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A INTELECTUALIDADE NEGRA EM CONCEIÇÃO EVARISTO:
VOZ INSURGENTE NO CAMPO ACADÊMICO LITERÁRIO
Juliana Souza Barbosa (UNIRIO/ FFP-UERJ)
Maria Betânia Almeida Pereira (FFP-UERJ)
Resumo:
A presente reflexão tem por objetivo discorrer sobre a intelectualidade negra representada
em Conceição Evaristo, mulher, negra, mãe, escritora, oriunda das classes populares,
professora doutora em literatura comparada. Trata-se de refletir, no campo acadêmico, o
efeito dessa trajetória de vida, do impacto de sua formação e atuação, e em que medida a
produção literária contemporânea ganha novos contornos e reflexões acerca da
representatividade da mulher negra na literatura. Neste sentido, pode-se perceber que a
obra literária, a par de suas especificidades, não pode escamotear a perspectiva
interseccional de classe, raça e gênero. Para tanto, a pesquisa debruçou-se, a princípio,
nos estudos sobre a história e o lugar de silenciamento e invisibilidade ocupado pelas
mulheres na sociedade, tendo como suporte teórico as contribuições de Michelle Perrot
(2008). Em seguida, foram pontuadas as contribuições do movimento feminista para a
desconstrução da mulher e luta pelos seus direitos, a partir das ideias de Simone Beauvoir
(1949); a significativa ação do feminismo negro, inserindo o recorte racial no interior do
movimento e fazendo emergir as vozes das intelectuais negras, como Djamila Ribeiro
(2018), Angela Davis (2017), dentre outras. Por fim, destaca-se a trajetória de Conceição
Evaristo na literatura brasileira, enriquecendo as questões de ordem conceitual, com o seu
projeto de “escrevivência”. Em termos de abrangência, tal projeto impacta o cenário
contemporâneo brasileiro, no intuito de conclamar vozes e olhares atentos para outras
produções e suas potencialidades. Esta pesquisa, portanto, seguiu uma abordagem
metodológica qualitativa bibliográfica.
Palavras-Chave: Intelectualidade negra; Conceição Evaristo; Literatura afro-brasileira;
História das mulheres.
Adentrar em um campo de reflexão que discorra sobre a mulher, mais
precisamente, a história das mulheres implica, de antemão, pontuar o lugar social de
silenciamento e subordinação em que foram inseridas ao longo do processo histórico.
Cabe também compreender que o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade (ocidental),
não se refere a um processo “natural”, engendrado a partir das dinâmicas e relações
sociais tecidas. Com efeito, trata-se de uma construção social, ou seja, o lugar da mulher
na sociedade foi estruturado.
Evidentemente, a própria concepção do que é ser uma mulher foi construída tendo
como sustentação as concepções ideológicas produzidas e inseridas em um dado contexto.
Nesse sentido, a cultura ocidental traz, em seu bojo, uma configuração e representação de
mulher pautada em comportamentos como a ideia de fragilidade, docilidade, portanto,
surge uma ideia universal de mulher. Felizmente, esta compreensão do que é “ser mulher”
vem sendo refutada por intelectuais comprometidas em desvelar os mecanismos que
operam de forma brutal na singularidade e subjetividade das mulheres (PERROT, 2002).
Quando a filósofa e escritora Simone de Beauvoir em sua célebre obra Segundo
Sexo (2009) afirma que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, Beauvoir está
justamente fazendo emergir na mentalidade e cultura vigentes o entendimento de que
“nenhum dispositivo biológico, psíquico ou econômico define a forma que a fêmea
humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (2009, p.37). Em
outras palavras, a percepção do que é “ser mulher” perpassa por um construto social.
Em sociedades marcadas pela lógica do patriarcado, compreendendo-o enquanto
poder e dominação dos homens sobre as mulheres, dentro de uma determinada estrutura
e ordem social, cabia a mulher apenas a esfera privada, a vida doméstica. Esta mulher
teria como “missão” a procriação, ou seja, gerar filhos, enquanto aos homens caberia a
esfera pública. Desde a antiguidade, entre os grandes filósofos gregos, havia de maneira
bastante contundente, a concepção da condição subalterna da mulher frente aos homens.
