escola, cidadania e democracia: repensar os vínculos, redefinir...

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Psicologia e Educação 63 Vol. IV, nº 1, Jun. 2005 Escola, cidadania e democracia: Repensar os vínculos, redefinir tarefas e perspectivar responsabilidades Manuel Barbosa* Resumo: O direito à educação, sendo um direito à escolarização, coloca a questão do protagonismo da escola na preparação de cidadãos para as democracias pluralistas, tanto mais quanto essa acção é indissociável de uma escola verdadeiramente justa, correspondente às expectativas que hoje nela depositamos. O presente texto, perten- cendo a uma linhagem de discursos que reformula a relação entre educação, cidadania e democracia em função das circunstâncias emergentes no seio da contemporaneidade, vai de encontro a essa questão, assumindo três temas para uma discussão argumentada: (i) a centralidade da escola na educação para a cidadania; (ii) o significado de cidadanização para a democracia nas arenas da escola pública, e (iii) que respon- sabilidades cabem à escola nessa matéria, considerando que não se pode alhear da educação para a democracia, especialmente numa altura em que as normas, valores e princípios da democracia são cada vez menos veiculados pelas estruturas da sociedade mais ampla. Palavras-chave: Escola, Cidadania, Democracia. _______________ * Prof. Doutor do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho. E-mail: [email protected] «A educação para os direitos do ho- mem e para a democracia, a socia- lização e a transmissão de valores são responsabilidade de todas as institui- ções que acolhem as crianças, mas a escola tem sem dúvida uma impor- tância única e central». Jean Le Gal, 2005, p. 69 Pode parecer uma evidência, mas nunca é demais recordar que a democracia, enquanto forma de governo e estilo de vida, não se reproduz por si mesma. Não existe em si nenhum mecanismo que a faça durar, seja código genético ou mão invisível. Para subsistir, e de resto para crescer e evoluir, tem uma necessidade vital de cidadãos. Estes, na perspectiva da democracia, serão tanto ou mais necessários quanto perfilhem os seus ideais e os seus valores. Ora, isto não acontece naturalmente. O cidadão que a democracia precisa é um artifício, é uma construção e uma elaboração requintadas, é um produto da acção social humana nos mais diversos âmbitos de educação e formação. Seria pouco realista pensar que as escolas são os únicos lugares ou os únicos con- textos onde se faz a aprendizagem dessa cidadania democrática. As pessoas não se tornam cidadãos democratas apenas nas instituições escolares. Aprendem as des- trezas e as virtudes da cidadania demo- crática no âmbito da família, no contexto da vizinhança, nas igrejas, nas associações e em muitos outros fóruns da sociedade civil. As escolas só em parte contribuem para isso, mas parecem assumir cada vez mais importância nessa matéria. Assim, é chegado o momento de repensar os vín- culos da escola com a aprendizagem da cidadania democrática e verificar se essa instituição desempenha um papel estraté- gico insubstituível na formação de cida-

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Vol. IV, nº 1, Jun. 2005

Escola, cidadania e democracia: Repensar os vínculos, redefinirtarefas e perspectivar responsabilidadesManuel Barbosa*

Resumo: O direito à educação, sendo um direito à escolarização, coloca a questãodo protagonismo da escola na preparação de cidadãos para as democracias pluralistas,tanto mais quanto essa acção é indissociável de uma escola verdadeiramente justa,correspondente às expectativas que hoje nela depositamos. O presente texto, perten-cendo a uma linhagem de discursos que reformula a relação entre educação, cidadaniae democracia em função das circunstâncias emergentes no seio da contemporaneidade,vai de encontro a essa questão, assumindo três temas para uma discussão argumentada:(i) a centralidade da escola na educação para a cidadania; (ii) o significado decidadanização para a democracia nas arenas da escola pública, e (iii) que respon-sabilidades cabem à escola nessa matéria, considerando que não se pode alhear daeducação para a democracia, especialmente numa altura em que as normas, valorese princípios da democracia são cada vez menos veiculados pelas estruturas da sociedademais ampla.Palavras-chave: Escola, Cidadania, Democracia.

