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    Os Escravos e oImaginário Social:

    As Imagens daEscravidão Negra nosJornais de São Luís

    (1830-1850)

    Esmênia MirandaFerreira

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    CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECENDEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

    CURSO DE HISTÓRIA

    ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

    OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DAESCRAVIDÃO NEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

    São Luís2007

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    ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

    OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DAESCRAVIDÃO NEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

    Monografia apresentada ao Curso de História daUniversidade Estadual do Maranhão, como requisitopara obtenção do grau de licenciatura em História.

    Orientadora: Profª. Drª. Adriana de Souza Zierer.

    São Luís2007

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    Ferreira, Esmênia Miranda.

    Os escravos e o imaginário social: as imagens da escravidão negra nos jornais de São Luís (1830-1850) / Esmênia Miranda Ferreira. – São Luís,2007.

    91 f.

    Monografia (Graduação) – Curso de História – Universidade Estadual doMaranhão, 2007.

    1. Escravo 2. Imaginário 3. Jornais. 4. São Luís I. Título.

    CDU: 94(812.1).056

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    ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

    OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃONEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

    Monografia apresentada ao Curso de Históriada Universidade Estadual do Maranhão, comorequisito para obtenção do grau de licenciaturaem História.

    Aprovado em ____/____/____

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________Profª. Adriana Maria de Souza Zierer(Orientadora)

    Drª. em História Medieval – UFF

    ________________________________________________________1° Examinador

    _______________________________________________________2° Examinador

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    À Deus, o grande Pai da Criação dequem tudo nos foi dado.

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    AGRADECIMENTOS

    A minha mãe, Esmeralda Rodrigues Miranda Ferreira pelo exemplo de mulherque soube com honra e honestidade encarar as batalhas da vida.

    A minha irmã, Estefânia Miranda por ter agüentado os momentos deaborrecimento e azedume, característico de um orientando, e ao meu sobrinho Cauã Ferreir

    por quebrar com seus sorrisos estes mesmos momentos.A Sandro Ribeiro, meu companheiro de todas as horas que fez acordar em mim

    sentimentos jamais despertados.Aos meus amigos de Curso, com os quais dividi os melhores momentos da vida

    universitária. Em especial Eloy Barbosa e Edyene Moraes, dupla dinâmica que sempre meiluminou com sabedoria, aos amigos Lívio Bruno, Carol, Luana e Camila sempre presentenesta fase da vida.

    Aos professores do Curso de História da UEMA que contribuíram para minha

    formação e para aquilo em que hoje acredito. Em especial, ao professor Marcelo Galves, peloseu humor irônico que me fez ver a História de forma mais crítica e bem-humorada; àprofessora Elizabeth Abrantes pela compreensão e apoio nos momentos de (in)definição domeu objeto de estudo; à professora Adriana Zierer, por me aceitar orientar e não me fazerdesistir de uma pesquisa que se apresentava cheia de obstáculos.

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    "[...] a cobertura ideológica não engana ninguém,ela convence apenas os convencidos, o 'homohistoricus' não se deixa curvar pelos argumentosideológicos de seu adversário quando seusinteresses se encontram em jogo."

    George Duby

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    RESUMO

    A Província do Maranhão se destacou no século XIX pela sua economia agro-exportadora qutinha suas bases alicerçadas no trabalho escravo e também pela sua produção impressa, jornalismo e seus letrados que juntos formavam a “inteligência maranhense” e foramcolaboradores do sistema ideológico de dominação que definia os papéis sociais e o lugar dcada indivíduo na sociedade. O período de duas décadas que separa as Leis de ilegalidade e de extinção do tráfico de escravos africanos para o Brasil poderia até não ser discutida nos jornais ludovicenses por questão de conveniência, mas os escravos não deixaram de ser alvodos mais variados juízos de valor quando, no fundo, se temia o fim da reposição da mão-de

    obra escrava e sentia-se a perda de legitimidade do sistema. A presente pesquisa constitui-senum estudo das imagens forjadas sobre os escravos e suas atitudes, analisando como essasencontraram força no consenso social e consolidaram-se no tempo.

    Palavras-chaves: Escravo. Imaginário. Jornais. São Luís.

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    SUMMARY

    The Province of the Maranhão if detached in century XIX for its economy agro-exporter whoalso had its bases construed in the eslaved work and for its production printed, journalism an

    its scholars who together formed "maranhense intelligence" and had been collaboration of thideological system of domination that defined the social papers and the place of eachindividual society. The period of two decades that separates the laws of illegality and ofextinguishing of the traffic of African slaves for Brazil could until not being argered inludovicenses periodicals for convenience question, but the slaves had not left of white ofbeing varied value judgments when, in the deeps one, if he feared the end of the replacemenof the enslaved man power and felt it loss of legitimcy of the system. A research consists in study of the images forged on the slaves and its attitudes, analyzing as these had found forc

    in the social consensus and had been consolidated in the time.

    Word-Keys: Slave. Imaginary. Periodicals. Sant Louis.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO................................................................................................ 11 1 INTELECTUALIDADE E IMPRENSA MARANHENSES: OSASPECTOS EM COMUM..............................................................................152 A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A MOBILIDADE ESCRAVA NAS

    “RACHADURAS” DA IDEOLOGIA LIBERAL-ESCRAVISTA.................283 SÃO LUIS ENTRE A BARBÁRIE E A CIVILIZAÇÃO............................424 A FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO LUDOVICENSE...............................494.1 As imagens mais constantes do escravo nos jornais.................................. 534.2 “Inimigo social”: as imagens dos escravos mediante a segurança

    pública........................................................................................................ 614.3 “Jogo dos contrários”: as imagens dos escravos mediante os projetos deimigração européia...........................................................................................71

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................86REFERÊNCIAS.................................................................................................88

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    INTRODUÇÃO

    O sistema de cotas para negros nas universidades públicas brasileiras adotado pelaprimeira vez em 2001 pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro trouxe a tona uma séride questões e reacendeu o debate em torno do preconceito racial no Brasil, explicitando aindmais os conflitos sociais e as tensões raciais existentes em nosso país. O mito da democraciaracial e a utopia de uma sociedade misturada caem por terra com as discussões provenienteda política de cotas, incentivando uma reflexão sobre o que é 'ser negro no Brasil'?Responder a esta pergunta não é tão fácil assim, requer um entendimento sobre a própriaconstrução do racismo ao longo da nossa história. Para encontrar respostas às estas questõe

    tão presentes e a outras que fazem parte no nosso cotidiano se torna necessário vasculhar osbaús do passado.Entendemos o preconceito racial como uma construção histórica e social forjada

    pela sociedade escravista para definir, separar e hierarquizar categorias sociais. A imagem donegro e do escravo foram tão diluídas ao ponto de, passados mais de um século, o negrocontinuar absorvendo os preconceitos e estereótipos que eram renegados ao escravo. Por issoa intenção desta pesquisa é compreender em que momento negro e escravo se tornam um só, porquê de até hoje as imagens relacionadas ao escravo se perpetuaram na figura do negro que

    continua a ser relacionado à violência, à falta de caráter, à sensualidade e está tão presente namentalidade e expresso na linguagem coloquial, que mesmo quando as pessoas queremmostrar que não são preconceituosas.

    Podemos dizer que o tema da escravidão negra nunca 'sai de moda', pois não só arenovação metodológica, diversificação de técnicas e a revisão das fontes usadas pelosestudiosos do assunto, mas também a própria evolução social não permite que se esgotem aquestões que podem encontrar respostas nas características de uma instituição que perduroupor mais de três séculos no Brasil, além de que uma nova reflexão do objeto pode fazer a

    diferença de um trabalho. Por isso a produção historiográfica acerca desse assunto é cada vemais vasta e sua dinâmica tem possibilitado uma visão mais abrangente sobre asconseqüências da instituição escravista na sociedade brasileira.

    Dessa forma, para responder às questões por nós levantadas a partir da análise dasdiferentes imagens criadas sobre os escravos e suas atitudes, durante os anos de 1830 a 1850levamos em consideração a constituição dos discursos proferidos pelos jornais de São Luís nprimeira metade do século XIX e como eles contribuíram na formação do imaginário socia

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    sobre os escravos negros, no momento delicado das discussões sobre a ilegalidade e extinçãodo tráfico de escravos africanos para o Brasil.

    A imprensa, em especial os jornais que na visão de Duby(1995) se perfazem eminstrumentos culturais capazes de traduzir em formas duráveis uma visão de mundo e que éprivilégio de um grupo específico, tem sido cada vez mais utilizada como fonte de informaçãhistórica. Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgaçãde idéias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipularinteresses e intervir na vida social. Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, aimprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados dediscursos e ideologias que expressam o movimento de idéias circulantes numa determinadaépoca e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.

    Vainfas (1997) sugere que para se analisar um discurso é importante compreenderas condições de produção, as condições de circulação e as condições de reconhecimento eseguindo esta 'receita' refletimos sobre o momento sócio-econômico que passava a cidade dSão Luís, sem esquecer a indefinição política, pela qual enfrentava a Província do Maranhãono período pós-independência e que completava o cenário onde se desenvolveu a imprensamaranhense, fator que favorecia e até incentivava essa produção e por fim, perceber oconsenso ou as contradições existentes entre o proferido e o mentalizado.

    Para a elaboração desta pesquisa, utilizamos como metodologia o estudos dos

    jornaisO Publicador Oficial, o Chrônica Maranhense, O Publicador Maranhense e oProgresso por terem sido os jornais de circulação mais constante e mais significativos daprimeira metade do século XIX. Utilizamos ainda a historiografia referente ao assunto, e oromances: O Cativeiro, de Dunshees de Abranches (1992), O Mulato, de Aluízio Azevedo(2002), e Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1988). Nestas obras seus autores abordam nãosó a sociedade maranhense escravista e seus preconceitos, como permitem analisar ainfluência dos intelectuais na consolidação das idéias das classes dirigentes.

