escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

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SILVIO ADRIANO WEBER ESCRAVIDÃO E IRMANDADE NEGRA NOS CAMPOS DE CURITIBA (1797-1850) CURITIBA 2005

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SILVIO ADRIANO WEBER

ESCRAVIDÃO E IRMANDADE NEGRA

NOS CAMPOS DE CURITIBA (1797-1850)

CURITIBA

2005

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SILVIO ADRIANO WEBER

ESCRAVIDÃO E IRMANDADE NEGRA

NOS CAMPOS DE CURITIBA (1797-1850)

Dissertação apresentada para o exame de qualificação de Bacharel em História no Departamento de História,

Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Carlos Alberto Medeiros Lima

CURITIBA

2005

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................04

2. O ESTEREÓTIPO DA ESCRAVIDÃO NOS CAMPOS DE CURITIBA...05

3. A IRMANDADE NEGRA E SUA HIERARQUIA INTERNA.....................17

4. OS ESCRAVOS NA IRMANDADE DO ROSÁRIO DE CURITIBA.........33

5. CONCLUSÃO.........................................................................................46

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................47

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1. INTRODUÇÃO

A presente monografia, dividida em três capítulos, tem por intenção

primordial demonstrar aspectos relativos à escravidão e a construção de

instituições de abrigo da comunidade negra.

Num primeiro momento estou tentando montar um corpo característico da

escravidão nos Campos de Curitiba. Neste sentido foi fundamental a análise de

trabalhos de historiadores paranaenses como Carlos Roberto Antunes dos Santos,

Altiva Pilatti Balhana e Cecília Maria Westphalen. Além das pesquisas propostas

sobre escravidão no Paraná de Horácio Gutiérrez e Stuart Schwartz.

Sendo necessário a definição das qualidades de uma irmandade negra, o

segundo capítulo procura ressaltar através dos Compromissos, estatutos destas

confrarias negras, a dimensão atingida por estas instituições no cotidiano dos

escravos. Também propõe uma discussão pertinente sobre a hierarquia interna, a

composição da mesa diretora e as possibilidades de ingresso nas irmandades

negras. Para tanto foi necessário a utilização de historiadores que se debruçaram

sobre o mesmo tema como Russell-Wood, João José Reis, Julita Scarano, Luiz

Geraldo Silva e Carlos Alberto Medeiros Lima.

Diante deste espaço construído pelo desenrolar dos primeiro e segundo

capítulos, elaborei uma pesquisa que buscou trazer à tona a composição do

sodalício da Irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário de Curitiba.

Nesta última etapa busco conciliar as informações extraídas dos livros de óbitos

do Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba com a Lista Nominativa de

1797, objetivando a captura dos escravos confrades no seu habitat diário. Dessa

maneira vou costurando um texto que encaminhou diretamente para a composição

social da irmandade e indiretamente sobre aspectos relativos a história da

escravidão em Curitiba.

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2. O ESTEREÓTIPO DA ESCRAVIDÃO NOS CAMPOS DE CURITIBA

Ao longo do século XVI poucas foram as visitas portuguesas em território

paranaense. Afinal, os metais preciosos com os quais os lusitanos tanto

sonhavam não foram encontrados em larga escala no litoral brasileiro, induzindo

as atividades exploratórias à extração do pau-brasil e mais tarde ao cultivo da

cana-de-açúcar, ambas atividades estavam mais concentradas acima da Linha do

Equador.

No Brasil Meridional a preação de indígenas, a mineração e a agricultura de

subsistência foram as principais atividades. A primeira, mais que a segunda e a

terceira, trazia uma perspectiva de lucros consideráveis aos Bandeirantes

paulistas que se arriscavam em adentrar os sertões em busca de “peças” (índios),

os quais feitos cativos eram comercializados na Capitania de São Vicente. Uma

boa porção dos índios escravizados durante os séculos XVI e XVII foram trazidos

dos sertões paranaenses, local de grande concentração destes povos. Eram

encontrados tanto em tribos tradicionais como em Reduções Jesuíticas

espalhadas pelo território paranaense, a Oeste do Meridiano de Tordesilhas.

Ao que consta no relato de Romário Martins, eram pelo menos 13 Missões

jesuíticas.1 Representavam o ímpeto ibérico de construção de uma América

essencialmente católica. No interior destas corporações da Companhia de Jesus

os nativos lidavam com a plantação de gêneros alimentícios, os homens,

sobretudo, responsáveis pelas atividades agrícolas, caça, pesca, além de outros

ofícios aprendidos com os padres como a carpintaria, a metalurgia e outros.

Enquanto as mulheres se restringiam às atividades caseiras, o corte e a costura

principalmente.2 Por estarem os indígenas reduzidos nestas instituições jesuíticas,

eram alvo constante dos interesses bandeirantes. Afinal, estavam já relativamente

aculturados, acostumados com a lida diária da lavoura, em conseguinte eram

considerados peças de valor.

1 - MARTINS, Romário. HISTÓRIA DO PARANÁ. Curitiba: Editora Guairá, [s.d], p. 66-67. 2 - SANTOS, Carlos Roberto Antunes. VIDA MATERIAL VIDA ECONÔMICA. Curitiba: SEED, 2001, p. 19.

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No interior do Estado do Paraná foram várias as expedições paulistas que

confrontaram com os Jesuítas. Esta relação entre os padres da Companhia de

Jesus e os paulistas Bandeirantes foram freqüentemente mediadas pela Coroa

portuguesa, que na maioria das vezes tomou uma postura bastante precavida,

geralmente sem tomar partido.

O povoamento do litoral do Paraná, por sua vez, ao sul de São Vicente,

Capitania de Santo Amaro, se deu com a prioridade de encontrar metais

preciosos. A política bulionista dos portugueses não encontrou margens no litoral

paranaense. Algumas minas foram achadas, mas duraram pouco tempo, o que

não deve ter agradado aos colonos tampouco a Coroa que se preocupou em

instalar uma Casa de Fundição em Paranaguá, em 1649.3

Todavia, esta mineração incipiente atraiu o estabelecimento dos primeiros

núcleos de povoamento em Paranaguá e depois nos Campos de Curitiba. Os

primeiros brancos a povoar o Primeiro Planalto deram origem a Vila de Nossa

Senhora da Luz dos Pinhais, oficializada sua existência no ano de 1693.

Percebe-se que as primeiras atividades em solo paranaense foram

motivadas pela indústria de mineração e de tráfico de escravos índios. Embora a

agricultura de subsistência tenha sido o ponto de fuga freqüente daqueles

aventureiros que não encontraram ouro no litoral e nos campos de Curitiba. A

mão-de-obra precursora na agricultura de subsistência, assim como em outros

locais do Brasil, era majoritariamente nativa.

Até o início do XVIII a demanda de escravos negros não se fez tão

necessária como nas capitanias nordestinas que praticavam as atividades

açucareiras. Este tipo de mão-de-obra será inserida no Paraná especialmente no

decorrer dos oitocentos, período em que a descoberta de veios auríferos em

Minas Gerais e Mato Grosso trazem uma primeira unificação de interesses entre

as várias capitanias. O Brasil passa a girar em torno de Minas.

O Sul do país neste momento já tem uma produção considerável de gado.

Cultura esta introduzida pelos padres jesuítas e que deu a possibilidade de suprir

a demanda de carne da região mineradora.

3 - Idem, idem, p. 23.

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O século XVIII, Século do Ouro, foi importantíssimo para o crescimento da

pecuária no Brasil Meridional, trouxe como conseqüência um crescimento

gradativo dos habitantes instalados nos Campos de Curitiba e outras porções do

Paraná.

O Caminho do Viamão, ao interligar Rio Grande do Sul à região de

Sorocaba em São Paulo, só fez aumentar o número de terras paranaenses

envolvidas com o criatório de gado e com o processo de “invernada” – como era

chamada a atividade que procurava dar robustez ao gado que perdeu peso

durante a caminhada extensa Rio Grande do Sul – São Paulo – essencial para

valorizar o preço da carne quando esta fosse comercializada na feira anual de

Sorocaba.

Assim, “a expansão da comunidade curitibana possibilitou a fundação de pequenas cidades ao longo dos caminhos. Um pouco mais tarde estabeleceu-se paralelamente à criação de gado, o comércio de muares provenientes do Rio Grande do Sul. A partir daí, os habitantes do planalto tornaram-se criadores de gado e “tropeiros” (...)”.4 A atividade de pecuária tanto incentivou o crescimento de focos

comunitários ao longo do Caminho do Viamão que a população paranaense saltou

de 3.400 habitantes em 1720 para 32.074 em 1822.5 Cresceu 9,6 vezes em 98

anos, o que representa a instalação de pelo menos 327 habitantes por ano no

Paraná no espaço 1720-1822.

Em Curitiba e São José dos Pinhais flagramos 2.772 habitantes em 17726,

enquanto todo o Estado do Paraná perfazia um total de 7.626 habitantes neste

mesmo ano7. Estas duas Vilas compunham ao fim do terceiro quarto do século

XVIII 36,3% da população paranaense. No ano de 1830 a população de Curitiba e

São José dos Pinhais compõem juntas 12.944 habitantes8 e o Paraná computa

36.7019, ou seja, neste ano estas vilas representavam 35,2% da população

4 - Idem, idem, p. 26. 5 - BALHANA, Altiva Pilatti. UM MAZZOLINO DE FIORI. Vol II. In WESTPHALEN, Cecília Maria (org). Curitiba: Imprensa Oficial, 2003, p. 17. 6 - WESTPHALEN, Cecília Maria. AFINAL, EXISTIU OU NÃO, REGIME ESCRAVO?. p. 33. 7 - BALHANA, op. cit., p. 17. 8 - WESTPHALEN, op. cit., p. 33. 9 - Idem, idem, p. 27.

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paranaense. Observe-se que nas três ultimas décadas do século XVIII aliadas

com as três primeiras do século XIX, temos um aumento de 21,4% na população.

É bem possível que majoritariamente a população dos Campos de Curitiba

estivesses envolvida com alguma atividade derivada da pecuária ou com a

agricultura de subsistência, na virada do século XVIII para o XIX. A pecuária fez

com que não só Curitiba, mas todas as localidades paranaenses preocupadas

com esta atividade solicitassem uma demanda substancial de escravos negros.

Segundo o historiador Carlos Antunes, é “o estabelecimento da pecuária como

empresa econômica fundamental [que] cristalizou a manutenção do trabalho

escravo”. 10 Assim, se o escravo curitibano não está vinculado diretamente com a

lida de gado está no mínimo exercendo alguma função na lavoura de subsistência,

óbvio, entendo-se Curitiba como uma sociedade essencialmente campeira entre

1770 e 1830, por exemplo. Portanto, poucos seriam os escravos que exerciam

atividades típicas dos centros urbanos brasileiros como os ofícios de barbeiro,

sangrador, sapateiro, artesão e outros. Assim Justifica Cecília Westphalen,

tratando números sobre Curitiba de 1772:

“Das 67 propriedades rurais existentes, 46 possuíam escravos, ou seja, 68,5%. O

número de escravos totalizava 407, sendo que, 87,5% estavam nas fazendas, e 12,5% nos sítios. Nas propriedades criavam-se vacas de ventre, novilhos, touros e bois capados, além de éguas de ventre, potrancas, potros, cavalos mansos e éguas mansas, ovelhas e porcos. Realizavam-se também plantações de milho e feijão. O gado era destinado à exportação e os produtos agrícolas, na sua maior parte, para o consumo da própria Comarca”.11

Fica claro que a população escrava curitibana é voltada para as atividades

do campo, seja pecuária, seja agricultura de subsistência. Além de perfazer um

contingente significativo da população. No ano de 1798 a população de escravos

de Curitiba e São José dos Pinhais chega a porcentagem de 17,6% entre 7.938

habitantes, são exatamente 1.399 escravos, números jamais alcançados em outro

período nestas regiões12.