Aristóteles em sua obra A política já explicitava que “Quanto ao sexo, à diferença é
indelével: qualquer que seja a idade da mulher, o homem deve conservar sua
superioridade” (ARISTÓTELES, 1991, p. 29). O filósofo reitera que a força da mulher
se apresenta em sua árdua tarefa de vencer a dificuldade de obedecer enquanto que a força
do homem consiste em se impor (ARISTÓTELES, 1991, p.31).
Além de estar restrita à esfera privada, do lar, havia o controle de seus corpos, de
sua sexualidade. A esse respeito, no contexto colonial brasileiro, a igreja fomentava
discurso acerca do controle da sexualidade feminina. Tal perspectiva se sustentava pela
alusão ao mito do Éden, na figura de Eva e sua vinculação com a sedução. Dessa forma,
a mulher representava o mal e o pecado, assim para contê-lo, os corpos e o sexo das
mulheres deviam ser protegidos, fechados e possuídos (PERROT, 2008, p.64). Em
consonância com o exposto, é possível inferir que o controle dos corpos femininos
exercido tanto pelos preceitos da igreja, quanto pela sociedade em si dialoga com as
reflexões do historiador francês Michael Foucault (2009) quando discorre sobre o sistema
de controle, vigilância e disciplina das instituições (panóptico). Nesse sentido, o controle
do corpo e da sexualidade feminina constrói corpos dóceis e disciplinados, conforme a
ordem social.
No âmbito educacional, é possível perceber que a mulher também assumiu um
lugar de segregação do saber. Os conhecimentos transmitidos, àquelas que podiam
usufruir desse privilégio, eram direcionados para os afazeres da vida privada, sobretudo
tendo como fim agradar o futuro marido. Assim, havia uma explícita distinção entre o
ensinamento de meninos e meninas na escola, no sentido de que a pedagogia destinada
para as meninas referia-se ao ensino de técnicas de bordado, corte e costura; enquanto aos
meninos cabia o ensino de geometria e outras áreas do conhecimento. Segundo Perrot
(2008), o conhecimento dizia respeito a Deus e aos homens.
A ausência e invisibilização de mulheres no campo de produção do conhecimento
cientifico é algo que nos lança para a reflexão de que os discursos produzidos até
determinado momento da história foram feitos por homens. Tais homens discursavam em
nome da mulher, sobre as mulheres, apossavam-se de suas vozes. Nesse sentido, a
ausência de vozes, presenças e produções científicas se faz evidente no campo da
narrativa historiográfica, no campo literário, no campo filosófico, nas instâncias do saber
e do conhecer.
No entanto, o século XX aponta importantes contribuições científicas para pensar
a história das mulheres bem como representa um momento histórico fecundo no âmbito
dos movimentos reivindicatórios, representados por mulheres, na luta por seus direitos.
Trata-se de um período em que desemboca os movimentos de rupturas dos limites
impostos sobre mulheres em diversas esferas da vida social.
A exemplo disso, as reflexões teóricas da historiadora francesa Michelle Perrot
descortinam importantes categorias de análise para a profundar os conhecimentos acerca
da história das mulheres como a categoria do silêncio. A partir de uma perspectiva
historiográfica, Perrot (2008) salienta em sua obra, As mulheres ou os silêncios da
história, o quão invisibilizadas estavam as mulheres na sociedade e que o silenciamento
produzido devia-se, sobretudo, aos princípios religiosos e dogmáticos, como também aos
sistemas políticos e aos padrões de comportamentos impostos as mulheres. É
emblemática a afirmação de Perrot (2008, p.185), quando discorre sobre a mulher na
história “[...] da História, muitas vezes a mulher é excluída”.