    Sandra Pesavento (2004) diz que o imaginário é percebido na relação do texto

    com o contexto, por isso no primeiro capítulo do trabalho daremos destaque aos aspectos emcomum entre a formação da intelectualidade e a consolidação da imprensa maranhense, nãosó para compreender o ‘lugar da fala’, mais também para analisar de que forma os periódicoludovicenses dominados pelos intelectuais-jornalistas representaram os interesse da classeproprietária de terras e escravos e foram usados como meios de reprodução e legitimação dosistema escravista.

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    No segundo capítulo, analisamos a teoria liberal que inaugurou o século XIX, aforma como os liberais maranhenses adequaram-na aos interesses escravistas e asconseqüências desse suposto paradoxo, que possibilitou a mobilização da massa popular, oslevantes de escravos, e por vários momentos alertou as elites dirigentes dos perigos de umaabertura liberal dentro do sistema escravista.

    No terceiro capítulo, especificamos o recorte espacial da pesquisa ao falarmos dacidade de São Luís, que além do espaço físico, é o lugar da prática social, onde sedesenvolvem as relações cotidianas, o que nos permite avaliar as transformações que arelativa prosperidade material vai provocar, não só no perfil urbano de São Luís, mas vai sedeterminante na formação de novos padrões e valores sociais, o qual a sua imposição pormuitas vezes vai gerar conflitos entre o ideal de civilização que se pretendia imitar e as

    características de uma cidade eminentemente escravista.Por fim, o quarto capítulo que é subdividido em outros três tópicos. São trêssubconjuntos de imagens que se relacionam aos temas mais correntes nos jornais pesquisadosOptamos por não analisar imagens específicas de cada seção dos jornais, pois as variadasseções que contém mensagens e incentivam a criação de imagens sobre os escravos, tem umligação muito forte entre si, tal como peças de um quebra-cabeça, podendo assim, juntasformarem uma ou mais imagens ou uma seção reafirmar a imagem já forjada anteriormente.

    Essa opção se fez também, pelo fato de não acharmos em nossa pesquisa grandes

    artigos que tratassem especificamente da escravidão, afinal em meados do século XIX osistema escravista estava tão diluído e era tão proveitoso para a sociedade maranhense que acaracterísticas da escravidão e as condições dos escravos não apareciam enquanto tema a sequestionado ou debatido, mesmo no período de grandes discussões com o possível fim dotráfico de escravos, parecia que não se tinha o que discutir sobre a legitimidade do regimeEntretanto preferimos acreditas que o silêncio ou o ‘não-dito’ deixa a entender muita coisa, ouporque não se fala num assunto que incomoda, ou por está tão assimilado como verdade ounatural, que realmente não tinha o que se questionar.

    As imagens mais comuns ou consensuais sobre os escravos presentes nas falas dos jornais, referem-se aos juízos de valor que revestem o escravo, dentro de uma ótica moraliste preconceituosa; o outro conjunto de imagens trata do escravo como uma ‘questão depolícia’, presente na legislação, nos códigos de posturas da cidade e nas estatísticas criminaise por último, quando aparecem os primeiros projetos imigrantistas, tanto o escravo quanto onegro passa ter suas qualidades comparadas ao branco, não somente como trabalhador e simenquanto agente civilizador e do progresso da Nação.

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    Nossa intenção ao estudar a escravidão no imaginário social de São Luís, não é sóapresentar as formas como a sociedade ludovicense do oitocentos via o escravo, maisimportante para nós é compreender em que momento e baseado em quê essas imagens seformaram, e como elas se cristalizaram ao longo do século, se tornando armas em potenciado preconceito social no Brasil.

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    1 INTELECTUALIDADE E IMPRENSA MARANHENSE: OS ASPECTOS EMCOMUM

    A vida social e econômica do Maranhão alterou-se significativamente após ainstalação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão no final do século XVIIIHouve um surto econômico que permitiu ao Maranhão desenvolver uma economia deexportação e alcançar o nível das capitanias mais ricas da Colônia. O desenvolvimento daplantações de algodão veio atender às necessidades de matérias-primas das máquinas inglesanum período em que a maior fornecedora desse gênero, os Estados Unidos, estava em lutapela sua independência.

    Segundo Maria Januária Vilela Santos (1983), esseboom algodoeiro

    acompanhado das plantações de arroz, da criação de gado e do comércio de couro ainda fosentido pelas duas primeiras décadas dos oitocentos, quando começou a entrar em decadêncidevido a fatores tais como a falta de melhoramentos técnicos, a concorrência de outrosmercados, a queda dos preços do algodão e as dificuldades do mercado de exportação, alémdo alto preço dos escravos que formavam a principal mão-de-obra da época, e que após aextinção da Companhia, que também era responsável pelo fornecimento da mão-de-obraafricana, o negócio passou a ser feito diretamente com traficantes que, sem fiscalizaçãonenhuma, impuseram excessivos preços, dada a importância dos escravos para os agricultore

    maranhenses.Os anos seguintes até o surgimento e incentivo à empresa açucareira, a partir de

    meados de 1840, o Maranhão vive um período de transformações econômicas e de redefiniçãdas relações sociais, bem como passa por uma seleção de valores que guiarão essa novasociedade. O escravo também terá lugar nessas mudanças, visto cada vez mais como símbolode opulência e prestígio social para quem os possuía.

    A forma de produção baseada no trabalho escravo do negro é que vai definir asrelações sociais no Maranhão oitocentista, as quais eram rigidamente divididas e

    hierarquizadas de acordo com a condição jurídica e econômica das pessoas. No entanto, emnossa análise, não limitaremos esse conjunto social simplesmente entre aqueles que tinhamposses ou eram despossuídos, quem era livre ou era escravo, pois há uma complexidade bemmaior nessa sociedade.

    Porém, podemos afirmar que quem tinha poder econômico detinha maisfacilmente o poder político e aqueles que ficavam à margem das decisões políticas geralment

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    eram designados como o ‘povo’, e ainda havia uma numerosa população escrava que nãotinha direito algum, mas que nem por isso ficou fora das transformações do período.

    A maioria da população maranhense era composta de escravos, correspondendo amais 70% do total, entre os anos 1819 e 18211. Essa superioridade numérica foi sentida deforma mais intensa nos anos seguintes, quando “ [...] essas infortunadas criaturas mais cedoou mais tarde teriam de vir influenciar sobre a sociedade que supusera explorá-las apenascomo bestas de carga.” (ABRANCHES, 1992, p. 44). Proféticas pareciam ser as palavras dD. Martinha, espanhola que residira em São Luís nos momentos de maior agitação política esocial da Província maranhense2, percebendo que além das convulsões políticas havia umintenso conflito social que não demoraria a eclodir e a denunciar as contradições do regimeescravista.

    Politicamente, as tensões entre as elites regionais e locais que já marcaram outrosepisódios nas décadas antecedentes e caracterizaram as lutas entre portugueses e nacionais semantiveram vivas e, pelos anos de 1830, se agrupavam em dois partidos: os conservadorechamados Cabanos e os liberais mais conhecidos como Partido Bem-te-vi. Ideologicamentessas facções políticas que se formaram a partir das camadas sociais enriquecidas no final doséculo XVIII, viviam uma indefinição política, que tinha em comum a criação de umaconsciência nacional que se calcava no ódio aos portugueses.

    Esses conflitos atingiram seu ápice durante o governo cabano de Vicente

    Camargo em 1837, quando foram aprovadas duas leis de caráter centralizador pelaAssembléia provincial do Maranhão – a Lei dos Prefeitos e a Lei das Guardas Nacionais –que estendia o poder do presidente da Província por todo o interior do Maranhão,formalizando uma ligação direta do poder policial ao governo e anulando, assim, qualqueparticipação dos fazendeiros do interior, principais colaboradores dos Liberais.

    Para neutralizar qualquer manifestação, através de projetos por parte dos Bem-te-vis, foi reforçado o recrutamento indiscriminado de forma sistemática e arbitrária, que apesade já existir, pelas circunstâncias desse período, ficou conhecido popularmente como ‘tempo

    do pega,’ colocando nas fileiras das Guardas Nacionais muitos dos dependentes que estavamligados aos fazendeiros do interior. Medida que afetava indiretamente os fazendeiros, que

    1 Dados referentes às anotações de viajantes estrangeiros que fizeram suas observações sobre o Maranhão naprimeiras décadas do século XIX, em especial Maria Graham, que apesar de não ter visitado a região, tem seudados corroborados por Frei Francisco Nossa Senhora dos Prazeres que escreveu que “O número de cativos para o dos livres como 2 para 1 pelo menos.” (CALDEIRA, 1991, p. 19-20).2 D. Martinha Alonso Veado Alvarez de Castro foi a esposa do português Garcia de Abranches grandeintelectual dos primórdios da imprensa maranhense e avó do escritor Dunshee de Abranches e que residiu emSão Luís nos tumultuados anos do pós-independência e também no período da Balaiada.

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    perdiam poder sobre sua clientela e diretamente as camadas populares, que se tornaram alvonas intrigas entre os poderosos.

    Os escravos, por sua vez, sentiram o impacto desse conflito. Muitos aproveitarampara se rebelar contra seus senhores, para fugirem das fazendas e para, à sua maneira,contestar contra as condições em que viviam. Muitos deles engrossaram as fileiras dosrebeldes balaios, mas a presença escrava só foi sentida um ano depois, em 1839, quandoCosme Bento das Chagas iniciou uma insurreição em algumas fazendas do interior, facilitadpela evasão de famílias inteiras para a Capital.

