a navegação do rio doce: 1800-1850

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50 A navegação do Rio Doce: 1800-1850 A navegação do Rio Doce: 1800-1850 A navegação do Rio Doce: 1800-1850 A navegação do Rio Doce: 1800-1850 A navegação do Rio Doce: 1800-1850 Haruf Salmen Espindola Haruf Salmen Espindola Haruf Salmen Espindola Haruf Salmen Espindola Haruf Salmen Espindola Licenciado em História pela UFMG, mestre em História Política pela Universidade de Brasília e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Desde 1987, é professor e coordenador do Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais e líder do grupo de pesquisa História, Sociedade e Ambiente da Universidade Vale do Rio Doce – Univale. É conhecido pela sua atuação nas questões regionais e na divulgação da história da região do Rio Doce. Publicou o livro Sertão do Rio Doce, pela editora EDUSC, de Bauru, em parceria com a Editora da Univale e o Instituto Terra. Também é de sua autoria o livro Ciência, Capitalismo e Globalização, publicado pela Editora FTD. RESUMO O Rio Doce é um dos principais rios do Sudeste do Brasil. Em 1800, a Coroa Portuguesa aboliu as proibições de navegação desse rio, anteriormente impostas para evitar os extravios do ouro. O controle do território pelas divisões militares e o esforço para efetivar a navegação são reconstruídos com base em fontes primárias militares e administrativas do governo de Minas Gerais, do Ministério da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, da Junta Militar de Conquista; das divisões militares, entre outros. A guerra ofensiva aos índios e o uso de força militar para se obter o controle do território constitui momento particular na história da colonização portuguesa. Entre 1800 e 1850, os esforços oficiais se concentraram na viabilização da navegação do Rio Doce. Nesse período, se intensificaram os confrontos entre interesses nacionais e ingleses e acirraram-se as lutas políticas. PALAVRAS-CHAVE: RIO DOCE; NAVEGAÇÃO FLUVIAL; INTERESSES INGLESES. ABSTRACT Doce River is one of the main rivers of Southeast Brazil. In 1800, the Portuguese crown allowed the navigation along the river, previously forbidden to avoid golden robbery. The territorial control by Portuguese military divisions and the efforts to make the navigation possible is reconstructed here based on documents from military and administrative sources of the government of Minas Gerais, War and Foreign Affairs Ministry, the Military Joint of Conquer and military divisions, among others. The offensive war against the natives applying military force to get control over the local territory was a particular moment of the Portuguese colonization in Brazil. Between 1800 and 1850 the Portuguese has concentrated their official efforts to make possible the navigation along the Doce River. At the same time the conflicts of national interests against the British became more intensive. KEYWORDS: RIVER DOCE; FLUVIAL NAVIGATION; BRITISH INTERESTS.

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Page 1: A navegação do Rio Doce: 1800-1850

Haruf Salmen Espindola

Navigator, – N.450

A navegação do Rio Doce: 1800-1850A navegação do Rio Doce: 1800-1850A navegação do Rio Doce: 1800-1850A navegação do Rio Doce: 1800-1850A navegação do Rio Doce: 1800-1850

Haruf Salmen EspindolaHaruf Salmen EspindolaHaruf Salmen EspindolaHaruf Salmen EspindolaHaruf Salmen EspindolaLicenciado em História pela UFMG, mestre em História Política pelaUniversidade de Brasília e doutor em História Econômica pela Universidadede São Paulo. Desde 1987, é professor e coordenador do Núcleo de EstudosHistóricos e Territoriais e líder do grupo de pesquisa História, Sociedade eAmbiente da Universidade Vale do Rio Doce – Univale. É conhecido pela suaatuação nas questões regionais e na divulgação da história da região do RioDoce. Publicou o livro Sertão do Rio Doce, pela editora EDUSC, de Bauru, emparceria com a Editora da Univale e o Instituto Terra. Também é de sua autoriao livro Ciência, Capitalismo e Globalização, publicado pela Editora FTD.

RESUMO

O Rio Doce é um dos principais rios do Sudeste

do Brasil. Em 1800, a Coroa Portuguesa aboliu as

proibições de navegação desse rio, anteriormente

impostas para evitar os extravios do ouro. O

controle do território pelas divisões militares e o

esforço para efetivar a navegação são

reconstruídos com base em fontes primárias

militares e administrativas do governo de Minas

Gerais, do Ministério da Guerra e dos Negócios

Estrangeiros, da Junta Militar de Conquista; das

divisões militares, entre outros. A guerra ofensiva

aos índios e o uso de força militar para se obter o

controle do território constitui momento particular

na história da colonização portuguesa. Entre 1800

e 1850, os esforços oficiais se concentraram na

viabilização da navegação do Rio Doce. Nesse

período, se intensificaram os confrontos entre

interesses nacionais e ingleses e acirraram-se as

lutas políticas.

PALAVRAS-CHAVE: RIO DOCE; NAVEGAÇÃO FLUVIAL;INTERESSES INGLESES.

ABSTRACT

Doce River is one of the main rivers of

Southeast Brazil. In 1800, the Portuguese crown

allowed the navigation along the river, previously

forbidden to avoid golden robbery. The territorial

control by Portuguese military divisions and the

efforts to make the navigation possible is

reconstructed here based on documents from

military and administrative sources of the

government of Minas Gerais, War and Foreign

Affairs Ministry, the Military Joint of Conquer and

military divisions, among others. The offensive war

against the natives applying military force to get

control over the local territory was a particular

moment of the Portuguese colonization in Brazil.

Between 1800 and 1850 the Portuguese has

concentrated their official efforts to make possible

the navigation along the Doce River. At the same

time the conflicts of national interests against

the British became more intensive.

KEYWORDS: RIVER DOCE; FLUVIAL NAVIGATION;BRITISH INTERESTS.

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O Rio Doce já havia sido navegado por26 exploradores ou aventureiros, desde Se-bastião Fernandes Tourinho (1572/73), quan-do se expediu a Carta Régia de 13 de maiode 1808, declarando guerra aos botocudose determinando medidas para sua navega-ção.1 Desde as primeiras expedições embusca da Serra das Esmeraldas, o territóriode floresta povoou o imaginário dos luso-bra-sileiros.2 No século do ouro, a política oficialfoi de severas restrições, mandando punirquem se estabelecesse na região, e, especi-ficamente, proibiu a navegação dos RiosDoce e Cuieté.3

Com o declínio da mineração, a políticade restrição começou a mudar, como cons-

ta no comunicado de 1786, ao capitão-mordo Espírito Santo, informando que o vice-reinão via inconveniente em serem ocupadasas terras do Rio Doce. Foram autorizadas aconcessão de sesmarias e a entrada de qual-quer um que quisesse ir para aqueles ser-tões. Entretanto, essa autorização não sus-pendeu os atos proibitivos sobre a navega-ção do Rio Doce para se evitar os extraviosdo ouro e diamantes.4

A abertura do Rio Doce à livre navega-ção somente foi autorizada no final do sé-culo XVIII, quando da nomeação de AntônioPires da Silva Pontes para o governo da Ca-pitania do Espírito Santo (1800-1804)5, querecebeu ordens expressas para esse fim.6

1 Cf. Carta Régia de 13 de maio de 1808. In.: Manuela Carneiro da Cunha. Legislação Indigenista do Século XIX:

uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Edusp; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992.2 Cf. Exploradores do Rio Doce. Artigo de Nelson de Senna, publicado no jornal Minas Gerais, no 16, de 19 dejaneiro de 1905. AN., AP-5, Cx. 1, Pacote 2. Alguns autores citam a data de 1571 ou 1573. Estiveram no sertãodo Rio Doce Francisco Bruza de Pinesa e jesuíta Padre João de Azpelcueta Navarro (1554); Martins Carvalho(1567 ou 1568); Sebastião Fernandes Tourinho (1571 ou 1572); Antônio Dias Adorão (1574); Diogo MartinsCão (?); Francisco de Proença (1596-1599); Capitão Marcos de Azevedo Coutinho (1612?); Padre Ignacio deSerqueira, André do Banho e outros jesuítas (1634); Antônio e Domingos de Azevedo (filhos de Marcos deAzevedo) (1647); O Mestre de Campo João Corrêa de Sá (1667); Agostinho Barbalho Bezerra e o LicenciadoClemente Martins de Mattos (1666 ou 1667); Fernão Dias Paes e seus companheiros Mathias Cardoso deAlmeida e Garcia Rodrigues Paes (1674-1681); Antônio Rodrigues Arzão e seu cunhado Bartholomeu Buenode Siqueira (1693-1696); Antônio Correia da Veiga (1704); Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias, chefeda 2a expedição à Serra das Esmeraldas, (1711); Mestre de Campo Lucas de Freitas de Azevedo (1717-1718);Mestre de Campo Mathias Barbosa da Silva (1734); Mestres de Campo Francisco de Mello Coutinho SotoMaior e João da Silva Guimarães (1730-1735); João de Azevedo Leme e o Licenciado Domingos de Maga-lhães Peçanha (1758); Dom Antônio de Noronha, Governador de Minas Gerais, (1779); Dom Rodrigo José deMenezes, Governador de Minas Gerais (1881); O Coronel José Joaquim de Siqueira e Almeida (1781); OPadre João Pedro de Almeida (1790); O Tenente-Coronel de Milícia João Baptista dos Santos Araújo esteve noRio Doce representando o Governador de Minas Dom Bernardo de Lorena (1800); Antônio Pires da SilvaPontes, Governador do Espírito Santo (1800); Thomas Lindley, viajante inglês (1802-03).3 Foram sete atos régios, entre 1725 e 1758, proibindo a abertura de caminhos e a navegação fluvial paraevitar o extravio de ouro e diamante. Cf. Cópia da Ordem do Real Erário, de 18 de novembro de 1773, extraídade Efemérides Mineira, IX, pp. 227-228. In. Fundo Família Lobo Leite Pereira, Arquivo Nacional, AP-5, Cx. 1,Pacote 2; Os sete atos régios são mencionados por José Pedro Xavier da Veiga. Efemérides Mineira (1664 –

1897). Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1897. IV, 32; veja também, José Teixeira de Oliveira. História do Estado

do Espírito Santo. Ed. cit., p 244.4 Cf. Ofício de Dom Rodrigo José de Menezes, de 22 de novembro de 1786. Manuscritos da BibliotecaNacional (BN), cota I-35, 1, 16; Apud, José Teixeira de Oliveira. História do Estado do Espírito Santo. 2o ed.,Vitória, IBGE, 1975, p. 240. Dom Rodrigo José de Menezes foi governador de Minas Gerais no período de1780-1783.5 DECRETO de 11 de novembro de 1797, Lisboa, do Príncipe Regente D. João, concedendo nomeação aoCapitão-de-Fragata, Antônio Pires da Silva Pontes para o cargo de Governador da Capitania do Espírito Santo.Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) Espírito Santo, cx. 05 doc. 46; cf. http://www.ape.es.gov.br/catalogo/cat-i-401-450.htm6 OFÍCIO de 23 de abril de 1800, Espírito Santo, do [Governador da Capitania do Espírito Santo], Antônio Piresda Silva Pontes [Pais Leme e Camargo], ao [Governador da Capitania de Minas Gerais], Bernardo José daSilveira e Lorena, informando da franquia e abertura à navegação por águas até Minas Gerais, para assegu-rar o registro de ouro na Cachoeira das Escadinhas, no Rio Doce. AHU-Espírito Santo, cx. 06 doc. 15; cf. http://www.ape.es.gov.br/catalogo/cat-i-401-450.htm

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Assim que assumiu o governo, estabeleceuum porto de canoas no Rio Doce, abaixo dacachoeira das Escadinhas, na barra do RioGuandu, e instalou o Quartel de Souza. Tam-bém foram colocados mais dois quartéis:um na boca mais boreal da Lagoa de Jupa-ranã, o Quartel de Coutins (Linhares), e ou-tro na barra do Rio Doce, o Quartel de Re-gência Augusta.7 Em outubro de 1800, Sil-va Pontes assinou com o Tenente-CoronelJoão Batista dos Santos Araújo, represen-tante do Governador de Minas Gerais, Ber-nardo José Lorena, os autos de demarca-ção dos limites entre as duas capitanias.8

Do lado de Minas Gerais, acima da Cacho-eira da Escadinha, onde o Rio Manhuaçufaz barra, foram instalados o posto fiscal(registro) e o Quartel de Lorena.