10 - SANTOS, op. cit, p. 31. 11 - WESTPHALEN, op. cit., p. 47. 12 - Idem, idem, p. 33.

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Mas se havia muitos escravos, sem dúvida alguma havia muitos pardos e

pretos livres. Portanto a comunidade de cor de Curitiba e São José, incluindo aqui

escravos e livres, estava na margem de 31,8% quando foi menos representativa,

no ano de 1836. Mas atingiu 45,6% no ano de 1816, perfazendo quase a metade

da população destas duas vilas.

Para desenhar um quadro ainda mais esclarecedor dos escravos e das

atividades deste grupo em Curitiba, Altiva Pilatti Balhana traz informações

necessárias sobre a ocupação dos habitantes curitibanos no ano de 1822: 12

indivíduos compõem o Corpo Militar; 13 homens magistrados e empregados civis;

8 cléricos seculares; 296 agricultores; 582 lavradores; 48 negociantes; 282

jornaleiros; 13 artistas; 26 arrieiros; 655 escravos e 685 escravas; 420 pobres,

mendigos e vadios.13

Estes números podem remeter a uma série de interpretações que definem a

tipologia do povo curitibano no início do século XIX. Em primeiro lugar, a

quantidade de agricultores e lavradores em comparação com os arrieiros é

exorbitante. São 878 pessoas livres que se dedicam à agricultura, provavelmente

atividade desenvolvida com o intuito de suprir o consumo interno, visto que

Curitiba nunca foi um centro exportador em seu período colonial. Enquanto

apenas 26 pessoas são nitidamente caracterizadas como trabalhadores que se

dedicam ao cuidado de animais. Óbvio que este tipo de atividade tem uma

demanda menor de mão-de-obra, o que não serve de modo algum para justificar

tamanha diferença entre o contingente de homens da agricultura em relação aos

tratadores de animais. A dedução é simples, Curitiba possui criatórios de animais,

mas seu ponto forte está intrinsecamente ligado a agricultura de subsistência no

início dos oitocentos. Num segundo momento, não poderia de forma alguma ficar

de lado, o impressivo número de pobres, mendigos e vadios, são 420 pessoas.

Utilizando ainda as estimativas de Balhana, temos 6.484 moradores em Curitiba

no ano da Independência, logo perfazem 6,4% de desocupados.

13 - BALHANA, Altiva Pilatti. ESTRUTURAS POPULACIONAIS DO PARANÁ NO ANO DA INDEPENDÊNCIA. PARANÁ – 1822. Boletim n. 19. Universidade Federal do Paraná: 1972, p. 18-19.

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Uma outra quantificação que pode ilustrar o cotidiano dos curitibanos no

início do XIX, o número de escravos, 1.340, 20,6% da população, seria pouco

assombroso não fosse o equilíbrio entre os sexos. A população feminina é pouco

maior, o que contraria conceitos tradicionais do mundo escravista brasileiro, quase

sempre qualificado com graus de masculinidade substancialmente maiores em

relação aos femininos.

Para Horácio Gutiérrez, que analisou a população cativa do Paraná nas

primeiras três décadas do século XIX, temos em 1804, 2.587 homens e 2.490

mulheres e para o ano de 1830, 3.178 escravos e 3.082 escravas. Portanto, no

intervalo de 26 anos as razões de masculinidade sobem, todavia não de forma

suficiente para prever um desequilíbrio entre sexos. 14

Compreende-se que o equilíbrio entre homens e mulheres cativos é

qualitativo inerente não apenas à escravidão curitibana, mas também se estende

esta qualidade as demais localidades do território paranaense, Litoral e Campos

Gerais.

Além das poucas oscilações nos índices de masculinidade, temos uma

população jovem na senzala paranaense. Em 1798 são 40,5% os escravos entre

zero e 15 anos, 49,7% estão entre 15 e 50 anos e apenas 9,8% com 50 anos ou

mais; Em 1836 37,0% têm até 15 anos, 56,4% variam entre 15 e 50 anos e 6,6%

têm 50 anos ou mais.15 Há, é verdade, pequenas mudanças nestes anos que

estão sendo comparados, 1798 e 1836. Contudo não é o suficiente para negar

que os escravos do Paraná, em sua maioria, estavam em período produtivo, entre

15 e 50 anos. Ainda segundo Gutiérrez, a população mais jovem está no planalto,

chegando a população escrava curitibana a ter no ano de 1798, 19,1 anos de

média e no ano de 1830, 15,2 anos em média.16

Com população tão jovem seria natural que os índices de natalidade

fossem altos. Todavia quando tratamos do sistema escravocrata na América

temos de evitar extrair expectativas tão óbvias, é necessário complicar aquilo que

14 - GUTIÉRREZ, Horácio. DEMOGRAFIA ESCRAVA NUMA ECONOMOMIA NÃO-EXPORTADORA: PARANÁ, 1800-1830. São Paulo, 1987, p. 298-299. 15 - Idem, idem, p. 305. 16 - Idem, idem, p. 306.

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parece simples para que se torne o mais próximo possível de uma realidade. A

dificuldade de se constituir família no meio escravo era variavelmente comum no

Brasil. Isto se justifica mais claramente em outras regiões onde o grau de

masculinidade é efetivamente maior, o que não é o caso do Paraná. Some-se

ainda as altas taxas de mortalidade infantil de crianças entre 0 e 5 anos, os

chamados nos óbitos de “inocentes”, isto tanto para famílias livres como escravas.

Logo temos uma equação com alguns elementos complicadores para o processo

de constituição de família no Brasil.

A falta de recursos financeiros para o estabelecimento de um casamento

aprovado juridicamente não deve ter sido um fator de impedimento aos escravos.

Todavia as queixas de cobranças excessivas por parte dos padres ao realizar

sacramentos de batismo, casamento e para a celebração de missas foi motivo de

reclames em muitas partes do Brasil.

O certo é que nas colônias ibéricas o casamento de escravos era

incentivado para que não vivessem estes indivíduos em concupiscência. Para

Russell-Wood,

“a preocupação real inspirava-se menos no interesse altruísta pelo bem-estar social e moral dos escravos que na compreensão de que os escravos envolvidos em uniões permanentes e com família tinham maior probabilidade de ser mais produtivos e menos tendência a ameaçar o status quo social e econômico pela fuga ou pela rebelião do que os escravos solteiros sem obrigações familiares”.17 Incentivar o estabelecimento de laços de parentesco na senzala é acima de

tudo uma medida preventiva tomada pelos senhores. Os vínculos familiares

evitam fugas e criam raízes que raramente são rompidas sem dor.

Por outro lado há proprietários que impossibilitam ao máximo o casamento

de seus escravos porque dificulta a posterior venda dos mesmos. Alguns se

recusam a serem vendidos ou negociam com o próprio dono para que seja

vendida toda a família junta.

Para um escravo integrar-se numa família é acima de tudo criar uma nova

identidade. Identidade esta que sofreu transformações na viagem de travessia do

17 - RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. p 250.

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Atlântico e pelos tipos de cativeiro diferenciados onde esteve até conseguir um

grau de estabilidade em seu cotidiano, mesmo permanecendo na situação de

cativo. Por conseguinte, os crioulos tinham mais possibilidades de estabelecer

casamentos ou mesmo concubinatos, pelo simples fato de estarem já adaptados

ao cotidiano colonial.

As mulheres escravas tinham maior facilidade em estabelecer algum

vínculo de parentesco, fosse este autorizado por seus senhores, reconhecido pela

Igreja, ou não. Isto se justifica pela disposição do sexo feminino entre os escravos

brasileiros, em menor número em relação ao masculino - embora, como já foi dito

anteriormente, esta superioridade numérica dos homens não vale para o contexto

paranaense onde o equilíbrio entre sexos foi predominante. Além das mulheres

escravas poderem formar par no interior da comunidade negra, poderiam aventar

a possibilidade de formar par com um homem branco, o que geralmente leva ao

concubinato e menos freqüentemente ao casamento.

“Uma escrava podia ter mais a ganhar sendo concubina de um branco do que esposa de um negro; seus filhos colheriam os benefícios sociais de uma pigmentação mais clara. Finalmente, ser casado, por si só, podia ser um símbolo de status e sinal de respeitabilidade igualmente para brancos e negros”.18 A família matrifocal ou família incompleta, gerida por uma “mãe-solteira”,

pode ter sido alguns dos resultados da concupiscência de mulheres negras com

homens brancos, embora esta estrutura familiar não possa ser entendida única e

exclusivamente como fruto desta relação. Esta família matrifocal também existe

sob os auspícios de uma relação entre pessoas de cor, sendo a mulher mais tarde

abandonada ou deixada em estado de viuvez, ou ainda por opção particular esta

mulher pode ter tomado a decisão de não contrair vínculos com nenhum homem.

Em contrapartida dos estorvos para a consolidação de uma família, os

parentescos fictícios são úteis para tornar possível a ampliação de laços afetivos e

de parentescos no cativeiro. O batismo cristão é a propriedade mais importante da

família ampliada do mundo ibérico.

18 - Idem, idem, p. 262.

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“Aos olhos da sociedade cristã, o compadrio estabelecia laços espirituais entre os padrinhos e o cristão que acabara de ganhar um nome e passar pela iniciação e, no caso da criança batizada, entre os padrinhos e os pais naturais”. 19 O compadrio extrapola as portas da Igreja e num ambiente maior, no

cotidiano das relações sociais, passa a criar uma relação de intimidade entre

indivíduos de posições iguais ou diferentes, estabelece um ambiente de

cordialidade, de ajuda mútua, o que para a família escrava é mais um elemento

que pode mitigar o cativeiro.

Segundo os dados de Stuart Schwartz, embasados nos registros da Matriz

Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, entre os anos de 1781 e 1785 foram

batizados 200 escravos em Curitiba.20 Num período ainda mais amplo, 1750 até

1820, periodização que “nenhum escravo negro foi batizado pelo próprio senhor e,

em somente cinco por cento de seus batismos, o padrinho ou a madrinha era

parente do senhor”.21 Isto é prova cabal de que as possibilidades de compadrio

entre escravos e senhores é praticamente nula em Curitiba. A esperança de criar

vínculos com pessoas brancas para receber através das vantagens do compadrio

benefícios que visam a proteção da família escrava é irrisória. Em alguns

raríssimos casos, parentes do senhor batizam os escravos.

Em Curitiba a regra foi a escolha de padrinhos e madrinhas livres, pelo

menos dois terços dos padrinhos que batizavam eram livres. Entre 1800 e 1869,

de 504 batismos,

“mais de 70% tiveram um par de padrinhos livres, menos de 20% tiveram dois escravos como padrinhos, e quando os dois padrinhos tinham status legal desigual, o afilhado tinha duas vezes mais probabilidade de ter madrinha escrava e padrinho livre do que o contrário.”22 Se apanharmos os dados de 1822 como um recorte para levantar

explicativas sobre as afirmações de Schwartz, temos um total de 1.385 pessoas

pretas em Curitiba; são 112 homens e 113 mulheres livres; 595 homens e 565

19 - SCHWARTZ, Stuart B. ESCRAVOS, ROCEIROS E REBELDES. Editora da Universidade do Sagrado Coração. p. 263. 20 - Idem, idem, p. 276. 21 - Idem, idem, p. 280. 22 - Idem, idem, p. 281.