    Pela composição social da Balaiada, com livres e escravos, pode-se perceber queapesar de os balaios e os escravos liderados por Cosme não terem o mesmo ideário, asmotivações nasceram do mesmo aglutinado de transformações pelo qual passava a sociedad

    maranhense. Corroborando com Mathias Assunção que afirma o fato do tema da escravidãonunca ter sido colocado como reivindicação pelos rebeldes balaios, entretanto, ter a presençescrava nas fileiras dos rebeldes não foi totalmente um incômodo (ASSUNÇÃO, 1998)Porém, Maria Januária Santos (1983) coloca que a dinâmica do movimento determinoumudanças no comportamento de seus participantes o que possibilitou a aproximação dosbalaios com as motivações da insurreição dos escravos nos momentos finais da revoltaquando a Balaiada já agonizava, mas que desde o início do movimento, houve a rejeição doescravo e a total despreocupação com a sorte deles.

    O letramento da elite maranhense foi um destaque na primeira metade do séculoXIX. Os viajantes estrangeiros que passaram por aqui já retratavam o costume das famíliasenriquecidas de mandarem seus filhos completarem seus estudos na Europa, preparando-ospara futuramente ocuparem os cargos administrativos da Província. A partir do final dadécada de 1830 o Maranhão passa por um deslumbramento cultural decorrente da euforiaeconômica da agro-exportação, passando a cultivar o gosto pelas artes e a adotar um modelode comportamento e de valores que seria responsável por conferir à Província maranhenseuma singularidade que a destacaria no cenário nacional. As habilidades refinadas de escrita

    leitura vão estar presentes não só na literatura, mas também na imprensa que se dizia na épocuma das mais brilhantes do Império.

    As gerações de 1820 em diante receberam uma formação européia, coimbrã, britânica oufrancesa, prevalecendo, contudo, os hábitos parisienses. Uma nova mentalidade daqueles jovens emretorno ao Maranhão permitiu a implantação de certo comportamento europeu. (LACROIX, 2002p. 52).

    Todas essas transformações possibilitaram a projeção da Província no âmbitointelectual e um envaidecimento da intelectualidade maranhense que aos poucos cria o mit

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    da Atenas Maranhense3. Entretanto, toda essa prosperidade econômica e cultural só foipossível graças ao sistema escravista que possibilitou o enriquecimento de uns poucos à custda exploração do trabalho de muitos. Como bem enfatiza Rossini Corrêa (1993, p. 116):

    Os alicerces, as paredes e os telhados das casas-grandes e dos sobrados nasceram daexploração da força dos escravos, responsáveis principais pela produção econômica,de resultados financeiros concentrados no senhoriato, no usufruto ostensivo daopulência e no pagamento da educação européia aos descendentes privilegiados.

    No Maranhão o florescimento cultural, tido como conseqüência do crescimentoeconômico, esclarece a ligação da intelectualidade maranhense com os interesses senhoriaique ia muito além do simples fato daqueles serem provenientes destes. Rossini Corrêa (1993nos fala de dois poderes que se complementam: o material e o cultural. Para este autor, osganhos das lavouras de algodão e arroz foi o sustentáculo para a formação dos intelectuaismaranhenses, enquanto estes davam à classe senhorial sua pena, sua representação política administrativa e, com o poder da palavra combatiam qualquer tipo de oposição e defendiam oseguimento ao qual estavam vinculados, garantindo o lugar dessa classe na organização doEstado Nacional. Coube aos 'intelectuais' da oligarquia maranhense fazer exalar os aresaristocráticos que encobriam a elite da Província.

    Só dentro desse jogo de interesses sobreviveu o liberalismo dos intelectuais, numasociedade escravista como a maranhense, apagando as contradições das teorias européias –seio da intelectualidade maranhense – com as práticas reais. As teorias progressistas epossíveis subversões nunca foram ameaça ou sinal de ruptura da estrutura social vigente,sendo prova disso os vários anúncios que encontramos nos jornais, em que não era raroencontrar o nome de alguns desses intelectuais à procura de seus escravos fugidos. Ou mesmencontrar anúncios de venda em que ao lado de grandes obras literárias o anunciante vendiaescravos. Aqui se situa a verdadeira face da sociedade ilustrada que marcou a história doséculo XIX.

    Os intelectuais maranhenses, também jornalistas que dominavam o meiomidiático mais importante do século XIX, foram os representantes dessa elite ‘ilustrada’ e

    tiveram papel importantíssimo na manutenção da estrutura social escravista. Deixaramtransparecer em suas falas os medos, as pretensões e expectativas que tinham, as quais nãoeram muito diferentes das do grupo dominante do qual faziam parte.

    Assim, os jornais do início do século XIX foram a arma mais poderosa nas mãosdos intelectuais da elite maranhense, na defesa de seus interesses, pois deve-se considerar o

    3 Sobre esse assunto ver A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos, de Maria de Lourdes Lauande Lacroix.

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    importante papel da imprensa enquanto difusor das idéias de um grupo social específico oqual representa.

    A imprensa foi um setor da sociedade que se manteve atento para o

    desenvolvimento de todas as questões que sacudiram o país no início do século XIX. Deacordo com Morel (2003, p. 7), “[...] o surgimento da imprensa no Brasil acompanha evincula-se a transformações nos espaços públicos, à modernização política e cultural dasinstituições, ao processo de independência e de construção do Estado Nacional.”

    Apesar do surgimento tardio, pois só em 1808 com a vinda da família realportuguesa para o Rio de Janeiro, é que se instala a Imprensa Régia, e do fato de numprimeiro momento ela vir atender à “[...] necessidade de se fazer imprimir os atos do governoe de divulgar as notícias interessantes à Coroa"(LUSTOSA, 2003, p. 8), aos poucos se

    desencadeou “[...] o surgimento de inúmeros jornais na Capital do Reino e também nasprovíncias: Bahia, Pernambuco, Maranhão, São Paulo.” (CAPELATO, 1994, p. 38).

    O desenvolvimento da ‘opinião pública’ esteve totalmente atrelado ao processode separação entre Portugal e Brasil. Nessas primeiras décadas os jornais que surgiram sediferenciavam, em geral, pela adoção ou não da causa emancipacionista, que se acirrou aindamais a partir de 1820, ano da Revolução Constitucional do Porto e da percepção dosinteresses de recolonização dos portugueses. Esses jornais foram o meio mais apropriadoencontrado pelas facções políticas para expressarem seus ideais políticos. “Os impressos, suaidéias e informações relacionavam-se de forma dinâmica com a sociedade, circulavam, eramrepetidas e podiam ser reapropriadas.” (MOREL, 2003, p. 44).

    Não esquecemos que os jornais eram um meio de informação limitado e quepoucas pessoas tinham acesso a ele, bem como era pequeno o número de alfabetizados osquais tinham contato direto com as notícias escritas, embora desde de 1817 já circulassemdiários e panfletos com debates de conteúdo político antilusitanismo e anticolonialismo e comideais de liberdade que transpunha a barreira do público estritamente leitor, atingindo até as

    camadas mais populares.A imprensa maranhense acompanhou de muito perto todo o desenvolvimento da

    imprensa nacional e também estava dividida entre os adeptos da causa emancipacionista e ocontrários à independência, ou seja, os periódicos do período estavam sensivelmente ligadoàs discussões em voga nas primeiras décadas do século XIX. Sua gênese esta associada àsdisputas políticas entre facções rivais, à lusofobia e estruturação do Estado, e acompanha atransformações em andamento no âmbito nacional.

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    A estrutura jornalística era quase que exclusivamente dedicada a uma causaespecífica, o que ficava evidente na escolha dos temas e na linguagem empregada. A análisedesta linguagem é reveladora do posicionamento do jornal quanto aos acontecimentos naprovíncia, assim como da influência e participação ativa dos intelectuais na vida públicamaranhense. Localizando o papel da linguagem no interior dos relatos escritos e atribuindolhes valor de signo pelo qual a sociedade se desnuda, consciente e inconscientemente, Duby(1995, p. 136) acredita que:

    [...] é necessário descobrir os termos reveladores, e mais que as palavras, asrepresentações, as metáforas e a maneira pela quais os vocábulos se achamassociados; aqui reflete-se inconscientemente a imagem que tal grupo, num dadomomento, tem de si próprio e dos outros.

    Os longos artigos, a linguagem carregada e panfletária, o estilo incisivo na defesa

    da opinião, ataques aos jornais de idéias contrárias ao governo ou, a defesa intransigente damedidas oficiais, caracterizaram as páginas dos periódicos maranhenses. O tom agressivo dacríticas, em geral, endereçadas sem qualquer dissimulação a um determinado nome daadministração pública ou da alta sociedade, o uso de extenso cardápio de figuras delinguagem, o ataque claro e direto a outros periódicos de idéias divergentes, os artigosextensos e por vezes complexos e os discursos inflamados, marcaram o modo de fazer jornalismo na São Luís da época.

    A imprensa era o principal núcleo dos intelectuais maranhenses na primeira

    metade do século XIX, ao mesmo tempo em que dela se utilizaram para expressar o modocomo viam ou percebiam a sociedade. O papel do jornalista confundia-se, portanto, com afigura do intelectual engajado, movido por convicções políticas, funcionando como umaespécie de incitador dos debates, e no Maranhão se destacava, por ser dotado do poder dapalavra e pela aptidão diferenciada em uma sociedade que, no início dos oitocentos, nutria“pequeno ou nenhum gosto pela leitura” (KOSTER apud CALDEIRA, 1991, p.26).