Feminismos Plurais: Mulheres Negras Rompendo Fronteiras
Ao abordar sobre a história das mulheres é imprescindível destacar a significativa
contribuição do movimento feminista, visto que tais mobilizações representaram e
representam a concepção da mulher enquanto sujeitos históricos na luta por seus direitos
humanos. O movimento de mulheres desvela as opressões sofridas durante séculos e
anuncia o protagonismo social das mulheres no âmbito do trabalho, na liberdade de seus
corpos, na vida pública e política através do direito ao voto e outras demandas. É relevante
pontuar a significativa contribuição dos estudos de gênero, diante dos movimentos
reivindicatórios, uma vez que tais estudos ajudaram a desmistificar e descontruir a
hierarquia dos sexos, pautada na suposta superioridade do masculino em detrimento ao
mundo feminino. Pode-se deduzir, a partir das contribuições de Scott; Perrot; Gonçalves
que a história das mulheres se constrói por meio dos movimentos feministas.
Conforme salienta Gonçalves (2006) havia uma postura crítica dessas mulheres
militantes acerca da tradição intelectual que se estendia de Aristóteles a Freud e que
atravessava os historiadores, permanecendo assim uma concepção dicotômica entre
homem/cultura e mulher/natureza. Nesse sentido, esta concepção trazia em seu bojo a
associação do homem relacionado a aspectos de ordem racional, objetivo, público, ao
passo que mulher/natureza denota aspectos de ordem subjetiva, emocional, privada.
Em um movimento de desconstrução das opressões de gênero, o movimento
feminista representa a luta por uma sociedade cujos direitos individuais, de expressão, e
de formas de ser e estar no mundo sejam respeitados. Significa adotar uma postura de
indignação diante das barbaridades e brutalidades que ferem as liberdades individuais.
Nessa perspectiva, Amelinha Telles (1999) pontua que
Falar da mulher, em termos de aspiração e projeto, rebeldia e constante busca
de transformação, falar de tudo o que envolva a condição feminina, não é só
uma vontade de ver essa mulher reabilitada nos planos econômicos, social e
cultural. É mais do que isso. É assumir a postura incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que metade da humanidade se viu milenarmente
excluída nas diferentes sociedades no decorrer dos tempos (TELLES, 1999, p.
30).
Em se tratando de feminismo, a filósofa Djamila Ribeiro, em sua obra Quem tem
medo do feminismo negro? (2018), reitera as contribuições do movimento feminista no
Brasil, pontuando as ondas ou momentos específicos do movimento de mulheres, além
de adentrar para a concepção deste movimento mediante o recorte de raça.
No contexto brasileiro, Ribeiro (2018) explicita que no século XIX se evidencia o
que chamamos de primeira onda do movimento, entrando em pauta o direito ao voto e à
vida pública de mulheres como Nísia Floresta, Bertha Lutz e outras vozes. É fundada, em
1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com o objetivo de lutar pelo
sufrágio feminino e pelo direito ao trabalho sem a autorização do marido. No início da
década de 70, surge a segunda onda do movimento em um contexto de crise da
democracia. Nesse sentido, essa segunda onda combateu a ditadura e trouxe como pauta,
além da necessidade de valorização do trabalho da mulher, denunciando assim a divisão
sexual do trabalho, o direito ao prazer e a luta pela violência sexual, o direito ao divórcio.
Nesse momento cria-se, em 1975, o jornal Brasil Mulher, que circulou até 1980. Por fim,
segundo Ribeiro (2018), a terceira onda se inicia em 1990 tendo como expoente Judith
Butler que traz a discussão da micropolítica.
No interior do movimento feminista, a partir da década de 90, algumas feministas
problematizam as demandas e pautas levantadas, tendo em vista que a representação
política se ancorava na figura da mulher branca de classe média. Em outras palavras, a
maneira como o discurso por direitos das mulheres se efetivava, apontava uma
perspectiva excludente, pois não considerava a existência de outras formas de opressão,
ou seja, as mulheres não são aviltadas apenas pelo recorte de gênero e classe, como
também na variável raça. A esse respeito, Ribeiro (2018), explicita que, por exemplo, a
demanda por direito ao trabalho sem a autorização do marido nunca foi uma pauta para
as mulheres negras, submetidas ao processo de escravidão no século XIX. Desnaturalizar
essa compreensão do ser mulher e ampliá-la para uma perspectiva plural é um desafio
posto para a lutas das mulheres no atual contexto.
