresso a li­berdade absoluta dos escravos, esse 6 o tema essencial de suas argumentac;oes desde 1816, mas nao preconiza nem a liberdade indefinida nem a democracia absoluta, capazes de levar a anar­quia e ao despotismo.

Nomeado Bolfvar presidente pelo Congresso, teria entii.o de dividir sua atenc;:ao entre as necessidades polfticas e as milita­res. Embora fosse clara sua impaciencia em criar instituic;:6es estaveis, a guerra nao lhe permitia esperar. Tendo sido melhora­das as condic;:oes do Exercito quanta ao m1mero de combatentes, as relac;:6es entre OS Chefes, as proviSOeS, era possfvel planejar uma campanha de maior alcance: atacar de surpresa as posic;:oes espanholas na Nova Granada, nao na Venezuela. 0 Exercito de Paez desviaria a atenc;:ao dos espanh6is para Cucuta, enquanto Bolfvar e o restante do Exercito atacariam diretamente, depois de uma diffcil travessia dos Andes. Paez negligenciou a ordem, mas Bolivar e seu Exercito cruzaram os Andes e, a 37 de ages­to, com a Batalha de Boyaca, abre-se carninho para Bogota, on­de chega o "Libertador" depois que o vice-rei, ante a notfcia do triunfo inimigo, ja tinha fugido para Cartagena. Deixando San­tander como vice-presidente na Nova Granada e convocadas as eleic;:6es para urn Congresso, regressa Bolfvar para Angostura, que se debatia em conflitos devido a debilidade do vice-presi­dente Zea. Embora parecesse urn tanto cedo, pois boa parte do territ6rio ainda estava em maos inimigas, o Congresso de An-

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gostura propos, por inic iativa de Bolfvar, a cria<;ao da Republica da Colombia com a integra<;ao de tres regi6es: a Venezuela, com sua capital em Carac as: Cundinamarca, cuja capital seria Bogo­t<i: e Quito - ainda sob o govemo espanhol - com sua capital em Quito. Em janeiro de 1821 reunir- se-ia o primeiro Congresso Constituinte da Colombia na cidade de Cucuta, ainda por ser li­bertada.

Na Venezuela, Morillo esperava refon;os da Espanha que deveriarn partir de Cadiz, em 1819. Todavia, mais uma vez, os acontecirnentos da Penmsula repercutiriarn na A.merica. A 12 de janeiro de 1820, o coronel Riego Ievanta-se contra o despotismo de Fernando VII, e em vez do Exercito vierarn para a A.merica delegados procurando paz e reconcilia<_;:ao. Na Venezuela a guerra prosseguia, mas Bolfvar nao se arriscava a comprometer suas for<_;:as em situa<;6es que poderiam novarnente por a perde1 as posi<;oes conquistadas na Nova Granada e na Venezuela tentando ganhar tempo para recompor-se. Morillo recebeu a5 instruc;6es de paz e, em conseqliencia, Bolfvar rmnou com ele, na Vila de Santa Ana, o Tratado de Armistfcio e Regulariza<;ao da Guerra, no qual tinha muito interesse, pois lhe oferecia a de· sejada tregua. Pouco depois, Morillo voltava para a Europa. Rompido o arrnistfcio, a guerra na Venezuela foi cada vez mai s favoravel aos patriotas que, em 24 de junho de 1821, consegui­ram derrotar o Exercito espanhol em Carabobo, libertando defi­nitidamente essa na<,:ao.

A seguir o movimento de liberta<;ao desloca-se para o sui da Colombia. Na Argentina e no Chile, San Martfn ja havia con­solidado a independencia com as batalhas de C hacabuco e Mai­p u, dando os primeiros passos para a liberta<;ao do Peru. A par­tir da Nova Granada, Bolfvar pensava em anexar Quito a Vene­z uela e Cundinamarca para completar a unidade da G ra-Colom­bia. Guayaquil, povoa<,:ao portuaria importante da antiga presi­dencia de Quito, dera seu grito de liberdade em outubro de 1820. Posteriorrnente, em 1822, o general venezue1ano Antonio Jose de Sucre poe firn a dornina<,:ao espanhola em Quito com a Batalha de Pichincha, enquanto Bolfvar avan<,:a para o sui pela regiao de Pasto. Em Guayaquil teve Iugar uma entrevista a por-

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~as fechadas entre os dois libertadores hispano-arnericanos, so­bre a qual muito especulararn os historiadores. De concreto, os pontos tratado;; parece terem-se refcrido a considera<,:6es sobre as formas de govemo convenientes para a America (San Martfn declarava-se a favor da soluc;ao monarquica, e Bolfvar a favor da repub1icana), a quest6es de lirnites e ntre a Col6mbia e o Pe-

a assuntos internacionais e a uma possfvel ajuda da Col6m­ru, bia para consolidar a independencia peruana. San Martin logo retirou-se da vida publica.