Em 1801, o governador de Minas Geraisexpediu comunicado para todos os distritosda capitania sobre a franquia da navegaçãodo Rio Doce e a existência do registro. En-tretanto, não apareceram os comerciantese fazendeiros tão esperados. Antes de com-pletar um ano de existência, o Quartel deCoutins foi queimado e as habitações des-truídas pelos botocudos, que mataram umsoldado e puseram os demais para correr.9

Em 1802, Silva Pontes escreveu sua Pré-me-

mória sobre a Capitania do Espírito Santo e

objetos do Rio Doce, onde expõe suas idéiassobre as oportunidades oferecidas pela re-gião e as vantagens da navegação fluvial, apartir da seguinte questão: “Achando-se fran-queada a navegação do Rio Doce, de cuja

impossibilidade se tinha formado uma opi-nião constante nesta Província e dela para aBahia”, por que ela “continua de presenteem langor sobre os efetivos benefícios?”10

As razões encontradas por Silva Pontes paraexplicar o langor da navegação fluvial foramo desinteresse dos espírito-santenses e asmatas infestadas por “gentio inimigo”.

A construção de canais fluviais como viade transporte de carga e passageiros foianterior a era das ferrovias e marca o perío-do inicial do capitalismo na Grã-Bretanha,França e Estados Unidos.11 Para Silva Pon-tes, o Rio Doce oferecia as condições parase tornar um canal que traria as vantagenseconômicas de reduzir o preço dos fretes ediminuir o tempo de transporte em quatroou três dias até o porto de mar, dando à Mi-nas Gerais acesso direto ao mercado mun-dial. Depois de mostrar as vantagens da ci-dade de Vitória tornar-se uma praça de co-mércio de importação e exportação para aEuropa e para os portos do Norte do Brasil,como Pará e Maranhão, conclui que para acolonização do sertão e a transformação doRio Doce em canal nada mais era precisodo que dar as ordens para isso.12

Este não era o ponto de vista do almoxa-rife da Real Fazenda, em Vitória. Em 1805,encaminhou à Coroa representação com adenúncia de que se faziam “grossas despe-sas” no Rio Doce sem que fossem de qual-quer utilidade para o público e o Estado, massomente servindo de enriquecimento ilícitopara alguns especuladores que faziam “uma

7 OFÍCIO de setembro de 1800, Porto de Sousa, do [Governador da Capitania do Espírito Santo], Antônio Piresda Silva Pontes [Pais] Leme e [Camargo], ao [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo deSousa Coutinho, [Conde de Linhares], informando da grande obra de comunicação das Minas Gerais peloPorto do Sousa nas águas do Rio Doce. AHU-Espírito Santo, cx. 06 doc. 21 A. Cf. http://www.ape.es.gov.br/catalogo/cat-i-401-450.htm8 Cf. Autos de demarcação dos limites. RIHGB, XIX, 193.9 Cf. José Teixeira de Oliveira. História do Estado do Espírito Santo. 2ed. Vitória: IBGE, 1975. (1o ed, 1951).p. 246.10 Cf. Antônio Pires da Silva Pontes. Pré-memória sobre a Capitania do Espírito Santo e objetos do Rio Doce. Vila

da Vitória, vinte e cinco de agosto de 1802. Apud. José Teixeira de Oliveira. História do Estado do Espírito Santo.Ed. cit., p. 264-265.11 Cf. Eric J. Hobsbawm. A era das revoluções. 1789-1848. 2 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.12 Cf. Antônio Pires da Silva Pontes. Op. cit., p. 265.

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escandalosa negociação de sal”.13 A Coroadeterminou aos governadores de Minas Ge-rais e da Bahia verificarem se realmentecompensaria fazer mais despesas, se have-ria retorno para as despesas feitas e se anavegação seria fácil e segura, em proveitoda exportação de Minas e Espírito Santo,principalmente de metais menos preciososcomo o ferro.

O governador de Minas colocou três or-dens de embaraços: a insalubridade, os índi-os e as cachoeiras.14 Ele informa que nosquatro anos iniciais, os resultados foram ospiores possíveis: para uma arrecadação418$555 se gastou com a implantação emanutenção do registro e dos quartéis o to-tal de 10:972$804.15 O Governador-Geral daBahia, Conde da Ponte, informou que o gros-so das despesas era com os destacamentos“para defender os casais de lavradores dosinsultos do gentio botocudo, a mais indomá-vel nação daquela espécie, e evitar os extra-vios”, afirmou que era “muito insignificante,não excedendo a quantia de 2:041$680, in-cluindo vencimento dos pedestres”.16 Entre-tanto, na opinião dos dois governadores, erapossível efetivar a navegação e para o futu-ro as perspectivas eram vantajosas. Elessugerem que a navegação comece modes-ta e, aos poucos, receba melhorias constan-tes até criar um sistema de comunicaçãofluvial. O Conde da Ponte foi realista quantoàs dificuldade para a navegação: “a navega-

ção do rio não tem a suavidade ou simples

embaraço moral como se tem proposto, tem

dificuldades físicas, que se podem adoçar, e

não destruir totalmente”.

Para ambos os governadores, primeiroera preciso eliminar o obstáculo indígena epromover a ocupação das margens porque,ao se tornarem povoados, a navegação doRio Doce encontraria meios de se efetivar,porque os habitantes poderiam oferecer ser-viços de bestas, carretas e mão-de-obra paraas embarcações. A Carta Régia de 13 demaio de 1808 foi concebida nessa linha, con-templando os objetivos de submeter os índi-os botocudos, conquistar o território e fran-quear a navegação do rio. O Príncipe Re-gente D. João determinou a criação de seisdivisões militares, denominadas cada umade Divisão Militar do Rio Doce (DMRD). Ogoverno deu ordens para as divisões instala-rem quartéis nas margens dos rios, junto àscachoeiras, com o objetivo de dar seguran-ça à navegação, combater os índios e pro-mover o povoamento.

Os governos das Capitanias de Minas edo Espírito Santo divulgaram amplamenteos benefícios e privilégios oferecidos aosque fossem povoar e/ou comercializar peloRio Doce. Os mineiros animados com asnovas medidas atenderam ao chamado,mas logo desistiram, pois não encontraramdemanda para seus produtos nem merca-dorias para comprar. O intercâmbio conti-nuou restrito ao pequeno comércio de sale, como em 1800, também não apareceramos negociantes, madeireiros e fabricantesde canoas.

Em 1810, uma nova Carta Régia foi desti-nada aos Governadores de Minas Gerais edo Espírito Santo, Francisco de Assis Mas-carenhas e Manoel Vieira Ferraz de Albuquer-

13 Cf. Documentos da seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Apud. José Teixeira de Oliveira. História

do Estado do Espírito Santo. Ed. cit., p. 265.14 Pela primeira vez, aparece a questão da insalubridade do Rio Doce, porém esse fator ocupa lugarsecundário nas considerações das autoridades e dos memorialista que escrevem sobre o Rio Doce.15 Cf. Ofício do Governador de Minas Gerais, de 14 de setembro de 1807. Correspondência Província deMinas Gerais – 1768-1807, Códice 97, vol. 1, p. 173. Para comparar, o registro de Matias Barbosa, noCaminho Novo, próximo a Juiz de Fora, dava uma renda anual de 90 a 120 contos, veja, Saint-Hilaire. Viagem

pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Op. cit., p. 50.16 Cf. Eduardo de Castro e Almeida. Inventário dos Documento Relativos ao Brasil Existentes no Arquivo deMarinha e Ultramar de Lisboa. Op. cit.; Apud. José Teixeira de Oliveira. História do Estado do Espírito Santo.Ed. cit., p. 386.

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que Tovar, respectivamente.17 O príncipe re-gente, depois de afirmar a importância doscanais para o comércio de “países interiores”com o resto do mundo, encarregou os gover-nadores da missão de abrirem a navegaçãodo Rio Doce, pela comunicação fácil que estadaria às comarcas de Vila Rica, Sabará e Ser-ro Frio, até então impedidas de prosperar pornão terem esse acesso aos portos de mar.18 OGovernador Manoel Tovar foi incumbido deexplorar o referido rio, apontando-lhe “todasas dificuldades locais que se opunham a suanavegação e notasse o que julgasse mais es-sencial para evitarem semelhantes inconveni-entes”. O objetivo era viabilizar a navegaçãopara colocar cidades e vilas do centro do Bra-sil em comunicação “com os portos de todosos impérios e reinos do mundo”.

O Governador Manoel Tovar expôs o re-sultado do seu trabalho na memória intitula-da Sobre a navegação importantíssima do Rio

Doce.19 Ele conclui que não seria conveniên-cia a destruição dos obstáculos naturais quecomeçavam depois do Porto de Souza eembaraçavam a livre navegação. Até àque-le local, na divisa das duas capitanias, erapossível navegar com barcaças que podiamlevar até 1000 arrobas. As corredeiras dasEscadinhas, numa extensão de duas léguase meia, não poderiam ser eliminadas nemse poderia abrir canal pela lateral, mesmopelo “mais hábil hidráulico”, porque os diquesseriam destruídos pelo peso e velocidade das

águas, que se elevavam a mais de seis me-tros nas grandes cheias.20 Em sua opinião,Escadinhas somente seriam obstáculos setodo o rio fosse navegável, mas como a par-te mineira somente o era por meio de cano-as, a necessidade de baldeação favoreceriao desenvolvimento do comércio, agriculturae mineração, bem como aumentaria o povo-amento e forçaria a “extinção dos índios”.

Manoel Tovar estimou a viagem da barrado Rio Doce até o Porto das Canoas, no RioPiracicaba, abaixo de Antônio Dias, entre 16e 17 dias e meio de navegação, sem contar otempo gasto para contornar por terra as Ca-choeiras das Escadinhas. Em sua opinião, oRio Santo Antônio iria ligar parte das Comar-cas de Sabará e Serro Frio ao Rio Doce e oRio Suaçuí Grande iria possibilitar à MinasNovas exportar seus “belos algodões pormuito menos preço do que hoje se exportam,como todos os mais gêneros de exportação,recebendo em troco, e a melhor mercado osgêneros de consumo”.21 Ele finaliza com adefesa das vantagens da navegação fluvialse comparada ao transporte por bestas peloCaminho Novo, destinado ao Rio de Janeiro:

“Desta maneira, não só a navegação doRio Doce, e de todos aqueles que o enri-

quecem, terão um rápido aumento, comoo comércio, agricultura e mineração detodas as comarcas do interior do Brasil;pois é bem sensível a grande diferençade despesas, que hoje se faz, na impor-

tação de todos os gêneros, àquela que

17 Cf. Carta Régia de 16 de agosto de 1810. AN., AP-5, Cx. 1, Pacote 2.18 O príncipe regente mandou contornar as cachoeiras com caminhos laterais, construir canais onde o riodesse grande volta para encurtar as distâncias; criar e animar os estabelecimentos de canoas nos diversoslugares mais cômodos ao comércio; abrir estradas até onde o transporte pudesse continuar pelo rio; promo-ver a navegação dos afluentes; ligar as estradas e o os rios navegáveis por caminhos vicinais; entre outrasmedidas que dessem passagem aos gêneros e produtos tanto para a comarca de Vila Rica, como para as deSabará e Serro Frio. Por fim, a Carta Régia de 1810 mandou que os governadores se entendessem em tudoe evitassem conflitos nos limites entre as duas capitanias.19 Cf. Informação de Manoel Vieira de Albuquerque Tovar sobre a navegação do Rio doce. Rio de janeiro:RIHGB, v. i, 1839, p. 173-178 (original: Biblioteca Nacional, Cod. CCCXCVII (18-49 / 3ff.).20 A CEMIG (Companhia Energética de Minas Gerais) construiu no local a Usina Hidrelétrica de Aimorés –UHA. O Rio Doce foi represado na altura da Pedra Lorena, pouco antes da foz do Rio Manhuaçu, e foi tododesviado por um canal lateral na margem esquerda, que inicia pouco acima das Escadinhas.21 Cf. Manoel Vieira de Albuquerque Tovar. Op. cit. Esta mesma recomendação foi dada por Saint-Hilaire,também se referindo à exportação do algodão. Cf. Augusto de Saint-Hilaire. Viagens pelas Províncias do Rio de

Janeiro e Minas Gerais. Ed. cit., p.178.