Em função disto, o feminismo negro brasileiro, recebendo influência, sobretudo,
das mulheres negras intelectuais norte-americanas (Bell Hooks, Ângela Davis, Audre
Lorde, Alice Walker, Kimberlé Crenshaw, Patrícia Hill Collins, dentre outras), opera com
o conceito de Interseccionalidade, no sentido de evidenciar que as opressões estruturais
são indissociáveis. Em outros termos, não há possibilidade de se pensar as categorias
classe, gênero e raça isoladamente. O conceito de Interseccionalidade foi cunhado na tese
de doutorado de Kimberlé Crenshaw, em 1989:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002. p. 177 ).
Até aqui, foi possível compreender o quanto as mulheres foram vítimas de
sistemas de opressão ao longo da história e como o movimento feminista contribuiu para
revelar tais violências tanto físicas quanto simbólicas. No entanto, cabe questionar: e a
mulher negra na história? Que lugar ocupa? Nesse sentido, a mulher negra na história
apresenta outros atravessamentos e outras demandas por direitos negados que ainda
precisam ser visibilizados na sociedade. Em Mulheres, raça e classe (1981), Ângela
Davis já denunciava a existência do racismo no momento feminista e propunha, assim,
uma luta antirracista, antissexista e anticapitalista.
Desconstruindo a concepção incorporada e a estrutura da mulher branca burguesa
como dominante, o feminismo negro instaura um novo marco na luta das mulheres por
seus direitos e traz a necessidade de contranarrativas e contradiscursos que coloquem a
mulher negra e as demais formas de ser mulher em lugar de sujeitos políticos de
legitimidade e visibilidade, rompendo com o silêncio imposto na história. Trata-se não
apenas do silêncio de um ponto de vista da emissão vocal, mas sim a quebra de um
silêncio epistêmico e existencial, para pontuar a sobrevivência das mulheres negras
(RIBEIRO,2018).
Em consonância com o exposto, Graba Kilomba (2012), salienta que:
Por não serem brancas nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição
muito difícil na sociedade supremacista branca. Representamos uma espécie
de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos,
branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. [...] Mulheres brancas têm um oscilante status,
enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas,
mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens
brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas,
pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem
brancas, nem homens, e exercem a função de “outro” do outro (KILOMBA,
2012, p. 124).
Em face das reflexões expostas, fica evidente que a história das mulheres está
efetivamente articulada ao movimento feminista e por sua vez, este movimento apresenta,
em seu interior, perspectivas plurais, ao que poderíamos chamar de feminismos plurais.
Um novo marco se instaura com a presença de outras mulheres que, mesmo com o
movimento feminista, estavam invisibilizadas, o que é o caso das mulheres negras. Cabe,
nesse momento da história, construir novos caminhos para que as mulheres negras
apareçam e ocupem, sobretudo, os espaços legitimados. Importa então lançar luz para
intelectuais negras que surgem, no contexto brasileiro, produzindo saberes e
compartilhando narrativas de suas histórias de vida.
Nesse sentido, tomando o campo literário como exemplo, destaca-se a presença
de Conceição Evaristo, mulher e negra, escritora que com sua produção literária vem
ressignificando a poética brasileira. Cabe, portanto, apresentar, sucintamente, sua
trajetória de vida e inserção no campo da literatura.
Conceição Evaristo – versos com rimas de sangue e fome
Maria da Conceição Evaristo de Brito, conhecida como Conceição Evaristo,
nasceu em 1946, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Oriunda das classes populares,
Conceição apresenta uma trajetória bastante atípica das mulheres de camadas pobres.