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mulheres escravos. A maioria dos elementos casados da comunidade negra

curitibana neste momento são os homens livres, compõem 42,86% dos casados;

seguidos das mulheres livres, 24,51%; homens escravos, 16,30%; e mulheres

escravas, 13,81%.23 Estas percentagens se encaixam perfeitamente nas

afirmações de supracitadas. Os homens negros livres são preteridos como

padrinhos primeiro porque são livres e devem ser minimamente assalariados,

segundo por serem casados, seu estado civil demonstra uma posição de respeito.

O fato dos elementos livres terem alguns recursos financeiros é atrativo de modo

que pode beneficiar seus afilhados talvez até com uma ajuda para a compra de

uma carta de alforria.

Os dados levantados por Schwartz ainda indicam que os padres da região

curitibana mantêm o costume de aceitar apenas uma pessoa como padrinho ou

madrinha, geralmente o padrinho. Em alguns casos sendo ambos ausentes Nossa

Senhora era responsabilizada pelo batismo.24

A vantagem em contrair laços de compadrio com negros livres significa a

possibilidade de possuir um laço entre a senzala e um mundo livre, ampliar a

família e criar uma identidade maior com um setor de elite entre os negros, o

espaço dos livres e forros.

Esta elite de negros não-escravos já foi tema de discussão de muitos

historiadores. Em geral sempre se ressaltou o sexo feminino como maior portador

das possibilidades de manumissão. Alguns declaram que os homens por serem

mais produtivos que as mulheres tanto nos trabalhos de lavoura quanto nos

trabalhos artesanais elevam seu valor, e peça tão preciosa não pode ser

negociada facilmente, é necessário conservar os vínculos escravocratas daqueles

que representam “os braços e os pés do senhor”. Outros estudiosos da questão

preferem exaltar a intimidade dos senhores com suas escravas, desta proximidade

através da qual a mulher acaba por prestar favores sexuais ao seu proprietário,

nasce alguns graus de possibilidades de manumissão.

23 -BALHANA, ESTRUTURAS POPULACIONAIS DO PARANÁ NO ANO DA INDEPENDÊNCIA. PARANÁ – 1822, p. 23. 24 - SCHWARTZ, op. cit., p. 283.

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15

O fato é que Curitiba esboça uma contradição diante de todas estas

afirmativas feitas anteriormente, e que de certo modo ainda continua sendo

predominante entre os historiadores. Nesta cidade os homens são maioria entre

os libertos. Nos levantamentos feito por Adriano Bernardo Moraes Lima, através

do Arquivo do primeiro Tabelionato de Notas de Curitiba, entre 1790 e 1825 temos

116 escravos sendo alforriados e 106 escravas.25 Como já foi observado

anteriormente, o equilíbrio entre sexos foi o padrão paranaense de cativeiro.

Portanto tentar encontrar razão nos índices de masculinidade é inviável.

Outro momento instigante na pesquisa de Anderson Lima é perceber que

os adultos, exatamente aqueles que estavam em idade produtiva, eram 47,8% dos

favorecidos da manumissão, entre estes 65,3% de crioulos. 26

Poucas são as informações que constam nos arquivos paranaenses para

deduzir a procedência dos escravos, mas sem dúvida as escravarias locais eram

compostas majoritariamente por crioulos. Sendo inevitável levantar uma hipótese,

devemos pensar que a estabilidade entre sexo foi fator propulsor da composição

crioula, além do trafico interno que embora pouco estudado para o caso do Paraná

deve ter sido predominante.

A partir de agora já temos traçado uma morfologia da escravidão em

Curitiba: seus escravos são majoritariamente crioulos; o equilíbrio entre sexos é a

regra; os homens têm maiores possibilidades de contrair núpcias e alforrias; os

adultos em idade produtiva são os mais favorecidos nos processos de

manumissão; os laços de compadrio seguem os padrões de liberdade, homens

livres são os preteridos; a maior parcela dos escravos estão ligados à atividades

da lavoura de subsistência.

Posto o perfil da escravidão curitibana, resta saber onde estão os

agrupamentos negros e suas instituições. Assim como em outros locais da Colônia

as irmandades negras representam a única instituição de cor reconhecida

juridicamente. No interior desta instituição temos uma “elite negra”. Portanto, daqui

por diante o trabalho vai enfatizar o papel das irmandades no cotidiano colonial, e

25 - LIMA, Adriano B. M. COMUNIDADE ESCRAVA E ALFORRIA EM CURITIBA (1790-1825). Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal do Paraná: 2000. p 49. 26 - Idem, idem, p. 52.

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a importância da existência de um espaço de deliberação para a comunidade de

cor.

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3. A IRMANDADE NEGRA E SUA HIERARQUIA INTERNA

Desde o período das Grandes Navegações houve uma preocupação por

parte dos portugueses em expandir a fé católica. Logo a maioria dos territórios em

que se estabeleceram os lusitanos, seja através da força militar ou da persuasão

diplomática, tiveram a instalação de igrejas e o envio de missionários que

favoreceram a inserção do cristianismo nos lugares mais longínquos da África e

da América.

Nestas expedições ultramarinas dois personagens nutriram esperanças

contrastantes, o padre e o navegante. Encontrar riquezas e expandir os domínios

cristãos, a fé e o proveito, dois lados de um mesmo níquel que irá circular sobre a

velha África e sobre o Novo Mundo. Desencadeando, sobretudo, num comércio de

carne humana que trará até a América por volta de 10 milhões de escravos ao

longo de quase quatro séculos de tráfico. Sem deixar de espalhar sementes do

cristianismo sobre estes continentes.

O cristianismo brasileiro, por exemplo, terá de lidar com o estigma da

escravidão. Para tanto os proprietários de escravos são obrigados a cuidar do

batismo, da catequese, do casamento de seus cativos. Prezar pela boa conduta

cristã de seus escravos. Isto não significa que a conversão dos africanos ou

mesmo dos ameríndios tenha sido uma tarefa que foi levado a cabo pelo colonos,

ou mesmo que esta conversão ocorreu sem muitas dificuldades. Muitos desvios

ocorreram e desencadearam impreterivelmente ao sincretismo. Em outras

oportunidades a catequese foi algo bastante superficial, parte do povo residente

na Colônia, quando cristão, desconhecia alguns conceitos básicos professados na

sua própria igreja.

Mas sem dúvida alguma, para estar em harmonia com a sociedade colonial

era necessário antes de tudo se apresentar como um bom cristão. Este é o

primeiro elemento para ser aceito na sociedade colonial. Um recurso muitas vezes

utilizado por certos elementos da comunidade afro no sentido de encontrar um

maior espaço de sociabilização, de ser aceito com menos desprezo neste mundo

que opunha brancos e negros, católicos e pagãos. E ao se sentir cerceado ou

desprezado, sem perspectivas de ser aceito como um elemento capaz, ao negro

Page 18: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

18

sobra poucas opções. Ou quilombo como uma fuga, ou a irmandade negra como

uma inserção.

Em todo o Brasil Colonial e principalmente a partir do século XVIII

proliferaram as irmandades. Instituições leigas que em certa medida exerciam

funções não dirigidas pelo Estado. Responsabilidades como o atendimento a

doentes em geral, expostos e leprosos foram incumbência da Irmandade Santa

Casa de Misericórdia, uma das mais prósperas do mundo Ultramarino português.

A execução de tais obras de assistência social só foi possível com a doação de

vultuosas indulgências por parte de confrades brancos e de alto poder econômico,

mas também através da necessidade latente de se construir instituições deste

gênero na Colônia, já que a Coroa não mostrou maiores esforços no sentido de

suprir necessidades de cunho social. Consta a existência da Santa Casa na

província de São Paulo desde o início do século XVIII.27

Nesta Irmandade, assim como nas Ordens Terceiras e nas Irmandades

brancas de múltiplas invocações, havia uma série de requisitos àqueles que se

candidatavam ao ingresso. Além do poder econômico para contribuir com as

esmolas, questões de “pureza de sangue” eram condicionantes fundamentais no

processo de entrada. Assim é vedada a participação da comunidade negra nestas

confrarias.

Todavia em Portugal, ainda no século XV, sob a invocação de Nossa

Senhora do Rosário cria-se uma irmandade que vai congregar os homens de cor.

A opção por esta invocação ainda deve ser estudada por historiadores que se

interessam na pesquisa das irmandades negras. E ao crer no que afirma Julita

Scarano, a devoção a Nossa Senhora do Rosário não foi exclusiva de um grupo

de negros, mas de vário grupos, homens do mar, sobretudo.28 O fato é que Nossa

Senhora do Rosário passou a ser a preferida dos homens negros, mesmo sendo

uma santa de aparência branca em sua iconografia.

27 - MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo. 1838. Reedição de 1923, São Paulo. p 250. 28 - SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. S. Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978. p 39-40.

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19

Entre abril de 1836 e março de 1837, das 33 vilas visitadas pelo Marechal

Daniel Pedro Muller na província de São Paulo, foi registrado a presença em 26

vilas de pelo menos uma irmandade do Rosário em cada uma delas. Sendo que

na cidade de São Paulo foram anotadas duas Irmandades do Rosário, uma dos

brancos outra dos pretos; em Atibaia, as quatro confrarias localizadas eram da

mesma invocação do Rosário; em São Vicente, Muller cita “as do Rosário”; em

Santos, outras duas.29 É lamentável a não especificação do pertencimento de tais

irmandades do Rosário, se a homens brancos ou negros, mas é possível que

muitas delas sejam negras, talvez a maioria.

Outra invocação usual entre as irmandades negras é a de São Benedito.

Santo de pele negra que ficou conhecido como o “advogado dos negros”. Das

mesmas 33 vilas averiguadas pelo Marechal Muller nesta província de São Paulo,

18 delas tinham a presença de pelo menos uma irmandade de São Benedito. Na

cidade de São Paulo há mais de uma invocação ao santo; em São Sebastião,

duas irmandades de São Benedito; em Curitiba existe uma que será focalizada

com maior fôlego nas páginas seguintes e no próximo capítulo.30 No caso destas

confrarias, é bem possível que todas elas pertençam a irmãos negros.

A diversidade de invocações foi alvo de crítica do Marechal Muller, em

1838:

“Parece portanto conveniente que, com o decurso do tempo se reunissem algumas

das Irmandades em uma só, que poderia ser a do Santíssimo Sacramento, e que está organisando seu compromisso, tivesse em vista o fazer as festas mais solemnes da Igreja, como das devoçoens das outras que se agregão; aplicando seus fundos a fins philantropicos á similhança das casas de Misericórdia (*) fazendo-os productivos como as caixas econômicas, e exigindo certos privilégios. Com este methodo se obteriam fundos, que com mais facilidade se accumulariam sem distracção (mais necessário ainda em povoaçoens ainda pequenas), maior união, mais irmandade (propriamente dicta), mais decencia nos templos, mais bem regulada caridade, e menos rivalidades.”31 Este nobre português que foi responsável por um levantamento de dados

estatísticos sobre os aspectos da província de São Paulo acreditava que a união

29 - MULLER, op. cit., p. 253-255. 30 - Idem, idem, p. 253-255. 31 - Idem, idem, p. 117.

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20

das diversas irmandades traria benefícios para toda a população. Mostra-se

preocupado com as funções filantrópicas da mesma, percebendo a necessidade

da união de fundos para a prestação dos serviços de assistência social. Muller

não aprovava as “rivalidades” que existia entre as confrarias, mas não se

prolongou muito neste tema. De fato a concorrência entre irmandades gerou

algumas boas discussões entre seus membros. Cada confraria procurava mostrar

mais pomposidade e prestígio que outras. Ser membro de uma Ordem Terceira ou

membro de uma irmandade negra propõe escalas bastante distintas em termos de

prestígios social. O Marechal não deixa de ser utópico em sua afirmação. Seria

tão difícil quanto imprevisível que ocorresse tal feito, diante de tantas diferenças

que são perceptíveis no estatuto das confrarias. As rivalidades afloravam tanto

entre irmandades brancas com suas iguais, entre irmandades negras e suas

iguais, como entre irmandades brancas e irmandades negras.