    De certa forma, a opinião pública surge como uma nova fonte de legitimidadepolítica, daí o caráter partidário dos periódicos, seus representantes acreditavam nisso ao

    ponto de se apresentarem como esse grupo diferenciado do resto da sociedade e nãorelutavam quanto à importância do papel da imprensa:

    Obra digna de sua onnipotencia, a redenção do erro e do barbarismo realisou-a Deos,por meio da acção da imprensa, qual d’antes realizara a redenção da culpa por obrada palavra evangélica, pela missão santíssima de Jesus Cristo.Mas, como Jesus Cristo, a imprensa devia ter os seus dias maós, a sua perseguição etormento, o seu martyrologia...

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    Eis que por toda a parte abrem-se os antros da inquisição para sepultar os apóstolosda filosofia, ascendem-se as fogueiras do fanatismo para abrazar as paginasevangelisadoras da imprensa [...] (O Progresso, 12 de outubro de 1850)

    Nesse artigo transcrito do jornal carioca A Imprensa , a imprensa se supera

    enquanto 'a marcha do progresso', e atinge o grau de evangelho moderno, verdadeira obra dedivina que traz luz à escuridão pelo qual passava a humanidade, tendo seu papel comparado própria missão de Jesus Cristo na terra, como a redentora "do erro e do barbarismo". A faltade liberdade de imprensa é comparada ao martírio de Cristo e seus representantes são tidocomo "apóstolos da filosofia", ou seja, os escolhidos para continuar missão de tão altarelevância. E enquanto quarto poder, ela jamais poderá ser silenciada, tentar reprimi-la seráem vão, pois como a fênix, ela sempre 'renascerá' para se vingar de seus inimigos e algunsfatos históricos são usados pelo autor do texto como exemplo para dar veemência a esse

    argumento.Ainda no artigo, mais uma vez a Europa e os Estados Unidos são citados como

    símbolos de civilização e progresso, dessa vez o fato é que “[...] esses governoscomprehenderão melhor que os outros a destinação providencial da imprensa; deixão-n’a iseu caminho impertubavel [...]” Para este autor, a falta de liberdade da imprensa é fatorsuficiente para tornar esta e a tirania , eternos inimigos.

    Esta era a visão que os jornalistas tinham da imprensa e do que elesrepresentavam para a sociedade. A comparação usada não só designa o lugar que a imprensa

    os jornalistas ocupavam na sociedade, como sugere o respeito que deveria ser-lhes concedidoe essa comparação pode alcançar o efeito desejado numa sociedade onde a religião tinha maipoder que a razão. Mas como todo poder, a imprensa pode ser bem ou mal empregada,precisando em alguns momentos ter seu ímpeto controlado e suas conseqüências medidas, é idéia transmitida por este outro artigo d’O Publicador Maranhense:

    A imprensa tem mudado a face do mundo com os immensos progressos que porcausa della tem feito a civilização: é com effeito um meio admirável de propagar ainstrucção, e de communicar as opiniões [...]. Tem portanto servido de muito ahumanidade, contribuindo grandemente para seu esclarecimento, porem é precisotambém notar que lhe tem sido algumas vezes bem funesta, propagando facilmentelivros máos e idéias perigosas: é uma arma terrível na mão dos malvados ; porém,sempre se abusa das melhores cousas, e nem por isso deixa ella de ser-nos muitoútil.(O Publicador Maranhense, 20 de junho de 1850)

    Apesar da imprensa sempre ser vista por seus representantes como a luz daverdade e o seu poder sempre ser superestimado, ela é passível da falhas e, neste caso, asfalhas são consideradas os abusos que se fazem dela. No entanto, estas falhas, das quais otexto trata, não passam das denúncias de jornais contrários e instigantes, que pregam muito

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    mais que a obediência às Leis e ao governo, e são considerados maus por não se enquadraremno sistema de valores pregado pela elite dominante, pela diversidade de opiniões quedifundem e por contrariar a concepção de mundo que prevalece.

    A estrutura física dos jornais por nós analisados é muito semelhante. Eramcompostos por duas folhas, ou seja, quatro páginas, separação pouco nítida entre as seçõesque pareciam seguir uma seqüência lógica, mas que nem sempre eram constantes. Estasseções tratavam das notícias do exterior, da Capital do Império, das outras províncias e doMaranhão, aqui se publicavam ofícios, relatórios, novidades da Câmara Legislativa e daTesouraria da Fazenda, além das ocorrências policiais, dos obituários, das correspondênciasdas transcrições e, por fim, geralmente na última página, os anúncios e avisos. A partir dessespodemos perceber em que nível estava o comércio com a Europa, com a chegada constante d

    navios que traziam tecidos, chapéus, roupas, mobílias e outros acessórios que enchiam osolhos consumidores de uma elite que se espelhava nos moldes europeus. Esta seção nos dáuma noção das transformações pelas quais passava a cidade de São Luís.

    Acreditamos que a imprensa pertence ao jogo de poder e se transforma em umeficaz instrumento ideológico a serviço do grupo político que a detêm, ao mesmo tempo emque nos jornais encontram-se visões de mundo representativas dos setores sociais que expõemsuas posições e interesses. Dessa forma, achamos de interesse para este trabalho identificar aprincipais ligações dos jornais ludovicenses por nós arrolados e buscar identificar ascaracterísticas mais peculiares inerentes aos discursos por eles proferidos, uma vez que olugar do discurso e as formas de abordar a realidade e lhe atribuir significados variam deacordo com posição ideológica do grupo o qual lhe é representativo.

    Dos jornais que pesquisamos dois deles foram bem efêmeros, não ultrapassando 5ou 6 anos de existência, os outros dois chegaram a ultrapassar uma década. Não chegamos afazer grandes análises da trajetória desses jornais, o que, de certa forma, extravazaria nossorecorte temporal, mas foi possível identificar suas principais características e perceber quais

    posições defendiam ou atacavam, além da forma como contextualizavam a realidade,capturando e reproduzindo sentidos do social, avaliando assim seu poder de construir aquiloque são por eles representados.

    O Publicador Oficial apareceu em 1831 em substituição ao Semanário Oficial, eera uma folha que, basicamente, se ocupava do expediente do governo da época, por isso, àprimeira vista, parece um jornal que só interessava àqueles que faziam parte da esfera política

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    Ficou por cerca de cinco anos na ativa desaparecendo em 1836, circulava duas vezes porsemana e era o mais barato dos jornais que pesquisamos.

    Suas seções mais constantes eram os decretos, os relatórios e os artigos d’Ofícionos quais há uma correspondência mútua das autoridades maranhenses sobre os problemas dProvíncia e mesmo de fazendeiros pedindo auxílio para o problema dos quilombos. Mas, énas seções de artigos não-oficiais e de anúncios que podemos perceber o posicionamento doPublicador Oficial quanto às questões que agitavam o Maranhão.

    Na historiografia sobre a imprensa maranhense o mais significativo queencontramos sobre este periódico está em Joaquim Serra (2001)4 que assim se refere ao jornal: “[...] eram muito limitados os assuntos de que se ocupava.” De certa forma, ao folheaas páginas do Publicador Oficial, fica evidente a sua ligação com o governo e a defesa de seu

    atos, eram impressos todos os dias de sua publicação as atividades governamentais sem muitou nenhuma crítica, não se liam neste jornal aqueles artigos que atacavam diretamente seusopositores, tão comuns dessa época. A não ser em relação à perturbação da ordem e ao abusoda liberdade, em que seu redator era veementemente defensor. Prova disso, é que no seuprimeiro número, apesar não trazer um nota específica sobre suas intenções, traz um grandeartigo transcrito do jornal carioca Diário do Governo intitulado "O uso das palavras Liberdade Pátria" que denuncia sua posição conservadora num momento de agitação política e social, prega o discurso docontrato social , em que o homem social para garantir a paz, a segurança,

    a ordem e a prosperidade “[...] não pode gozar aquela liberdade absoluta e natural em quenasceo”, tem que reprimir os excessos e abusos de liberdade. (Publicador Oficial, 23 de abrilde 1831)

    O jornal Chrônica Maranhense surge em 1838 e tem seu último número em 1841.Era órgão do Partido Liberal e foi redigido por João Lisboa, um dos nomes mais importanteda história da imprensa maranhense. Não foi coincidência o período de vida dessa folha quediscutia com veemência as questões que impulsionaram a Balaiada. Em seu primeiro númerao apresentar seu prospecto, o redator é bem enfático quanto à missão desse periódico,

    movida pelas "[...]aspirações de uma alma cheia de tristes pressentimentos" . Após apresentaros 'sintomas' que acometiam a Província maranhense, o redator esclarece o objetivo da novafolha que consiste em prevenir maiores males decorrentes desses sintomas, e que serãoempregados grandes “[...] esforços e desvelos para pacificar os ânimos que tantos homens

    4 SERRA, Joaquim.Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001.

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    imprudentes ou corrompidos lidam por azedar.” (O Chrônica Maranhense, 02 de janeiro de1838)

    A ligação do Chrônica com o movimento da Balaiada era tão forte que todos osdias se tinham notícias sobre a revolta, e por vezes seu redator foi acusado de insuflar asmassas e de ser o influenciador teórico do movimento. O que não deixa esconder o verdadeirinstrumento de combate à revolta dos balaios que se tornou esta folha, pois seu redator, apesade perceber e denunciar os abusos de poder das autoridades maranhenses não tinha nenhumaintenção de destruir a ordem vigente. Fato que evidenciava os limites do liberalismomaranhense.