_______________* Prof. Doutor do Instituto de Educação e

Psicologia da Universidade do Minho. E-mail:[email protected]

«A educação para os direitos do ho-mem e para a democracia, a socia-lização e a transmissão de valores sãoresponsabilidade de todas as institui-ções que acolhem as crianças, masa escola tem sem dúvida uma impor-tância única e central». Jean Le Gal,2005, p. 69

Pode parecer uma evidência, mas nuncaé demais recordar que a democracia,enquanto forma de governo e estilo de vida,não se reproduz por si mesma. Não existeem si nenhum mecanismo que a faça durar,seja código genético ou mão invisível. Parasubsistir, e de resto para crescer e evoluir,tem uma necessidade vital de cidadãos.Estes, na perspectiva da democracia, serãotanto ou mais necessários quanto perfilhemos seus ideais e os seus valores. Ora, isto

não acontece naturalmente. O cidadão quea democracia precisa é um artifício, é umaconstrução e uma elaboração requintadas,é um produto da acção social humana nosmais diversos âmbitos de educação eformação.Seria pouco realista pensar que as escolassão os únicos lugares ou os únicos con-textos onde se faz a aprendizagem dessacidadania democrática. As pessoas não setornam cidadãos democratas apenas nasinstituições escolares. Aprendem as des-trezas e as virtudes da cidadania demo-crática no âmbito da família, no contextoda vizinhança, nas igrejas, nas associaçõese em muitos outros fóruns da sociedadecivil. As escolas só em parte contribuempara isso, mas parecem assumir cada vezmais importância nessa matéria. Assim, échegado o momento de repensar os vín-culos da escola com a aprendizagem dacidadania democrática e verificar se essainstituição desempenha um papel estraté-gico insubstituível na formação de cida-

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dãos. A intenção, nesta fase do percursoinvestigativo, é renovar o olhar sobre aescola no que concerne a aprendizagem dosingredientes necessários ao exercício ac-tivo da cidadania democrática, mesmo queisso implique entrar em dissidência comcertas ideias e pensamentos feitos.A sequência do percurso assim inauguradovai-nos levar a perguntar, numa segundafase, em que termos assume doravante aescola o seu protagonismo na formação decidadãos para a democracia, uma vez quecaíram em desuso as lições de moral cívicae a inculcação de códigos de conduta.Afinal, o que é que cabe à escola fazer?Transmitir conhecimentos, desenvolvercompetências, promover atitudes, desenca-dear comportamentos, assimilar valores? Ede que modo? Aprender escutando ouaprender fazendo, isto é, experimentando?Mas neste caso, o que é que isso implicaem termos de ordenamento curricular daorganização escolar? A resposta a estasquestões, sendo a vários títulos desafiantepara redefinir a tarefa da escola nacidadanização de democratas, afigura-sedeterminante para perspectivar as respon-sabilidades dessa instituição na edificaçãode uma democracia mais democratizada,isto é, uma democracia vivificada erobustecida pela efectiva participação doscidadãos na gestão e administração daqui-lo que é comum. A escola pública por-tuguesa, com as suas virtudes e os seusdefeitos, será aqui adoptada como pontode referência. Importa saber o que é quedeve fazer para assumir convenientementeas suas responsabilidades em matéria deeducação para a cidadania democrática ese deve tirar partido (e de que modo) dosrecursos e das potencialidades da comu-nidade educativa onde se insere. Porqueuma coisa é certa: a escola não pode viverdesfasada dessa comunidade se quer edu-car eficientemente para a sociedade demo-crática (Barbosa, 2005).