É difícil de estimar o valor da presença destas irmandades negras para os

homens de cor do Brasil Colonial. Cada caso deve ser medido com devido zelo,

mas através da análise dos Compromissos destas instituições podemos pelo

menos fazer idéia da multifuncionalidade de uma confraria. Russell-Wood ao tratar

dos Compromissos resume algumas das funções destas confrarias que

“apesar das pequenas diferenças administrativas, todas (...) possuíam características em comum: primeiro, a ênfase na prática das virtudes cristãs em palavras e atos; segundo, um espírito de responsabilidade coletiva pelo bem-estar físico daqueles irmãos (e seus dependentes) que precisassem de esmolas, assistência médica, alimentos, roupas e sepultamento; terceiro, quando os fundos permitiam um compromisso com a ajuda caritativa aos pobres e doentes da paróquia.”32

A aceitação do código de vida cristã é o primeiro item da maioria dos

Compromissos. Portanto também é o primeiro passo que o homem negro deve dar

no sentido de tornar sua situação menos desconfortável no ambiente colonial. No

compromisso da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Cidade da

Paraíba do Norte, documento de nove de novembro de 1767, já é especificado em

seu primeiro capítulo que os irmãos “saibao didoutrina cristão, e sejão capazes de

32 - RUSSEL-WOOD, op. cit., p. 192.

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21

receber acomunhão”.33 Assim como no capítulo primeiro do Compromisso das

Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da Cidade de

Curitiba, de meados do século XIX, está especificado a exigência de ser o

candidato cristão e de bons costumes. 34

Outros compromissos poderiam enriquecer o número de exemplos, vindo a

comprovar esta primeira exigência feita àqueles poucos agentes da comunidade

negra que vão ter a oportunidade de se tornar um confrade. Fato este que o

tornará relativamente reconhecido em seu meio de convívio e de interação.

É claro que o simples fato de ser cristão e de ter “bons costumes” não é o

suficiente para ser aceito e acolhido na irmandade negra. Por isso mesmo afirmei

que são poucos os negros que vão conseguir preencher todos os requisitos

exigidos pelas confrarias. A condição financeira é fundamental. Para a entrada nas

Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito da Cidade de Curitiba

é imposto o valor de trezentos e vinte réis, além da esmola de fim de ano no valor

de cento e sessenta réis.35 O Compromisso de Nossa Senhora do Rosário do Alto

da Cruz, de Vila Rica, de 1785, exige a paga de meia oitava para a entrada e meia

oitava de anuidade.36 No terceiro capítulo do Compromisso da Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Cidade da Paraíba do Norte, também é

perceptível as exigências financeiras:

“Querendo alguã pessoa entrar nesta Sancta Irmandade virã ameza empresença do Juiz, emais Irmãos, efarã termo no Livro para isto deputado, esedeclararã neste se hé Livre, ou Captivo, equem hé seo senhor, en o qual termo afigurarã dando este primeito juramento, enque prometta goardar as obrigações do Comprimicio, esendo preto darâ logo deesmola novecentos, evinte Reis, e sefor branco, ou pardo Seis centos, equarenta Reis, eomesmo darão no anno, enq`ficarem Por mor domos”.37 A fonte mostra o grande empecilho que é arcar com as esmolas nestas

confrarias. O que deve ser apenas uma etapa do funil selecionador de confrades.

33 - Arquivo Histórico Ultramarino - Paraíba, mç 35. AHU_ACL_CU_014, Cx 24, D. 1831. 34 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba. In: Boletim do Arquivo Público do Paraná. Ano 02, n 01, 1977, p. 29. 35 - Idem, idem. 36 - Arquivo Eclesiástico de N. S. da Conceição de Antonio Dias, Casa dos Contos, Ouro Preto. Rolo 58, vol. 123. 37 - Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit.

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22

Além disso, pelo menos no caso da irmandade da Paraíba, demonstra uma certa

facilitação às entradas de brancos e pardos já que ambos devem pagar no

momento do ingresso seiscentos e quarenta réis enquanto os pretos sofrem o

encargo de novecentos e vinte réis. A afirmação de elementos alienígenas nas

irmandades pretas é prevista inclusive em seus compromissos. Muitas vezes a

necessidade de alguém letrado para servir como escrivão torna esta abertura uma

necessidade funcional. O que talvez não justifique a sobrecarga financeira dirigida

ao irmão negro nesta confraria da paraibana.

Estes exemplos são válidos no sentido de ampliar o leque de raciocínio em

torno das possibilidades de ingresso. Primeiro ser seguidor das virtudes cristãs;

segundo, ter condições financeiras para arcar com as esmolas; a terceira

possibilidade, diz respeito às reivindicações étnicas.

A escala colonial de prestígio pode ser dividida em dois grandes grupos,

brancos e pretos. No primeiro grupo há rivalidades que interferem no ingresso e

na delegação de poderes em suas irmandades. Ser europeu ou brasileiro era uma

primeira dicotomia que distinguia níveis de prestígio que com certeza manipulava

de alguma maneira a hierarquia interna da confraria. “Em 1825 afirmou-se que a

branca Ordem Terceira da Penitência, de Salvador, excluíra todos os candidatos

europeus das eleições daquele ano”.38 No segundo grupo as rivalidades afloram

principalmente entre crioulos e africanos. Russell-Wood esclarece parcialmente a

questão destas rivalidades, afirmando que há um certo “desdém” daqueles recém

traficados do continente africano em relação àqueles que aqui estavam há um

bom tempo ou eram naturais da Colônia. A pouca reverência dos africanos pelos

crioulos teria gerado um clima hostil na relação entre eles.39

Os exclusivismos de certas irmandades negras são reflexo deste clima de

rivalidade. Na Bahia, os estudos de João José Reis apontam que os jejes, desde

meados do século XVIII tinham sob sua tutela a Irmandade do Senhor Bom Jesus

das Necessidades e Redenção. Enquanto os angolas predominavam sobre muitas

38 - RUSSEL-WOOD, op. cit., p. 227. 39 - Idem, idem, p. 332-333.

Page 23: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

23

irmandades devotas de Nossa Senhora do Rosário.40 Todavia os exclusivismos

poderiam existir em níveis diferentes. Quando não se construía uma irmandade

para atender grupos específicos como estes citados por Reis, a estratificação da

hierarquia interna impunha rivalidades étnicas. Como na Irmandade Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos da Paraíba onde os irmãos da mesa seriam seis

angolas e seis crioulos, na falta destes elementos poderia ser um irmão de

qualquer outra nação.41 No compromisso de 1742 da Irmandade de Santo Elesbão

e Santa Ephigenia de São Somingos do Rio de Janeiro, antes de

“admitir e fazer assento à qualquer pessoa que o queira ser sendo preto ou preta, primeiro examinarão com exacta deligencia a terra e a nação donde vierão achando serem naturais e que são oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de S. Thomé ou de Moçambique logo se fará assento (...) e mulheres e pardos pardas querendo por sua devoção serão admitidos por Irmãos d’esta Santa Irmandade e de nenhuma sorte se admitirão pretas d’Angola, nem crioulas, nem cabras ou mestiças (...)”. 42

O termo “nação” é geralmente empregado pelos portugueses para distinguir

minimamente as diferenças de procedência dos vários grupos africanos. Mas,

mesmo entre estas nações, é possível que exista mais subdivisões que de certo

modo não influenciam com tanta intensidade o relacionamento destes indivíduos

aqui no Brasil. O que mais importa é criar uma identidade coletiva que pelo menos

lembre os traços culturais e lingüísticos que não ficaram esquecidos com a

travessia do Atlântico.

Agora está configurado de melhor maneira o funil de ingresso nas

irmandades negras. Em primeiro lugar ser um cristão temente à Deus, num

segundo momento possuir condições financeiras para o ingresso, em terceiro

lugar superar os obstáculos étnicos. E mesmo superando estas três etapas, os

limites de ação no interior da irmandade podem ser bastante reduzidos por uma

estratificação da hierarquia interna baseada em critérios étnicos e econômicos.

“Em 1820, as quantias pagas por diretores da irmandade do Rosário, em

Salvador, foram as seguintes: presidente, 16$000 réis; escrivão, 8$000 réis;

40 - REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2. n. 3, 1997, pp 13. 41 - Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit. 42 - Arquivo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: seção de Manuscritos. 9, 3.11.

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24

tesoureiro,4$000 réis; procurador, 6$400 réis; “consultor”, 4$500 réis”.43 Na

irmandade do Rosário paraibana, em 1767, os juízes devem pagar 2$000 réis

enquanto reis e rainhas apenas $600 réis cada um.44 Nas Irmandades de Nossa

Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, em 1850, Rei e

Rainha darão a esmola de 3$000 réis; Juiz e Juiza, 4$000 réis; tesoureiro,

escrivão e procurador não pagam anuidade no ano em que servem, tampouco é

referenciado no compromisso obrigação de indulgência para exercer o cargo; os

irmãos da mesa pagam a quantia de $640 réis por ano, havendo a possibilidade

de perpetuar-se no cargo caso repita esta esmola anualmente.45

Se no Rosário de Salvador todos os cargos da mesa são responsáveis pelo

pagamento de esmolas, no Rosário e São Benedito de Curitiba tesoureiro,

escrivão e procurador não pagam, e rei e rainha dão esmolas 25% menor que a

esmola dos juízes. Um contraste com relação à irmandade paraibana em que os

juízes têm indulgência 70% maior em ralação ao reis e rainhas. Sendo assim, se

se compatibilizar o tamanho da indulgência com o cargo exercido e se se pensar

numa hierarquia interna construída pelo poder do dote, presumimos que reis e

rainhas têm menor relevância dentro das irmandades negras em comparação aos

juízes. Fato não presumível pelo quinto capítulo do compromisso da instituição

paranaense que afirma ser o cargo do rei “o mais importante emprego da

irmandade”, condenando a falta dos Reis no dia da festa à multa de 30$000 réis,

valor dez vezes maior que a esmola.46

Muito embora seja um cargo decorativo, pois reis e rainhas não têm papel

ativo na mesa diretora, são peças importantes dentro da estrutura simbólica das

festas das irmandades. João José Reis chama-os de “monarcas fictícios”,

comparando o reinado lúdico da irmandade a uma monarquia parlamentar. Além

de tratar do único registro de compromisso onde rei e rainha compõe a mesa

diretora, o compromisso da Irmandade do Rosário de São João Del Rei, de 1842,

43 - RUSSEL-WOOD, op. cit., p. 210. 44 - Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit. 45 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, op. cit., 31-32. 46 - Idem, idem.

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de Minas Gerais.47 Apenas para não deixar esta irmandade mineira como um caso

isolado, no quarto capítulo do compromisso das Irmandades do Rosário e São

Benedito de Curitiba, outorgado em 1850, salienta-se que as eleições dos cargos

da confraria serão feitas no mesmo dia da festa, dia 26 de dezembro,

“no dia assima declarado as nove horas da manhã se reunirão os Irmãos na Igreja respectiva para se fazer a eleição, afim de ser publicada na estação da Missa e em Meza que presideirá o Rei festeiro e Reverendo Parocho, a vista do Livro de Grades farão uma lista em em que se nomêa, as três pessoas mais capases e mais ricas que houverem na Irmandade, que possam servir de Rei, e fazer a festividade, e o mesmo se praticará te anomeação de Sacristão os Irmãos votarão de um em um em uma das pessoas nomeadas, e será Empregado do anno futuro(...)”.48

Em Curitiba bem como em São João Del Rei os reis participam da mesa.