0 Peru debatia-se em conflitos, sectarismos e trai<;6es. A Junta de Govemo estabelecida por San Martfn tinha sido derru­bada por urn golpe rnilitar e as for<;as vice-reais erarn ainda con­sideniveis. Estava em perigo o movimento da independencia. 0 novo presidente enviou urn representante para pedir refor<;os a Bolfvar, que mandou Sucre como representante plenipotenciario enquanto ele requeria licen<,:a junto ao Congresso da Col6mbia para ir ao sui. Chega a El Callao em setembro de 1823, encon­trando uma desalentadora situa<;ao anarquica.

Logo perdeu-se El Callao para os realistas. Diante da gra­vidade da situa<,:ao, o Congresso do Peru nomeou Bolfvar dita­dor e este, com grande esforc;o e a ajuda de Sucre e outros parti­ct.arios, conseguiu forrnar o Exercito Unido Libertador, com o qual realizou a carnpanha de Junfn contra as tropas vice-reais, as quais derrotou na batalha de mesmo nome em agosto de 1824.

A 28 de julho, o Congresso da Co16mbia ernite uma lei .S.!:Ispendendo as atribui<,:6es extraordinanas concedidas a Bolfvar em 1821 , e privando-o dos auxOios do sui deste mesmo pafs. Bolfvar tern conhecimento da resolu<_;:ao em setembro e, acatan­do-a, transfere o comando do Exercito a Sucre que, abrindo ope­ra~6es em seguida contra 3:5 tropas do vice-rei La Serna, vence­as no campo de Ayacucho a 10 de setembro, como que se con­salida a independencia do Peru e de toda a America espanhola. Realiza-se assim a ruptura definitiva com a velha ordem estando o campo livre para a instaura<;ao da nova ordem.

Mas nem tudo era tao simples. 0 pr6prio Bolfvar, em carta a Santander enviada de Lima,16 escreve o seguinte:

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0 ohjeto que mais requer minha ate~iio hoje em dia e a tranqiiilidade interna da America ... Cada dia mais me conve~o de que e necessan·o dar d nossa e.xistencia wna base de garantia. Vejo a guerra civil e a desordem m.ovend.o-se por toda parte, de wn pa{s a outro. meus deuses patrios devorados pelo in.cen­dio domestico.

Em outra oportwtidade dir-lhe-a, 17 consciente da simultaneidade com que era preciso atender as diversas exigencias da nova vida independente:

. . . Estamos criando duas repUblic as de cada vez, conquistando-as e organizando-as; estamos rodea­dos de in.convenientes polfticos, porque a justi{:a e nossa delicadeza impOem considera{:aes que niio po­demos desatender ...

Bolivar compremete-se assim - nao a contragosto - com a cria­<;ao da nova ordem que era simuWinea a liberta<;ao. A partir de 1825 seu desejo - sincero ou nao, mas em todo caso expresso­de abandonar a vida publica afoga-se em meio a necessidade que os novos povos parecem ter dele. Conquanto em abril de 1825 tenha escrito a sua irma Marfa Antonia que

... a sorte me colocou no 6pice do poder, mas niio quero ter outros direitos que os de wn simples ci.da­diio l 8

em outra ocasiao escreve a Santander o seguinte:

.. . penso em ir dentro de dez ou doze dias ao .Alto Peru para esclarecer aquele caos de interesses com­plicados que. e.xigem absolutarnente minha presen­{:a ... t 9

Dessa maneira, pois, via-se comprometido com a instaura­<;ao da nova ordem polftica, cuja necessidade se manifestava em

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duas difes:6es distintas: 1) a consolida<rao da ordem interna e da estabi lidade politica de cada urn dos novos Estados indepen­dentes; e 2) a cria<rao de uma ordern intemacional hispano-ame­ricana fundada na alian<;a das na<;6es-irmas para defesa e destino

comuns. Para levar adiante essas metas, Bolivar dispunha do poder

que as circunstancias depositararn em suas maos e da autoridade proveniente de sua capacidade polftica e de seu prestfgio como chefe da causa da emancipa<fao.

Do ponto de vista da consolida<;ao da ordem interna, to­mou inllineras medidas de carater imediato no Peru, em Quito, na Nova Granada e na Venezuela: medidas econ6rnicas (divisao de terras, constru<rao de estradas), sociais (aboli<;ao das obriga­c;Qes pessoais), culturais (refonna da universidade, funda<;ao de sociedades de arnigos do pafs), jurfdico-administrativas (estf­rnulo a reda<;ao de c6digos) etc. Mais importante, porem, que tais rnedidas de carater irnediato - pela transcendencia dos obje­tivos aos quais se propunha e pela proje<;ao espacial e temporal a que aspirava - e seu Projeto de Constitui<;ao para a Bolivia, na<;:ao que surge levando seu nome, em 1825, por decisao de uma assembleia das provfncias do Alto Peru, vinculadas ao vice­reinado de Buenos Aires desde 1778.