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se fará pelo Rio Doce. Uma canoa con-duz a carga de 10 a 11 bestas, e custa16$000 a 18$ mil réis, não fazendo diaria-mente despesa alguma; e uma besta cus-tando 40$000 a 50$ mil réis, fará despesa

diária de milho, forragem, aparelhos, etc.;acrescendo, que uma canoa dura muitosanos, e as bestas morrem e adoecem comomuita facilidade nas grandes e dificulto-

sas viagens.”22

Várias das recomendações indicadas porManoel Tavor foram adotadas pelo governa-dor de Minas Gerais.23 Em 1811, canoas mi-litares transportavam pelo Rio Doce manti-mentos, armamentos, munições, correspon-dência, soldo para os quartéis, além de con-duzirem degredados para os presídios, taiscomo Cuité e Peçanha, patrulharem o rio econduzirem tropas para combater os índios.No Espírito Santo, comboios de canoas comsuprimentos, principalmente a farinha demandioca, tinham que ser enviados regular-mente aos três quartéis, porque eles esta-vam proibidos de plantar mandioca e produ-zir farinha para não atrair ataques dos índi-os. As canoas de comércio, como eram de-nominadas as embarcações de particulares,se restringiam ao comércio de sal, cuja ven-da foi declarada livre, em 1807.24

Para Wilhelm Ludwig von Eschwege, co-nhecido por Barão de Eschwege, somente o

comércio de sal justificava a subida de em-barcações particulares do Espírito Santopara Minas Gerais, com extrema dificuldade,“sendo as canoas e a carga postas em terravinte e três vezes a fim de contornar as ca-choeiras, e sofrendo a gente da expedição osferozes ataques dos botocudos”. No início, ascanoas desciam com algum algodão, mas osperigos e custos não compensaram.25 O Con-de de Linhares recebeu de Francisco Manuelda Cunha uma memória que denunciava quenão ocorrera avanço na navegação do RioDoce e que o corte e exportação da madeiraperderam o impulso inicial e a atividade ma-deireira ficou reduzida a um pequeno enge-nho de serrar. Resumiu a situação da regiãodo Rio Doce da seguinte forma: “vivia comoesquecido e sepultado no meio de tribos bo-tocuda e manaxó”. 26

Em 1818, Saint-Hilaire conheceu de per-to o Rio Doce, até Linhares, aonde chegouem 22 de outubro, conduzido em pirogas pe-los soldados pedestres do Quartel de Regên-cia Augusta.27 Antes de sua partida, ele esta-va temeroso: “não posso pensar nessa via-gem sem estremecer”. O governador tentouconvencê-lo de desistir da viagem, apresen-tando “sob as cores mais sombrias a regiãodeserta”, e não cansou de preveni-lo “contraa insalubridade das margens do Rio Doce”.

22 Cf. Cf. Manoel Vieira de Albuquerque Tovar. Op. cit.23 Cf. Correspondências de Marlière. RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 554-7; Idem, p. 573-4.24 Cf. Decisão de 30 de janeiro de 1810, determinou que a Junta Administrativa dos novos impostos pusesseem execução o que foi determinado em 14 de janeiro de 1807, sobre deixar livre a cada proprietário a vendado sal, verificando a bordo das embarcações que trouxerem sal, para que se cobrasse os impostos devidos.In.: Coleção de Leis do Brasil. Arquivo Nacional.25 Cf. Oliveira Lima. D. João VI no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1945, v. II, p. 786. Apud. José Teixeirade Oliveira. História do Estado do Espírito Santo. Ed. cit., p. 263-264. O Barão de Eschwege (1777-1855),engenheiro e mineralogista alemão, serviu como tenente-coronel de Portugal, companheiro de estudos doviajante Langsdorff, foi mandado para Minas Gerais, onde realizou diversos trabalhos, incluindo o início daatividade metalúrgica com aplicação de conhecimentos técnicos. Escreveu as obras: Pluto Brasiliensis (1833)e “Diário de uma viagem do Rio de Janeiro a Vila Rica na Capitania de Minas Gerais no ano de 1811.26 Cf. Francisco Manuel da Cunha. Memória Sobre a Navegação do Rio Doce, apresentada por... ao Conde de

Linhares. In. Publicações do Arquivo Público Nacional, IV, Rio de Janeiro: 1903.27 No seu relato das Viagens pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil, publicado em Paris, no ano de 1833,encontram-se suas observações sobre a Província do Espírito Santo e o Rio Doce. A Editora Nacional,publicou em 1936, a parte final, 2º tomo, onde descrevem a viagem pelo Espírito Santo, com o título Segunda

viagem ao interior do Brasil, como parte da Coleção Brasiliana, volume 72. A Editora Itatiaia, em conjuntocom a Editora da Universidade de São Paulo, em 1974, publicou outra tradução do mesmo texto com o títuloViagem ao Espírito Santo e Rio Doce.

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São palavras do governador: “O Rio Doce éum inferno”.28 Para Saint-Hilaire, a navega-ção seria dificultada pelos rochedos no meiodo rio, corredeiras e cachoeiras, mas os índi-os não eram mais problemas, graças aos “cui-dados do generoso Marlière”, comandantedas divisões militares do Rio Doce.29 Pela pri-meira vez, aponta-se claramente o problemada insalubridade do Rio Doce:

“Mas, existe um perigo que só numero-sos desbravamentos poderiam dominarou diminuir e que, portanto, subsistirámuito tempo: é a insalubridade de váriasregiões vizinhas do rio. Essa insalubrida-

de é causada não só por suas águas comopelas de seus afluentes, que, na esta-ções de chuva, transbordam do leito, for-mando poças e infectando o ar com va-

pores perigosos. Raramente os que des-cem e sobem o Rio Doce não são atingi-dos por febres malignas ou intermiten-tes e estas podem deixar sinais duradou-ros, pois Manuel José Pires da Silva, que

tive a felicidade de encontrar em MinasGerais, se ressentia, ainda em 1818, deum doença que havia contraído 8 ou 10anos antes, ao descer o Rio Doce, sob ogoverno de seu tio, Antônio Pires da Sil-

va Pontes Leme.”30

Em Minas Gerais, com a nomeação deGuido Thomaz Marlière para o comando dasDivisões Militares do Rio Doce, em 1818, ecom as mudanças na estratégia e posicio-namento tático das divisões, o governo pro-curou acelerar a ocupação do sertão e efe-tivar a navegação do rio. Em 1818, a JuntaMilitar de Conquista, Civilização dos Índios,Colonização e Navegação do Rio Doce, quecentralizava todas as deliberações, mandouedificar diversos quartéis ao longo do rio ede seus afluentes principais, bem como de-terminou que os praças das divisões pres-

tassem todo auxílio aos povoadores e cano-eiros, sob pena de castigos corporais.31

O Quartel de Mombaça (4a DMRD) tinhaa incumbência específica de patrulhar o riona direção do Quartel de Belém e, principal-mente, rio acima, até a barra do Rio Casca,porque era nesse trecho que os índios boto-cudos atravessavam o rio para atacar oscolonos de São Domingos do Prata. O Quar-tel de Baguari (1a DMRD) patrulharia o cur-so do rio até o Quartel da Cachoeira Escurae, a jusante, até o primeiro Quartel da 6a

DMRD, abaixo da barra do Suaçuí Pequeno,na Cachoeira de Figueira.32 As margens doRio Doce ficaram guarnecidas por 203 divi-sionários, da barra do Rio da Casca até aCachoeira das Escadinhas, onde ficava oQuartel de Lorena, da 6a DMRD. A 3a DMRDformou uma linha de cooperação, controlan-do os afluentes do lado direito, enquanto a5a DMRD controlava os afluentes da mar-gem esquerda, somando, todas as cinco di-visões, 358 homens.

Este novo desenho estratégico foi mon-tado entre 1818 e 1822, sem que os aconte-cimentos políticos da Independência provo-cassem qualquer alteração nos rumos idea-lizados pela Junta Militar. Em maio de 1823,foram aprovadas pelo Império as propostasde Marlière para proteger melhor a navega-ção, acelerar o processo de atração dos ín-dios botocudos e “franquear aos povos mai-or extensão de terrenos”. Os comandantesdas divisões ficaram incumbidos de mapeartoda a sua área de atuação, fazendo periodi-camente a lista dos colonos de sua circuns-crição militar. A 2a DMRD, retirada da re-gião do Rio Pomba (afluente do Paraíba doSul), foi reunida à 4a DMRD, com a missão

28 Cf. Augusto de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Ed. cit., p. 41 e 78.29 Guido Thomaz Marlière, militar francês, que depois de desertar do exército de Napoleão Bonaparte, foiservir no Exército português e, com o translado da Corte para o Rio de Janeiro, veio com o príncipe regente.Depois de dois anos, foi transferido para a tropa de linha de Minas Gerais. Em 1818 assumiu o comando dasdivisões militares do Rio Doce.30 Cf. Idem., p. 86.31 Cf. ofícios de Marlière, de 28 de setembro de 1824 e de 30 de setembro de 1824. Idem., p. 494.32 Cf. Instruções da Junta Militar, de 9 de setembro de 1818, RAPM, Belo Horizonte, v. 10, 1905, p. 408-410.

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de cuidar de um grande aldeamento de índi-os botocudos, colocado estrategicamentejunto ao ribeirão Sacramento Grande, a trêsléguas de sua barra no Rio Doce.33 Este al-deamento tornou-se ponto terminal das ro-tas migratórias dos botocudos da margemmeridional, evitando, com essa medida, asincursões para o outro lado deste rio, emterritório povoado. Em 1824, todo o sertãomeridional até às margens do Rio Doce es-tava sob o controle das divisões militares,sem que os índios (Botocudo e Puri) repre-sentassem qualquer ameaça à presençabrasileira.

INTERESSES ESTRANGEIROS:ESPECULAÇÃO E LUTA POLÍTICA

Em 1819, Francisco Joaquim da Silvaobteve a aprovação do estatuto para umaSociedade de Agricultura, Comércio e Na-vegação do Rio Doce, depois da propostater sido apreciada pelo Governador minei-ro, Dom Manuel de Portugal e Castro. A soli-citação não deixa dúvida de que os estudosde Silva Pontes e Manoel Tovar formaram abase da qual se serviram os idealizadoresda empresa proposta. Para o governo deMinas Gerais, o estatuto era muito acertadoe, se fosse executado, sem dúvida seria “omeio mais apropositado para se levar ao fimuma obra da qual se podem tirar incalculá-veis vantagens” as comarcas do Serro Frio,Sabará e Ouro Preto.34

No estatuto aprovado por provisão daReal Junta do Comércio, Agricultura, Fábri-cas e Navegação, de 15 de dezembro de1819, estão todas as expectativas exagera-das acerca do Rio Doce, especialmente so-

bre o povoamento e ocupação agrícola deseus “vastos e fertilíssimos terrenos”, a su-perestimação do potencial navegável dosafluentes e a subestimação das dificuldadespara eliminar os estorvos que impediam anavegação franca do referido rio.35 A Socie-dade obteve o privilégio pelo prazo de 20anos, incluindo todos os benefícios ofereci-dos pelas cartas régias de 1808 e 181636 e aconcessão de oito sesmarias de uma léguaquadrada cada uma.

O projeto apresentado era muito atraen-te porque prometia ligar a capital político-administrativa (Vila Rica) e a sede do bispa-do (Mariana) diretamente com o mar. Entre-tanto, a perspectiva para que a navegaçãose efetivasse e se tornasse o bom negócioera mínima, tendo em vista a inexistência deculturas de exportação. O projeto exigiriagrandes investimentos de capitais para su-perar os obstáculos sócio-ambientais (faltade mão-de-obra, vazio demográfico, cacho-eiras, corredeiras e insalubridade) e a au-sência de demanda. Em 1824, o comandan-te-geral das Divisões Militares do Rio Doce,Guido Marlière, escreveu que a Sociedadesimplesmente não existia e, na sua opinião,nunca viria a existir, pois não havia comér-cio que a justificasse, e os poucos canoeirosque se aventuravam naquelas águas somen-te encontravam o sal para comprar em Li-nhares e, no máximo, conseguiam venderalgum fumo.37

Em 1824, os brasileiros detentores do con-trole da Sociedade se associaram com capita-listas ingleses para criar a Companhia Brasi-leira do Rio Doce. O principal acionista, JoséAlexandre Carneiro Leão, alegou a insuficiên-

33 Cf. Aviso de 25 de maio de 1823, ao governador das armas, In.: Idem., p. 448-49.34 Cf. RAPM, Belo Horizonte, v. 9, 1904, p. 578-579.35 Cf. Estatuto da Sociedade de Agricultura, Comércio e Navegação do Rio Doce. In.: Coleções de Leis doBrasil. Decisões. N. 55 – Reino – Provisão da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, de15 de dezembro de 1819. AN., Sala de Consulta.36 Cf. Carta Régia de 13 de maio de 1808. In.: Manuela Carneiro da Cunha. Op. Cit., p. 57-60; Carta Régia de4 de dezembro de 1816. AN., Cartas de Lei, Alvarás, Decretos e Cartas Régias. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial,s/d, p. 87-89. O governador do Espírito Santo recebeu carta régia, com a mesma data, contendo poucasdiferenças.37 Cf. Ofício de 1824, RAPM, Belo Horizonte, v. 10, 1905, p. 520-521.