Na irmandade paranaense, pelo menos nas eleições de final de ano os

responsáveis por presidir a mesa que organizará eleições é o Rei festeiro e o

reverendo pároco, como ficou claro na análise do documento supracitado. Aqui o

seu reinado é menos fictício do que parece.

Vale a pena lembrar que a carnavalização feita sobre a figura do rei não é

monopólio negro. Em 1765, em Salvador, na Folia do Divino promovida pela

irmandade branca do Espírito Santo, foi eleito um imperador que corria pelas ruas

com trejeitos nobres, solicitando reverência como se fosse uma autêntica

autoridade real, chegando à máxima galhofa de bater à porta do palácio do

governador solicitando que a guarda palaciana se apresentasse frente ao monarca

fictício.49

A festa, portanto, é o momento em que a confraria vem ao público mostrar

todo seu esplendor. Por vezes exauriam seus cofres, esquecendo a cautela

financeira e dando vazão ao espírito competitivo, tentando demonstrar mais luxo e

pomposidade que suas rivais.

As rendas das confrarias de irmãos negros com certeza eram muito

inferiores à dos brancos, embora isto não seja uma regra. Em geral as

47 - REIS, J. J. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. S. Paulo: Cia das Letras, 1991. p 62. 48 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, op. cit., p.31. 49 - Idem, A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, p. 66-67.

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contribuições advêm das esmolas e anuidades, heranças deixadas por confrades

defuntos, de investimentos promovidos pelos diretores de mesa como a aquisição

de um imóvel e a locação do mesmo, e até de contribuição de pessoas brancas ou

negras que, como era muito comum, quando tinham boas condições financeiras,

participavam de mais de uma irmandade.

Mas sendo limitada as finanças de uma irmandade negra, o seu poder de

assistência social está longe de atingir a dimensão de uma Casa de Misericórdia.

Todavia, dentro das possibilidades orçamentárias o auxílio aos irmãos que caíam

em pobreza ou em doença estava previsto nos compromissos. Na irmandade

Santo Elesbão e Santa Efigênia, do Rio de Janeiro, os

“Irmãos d’esta santa Irmandade depois de ter servido cahir em pobreza que necessite de esmola não se lhe pedirá cousa alguma do que se costuma a dar nesta dita irmandade, antes se estiver enfermo se proporá em mesa pelo Juiz, Escrivão e mais irmãos para se lhe dar uma esmola conforme as posses da Irmandade e necessidade do enfermo”.50

Assim procedendo, a instituição não vai de maneira alguma prejudicar seu

orçamento se não por uma causa nobre e urgente. Antes de qualquer medida

precipitada é preciso tomar nota das reais necessidades do irmão e das

possibilidades da irmandade. Para tanto a função do andador ou procurador é de

precisão. É o responsável por visitas periódicas aos irmãos que ou estão

necessitando do auxílio da confraria ou precisam ser notificados de algum informe

administrativo e outros informes de praxe da instituição.

Os préstimos de assistência não estão restritos aos confrades, mas seus

dependentes como esposas e filhos podem gozar das vantagens proporcionadas

pela irmandade. Na confraria negra do Rio de Janeiro, de Santo Elesbão e Santa

Ephigênia, os menores de quatorze anos bem como as viúvas serão tratados

como se irmãos fossem, gozando de todas as vantagens.51 Nas Irmandades do

Rosário e São Benedito dos negros de Curitiba os menores também recebem

proteção e assitência.52 Assim como em outras confrarias era preciso restringir a

assistência aos dependentes, para que estes não se tornassem um fardo pesado

50 - Arquivo da Biblioteca Nacional, op. cit. 51 - Idem, idem. 52 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, op. cit., 32.

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por demais para as irmandades negras que quase sempre estavam trabalhando

no limite das suas condições financeiras. Dessa forma, como reza o compromisso

da Irmande de Santo Elesbão e Santa Ephigênia é delimitada uma idade máxima

para o gozo das vantagens de ser um dependente.

Talvez o maior encargo financeiro sejam os enterros muito mais do que a

festa, pois esta acontece anualmente enquanto os falecimentos ocorrem

periodicamente. Boa parte dos óbitos entre os escravos confrades da irmandade

negra curitibana entre 1797 e 1820 são de menores. De 117 escravos enterrados

sob os auspícios desta irmandade, 36 são defuntos entre zero e quatorze anos.

Isto corresponde a 30,7% dos enterros. Estes gastos, é claro, são extremamente

custosos para uma irmandade negra inserida em uma economia não-exportadora.

Portanto, trata-se de uma instituição que vive num contexto onde a pobreza era

muito mais a regra que a exceção. (ver tabela da página 44)

É claro que mesmo sendo os procedimentos fúnebres um grande encargo

para as irmandades negras, é também questão de fundamental importância. A

preocupação com a morte ronda o imaginário do homem barroco. Portanto, a

responsabilidade sobre os enterros dos irmãos recai sobre a instituição, bem como

a responsabilidade do enterro de escravos não-confrades é do senhor proprietário.

Muitos destes proprietários participavam e/ou colaboravam com as irmandades

negras com o fim de não se preocupar com a morte de seus escravos. Outros

eram negligentes, largando o corpo de seus escravos na porta das igrejas ou

simplesmente ocultando-os. Parte deste relapso senhorial é a simples fuga do

pagamento das despesas eclesiásticas.53

A morte é questão a ser tratada com a maior seriedade pelos confrades. Na

irmandade negra curitibana aqueles que não presenciarem o enterro seriam

expulsos da corporação, salvo com justificativa coerente.54 Nas irmandades de

boa condição financeira poderiam ser rezadas algumas dezenas de missas em

várias capelas diferentes, não parece ser o caso dos curitibanos do Rosário e São

Benedito que têm a obrigação de rezar cinco Pai Nossos e cinco Ave Marias pela

53 - SCARANO, op. cit., p. 56. 54 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, op. cit., p. 30.

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alma do irmão defunto logo que informados de seu falecimento. Apenas uma

missa será encomendada e que será dita em intenção dos vivos e dos mortos da

confraria. 55 No Rosário da Paraíba do Norte os irmãos devem se encaminhar até

a casa do irmão morte munido de velas e vestidos de branco. Também é

obrigação rezar um rosário por sua alma. Os irmãos que forem componentes da

mesa e morrerem enquanto estiverem servindo “serã enterrados com toda

apompa possível”.56 E este trecho do compromisso se faz bastante inteligível, ou

seja, há uma ordem hierárquica que também está presente no momento da morte.

A pompa, exigência da irmandade, faz dos irmãos da mesa os indivíduos

privilegiados no momento da morte. Esta situação é ainda mais nítida em Santo

Elesbão e Santa Ephigênia:

Sendo Juiz ou Juiz 20 missas Sendo Juíza de ramalhete 18 missas idem escrivão, Thesoureiro ou procurador 18 missas idem andador 12 missas sendo da Mesa 16 missas sendo sem cargo 10 missas57 Ao que parece a hierarquia em vida é reproduzida na morte. Deixando

aqueles de melhores condições financeiras ou simplesemente possuidores de

cargos, mais próximos da salvação. Suas almas são motivos de maior dedicação

por parte da confraria.

João José Reis ao tratar dos procedimentos fúnebres na Bahia chega a se

interrogar: “e por que não chamá-los de festas fúnebres?”58 Claro, pois o excesso

de pompa e a quantidade de pessoas que acompanham o velório em algumas

oportunidades podem muito bem lembrar uma festa. Lembre-se aqui que uma das

maiores responsabilidades de uma irmandade é arrumar o funeral da maneira

mais digna possível.

Os membros de irmandades elitizadas como a Santa Casa e a Ordem

Terceira tinham os melhores esquifes. O luxo ainda resplandecia nas vestes dos

55 - Idem, idem. 56 - Arquivo Historico Ultramarino, op. cit. 57 - Arquivo da Biblioteca Nacional, op. cit. 58 - REIS, A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX., op. cit., p. 138.

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padres que, como uma peça ritualística fundamental, teria de se apresentar à

altura da dignidade do falecido.

Reis consegue definir de forma exemplar a dimensão da importância dada a

estes cortejos no período colonial:

“(...) se a ordem perdida com a festa retorna com o final da festa, a ordem perdida com a morte se reconstituí por meio do espetáculo fúnebre, que preenche a falta do morto ajudando os vivos a reconstituir a vida sem ele. (...) O espetáculo fúnebre realmente distraía o participante da dor. Reunidos solidários para despachar o morto, os vivos recuperavam algo do equilíbrio perdido com a visita da morte, afirmando a continuidade da vida.”59

Os compromisso eram enfáticos quanto a participação obrigatória de todo o

sodalício no enterro de um irmão. Portanto quanto mais pessoas presentes maior

a dignidade do espetáculo para melhor salvação da alma do morto. O mesmo Reis

constrói um tabela através da qual demonstra a quantidade de padres presentes

ao velório conforme a idade do falecido. Alguns enterros chegam a ter a presença

de mais de 20 padres, o que demonstra um prestígio fora do comum do falecido

que é digno de tal ostentação.60

Como se vê, a hierarquia entre as confrarias e mesmo entre os confrades

está presente tanto na vida como na morte. Então uma pergunta que não quer

calar: como são construídas as hierarquias internas nas irmandades negras? Ao

discutir as possibilidades de ingresso, Luiz Geraldo Silva desenhou o tipo-ideal de

irmão a participar das irmandades negras: “ (...) homem de cor casado, liberto ou

preferencialmente já nascido livre, relativamente autônomo em seu modo de vida,

e possuidor de bens imóveis e móveis (...)”. 61 Este tipo-ideal é construído através

da análise dos compromissos. Sendo os indivíduos que correspondem a este

estereótipo os mais prováveis componentes da mesa diretora da irmandade, a

elite entre os confrades. Mas é nítido que esta elite faz parte uma esfera menor,

estratificação esta que não corresponde à hierarquia colonial como um todo, é

apenas uma hierarquia menor dentro de outra maior.

59 - Idem, idem, p. 138. 60 - Idem, idem, p. 142. 61 - SILVA,. Luiz Geraldo. Caridade branca, união negra. Campo religioso e catolicismo barroco na América portuguesa (1706-1782). UFPR, texto apresentado no Seminário Espaço e Sociabilidades, p.02.

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30

Para Louis Dumont a hierarquia não é “uma cadeia de ordens superpostas,

ou mesmo de seres de dignidade decrescente, nem uma árvore taxonômica, mas

uma relação a qual se pode chamar sucintamente de englobamento do

contrário”.62 Este conceito de englobamento do contrário parte do pressuposto de

que existem pelo menos dois níveis de hierarquia, uma dicotomia

englobante/englobado. Para criar uma analogia que deixe claro este discurso

podemos pensar em três retângulos, A, B e C, sendo que C está contido em B,

enquanto este está contido em A. Portanto A configura-se como um nível superior,

B um nível intermediário e C um nível inferior. Agora, o nível intermediário estará

submetido a hierarquias externas, enquanto o nível inferior estará submetido a

hierarquias advindas do retângulo que o engloba. No nível intermediário existe a

unidade, no nível inferior a distinção.

A política colonial deve ser entendia como o nível superior. A instituição

“Irmandade” deve ser definida como o nível intermediário. É responsável pela

orientação e assistência de seus confrades que são os “iguais”, quando se olha

para a confraria de fora para dentro, quando se vê apenas o retângulo do meio.

Portanto, neste nível há unidade, espírito coletivo.