A esta luz, são três os temas que vamostratar. Em primeiro lugar, a centralidadeda escola na educação para a cidadania.Em segundo, a cidadanização escolar naperspectiva da democracia e o que podesignificar hoje em dia. Por fim, as respon-sabilidades da escola nesse processo nãoignorando que há dificuldades e obstácu-los a vencer, seja por inércia da comuni-dade escolar, seja pela falta de condiçõese margem de manobra dos actores dasescolas. Em todo o caso, resta saber o queé que a escola pode fazer para assumir oseu quinhão de responsabilidades na for-mação de cidadãos democratas, eventual-mente em articulação e em sinergia coma comunidade educativa a que pertence,de jure, no nosso país.

1. A Centralidade da Escola na Educa-ção para a Cidadania

Nos dias de hoje, um título como este podeparecer anacrónico e até provocador, napior acepção das palavras. Não será ana-crónico reavivar o interesse pela «escolaconstrutora de cidadania», ou simplesmentede sujeitos políticos, quando se ouve ocanto da sereia neoliberal a reclamar«capital humano» das instituições escola-res? Não será insolente, provocador eatentatório dos melhores sentimentos,remeter para a escola a formação de ci-dadãos quando se sabe que essa «casacomum», cada vez mais exangue em certosmeios, se comportou alegremente comoviveiro de selecção, hierarquização e ex-clusão social? Não é ela que tem humilha-do e rebaixado sucessivas gerações decrianças e jovens só pelo facto de come-terem o pecado de não se ajustarem aosseus padrões de cultura e conhecimento?Por outro lado, poder-se-á perguntar: quesentido faz atribuir à escola uma posiçãocimeira na educação para a cidadania se

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os teóricos do mercado, desde as suasposições concorrenciais e privatistas, e osarautos da sociedade civil, desde as suasconcepções inequivocamente positivas, nosgarantem que esses dois sectores são maisque suficientes para nos apetrecharem dasvirtudes, dos conhecimentos e das com-petências que doravante precisamos paraviver nas arenas e nos areópagos dasdemocracias pluralistas? Será isto coeren-te? Porquê então continuar a valorizar aescola? Não é isso o que faz o Conselhoda Europa no seu mega-projecto de edu-cação para a cidadania democrática, talcomo ressalta da maioria dos documentospor si encomendados e chancelados (vero site http://www.coe.int/edc.fr) e bemassim das recomendações de políticaeducativa que sistematicamente tem for-mulado? (ver as últimas em data noRelatório de David Kerr, 2005, sobre aConferência de Lançamento do Ano Eu-ropeu da Cidadania Democrática atravésda Educação, no mesmo site). Recuandoum pouco, podemos ver que foi esse opropósito da IEA (International Associationfor the Evaluation of EducationalAchievement), quando lançou, numa sériede países, o projecto «Educação cívica»(Cf. Birzéa, 2000: 19), e que tal intençãofoi sublinhada, sensivelmente na mesmaaltura, pelo ex-director da UNESCO,quando afirmou: «a escola desempenha umpapel essencial na construção da cidada-nia» e «uma educação cívica repensadadeve ocupar um lugar privilegiado noconjunto dos programas» (Mayor, 1999: 31e 380). O teórico e filósofo da política WillKymlicka, em texto de referência sobre estamatéria (2003: 342), também adverte: «Écerto que as escolas não são os únicos,e talvez nem sequer sejam os principaisfóruns onde se aprende a cidadania, massão, em minha opinião, absolutamenteindispensáveis».

Porquê esta ênfase na escola, não obstanteas críticas de que é objecto? Há razõesobjectivas e credíveis que a justificam?Porque é que não podemos passar sem aescola na formação de cidadãos?Antes de mais, porque é irrealista pensarque as famílias actuais têm condições pararealizar essa formação. As famílias sãodiminutas, estão isoladas e têm cada vezmenos tempo para as interacçõesformativas em termos de cidadania. Alémdisso, há famílias que em certos meios sãomais fictícias que reais: demitem-se dassuas responsabilidades, abandonam ascrianças e até as maltratam. Não é exa-gerado dizer, a esta luz, que as famíliasdependem cada vez mais de outras instân-cias para socializar as crianças nas práti-cas da cidadania. Isto é certamente umatendência que se coaduna com a crescentesocialização da socialização, isto é, coma remissão dessa socialização para agên-cias extra-familiares:

