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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro O Caráter Didático-Pedagógico Do Dano Moral Nas Relações De Consumo E Sua Função Social Vivian Pedroso Cereja da Silva Rio de Janeiro 2013

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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

O Caráter Didático-Pedagógico Do Dano Moral Nas Relações De Consumo E Sua Função

Social

Vivian Pedroso Cereja da Silva

Rio de Janeiro 2013

VIVIAN PEDROSO CEREJA DA SILVA

O CARÁTER DIDÁTICO-PEDAGÓGICO DO DANO MORAL NAS RELAÇÕES DE

CONSUMO E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Artigo Científico apresentado como exigência

de conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato

Sensu da Escola de Magistratura do Estado do

Rio de Janeiro. Professores Orientadores:

Mônica Areal

Néli Luiza C. Fetzner

Nelson C. Tavares Júnior

Rio de Janeiro

2013

2

O CARÁTER DIDÁTICO-PEDAGÓGICO DO DANO MORAL NAS RELAÇÕES DE

CONSUMO

Vivian Pedroso Cereja da Silva

Graduada pela Universidade Estácio de Sá

Servidora Pública. Assessora de Órgão

Julgador.

Resumo: O arbitramento do dano moral se apresenta, até hoje, como assunto tormentoso à

jurisprudência brasileira. A despeito de os magistrados constatarem a crescente massificação

das demandas de consumo com vistas à percepção de compensações pecuniárias por danos

morais, os julgadores ainda se assombram com o fantasma da vedação ao enriquecimento

ilícito das vítimas. A essência do trabalho é verificar qual enriquecimento é mais nefasto: se o

consumidor que eventualmente perceba verba compensatória incrementada pelo caráter

pedagógico ou os grandes fornecedores que perpetuam as práticas abusivas.

Palavras-chave: Dano Moral. Arbitramento. Caráter Didático-Pedagógico. Função Social.

Sumário: Introdução. 1. A fixação do quantum – Critérios para o arbitramento. 2. Os escopos

do Código de Defesa do Consumidor e sua eficácia – A prevenção. 3. A compensação por

danos morais destituída de caráter didático-pedagógico – O enriquecimento ilícito às avessas.

3.1. A bem sucedida experiência estrangeira 4. O Caráter punitivo-pedagógico como

instrumento de prevenção de danos – Função social do instituto. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho sugere uma reflexão sobre a importância da responsabilidade

civil na sociedade de massa. Cumpre verificar se as normas consumeristas estão conseguindo

alcançar seu desiderato de forma a materializar a precípua função social do direito: a de

prevenir conflitos, ao invés de somente remediá-los.

Busca-se enfatizar, à luz do ordenamento jurídico, a necessidade de a indenização

por danos morais assumir caráter pedagógico, a par do compensatório, sob pena de se

constituir instituto jurídico desprovido de função social.

3

Para tanto, será preciso resgatar os fundamentos principiológicos que dão sustentação

à ideia de indenização pedagógica, como a releitura de todos os institutos jurídicos e sua

adequação à legalidade constitucional, passando pelo que a doutrina convencionou chamar de

Direito Civil Constitucional ou constitucionalização do Direito Civil.

De suma importância, será trazer à baila o princípio da dignidade da pessoa humana,

do qual se extrai que o homem é detentor de um conjunto de direitos existenciais: os direitos

da personalidade, os quais, sob a ótica existencialista, decorrem da própria condição humana,

razão pela qual pertencem, em igual medida a todos.

Será demonstrado que o caráter pedagógico está inserto no próprio fato de a

indenização por danos morais estar prevista em uma norma jurídica, a qual possui

inexoravelmente o objetivo primeiro de prevenção e, por isso, educa.

Assim, a indenização punitiva atende a dois objetivos principais, os quais a

distinguem da puramente compensatória: a prevenção (geral e especial) e a punição

(retribuição).

Uma indenização em valor elevado a título de dano moral terá uma função

preventiva específica, pois inibirá o ofensor a continuar agindo da mesma forma. Essa

Indenização também terá uma função preventiva geral, porquanto servirá como exemplo para

as demais pessoas não cometerem o mesmo ilícito.

As regras de experiência e os dia-a-dias dos Juizados Especiais e Varas Cíveis

revelam que os fornecedores brasileiros ainda não estão enquadrados nas condutas previstas

no Código de Defesa do Consumidor.

De fato, a despeito de a codificação consumerista contar mais de vinte anos de

existência, os fornecedores ainda não implementaram os anseios do legislador em suas

atividade porque buscam lucros nocivos à sociedade da qual, ironicamente, fazem parte.

4

Desta forma, a indenização pedagógica atua, ainda, como forma de coibição ao

enriquecimento ilícito obtido pelo causador do dano com a não modernização de seus

métodos e sistemas de produção de produtos e serviços.

Nesse diapasão, serão exploradas as experiências estrangeiras com relação ao

reconhecimento e aplicação da política da punitive damages e os resultados alcançados por

aqueles países.

De se ressaltar, contudo, que o caráter punitivo-pedagógico deve ser reservado para

os casos em que, ao perpetrar o dano moral, o comportamento do causador do dano se revele

reprovável, o que significa dizer que ele só terá lugar no caso de dolo ou de culpa,

presumindo-se esta no caso de reiteração da conduta danosa (cujo mérito, como cediço,

importa na inversão do ônus probatório), ressalvadas as hipóteses de responsabilidade civil

consumerista pautadas puramente na responsabilidade objetiva, fato, dano e nexo de

causalidade entre eles.

A verba pedagógica denota o caráter, portanto, dúplice da indenização por dano

moral, devendo-se levar em conta não somente a compensação, mas a pedagogia, sob pena de

se frustrarem os auspícios da Lei 8.078/90 e se negar função social ao instituto, arbitrando-se

quantum indenizatórios em desalinho com a legalidade constitucional.