Quando pensamos no quilombo ou na irmandade negra como um espaço

de proteção de indivíduos subjugados pelo sistema escravocrata, pensamos nos

laços que unem os quilombolas ou os confrades. Estes laços são construídos pela

vontade coletiva de ser livre, defender o seu igual na expectativa imediata de ser

defendido também. Nada pode afetar a coesão do grupo quando existe uma

unidade que os justapõem num patamar de igualdade de condições. Isto é

chamado por Russell-Wood de “coesão psicossocial”.63

Mas ao contrário dos quilombos que eram formados por negros fujões, na

maioria escravos, e em razão disso esta instituição não era reconhecida como um

manifestação juridicamente legal. As irmandades são corpos reconhecidos não só

pelas leis da Coroa Portuguesa como também pelas leis eclesiásticas, sendo útil

ao escravo e ao liberto. O primeiro pode ter a oportunidade de arrumar meios

62 - DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 370. 63 - RUSSEL-WOOD, op. cit, p 198.

Page 31: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

31

auxiliares dentro da confraria para adquirir sua liberdade, o segundo confere a si

meios de tornar o seu meio de convívio menos competitivo.64

Seria o único espaço de sociabilização onde a comunidade negra pode

extrair para si as condições de englobar “autonomia”, objeto negado a comunidade

negra, assim “engloba o contrário”. Esquecendo aqui a sua condição de escrava e

deliberando como se fosse senhora de si. E só este nível intermediário de

hierarquia já é o suficiente para distinguir o confrade dos demais negros que não

têm a oportunidade de participar desta instituição. O que resta a estes que não

são irmãos é a tentativa de compor família, que também é um trampolim para o

reconhecimento social.

Dentro da sociedade colonial temos a hierarquia intermediária da

irmandade, aquela que é vista de fora, que representa a unidade de um grupo, o

retângulo do meio. Porém no interior deste retângulo temos outro menor que

representa a distinção. É aqui que se configura o “tipo-ideal” de confrade negro,

este está no topo da hierarquia interna da confraria, se distingue dos demais

irmãos. Primeiro por ser livre, segundo por ter condições financeiras para doar

esmolas consideráveis e, em decorrência disto, tem mais condições de barganhar

cargos de liderança no interior da irmandade. Engloba para si a condição de líder

quando juiz de mesa; engloba a condição de rei e lidera as festas; engloba o

controle das finanças de uma instituição quando tesoureiro; e assim para os

demais cargos de relevo no interior da irmandade, o negro traz para si a condição

respeitável de ser venerado pelos demais, engloba para si o “prestígio” que a

sociedade segregadora colonial lhe nega.

Esta condição ele tem que defender o quanto pode, porque mesmo sendo

sua instituição criada para o convívio da comunidade negra, ela não existe sem

uma interferência externa. Assim é necessário para grande parte das irmandades

negras o englobamento de brancos para que estes sirvam como escrivãos; há o

englobamento forçado do pároco local como um interventor em suas instituições, e

muitas delas entram em conflito com estes elementos que representam a

64 - Idem, idem, p 226.

Page 32: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

32

autoridade externa sobre as suas; a necessidade inevitável de deixar brancos

participarem como simples confrades porque estes trazem para a confraria

esmolas necessárias para o bom andamento financeiro da instituição; conceder a

participação de crioulos em uma irmandade dominada por angolas, por medida de

submissão a Coroa que modificou seus estatutos ou também por medidas de

cautela econômica. As melhores condições de reter a participação de elementos

não gratos no interior da irmandade é aumentando as esmolas dos contrários e

dificultando o seu acesso a cargos de direção que devem ser monopólio dos tipos-

ideais.

Desta maneira a hierarquia interna é afetada pelas condições que cada

confraria impõe em seus compromissos aliado a relativização das necessidades.

Por exemplo, mesmo ocultando a composição social do Rosário de Salvador é

notificável que o ambiente em que está inserida é de colonização muito mais

tardia e de um contingente de escravos muito superior em relação à pequena

Curitiba Colonial. Sendo assim, tem uma oferta maior de elementos competentes

para assumir os cargos que exigem um conhecimento razoável. Daí o fato de

poder barganhar uma esmola considerável no processo de seleção de escrivãos e

tesoureiros. Já a irmandade curitibana por estar inserida num local de baixa

concentração de escravos, ao comparar com regiões de economia exportadora,

não tem ao seu dispor elementos letrados para suprir a necessidade vital no

preenchimento de vagas de tesoureiro e escrivão, forçando o convite de

elementos contrários para preencher esta lacuna com a oferta de isenção de

anuidade. A hierarquia interna, que corresponde à distinção, funciona quase

como uma regra econômica de oferta e procura que é o englobamento de

contrários, aliado às condições do tipo-ideal.

Page 33: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

33

4. OS ESCRAVOS NA IRMANDADE DO ROSÁRIO DE CURITIBA

Das pesquisas sobre certidões de óbito podem surgir uma gama de

informações que remetem a condição do falecido. Quando escravo quase sempre

será anotado o nome do proprietário, idade, estado civil, nome do consorte se

casado, causa da morte, se recebeu os últimos sacramentos ou não, local de

sepultura, testamento se deixou alguns bens e, por vezes, curiosidades que

podem ser anotadas e que eventualmente auxiliam na construção de algumas

hipóteses.

O certo é que se estas fontes são analisadas em seu conjunto, se tornam

esclarecedoras para quem quer ter uma perspectiva demográfica de uma

determinada localidade e contexto. Podemos perceber através de índices

devidamente calculados, estimativas sobre perspectiva de vida, sobre formação

de família, no caso de escravos o pertencimento a uma grande ou pequena

escravaria ao cruzar os óbitos com listas nominativas, além de dimensionar o

“valor da morte” para os cristãos do período colonial brasileiro.

Com um conjunto de óbitos capturados no Arquivo da Catedral Basílica

Menor de Curitiba, localizado na famosa Catedral da Praça Tiradentes, tive a

oportunidade de levantar um diálogo sobre a escravidão nos Campos de Curitiba

no período que compreende os anos de 1797 e 1820. A intenção fundamental é

discutir, através dos óbitos, a composição social e o cotidiano dos confrades da

Irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário de Curitiba.

Indiretamente estes estudos estão remetendo aos aspectos da escravidão em

Curitiba, por trazer informações adicionais que extrapolam as vias de análise dos

confrades apenas pela via interna da irmandade.

As certidões de óbito não seguem uma padronização rígida na sua

confecção. Tudo depende do sacerdote que a escreve, do “status” do falecido e

outras fatores que podem ser lançados aqui neste trabalho apenas

hipoteticamente. Sendo assim, os óbitos são redigidos uns de forma mais

completa que outros. No caso dos documentos que aqui estão sendo utilizados,

percebe-se uma diferença fundamental entre aqueles escritos no século XVIII em

Page 34: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

34

relação aos confeccionados no século XIX, os óbitos dos setecentos costumam

aparecer de forma mais completa. Muito embora isto não caracterize uma regra, a

impressão que se tem é que ao longo do século XIX estas certidões de óbito são

confeccionadas da maneira mais simples possível, talvez por questão de

praticidade burocrática. Todavia, isto resulta numa dificuldade cada vez maior para

o pesquisador que quer extrair informações destes documentos.

Por exemplo, um óbito de 1802, escrito pelo Coadjutor Francisco José de

França:

“Aos oito dias do mes de Agosto de mil eoito centos e dois faleceo da vida prezente Emidio de idade de dois annos, escravo de Dona Maria Munis da Camara, foi encomendado e Sepultado nesta Igreja matriz, e para constar fis este assento.”65 Outro escrito pelo Vigário Francisco de Linhares, três meses depois, na

próxima folha do mesmo livro de óbito:

“Aos dous dias do mes de novembro do anno de mil e oitocentos e Dous, falleceo da vida prezente Antonio innocente, de idade de oito meses filho legitimo de Floriano, ede Anna escravos de Joaquim dos Anjos Pereira, fregueses desta Paróquia. Foi encomendado, eSeo Corpo sepultado nesta igreja matriz emSeo Adro. Do que para constar faço este assento.”66 Ambos os casos tratam da morte de escravos. Mas o segundo documento

traz mais informações que o primeiro. O óbito escrito pelo Coadjutor Francisco

José de França traz apenas seis referências: nome, data, idade, condição,

proprietário e local de sepultamento. O último, escrito pelo Vigário Francisco de

Linhares mostra oito: nome, data, idade, filiação, condição, proprietário, local de

residência (“fregueses desta paróquia”), local de sepultamento.

Por que estas diferenças? Apenas por dedução, é possível afirmar que os

autores de certidões diferentes se encaminham à produção de textos diferentes; o

fato de a criança possuir pais devidamente casados pode ser outro fator

colaborador no sentido de se produzir um documento mais completo, pois como já

foi afirmado anteriormente, o “status” também influência na produção de uma

certidão de óbito que é registrada de forma mais atenciosa.

65 - Arquivo Catedral Basílica de Curitiba. Livro de Óbito n. 03, p. 139. 66 - Idem, idem, p. 140.

Page 35: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

35

Ainda há os casos em que a causa da morte é anotada:

“Aos vinte, e hum de Dezembro de mil oitocentos, e dous, falleceo da vida prezente sem Sacramentos, por morrer de huma facada Innocencio Solteiro, de treinta e Seis annos de idade, escravo do Capitão mor Jose Carneiro dos Santos. Foi encomendado, e Seo Corpo Sepultado na Capella de Tamanduá, disctricto desta Freguezia da Villa de Coritiba. Doque para constar faço este assento. Pelo que me foi remettido.”67

Uma morte violenta que para pouca sorte do historiador não vem descrita

de forma mais minuciosa. Mas este documento traz em si informações adicionais,

que se referem aos sacramentos não recebidos pelo falecido e a distância da

Matriz em relação ao local da morte, a ponto do vigário receber a notícia deste

falecimento algum tempo mais tarde e escrever uma história que lhe foi contada,

afirmando ao fim do documento que escreve “pelo que me foi remettido”.

Portanto é preciso tomar alguns cuidados ao se debruçar sobre este tipo de

documentação, que podem estar datadas de forma pouco cuidadosa e trazendo

sempre uma incerteza sobre a idade dos falecidos. Comumente se encontra o

defunto “de idade de 80 anos mais ou menos”. Os homens do período colonial não

se preocupam muito com o tempo como nós, homens do século XXI. Desta forma

é bem possível que a maioria das idades inseridas nos óbitos sejam apenas

aproximadas, pouco exatas. O exemplo abaixo é uma boa demonstração:

“Aos onze dias do mês de setembro do ano de mil oito centos e dois faleceo da vida prezente Bárbara viúva q ficou de Constantino Cabral, morreo depar tema Recebeo todos os Sacramentos menos o da Eucaristia por morar longe, não, fez testamento por não ter deque foi enterrada na Capela do Rozário, encomendada por mim. Morreo de Sincoenta anos mais ou menso, e para constar fis este assento. O Vigário Jozé Barbosa de Brito”68 A viúva Bárbara possui por volta de cinqüenta anos, o vigário não consegue

ser exato no que diz respeito à idade da falecida. Bárbara não recebeu os

sacramentos por morar distante da Matriz que fica no Núcleo Central de Curitiba,

onde habita o padre. Esta viúva foi enterrada na Capela do Rosário, o que a

caracteriza como uma irmã, de pouca condição financeira por não ter deixado

testamento.

67 - Idem, idem, p. 143. 68 - Idem, idem, p. 139.

Page 36: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

36

Aqui é necessário deixar bastante claro que os confrades da Irmandade de

São Benedito e Nossa Senhora do Rosário de Curitiba são flagrados apenas

através dos óbitos, por não ter sido localizado os demais documentos desta

confraria que muito bem poderiam servir para demonstrar aqueles que estão

sendo recebidos como irmãos. Mas se ainda não há fontes que demonstrem a

entrada dos confrades, há outras, os óbitos, que mostram a saída dos irmãos.