A socialização da socialização (oucolectivização da educação, paranos entendermos) que supõe ocrescente papel da escola frente àfamília e à comunidade e o carácterperemptório dos pedidos que sãofeitos a essa instituição não são maisque a face visível da socializaçãogalopante da vida. Depende-se tan-to das escolas para a educação dainfância e da juventude como sedepende cada vez mais dos hospi-tais para tratar dos doentes, dos larespara o cuidado dos idosos, da justiçae da polícia para manter a ordemou do mercado e do Estado parao fornecimento de certos bens eserviços (Enguita, 2001: 69-70).

A dependência da unidade familiar rela-tivamente à escola, no que concerne a

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educação em geral, e a educação para acidadania em particular, não tem apenasa ver com as razões apontadas. Resultatambém, no caso da cidadania, da cres-cente despolitização das famílias. De fac-to, como pergunta Galichet (2005: 30):

Se as famílias estão amplamentedespolitizadas e vivem na indiferen-ça, para não dizer desprezo, por tudoaquilo que se reporta à política,haverá outra instituição, que não aescola, que possa interessar osjovens pelas questões da actualida-de que definem a cidadania?

Aliás, é bom que se diga que as famílias,tal como outras instituições da sociedadecivil, não são lugares infalíveis de edu-cação para a cidadania. Mais ainda quan-do essa cidadania deve ser democrática:

É possível que aprendamos a serbons vizinhos através da vizinhan-ça. No entanto, as associações devizinhos também ensinam as pesso-as a basearem-se no princípio‘NIMBY’ (not in my backyard [nun-ca no meu quintal]) quando se tratade fazer habitações sociais ou derealizar obras públicas. Do mesmomodo, a família é com frequência‘uma escola de despotismo’ queinculca o domínio do homem sobrea mulher; as igrejas ensinam amiúdeuma atitude de complacência paracom a autoridade e a intolerânciapara com outros credos; os gruposétnicos, esses, tendem a inculcarpreconceitos contra outras raças, eassim sucessivamente (Kymlicka,2003: 353-354).

Face a este panorama, a fasquia educativaem relação à sociedade civil não pode ser

elevada. Tanto mais quanto a razão de serdo seu tecido associativo voluntário nãoestá na promoção da educação para acidadania democrática. Por isso é que dizKymlicka, mais uma vez:

Os teóricos da sociedade civilexigem demasiado às associaçõesvoluntárias ao esperar que elassejam a principal escola de cidada-nia democrática, ou uma réplicadesta em pequena escala. Pese ofacto de essas associações poderemensinar virtude cívica, não é essaa sua razão de ser. A razão pela qualas pessoas se unem às igrejas, àsfamílias ou às organizações étnicasnão é a de aprender virtude cívica.Antes o fazem para enaltecer certosvalores e para disfrutar de certosbens humanos, e estes motivospodem ter pouco a ver com apromoção da cidadania.Dizer que a família, por exemplo,se constitui para ser uma escola decidadania, é passar ao lado do queefectivamente motiva a suainstitucionalização. Assim, para nãocaírmos no ridículo, o melhor é darà escola o que é da escola e àsociedade civil o que é da socie-dade civil, mesmo que reconheça-mos, por amor à verdade, que certasassociações voluntárias (como osBoy Scouts) são expressamentedesenhadas para induzirem acidadanização dos seus aderentes edos seus públicos.