1. A FIXAÇÃO DO QUANTUM – CRITÉRIOS PARA O ARBITRAMENTO

Como cediço, com a Carta Constitucional de 1988, todos os institutos jurídicos

passaram por um redimensionamento, devendo ser relidos a partir do texto constitucional,

dando origem ao fenômeno conhecido como, no âmbito do direito privado, de

constitucionalização do Direito Civil.

5

O fenômeno decorre do fato de que a Constituição da República passou a ocupar o

centro do ordenamento jurídico privado, unificando-o e redefinindo seus institutos a partir da

legalidade constitucional, fulcrada em três pilares: dignidade humana, igualdade material e

solidariedade social.

Destarte, a fonte primária do Direito Civil – e de todo o ordenamento jurídico – é a

Constituição da República que, com os seus princípios, suas normas e seus valores, confere

nova feição à ciência civilista.

A par dessa incontroversa supremacia, Cristiano Chaves de Farias, ressalta que o

esforço interpretativo da doutrina detectou os seguintes elementos como consequência do

constitucionalismo: a) a releitura de conceitos e institutos jurídicos clássicos (como o direito à

propriedade e o contrato), b) a elaboração e o desenvolvimento de novas categorias jurídicas

(não mais neutras e indiferentes, porém dinâmicas, vivas presentes na vida social, como no

exemplo da união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar) e c) a interação

estreita entre diferentes campos da ciência jurídica (a superação da velha dicotomia do

direito)1.

Por tal razão, nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho, o conceito de dano moral

também deve ser revistos, pois a Constituição de 1988 a dignidade da pessoa humana à

categoria de fundamento constitucional da República, de forma a localizar esta dignidade no

centro das relações sociais e a merecer especial proteção do Estado, havendo, hoje, o que o

autor chama de “direito subjetivo constitucional à dignidade”2, de modo que o dano moral

ganhou nova roupagem e dimensão.

1FARIAS, Cristiano Chaves, ROSENVALD, Nelson, Direito Civil – Teoria Geral, 6. ed. Rio de Janeiro. Lumen

Juris. 2007. p. 21 2 CAVALIERI FILHO, Sérgio, Programa de responsabilidade civil. 5 ed. Rio de Janeiro. Malheiros. 2003. p. 94

6

Assim, conclui o renomado autor que “o dano moral, à luz da Constituição vigente,

nada mais é do que violação do direito à dignidade”3.

E é assim que o instituto deve ser visto, como uma ofensa ao que de mais importante

tem a pessoa humana, sua dignidade.

Dignidade esta que constitui fundamento da República Federativa do Brasil (art. 3º,

III), que deve ser tutelada pelo Estado através de respostas eficazes aos transgressores, com o

fito de impedir novas violações, sob pena de se frustrar o Estado idealizado pelo legislador

constituinte.

Após o reconhecimento da reparabilidade extrapatrimonial, o problema que se

coloca, então, é a fixação do quantum.

Com efeito, não há grandes discrepâncias na doutrina acerca do método mais

indicado para a fixação do dano moral: o arbitramento judicial.

Conforme leciona Sérgio Cavalieri Filho:

Não há, realmente, outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser

pelo arbitramento judicial. Cabe ao juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio,

atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do ofensor,

estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral.4

Este entendimento é correto porque a ideia de uma tarifa para o dano moral é

reprovável, já que, se por um lado a moral não tem preço, a intensidade do dano moral varia

de pessoa para pessoa de acordo com convicções socioculturais que ela apresente, ainda que a

norma tarifária advenha de um tratado ou norma internacional.

O arbitramento judicial, de fato, é o meio idôneo a possibilitar a fixação de valores

hábeis a compensar o lesionado caso a caso, observando-se as circunstâncias do caso

concreto.

3 Ibid

4 Ibid, p. 106

7

Entretanto, ele deve ser norteado pela lógica do razoável, com vistas a impedir

compensações ínfimas ou exageradas, devendo-se buscar, sempre, um valor, verbis:

[...] que seja compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a intensidade e

duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do

causador do dano, as condições sociais do ofendido, e outras circunstâncias mais que

se fizerem presentes.5

É exatamente na expressão destacada que reside o objeto do presente trabalho.

Ao fazer-se a leitura atenta do acima transcrito, observa-se que todas as outras

variáveis estão ligadas à compensabilidade do dano moral, e se dirigem, por conseguinte, à

vítima, ou seja, o julgador, ao analisá-las, leva em consideração aspectos relativos à vítima do

dano.

Apenas a variável relativa à “reprovabilidade da conduta” refere-se ao transgressor.

É ao aplicar este critério que o julgador deve levar em consideração, não a vítima, mais o

agente causador do dano, sopesando sua culpabilidade, o poderio econômico, a existência de

dolo ou culpa, a reiteração de condutas da mesma espécie, etc.

É aqui que a indenização por dano moral encontra sua função social, na medida em

que as outras variáveis estão ligadas ao caráter individualista (compensatório) da verba sem

qualquer preocupação com atendimento à exigência da solidariedade social.

Assim é que o quantum a ser fixado a título de dano moral, como um todo, só estará

completo, razoável e constitucionalmente adequado se levar em conta estes dois lados, ou

seja, se um e outro caracteres andarem juntos.

2. OS ESCOPOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E SUA EFICÁCIA –

A PREVENÇÃO

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, lei ordinária de número 8.078/90,

apresenta caráter constitucional, na medida em que regula o artigo 5º, inciso XXXII, da

5 Ibid, p. 108

8

Constituição da República, e representa, através de suas regras de conduta, aquilo que a

sociedade brasileira anseia para as relações de consumo: o equilíbrio.