Nesse Projeto de Constitui<;ao- o mais elaborado de seus escritos polfticos - Bolfvar tenta lan<;ar as bases de urn novo pafs visando, como em Angostura, a institui<;5es estaveis e du­radouras que, sobre os princfpios da liberdade e da igualdade, garantam a estabilidade e a continuidade do sistema republicano. Tais "virtudes" tinham estado vinculadas ate entao a monarquia. A soluc;ao republicana federal da primeira Constitui~ao da Ve­nezuela fracassara. Bolfvar, partidario invariavel do sistema re­publicano e do centralismo, chega a conclusao entao de que nu­ma nova republica a centraliza<rfto do poder e o exercfcio vitalf­cio ou hereditario de certos cargos - que asseguravam a conti­nuidade nas monarquias - eram as unicas coisas capazes de ga­rantir estabilidade e dura<;ao do sistema. Por isso, em Angostura ele teria se manifestado a favor da instaura<;ao de urn Senado he­reditario e, por essa mesrna razfto, o Executivo que prop6e para

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a Bolfvia estabelece a presidencia vitalfcia e a hereditariedade do cargo pelo vice-presidente, c riando assim o que para algum­nao seria mais do que uma mo narquia disfar<_;ada de republica Nesse sentido chegarn a considerar como unico motivo dessa concep<;:ao a pr6pria aspira<;ao de Bolfvar ao e xe rcfc io do pode r , caso essa Constitui<;ao, como ele desejava, fosse aceita em todos os paises recem-libertados.20 Para outros, essa presidencia vita­lfcia foi a expressao mais precisa da realidade polftica posterior dos paises latino-americanos, personificada nos caudilhos que, apossando-se do poder, inclinaram-se, com freqiiente exito, a exerce-lo por toda a vida.21 Outros, recordando as caracterfsti­cas do poder exercido pelo prirneiro-c6nsul, segundo a Consti­tui<;ao francesa do ano VIII e o Senatus Consulto de Termido r do ano X, levaram em conta a possfvel influencia desses textos constitucionais no Projeto da BoHvia, fosse de modo direto ou atraves do exemplo do Haiti (onde inegavelmente exerceram in­fluencia as constitui<;6es da antiga metr6pole), citado por Bo lf­var como modelo.22

0 certo e que embora Bo!fvar possa ter concebido a cria­c;;ao de uma " monocrac ia"' por aspirar a es tabilidade e a conti ­nuidade antes mencionadas , nao era partidano de uma monar­quia concebida nos tennos em que era ·possfvel imagim'i- la na­quele tempo (com corte, nobreza, prlncipes heredit.arios e tc .), nem do exercfcio do poder na America por urn prfncipe de o ri ­gem europeia. Mais que isso, todos os seus escritos express am preferencia pelo sistema republicano, embora nao deixem de re­conhecer - como vimos - as raz6es que conduziriam a estabili­dade e continuidade nos sistemas monarquicos.23

Bolfvar introduz em seu proje to urn quarto poder, o eleito­ral, junto aos tres classicos, que, na opiniao de alguns,24 torna­se inconveniente e acess6rio, urna vez que nao se pode colocar o poder eleitoral ou constituinte da autoridade suprema no p lano de suas rami.fica<;6es. 0 sistema de eleic;;6es indiretas, em d ois nfveis, encontra-se na linha das constituic;;6es francesas de 179 1, 1793, 1795 e 1799, e na da Constitui<;ao de C adiz. Vale notar que nao se exigem requisites de riqueza para exercer o sufragio, mas exclusivarnente as capacidades (como na Constitui<;ao fran­cesa de 1793).

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S ua constante p reocupa<;ao com a educac;ao popular, com as virtudes do povo e d os magistrados, ficara patente em An ­gostura mediante a pro~osic;;ao do " poder mora l" que cuidaria das vi rtude s, da e duca<;ao c dos bons costumes. No Pro Jc to da Bo lfvia prevalece a mesma ideia na instituic;;ao - ins pirada tal vcz em fontes classicas, revoluciona rias francesas e provavelmente nas constitui<;6es napole6nicas, mas realmente originana na America - de uma terceira c funara dentro do Poder Legislative: a dos censores. Esta, alem de ter em suas maos a defesa da Co~tituic;ao , dos tratados publicos, da boa administra<_;ao, da moral, d as c iencias, das artes e da educa<_;ao, deveria contribuir para 0 estabelecimento de urn saudavel equilfbrio e impedir os freqiientes conflitos entre as duas cfunaras classicas.

0 Poder Judiciario, seguindo a linha de Montesquieu, goza nesse Projeto da maxima independencia. Dos princfpios c onsti ­tucionai s da Revolu<_;ao Francesa, do Consulado e do Imperio, assim como da Carta de 1814, esta presente o princfpio da judi­catura inamovfvel, aplicado tambem na Inglaterra e nos EUA.