As escolas das nossas democraciaspluralistas reúnem sem dúvida outrascondições e outras possibilidades parafazerem esse trabalho. Não é só pelo factode definirem um espaço onde as criançase os jovens se podem encontrar, sendo

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iguais e sendo diferentes. É lá que pode-mos programar e sistematizar esses con-tactos: «a escola é dos poucos âmbitos desocialização onde é possível programarexperiências de contactos entre diferentes,de encontros que permitem enriquecer-secom a cultura do outro» (Tedesco, 2002:58). É lá que a maioria das crianças faza sua primeira aproximação à diversidadee à pluralidade da sociedade global. Nela,«a criança é levada a conviver, de formasistemática, com alunos de outras origens,raças, culturas, classes e capacidades, comos quais, fora da escola, tem uma relaçãonula ou escassa» (Enguita, 2001: 68).É verdade que os valores da cidadaniademocrática se podem difundir, e até certoponto aprender, no seio da família. Masessa aprendizagem, a acontecer, nunca teráa espessura e a densidade humana da quese pode realizar na escola. É nesta ins-tituição que a criança se confronta comos verdadeiramente outros, e não apenascom os outros do «nós» familiar. Na escolapode aprender com realismo o respeito peladiferença dos outros, porque eles estão aíe porque é dever da escola desencadearessa aprendizagem. Não se compreendeque a escola de uma democracia pluralistanão faça isso.O crescente multiculturalismo das socie-dades actuais acentua e reclama cada vezmais essa aprendizagem. E também aqui,a escola vai além da família:

A família tem muito protagonismonos processos de transmissão cul-tural, como aliás o têm outrosespaços e outros meios de sociali-zação. E se, na situação de cres-cente multiculturalismo em quevivemos, a escola tem um papelmuito importante, isso deve-se aofacto de ser o ponto de encontrodos diferentes processos de

enculturação familiares sobre osquais, amiúde, se vê obrigada aposicionar-se. Nas aulas, dificilmen-te se pode evitar a confrontaçãoentre estes modelos, e a escola vê-se obrigada a desempenhar, comfrequência, funções de arbitragemou de gestão de conflitos, procu-rando, no melhor dos casos, supe-rar as tensões, recorrendo a prin-cípios transculturais e a práticas deeducação intercultural (Carbonell,2005: 66).

A experiência da pluralidade na escola,sendo importante por esses motivos, nãodeixa de ter um alcance mais vasto eprofundo, se tivermos em conta que «apolítica se baseia na pluralidade humana»(Arendt, 1995: 39). Se a essência dapolítica está na pluralidade humana, comodefende Arendt ao reconhecer que ouniverso da política é o das relações entreseres humanos que se diferenciam mutu-amente (1995: 41-42), então, que lugar émais adequado para introduzir na políticasenão a escola? Não é lá que se podeorganizar, com sistematicidade, o encon-tro de indivíduos diferentes, de persona-lidades identificadas com múltiplas pers-pectivas de género, de classe, de raça, deetnia, de cultura? Tudo indica que sim:

Somente a escola, porque organizao encontro físico, ‘em pessoa’,daqueles que reúne, pode permitirfazer essa experiência dapluralidade, e portanto fundar apossibilidade e a necessidade deuma relação política entre os ho-mens. Esta experiência da alteridadepode assumir múltiplas formas:discussão filosófica, tutoria entrealunos, conselhos ou assembleias,confrontação de textos livres. Em

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todos estes casos, é já a política queestá em questão, é já o político quese vive na e através da escola(Galichet, 2003: 15).

O pressuposto de tudo isto, claro está, ésempre uma escola heterogénea, frequen-tada por múltiplos públicos. Se assim nãofosse, como poderiam as crianças deparar-se com a outridade do outro e com anecessidade de a respeitar? Mais: comopoderiam ter acesso a essa dimensão fun-damental da cidadania? As palavras deGalichet são muito incisivas a este respeito:

As crianças encerradas em escolasde uma só classe social, de uma sócultura, estão privadas de cidada-nia, quer dizer, dessa dimensãocentral da cidadania que é a con-frontação com a alteridade social,cultural ou intelectual de camara-das que são, no entanto, seusconcidadãos (2005:112).