Este equilíbrio abarca, principalmente, o emprego da boa-fé objetiva, da

transparência, da confiança, do reconhecimento da vulnerabilidade, enfim, do respeito aos

consumidores que se encontram em posição de desvantagem em relação aos fornecedores.

O Código consumerista é, em verdade, código de conduta que dita os

comportamentos standards a serem adotados pelos fornecedores para que sejam respeitados

os direitos dos consumidores.

É instrumento de suma importância no ordenamento brasileiro que, se corretamente

seguido, é capaz de auxiliar no alcance do fim maior do direito, que é a paz social.

É bom que se diga que as normas jurídicas, materializações do direito, exercem

função de controle social. Assim, nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho:

as suas principais finalidades são prevenir e compor conflitos; destas, a função

preventiva é a mais importante. O direito é muito mais preventivo que repressivo. E

aí de nós se assim não fosse! Como o direito previne conflitos? Estabelecendo regras

de conduta, de disciplinamento social.6

Como se vê, a prevenção é o objetivo primeiro de toda a norma jurídica, sendo certo

que a reparação é função subsidiária, secundária, algo como um “mal necessário”.

O legislador ordinário deixou essa nítida essa intenção ao nomear o diploma de

Código de Proteção e Defesa do Consumidor, deixando transparecer, com clareza incômoda,

que o escopo primordial do diploma é a prevenção!

Isto porque a reparação só será necessária se a primeira função, a preventiva, falhar,

quando, então, o equilíbrio social estará rompido e será cogente sua recomposição. O ideal,

portanto, é que este equilíbrio não seja rompido, é para isso que servem, precipuamente, as

normas jurídica e o direito em si.

Neste sentido, afirma André Gustavo Corrêa de Andrade:

6 CAVALIERI FILHO. op. cit. P. 85.

9

A sanção, como expressão da coercibilidade da norma jurídica, é uma consequência

ou um efeito jurídico, expresso por uma regra (sancionadora) de caráter secundário,

aplicável quando descumprido o dever imposto pela regra primária, que estabelece

direitos e deveres também primários (ou originários).

Diz-se secundária a norma sancionadora porque a sua aplicação não constitui

objetivo principal do ordenamento jurídico, que é estabelecido com vistas ao

atendimento das normas primárias, estatuidoras de regras de conduta ou de

convivência entre as pessoas. Estas últimas regulam a vida em sociedade e buscam,

em uma maior ou menor medida, a realização dos valores do ser humano. Para tanto,

estabelecem deveres primários (ou originários), tais como o de não lesar outrem. O

descumprimento de algum desses deveres originários leva como consequência à criação de um dever sucessivo ou a imposição de uma situação desfavorável ao

infrator.

Ressalte-se desde logo um ponto a que se retornará mais adiante: a sanção não pode

ser concebida como um preço estabelecido em proveito daqueles que estejam

dispostos a pagar para violar os deveres fixados pelas normas primárias de conduta.

Como observado por Carnelutti, ‘sancionar significa precisamente tornar qualquer

coisa, que é o preceito, inviolável ou sagrado’. Com isso em mente, deve-se buscar,

dentro dos limites impostos pelo próprio ordenamento jurídico, meios e modos de

impedir a transfiguração ou desvirtuamento da sanção jurídica em uma simples

moeda de troca que alguém possa estar disposto a pagar pela possibilidade

transgressão do preceito primário. Impõe-se que a sanção seja concretamente sentida tal como foi abstratamente concebida: uma forma de proteção de um preceito que

encerra um dever primário ou originário7.

Uma norma jurídica alcança sua eficácia plena quando, uma vez válida, atinge seus

objetivos, seus alvos.

Ainda com esteio nas lições de Sérgio Cavalieri: “a eficácia é um dos efeitos da

norma. Efeito é gênero, eficácia é espécie. É o efeito típico da norma, seu efeito principal ou

real. É uma certa qualidade do efeito produzido pela norma, um efeito condizente com suas

finalidade”8.

Assim, o CDC só conseguirá alcançar sua plena eficácia quando conseguir, mais do

que compor, prevenir os conflitos sociais.

Nas palavras de Valdir Florindo: “O objetivo maior não é a reparação do dano, mas

sim a efetiva prevenção... (art. 6º, VI), como bem idealizou o legislador do Código de

Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90)”.9

7 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de, Dano Moral e Indenização Punitiva. Rio de Janeiro. Forense. 2006. p.

141/142. 8 CAVALIERI FILHO, op. cit. 2002, p. 85.

9 FLORINDO, Valdir, Dano moral e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002. p. 293.

10

A função preventiva tem atuação semelhante à tutela inibitória do direito processual

civil: visa impedir a realização do dano ou mesmo a reincidência na conduta lesiva.

Ela revela dois aspectos: o aspecto geral, funcionando como inibidor social de

condutas lesivas; e o aspecto especial, atuando de forma a impedir que o sujeito reitere a

conduta danosa.

Tal desiderato encontra plena sintonia com os novos paradigmas constitucionais,

especialmente no que toca a dignidade da pessoa humana. É indubitável que melhor se efetiva

a dignidade humana e mais se preserva os direitos fundamentais através da prevenção dos

danos. Prefere-se evitar que o dano aconteça do que reparar o dano já perpetrado.

Contudo, é certo que por mais indesejada que seja, a transgressão sempre existirá.

Talvez ela seja inevitável!

Por tal razão, é preciso enviar esforços no sentido de que ela seja minorada, sob pena

de se afrontar as normas de ordem pública, fazendo com que o código consumerista não passe

de um conjunto de normas estéreis.