Em Iinhas gerais, a Constituic;;ao da BolfVia localiza-se , portanto , dentro das tendenc ias da epoca em materia constitu­cional . Parece inegavel a influencia formal - e algumas vezes profunda, como vimos =- que tiveram em sua reda<;ao as consti­tui<;6es frances as de 179 1, 1 793 , 1795 e 1799. As liberdades e garantias que estabelece se nutrem da Declar~iio dos Direitos do Homem e do Cidadiio e da Carta de Direitos norte-america­na. 0 conteudo dos pode res e leitoral e Judiciario esUi alinhado as aspira<_;6es democraticas e liberais da epoca. A inedita Cama­ra dos Censores expressa a consciencia da existencia dos rnes­mos problemas que e m Angostura Ievaram B o Hvar a propor o "poder moral". A presidencia vitalfcia e sem poder decis6rio, mas com dire ito a nomear o sucessor, viria a sera princ ipal ino­va<;ao de ntro d as disposi<;6es, que em re1a<;ao ao Poder Executi­ve continham as constitui<_;6es hispano-americ anas ate entao, e pretendia, no conjunto da Constituic;ao, ser a solu<;ao perfe ita para se obter a institucionaliza<;ao da vida polftica de forma du­radoura. Todavia, nao correspondeu as necessidades de urn Exe­cutivo forte que as c irc unstanc ias e xigiam, a despeito do empe­nho bolivariano e m c riar institui<_;6es a prova do tempo e do

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meio. Nesse sentido o destino de seus proje tos foi o mesmo de muitos dos apresentados por liberais de seu tempo na Europa c na America, os quais -- na i'tnsia c!e quc imar etapas his t6 rica:; num tempo em que o condicion mne nto da ordena<_;ao insti tuc io­nal pelo s ubstrata social mal se esclarecia - nao levararn em conside rac;ao que nenhum mec anisme constitucional, por exce­lentes que fossem suas formular,;:oes normativas, poderia ser e fi­caz se nao estivesse coerente com a realidade sociocultural a qual deveria se aplicar. E certo que Bolfvar nao desconhecia as condic;6es de sua America e, assim, o "poder moral" e a Cfunara dos Censores sao exemplos de ins tituir,;:6es orientadas a promo­verem a educar,;:ao e as virtudes cfvicas que tornassem o po vo apto para a vida republicana. Mas, de urn lado, havia tarnbem outros obstaculos que somente o desenvolvimento hist6rico po­deria remover e, de o utro, nao era possfvel resolver todos os problemas de uma s6 vez, a u seja, lan<;ar os alicerces e edificar ao mesmo tempo a nova o rdem a ser cons trufda sobre e les , nem tinha eficacia hist6rica imediata falar urna linguagem que nao contava com audiencia senao entre uma tninoria ilustrada, fre­qi.ientemente dividida entre seus valores abstratos e seus interes­ses concretes. A Constituir,;:ao da Bolfvia teve nesse pais uma precaria vigencia de do is anos; o Peru adotou-a por menos te m­po ainda e no restante das republicas hispano-arn·ericanas nao vigorou jarnais. E indiscutfvel, porem, que a solur,;:ao bolivariana era muito superior e bern mais de acordo com a realidade do que as constituir,;:6es liberais que a substitufrarn.25

A id~ia da autodetermina<;ao polftica dos pafses recem-li­bertados, assim como a de urna ordem internacional hispano­runericana, aparece muito cedo em Bolfvar. Ja em 1815 dizia: " ... esta metade do globo pertence a quem Deus fez nascer em seu solo ... ", 26 sugeri.ndo o que o presidente Monroe dos EU A diria em 1823, com outras inten<;6es e sob outra perspec tiva. Na Carta da. Jamaica expressava a esperanr,;:a de que o istrno do Pa­nama fosse algum dia a sede de urn congresso internacional americana e tivesse para a America espanhola o s ignificado d o de Corinto para os gregos.27 Em 1818, proclarna aos habitantes do Rio da Prata: " ... que nossa divisa seja unidade na America

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meridio nal . .. " ,28 e a Puyrred6n, diretor supremo daquelas pro­vfncias, afJ.r(Tla que: " ... uma unica deve sera patria de todos os americanos ... ", " ... nos apress aremos , como mais vivo inte res ­se, para estabelece r, de nossa parte, o pacta americana que, formando de todas as nossas republicas urn corpo polftico, apre­sente a America ao mundo com urn aspecto de majestade e gran­deza sem paralelo nas nac;6es antigas . " 29 Em seguida, os resul­tados do desdobramento da guerra contribuem para que Bolfvar concretize essas ideias e assim, em 1822, convida os govemos do Mexico, Peru, Chile e Buenos Aires para a forma<;ao de uma confederac;ao e a cons tituic;ao de uma assembl~ia de represen­tantes plenipotenciarios que se reuniria no Panamci. Nesse mes­mo ano, o govemo do Peru tinha assinado urn tratado como da Col6m.bia de " alianc;a e confede~ao" semelhante ao que, em 1823, concluiriarn os governos do M~xico e da Col6mbia. Em 1824, persistindo na mesma id~ia, Bolfvar escreve aos govemos da Coi<>mbia, do M~xico, do Rio da Prata, do Chile e da Guate­mala com o prop6sito de insistir na reuniao da assembl~ia inte­ramericana que seria a principal base da polftica exterior das re­poblicas nascentes.