Em tais condições, como resulta de outratese defendida pelo autor, fica seriamentecomprometida a «experiência da cidada-nia como responsabilidade pedagógica pelooutro, quer dizer, como vontade de igual-dade radical» (Galichet, 2005: 51), ou seja,como disposição de ajudar o outro einteressar-se por ele, não obstante asdiferenças de cariz intelectual, cultural,social ou outras.A recuperação da centralidade da escolana educação para a cidadania, sob esteprisma, fica bem estabelecida. E se éverdade que faz passar para segundo planoas contribuições da sociedade civil, pelasrazões aduzidas, também reduz à mínimaexpressão a contribuição do mercado, pois,a olhos vistos, este sector não pode en-sinar aquilo que é necessário à cidadaniademocrática, nomeadamente em termos de

virtudes cívicas. É certo que o mercado,em função dos princípios económicos doliberalismo, pode promover as virtudes dainiciativa e da auto-confiança. Ainda as-sim, como diz Kymlicka (2003: 351),

os limites do mercado, como escolade virtude cívica, são bem claros.Pode argumentar-se que muitasliberalizações do mercado tornarampossível uma era de avidez eirresponsabilidade económica semprecedentes, como aliás é provadopelos escândalos financeiros nosEstados Unidos, protagonizados porsociedades anónimas e empresas deauditoria do mercado bolsista. Osmercados, na verdade, inculcaminiciativa, mas não no sentido dajustiça e da responsabilidade social.

Quererá isto dizer, no fim de contas, quesó devemos contar com a escola na pro-moção da cidadania democrática? Pensarassim seria tão reducionista quanto as tesesdos teóricos do mercado e da sociedadecivil. É melhor admitir, com sensatez erealismo, que a educação para a cidadaniademocrática é uma responsabilidade par-tilhada, em maior ou menor grau, comose viu até aqui, por vários agentes einstituições. É neste sentido que se pro-nuncia F. Audigier no seu documento parao Conselho da Europa sobre as competên-cias requeridas pela cidadania democráti-ca e integrantes de uma educação para acidadania democrática: «a educação paraa cidadania democrática devia ser umapreocupação constante de todos os cida-dãos e de todas as instituições numasociedade democrática». Mas ressalva logoa seguir: «não é menos verdade que deveter uma presença explícita e prioritária nasinstituições de educação e formação»(2000: 11).

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É essa a nossa opinião. Por isso reclama-mos uma revalorização da escola na for-mação de cidadãos. Ela pode desempenhar,segundo cremos, um papel piloto e centralnessa formação. Falta saber se nos mes-mos moldes do passado ou se em funçãode outra concepção. É o que vamos verjá a seguir.

2. A Cidadanização na Perspectiva daDemocracia: elementos para umareconceptualização

Vimos até agora que a educação para acidadania democrática, não se restringindoà escola, não pode ignorar o seuprotagonismo. Se é verdade que a escolanão é o único agente que educa, comosabemos e reconhecemos cada vez maisface à emergência de novos e poderososagentes educativos, também é certo queparece ser aquele que melhor controlamos(Sacristán, 2005: 126). Isto é importantese nos colocamos na perspectiva de rea-lização do direito à educação. O que é odireito à educação? Não é sobretudo umdireito à escolarização e, portanto, umdireito à capacitação para o exercício activoe responsável da cidadania através daescola? Não é isso o que se exige de umaescola justa? A escola será justa, segundoDubet (2004: 89), se é capaz de «garantiruma cultura comum, aquela que todo ocidadão deve possuir». «Uma escola justa,diz noutro lugar (2004: 74), não é somenteaquela que deve ser útil à integração socialdos alunos, mas é também a que deveformar os sujeitos de uma sociedadedemocrática e solidária».A questão que hoje se coloca, com algumainquietação à mistura, é a de saber comoformar esses sujeitos no contexto da es-cola, dado verificar-se uma certa dificul-dade da escola em definir o seu papel nessa