Deve-se ter em mente, também, que as hipóteses aqui abordadas traduzem relações

de consumo, nas quais, de um lado, está parte hipossuficiente e que o fornecedor, no caso

concreto, não terá obedecido às normas legais de segurança/confiança estabelecidas pelo

Código de Defesa do Consumidor, notadamente as que estabelecem em seu artigo 8º e 6º,

inciso I, que os serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde

(leia-se física e psíquica) do consumidor e que o consumidor tem direito básico a proteção

contra riscos provocados por práticas nos fornecimentos de produtos e serviços considerados

nocivos.

É neste particular que a função punitiva, quando adotada, inegavelmente reforça a

preventiva, e, em certo nível, reforça a imperatividade do ordenamento jurídico como um

todo, ao desestimular financeiramente as práticas abusivas.

11

3. A COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS DESTITUÍDA DE CARÁTER

DIDÁDICO-PEDAGÓGICO – O ENRIQUECIMENTO ILÍCITO ÀS AVESSAS

Fala-se em compensação por danos morais porque a palavra indenização não é a

mais adequada.

Indenizar significa tornar indene, retornar, voltar ao statu quo ante.

Com efeito, tal proceder mostra-se inviável na esfera do dano moral.

Este, uma vez perpetrado, não pode ser desfeito, não se trata de patrimônio,

quantificável economicamente. A perda de um filho ou de um ente querido não tem preço

nem volta...

É por isso que se afirma que “a chamada indenização por danos morais não indeniza,

mas somente compensa. A compensação não repara o sofrimento, apenas o atenua,

proporcionando um benefício futuro” 10

.

Como o objetivo da compensação é amenizar o dano experimentado, há quem sugira

que o quantum indenizatório deve considerar somente o sofrimento da vítima:

Isto porque se o valor da indenização corresponde se limita ao dano sofrido não há

enriquecimento sem causa; causa da indenização é o próprio dano. O arbitramento

do dano moral, a princípio, consiste exclusivamente em estipular o valor (rectius: a

dimensão) do dano, ao qual deve corresponder o valor da indenização11.

Tal posicionamento é contrário ao aqui defendido.

Indenizações fixadas com base apenas neste critério são incapazes de prevenir novos

danos e de alertar os fornecedores que tais condutas não são toleradas. Aliás, o próprio autor

citado acima admite mais adiante:

Todavia, pode-se argumentar que o caráter punitivo continuaria necessário naquelas

hipóteses em que danos não tão graves são causados por uma conduta sistemática e

maliciosa do ofensor, que a repete justamente porque a soma de todas as possíveis

indenizações não supera o custo de uma mudança de postura. Assim, por exemplo,

nos casos de determinadas instituições financeiras que enviam aos serviços de proteção ao crédito (SPC, SERASA etc.) nomes de todos os devedores

indiscriminadamente, optando de forma voluntária por não proceder a um exame

individual da situação de cada um destes devedores, muitos deles pontuais em suas

10

MOREIRA; CORREA, Revista Forense, v. 365, Rio de Janeiro. 2003. p. 367. 11 SCHREIBER, Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro. RTDC. vol. 12. out/dez 2002. p. 10.

12

obrigações. O custo operacional de uma análise assim detalhada supera o montante

global das baixas indenizações usualmente concedidas às vítimas de tais erros. É

também o que ocorre com certos veículos jornalísticos que, com frequência,

divulgam informações duvidosas acercas das pessoas notórias, assumindo

deliberadamente o ônus de agir sem a devida cautela na investigação da veracidade

da notícia, pelo simples fato de que as vendas e a publicidade obtidas com aquelas

bombásticas tiragens supera, em muito, eventuais indenizações.

Em casos assim, em que há má-fé do ofensor e a repetição sistemática da conduta

lesiva, a aplicação de uma indenização punitiva, com prévia estipulação legal que

lhe fixasse os limites e parâmetros, poderia sim servir de solução.12

Em uma sociedade de massa, de consumo em massa, de contratos de massa, gera-se,

inexoravelmente, o indesejável dano em massa. A conduta lesiva de um fornecedor de

produtos ou serviços prejudica milhares de consumidores. Uma série de produtos com defeito

lesiona vítimas inidentificáveis, sendo certo que nem todas reclamam reparação.

As regras de experiência demonstram que as lesões perpetradas são em número

inferior às demandas ajuizadas, e estas não são poucas.

Com efeito, um fornecedor de produtos e serviço que desrespeita normas basilares de

consumo e é condenado a penas leves na esfera moral, continuará agindo de forma

imprudente. Tal conduta levará a outras pessoas a procurar o Judiciário abarrotando-o com

processos que muitas das vezes custam caro ao Estado e a toda a sociedade que vê diante de si

um Judiciário lento, portanto ineficaz.

A verdade é que o Poder Judiciário encontra-se assoberbado de demandas

praticamente idênticas e, pior, contra os mesmos fornecedores na maioria das vezes, conforme

se comprova pela lista dos “Top 30 Maiores Litigantes” publicada no sítio eletrônico do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cujos protagonistas são sempre os

mesmos...13

Apenas à guisa de exemplo, cite-se a Telemar Norte Leste S/A, que no mês de maio

de 2013, teve, nada mais nada menos, do que 6.941 ações contra si distribuídas.

12 SCHREIBER, op. cit. p. 20/21. 13

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em <http://www4.tjrj.jus.br/MaisAcionadas/>.

Acesso em: 16 jun. 2013.

13

Ademais, analisando-se a frequência desta fornecedora no 1º lugar da nefasta lista,

verifica-se que o número de ações contra ela distribuídas aumentou progressivamente nos

últimos três anos, passando de 3.379, em maio de 2010, a 3.511, em maio de 2011 e a 4.397

em maio de 2012, até alcançar as atuais 6.941 ações em maio deste ano!