Embora com muitas dificuldades no percurso, a escritora galgou um caminho admirável
em sua formação e hoje representa um dos grandes expoentes no campo da literatura
brasileira.
Desde sua infância, Conceição (2009) relata que já trabalhava como doméstica
além de ajudar a levar as crianças vizinhas para a escola e ajudá-las no dever de casa,
funções que davam pequenos retornos financeiros. Em relação ao seu contato com o
universo das palavras, a escritora ressalta que não nasceu rodeada de livros, mas que
vivera num ambiente habitado por palavras em que todas as pessoas da família eram
seduzidas pela leitura e pela escrita: “A nossa casa vazia de bens materiais era habitada
por palavras. Mamãe contava, minha tia contava [...] Tudo era narrado, tudo era motivo
de prosa-poesia, afirmo sempre” (EVARISTO, 2009)
Após terminar seus estudos em uma escola normal em 1970, Conceição vem para
o Rio de Janeiro fazer concurso para magistério, onde entra em contato com o Movimento
Negro e com a militância. Em sua trajetória em Belo Horizonte, Conceição já recebia as
informações sobre as reivindicações do movimento negro norte americano e como a
escritora afirma, “já usava black power influenciada por Angela Davis” (EVARISTO,
2010).
Em ambiente carioca, Conceição conhece mais a fundo a cultura negra, o
candomblé, as palestras sobre as opressões da população negra; frequenta os debates que
ocorriam no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Foi, portanto, um
movimento de apropriação dos valores da cultura negra e sua realidade social.
Nesse contexto, Conceição é aprovada no curso de Letras, em 1976, para a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no entanto precisa interromper o curso,
já próximo de se formar, em função de sua gravidez. Sua filha Ainá nasceu com uma
síndrome genética e este imprevisto modificou seus planos e a conclusão do curso no
período estipulado. Ainda assim, Conceição retorna à universidade, conclui sua
graduação em 1989.
Durante sua trajetória, Conceição participa do grupo Negrícia: Poesia e Arte de
Crioulo, criado no Rio de Janeiro em 1982. Foi um período bastante fértil de produção
poética das margens. Nesse contexto, o grupo Negrícia fazia intervenções artísticas em
favelas, presídios, bibliotecas, outros espaços da vida social. Tratava-se de um momento
de produção literária do cotidiano, das vivências, trazendo sempre as dimensões da raça
e da emancipação das opressões sociais.
Nos anos 90, após a experiência no Negrícia e no Quilombhoje, Conceição
direciona seu olhar para o mestrado em literatura. Intrigada com a maneira como o negro
é representado na literatura brasileira canônica, Conceição ingressa no mestrado pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Nesse sentido, a escritora
desenvolve sua pesquisa intitulada Literatura negra: uma poética de nossa afro-
brasilidade (1996). Rompendo com a perspectiva de que cabe a mulher negra apenas
lugares como cozinhar, cantar, dançar, Conceição mostra que uma mulher pode assumir
o lugar da escrita, da intelectualidade.
A autora de Olhos d´Água, a partir de suas experiências como professora primária
e de seu movimento de pesquisa acadêmica, adota uma postura de inserir no campo da
literatura a discussão sobre o lugar do negro na produção literária. Nesse sentido, a
escritora negra também assume uma posição de militância dentro da academia que se
configura enquanto um campo de disputas. Ser uma intelectual negra dentro da academia
representa, no relato de Conceição, um corpo estranho, sobretudo quando a reflexão
proposta por tal intelectual aponta para o conhecimento crítico da questão racial, em um
campo de conhecimento efetivamente branco.
Seguindo o caminho acadêmico, Conceição dedica-se, ao doutorado em literatura
comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), concluindo em 2011, com a
tese intitulada, Poemas malungos: cânticos irmãos. Durante essa longa caminhada
acadêmica, Evaristo sempre trouxe em seu discurso a necessidade de pontuar a produção
intelectual negra e a representação da mulher negra, enquanto produtora de conhecimento
e agente de transformação e resistência.