Neste trabalho, portanto, não estou considerando a entrada do irmão, mas a sua

saída, a baixa.

Certamente pode se aventar a possibilidade de que estes irmãos

supracitados se tornaram confrades já mortos. Foram enterrados na Capela do

Rosário mediante o pagamento de seus respectivos senhores para que tivessem

uma passagem cristã. Portanto, em vida não teriam participado dos eventos do

dia-a-dia desta irmandade. Ao crer no que afirma Carlos Lima,

“foi quase sempre possível a um proprietário de escravos levar seu cativo morto para enterro junto a uma confraria sem que o falecido tivesse sido irmão antes de morrer. Mas isso, além de não muito freqüente, não elimina o fato de que a escolha desta confraria para ser referida no sepultamento por parte deles mesmos ou de outros não deve ser considerada como inteiramente aleatória, como algo alheio aos critérios e regularidades inscritos na pertinência ao sodalício.”69

Creio que aqui também é propício deixar claro que estas irmandades, São

Benedito e Nossa Senhora do Rosário, na prática são apenas uma. Muito embora

o seu compromisso que foi analisado no segundo capítulo deste trabalho não

deixe isto claro, as evidências estão justamente nos óbitos que estão sendo

trabalhados neste capítulo. Estou considerando que, por força do costume e da

prática daquele contexto, os próprios contemporâneos destas irmandades como

os padres que escrevem os óbitos tratam-nas como se fossem uma. Todos os

confrades sempre são enterrados na “Capela do Rosário”, filial da Matriz, como

afirma os óbitos. Em momento algum há referência a Irmandade de São Benedito,

exceto no compromisso.70

69 - LIMA, Carlos Alberto Medeiros e MOURA, Ana Maria da Silva. INCORPORAÇÃO E DEVOÇÃO. Editora Peregrina. Curitiba: 2002. p. 117-118. 70 - Ver LIMA, Carlos Alberto Medeiros e MOURA, Ana Maria da Silva. INCORPORAÇÃO E DEVOÇÃO. Editora Peregrina. Curitiba: 2002. p. 95-97.

Page 37: escravidão e irmandade negra nos campos de curitiba

37

Entre os anos de 1798 e 1810, somente através da lista de óbitos são

capturados seis escravos falecidos do Tenente João Antonio da Costa: em 1798

faleceu Clemencia, inocente, filha de Maria, escrava;71 O casal de escravos,

Ignácio e Catarina, perdeu dois filhos num curto intervalo de tempo. No mês de

janeiro de 1802 faleceu Casimira, de cinco anos, e72 logo depois, no mês de

dezembro, Alexandre, de oito meses;73 No mês abril de 1802 morreu José, sete

meses de vida, filho de Anna;74 O mesmo proprietário, quase um ano depois,

março de 1803, perdeu Maria, de dois anos, filha de seus escravos, Floriano e

Josefa.75 Em 1810 faleceu Lauriano,76 marido de Catarina.Todos os falecidos

foram enterrados na Capela do Rosário, o que caracteriza a filiação na irmandade

negra de Curitiba.

São cinco inocentes que faleceram em dois anos. O número não é tão

assustador quando se trata dos séculos XVIII e XIX, embora não deixe de ser um

drama familiar vivido numa mesma escravaria.

Nos óbitos de Casimira e José, foi anotado apenas o nome da mãe. Nestes

casos os inocentes não foram registrados como filhos de pais incógnitos, portanto

a paternidade é oculta. Todavia, é perceptível a presença de dois casais na

escravaria do Tenente João Antonio da Costa, Inácio casado com Catarina e

Floriano Casado com Josefa. Trata-se de uma grande escravaria com a presença

de confrades da Irmandade do Rosário local.

Na lista nominativa de 1797, o casal Inácio e Catarina já estão presentes

como escravos da propriedade número sete, do Núcleo Central de Curitiba. Nesta

lista já aparece Casimira, filha deste casal, na época com um ano de idade.

Floriano, que segundo os óbitos é casado com Josefa também está presente na

lista, mas sua esposa não. Em 1797 o Tenente João Antonio da Costa é

71 - Idem, idem, p. 116. 72 - Idem, idem, p. 135. 73 - Idem, idem, p. 141. 74 - Idem, idem, p. 137. 75 - Idem, idem, p. 145-146. 76 - Idem, Livro de Óbito n. 04, p. 31.

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proprietário de quatorze escravos, sete homens e sete mulheres, possuidor,

evidentemente, de uma grande escravaria. 77

Se partirmos do pressuposto acima descrito, que os óbitos registram a

pertinência à irmandade, então temos entre 1802 e 1810 pelo menos oito de seus

cativos como irmãos do Rosário. São eles Maria e Ana, nos óbitos não estão

evidenciadas como mulheres casadas; Inácio e Catarina, Floriano e Josefa,

Lauriano e Catarina, os casais casados; todos estes são confrades ou no mínimo

dependentes e, em conseguinte, têm direito de ser assistido no momento da

doença, da pobreza e da morte.

Uma outra escravaria de maior porte está presente nesta irmandade negra.

Trata-se da escravaria do Sargento Mor Antonio José Ferreira, que possui

propriedade com 24 escravos, segundo a Lista Nominativa de 1797.78 Seus

cativos enterrados na Capela do Rosário são Quitéria79, Domitila80 e João81. A

primeira é mulata, solteira, falecida aos 30 anos de idade, em 1804; a segunda é

filha da primeira e de pai incógnito, falecida aos dois anos, em 1806; o terceiro é

uma criança de seis anos, filho de Apolânia, escrava e de pai incógnito.

Interessante é notar que a mulata solteira Quitéria faleceu logo após o

nascimento de sua filha, mesmo assim a irmandade assistiu os procedimentos

fúnebres de sua filha, que provavelmente foi criada em seus dois únicos anos de

vida por alguém da propriedade do Sargento Mor Antonio José Ferreira. Isto

caracteriza a importância da atuação da irmandade negra como uma instituição de

assistência social. Fica comprovado o bom funcionamento desta instituição, pois

foi capaz de dar conta dos procedimentos fúnebres da irmã além de prestar

assistência a sua filha que ficou órfã.

Outras grandes escravarias do Núcleo Central de Curitiba evidenciam

participação no sodalício do Rosário. Joaquim e Rita82, escravos do Capitão Mor

Lourenço Ribeiro de Andrade, proprietário de vinte escravos, são os únicos

77 - Arquivo Público do Estado de São Paulo. Lista de habitantes de Curitiba, 1797, p. 196. 78 - Idem, idem, p. 195. 79 - Arquivo Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 03, p. 154. 80 - Idem, idem, p. 191. 81 - Idem, Livro de Óbito n. 04, p. 02. 82 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 3, p. 109.

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casados de todo o plantel deste Capitão. Estão também entre os escravos mais

velhos desta propriedade. A escravaria de Francisco Xavier Pinto possui trinta e

um escravos, entre estes temos a formação de quatro casais, ou seja, oito

escravos casados dentro da mesma propriedade. O resultado disto é a presença

de dez crianças com dez anos ou menos.83

Algumas coisas chamam atenção para os exemplos acima descritos.

Primeiro, tratam-se de grandes escravarias e próximas da Capela do Rosário,

sede da irmandade. No caso da propriedade do Tenente João Antonio da Costa

temos a formação de famílias escravas em seu interior. O que demonstra a

existência de uma certa estabilidade no interior de sua propriedade no que diz

respeitos aos vínculos entre seus escravos. Aliás, é uma propriedade que está

justificando o que foi dito no primeiro capítulo, ou seja, a estabilidade entre sexos

nas escravarias paranaenses. Além disso, o fato de parte de seus escravos

fazerem parte da Irmandade do Rosário significa que existe uma margem de

negociação entre os cativos e o senhor. Ser um confrade é acima de tudo possuir

certa independência que lhe confere a possibilidade de transitar com maior

conforto no ambiente em que vive. Como afirma Kátia Mattoso, o “mundo dos

homens livres e [o] mundo dos escravos opõem-se, mas estão em estreita

dependência um do outro. Ser escravo no Brasil é buscar a superação das

contradições entre esses dois mundos e, ao mesmo tempo, das tensões no grupo

de escravos”.84 São justamente estas duas possibilidades acima descritas, formar

família e participar de uma irmandade, que aumentam a circunferência de

circulação e independência do escravo. A sociabilidade no mundo fora da senzala

se constrói diante das negociações que se faz, das situações criadas

propositalmente ou não, que trazem à tona uma maior liberdade para os escravos

possuírem uma certa autonomia sobre si e a sua família.

A segunda escravaria supracitada, do Sargento Mor Antonio José Ferreira,

demonstra uma estabilidade parecida. Mesmo sendo as confrades Quitéria e

Apolânia mães-solteiras, estas formam o que pode ser denominado de família

83 - Arquivo Público de São Paulo, op. cit., p. 193. 84 - MATTOSO, Kátia de Queirós. SER ESCRAVO NO BRASIL. Editora Brasiliense. 1982. p. 123.

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matrifocal. Família encabeçada pela figura da mãe. Isto não acontece

simplesmente porque estas mulheres são abandonadas, mas pode ter sido uma

escolha própria. Como já foi dito, os confrades possuem uma margem de

negociação que lhes confere a condição de participarem de um grupo externo à

sua escravaria, de terem uma vida social estável. Para as mulheres irmãs isto não

seria diferente. Sendo assim, o fato de serem mães-solteiras pode muito bem ter

sido uma opção própria. Scheila de Castro Faria contribuiu muito ao perceber que

as mulheres pobres e solteiras não devem ser tão vitimizadas. O fato destas

mulheres estarem cercadas em seus respectivos fogos de pessoas de “variadas

relações” já é um esboço de que não estão sós.85

O último caso, de trinta e um escravos, perfazendo quatro casais e dez

crianças na propriedade do Capitão Mor Lourenço Ribeiro de Andrade, indicam a

estabilidade destes escravos via formação familiar.

“Quando escravos do mesmo senhor se casavam, a situação era de molde a criar menor problema, mas vai tornar-se bastante complexa quando se tratar de escravos de senhores diferentes.(...) O Direito Canônico estabelecia que os senhores eram obrigados a facilitar os casamento de seus escravos, mesmo que um dos cônjuges pertença a outro senhor. Também são intimados a não vender escravos casados para fora do local onde viva o marido ou a esposa.”86

As escravarias de grandes dimensões realmente devem ter dado maiores

possibilidades aos escravos de contrair vínculos, ao mesmo tempo possibilitou

uma maior interação entre os cativos e sociedades de identificação da

comunidade negra como são as irmandades. Acredito que o vínculo com a terra

onde constituiu família faz com que as fugas sejam muito menos freqüentes,

criando certos laços de confiança entre senhores e escravos e, possibilitando a

estes últimos, o direito adquirido pela confiança recíproca de circular nas regiões

circunvizinhas ou mesmo em locais mais distantes. Conseqüentemente esta

circulação vai criar, inevitavelmente, um espaço de convívio que extrapola as

margens da escravaria, chegando, possivelmente, até à irmandade negra e à

85 - FARIA, Scheila de Castro. MULHER E HERANÇA AFRICANA: UM ENSAIO. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 30, p. 227-244. 86 - RUSSEL-WOOD, op. cit., p. 63.

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interação com um grupo de iguais que também conseguem barganhar migalhas

valiosas de independência com seus senhores.