Tal dado demonstra que as indenizações fixadas pelo Judiciário fluminense não são

suficientes para frear os ímpetos dos fornecedores, que, por economia, continuam reiterando o

comportamento danoso aos consumidores em flagrante desrespeito a legislação consumerista

e à Constituição da República, revelando verdadeira má-fé por parte da grande maioria dos

fornecedores.

Parece que, após o choque inicial produzido pelo Código de Defesa do Consumidor,

os fornecedores, sequer cogitando a ideia de diminuir parcialmente seus lucros para oferecer

um serviço adequado para os consumidores, passaram a “equacionar o direito”, ou seja, a

analisar quanto representa, economicamente, agir de acordo com o ordenamento jurídico e

qual o valor econômico do patente desrespeito às normas jurídicas.

Concluíram que é mais barato desrespeitar as normas e indenizar depois.

Ora, se as indenizações se pautam exclusivamente na extensão dos danos, basta que

pequena parcela dos consumidores não ingressem em juízo para que a falta de prevenção por

parte da empresa tenha sido economicamente lucrativa.

Tal fato aliado à morosidade do Poder Judiciário, tornam o desrespeito ao

ordenamento jurídico extremamente lucrativo.

Nesse contexto, a sanção se torna meramente um preço a se pagar e o ordenamento

jurídico perde inteiramente sua credibilidade e sua imperatividade, tornando-se um real

mercado de barganha, onde o único objetivo das empresas é pegar o menos possível pelo

ilícito cometido.

14

Inegável que algumas sociedades têm agido com absoluto desprezo pelos direitos dos

consumidores, atuando de forma negligente, criando situações absolutamente desnecessárias

para solução de problemas de seus consumidores, ocasionando-lhes alterações profundas em

suas rotinas, por falta de qualificação de seu pessoal de atendimento.

Deve-se, assim, abandonar a assertiva falaciosa de que as indenizações pedagógicas

estimulam o enriquecimento ilícito da vítima, na medida em que, em verdade, as indenizações

destituídas daquele caráter é que propiciam o enriquecimento ilícito dos fornecedores que

perpetuam a prática de condutas danosas à dignidade dos consumidores.

De fato, se o fornecedor sabe, de antemão, que o valor indenizatório não vai

ultrapassar os R$ 5.000,00, no caso, por exemplo, de negativação indevida do nome do

consumidor junto aos cadastros de maus pagadores, ele calcula se a reformulação de seus

sistemas de operação é economicamente mais vantajosa do que pagar, ao final do processo,

aquele valor a título de indenização compensatória.

Cuida-se do tarifarismo mascarado trabalhando a favor do enriquecimento ilícito e

antissocial dos fornecedores, em nada distinguindo a atual sociedade da retratada no seguinte

trecho da obra de Valdir Florindo:

[...] ...há milênios, onde na Lei das XII Tábuas (452 a.C.), o §9º da Tábua VII (de

Dellictis), dizia que ‘Aquele que causar dano leve indenizará 25 asses’. Ocorre que,

por conta da ínfima importância estabelecida pelos romanos, ‘conta-se que um certo

Lucius Veratius se deliciava verberando (esbofeteando) com a sua mão o rosto dos

cidadãos livres que encontrava na rua. Atrás de si vinha um seu escravo entregando

25 asses a todos em que o dominus batia [...]14

Sob outro aspecto, deve-se ressaltar que a ordem econômica constitucional está

fundada na defesa do consumidor, conforme estabelecido no art. 170, inciso V, da

Constituição da República de 1988, a denotar serem inaceitáveis os lucros obtidos em

desfavor do consumidor, porquanto nocivos a toda a sociedade.

14 REIS, apud FLORINDO, Valdir, op. cit. p. 284

15

De igual modo, conforme leciona o eminente constitucionalista José Afonso da Silva,

o princípio da livre concorrência, que está disposto no artigo 170 da Constituição Federal, é

uma manifestação da liberdade de iniciativa. Entretanto a própria Carta Magna estabelece um

limite para esta atuação, quando reprime o abuso do poder econômico (artigo 173, §4º da

Constituição Federal), sendo certo que, atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro conta,

ainda, com o Código de Defesa do Consumidor, que é um dos mecanismos utilizados para

conter o abuso do poder econômico15

.

Assim, é forçoso concluir que a compensação visando tão somente “compensar” o

dano causado é insuficiente para evitar novas condutas lesivas, simplesmente pelo fato de seu

custo ser inferior ao lucro obtido pelo fornecedor com a prática abusiva e, ainda, por

representar menor custo que a reformulação de seus produtos e serviços, tornando-se incapaz

de alcançar a efetividade do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que não impede a

ocorrência de novos danos, mas apenas os remedeia, levando nosso maravilhoso diploma

legal a ser, infelizmente, aquele conjunto de normas inférteis...

3.1. A BEM SUCEDIDA EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA

Em alguns países, com especial destaque para os Estados Unidos da América, a

indenização punitiva é adotada de forma extremamente avançada, especialmente porque há

muito já é aplicada pelos Tribunais.

Os Estados Unidos da América são, na atualidade, a grande referência no que tange à

compensação pelos danos extrapatrimoniais com caráter pedagógico, possuindo rica

jurisprudência e farta doutrina acerca do tema.

15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29.ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 795

16

A posição adotada pela jurisprudência foi bem sucedida na diminuição das práticas

abusivas por parte das grandes sociedades, razão pela qual pode e deve ser usada como

exemplo na implementação de tal função no dano extrapatrimonial no ordenamento pátrio,

respeitadas as peculiaridades do nosso sistema jurídico.

Nesse contexto, imperiosa a análise dos casos mais relevantes julgados acerca dos

danos punitivos que, na referida ordem jurídica, recebem a denominação de punitive damages.