Vozes-Mulheres na Escrevivência
Vozes-Mulheres
(Conceição Evaristo)
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação)
O eu-lírico que se constitui a partir das “vozes-mulheres” configura-se por
meio de (re)estruturação de um passado-presente-futuro em curso, uma vez que os tempos
não se cristalizam de maneira a ressaltar um período glorificado. As vozes das mulheres
que sustentam e amparam os corpos escravizados são demarcadas pelos elos de ligação
consanguínea que reafirmam a continuidade, quase inabalável, de uma hierarquia
socioeconômica. A voz da bisavó ecoa lamentos de uma infância perdida, nos porões dos
navios; a voz da avó ecoa obediência aos brancos; a voz da mãe ecoa baixinho revoltas
no fundo das cozinhas; a voz do sujeito poemático ecoa versos perplexos. E, para recolher
o coro de todas as vozes destas mulheres, a voz da filha que une “o ontem-o hoje-o agora”
e o porvir que ressoará “o eco da vida-liberdade”. Neste sentido, é interessante pensar que
passarão muitas gerações para que se possa ouvir ecos de uma liberdade, alcançada por
meio de muito sacrifício, suor e sangue.
Sacrifício, suor e sangue comporão o tônus das ações das personagens dos contos
“O sagrado pão dos filhos” e “Fios de ouro”, presentes no penúltimo livro de Evaristo,
Histórias de leves enganos e parecenças, publicado em 2016 pela Editora Malê.
Composto por prefácio, nota introdutória, doze contos e uma espécie de pequena novela,
a obra revela, na urdidura dos textos, potências de personagens que subvertem o status
quo violento, opressor e conflituoso por meio de cenas e características consonantes com
os atributos de figuras heroicas. Povoam nessas narrativas, em sua maioria, mulheres em
situação de alegria, tristeza, confronto, decisão, luto e muita luta. Crianças, meninas,
moças, idosas e divindades espirituais confirmam o protagonismo feminino, alicerçado
pela força e ação das personagens
Nesses dois contos, as protagonistas passam por situações limítrofes, cujas dores
físicas e psíquicas não as submetem a lugares de fragilidades infinitas; elas carregam em
si a valentia e a tenacidade, virtudes presentes em guerreiras e heroínas. A descrição da
personagem de “O sagrado pão dos filhos” evidencia a riqueza de sua personalidade e de
antemão sinaliza o contexto social, histórico e cultural de um país de estrutura
escravocrata em pleno século XX:
Andina Magnólia dos Santos, filha de Jacinta dos Santos e de Bernardino
Pereira, cresceu sob os mandos da casa-grande, embora tenha nascido em 1911.
Servindo à família Pedragal, desde pequena sendo a menina-brinquedo, o saco
de pancadas, a pequena babá, a culpada de todas as artes das filhas de Senhora
Correa. Andina Magnólia cresceu forte, bonita e trabalhadora, apesar de tudo
(EVARISTO, 2016, p.38).
O corpo de Andina desde muito cedo já fora pré-determinado para servir. A ela
não coube escolha. Em interessante artigo, intitulado “Escravas do lar: as mulheres negras
e o trabalho doméstico na corte imperial”, Flavia Fernandes de Souza afirma que refletir
sobre a temática das relações de gênero e da escravidão na história do Brasil implica,
sobretudo, considerar as experiências de mulheres negras no mundo do trabalho. A
pesquisadora, em seu estudo, mapeia a presença feminina no espaço do trabalho
doméstico, no Brasil imperial e afirma que: “Mulheres negras, fossem elas escravas,
libertas, livres, brasileiras e africanas, atuaram nos espaços de trabalho de ambientes
rurais e urbanos e se ocuparam das mais variadas atividades produtivas em diferentes
momentos da história” (SOUSA, 2012, p. 244). É interessante perceber como a ficção de
Conceição Evaristo vai resgatar o nosso passado histórico e tocar em feridas ainda
abertas. O conto retoma determinados padrões sociais existentes em nossa sociedade,
denotando estruturas e mentalidades inalteráveis. Andina continua uma escrava do lar,
serviçal da Casa-Grande, mesmo depois da Abolição da Escravidão.