    Na obra de Joaquim Serra (2001) não são poucos os elogios a esse periódico quesaía duas vezes por semana. O Chrônica Maranhense, segundo este autor, foi nada menos qu

    a melhor folha de quantas se publicaram no Maranhão. Em suas páginas encontramos seçõeque parecem seguir uma seqüência, começando com os artigos oficiais sobre o exterior e aCapital, as notícias das outras províncias e do Maranhão, em geral as novidades da revolta dobalaios. Na seção de correspondência ao redator, são constantes as cartas inflamadasdefendendo ou acusando alguma personalidade importante no cenário político de então. Haviainda a seção Variedades, os editais e os anúncios.

    Dos jornais que analisamos, o Chrônica Maranhense foi a folha que mais pareciafalar por si mesma, e por isso, a primeira vista era o jornal que mais deixava transparecer sua

    motivações e seus medos enquanto expressão viva de uma sociedade apavorada com osefeitos de uma guerra civil, ao mesmo tempo em que pareciam tão vivas as relaçõescotidianas da cidade de São Luís, e que, apesar de ser um órgão do Partido Liberal, nomomento mais tenso da Balaiada, recuou e mostrou seu lado verdadeiramente conservadorNesse momento, o Chrônica valeu-se da estratégia de minimizar os episódios da participaçãe rebeldia dos escravos para aliviar a tensão social causada pela revolta.

    O Publicador Maranhense surge no ano de 1842, tendo a frente de sua redaçãoJoão Lisboa que assume uma postura menos polêmica e agressiva quando da redação do

    Chrônica Maranhense. Possivelmente, por ser um órgão oficial, e apesar de continuardiscutindo algumas questões inerentes àquele período, passa a usar um tom menos diretorevestindo-se de uma pretensa neutralidade. Podemos dizer que a redação do PublicadorMaranhense marca uma fase de transição na carreira desse jornalista – carreira comum aosintelectuais do período que se utilizavam da imprensa como um trampolim para a carreirapolítica –, que a essa época já tem pretensões a uma cadeira na Assembléia Legislativa naProvíncia.

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    Esta folha saía três vezes por semana até 1862, quando se torna diário. Por seucaráter oficial, publicava o expediente do governo com os relatórios dos atos administrativoso que dava a esse periódico um aspecto sóbrio e ao mesmo tempo carregado. Sua estruturanão era muito diferente do que já vimos até aqui. As seções Parte Official, Governo daProvíncia e Thesouraria da Fazenda se ocupavam dos ofícios, requerimentos e decretos entreas autoridades governamentais do Império e da Província. As notícias e publicações de outropaises e províncias, as novidades do comércio, as correspondências, as variedades, folhetins anúncios eram as outras seções que completavam as páginas do Publicador Maranhense.

    Uma seção que diferenciou esta folha pela sua constância – pelo menos durante osdois primeiros anos de sua publicação – foi a seção da Repartição de Polícia, pois em nenhumoutro periódico ela foi tão constante. Aqui as personagens mais comuns foram os escravos

    Eram relatados os motivos e as infrações que levavam à prisão ou detenção, as circunstânciada apreensão e as posturas mais infringidas. De certa forma, esta seção e a dos anúnciosdentre os quatro jornais que analisamos, O Publicador Maranhense foi o que mais deu espaçoa estas publicações, nos permitindo perceber melhor o cotidiano da São Luis da primeirametade dos oitocentos, nos aproximando das representações mais comuns e dos valores quedominavam o imaginário dessa sociedade.

    No seu primeiro número, ao apresentar o prospecto, anunciava sua ‘missão’, quese fazia contrária daqueles periódicos que surgiam a essa época – ou seja, um ano após o fim

    da Balaiada – os quais “revolviam os punhais nas feridas ainda abertas”. Por isso, sua tarefaera “romper a monotonia de tais discussões”. Seu redator ao corroborar que não estaria ligadou defendendo nenhum partido enfatizava: “E nos o declaramos alto e bom som para evitaengannos e suposições a que a época poderia facilmente dar lugar”. (O PublicadorMaranhense, 7 de julho de 1842)

    Baseado nesse discurso de neutralidade partidária traz ainda, no seu primeironúmero, um longo artigo esclarecendo que o dualismo político-partidário da Província nãopassava de uma constante disputa familiar para tomar controle da máquina estatal, e que não

    havia qualquer rigidez ideológica que separava partidos Cabanos e Bem-te-vis, sendo que amaior prova disso foi o apoio mútuo dos partidos ao presidente da Província para combater revolta dos balaios, exemplo de movimento revolucionário e dos riscos à paz públicaapontado como resultante das divergências partidárias.

    O que percebemos na fala do Publicador Maranhense é o discurso de ‘ordem eprogresso’ já pregado por outros jornais após a avaliação dos riscos de uma revolta popular

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    para a organização do trabalho e para a estrutura social. Apesar de pregar em ‘alto e bomsom’ uma rigorosa neutralidade não há em momento algum o descomprometimento com arealidade política faccionária da Província.

    O Progresso foi a primeira folha diária da Província. Surgida em 1847, sob a capade liberal, trazia muitos melhoramentos técnicos e inovações na imprensa maranhense, comoadiantava seuslogan : ‘Le progrés est um avancement vers le mieux’. É nesta folha queencontramos o melhor ajuste das teorias liberais numa sociedade eminentemente escravista.(OProgresso, 02 de janeiro de 1847)

    A visão que o jornal tinha de si era de um periódico avançado que mostrava suaspreocupações com a prosperidade e o progresso da Província, os quais só seriam alcançadoquando a rixa partidária se fundisse em um único pensamento: a conciliação, a fusão complet

    dos partidos. O Maranhão parecia acompanhar de muito perto o processo histórico que sedesenrolava no Brasil, a caminho de um período de estabilidade conhecido como Conciliaçãoque não passava de um arranjo político entre liberais e conservadores que garantiu aconsolidação do Império Brasileiro. Por este motivo apoiava o programa conciliador dopresidente da Província, vendo neste a única 'tabua de salvação' para reorganização e o futurodo Maranhão.

    [...] porque o povo [...] sabe que preciza de paz, de união, de seguridade e ordempara poder resolver suas faculdades e empregal-as em proveito seu e de seus irmãos;para fundar e assentar incontrastavelmente a marcha santa de liberdade e daigualdade sobre a única baze indestructível e eterna == o trabalho creador == aindustria: == o povo tem consciência de qual é seu augusta missão sobre a terra, eprecisa e quer mudar de situação: porque a actual não é verdadeira, é dedesorganização, é revolucionária, é filha legítima da situação de 1839 e 1840. (OProgresso, 09 de janeiro de 1847)

    Mais uma vez a Revolta dos Balaios é citada, mostrando o temor causado naselites dirigentes com um movimento que mobilizou uma grande massa marginalizada docírculo decisório do poder. Sob ideários de liberdade e igualdade, a fala é direcionada ao'povo', ao mesmo tempo em que o texto fala pelo povo, o qual toma para si toda aresponsabilidade de atingir o progresso e garantir a tranqüilidade pública, isentando qualque

    ação política por parte das rusgas partidárias. Esta passagem evidencia a importância do papeda imprensa no processo de centralização do poder, mostrando que esta situação de rebelião falsa, ocultando as contradições e os conflitos sociais.

    Quanto à estrutura física d’O Progresso, diremos apenas que este jornal, apesar depossuir as mesmas seções que os outros até aqui analisados, tem um aspecto peculiar quanto uma seção que levava o nome do próprio e que eram considerações mais pessoais sobre asquestões mais urgentes da época. Estava bem atualizado quanto às críticas ao trabalho

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    escravo, que sempre pincelado sobre um fundo econômico – característico do antiescravismobrasileiro – era considerado improdutivo e ineficaz para os novos tempos que se desenhavam

    Assim como os outros periódicos, a maior parte dos artigos era transcritos de jornais do Rio de Janeiro, o que nos comprova algo bastante curioso e não menos interessanteas críticas produzidas ou repetidas pelos jornais ludovicenses ficavam num plano maissuperficial, nunca sendo apontadas diretamente aos proprietários maranhenses, que eram oprincipal alvo dos 'ataques literários' à manutenção da escravidão.

    Possivelmente, esta foi a forma mais sutil encontrada pelos intelectuaismaranhenses, muitos deles jornalistas, para ajustarem seu liberalismo à sociedade em queviviam. Não pretendiam mudanças radicais na estrutura social, não podiam negar a ligaçãoquase umbilical que mantinham com uma classe de poderosas famílias proprietárias de terra

    e de escravos, que indiretamente foi o sustentáculo de toda a primorosa educação destesparcos maranhenses que completaram seus estudos nas universidades européias e garantiram esta intelectualidade sua posição confortável na sociedade. Mas conseguir juntar em um únic'balaio' teorias liberais e escravidão, além de contrabalancear pressões externas pelo término pressões internas pela continuidade do tráfico e do sistema escravista, não foi tão fácil assimForam décadas agitadas e decisivas para a consolidação das estruturas de poder, não só naProvíncia Maranhense, mas em todo o Império Brasileiro.

    A imprensa foi o meio difusor e propagador dessas idéias e das suas contradições.

    Mesmo como espaço de representação do real, ela é o fruto de determinadas práticas sociaisonde percebemos o poder de intervenção na vida social. No Maranhão, ela surge como umaarma de persuasão muito eficaz no momento decisivo de firmação das classes dirigentes nopoder, eliminando qualquer obstáculo aos interesses dessa classe, especialmente amanutenção da ordem escravista e o alijamento das camadas populares das decisões políticas

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    2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A MOBILIDADE ESCRAVA NAS‘RACHADURAS’ DA IDEOLOGIA LIBERAL-ESCRAVISTA

    A continuidade do tráfico de escravos africanos para o Brasil, durante toda aprimeira metade do século XIX, está intimamente ligada ao processo de independência e àconstrução do Brasil enquanto Estado autônomo. A escravidão negra representava não só osuporte de toda prosperidade econômica da Colônia como, ao mesmo tempo, era a pedraangular de manutenção de sua unidade territorial, se tornando a base de consolidação doImpério brasileiro.