Mas como explicar, por exemplo, a preferência do Senhor Antonio

Rodrigues Pinto? No ano de 1800 teve sua escrava Teodora, de 25 anos, sendo

enterrada na Matriz.87 Seu escravo Marcelino, de 80 anos, foi enterrado no

Rosário em 1807.88 Teria sido decisão do proprietário ou uma decisão que provêm

da vontade do escravo ainda em vida? Difícil de explicar. Outros casos como este

não são raros de se encontrar, é o caso dos proprietários Domingos José da

Mota89 e Domingos Machado90, cada qual com um escravo enterrado na matriz e

outro no Rosário. Mais curioso é o caso do proprietário Gaspar Correa Leite,

morador da região do Tamanduá.91 Poderia ter mandado os enterros de seus

escravos no Cemitério da Capela do Tamanduá, muito mais próximo de sua

moradia, no entanto temos uma escrava, Esmeria, enterrada no Rosário92 e outra,

Florinda, enterrada na Matriz.93 Isto significa que há uma negociação entre o

escravo e seu senhor que rege o estabelecimento do local de enterro.

Escravarias pequenas do Núcleo Central de Curitiba também tinham sua

parcela de escravos entre aqueles enterrados no Rosário. É o caso de Mônica,94

viúva, escrava de Antonio Francisco, possuidor de apenas três escravos;95

Miguel,96 escravo do Tenente Domingos Machado, que convivia entre cinco

escravos;97 José e Maria são os únicos escravos de propriedade de José

Bernardino,98 são casados e perderam uma filha de onze anos em 1809;99

87 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p. 123. 88 - Idem, Livro de Óbitos n. 4, p. 10. 89 - Idem, idem, p. 35 e 74. 90 - Idem, Livro de Óbito n. 3, p. 122 e Livro de óbito n. 4, p. 27. 91 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 359. 92 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 3, p. 157. 93 - Idem, idem, p. 138. 94 - Idem, idem, p. 123. 95 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 212. 96 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 4, p. 27. 97 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 197. 98 - Idem, idem, p. 198. 99 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 4, p. 22.

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Josefa,100 escrava de Tomé José Monteiro, morador do núcleo central e possuidor

de apenas dois escravos.101

Bem como escravarias pequenas de maior distância da Capela do Rosário

tinham sua porcentagem no sodalício. José da Cunha Tavarez perdeu sua única

escrava em 1805102, morador do Bairro do Palmitar;103 Casos como o da

propriedade de Duarte Vaz Torres, dono de cinco escravos que herdou da mãe,

Catarina Borges.104 Destes cinco, Mariana,105 Inácio106 e Quitéria são membros do

Rosário, sendo que os dois últimos são casados, formando um casal nesta

pequena escravaria, moradores do Bairro Alto; Dona Escolástica Eugênia,

moradora do Bairro do Barigui, foi proprietária de Rufino,107 inocente de dois anos

que faleceu em 1819 e foi enterrado no Rosário, tinha, segundo a Lista de 1797,

apenas dois escravos.108 Escravarias pequenas da Região do Tamanduá, no

Bairro da Conceição, também tinha seus confrades. É o caso da viúva Josefa,109

escrava de Caetano Moreira possuía Josefa e João apenas.110

No Bairro do Passaúna uma grande escravaria pertencente a Isabel

Martins, com quatorze cativos,111 tem pelos menos um confrade, este é

Salvador,112 o mais velho entre todos os cativos desta propriedade. Morador deste

mesmo Bairro do Passaúna, Francisco Rodrigues Seixas mantêm em 1797 uma

escravaria mediana de sete cativos.113 Duas escravas, Gertrudes114 e Ana115 são

irmãs do Rosário. Nesta localidade ainda temos entre oito escravos, Miguel,

falecido com 90 anos,116 escravo de Maria Pais Santos.117 Na região do

100 - Idem, Livro de Óbito n. 3, p. 122. 101 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 206. 102 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 3, p. 174. 103 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 243. 104 - Idem, idem, p. 227. 105 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbito n. 3, p. 120. 106 - Idem, Livro de Óbito n. 4, p. 113. 107 - Idem, idem, p. 102. 108 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 236. 109 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p.137. 110 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 362. 111 - Idem, idem, p. 394. 112 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p.134. 113 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 394. 114 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 4, p.105. 115 - Idem, idem, p. 65. 116 - Idem, Livro de Óbitos n. 3, p. 134.

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Tamanduá temos Esmeria, uma escrava confrade,118 entre trinta cativos de

Gaspar Corre Leite.119 Rosa120 e Joaquim,121 escravos de Escolástica dos

Santos, moradores do Bairro do Rio Verde, conviviam entre doze escravos.122 No

Bairro do rio Verde, Maria, solteira de 22 anos,123 estava entre oito escravos de

Luis de Souza de Menezes.124

Sendo Curitiba nos século XVIII e XIX uma região que possuía um raio de

abrangência muito grande, poucas regiões foram privilegiadas com a atuação da

Irmandade do Rosário. A maioria dos escravos confrades desta irmandade

estavam inseridos na região central da cidade, muito próximos da capela sede da

instituição. Os demais confrades capturados ou estão em regiões bastante

próximas como os Bairros do Barigui, Bairro Alto e Passaúna, distância não maior

que 15 quilômetros ou em regiões de alta concentração de escravos como é o

caso do Bairro da Conceição do Tamanduá, que fica num raio de no mínimo 25

quilômetros de distância da Capela do Rosário.

A distância da irmandade, a liberdade de circulação e o tempo de

pertencimento a um só cativeiro devem ter sido fatores fundamentais entre as

possibilidades de ingresso no Rosário de Curitiba. Ao analisar os irmãos através

do cruzamento nominativo é perceptível que quanto maior é a distância da Capela,

menor o número de confrades. Mas os irmãos negros que vêm de longe estão

sempre entre os membros mais velhos de seu plantel, o que indica que os

escravos com maior tempo de cativeiro conseguem administrar negociações com

seus respectivos proprietários e trazem consigo a possibilidade de transitar pelas

terras circunvizinhas, de criar laços de solidariedade e sociabilização longe dos

olhos do senhor.

Até agora uma série de exemplos nos levam a crer que há um equilíbrio

entre sexos nas escravarias curitibanas que também é refletido na pertinência ao

117 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 396. 118 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p.157. 119 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 359. 120 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p.157. 121 - Idem, Livro de Óbitos n. 4, p. 56. 122 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 404. 123 - Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba, Livro de Óbitos n. 3, p.154. 124 - Arquivo Público do Estado de São Paulo, op. cit., p. 396.

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sodalício do Rosário. No período entre 1797 e 1820 foram capturados 117

escravos. Conforme se observa na tabela 1:

TABELA DE ESCRAVOS ENTERRADOS NO ROSÁRIO

SEGUNDO SEXO E FAIXA ETÁRIA (1797-1820) Masculino NUMERO DE ESCRAVOS

0 a 14 20

15 a 19 1

20 a 59 18

60 ou + 13

Idade não especificada 5

Total 57

Feminino NÚMERO DE ESCRAVOS

0 a 14 16

15 a 19 0

20 a 59 25

60 ou + 14

Idade não especificada 5

Total 60 Tabela 1: construída segundo informações dos Livros de Óbitos

3 e 4 do Arquivo da Catedral Basílica Menor de Curitiba

O equilíbrio entre sexos presente nas escravarias curitibanas (ver página

13) tem seu reflexo na irmandade negra local. São 57 homens e 60 mulheres

enterrados na Capela do Rosário no período que compreende os anos de 1797 a

1820. É claro que esta pequena diferença que demonstra um grau de feminilidade

maior que o masculino não deve ser levado muito em conta.

Através da análise destes dados flagramos a onerosidade que representa

para a irmandade os gastos com os falecimentos de irmãos dependentes, os

menores de até quatorze anos representam 30,7% dos falecidos. Na faixa etária

dos 15 aos 19 anos apenas 1 confrade, 1,17% dos mortos. A maioria dos enterros

envolveram os escravos em fase produtiva, entre 20 e 59 anos, 36,7% dos

enterrados no Rosário. Os cativos com mais de 60 anos perfazem 23% dos óbitos

da confraria. Cinco mulheres e cinco homens não tiveram suas idades definidas

nos óbitos, 8,5 % dos falecidos.

Mais uma comparação dos números desta tabela chama atenção. Além da

grande participação feminina, evidente nos totais, é a sua porcentagem entre os

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maiores de 20 anos, 33,3%, enquanto os homens maiores de 20 anos

representam 26,4% dos confrades falecidos entre 1797 e 1820. É claro que os

óbitos não evidenciam com perfeição a pertinência ao sodalício. Para quantificar

de melhor maneira esta irmandade seria necessário a utilização de fontes que

comprovassem a entrada de confrades, no caso, o livro de admissão. Mesmo

assim observamos que as mulheres têm presença significativa nos quadros desta

confraria. Não à toa está previsto o cargo de Juíza na mesa diretora desta

instituição, segundo o que reza seu compromisso.125

Insistindo um pouco mais na questão feminina da Irmandade do Rosário,

levando em conta o que já foi analisado neste capítulo, principalmente no que diz

respeito à circulação dos escravos no ambiente dos Campos de Curitiba como

elemento de fundamental importância para criar vínculos com esta confraria.

Temos que as mulheres escravas, assim como os homens da mesma condição

jurídica, criam espaços de negociação com seus proprietário que permitem a elas

liberdade igual ou parecida àquela concedida aos homens. Mais um motivo para

deixar de lado as idéias de vitimização do sexo feminino e mostrar as mulheres

escravas como detectoras de autonomias no que diz respeito ao seu destino, à

exemplo de Scheila de Castro Faria (ver página 40).

Mesmo em algumas oportunidades em que é perceptível no compromisso

das irmandades negras algumas exigências que restringem a entrada de

determinados “tipos” na instituição, ou mesmo as limitações impostas àqueles que

almejam um cargo na mesa diretora, este espaço de sociabilização da

comunidade negra tem algo de democrático, que envolve homens, mulheres,

menores e idosos, solteiros ou com família constituída. Estas confrarias foram

fundamentais no processo de incorporação e interação dos negros com o sistema

colonial.

125 - Carta de confirmação do compromisso das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito da cidade de Curitiba, op. cit., p. 31.

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5. CONCLUSÃO

Muitos historiadores ainda acreditam que as irmandades negras

funcionaram como um veículo de retenção das possibilidades de desordem

provocadas pela comunidade negra. Logo seria uma instituição muito bem

utilizada pela Coroa Portuguesa desde o século XV, no sentido de transferir as

revoltas nos cativeiros para uma dedicação à ordem católica.

Por certo esta imagem não é totalmente descartável, mas acredito que

grande parte dos méritos na construção de tais instituições deve ter surgido muito

mais da vontade da comunidade negra em encontrar um espaço específico de

sociabilização, onde poderia interagir com seus iguais, do que do poder

manipulador da política portuguesa.

Sendo assim, a comunidade negra mostra a sua cara. Principalmente

através das reivindicações étnicas presentes sobretudo nos compromissos do

século XVIII, percebe-se que os historiadores da escravidão que trabalham com

irmandade negras não estão tratando de elementos que criaram uma identidade

pura e simplesmente fruto da sua melania, ou mesmo da sua situação jurídica,

mas de pessoas que eram diferentes na forma de se expressar, vestir, de interagir

com o meio.

O trabalho sobre as irmandades negras trata destas diferenças étnicas que

faz dos escravos instalados no Brasil um corpo multifacetado. Demonstra o quanto

a comunidade negra pelejou em busca de uma identidade que lhe servisse como

um conforto diante de um meio social que o desprezava. E ainda empregou na

cultura brasileira alguns traços que com o tempo se tornaram folclore, é o caso

das congadas, da Folia de Reis, das festas de Nossa Senhora do Rosário

comemoradas até hoje em algumas partes do país.

A irmandade negra concede acima de tudo um exemplo de trabalho coletivo

diante de circunstâncias embaraçosas como o estado de escravidão.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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