O pão caseiro, feito pela empregada doméstica, considerado “a delícia das
delícias” alimenta toda família da Casa-Grande, menos os cinco filhos de Andina. A ela
não é permitido levar sequer um pedaço da delícia para a sua prole. No entanto, “Andina
Magnólia cresceu forte, bonita e trabalhadora, apesar de tudo”, reafirma a descrição.
Apesar de tudo, Andina sobrevive e de que forma?
No espaço da narrativa, a empregada doméstica deixa cair farelos do único pedaço
de pão que lhe é permitido comer. As migalhas do pão transformam-se em alimento para
seus filhos, com o poder de Zâmbi, conhecido Deus na religião de matriz africana:
E todos os dias, a mãe levava o pão sagrado para os filhos. Farelos, casquinhas,
ínfimos pedacinhos saíam engrandecidos e fartos dos entresseios de Andina Magnólia. Dela, do corpo dela o pão sagrado para os filhos. O alimento vinha
acompanhado de leite. (...) E enquanto foi preciso, todas as noites, Andina
Magnólia chegava em casa e celebrava junto à sua família a multiplicação do
pão sagrado para os filhos. Celebração em que Zâmbi, por força de sua
presença, transformava o mínimo trazido por Magnólia, na fartura do alimento
para os seus protegidos (EVARISTO, 2016, 39-40).
A potência do corpo de Andina expande para além daquilo que outrora fora
designada. A empregada doméstica é uma deusa por permitir a multiplicação dos pães,
de forma a sustentar a sua família. A referência textual com a passagem bíblica da
multiplicação dos pães não é mero jogo metafórico, pois incide no campo extralinguístico
para uma realidade brutal. Não seriam gestos de milagres as muitas formas de
sobrevivência da população mais pobre do Brasil, especificamente a mulher pobre e
negra?
Halima, a outra personagem protagonista de “Fios de Ouro”, é apresentada ao
leitor através de uma descrição que confirma a sua identidade demarcada pela estética dos
fios trançados, indicadores do lugar social da pessoa. De acordo com a forma de
arrumação dos cabelos das mulheres, dava-se para saber se era casada, viúva, se tinha
filhos. Portanto, antes de embarcar em terras brasileiras, a personagem já trazia uma
história de seu clã:
Foi com a sua vasta cabeleira enfeitada por pequenas conchinhas, indicativa de
sua condição púbere, que Halima foi embarcada em um negreiro rumo ao
Brasil. Ao ser desembarcada, apesar de sua magreza foi logo posta à venda,
mas antes, sua cabeça foi raspada, indicando a sua nova condição: a de ser peça
para ser vendida no comércio da escravidão (...) Escravizada como brinquedo:
das crianças da Casa-Grande, como corpo para o trabalho, para o prazer e para
reprodução de novos corpos escravos (EVARISTO, 2016, p. 50).
Halima, chamada de “a suave”, perde a sua identidade no momento em que seu
cabelo é raspado. Objeto de pancadas, de servilismo e de prazer sexual, ela deixa de ser
pessoa para ser peça ao chegar ao Brasil. O sistema escravocrata define não só os limites
dos corpos, como também demarca os espaços em que esses corpos podem ocupar.
Depois de tantos anos e já na sua maturidade, começa a nascer fios de ouro na
cabeça de Halima e é o que vai possibilitar a mudança da sua vida e de outras pessoas
como ela. O ouro comprará a liberdade dos negros escravizados – o que irá contribuir
para a formação de uma fazenda, denominada “Fazenda Ouro dos Pretos”.