Essa polftica exterior teria de levar em conta: 1) a atitude de cada uma das grandes porencias europeias em rela<;ao a este hemisferio; 2) a situac;ao das nac;6es independentes do conti­nente americana diante daquelas; e 3) as rela<;6es mutuas entre as republicas da America espanhola, sob a premissa primordial da independencia e da defesa comum contra o estrangeiro. Por isso, em 1825, Bolfvar insiste30 que, para a seguran<;a da Am6-rica, cinco pontos deveriam ser considerados: 1) urn grande excr-cito para sua defesa; 2) polftica exterior com os pafses euro­peus; 3) polftica exterior com os EUA (nac;ao potencialmente perigosa) ; 4) polftica exterior com a Inglaterra ("porencia neces­sUia no presente; perigosa no futuro"); e 5) reuniao de wn con­gresso de todos os Estados americanos.

Nesse mesmo ano de 1825 Bolfvar fala concretamente de urn projeto de confedera<;ao das republicas hispano-americanas que, dada a tensa situ~ao .no Chile e na Argentina, logo se viu reduzido as cinco n~6es que ele fundara. A confederac;ao pre-

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tendia servir como urn ensaio para a unifica<;ao das republicas, para evitar a anarquia que os particularismos regionais e a dive r­s idade de interesses faziam vislumbrar. A existencia de tal con­federa<;ao se configurava nas Iinhas gerais da Cons titui <;:5.o bo li­viana, tanto para cada pafs em particular como para a confedera­<;ao em geral. Com isso, Bolivar buscava consolidar sua obra e revigorar a unidade dos povos ante o perigo que significava a fragilidade dos vftx;ulos que uniam a Ora-Colombia, a potencial importiincia do Brasil e, ainda mais, ados EUA.

0 Congresso do Panam<i instala-se a 22 de junho de 1826, sem a presen~a de Bolfvar, assistido por delegados da Colombia, Guatemala, Mexico e Peru e representantes da Holanda e Grii­Bretanha como observadores; a representac;ao dos EUA chegou com atraso. As sess6es foram encerradas a 15 de julho, depois de se firmar urn tratado de alianc;a, se realizar urn acordo relati­vo a uma reunHio do Congresso a cada dois anos e se definir urn e ntendimento de or-dem rnilitar. Os resultados do Panama nao entusiasmaram Bolfvar, que, decepcionado, escreveu a Paez a 4 de agosto:

0 Congresso do Pananui, institui~ao admiravel se tivesse mai.s eficacia, ndo e outra coisa sendo aquele louco grego que pretendia dirigir de wna rocha os navios que passavarn. Seu poder sera wna sombra e seus decretos, conselho; nada mais.31

Sua ideia grandiosa, a frente da epoca, nao podia romper os obst<iculos que a escassa estabilidade polftica, as enormes distancias e as sombras da Gra-Bretanha e dos EUA impunham a integrac;:ao da America espanhola. Parecia, alem russo, que o unico a possuir uma consciencia de solidariedade continental era Bolfvar. Eis por que seus esforc;:os para assegurar a "estabi­lidade deste continente"32 viram-se projetados no vazio, nao obstante seus ideais pan-americanistas rruucarem o nascimento de uma nova era na hist6ria do direito intemacionaJ americana.

Em fins de 1826 Bolfvar regressa a Venezuela, dominada por tendencias separatistas em rela~ao a Gra-Colombia. Assume

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~ :

0 poder supremo na qualidade de presidente e, somente pelo

pres tfgio de sua presen<;a pessoal, e capaz de adiar por algum tempO a ruptura defmitiva c om a Gra-Col6mbia.

os anos seguintes sao tn'igicos para Bolfvar. Ja em 1827 manifesta claramente sua decepc;ao:

Dirdo que libertei o Novo Mundo - escreve a Sucre -, mas nao dirao que aperfeic;:oei a estabilidade e a sorte de nenhuma das nac;6es que o comp6em. Voce, meu caro amigo, e mais feliz que eu.33

Com efeito, se na Venezuela sopravam os ventos da seces­sao, acalmados momentaneamente pela presenc;:a do " Liberta­dor", em Bogot<i o ambiente inflanl4lva-se pela !uta polftico-reli­giosa entre clerigos e liberais e entre civis e militares, assirn co­mo pelo descontentamento com a Constituic;:ao de 1821. Em Li­ma os batalh6es colombianos sublevavam-se; Guayaquil decla­rava-se em rebeliao. Ante a gravidade da situac;:ao objetiva so­mava-se a debilidade ffsica de Bolfvar, cuja doenc;:a avanc;:ava. Por conseguinte, a natureza dos acontecimentos fazia a situa<;ao sair de seu controle.