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cia dos capitais nacionais para solicitar aabertura para o capital externo, sem o qualnão seria possível remover os obstáculosencontrados para executar os estatutos de1819. Em maio de 1825, conseguiu aprovarnovos estatutos com modificações substan-ciais em relação ao de 1819, incluindo mu-dança do nome, com o acréscimo do termomineração depois da palavra comércio.38

Estava no auge a entrada de companhiasinglesas de mineração para explorar o ourode Minas Gerais.39 Somando-se a isso, haviaa fama de que o Rio Doce guardava enor-mes riquezas minerais.

A companhia anglo-brasileira prometiarealizar a navegação do Rio Doce, entre afoz do rio e as Cachoeiras das Escadinhas,com sumacas e navios maiores (patachos).40

Nas Escadinhas, colocariam armazéns paradepósito de artigos que comercializaria paraMinas, tais como sal, vinho, baetas, louça,vidro, ferragem, farinha de trigo, bacalhau,entre outros. Um outro armazém em Nativi-dade e mais seis ou sete nos lugares ondeexistissem obstáculos naturais.41 Para explo-rar a madeira, a companhia instalaria enge-nho de serrar, do mais moderno que existiana Europa, para atender os mercados dacosta do Brasil até Montevidéu e BuenosAires.42 A maior modificação foi a obtençãodo direito exclusivo de “empreender a extra-ção do ouro, prata e quaisquer outros me-tais que se encontrarem no álveo do Rio

Doce, nas suas margens e vertentes, nosrios, ribeirões e córregos, e nos seus afluen-tes”. Essa concessão foi o estopim para odebate parlamentar e a oposição do Conse-lho Provincial de Minas Gerais.

Saint-Hilaire atribuiu a concessão de 400cartas de sesmarias “nos desertos do RioDoce”, em curto espaço de tempo, ao medoprovocado pela criação da “sociedade an-glo-brasileira”. Esse número é bastante pró-ximo do que foi obtido pela análise do Catá-

logo de Sesmarias, publicado pelo ArquivoPúblico Mineiro. Nele pode-se identificar 418sesmarias distribuídas no sertão do RioDoce, entre 1822 e 1832, sendo 315 doaçõesem 1825 e 1826.43 Em sua opinião, os minei-ros ficaram enciumados por verem os es-trangeiros despojá-los de suas riquezas: “osnaturais se apressavam em evitá-los e seespalhavam nessas florestas imensas, ape-sar de povoadas apenas por botocudos”.44

Em relação ao novo estatuto, o Presiden-te de Minas Gerais José Teixeira da FonsecaVasconcelos (1824 a 1827), Barão de Caeté,encaminhou ao Imperador, em 20 de julhode 1825, o parecer contrário do ConselhoProvincial de Minas Gerais, no qual a teseprincipal foi: “Quem principiou deve concluira obra”. O Conselho considerou que os esta-tutos “não podiam, em tempo algum, preen-cher os seus ostensivos fins”. O decreto nãodeterminava prazo nem impunha pena. No

38 Cf. Decreto de 6 de maio de 1825, que dá novos Estatutos à Sociedade de Agricultura, Comércio, Minera-ção e Navegação do Rio Doce. In. Decretos, Cartas Imperiais e Alvarás. Arquivo Nacional.39 Cf. Douglas Cole Libby. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. SãoPaulo: Brasiliense, 1988, p. 270.40 Sumaca é um antigo navio à vela, muito usado na costa do Brasil, de mastreação constituída de gurupése dois mastros inteiriços: o de vante, que cruza duas vergas, e o de ré, que enverga vela latina. O patacho,parecido com a sumaca, porém é maior.41 Os locais propostos eram o porto de Natividade, em cima do Eme, na barra do Suaçuí Grande, Cachoeirado Baguari, na barra do Santo Antônio dos Ferros, na Cachoeira Escura e na barra do Piracicaba.42 Isso era atraente, pois os custos altos da madeira brasileira, por causa do método de extração, transportee processamento, obrigavam a importação do produto dos portos africanos, americanos e suecos. Cf. WarrenDean. A ferro e fogo. História e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,1996, p. 154.43 Catálogo de Sesmarias. RAPM, Ouro Preto, v. 27, 1988, 2 v. Cf. Haruf Salmen Espindola. Sertão do Rio Doce.Op. Cit., pp. 276-296.44 Cf. Auguste de Saint-Hilaire. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce.Op. Cit., p. 95.

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final, pedia a revogação do decreto, “preju-dicialíssimos ao Império em geral, e em par-ticular a esta Província, injustos e absoluta-mente inúteis”.

Diogo Sturz, representante dos capitalis-tas de Londres, desencadeou uma contra-ofensiva para contornar as resistências.Buscou convencer de que não haveria pre-juízo com a transferência do controle paraos sócios ingleses, considerando impossívelque os mineiros, que tanto subscreveram noano de 1819, não tivessem o mesmo interes-se de antes.45 O objetivo de Sturz era conse-guir que fazendeiros influentes das regiõesde Mariana, Ouro Preto, Tejuco, Serro Frio,Ferros, Suaçuí Grande e Piracicaba enca-beçassem as listas de subscrições. Das ou-tras regiões, particularmente São João e SãoJosé del-Rei, Barbacena e Queluz não espe-rava contribuição, porque eles não teriaminteresse no negócio, pois perderiam muitoda importância que possuíam no comércioentre Minas e o Rio de Janeiro. Para Sturz,somente os ignorantes podiam desacreditarno que estava planejado para o Rio Doce:

“Parece incrível isto a quem não tem tes-temunhado os imensos efeitos dos ca-nais da Inglaterra, Holanda e EstadosUnidos, e aqui temos bem se pode dizer

um canal natural ainda não aproveitado,e trata-se aqui de quase o frete inteiro deuma Província rica, populosa e industrio-sa no que a hora (sic) se estão repartindo

alguns mil homens com alguns 20.000animais em estradas ruins muitas vezesimpossíveis e com mantimentos caros porcausa do mal estado dos caminhos”46

O Conselho Provincial conseguiu do Im-perador a revogação do decreto que apro-vava o estatuto da Companhia Brasileira doRio Doce.47 Paralelamente à luta política, ogoverno provincial intensificou as ações para

garantir controle sobre o Sertão do Rio Doce,por meio das divisões militares. Foram ex-pedidas diversas instruções para Marlière eliberados recursos para serem gastos coma segurança das canoas militares, para apoioàs canoas de comércio e para equipar osportos de canoa.

A contra-ofensiva dos mineiros pararealizar a navegação do Rio Doce

O Imperador autorizou o presidente daProvíncia de Minas Gerais a aumentar osgastos dos recursos da fazenda pública paraefetivar a navegação do Rio Doce. Tambémnomeou o coronel do exército Julião Fernan-des Leão para executar o projeto de navega-ção na Província do Espírito Santo.48 Marliè-re recebeu instrução para prestar todo auxí-lio necessário ao colega capixaba e paraimplantar os estabelecimentos de baldea-ção do lado mineiro e gerenciar os recursosque seriam gastos.49

O Rio Doce era freqüentado pelas piro-gas militares e pelas poucas canoas de co-mércio que iam buscar sal em Linhares, alémdas expedições e viajantes esporádicos. Em1824, o Coronel Julião havia proposto umplano que previa a abertura de uma estradamargeando o rio, sob a justificativa de queiria facilitar a entrada de gado e o comércio.O Comandante Marlière foi contrário à aber-tura da estrada, pois considerou que seriano mínimo dispendioso, por causa das mui-tas serras e rochedos junto às suas margens,além da pouca utilidade econômica, pois Li-nhares somente tinha sal a oferecer e nomáximo seus habitantes comprava algumfumo.50 As estradas que haviam sido aber-tas uma década antes, pela 3a DMRD, nãotinham trânsito e foram cobertas pela mata.

45 Cf. Correspondência de João Diogo Sturz Stockerx-change. RAPM, Belo Horizonte, v. 4, 1899, p. 793-801.46 Cf. Correspondência de João Diogo Sturz Stockerx-change. Op. cit. p. 799.47 Cf. jornal O Universal de Ouro Preto. In.: Arquivo Nacional. AP-5, Cx. 1, Pacote 2.48 Julião Fernandes Leão, em 1823, foi durante alguns meses o comandante militar da província, masdestituído depois de desentender-se com o ouvidor e liderar um levante contra a Junta de Governo Provisório.49 Cf. Ofício de Marlière, de 1o de janeiro de 1826, RAPM, Belo Horizonte, v. 11, 1906, p. 121 e o Ofício doBarão de Caeté, de 31 de março de 1826, RAPM, Belo Horizonte, v. 11, 1906, p. 109.50 Cf. Ofício de Marlière, de 5 de outubro de 1824. Idem., p. 520-1.

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Marlière escreve:

“Farei observar à V. Ex.cia o ridículo da pre-tensão de meter gados desta para aque-la província por semelhante estrada, aber-

ta que fosse, sendo o Rio Doce desertocomo é manifesto desde Antônio DiasAbaixo. Que há duas estradas que se di-rigem desta a dita província, uma à Vilade Vitória e outra à Itapemirim, pela pri-

meira já entrou gado; e se não entra maisé porque a deixaram entupir. Outrora tí-nhamos bastante gado no Cuieté, porémeste mal chega para a sustentação dos

muitos botocudos ali residentes.”51

Marlière não deixou de cumprir as ordensrecebidas e mandou o comandante da 6a

DMRD prestar todo auxílio requerido peloCoronel Julião, mas não deixou de comentarque fazia isso “para que não pareça, apesardestas verdades, repugnância minha em darcumprimento às Imperiais Ordens”. Em suaopinião, o dinheiro seria melhor empregadose fosse investido na criação dos estabele-cimentos junto às cachoeiras, colocando-semáquinas para varar as embarcações comfacilidade e fazendo-se plantações.

Neste contexto de embate político entreos mineiros e os concessionários da compa-nhia anglo-brasileira, Marlière escreveu aoeditor do jornal Universal, de Ouro Preto,apresentando suas idéias sobre a aberturada navegação do Rio Doce. Ele informa quetoda costa norte é muito mais baixa do que ameridional e, portanto, por ela devem diri-gir-se todas as operações para facilitar epromover a navegação e o comércio. Em

seguida apresenta seu plano:

“Que nos custará pois estabelecer emcada cachoeira um caminho lateral ao rio,com carro e bois, para varar as cargas e

deixar descer e subir pelos canais as ca-noas aliviadas. Bem pouco, pois comodisse, o terreno o permite. A mesma mar-gem norte, desde o Rio de Santo Antônioaté as Escadinhas, está ocupada, nesta

data, por 91 sesmarias, muitos ricos, pou-cos pobres, abrindo cada um a sua meialégua pouco restará que fazer, e verão oaumento rápido da navegação e comér-

cio; levantando estes obstáculos, que nãosão nada; e muito melhor achando osnavegantes, mantimentos e socorro emcada fazenda, cousa que até hoje nãoouve: porque ouso dizer, que mais cano-

eiros morreram de fome, e suas conse-qüências, que nas águas e das flechasdos índios.”52

Marlière correspondia plenamente à ex-pectativa do governo provincial de MinasGerais, colocando-se à frente da realizaçãodos propósitos dos mineiros. Em 1826, pormeio da 5ª DMRD, ampliou o controle sobrea parte norte do Rio Doce, incluindo o Sua-çuí Grande e seus afluentes. Ele estava en-tusiasmado com o projeto e solicitou recur-sos e apoio ao presidente de Minas e ao go-vernador das armas53, para ampliar o con-trole sobre os sertões da Comarca do SerroFrio e promover a comunicação fluvial.54 Ocomandante da 5a DMRD recebeu ordenspara iniciar a fabricação de canoas e, aomesmo tempo, Marliére determinou que a6a DMRD enviasse canoeiros experientes

51 Cf. Ofício de Marlière, de 5 de outubro de 1824, Ibidem., p. 496.52 Cf. Correspondência ao editor do Universal, de 11 de outubro de 1825, RAPM, Belo Horizonte, v. 10, 1905,p. 645-646.53 O Governador das Armas é um posto militar de inspeção da monarquia aos diferentes organismos doExército existentes a nível regional.54 Cf. Diversos ofícios de Marlière. RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 460-461; RAPM, Belo Horizonte, v.11, 1906, p. 188-189; Idem., p. 189. Em 1816, o viajante Augusto de Saint-Hilaire penetrou os limites oeste dosertão do Rio Doce, em dois pontos, São Miguel de Piracicaba e Peçanha, porém não chegou até o rio.Alguns anos depois, ele subiu por este rio, porém da foz até o povoado de Linhares, no Espírito Santo. Quemesteve no Rio Doce foi o naturalista Friedrich Sellow, onde morreu afogado, na Cachoeira Escura, em 1830.Na opinião do comandante das divisões militares, Major Felipe da Cunha e Castro, que cuidou do inventáriodos bens deixados pelo botânico e investigou se não houve roubo de dinheiro, ele não estava inteiramentepreparado para enfrentar “uma longa viagem empreendida por lugares despovoados”. Cf. Ofício ao Presiden-te da Província, de 18 de novembro de 1831. APM, SP PP 1/15, Cx. 90, doc. 42.