Assim, as metamorfoses do corpo feminino tanto em “O sagrado pão dos filhos”,
quanto em “Fios de ouro” corroboram para se pensar no projeto literário de Conceição
Evaristo. Essas formas de se ver e de se pensar o passado, presente e futuro nesta narrativa
abrem caminhos para confrontar paradigmas pré-estabelecidos na sociedade brasileira,
como o desenho de um passado histórico cristalizado e que focaliza apenas o corpo
escravizado, não se destacando o processo de resistência e subsistência por que passou
toda uma população. Esse passado revisitado e, portanto, ressignificado, com o teor de
um presente e com o vislumbrar de possíveis futuros forma os modos de narrar de
Evaristo.
Ciente de seu lugar de fala na literatura brasileira contemporânea, a autora de
Insubmissas lágrimas de mulheres depõe a este respeito na Festa Literária de Santa
Tereza, no Rio de Janeiro, em que foi homenageada : “Toda minha escrita é contaminada
pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira: mulher negra, oriunda das
classes populares, mãe de Ainá” (EVARISTO, 2017).
Para a escritora, a literatura de autoria negra, de um modo geral, reivindica uma
outra história – a que foi apagada pelos registros oficiais. E é nesse sentido que o termo
“escrevivência” vem para sinalizar o projeto literário e ideológico da autora de Becos da
memória. Em entrevista ao Nexo Jornal, de 28 de maio de 2017, Evaristo explica que a
palavra “escrevivência” vem desde 1995, em ocasião da sua dissertação de mestrado, em
que fazia um jogo com o vocabulário e as ideias de escrever, viver, se ver:
Esse termo nasce fundamentalmente no imaginário histórico que eu quero
borrar, rasurar. Esse imaginário traz a figura da “mãe preta” contando histórias
para adormecer a prole da Casa Grande. Quero rasurar essa imagem de mãe
preta contando história. A nossa escrevivência conta as nossas histórias a partir
das nossas perspectivas, é uma escrita que se dá colada à nossa vivência, seja particular ou coletiva, justamente para acordar os da Casa Grande
(EVARISTO, 2017).
A narrativa que se quer rasurar e borrar um imaginário histórico não pode ser nem
adocicada para adormecer sonos, nem romantizada, no sentido de permitir devaneios.
Pelo contrário, as narrativas para não adormecer vêm para desestruturar uma realidade
construída por séculos em que estereótipos foram moldados em prol de uma falsa
figuração da sociedade brasileira, justificada pelo ideal de uma democracia racial. É por
isso que os textos presentes em História de leves enganos e parecenças recriam histórias
ouvidas de uma tradição oral, o que faz ressignificar um passado que fora relegado e faz
remexer as bases de um alicerce muito bem assentado.
Considerações Finais
As reflexões levantadas recortam alguns conhecimentos válidos para compreender
a trajetória de luta das mulheres na história e seus desdobramentos. Trata-se de um
movimento político de luta fundamental para a desconstrução preconceituosa e opressiva
das mulheres ao longo da história. Nesse sentido, o movimento feminista brasileiro foi e
permanece um marco significativo para traçar novos caminhos de mulheres na história.
O Feminismo Negro, por sua vez, faz ecoar as vozes das mulheres negras que, ao
longo da história, tiveram suas trajetórias atravessadas não apenas pelo machismo como
também pelo racismo. Tal movimento instaura um novo marco na história da luta das
mulheres que, a partir de uma perspectiva racial, aponta e desvela as mulheres negras e
suas lutas cotidianas na sociedade, sobretudo no campo da intelectualidade. Cabe, nesse
momento da história, construir novas trilhas para que as mulheres negras apareçam e
ocupem, sobretudo, os espaços legitimados.
Conceição Evaristo, mulher, negra, mãe, escritora, oriunda das classes populares,
professora doutora em literatura comparada representa uma dessas vozes que, na
contemporaneidade, tem desbravado o campo literário encorajando e instigando olhares
para a questão racial. Lançar luz para intelectuais negras que surgem, no contexto
brasileiro, produzindo saberes e compartilhando narrativas de suas histórias de vida é um
desafio posto.
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