Em tal ordenamento jurídico, os punitive damages são conceituados como verba que

deve ser separadamente julgada, que visa a punir o ofensor por ter agido com grau elevado de

culpa, sendo, assim, especialmente reprovável, atribuindo à verba inegável interesse público e

social.

Assevere-se que a intenção primordial dos danos punitivos norte americanos é punir

o autor do dano, além de desestimular a reiteração da conduta ofensiva, seja pelo próprio

ofensor ou por terceiros.

Assim foi considerado, no marcante caso do medicamento MER 29, comercializado

no mercado norte americano em 1967 com o intuito de redução do colesterol mas que, como

efeito colateral, causava catarata em parte dos usuários, como já havia sido atestado nos testes

laboratoriais em animais.

No julgamento da apelação de um dos casos levados a juízo, (Toole v.

RichardsonMerrel, Inc.), foi expressamente consignado que houve malícia da empresa, ao

comercializar produto que tinha demonstrado efeitos colaterais na fase dos testes de

laboratório, sem nem ao menos informar os usuários de tal possibilidade. A empresa foi

condenada ao pagamento de US$ 250.000,00 a título exclusivo de danos punitivos16

.

16

LAW justitia. Disponível em <http://law.justia.com/cases/california/calapp2d/251/689.html>. Acesso em: 16

jun. 2013.

17

Seguindo a mesma linha, merece destaque, pela relevância da fundamentação da

decisão judicial o caso Sturm, Ruger & Co v. Day, proferida em 1979. A situação versava a

cerca de defeito de produto e foi considerado na decisão o papel preventivo dos punitive

damages, especialmente em casos em que é mais vantajoso economicamente arcar com os

danos compensatórios do que adequar os produtos aos níveis de segurança exigidos pela lei.17

.

De igual modo, na Alemanha vem sendo reconhecida a dupla função da indenização

do dano imaterial (immaterieller schaden) ou extrapatrimonial (nicht vermögensschaden),

uma vez que a jurisprudência alemã, sedimentada pelo seu Supremo Tribunal Alemão (BGH),

em casos especificamente atrelados aos danos imateriais, vem assegurando ao ofendido uma

indenização em dinheiro com o fim de, por um lado, poder proporcionar ao lesado uma

compensação adequada à injustiça que sofreu e, também, por outro lado, quantificar o dano de

forma que o ofensor tenha sofrido18

.

A consequência da adoção de tal doutrina pode ser empiricamente percebida na

forma como os fornecedores daqueles países tratam seus consumidores: com respeito. Isto é,

se algum consumidor se arrepende de uma compra, devolvem o dinheiro sem questionar; se o

produto possui vício de qualidade, trocam sem burocracia; entre outras condutas pautadas em

valores como a cooperatividade, a boa-fé e, o mais relevante no sistema capitalista, o fato de

eventual descumprimento das leis pode sair muito caro.

Conveniente, neste ponto, aduzir trecho da obra de Valdir Florindo:

Embora não seja a indenização em dinheiro a única modalidade de reparação de

danos, consideramos, contudo, ser ela a penalidade mais importante ao ofensor no

mundo capitalista em que vivemos, isso porque o bolso é realmente ‘a parte mais sensível do corpo humano’.19

17 <http://www.leagle.com/decision-result/?xmldoc/1979632594P2d38_1631.xml/docbase/CSLWAR1-1950-

1985> Acessado em 16 jun. 2013. 18 <http://www.meuadvogado.com.br/entenda/indenizacao-punitivo-pedagogica-danos-morais.html>. Acessado

em 16-06-2013 19 FLORINDO. op. cit. p. 280.

18

Destarte, é preciso, mais do nunca, fazer cessar a lucratividade advinda das práticas

ilícitas.

4. O CARÁTER PUNITIVO-PEDAGÓGICO COMO INSTRUMENTO DE

PREVENÇÃO DE DANOS – FUNÇÃO SOCIAL DO INSTITUTO

Como cediço, a sociedade solidária desenhada pela Constituição da República de

1988 não admite mais a existência de institutos jurídicos que não desempenhem um papel

positivo na sociedade, na medida em que, como visto, ela se pauta na solidariedade.

Sobre o tema, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald asseveram que “nessa

nova arquitetura jurídica, dúvida inexiste de que todo e qualquer instituto, necessariamente,

tem de cumprir uma função, uma determinada finalidade a qual precisa ser observada na sua

aplicação, sob pena de desvirtuá-lo”20

.

A assertiva decorre da superação do positivismo jurídico, quando a ciência do Direito

se assentava em juízo de fatos, não de valores, não sendo mais possível pensar, agora em

épocas de pós-positivismo, naquele processo de solução de conflitos pautado tão-somente na

subsunção do fato à norma por meio de um juiz destinado a simplesmente à servir como a

“boca da lei”.

De fato, o texto constitucional de 1988 rompeu, definitivamente, com aquele

positivismo ao adotar um sistema aberto de valores, fundado em princípios que indicam um

caminho a ser percorrido em busca da efetividade da dignidade do homem, da solidariedade

social, da igualdade e da liberdade.

20

FARIAS, Cristiano Chaves, ROSENVALD, Nelson, Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

2010. p. 86

19

Assim, portanto, deve ser encarado o Direito Civil contemporâneo, como um direito

aberto, poderoso, sensível aos avanços tecnológicos e à capacidade intelectual do homem,

além de eficaz para regular os novos conflitos que se lhe apresentam.

Este é o Direito Civil forjado na legalidade constitucional, com o proposito de se

amoldar a cada tempo e lugar, na busca da garantia da dignidade do homem – por quem e para

quem foi criado.

Note-se que todo o ordenamento jurídico está fundado no valor da dignidade

humana, daí por que, justamente a reparação do dano causado a ela não pode estar despido de

sua função social.