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para auxiliarem na abertura da comunica-ção com o Serro Frio e Sabará. As novasrotas deveriam atender o comércio e mine-ração, enquanto na prática facilitavam o tra-balho de catequese e civilização dos Nakne-nuk* e o transporte dos soldos, remédios esuprimentos para a 5a e 7a DMRD.55 O Co-mandante Marlière era defensor da idéia dea navegação poderia ser efetivada pelas di-visões militares, desde que o governo lhesfornecesse os meios necessários.

No final de 1827, as divisões militaresforam envolvidas no transporte das máqui-nas para a fábrica de ferro do francês Mon-levade.56 Em São Miguel de Rio Piracica-ba, onde funcionavam diversas fundiçõesde ferro, em 1818, se instalou o jovem fran-cês de origem nobre Jean Antoine Felix Dis-sandes de Monlevade, que casara com umasobrinha do Barão de Catas Altas. Ele fi-xou-se a meio caminho para São José daLagoa, aonde ergueu um imponente solar(Fazenda Monlevade), nas proximidades dericas jazidas de minério de ferro. Ali deci-diu construir um fábrica de ferro, que utili-zasse o método catalão, empreendimentoque exigiu a importação de pesadas máqui-nas da Inglaterra.

Em 1827, o Presidente da Província de Mi-nas Gerais, Visconde de Caeté, recebeu umrequerimento de Monlevade solicitando queo governo auxiliasse no transporte das má-quinas pelo Rio Doce, único meio de fazê-laschegar até o local escolhido para erguer afábrica. Em despacho, datado de 13 de mar-ço desse ano, o Visconde de Caeté ordenouque Marlière executasse o transporte dasmáquinas, “que pelo seu peso não tinhamoutro método de introduzir em Minas”.57

Marlière, se encontrava no quartel-geralde Guidoval, na Zona da Mata, de onde en-viou circular aos comandantes das 1a, 2a, 4a e6a DMRD, com as instruções para fazer en-trar pelo Rio Doce o pesado maquinário, poisisso muito interessava à província. Diante dasdificuldades, seria necessário um “poderosoauxílio das divisões”, por isso ordenou que oscomandantes cumprissem suas partes namissão com todo o zelo e inteligência, sem omenor desânimo. As tarefas das divisões fo-ram repartidos da seguinte forma: a 6a DMRD,com todas as canoas, os melhores pilotos ecanoeiros e os praças disponíveis, ficaria en-carregada da condução da divisa da Provín-cia do Espírito Santo à Cachoeira do Bagua-ri. O alferes comandante deveria descer logoque recebesse aviso de Lourenço ArchillesLéNoir (sic), responsável pela condução dasmáquinas. A 1a DMRD prosseguiria, nosmesmos termos, com as suas canoas e asdo comando-geral, e todos os seus praçasda ativa, da Cachoeira do Baguari à do Leo-poldo (Cachoeira Escura). Nesse ponto, a 2a

e 4a DMRD receberiam as máquinas e asconduziriam até o Porto das Canoas, ondefindaria o auxílio. Nos lugares de baldeação,todos ajudariam na transposição da carga.Cada divisão deveria levar mantimentos emquantidade suficiente para o sustento de suagente, preparando-se antecipadamente.Marlière seria informado quando as máqui-nas saíssem do Rio de Janeiro e, prontamen-te, repassaria a informação aos comandan-tes das divisões militares, que deveriam es-tar prontas com gente, mantimentos e cano-as. As instruções foram levadas de um quar-tel a outro sem qualquer demora em um de-les, para o que foram utilizadas canoas mili-tares e de comércio.58

* N.R: Confederação também chamada de Maxakalí, composta pelos pataxós, monoxós, kumanoxós, kutatóis,malalí, makonís, kopoxó, kutaxós e pañâmes.55 Cf. Ofício de Marlière, 23 de agosto de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 463.56 Cf. Ofício de Marlière, 3 de setembro de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 466.57 Cf. Ofício de Marlière dirigido ao vice-presidente, de 16 de dezembro de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12,

1907, p. 489-490.58 Cf. Circular de Marlière aos comandantes das divisões militares, de 7 de maio de 1827, RAPM, BeloHorizonte, v. 11, 1906, p. 248-249.

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O comandante da 6a DMRD, a quem cabe-ria o maior trecho de rio e a maior quantida-de de cachoeiras para baldear, estava comtudo preparado em setembro de 1827. Mar-lière escreveu-lhe louvando a rapidez com queaprontou as embarcações e os suprimentospara o transporte das máquinas. Mandou queele aguardasse o sinal positivo do chefe daexpedição Achilles Le Noir (sic). Entretanto,já demonstrando preocupação com a possí-vel demora, fez a primeira advertência comrelação à segurança, para que o transportefosse iniciado somente se não houvesse pre-visão de perigo ou cheias, do contrário deve-ria se esperar tempo favorável.59

Em final de setembro, Marlière aindanão sabia que as máquinas haviam deixadoa Alfândega do Rio de Janeiro. Uma novainstrução para a 6a DMRD mandou que ocomandante se dirigisse para a barra do RioDoce, no Quartel de Regência, pois nãoconfiou que os capixabas fariam a partedeles na empreitada. A troca de correspon-dências foi intensa, pois se aproximava aestação das chuvas. Marlière recomenda-va prudência, pois era preferível deixar asmáquinas esperando no quartel da barraaté o rio oferecer condições de navegaçãosegura, do que enfrentar o mau tempo.60

As chuvas estavam apenas começando e,à medida que o tempo passava, ficaria cadavez mais arriscado subir o Rio Doce. Mes-mo assim, foram dadas ordens para que asdivisões que participariam da operação fi-cassem de prontidão.

Havia uma expectativa grande de fazer otransporte ainda naquele ano, como mostrauma ordem ao comandante da 4a DMRD,determinando que uma canoa com manti-mentos conduzisse o vigário de Cuieté, queestava no Porto de Canoas. Chegando em

Cuieté, a canoa, o piloto e os remeiros deve-riam seguir com a 6a DMRD para a barra doRio Doce. Somente no início de outubro,Marlière recebeu o aviso de que as máqui-nas deixaram o porto do Rio de Janeiro, nodia 19 de setembro. Ele calculou que asmáquinas não iam demorar a chegar na bar-ra do Rio Doce e determinou de imediatoque todas as canoas e gente da 4a DMRD secolocassem de prontidão nos lugares deauxílio, conforme a instrução de 7 de maio.61

O comandante da 6a DMRD recebeu oaviso de que as máquinas haviam partidocom destino ao Rio Doce, junto com a reco-mendação de que se empenhasse ao máxi-mo no cumprimento da missão e que, paratanto, empregasse quantas canoas e gentetivesse, para obter o sucesso completo naoperação. Isso era decisivo para Marlière,pois tanto na Corte como em Ouro Preto to-dos estariam com os olhos voltados “... àespera de ver como nos saímos desta novae primeira empresa”. Para garantir o suces-so, mandou o alferes comandante da 6a

DMRD empregar todos os índios que pudes-se reunir, mas que não deixasse de contabi-lizar a despesa à conta que seria paga porMonlevade.

O comandante da 6a DMRD levou manti-mentos para a expedição que acompanhavaas máquinas desde o Rio de Janeiro. Marliè-re ordenou que fossem mostradas as instru-ções ao chefe da expedição, Achélles Lou-renço Le Noir (sic), para que este se intei-rasse das providências ordenadas. Finaliza,dizendo que se as canoas e gente da 1a e 4a

divisões não fossem suficientes, a 6a Divisãonão deveria, de modo algum, deixar de con-tinuar o auxílio até o fim, pois mais impor-tante era o cumprimento da missão e maishonra haveria de resultar para esta divisão.62

59 Cf. Ofício de Marlière ao comandante da 6a, 3 de setembro de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 466.60 Cf. Ofício de Marlière ao comandante da 6a DMRD, 27 de setembro de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12,

1907, p. 476.61 Cf. Ofício de Marlière ao comandante da 4a DMRD, 3 de outubro de 1827; RAPM, Belo Horizonte, v. 12,

1907, p. 477.62 Cf. Ofíicio de Marlière ao comandante da 6ª DMRD, 5 de outubro de 1827; RAPM, Belo Horizonte, v. 12,

1907, p. 477.

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No mesmo dia, seguiu ordem ao coman-dante da 1a DMRD para que expedisse o au-xílio e se colocasse de prontidão na Cacho-eira de Baguari, com bastante gente, manti-mento e todos os índios que conseguissereunir. Marlière comunicava que o “trem”estava no Rio Doce, pesava 475 arrobas,mas que não era para se preocupar, pois “oCuieté ajudaria” se ele tivesse dificuldade.Marlière voltava a afirmar que era muitoimportante para a província que as divisõescolocassem as máquinas em Minas: “O Riode Janeiro olha para nós! Unam-se todas asdivisões para este interessante fim”.63

A estação das chuvas chegou e as má-quinas não apareceram na barra do Rio Docecomo era previsto. As divisões recolheram-se aos quartéis depois de esperar inutilmen-te nos locais marcados. As preocupaçõesde Marlière aumentaram e, em 13 de novem-bro, expediu ordem às divisões para ficaremaguardando, porém em estado de prontidãoe, logo que houvesse notícia da aparição daexpedição na barra do Rio Doce, fossemacionadas pelo alferes comandante da 6a

DMRD. Este ficou incumbido de enviar umacanoa militar ligeira às outras divisões, tãologo recebesse o aviso da chegada das má-quinas e, em caso de não se poder realizar otransporte por causa da cheia do rio, man-daria avisar de novo, para que elas se reco-lhessem aos quartéis, pois não convinha ex-por a saúde de tanta gente inutilmente.64

Com a chegada das chuvas, não haviamais nada a fazer nas imediações do RioDoce. Marlière deixou o Quartel central doRetiro e dirigiu-se para o Quartel de Guido-val, onde ficava sua família e propriedades.Deixou o sargento-quartel mestre no coman-do, com ordens para que lhe comunicasseimediatamente qualquer notícia da expedi-ção com as máquinas para a fábrica de Mon-

levade ou do seu “não sucesso”, ou seja, emcaso de algum acidente. Pediu ao substitutoque, se fosse possível, queria receber umrelatório do próprio Lourenço Achilles LeNoir (sic).65

Marlière estava apreensivo e suspeitavater acontecido alguma coisa, pois era paraas máquinas terem chegado à barra do RioDoce. Elas haviam deixado o Porto do Rio deJaneiro numa sumaca comboiada por duaspequenas embarcações de guerra. Ele es-creveu ao vice-presidente da Província ex-plicando que deixara o Rio Doce porque suapresença era desnecessária e, na região doRio Pomba, era preciso acompanhar a aber-tura da estrada carroçável para Campos dosGoitacazes e abertura de outros caminhos.Informou que expediu ordens ao alferes co-mandante da 6a DMRD para, em caso “denão sucesso ou de inundação excessiva”,recolher aos quartéis e deixar o transportepara a próxima estação da seca; finalizava,dizendo: “se os corsários não nos pouparamjá este trabalho”. 66

Somente em fevereiro do ano seguinte,Marlière recebeu notícia do Sr. LourençoAchilles Le Noir (sic), escrita da cidade deVitória, em 12 de novembro do ano anterior.Imediatamente respondeu, informando queno lugar das cinco canoas que pedira, man-dou doze, guarnecidas com os respectivoscanoeiros e víveres, além daqueles manti-mentos que ele havia pedido. Comunica queforam as canoas de Minas até Regência semque tivesse notícia dele, daí recolheram-seaos quartéis. Mas o alferes comandante da6a Divisão estava ciente e de prontidão paraexecutar o serviço, bem como avisar às ou-tras divisões militares para se colocarem noslugares marcados, assim que a expediçãoaportasse na barra do Rio Doce e ele fosseavisado. Marlière supôs que as máquinas já

63 Cf. Ofício de Marlière ao comandante da 1ª DMRD, 5 de outubro de 1827; RAPM, Belo Horizonte, v. 12,

1907, p. 478.64 Cf. Circular de Marlière, 13 de novembro de 1827; RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 485.65 Cf. Ordem do Dia, 24 de novembro de 1827, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 486.66 Cf. Ofício de Marlière dirigido ao vice-presidente, 16 de dezembro de 1827, Op. cit.