    Apesar das luzes da ‘era das revoluções’ com todos seus ideais liberais e teoriaseconômicas e a crescente pressão inglesa contra o tráfico negreiro ter contribuído para ocolapso do sistema escravista na maioria das colônias européias na América, no Brasil, operíodo em que o tráfico foi considerado clandestino, de 1831 a 1850, a média anual deimportação de cativos não diferiu muito de nível em relação ao período de sua legalidade5.Fato explicado no contexto econômico, pela crescente demanda de mão-de-obra escrava nafazendas de café que começavam a despontar no sudeste do Império.

    Para a emergente Nação brasileira, o tráfico de escravos se tornou um problemapolítico que se impôs antes mesmo de efetivada sua separação da Metrópole portuguesaAinda em 1810 D. João – a principal autoridade portuguesa que se fixara no Brasil desde1808 – assinara o "Tratado da Aliança e Amizade" com a Inglaterra, que dentre suasdeterminações estabelecia a gradual extinção do tráfico negreiro. Esta foi uma questão queperpassou todo o processo político de formação do Império brasileiro e de suas relações com Inglaterra, desde a transferência da corte real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 até oreconhecimento externo da independência.

    Para a Inglaterra, que intermediou as negociações internacionais para oreconhecimento do Brasil enquanto nação independente, interessava reforçar os privilégioscomerciais mantidos com a ex-colônia desde a abertura dos portos. Assim, com o Brasil cadavez mais atrelado e dependente das relações com a Inglaterra, em 1827 é assinado um novoacordo que estabelece, além de mais privilégios e concessões aos navios e mercadoriasinglesas, a extinção do tráfico negreiro em, no máximo, três anos.

    5 Segundo os dados referentes às médias anuais de importação de cativos analisados por Kátia Mattoso que vãode 1826 a 1851, a autora concluiu que as diferenças foram mínimas entre elas, ao ponto de não haver alteraçõessignificativas no nível médio de importação. ( MATTOSO, 2003, p. 61-2)

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    É interessante notar que a Inglaterra, na qual desde 1810 já exigia o fim do tráfico,não colocou a questão como prioridade para aceitar a independência do Brasil, uma vez queera ciente da base de sustentação do Império: a classe dos grandes proprietários de terras eescravos e que a cessação imediata do tráfico de escravos para o Brasil acarretaria gravesproblemas na afirmação de sua elite dirigente e manutenção da unidade territorial. Valelembrar ainda o que diz Alfredo Bosi (1988) sobre a abolição da escravidão em países como própria Inglaterra, a Holanda e a França, onde os proprietários foram ressarcidos comindenizações, fato que ratifica que mesmo no pensamento liberal burguês desses países,baseado na ideologia do trabalho livre, o que prevalecia era a vontade de autonomia docidadão-proprietário.

    O período que nos atemos tem como pano de fundo todas estas questões no

    âmbito nacional e que serão pulsantes por todo o período de consolidação do Império até aLei Eusébio de Queiroz, que extingue em definitivo o tráfico de escravos africanos para oBrasil.

    Os discursos proferidos em defesa do tráfico, especificamente, e do regimeescravocrata no geral, sob a capa liberal ou conservadora, sempre se alinhavam com interesseoligárquicos e revelavam a verdadeira face dos pensamentos dominantes da classe políticabrasileira, que se utilizava de argumentos bastante eficazes para justificar a escravidão. Diziase que a escravidão era um meio encontrado para moralizar e civilizar os povos inferiores e

    ainda, que toda a prosperidade econômica, a segurança e a integridade nacional ruiriam com fim do tráfico, por isso a escravidão justificava-se como um 'mal necessário'. E em últimainstância, se valeram dos próprios princípios liberais para justificar a continuidade do tráfico.

    No Brasil, a segunda maior sociedade escravista, também eram exigidas asliberdades tão proferidas na Europa: liberdade de produzir, de mercar e de representar-se nocenário político. Aplicada ao Brasil, chamava-se assim, 'liberal' a nova prática mercantil póscolonial – ou neocolonial – que via na proibição do comércio negreiro uma restrição à livreiniciativa, tanto do vendedor quanto do comprador da força de trabalho. Firmava-se uma

    estreita conexão da economia nacional com as necessidades do mercado internacional e comtráfico negreiro. A esse ajuste de idéias liberais aos interesses específicos da burguesiaagroexportadora brasileira, Bosi (1988) chamou de ideologia liberal-escravista.

    É importante ressaltar que nem sempre as teorias estrangeiras se ajustam asespecificidades do lugar onde elas são aplicadas, e no caso do Brasil, a contradição daaplicação da teoria liberal num sistema baseado no escravismo gerou cisões que colocaram

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    escravos, se viu sem saída diante do bloqueio promovido pela esquadra inglesa num certoponto de desembarque na costa brasileira. O texto é narrado de forma a pôr em dúvida ooficial inglês que foi o relator dos fatos, com expressões como ‘segundo se diz’, ‘segundoparece’, pois para o redator, parecia impossível acreditar que um europeu, mesmo umtraficante de escravos, pudesse cometer tal ato, ainda mais com uma justificativa tãoimprovável como os sustento de escravos, que segundo o redator, é de um custoinsignificante.

    E para reforçar sua tese de que não haveria motivos que levassem um europeu atomar tal atitude, o redator termina o texto confirmando não só a continuidade do tráficoilegal de escravos como ainda demonstra a facilidade dos negreiros em burlar a legislação.

    Os negreiros sabem perfeitamente que podem embarcar os escravos em um abrir e fecharde olhos. Todas as notícias que temos nos dizem que, máo grado os cruzadores, continúa a

    fazer-se o tráfico com toda atividade e a dar grandes lucros.E pois não he provável que a matança de dous mil negros nas Gallinhas fosse acto de umnegreiro europeu. He porem muito possivel que esses desgraçados fossem decapitadospor ordem dos chefes indígenas que não achassem meios de vendê-los. Essas scenas decarnagem repetem-se continuamente na costa d’África, e parece certo que se tornarammais freqüentes depois que a venda dos escravos se tornou mais difficil. (O Progresso, 06de julho de 1847)

    Na fala é possível perceber a idéia que se tem dos europeus, os quais teriamatingido um alto nível de civilização, os impossibilitando de cometer atos criminosos comoum massacre de dois mil negros. E a argumentação é reforçada quando se faz a oposiçãodessa imagem do europeu civilizado com a dos chefes africanos considerados bárbaros, osquais, pela sua índole natural, seriam muito mais capazes de cometer atos tão brutos quanto massacre dos negros, e eles sim, o fariam por questões financeiras. E para que não fiquedúvida alguma da natureza dos africanos, ávidos por dinheiro, o autor do artigo faz umapequena descrição do que seria uma verdadeira 'caçada' que acontece entre eles próprios quenão respeitam nem os laços familiares vendendo uns aos outros no momento mais oportuno.

    Para este redator, todas estas situações são conseqüências, não do sistemaescravista que provoca a desestruturação de sociedades africanas, impondo a renovaçãoconstante de mão-de-obra escrava, através do comércio de africanos, mas o que levaria a tudisso, era a imposição da legislação repressora do tráfico de escravos. E conclui de formataxativa: “Em uma palavra o tráfico não diminue sensivelmente, torna-se assim mais atrozTal o resultado mais claro do novo systema de repressão, de que tanto se glorificou o nossogoverno. (O Progresso, 06 de julho de 1847)

    Logicamente que a escravidão não teria sua legitimidade colocada em dúvida ouseria responsabilizada por fatos como esses, mas a questão é colocada de uma forma tão

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    simplista que, no máximo, o artigo desferia uma crítica às medidas tomadas pelo governo parreprimir o tráfico negreiro. No entanto, os argumentos usados para fazer tal crítica terminampor evidenciar o preconceito que marcou todo o século XIX, o eurocentrismo que colocava dum lado o europeu civilizado e cordato, e do outro o africano bárbaro e violento, um jogo deimagens contrárias que foi bastante utilizado nos discursos dos jornais.

    O artigo supracitado, por exemplo, foi transcrito do periódico carioca Jornal doComércio, e apesar de extenso, é de fundamental importância para analisar algumas questõereferentes ao tráfico e a oposição entre europeus e africanos que marcava não só o imaginárioludovicense, mas o brasileiro em geral. Sobre esta questão, que coloca em oposição europeue africanos, falaremos mais especificamente na segunda parte deste trabalho.

    Boa parte dos artigos que discutiam a questão do tráfico de escravos foi transcrita

    de jornais como o Jornal do Comércio, o periódico de maior circulação na Capital do Impérioe que, por publicar os atos e leis do governo e as discussões parlamentares sem opinar oufazer críticas severas, pairava sobre este uma idéia de imparcialidade e respeitabilidade. Nãsó o fato da proximidade com olócus das discussões, mas provavelmente pelas idéias que elesdefendiam e pela sobriedade com que as apresentava, fosse considerado digno de transcriçãopelas folhas maranhenses, que tinham, por isso, a mesma característica de publicar atosoficiais.

    Em alguns casos, os trechos mais significativos – ou os que lhes interessava – da

    própria sessão entre os senadores ou deputados eram transcritos literalmente. De certa formaacreditava-se que o jornal, ao deixar os políticos falarem por si mesmos, revestia-se de certneutralidade, justamente a capa que os jornais maranhenses tentavam se vestir, por exemploao publicar os ofícios entre as autoridades e os atos do governo provincial.