A 9 de abril de 1828, diante das circunstAncias crfticas, reuniu-se em Ocaiia uma conven~ao que nao alcanc;:ou qualquer resultado positive. Bolfvar apresentou uma mensagem na quaJ declarava a gravidade dos fatos e, embora conservasse a vigore­sa eloquencia de outros tempos, nao conseguia encobrir a tr<igi­ca desilusao que o agoniava.

Ndo vejo meios humanos - dizia - de como manter a ColOmbia; a conve~do nada fara que valha a pena e aos partidos, a guerra civil, sera o resultado.34

A conseqiiencia irnediata da dissoluc;:ao da conven~ao - contra o acordo estabelecido por ela propria - foi a proclama~ao da dita­dura de Bolfvar por parte de Cundinamarca numa assembleia popular. Mas nem mesmo isso poderia salvar a unidade da

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Colombia. Os acontecimentos prectpttarn-se . A 25 de se tembro Bolfvar e vftima de urn atentado do qual e salvo por sua amante, Manuela Saenz. Em outubro ocorre urn levantc armada, em Po­payan, que se cstc ndc pelo su l da Co lo mbia, co incidindo com urn conflito limftrofe com o Peru. A Venezuela continua va deci­dida a separar-se. Em fins de 1829 Bolfvar esc revia : " .. . nunc a vi com bons o1hos as insurreic;6es; ultimamente tenho deplorado ate a que fizemos contra os espanh6is. "35 Tal era seu estado de animo.

Conforme se anunciara meses antes, o povo colombiano foi charnado para expressar sua opiniao acerca da forma de go­verna a ser adotada . Em janeiro de 1830 reunia-se o Cong resso Constituinte da Colombia em sess6es preparai:6rias, enquanto na Venezuela se convocava a reuniao de outro Congresso para o mes de abril. Ja era evidente a desintegrac;ao do projeto que on­ze anos antes entusiasmara Bolfvar.

No primeiro dia de mar<;o de 1830 Bolfvar renunc ia pela ultima vez ao poder e, a 6 de maio, com o agravamento da doenc;a que o levaria a morte, sai de Bogota rumo a cos ta norte da Colombia- fazendo o percurso inverso ao de seus prime iros passos como caudilho militar - com a intenc;ao de seguir para a Europa . Seus ultimos mese s de vida constituem uma dolorosa e va peregrinac;ao pelo litoral em busca de saude: Cartagena, Bar­ranquilla, Soledad, Santa Marta ... De toda parte chegarn notfcias desalentadoras sobre a situac;ao: o Equador tarnbem se inclina pela separac;ao da Gdi-Colombia; Sucre, o mais estimado de seus colaboradores, fora assassinado; a insurreic;ao volta a ex­plodir na Colombia e o general Urdaneta, encarregado proviso­riamente do comando, pede-lhe que reassuma o poder, convite que ele recusa.

No dia primeiro de dezembro Bolfvar c hega a Santa Marta doente, desiludido e frustrado. H6spede na Quinta de San Pedro Alejand.rino, propriedade do cidadao espanhol dom Joaqufn de Mier, vern a falecer de tuberculose pulmonar no dia 1 7 de sse mesmo mes, cercado dos poucos amigos que o acompanham. ...

Muitos dos homens que represenJaram um papel de primeira ordem na ~iio dos novos Estados da

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I .... f.

AJnerica foram herois c ivis ou militares. 0 mesmo vale tanto para o /.ado americana como para 0 !ado espanhol. Forcun personagens da estirpe dos que en­cerram wna ep oca o u contribuem para in.augura r outra . Somente Bolfvar foi o homem do porvir. Nis­so . .. unicarnente Cesar pode ser comparado a ele . Cesar, como Bolfvar, e BoUvar, como Cesar, abrem nova era, niio como meros joguetes do destino mas como preparadores conscientes de nova idade hist6-rica. 36

A obra empreendida por Bolfvar trazia dois aspectos reci­procamente implicados: era preciso destruir a ordem anterior, mas essa destruic;ao se vinculava dialeticarnente a cria~ao da no­va ordem. Para compreender a magnitude de tal empreendirnen­to, e preciso dar-se conta de q ue se propunha a acabar, em pou­co tempo, com uma dominac;ao de tres seculos sobre urn territ6-rio c uj a extensao era muito maior que a da propria Europa . Eis porque sua vida foi - como virnos - uma das mais agitadas e in­quietas que a Hist6ria registra : nos vinte anos de vida publica realizou carnpanhas que o levaram a percorrer enormes dis tan­cias , de tao aroua travessia que poucos exemplos podem servir de compara~ao. 0 cenano de sua a~ao polftica e militar abrange seis milh6es de quilometros quadrados. Mas a simultaneidade com que se colocavam os problemas polfticos e militares exigia a mesma simultaneidade para as solu~6es propostas. Era preciso criar a nova ordem a medida que se abandonava a antiga. Era preciso demolir, lanc;ar os alicerces e constnrir, tudo ao mesrno tempo; combinar a ac;ao do homem de armas com a do estadista e BoHvar - que na A.r:nerica de entao nao teve paralelo ness~ sentido - possufa duas facetas. Nao foi apenas, como San Mar­tin, o militar eficaz para a empresa guerreira nem, como Mariano Moreno, o estadista sem atividade militac. Sua personalidade combinou ambas as virtudes e as circunstfulcias levaram-no a mostrn-las simultaneamente: os projetos constitucionais de An­gostura foram concebidos em meio A guerra, pouco antes da campanha de BoyacA; seus projetos de unidade hispano-ameri­cana foram delineados desde o infcio de sua vida publica e o