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estavam na barra, pelo tempo que transcor-rera. A carta foi levada por um soldado até aVila de Itapemirim, de onde deveria ser des-pachada para o chefe da expedição.67 Namesma ocasião, chegou correspondência dopresidente da Província determinando queas despesas deveriam ser todas calculadaspara que pudessem ser cobradas de Monle-vade, não devendo ficar qualquer gasto paraser coberto pela Fazenda Pública.68

Marlière estava certo, a 6a DMRD já ha-via iniciado o transporte das máquinas. Em2 de março de 1828, comunicava ao presi-dente da província que as máquinas, as quaisjulgara perdidas, já estavam a caminho dePorto das Canoas e, segundo informaram ostripulantes de uma canoa de comércio, en-contravam-se entre a Vila de Linhares e asCachoeiras das Escadinhas.69 Nesse ponto,no lugar denominado Pau Gigante, houve atransferência da carga para as canoas mili-tares da 6a DMRD, comandadas pelo Sargen-to Manoel Antônio, conduzidas por hábeiscanoeiros. As canoas de transporte eramescoltadas por canoas que conduziam todossoldados divisionários e muitos índios boto-cudos, para auxiliarem nas baldeações nascorredeiras e cachoeiras.

A 6a Divisão conduziu as máquinas comsucesso, varando todos os obstáculos, atéchegar a salvo ao Quartel de Baguari, per-tencente a 1a DMRD. Depois da baldeaçãona Cachoeira de Baguari, o comandante da6a DMRD decidiu continuar com a carga atéo destino, agora com o auxílio dos divisioná-rios e índios da 1a DMRD. Na Cachoeira Es-cura, se juntaram os praças da 2a e 4a DMRD.Em 18 de abril de 1828, Marlière escrevia

ao editor do jornal Universal, de Ouro Preto,dando a notícia de que acabavam de chegarao destino as máquinas cilíndricas vindas daInglaterra para a fábrica de ferro de Monle-vade. Segundo Marlière, a operação foi umsucesso e nada custou ao governo, pois asdespesas correram todas por conta de Mon-levade. Prosseguiu com elogios aos “intrépi-dos lanceiros da 6a Divisão e seu beneméri-to alferes Comandante Joaquim Rodriguesde Vasconcelos”, a quem cabiam os agrade-cimentos da sua Pátria e recompensa doImperador. Finalizava dizendo que, “naquelesoberbo rio”, desejava ver a navegação, cul-tura e comércio animados pelo corpo legis-lativo e pelo governo.70

O transporte dos equipamentos para afábrica de ferro de Monlevade criou uma si-tuação de estrangulamento para as outrasmissões e para as tarefas rotineiras desem-penhadas pelas divisões militares. Até oabastecimento alimentar ficou prejudicado,porque não havia particulares disponíveispara serem contratados. Marlière pedia pa-ciência aos alferes comandantes, pois ossuprimentos dependiam de aparecer servi-ço de canoa.71

No final de 1828, em seu relatório, comu-nicou que naquele ano não foram cumpri-das as ordens dadas ao alferes comandanteda 5a DMRD, referentes à abertura de cami-nhos, da navegação e do cultivo da terra doSuacuí Grande. O plano era constituir umalinha de defesa formada pelos Rios SuaçuíGrande e Urupuca até o Rio Jequitinhonha,circunscrição da 7a DMRD. Marlière infor-mou ao governo que não havia meios da 5a

DMRD estabelecer a linha de defesa, abrir a

67 Marlière explica que a carta foi escrita em português porque, sendo do imperial e nacional serviço,deveria ser escrita na língua do País. Cf. Ofício de Marlière, 5 de fevereiro de 1828, RAPM, Belo Horizonte,v. 12, 1907, p. 515.68 Cf. Ofício do presidente da província, 11 de fevereiro de 1828; RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 432.69 Cf. Ofício de Marlière ao presidente da província, 2 de março de 1828; RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907,p. 518.70 Cf. Correspondência de Marlière, ao editor do periódico Universal, de 18 de abril de 1828; Apud.Francisco Magalhães Gomes. História da Siderurgia no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,1983, p.110-111.71 Cf. Ofício de Marlière, 25 de março de 1828, RAPM, Belo Horizonte, v. 11, 1906, p. 238-239.

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navegação e colocar postos militares de trêsem três léguas, como eram as ordens, poisera uma linha de 60 léguas e ela contavasomente com 60 praças, distribuídos entrePeçanha e o Quartel de Ramalhete. 72

O governo queria abrir um caminho fluvi-al para o algodão de Minas Novas e, ao mes-mo tempo, disponibilizar mais territóriospara as frentes de ocupação que avançavamdesde aquele distrito para o sertão. Deter-minou que Marlière providenciasse os mei-os para facilitar a referida navegação, colo-cando um soldado prático à disposição decada canoa que fosse enviada à beira-mar;também, que, na barra do Suaçuí Grande eem cada uma das cachoeiras fossem colo-cados praças das divisões para defenderemos navegantes e passageiros e os auxiliaremna transposição dos obstáculos.73 Marlièredisse ao governo que os obstáculos naturaiseram muitos, que não possuía homens sufi-cientes e, portanto, que a 5a DMRD não po-dia executar as ordens.

As relações entre o governo da província eas divisões militares ficaram estremecidas,particularmente pelo fato dos alferes coman-dantes e de Marlière serem vinculados ao Exér-cito e subordinados, em última instância, aogoverno central. Em correspondência ao Se-cretário de Estado dos Negócios do Império,de dezembro de 1828, o Presidente de Minasfaz críticas às divisões militares, dizendo que,até àquela data, contando desde a criação dasdivisões militares, já haviam sido gastos pertode 460 contos de réis no Rio Doce, sem que setivesse colhido qualquer retorno para a Fazen-da Pública.74 Marlière se contrapôs, culpandoo próprio governo provincial de não oferecer

os meios para as ordens serem cumpridas.Alegava que não tinha soldados disponíveispara iniciar novos serviços, pois a sua tropa jáestava empregada na civilização e catequesedos índios, na abertura do caminho, na patru-lha do Rio Doce e na guarnição dos quartéisespalhados por todo o sertão do Rio Doce. Nofinal, desabafou dizendo que o Conselho Pro-vincial solicitava tarefas impossíveis de seremcumpridas.75

OS INGLESES CONSEGUEM ACONCESSÃO PARA A NAVEGAÇÃODO RIO DOCE

A indisposição do governo provincialcom as divisões militares, contraditóriocom o sucesso alcançado no transporte dasmáquinas para a fábrica de Monlevade, estáligada a interesses econômicos que se for-maram para explorar a navegação do RioDoce. No final de 1829, o governo de MinasGerais abandona da tese de “quem princi-piou, deve concluir a obra”. O PresidenteMendes Ribeiro, dirigindo-se ao ConselhoGeral da Província, falou da necessidadede “aliciar empresários à navegação do RioDoce” como meio de ampliar o escoamen-to, o consumo e, com isso, fazer aumentara produção. No relatório do presidente daprovíncia de 1830, afirmava-se que haviafracassado o objetivo perseguido durantea década anterior.76 No relatório de 1831,informou que “outra sociedade será promo-vida para a navegação do Rio Doce com oestabelecimento de armazéns nos diferen-tes lugares, e barras dos Rios Cuieté, Sua-çuí, Santo Antônio e na Província do Espíri-to Santo.”77

72 Cf. Relatório, 5 de dezembro de 1828, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 554-557.73 Cf. Ofício de João José Lopes Mendes Ribeiro, 16 de fevereiro de 1829, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907,p. 440-441.74 Estes gastos correspondiam às despesas de manutenção das divisões militares e de suas atividades. Cf.Ofício de João José Lopes Mendes Ribeiro, 20 de dezembro de 1828, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p.443.75 Cf. Ofício de Marlière, 2 de abril de 1829, RAPM, Belo Horizonte, v. 12, 1907, p. 573-575.76 Relatório Provincial de 1830. RAPM, Belo Horizonte, v. 17, 1912, p. 100-105.77 Cf. Relatório Provincial de 1831. RAPM, Belo Horizonte, v. 17, 1912, p. 105-113

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Em julho de 1831, o Jornal Universal deOuro Preto noticiava as medidas do governoprovincial para superar a escassez de sal eos altos preços dos gêneros de consumo dapopulação. O presidente encarregou o Capi-tão José Joaquim de Barros, pessoa conhe-cida da sociedade mineira da época, de im-pulsionar a formação de uma sociedadepara a navegação do Rio Doce. O discursode acepção liberal que marca o pronuncia-mento do presidente, “convencido que esta-

va de que o cidadão é que traz a prosperidade

sem o auxílio do governo”, apenas convidaos cidadãos a que se reúnam, deixando tudoao seu livre arbítrio.78 Em 13 de agosto de1831, os deputados de Minas na Corte fize-ram publicar no jornal Correio Mercantil doRio de Janeiro, anúncio destinado aos nego-ciantes daquela praça, comunicando que anavegação do Rio Doce se achava aberta econvidando-os a se interessarem pelo negó-cio. Segue a assinatura de 17 deputados,todos de relevo na política do Império, taiscomo Bernardo Pereira de Vasconcelos,Evaristo da Veiga e Honório Hermeto Car-neiro Leão.79

O Conselho Geral da Província publica naimprensa uma convocação para companhi-as nacionais ou estrangeiras, que queiramempreender a navegação do Rio Doce, Je-quitinhonha e seus confluentes, abrir novasestradas, reparar as existentes.80 Em 23 deoutubro de 1832, a Regência sancionou re-solução com a proposição integral enviadapor Minas, que sugeria concessão de privi-

légios. Em agosto de 1833, a Companhia doRio Doce foi formada em Londres, por JoãoDiogo Sturz, com capital de sócios brasilei-ros e estrangeiros, os mesmos de 1824. Afinalidade da sociedade era a navegaçãoregular entre o Rio de Janeiro e a foz do RioDoce e a navegação fluvial desse rio, utili-zando barcaças, sumacas ou embarcaçõesmaiores, construídas de propósito com qui-lhas rasas para que pudessem alcançar asCachoeiras das Escadinhas, servindo-se dedois barcos pequenos, a vapor, como rebo-cadores.

A companhia propunha-se a realizar aabertura do canal, porém enquanto durasseo trabalho, manteria de 20 até 30 canoas de120 a 150 arrobas, operando em comboiosempre no mesmo trecho do rio, a fim de oconhecerem tão familiarmente que se apro-veitariam até das noites de luar para a suanavegação.81 Com muito cuidado, para con-tornar o motivo central da oposição dos mi-neiros contra os estatutos de 1825, a Com-panhia trata do direito sobre as riquezas mi-nerais e propõe empregar geólogos hábeispara conhecer os lugares ricos de ouro e deoutros metais e a financiar a exploração porterceiros, dando a preferências aos sóciosque quisessem assumir o negócio ou quepreferissem unir-se a outros sócios e fossementendedores da mineração.82 O governoprovincial apoiava a companhia anglo-brasi-leira com o argumento de que havia fracas-sado o esforço próprio para promover a na-vegação do Rio Doce.83

78 Cópia manuscrita do artigo publicado no Astro de Minas, no 571, de 23 de julho de 1831, transcrito do O

Universal de Ouro Preto. AN, AP-5, Cx. 1, Pacote 2.79 Cópia manuscrita do anúncio publicado no Astro de Minas, nº 581, de 16 de agosto de 1831, transcrito dojornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro. AN, AP-5, Cx. 1, Pacote 2. Os liberais moderados desejavam asmudanças dentro da ordem social e que elas fossem regidas pela razão e pelos princípios da civilização.Para eles, as reformas somente permaneceriam se fossem lentas e por meios legais. Bernardo Pereira deVasconcelos foi um dos principais artífices da ordem imperial.80 Cf. Cópia manuscrita de artigo publicado no jornal Astro de Minas, no 699, de 19 de maio de 1832, transcritodo jornal O Universal de Ouro Preto. AN, AP-5, Cx. 1, Pacote 2.81 Cópia manuscrita do estatuto, publicado no jornal O Universal, no 832, Ouro Preto, 26 de novembro de 1832.AN, AP-5, Cx. 1, Pacote 2.82 Cf. Ibidem.83 Cf. Relatos de expedições pelo Rio Doce e Jequitinhonha. APM, SP PP 1/15, Cx. 93, doc. 28.