Nas palavras de Valdir Florindo:

Entendemos que, a reparação do dano moral embora represente uma compensação à

vítima, deve sobretudo constituir uma pena, ou seja, uma sanção ao ofensor,

especialmente num País capitalista em que vivemos, onde cintilam interesses

econômicos. Vários autores, do porte de Ripert, Demogue, Svatier e Liambías,

citados por Wladmir Valler(16), em sua brilhante obra, sustentam que a reparação do

dano moral constitui uma pena, ou seja, um castigo ao ofensor. Ripert é mais

enfático, advogando que a condenação do ofensor visa não à satisfação da vítima,

mas a punição do autor, ensinando ainda que as perdas e danos não têm o caráter de

indenização, mas o caráter exemplar. 21

Daí a importância do caráter pedagógico, o qual fundamenta a Teoria do

Desestímulo, sendo correto o entendimento de Rui Stoco esposado em seu Tratado de

Responsabilidade Civil:

Segundo nosso entendimento a indenização da dor moral, sem descurar desses

critérios e circunstâncias que o caso concreto exigir, há de buscar, como regra, duplo

objetivo: caráter compensatório e função punitiva da sanção (prevenção e repressão),

ou seja: a) condenar o agente causador do dano ao pagamento de certa importância

em dinheiro, de modo a puni-lo e desestimulá-lo da prática futura de atos

semelhantes; b) compensar a vitima com uma importância mais ou menos aleatória,

em valor fixo e pago de uma só vez, pela perda que se mostra irreparável, ou pela

dor ou humilhação impostas.

Evidentemente, não haverá de ser tão alta e despropositada que atue como fonte de

enriquecimento injustificado da vítima ou causa de ruína do ofensor, nem poderá ser

inexpressiva a ponto de não atingir o objetivo colimado, de retribuição do mal

causado pela ofensa, com o mal da pena, de modo a desestimular o autor da ofensa e impedir que ele volte a lesar outras pessoas22

21

FLORINDO. op. cit. p. 283. 22 STOCO, Rui, Tratado de responsabilidade civil. São Paulo. RT. 2004. p. 1709

20

Na mesma linha, consulte-se novamente Valdir Florindo:

Diante das posições doutrinárias e jurisprudencial, inegável o duplo caráter de

compensação para a vítima e de pena/sanção para o agente do ato ilícito. O

importante é que não fique a vítima sem sua devida reparação, nem tampouco

impune o responsável pela lesão, pois caso contrário seria desrespeitar a lei e

desprezar a pessoa humana.23

Desta forma, o arbitramento, para desempenhar função social, deve levar em conta o

caráter pedagógico da reparação por danos morais, a qual há de variar entre o mínimo da

compensação e o máximo da barreira do enriquecimento sem causa.

O termômetro entre estes dois extremos há que ser o caráter pedagógico que irá

avaliar a culpa ou o dolo do fornecedor e a existência ou não de práticas reiteradas.

Esta também é a orientação de Valdir Florindo, apoiado no Magistrado Wlamir

Valler, o qual, por sua vez, buscou os ensinamentos de Augusto M. Morello, segundo a qual:

A solução da questão apenas poderá ser encontrada deixando-se de lado as duas

posições extremadas, adotando-se uma posição eclética ou mista, que atribui ao

responsável a natureza satisfatória para a vítima e punitiva para o agente do ato

ilícito...24

E de André Gustavo Corrêa de Andrade, que vai além e defende a fixação, em

separado, da verba compensatória e da verba didático-pedagógica:

O arbitramento do quantum correspondente à indenização punitiva deve ser

realizado separadamente em relação à fixação da indenização de natureza

compensatória do mesmo dano. Essa separação garante transparência à sentença,

possibilitando o controle da adequação dos critérios utilizados e da valoração

realizada. Além disso, facilita a verificação do peso atribuído à compensação do

dano e o conferido à reprovabilidade da conduta, permitindo, com isso, verificar a

existência ou não de proporcionalidade da indenização punitiva em relação à

indenização compensatória do dano moral25

De fato, há quem sustente que a indenização punitiva deva ser fixada separadamente

da compensação por dano moral.

Em primeiro lugar, porque uma não deve ser confundida com a outra. A

compensação por dano moral deve ser fixada por meio de dos critérios clássicos, visando a

reparar o dano sofrido pela vítima e reequilibrar a relação jurídica.

23 MORELLO, Augusto M, apud. FLORINDO, Valdir, op. cit. p. 284. 24

Ibid. 25 ANDRADE. op. cit. p. 337.

21

Em segundo julgar, porque a indenização punitiva toma por base critérios diversos,

que devem ser examinados em separado. Além disso, a função das condenações também seria

diversa, uma vez que a punitiva visa prevenir a reincidência e punir o ofensor, de forma que

não seja melhor economicamente praticar o ilícito do que prevenir o dano.

Com efeito, fixado em conjuntou ou em separado, certo é que o caráter punitivo da

verba compensatória é inerente a ela e, portanto, deve estar presente.

A jurisprudência pátria, por sua vez, vem atribuindo relevância ao caráter punitivo da

verba pelo dano moral, conforme se verifica das seguintes ementas ilustrativas:

Responsabilidade civil objetiva do empregador. Agressão física perpetrada pelos

prepostos da ré contra o autor, em razão de suposto furto praticado por este em

estabelecimento comercial da primeira. Conduta dolosa dos prepostos da ré, no local

e horário de trabalho e no interesse da empregadora. Dever de indenizar

configurado. Procedência do pleito indenizatório relativo ao dano moral. Majoração

da verba indenizatória, em razão da gravidade do dano causado e da necessidade de

atender ao caráter punitivo-pedagógico dessa verba. Negativa de seguimento ao

primeiro apelo e provimento parcial do segundo, na forma do art. 557, § 1º-A, do

CPC26

Responsabilidade civil. Manutenção indevida do nome da autora em cadastros restritivos de crédito. Caráter punitivo do dano moral. Majoração do quantum

fixado. Termo inicial da correção monetária e dos juros mantidos. Verba honorária

devidamente fixada. Para fixação do dano moral, deve-se obedecer ao critério da

razoabilidade, objetivando o atendimento da sua dúplice função - compensatória dos

sofrimentos infligidos à vítima e inibitória da contumácia do agressor - sem

descambar para o enriquecimento sem causa da vítima. Dessa forma, fiel ao

princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ao seu caráter

pedagógico, deve ser majorado o dano moral fixado pelo juízo a quo para R$

10.000,00 (dez mil reais), patamar adequado às peculiaridades do caso e aos critérios

adotados por nossos julgados. Correção monetária devidamente fixada a partir da

sentença, nos termos do Verbete n.º 97, deste TJERJ. No mesmo sentido, correta a fixação dos juros a partir da citação, tendo em vista a relação contratual entabulada

entre as partes. Por fim, quanto aos honorários advocatícios, o percentual fixado na

sentença mostra-se razoável. In casu, não há qualquer complexidade na matéria que

justifique a fixação no percentual de 15%, conforme pretendido pelo apelante. O

percentual deve ser adequado à singela e corriqueira questão aqui analisada, razão

pela qual correta a fixação em 10% sobre o valor da condenação. Recurso a que se

dá parcial provimento”27

Apelação cível. Direito do consumidor. Empréstimo não contratado. Ausência de

comprovação da origem do débito. Cobrança indevida. Responsabilidade civil

objetiva. Dano moral configurado. 1. Cuida-se de ação objetivando o autor a

condenação do réu ao pagamento de indenização a título de dano moral e na

26 Brasil. 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Des. André Andrade. Apelação

Cível n. 0326429-45.2008.8.19.0001. Julgamento em 20/05/2013. 27

Brasil. 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Des. Renata Cotta. Apelação

Cível n. 0043493-64.2007.8.19.0038. Julgamento em 20/05/2013.

22

devolução em dobro dos valores supostamente indevidos descontados a título de

empréstimo de sua conta corrente. Sentença de procedência parcial que foi alvo do

inconformismo do autor. 2. A indenização por dano moral tem um cunho punitivo

e deve ser imposta quando o comportamento do ofensor se revela reprovável, como

é o caso dos autos. 3. Verba indenizatória fixada na sentença que merece ser

majorada para R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mostrando-se, desta forma, razoável e

proporcional ao dano experimentado. Precedentes desta Corte de Justiça. 4.

Devolução em dobro dos valores indevidamente descontados a título de empréstimo

que se impõe, na forma do previsto no art. 42, parágrafo único do CDC. 5.

Provimento do recurso28

Contudo, como visto, resta evidente, pois, que a indenização ressarcitória, em nosso

país, não vem se mostrando suficiente para gerar um efeito preventivo idôneo.

Apesar de o Superior Tribunal de Justiça também ter reconhecido, por inúmeras

vezes, a dupla função da indenização do dano moral, tal reconhecimento ainda não trouxe um

incremento considerável dos valores indenizatórios referentes ao dano moral.

CONCLUSÃO

Nas relações de consumo, os fornecedores têm abusado do seu poder econômico e,

em decorrência do abuso de direito, têm cometido ilícitos reiteradamente, os quais ocasionam

dano moral nas relações consumeristas.

Este fato deve ser analisado pelos aplicadores do direito, principalmente pelos

magistrados que devem levar em conta o poder econômico das empresas, as circunstâncias,

seu histórico no mercado e as consequências do fato danoso para poder individualizar o dano

moral, que deverá ser aplicado com o intuito punitivo-pedagógico para evitar que novas

condutas danosas sejam perpetrada.

Nesse ponto, deve-se perceber que o direito não é uma ciência estanque. Pelo

contrário, deve sempre acompanhar a evolução de sua sociedade sob pena de tornar-se

obsoleto e inútil.

28

Brasil. 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Des. Monica Costa Di Piero.

Apelação Cível n. 0351694-44.2011.8.19.0001. Julgamento em 17/05/2013

23

As regras positivas de um Estado devem, tanto quanto possível, representar os

valores daquela sociedade, exatamente como faz o Código de Defesa do Consumidor:

representa uma sociedade que não mais tolera condutas abusivas por parte dos fornecedores e

que exige, definitivamente, que eles reformulem suas condutas.

Para que tal objetivo seja alcançado, é inevitável que seja revisto o conceito de dano

moral, adequando-o aos princípios introduzidos pela Constituição de 1988 que preza, acima

de tudo, a dignidade humana, a qual deve, portanto, ser veementemente preservada.

Associando-se o caráter pedagógico à compensação, a indenização revela-se

importante mecanismo de preservação da dignidade, na medida em que previne a ocorrência

de novos danos morais, principalmente em sociedades de massa como a nossa,

desempenhando, assim, sua função social.

Assim é que, não se pode fixar uma quantia para o dano moral sem levar-se em conta

tal critério, com vistas à prevenção de danos contra a dignidade da pessoa humana, de modo

que a verba indenizatória pelo dano moral fixada sem observância do fator didático-

pedagógico é inconstitucional, por negar função social ao instituto.

Em suma, apesar de boa parte da doutrina e da jurisprudência se fazer de argumentos

como enriquecimento ilícito, o caráter punitivo-pedagógico da indenização por danos morais

está em sintonia com o avanço da responsabilidade civil objetiva, muito mais voltada à teoria

de danos. Com o foco no dano causado, é preciso que este seja evitado, sendo um importante

mecanismo de prevenção, para, via de consequência, trazer maior equilíbrio à sociedade.

REFERÊNCIAS

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Forense. 2006

24

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