    Dois dos jornais que pesquisamos e que estavam na ativa durante as discussõessobre a questão do tráfico, O Progresso e O Publicador Maranhense, tem opiniões bemparecidas e até transcrevem o mesmo jornal, Jornal do Comércio, que segundoGonçalves &Silva(2001)6, apesar de não esta vinculado à máquina estatal, é difusor da ideologia

    dominante que defendia a manutenção da ordem escravista e a centralização do poder políticsob o regime monárquico. Desta forma, os jornalistas ludovicenses preferiram se omitir edeixar que falassem por eles. No entanto, as transcrições representavam o primeiro indício da

    6 Artigo de Maurício José da Silva e Alex Gerson Gonçalves, intitulado "Um ensaio sobre a consolidação doEstado Nacional e o papel da imprensa" (2001). Disponível em: .Acesso em 22 de outubro de 2006

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    posturas assumidas pelos periódicos maranhenses diante das principais questões do momentodentre elas o tráfico de escravos e as relações com a Inglaterra.

    Nos outros jornais ludovicenses as incursões inglesas em mares brasileiros e oapresamento de embarcações suspeitas de fazerem o tráfico de africanos sempre éapresentada, mesmo em forma de documentos oficiais que usam de uma linguagem maissóbria, como uma injúria à Nação Brasileira, um desrespeito a autoridade brasileira quesegundo os mesmos jornais, não nega esforços para que se faça cumprir a lei. E apesar dissosempre são detectadas irregularidades e contravenções por parte dos ingleses, sempreacusados de abuso de poder e contraventores das leis que regem as relações internacionaisentre os dois paises. Num comentário de João Lisboa, redator do Chrônica Maranhense arespeito de um desses ofícios, encontramos:

    Nós cremos que o motivo da violencia foi a insolencia que tantas occorrenciassimilhantes há produzido nas relações das nações poderosas com as mais fracas, eque a satisfação, attenuando um pouco a gravidade do facto, não isenta os culpadosdas penas que lhes impõe as leis que elles quebrataram. (Chrônica Maranhense, 27de fevereiro de 1841)

    A violência a qual se refere o redator maranhense foi mais um dos constantesapresamentos de navios brasileiros suspeitos do comércio ilegal de escravos pela esquadrainglesa, o qual não foi constatado a denúncia, colocando os responsáveis pela missão emconstrangimento pelo não cumprimento das normas que orientam as formas de abordagenneste tipo de situação.

    Os jornais maranhenses refletem as angústias nacionais em relação a proibição dotráfico de africanos, que por muitos anos passa a ser vista como uma necessidade impostapelas exigências do governo britânico e pelas violências cometidas pela suas tripulaçõescontra embarcações brasileiras. Apesar do Tratado de 1827 e da Lei de 1831, foi convenientepara o governo brasileiro não discutir o assunto, atitude considerada prudente, que no entantocom os incidentes cada vez mais freqüentes no litoral brasileiro, as autoridades públicas sesentiram obrigadas a reconhecer o fato e reparar os erros, a fim de não piorar ainda mais asrelações com o governo britânico.

    Paralelamente a estas angústias, também pudemos perceber nos periódicosmaranhenses as aflições sociais dum Império periclitante, pois relações internasconvulsionavam-se e a introdução massiva de escravos na sociedade acentuou ainda mais adiferenças sociais provocando em alguns momentos a revolta popular e a insurreição dosescravos em diversos pontos do território nacional, chegando a pôr em risco não só a estrutursocial vigente, como a própria consolidação do Império Brasileiro.

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    Apesar do processo de independência no Brasil não ter deflagrado umaencarniçada luta entre os grupos sociais, como ocorrera com a maioria das ex-colônias naAmérica, pois a briga que acontecera aqui foi entre os interesses dos colonos e os projetosrecolonizadores dos portugueses, a separação ‘pacífica’ não implicou em uma imediataestabilidade política.

    O período de nove anos do reinado de D. Pedro I foi marcado por tensões e forteoposição dos novos políticos brasileiros sempre ligados aos proprietários rurais e também dhomens fiéis ao parlamento inglês, que não viam com bons olhos os projetos dinásticos doimperador o que culminou com a abdicação de D. Pedro I em 1831. Sua política absolutistareforçada pelo poder Moderador, evidenciada na repressão à Confederação do Equador, e aforte ligação com a política portuguesa que o fazia enviar vultosas somas para manutenção d

    poder também na antiga metrópole reforçavam sua posição ambígua sempre com um pé noBrasil e outro em Portugal, razões que contribuíram para sua derrocada.O vazio de poder provocado pelo afastamento do Imperador deu espaço à

    violentas disputas entre as várias facções da aristocracia rural entremeadas por manifestaçõerevolucionárias das camadas populares. O período regencial iniciado em 1831 foi marcado ato fim por revoltas regionais que não deixaram de fora, pelo menos desta vez, as camadaspopulares e até os próprios escravos, principalmente no Norte e Nordeste.

    Como já era costume os senhores de terras e escravos armarem seus escravos, pois

    “[...] o Brasil nasceu herdando um amplo uso militar dos cativos, desde as lutas pelaindependência a classe senhorial arma seus dependentes e escravos de confiança paradefender o partido de sua escolha” (CARVALHO, 2005, p. 887). Fato que colocou essaparcela da população em contato com idéias liberais e possibilitou releituras, por parte dosescravos, do discurso anticolonial que usava termos como ‘liberdade’, ‘grilhões’, ‘escravidãoe ‘independência’ para caracterizar as relações entre o Brasil e Portugal.

    No Maranhão foi uma realidade a participação de escravos nos movimentos queagitaram a Província na primeira metade dos oitocentos. Apesar da participação de membro

    das camadas populares nesses conflitos esconder o verdadeiro conflito intra-oligárquico quemarcou a nossa história, é impossível pensar que aquelas pessoas saíram incólumes dessesmovimentos, sem desenvolverem certa consciência crítica da sociedade a qual estavaminseridos, e uma profícua visão de futuro. De acordo com Carvalho “[...] isso não impedia oexcluídos de fazerem suas próprias leituras dos processos que viviam, interpretando osacontecimentos em que estavam inseridos através do prisma fornecido por suas condiçõesgerais de existência, formação e consciência.” ( 2005, p. 881).

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    Muitos escravos que tiveram grande participação no processo de adesão àindependência no Maranhão participaram dos lustros7 e até deram peso às forças libertadorasque derrubaram, em São Luís, o governo controlado por portugueses até 1823, tinhamtambém seus objetivos: queriam em troca sua própria liberdade.

    Apesar do Maranhão ter aderido tardiamente à independência com a implantaçãodo primeiro governo brasileiro em 1823, a elite portuguesa manteve muitos dos seusprivilégios concedidos desde o período colonial, assim como a maior parte dos cargospúblicos nas instâncias superiores da Província como no exército e no judiciário, além docontrole do comércio. Motivo que impulsionou os liberais exaltados maranhenses a exigirema completa expulsão não só dos portugueses que ocupavam os cargos públicos como de todoaqueles que foram opostos à independência. Este episódio ficou conhecido como Setembrada

    Para atrair o maior numero possível de adeptos, os jornais a favor do movimento proferiamdiscursos como este:Maranhenses! Meus amados Patrícios, não vedes aqui o braço oculto dos partidosinimigos da Liberdade? [...] Não vimos a união que reinou entre os nossosconcidadãos militares, e o povo no sempre lembrado dia 18 de Setembro? [...] Emque se fundão esses monstros para espalharem que os Brasileiros que tem côrbranca, menospresão os que tem a côr parda? Quantos patrícios nossos “pardos” nãoestão empregados; quantos não merecerão os suffragios da elleição popular? Quemos despreza, malvados são os marinheiros, e esses corcundões que ainda fallão emfidalguia no Brasil livre!Todos somos Brasileiros, todos somos iguaes perante a Lei; a côr é indifferente: omerito do homem é quem lhe dá consideração na sociedade, os seus vícios só opodem tornar despresível entre os seus semelhantes...

    Maranhenses! Alerta! Preveni-vos contra as trahiçoens dos nossosinimigos...Lembrai-vos do Brasil; da Liberdade, e ficai sertos que só a União poderálivrar-nos dos nossos inimigos e salvar o Brasil e a Liberdade. (Farol Maranhense,18 de outubro de 1831)

    Apesar de o artigo não apresentar explicitamente nada sobre os cativos, é bemenfático em relação à questão de que somente a união de todos os brasileiros – militares e opovo –, não importando a origem ou a cor, alcançaria a verdadeira liberdade, e que todos sãoiguais perante a lei. O fato é que o povo que sempre ficou à margem das decisões políticasera composto por livres pobres, na maioria pessoas de cor (mestiços, libertos, forros e até

    escravos fugidos se passando por libertos), que querendo ou não, mantinham algumaidentidade cultural com os escravos negros, além de sofrerem preconceitos pela cor da pele discriminação na justiça, podendo “[...] ser sujeitados às mesmas medidas disciplinares que osescravos e ser controlados na sua liberdade de movimento” (ASSUNÇÃO, 1998, p. 14)

    7 Surras que, durante a noite nas ruas e becos escuros de São Luís, sofriam os portugueses quando voltavam parasuas casas.