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O relatório provincial de 1832, afirma queo orçamento não permitia repassar valoressuficientes para as câmaras municipais re-alizarem os trabalhos de melhoria dos cami-nhos, como determinava a lei. A situaçãoparecia mais grave, porque Minas Geraiscontinuava a enfrentar a escassez do sal esofria naquele ano uma conjuntura adversa,por causa da irregularidade das chuvas. Ogoverno reconhecia que nesse ano, “ou fos-se pelas alternativas da estação, ou por cau-sa de oscilações políticas, os empreendedo-res não concorreram tanto quanto se espe-rava no Rio Doce.”84 A transferência do pro-jeto de navegação do Rio Doce para a inici-ativa privada foi acompanhada por uma di-minuição da importância dada às divisõesmilitares. Entretanto, no mês de maio de1832, foi necessário enviar um comboio decanoas das divisões militares para comprar3.000 arrobas de sal em Linhares, pois ascanoas de comércio traziam de lá uma quan-tidade muito menor, de 300 arrobas.85

As divisões militares começavam a so-frer críticas, sendo acusadas de não apre-sentarem resultados e, principalmente, denão serem vinculadas à Província de MinasGerais, mas subordinadas ao Exército e aogovernador das armas. O Comandante-Ge-ral, Major Marlière, reclamava, ao gover-no, que era o estado de decadência das di-visões que dificultava o desenvolvimento danavegação.86 O presidente falou diretamen-te ao Conselho Geral da Província sobre oassunto: a Carta Régia de 13 de maio de1808 nomeou homens práticos em rompermatos e combater índios, apesar de lhes teratribuído a patente de alferes do Regimen-to de Cavalaria de 1a Linha de Minas. Eleconcluiu que a denominação de divisões

militares e a subordinação ao Exércitoeram impróprias, pois mais adequado seria“Guarda Matos e Rios”. A finalidade de suacriação não foi outra, “senão o de romperas matas com estradas, proteger os colo-nos, fazer roças e plantações para seu sus-tento e dos índios que concorressem pací-ficos ou se aldeassem”.

O presidente de Minas Gerais fez um ba-lanço negativo dos trabalhos executadospelas divisões, resumindo-os em terem ven-cido algumas “hordas selvagens” e aldeadooutras, gastando-se grandes somas de re-cursos, “sem contudo colher as vantagensesperadas da civilização porque não gostan-do os índios do trabalho preferem muitasvezes entrar nas matas e prosseguir nos seusprimitivos exercícios de caça, donde voltamalguns com poaia que vendem a troco deferramentas e roupa”. Entretanto, não ti-nham sido totalmente inúteis, pois tinhamservido para devassar as matas e contataras diversas nações que as habitam. No final,o presidente disse aos deputados que nãovia, ainda, condição de dissolver as divisões(“mas extingui-las não tem por hora lugar”),mas defendeu sua reforma, dando-lhes re-gulamento mais apropriado.87

No relatório de 1833, o Presidente Antô-nio Paulino Limpo de Abreu afirma que asobras públicas de que a Província mais ne-cessita “são boas estradas e pontes, abertu-ras de canais e navegação de rios”, particu-larmente, a navegação do Rio Doce. A situa-ção de Minas foi considerada, “por hora,muito pouco lisonjeira”, pois as leis que fa-voreciam a entrada de empresas nacionaisou estrangeiras não tinham produzido os re-sultados esperados, por falta de empresári-os que se interessassem pelo negócio.88 En-

84 Cf. Idem., p. 117.85 Cf. Relatório Provincial de 1832. RAPM, Belo Horizonte, v. 17, 1912, p. 113-126. Em 6 de junho, a expediçãodo Capitão Lizardo, a caminho da frente de trabalho da Linha Divisória, ajudou a varar o comboio naCachoeira de Baguari.86 Relatório do comandante-geral das divisões. APM, SP PP 1/15, Cx. 91, doc. 6.87 Cf. Ibidem., p. 119.88 Cf. Relatório Provincial de 1833. RAPM, Belo Horizonte, v. 17, 1912, p. 126-136.

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tretanto, as expectativas eram altas: “A na-vegação do Rio Doce parece que brevementevai a ser empreendida por uma sociedadedebaixo da direção de Mr. Sturz conforme alei de 23 de outubro de 1832, o decreto dogoverno de 29 de dezembro do mesmoano”.89 Esperava-se que o sucesso da Com-panhia do Rio Doce atraísse pessoas de ne-gócios, dando a Minas uma nova fase de es-plendor, com o aproveitamento de sua vastaextensão de terras férteis.90

No Espírito Santo, em meados de 1933, oMajor engenheiro Luiz D’Alincourt, contra-tado pelo Presidente da província ManoelJosé Pires da Silva Pontes, estava “desincum-bindo-se da comissão que lhe foi conferidade reconhecimento do Rio Doce e de outrosrios que possam ser comunicáveis e dasCachoeiras das Escadinhas”.91 Esse proce-dimento foi semelhante ao tomado pelo pre-sidente da Província de Minas Gerais, queencomendara estudo semelhante ao AlferesFrancisco de Paula Mascarenhas. Isso indi-cava que os governos provinciais procura-ram obter dados que lhes dessem parâme-tros para avaliar o que fosse apresentadoposteriormente pela Companhia do RioDoce.92

O presidente da Província de Minas man-tinha uma posição otimista e referia-se àcompanhia anglo-brasileira como aquelaque iria tornar real a navegação a vapor noRio Doce. Apesar do sucesso das ações da

companhia na Bolsa de Londres, o presiden-te da província estava temeroso com a pos-sibilidade dos ingleses desistirem, caso en-xergassem maiores obstáculos do que tinhasuposto. Em princípio de 1834, assim que osengenheiros da empresa iniciaram os traba-lhos, o presidente de Minas já falava na ne-cessidade do governo imperial atender assolicitações e ampliar os privilégios da Com-panhia do Rio Doce. O Presidente AntônioPaulino falou ao Conselho-Geral da provín-cia da necessidade de uma lei que garantis-se mais proteção ao capital e lucros paraque companhias pudessem investir commais segurança.93

Nesse contexto, em que o foco de aten-ção voltou-se para a companhia anglo-brasi-leira, não se colocava mais como tarefa dasdivisões militares promover a navegação.Elas tinham sido relegadas ao segundo pla-no, como forças de terra, destinadas “a rom-per as matas” com estradas; a manter osíndios pacificados, garantindo-lhes as plan-tações de subsistência, e a proteger os colo-nos que entrassem para os sertões.94

Em 1835, foi aprovada pela AssembléiaGeral a autorização para o governo conce-der por 40 anos, à Companhia do Rio Doce,a exclusividade para empreender a navega-ção por meio de barco a vapor, ou outrossuperiores, não só nesse rio, mas nos seusconfluentes, e entre eles e a capital do Im-pério e da Bahia.95 O Governo Imperial ofici-

89 O presidente Antônio Paulino se refere a Diogo João Sturz Stockerx-Change, que estava à frente daCompanhia do Rio Doce.90 Cf. Relatório Provincial de 1833. Op. cit., p. 132.91 Cf. Carta de Manoel José Pires da Silva Pontes, de 31 de junho de 1833. IHGB, Lata 60, Documento 29.92 Com um preparo maior do que o do Alferes Francisco de Paula Mascarenhas, encarregado dos serviçospelo governo mineiro, ele forneceu dados bastante completos da foz, a medição do calado do rio e descre-veu seu curso. Cf. Cartas do Governador do Espírito Santo Manoel José Pires da Silva Pontes e do Sargento-Mor Luiz D. Alincourt, sobre o reconhecimento da foz do Rio Doce e do curso, até o porto de Souza, e aMemória apresentada pelo referido sargento-mor. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Lata 60, Docu-mentos 30 e 47.93 Cf. AN. Relatório Minas Gerais, 1835/1837/ nº 004.0-79 / Microfilmes – Relatório de 1835, p. XII.94 O governo aguardava a aprovação pelo governo geral da reforma proposta em 1833, desligando as divisõesdo Exército e as subordinando à esfera provincial, como uma companhia de pedestres. Cf. Idem., p. XX.95 Cf. Cópia de publicação de artigo do jornal O Universal, no 12, de 27 de janeiro de 1836, de Ouro Preto. AN.,AP – 5, Cx. 1, Pacote 2

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alizou, pelo Decreto de 7 de janeiro de 1836,o contrato com a Companhia do Rio Doce. Anavegação por vapor teria início no prazo de18 meses, a contar da data do decreto, casocontrário haveria multa de 10 contos, porémconsiderar-se-ia iniciada a partir do “exameprático dos engenheiros”. A companhia es-tabeleceu uma meta sedutora para os mi-neiros: garantiu que, em dez anos, a viagementre a cidade de Mariana e a do Rio de Ja-neiro ou de Salvador, iria durar 15 dia, e quetransportaria pelo rio todo e qualquer volu-me, independente do tamanho; e que, em 15anos, conseguiria o mesmo tempo de viagempara a comarca do Serro Frio.96

Em 25 de janeiro de 1836, o jornal O Uni-

versal defendeu abertamente a concessãode vantagens para o capital estrangeiro queviesse explorar o setor de mineração e na-vegação, por ser isso benéfico à Provínciade Minas e ao Brasil. Dizia que a oposiçãohavida em 1825 era apropriada para a épo-ca, em que pouco se conhecia e faltava ex-periência política, mas a de 1836 não faziasentido, pois já estavam comprovados osbenefícios que isso traria.97 Um decreto de9 de agosto de 1836 ampliou os privilégioscom uma série de vantagens e isenções deencargos, além de autorizar o aumento daconcessão para 80 anos.98 A Companhiaadquiriu o direito exclusivo de estabelecer ereceber taxas e fixar os valores dos fretes,pedágios e direitos de passagem. A compa-nhia teria ainda a isenção, por cinco anos,

dos direitos de importação, de tudo que fos-se comprado para si. Os seus empregadosficariam livres de recrutamento militar, porcinco anos, menos em caso de guerra. Pelodecreto acima, seriam transferidos para aempresa todos os terrenos e benfeitoriaspertencentes às divisões militares.99

Os governos provinciais de Minas Geraise do Espírito Santo e o Império transferirampara a Companhia do Rio Doce o controlesobre todo o curso do rio, seus afluentes eterritório, inclusive o privilégio de estabele-cer os regulamentos para a navegação doRio Doce e confluentes e de exigir seu cum-primento. A companhia poderia reger sobretodos os assuntos que se referiam ao rio,tais como pontes, canais, represas, esgotos;formular e fazer cumprir regulamentos poli-ciais, aos quais estariam todos subordina-dos, inclusive os engenheiros enviados pelogoverno. A companhia poderia manter suaprópria polícia, com contingentes fornecidospelo governo ou, se este não achasse con-veniente fornecê-los, a companhia poderiaalistar, fardar e armar certo número de ci-dadãos brasileiros, fornecendo-lhe os preci-sos oficiais para comandá-los.

Passados os primeiros seis meses, diri-gindo-se aos parlamentares, o governo ma-nifestou-se num tom otimista e informou queum agente da “companhia de navegação,comércio e colonização do Rio Doce haviarequisitado auxílio para os trabalhos que os

96 Cf. AN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / nº 004.0 – 79 / Microfilmes / Relatório de 1836.97 Cf. Copiado do jornal O Universal, nº 11, de 25 de janeiro de 1836. AP – 5, CX 1, Pacote 298 O decreto de 9 de agosto de 1836 tornou sem efeito o decreto anterior, de 8 de janeiro de 1836, demons-trando que a tese de abertura total ao capital estrangeiro havia vencido. Duas das principais figuras dapolítica mineira, Antônio Paulino e Bernardo Pereira de Vasconcelos, foram o presidente e vice-presidentede Minas entre março de 1834 e abril de 1835, sucedendo-lhes Manoel Ignácio de Melo e Souza, um dosdefensores do movimento pela concessão ao capital externo, que fora presidente, pela primeira vez, em1831, e iniciou o desmonte das divisões militares. Em 1835, os dois primeiros ascenderam ao primeiroescalão do poder central. O decreto é assinado por Antônio Paulino, Ministro e Secretário de Estado dosNegócios Estrangeiros, acumulando interinamente a Secretaria de Estado dos Negócios do Império.99 O governo não podia acabar com as divisões, mas queria transformá-la numa guarda de pedestressubordinadas às autoridades provinciais. A posição do governo mineiro radicalizou-se contra as mesmas. Ossoldados das divisões foram vistos como corrompidos e pouco menos bárbaros que os selvagens, incapazesde dar exemplo de civilização. O ideal era a vinda de missionários, protegidos e auxiliados pelas divisões,com os recursos da religião, para aldear e paroquiar os índios.