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acompanharam por onde quer que fosse. Redigiu sua Constitui­~ao para a Bolfvia pouco depois do triunfo de Ayacucho. E nfti ­do, portanto, o seu proposito de ir criando uma ordem institu­cional salida e duradoura em substituic;:ao aquela que se destn.tfa Contudo, no plano da realidade polftica, seus dais projetos constitucionais nao obtiveram maior transcendencia; o Congres­so do Panama nao alcanc;:ou as finalidades desejadas; a confede­rac;:ao de Estados demonstrou ser uma utopia; sua ditadura nao p&le salvar a unidade da Colombia. Em outras palavras, se era fato inegavel que havia triunfado na destruic;:ao da antiga ordem, parecia ter fracassado na instaurac;:ao da nova ordem. Esse e o motivo pelo qual a primeira censura dirigida a Bolfvar referiu-se ao seu fracasso como polftico. 37

Se e certo, porem, que sua obra polftica nao teve irnedia­tarnente uma maior efidicia construtiva, nao e menos certo que seja.

. .. ridfculo buscar nas condiri5es pessoais ou nos er­ros rnontentiineos as causas de wn fracasso que era inerente a pr6pria obra empreendida ... 38

Tratava-se de uma tarefa que nao poderia obter exito nem por urn W.ico homem nem por muitos, pois ultrapassava os timites temporais de uma gerac;:ao. Seus projetos foram, na epoca, uma criac;:ao racional que se chocava contra a ordem, ou antes, contra a desordem social - conseqiiencia da guerra - dos povos re­cem-libertados. Bolfvar

. . . acreditava que a sociedade, tal como havia sido transformada pela guerra, niio podia oferecer wna

base esuivel para a reorganizarao do Estado e. por pru.dencia, quis inverter os termos e forjar wn Esta­do que fosse a base cia nova sociedade .. . 39

Homem de seu tempo, desejou transfonnar de uma so vez as forc;:as sociais e as instituic;:6es, sem ter em conta que estas sao vazias se aquelas nao as sustentam nem as movem. 0 destine de

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~-~

'

,; ,, I( e ncontrava-se pais, condicionado pela necessidade ~ ~r . ' .

. 6 ·ca de providenciar muito em pouco tempo. Dtsso lvera htst n de m de tres secu los mas era impossfvel instaurar uma no­uma or tre, s anos Para ele a America era o novo continentc ondc va em · ' . . .

deria estabelecer o impeno da hberdade e da tgualdade so-se po . . . · · 1

bases institucwna1s s6hdas; mas os dots concettos, ta como bre e. concebidos na epoca, mostravam-se estranhos a Am nca espa-nhola. Eram ideias nascidas na Europa, dep01s de urn Iento pro-

so e em continuidade a outras mudanc;:as estruturais, e pre-ces I' 'd tendia-se que criassem rafzes num campo que, pelas pecu 1an a-des de seu desenvolvimento hist6rico e por sua heterogeneidade social, noo estava ainda em condic;:6es de serem implantadas.

Sem duvida, os projetos de Bolfvar foram, salvo essas ob­. ri'>Ps 0 maior esfon;o j~ realizado para tentar colocar a Ameri­Je":r"- • ca espanhola na contemporaneidade da epoca, nao como se. pre-

t deu em seguida - adotando constitui~6es liberais vantaJOSas en . que servissem de m.ascara para o caudil~ismo, as ~ligarqu1as e toda especie de interesses - mas acred1tando efet1va e tliTilC­mente na possibilidade de encontrar urn caminho que, assegu­rando estabilidade as instituic;:6es, de fato conduzisse- a soluc;:ao dos problemas que afligiam o Novo Mundo.