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    Este texto nos traz outras informações importantes sobre as circunstâncias domomento e algumas características reveladoras da sociedade maranhense. O preconceitorealmente existia nessa sociedade, é nisso que os portugueses chamados, no artigo, de"Marinheiros e Corcundões", se fundamentaram e aproveitaram para atiçar a “gente de cor” criar cisões entre as camadas populares e os liberais maranhenses. Muitos estigmas recaíamsobre os mulatos no Maranhão, considerados como ‘classe perigosa’, e chamadossarcasticamente de cabras ou bodes. Mathias Assunção é enfático em dizer que essadiscriminação era uma influência do próprio regime escravista. E sobre a participação doescravos nos movimentos da primeira metade do século XIX, lança a seguinte questão“Existiam neste período intentos de mobilização popular ultrapassando as barreiras entrelivres e escravos, entre negros e cablocos?” (1998, p. 23)

    Em O Cativeiro obra de Dunshee de Abranches (1992), numa das cartas de DonaMartinha, esposa de Garcia de Abranches, do qual o filho Frederico Magno foi um dos lídereda Setembrada, se referindo ao movimento afirma que os cativos formaram o grosso da masspopular que se reuniu em frente ao Palácio do governo para exigir as reivindicações deexpulsão dos portugueses. E que, depois de controlado esse levante, ainda resistiram comoinsurretos no interior por mais dois meses (ABRANCHES, 1992, p. 27).

    Outro movimento com grande participação popular e de escravos, onde ficouexplícito que esses não eram apenas marionetes nas mãos dos poderosos e que defendiam

    interesses próprios na luta, foi a Balaiada entre 1838 e 1841, um movimento que começoucomo mais uma das rixas entre as facções políticas e tomou um rumo totalmente diverso doque imaginavam seus primeiros colaboradores, os liberais exaltados, chamados popularmentde Bem-te-vis.

    Dentro dos limites deste trabalho, mais importante do que relatar a Balaiada efazer grandes análises sobre esse movimento que refletiu tão perfeitamente as convulsõespolíticas e sociais da época, é a reflexão sobre a participação dos escravos negros nummovimento que abalou as estruturas de poder no Maranhão provincial e que possibilitou a

    criação e a reafirmação, por parte das elites maranhenses, de várias imagens sobre os negrosenvolvidos na rebelião ou ‘persuadidos’ pelos rebeldes balaios.

    A historiografia mais atual é concisa quanto à relação da origem da Balaiada comos conflitos que se fizeram no Maranhão desde a época da Independência, ou seja, fazia partde uma luta política “[...] resultante das divergências dentro do grupo dominante acerca damelhor forma de governar o país.” (JANOTTI, 1998, p. 46). Entretanto, no Maranhão, essadisputa atingiu o nível de guerra civil, colocando em risco a manutenção da ordem escravista

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    com a participação cada vez maior das camadas populares na vida política e privada daProvíncia.

    Cabe, então, repensar o momento em que o movimento se torna uma ameaça realà ordem estabelecida com a entrada do negro Cosme Bento das Chagas na luta e a adesão demilhares de cativos ao movimento. A heterogeneidade do movimento e a divergência deinteresses das diversas categorias sociais que o compunham, fatos registrados por autorescomo Dunshee de Abranches (1992), Maria Januária Vilela Santos (1983), Maria de LourdeMônaco Janotti (1991) e do próprio Mathias Assunção (1998) talvez responda à questão doparágrafo anterior quanto o envolvimento de diversos grupos sociais e de diferentes interessenos levantes revolucionários da primeira metade dos oitocentos.

    Sentiam-se já as conseqüências do longo período em que dominadores vinhamarmando os dominados, para empregá-los como instrumentos de suas aspirações,

    esquecendo-se, contudo, de que homens não são instrumentos passivos. O medo deuma revolta da população mestiça e escrava propagava-se com vigor. (JANOTTI,1991, p. 34).

    Esse desvencilhamento de objetivos e o rumo diferente que a Balaiada tomoumostraram que assim como nos movimentos antecedentes a este, a classe senhorial quesempre armara sua clientela e seus dependentes para defender seus interesses, podia perder ocontrole da situação e passar a ter como inimigos aqueles que outrora estavam sob seucomando.

    O grande contraste da abertura liberal dentro do escravismo brasileiro foi

    justamente esse contato dos escravos e das classes subalternas com o ideário liberal eanticolonial, que possibilitou desenvolver uma visão crítica da sociedade usando essesdiscursos a seu favor e como instrumentos para atingir seus interesses e objetivos.

    O perigo de usar as camadas populares como instrumento de manipulação paraalcançar interesses próprios pelas classes dirigentes não passou despercebido por algumaspessoas mais 'iluminadas' do período, que percebiam o nível de conscientização que o 'Povopoderia alcançar e o risco das agitações populares ao manifestarem suas própriasreivindicações:

    O uso que se faz da liberdade é injusto, quando transpomos as raias que nosprescrevem as leis: é ilícito, quando se não encerra nos limites marcados pelo pactosocial [...] Quando se diz que os homens são livres por natureza, não se quersignificar que os homens nascem em uma inteira independência [...] Faço esta nota,porque esta folha pode ser lida por homens rudes que confundem os termos [...] Nãocuidemos, todavia que a liberdade possa estabelecer uma igualdade quimerica que anatureza recuzou aos homens. (Argos da Lei, 04 de fevereiro de 1825)

    A liberdade que era a esse momento a palavra de ordem nos discursos dospatriotas maranhenses, apesar de ser constantemente proferida não poderia ser entendida d

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    qualquer maneira e por qualquer 'homem rude', não se poderia fazer uso abusivo do termoEssa liberdade não queria dizer igualdade, pois estava definida nos limites da ordem social. Enão podemos esquecer que estamos falando de uma sociedade escravocrata e rigidamentehierarquizada em que cada membro tinha seu o seu papel, e que, segundo o redator, era ditadpela natureza e por isso a igualdade não passaria de um sonho.

    Cinco anos depois, no jornal Farol Maranhense8, maior representante doLiberalismo Maranhense, também encontramos apelos de seu redator, o jornalista JoséCândido, para o perigo de se confundir liberdade com a ausência de leis. Para ele a"Liberdade e as Leis" , sempre escritas com letra maiúscula, andam juntas e aquela não existesem esta, não pode existir ao lado de agitações e perturbações sociais, pois à sua companhiasó andam a tranqüilidade e a paz.

    Só com Leis soberanas conformes á natureza do homem, he que a Sociedade pódeser feliz e tranquilla, e que os Cidadãos podem gozar de Liberdade. [...] Eis aondeestá a verdadeira Liberdade; he á sombra de Leis santas que existe o repouso, asegurança, e a verdadeira felicidade [...] Não confundamos o momento de quebrar osferros com o tempo do gozo da Liberdade. Em quanto hum Povo lucta contra seusopressores, não goza da Liberdade, está apenas trabalhando por gazal-a. ALiberdade he companheira da paz, da tranqüilidade. Não sabem alguns defensoresdesta sagrada causa o mal que lhe fazem, apresentando-a sempre cercada deagitações e perigos [...] He da natureza do homem querer tranqüilidade, e he por issoque todos trabalhão; não podem portanto sympatisar com huma causa, que lhes dãocomo destruidora ou incompatível com essa tranqüilidade. (Farol Maranhense 24de setembro de 1830)

    Apesar de o 'Povo' ser sempre chamado a lutar contra os 'inimigos da liberdade',

    em defesa do Maranhão, "sua tendência para revoluções" não deve se sobressair às leis quepromovem a paz e a tranqüilidade. E esse ímpeto de exaltação deveria ser controlado, poissegundo as idéias pregadas na época, não era possível gozar de liberdade no meio da agitaçãoPossivelmente, mesmo José Cândido, liberal inveterado que ficou conhecido como um mártina imprensa maranhense pela sua trágica morte, conhecia os limites entre a participaçãopopular e os riscos de uma convulsão social, em que o grupo dominante poderia perder ocontrole sobre aqueles usados como massa amorfa nos conflitos particulares.

    Considerando todas essas questões, é válido recorrer aos fundamentos daBalaiada, não pelo movimento em si, mas para nos inserirmos no contexto geral da sociedademaranhense do período por nós pretendido – 1830 a 1850 – para que possamos 'preparar

    8 Farol Maranhense surgiu em janeiro de 1828 e ficou conhecido na história da imprensa maranhense como umdos periódicos mais populares e, segundo a historiografia, com idéias adiantadas para sua época, por ter um fortapelo popular e uma linguagem que, segundo Antônio Lopes, era “clara o bastante para ser compreendida pelopovo”. Sua publicação é suspensa em 1831devido à morte trágica e precoce de seu redator José Cândido deMoraes e Silva.

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    terreno' para o principal objetivo de nosso trabalho: as imagens dos escravos negros formadano imaginário social maranhense.

    O movimento dos Balaios deixou marcas profundas nesse imaginário, sendo a suaimagem invocada diversas vezes pelos autores de artigos ou mesmo relatórios oficiais parapintar um quadro de horrores do que foi e do que poderia voltar a ser caso não secontrolassem as querelas políticas e se contivesse os conflitos sociais.

    O periódico ludovicense que ‘cobriu’ com maior atenção a revolta dos balaios foio Chrônica Maranhense. A publicação de ofícios, de correspondências e artigos foram osmeios mais comuns de se propagarem as idéias que se tinham das causas e origem domovimento. Essas publicações estavam carregadas de juízos de valor sobre os rebeldes e suaações, sendo reforçadas nos momentos mais críticos da revolta, que por sua vez, sempre fo

    pincelada e apresentada pormenorizada ao leitor de forma a abrandar seus efeitos e minimizasua luta.No entanto, os registros da história nos mostram que foi através de concessões e

    ameaças que o governo conseguiu acabar com o movimento, sempre justificando que se não ofazia pela força das armas era porque era benevolente e misericordioso, quando na verdadeencontrou no suborno dos líderes o caminho mais fácil para dar fim ao movimento.

    Os chefes rebeldes Pio e Tempestade, que o S Ex. havia deixado em S. Franciscosob a vigilância do Snr. Major Ernesto Emiliano de Medeiros, fizeram finalmente asua submiss