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engenheiros iriam realizar nas margens des-se rio. Ele estava em Vitória para receber ese unir à primeira expedição que iria subir oRio Doce.100 O otimismo do governo era ain-da maior no início do ano seguinte:

“Quando trato deste objeto fora impossí-vel deixar em silêncio a grandiosa empre-sa do Rio Doce, que protegida pela As-sembléia Geral Legislativa, e auxiliadapelos bons desejos e entusiasmo de to-

dos os brasileiros (...), pode ser tão útil anossa Província em particular que virámesmo a mudar a sua face no que dizrespeito à agricultura, indústria e comér-

cio, fazendo que se desenvolvam inume-ráveis elementos que hoje ou são desco-nhecidos ou desprezados.”101

Como previa o contrato com o governo, oenvio de um médico e um agente para o RioDoce fora o suficiente para se considerariniciada as atividades da Companhia. Em ja-neiro de 1837, o superintendente da compa-nhia, Eduardo Alchorne, seguiu de Vitóriapara a Corte, onde conseguiu modificar “cer-tas disposições do decreto de 9 de agosto”,adequando-o às exigências feitas pela dire-toria de Londres. Retornou à Cidade da Vitó-ria, aonde chegou ao fim de abril num bri-gue inglês, provavelmente a primeira embar-cação de alto bordo desta nação que tenhaentrado naquele porto, trazendo a esperadaexpedição de quatro engenheiros, oito artífi-ces e “mais de 200 volumes com instrumen-tos matemáticos, mantimentos, bagagens”.Junto trouxe um barco de ferro de 80 pal-mos de comprimento, capacitado a carre-gar 1.200 arrobas em um calado de menosde dois palmos de água, e que podia ser des-manchado em quatro peças, quando se ti-vesse que baldear grandes distâncias.

O superintendente fretou um iate paraconduzi-lo ao Rio Doce, pois era tal o terrorque causava a sua barra que não lhe foi pos-sível achar qualquer outra embarcação. O

medo não era infundado como se provoulogo depois.

“No princípio de maio, saiu a expediçãoda cidade da Vitória, acompanhada dobarco de ferro, e entrou no Porto da Al-

deia Velha, onde demorou-se 12 dias aespera de marés (...) Finalmente partiuda Aldeia Velha (...) e pouco depois domeio-dia entrou o barco de ferro a salvono rio, outro tanto, porém, não aconteceu

ao iate, que em poucas horas fez-se empedaços sobre a costa um pouco ao sulda barra (...) Este desastre [fez atrasar aexpedição](...) de maneira que só nos fins

de junho chegaram os engenheiros àsEscadinhas, no barco de ferro, e nos últi-mos dias de julho começaram o (exame)do rio no Porto do Souza...”102

Para Eduardo Alchorne, a insalubridadedo rio em certas épocas não era um fatortão grave, como se dizia, pois, das mais oumenos 40 pessoas da expedição, cinco fi-caram doentes e apenas uma morreu, numespaço de cinco meses. Era sua opinião quepor meio do “dessecamento dos pântanos,descortino das matas, plantações, e outrostrabalhos, concluiremos sem dúvida que asenfermidades endêmicas não oporão inven-cível obstáculo à magnífica empresa, deque tenho tratado”. A diretoria de Londresinformou que encomendara uma grandemáquina a vapor para serrar madeiras,além de dois barcos a vapor, para servir dereboque, e outra muito maior para navegarno alto-mar. Uma nova expedição seriamandada da Europa, para chegar em mar-ço de 1838.

Em fevereiro de 1839, o presidente ex-pressou a sua satisfação por certificar aosparlamentares mineiros que a diretoria deLondres estava contente com os privilégiosconcedidos. Ela antevia “a probabilidade, ouantes certeza de consideráveis lucros”. Con-clui o presidente de Minas: “O simples exa-me desta informação (...) basta para demons-

100 Cf. AN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / No 004.0 – 79 / Microfilmes – Relatório de 1837.101 Cf. AN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / No 004.0 – 79 / Microfilmes – Relatório de 1838.102 Cf. Idem.

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trar as riquezas imensas, que deverá criaresta empresa gigantesca, riquezas que nãosó serão úteis aos acionistas dessa compa-nhia, como se difundirão por todo o nossosolo, dando uma nova vida a uma considerá-vel parte desta Província ...”103

Entretanto, o entusiasmo em torno doprojeto de navegação do Rio Doce se es-vaiu completamente depois de 1939, emfunção da falta de resultado prático daCompanhia do Rio Doce. Nos dois anos se-guintes, o assunto desaparece dos relatóri-os provinciais de Minas Gerais. Na verda-de, a multiplicação dos privilégios obtidospela companhia anglo-brasileira apresenta-va-se como uma excelente oportunidadeespeculativa no mercado de ações londri-no, numa época que foi marcada pela in-tensa especulação na bolsa de Londres compapéis de companhias formadas para atua-rem em Minas Gerais.104

O GOVERNO MINEIRO PERDE OINTERESSE PELA NAVEGAÇÃODO RIO DOCE

Em 1843, o assunto da navegação do RioDoce foi sepultado definitivamente pelo pre-sidente de Minas Gerais, na fala dirigida àAssembléia Provincial:

“Uma companhia estrangeira está se-nhora deste rio, e não sei que tenha tra-tado de efetuar a navegação das cacho-

eiras por meios diretos, nem mesmo quese tenham tentado outros meios, quesubstitua a navegação seguida, evitan-do as cachoeiras com planos inclinadosou canais laterais. Creio que a compa-

nhia se importará mais com as ricas ma-deiras, que irá tirando das matas em

proveito próprio, do que com interessesvitais do país, e aquele rio, por este mo-tivo, e porque estão concedidas as suasmargens por meio de sesmarias de mui-tas léguas a pessoas que não cuidam

de as povoar, ou que talvez não possamnem cultivar meia légua quadrada deterreno, será vítima do privilégio dessacompanhia, que obstará, enquanto exis-

tir, à sua navegação, e será vítima do pri-vilégio das sesmarias, a quem se deu odireito de conservar incultos esses gran-des espaços, evitando que outros ospossam povoar, e neste estado é melhor

cobrirmos esta parte da carta da Provín-cia com tintas negras, e não falarmosmais de Rio Doce”. 105

O assunto realmente desaparece dos re-latórios provinciais, nos anos seguintes, e,quando reaparece esporadicamente, sãomenções breves, como a de 1877: “O RioDoce, que serve a zona de leste e sul, apre-senta uma extensão navegável de 140 k.,desde Figueira até o Porto de Souza, limiteda província com o Espírito Santo.” A aten-ção volta-se para outros rios da província,particularmente os rios Mucuri, Jequitinho-nha e Velha/São Francisco. A fala do presi-dente Quintiliano José da Silva, de 4 de fe-vereiro de 1847, sobre o Rio Mucuri, repeteo clichê que o antes era utilizado para oDoce: “o Rio ofereceria as melhores vanta-gens para sistema fluvial pela facilidade denavegação, clima saudável e fertilidade desuas matas, é embaraçada pela ferocidadedos índios Giporocas, que em grande multi-dão habitam aqueles sertões.”106 A partirde 1853, além do Rio Mucuri, o Rio Jequiti-nhonha também passou a ocupar a aten-ção do governo, com a justificativa de se-rem terras habitadas, de terem fontes de

103 Cf. BN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / PRSPR – 111 / Microfilmes – Relatório de 1839.104 Cf. Fábio Carlos da Silva. Barões do ouro e aventureiros britânicos no Brasil. A companhia inglesa de

Macaúbas e Cocais. 1828-1912. São Paulo, 1997, 150 p. Tese (Doutorado) – Orientador Prof. Dr. José EduardoMarques Mauro. Universidade de São Paulo, p. 10.105 Cf. BN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / PRSPR – 111 / Microfilmes – Relatório de 1843.106 Em 1837, Victor Renault foi contratado para explorar os Rios Todos os Santos e Mucuri. Cf. AN., RelatórioMinas Gerais – 1835/1847 / Nº 004.0 – 79 / Microfilmes – Relatório de 1838. Até 1861, a Companhia doMucuri promoveu a ocupação e povoamento, trouxe imigrantes estrangeiros, construiu estradas e fundoupovoados. Cf. Paulo Pinheiro Chagas. Teófilo Ottoni. Ministro do Povo. 3 ed., Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;Brasília, INL, 1978. 433p.; 1a. ed., RJ, Livraria Ed. Zélio Valverde, 1943; 2a. ed., RJ , Livraria S. José, 1956.

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riquezas e do rio desaguar num porto movi-mentado.107

Depois de 43 anos de abertura da nave-gação do Rio Doce, o resultado tinha sidomuito minguado. Para Minas Gerais, a ocu-pação que havia começado como um proje-to de natureza econômica, que tinha comobase a transformação do Rio Doce em ca-nal, terminou como uma ocupação geopolí-tica: estar presente e controlar o espaço quelhe cabia pelos autos de demarcação de1800. Todo esse espaço ficou disponível parao avanço do processo de territorialidade daProvíncia de Minas Gerais.

A política governamental para o RioDoce, sem descontinuidade entre o perío-do colonial e a fase posterior à Indepen-dência do Brasil, havia concentrado esfor-

ços no processo de contato e atração dospovos indígenas, no policiamento do cursodos rios, na segurança dos locais onde osrios eram interrompidos por cachoeiras oucorredeiras e na abertura de estradas econstruções de pontes. Os gastos públicosconcentraram-se nesses campos, sendoque o maior montante foi despendido coma manutenção das sete divisões militaresdo Rio Doce e com o trabalho de atraçãodos índios. O governo limitou-a criar ascondições para os particulares promove-rem a navegação do Rio Doce, porém, seestá não se concretizou, por outro lado, asáreas de florestas ocupadas pelas divisõesmilitares haviam sido conhecidas, delimi-tadas, controladas e, conseqüentemente,incorporadas ao território da Província deMinas Gerais.

107 Cf. BN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847 / PRSPR – 111 / Microfilmes – Relatório de 1843. Os riosParacatu, das Velhas, Pardo e Mucuri também foram foco de interesse do governo entre 1834 e 1862, quandotambém desistiu desses projetos. Cf. BN., Relatório Minas Gerais – 1835/1847; Relatório Minas Gerais –1848/1854; Relatório Minas Gerais – 1855/1858; Relatório Minas Gerais – 1859/1866 / PRSPR – 111 /Microfilmes.

FONTES

DOCUMENTAIS

Jornal Minas Gerais, no 16, de 19 de janeiro de 1905. Arquivo Nacional, AP-5, Caixa 1, Pacote 2.

Fundo Família Lobo Leite Pereira, Arquivo Nacional, AP-5, Caixa 1, Pacote 2.

DECRETO de 11 de novembro de 1797, Lisboa, do Príncipe Regente D. João, Arquivo HistóricoUltramarino – Espírito Santo, cx. 05 doc. 46.

OFÍCIO de 23 de abril de 1800, Espírito Santo, do [Governador da Capitania do Espírito Santo],Antônio Pires da Silva Pontes [Pais Leme e Camargo], ao [Governador da Capitania de MinasGerais], Bernardo José da Silveira e Lorena, Arquivo Histórico Ultramarino – Espírito Santo,Caixa 06 doc. 15.

OFÍCIO de setembro de 1800, Porto de Sousa, do [Governador da Capitania do Espírito Santo],Antônio Pires da Silva Pontes [Pais] Leme e [Camargo], ao [Secretário de Estado da Marinhae Ultramar] D. Rodrigo de Sousa Coutinho, [Conde de Linhares], Arquivo Histórico Ultrama-rino – Espírito Santo, Caixa 06 doc. 21.

Carta Régia de 16 de agosto de 1810. Arquivo Nacional, AP-5, Caixa 1, Pacote 2.