Pode-se falar em erro e fracasso de Bolfvar, mas e preciso determinar em que medida ambos os termos lhe sao aplicaveis. Como a maioria dos homens educados no espfrito do lluminis­mo, acreditava que a razao em marcha seria capaz de ultrapassar todos os obstaculos e transformar, com sua simples revelac;:ao, a realidade hist6rica; nesse sentido, e analisando os fatos no con­texte de um estreito horizonte hist6rico, nao teve - como tam­pouco tiveram outros homens de seu tempo- a medida do pos­sfvel, ou melhor, do equilfbrio entre o que se quer e o que se pode, e o resultado foi a frustrac;:ao polftica. Se tudo isso e cor­rete, nao e menos certo que as ideias e projetos de Bolfvar te­nham servido de programa ideal para a coexistencia das futuras gerac;:6es hispano-americanas e, nesse sentido, nao se pode afir­mar que sua obra polftica foi frustrada. Vistas as coisas em ter­mos hist6ricos - e nao estritamente biograficos -, ninguem que,

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com suas as;6es , tenha marc ado a epoca e m que viveu e inaugu­rado urn novo tempo pode considera- las como urn fracasso.

Graciela Soriano Universidade Central da Ve nezuela

Instituto de Estudos Politicos Caracas, 1968

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•; ~~

N OT AS

I 0 catalogo publicado pela Biblioteca Nacional de Caracas, em 1942, reune 4 74

1rrulos , sem incluir os artigos . Da Bib/iografrn crfrica da derrarao bolivariaru1 pu bli ­cada em Caracas, em 1959, participam 73 auto res.

2 C f. "Projetos pan-ame ricanos" .

3 Cf. "Quadro c rono 16gico''. 4 Essa paiavrn provful do privilegio de usar "manto", do q ual gozavam a sdamas

dos eso-atos socia is s u periorcs da sociedade colo nia l. 5 C f. A lex.ander von Humboldt e A. Bonpland em RelaticJn historiqu e aw: regions

equinoxUzles du Nouvea u Continent, Paris , 18 14 - 1825, que a pareceu tamb~rn com

0 tfculo Voyage aw: regions equinoxiales du N ouveau Continent fait en 1799, 1800, !801 . !802, 1803 et 1804, Paris , 18 16- 1831. Cf. tambem C onde Louis Philippe S~­gur em: Mbnoires ou sou ven.ir.r e t a necdotes, Paris, 1842, 3 vols.; Frans:ois De Pons & Joseph Raymond ern: Voyage a Ia partie orientale de Ia Terre Ferme, dans r Ante ri­que Meridionale, Paris, Londres, 1806. C itamos a edi<;ao e m castelhano de Caracas, 1960. 2 vo!s. , vol. II, p. 229. 6 Esteban Palacios aparece e n tre os subscri tores da Constitui<;ao de C~diz.

7 CF. Sfrnon Bolfvar. Obrascompletas, 2 vols. La Habana, 1947, vol. I, p. 1.099 .

8 Bolfvar refu ta aqui as opin i6es mani festadas a seu respeito par Gaspa rd Thoodore Mollien em Voyage dans Ia Republique de Colombie en 1823, S. L. Arthus Bertrand, 1824. 2 vols . . onde esse au to r faz algumas afirma<;6es equi vocadas.

9 Cf. Salvador de Madariaga. (£/ cic/o ltisp<inico, va l. II £1 ocaso del irnpen·o es­pana/ en Anterica, Bolfvar ). Buenos Aires, 1958, p . 5 16 .

10 Pe ru de Lacroix , Diorio de Bucararnanga. Caracas, 1935, pp. 229 - 30 (10 de maio de 1828) .

II Cf. "Discurso de An gostu ra" .

12 CF. ""Ma ni fes to de Cartagena" . A nterionne nte a esse " movimento" de 1810- 1812 produz ido com o conseqW~ncia im ediata d os aconte cimentos na Espanha, protagonizado pe los crio u los em c ujas cab~as se agitavam certas id~ias de liberdade e de desconte ntarnento com a m e tr6po le; tiveram Iu gar, dura nte o s~cu1o XVIII, ou­tros movi men tos: urn de car~ter predo minantem ente economico- com o a insurrei­<;ao de Juan Francisco de L e6n e m 1749 contra os abusos da Compa nhia G uipuzcoa ­na -; e outro de car~ter politico-socia l - como a insurrei<;ao dos negros em Cora em 1795 -; e o utro ainda , de car~ter estritam e nte polft ico- com o a in surrei<;ao coman­dada por Pedro Gual e Jos~ Marfa Espafia em 1797 , e m coniv encia co m os rebeldes espan.h6is confi nados na Am~rica (P icornell, Campom anes, Andr~s) , e rn consequen­c ia da insu rrei<;ao d e San Bias, debelad a na Espanha em 1796 e insp irada nos princf­pios q ue tinham a nimado os revolucion~rios fra nceses. E sta u ltima conspira<;iio de G uaJ e Espafia nao contou com o apoio dos setores mais representati ves da Ca pi tani a Geral e acabou fracassando. Mas o s&ulo X IX , como vimos, e apesar das dificulda­des a veneer, seria rna is favor~ vel ~s ati tudes r evolucionArias: nas primeiras d~cadas ocorre nao s6 na Venezue la, mas e m toda a Am~rica, a separac;iio fo rmal da Espan.ha .

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