matéria. A escola das lições de moral cívicae da inculcação de códigos de conduta está«gripada» e parece impraticável, para nãodizer impossível, reactivar esse modelo deformação de cidadãos no contexto dasdemocracias actuais.Em primeiro lugar, porque a moral cívicae os códigos de conduta só parcialmentecorrespondem às reais necessidades de umacidadanização para a democracia. O cida-dão do nosso tempo, ainda que bemformado nessas áreas, não poderá certa-mente afrontar os complexos problemasdos regimes democráticos, nem sequer serconvocado para os afrontar, se não estiverapetrechado de outros elementos, comosejam os conhecimentos e as competên-cias de compreensão e acção. Além damoral e dos códigos de conduta, como porexemplo a civilidade e a moderação públi-ca na afirmação dos seus pontos de vista,o cidadão precisa de estar preparado paracompreender fenómenos complexos e paraintervir, de maneira informada e respon-sável, na teia de processos políticos queestrutura e satura as democracias contem-porâneas. A formação que é devida a todosos cidadãos, nesta ordem de ideias, temque ser então mais ambiciosa. Quem osugere é Tedesco quando põe assim oproblema:

Se no passado o sistema se podiaorganizar em níveis corresponden-tes a determinadas categorias soci-ais e de complexidade na organi-zação do conhecimento, no futuroa democratização do acesso a ní-veis superiores de análise de rea-lidades e fenómenos complexosdeve ser universal. Este acessouniversal à compreensão de fenó-menos complexos constitui a con-dição necessária para evitar a rup-tura da coesão social e os cenários

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catastrofistas que potencialmenteestão presentes nas tendências soci-ais actuais. Mas o acesso à compre-ensão de fenómenos complexos nãopode estar exclusivamente associa-do a um determinado nível do sis-tema. A formação básica e universaldeverá ser capaz de dotar o conjuntodos cidadãos dos instrumentos e dascompetências cognitivas necessáriaspara um desempenho cidadão activo(2002: 59).

Assim, há que velar por uma formação quevá além das virtudes cívicas, por mais queestas sejam necessárias ao ofício de cida-dão, como veremos adiante.A bem dizer, a necessidade de virtudescívicas não é que põe problema. O pro-blema surge quando se verifica que a suainculcação, de acordo com uma estratégiapedagógica top down, já não funciona –ou só funciona em meios que se protegemcomo podem dos ventos da modernizaçãoe da democratização. A novidade da si-tuação, que compromete as pretensões dainculcação, está na afirmação de novosvalores, entre os quais se destacam, comosublinha Renaut (2002: 30), os valores daigualdade e da liberdade. São estes valoresda modernidade – hoje radicalizados eextremados – que impõem uma igualizaçãode condições e uma séria desvalorizaçãoda normatividade imperativa tradicionalque se escorava nas autoridadessacralizadas pela ordem natural das coisasou pela ordem sobrenatural da religião. Aesta luz, o regime da normatividade im-perativa sofre um duro golpe. Pode mes-mo dizer-se, com F. De Singly (2004: 30),que é um regime em crise. Em crise porqueé agora concorrenciado pelo regime danormatividade psicológica, isto é, peloregime que em questões de regras e normasse baseia na negociação e nacontratualização.

A normatividade psicológica, assente nanegociação e na contratualização de nor-mas e procedimentos entre actores e entresujeitos, impõe-se paulatinamente em to-das as arenas institucionais eorganizacionais, e é suficientemente cor-rosiva para pôr em crise tudo o que seampara na norma imperativa, inclusive aescola. Neste caso, a crise explica-se assim:

Se a instituição escolar está emcrise, é porque a sua função prin-cipal, a da difusão do saber, con-tinua a inscrever-se em grande partena normatividade imperativa, en-quanto o ambiente geral valoriza anormatividade psicológica (DeSingly, 2004: 26).

A escola, atingida e tocada pela novanormatividade, deve perder as ilusões dainculcação de virtudes cívicas. Agora, noâmbito dessa instituição, as virtudes nãosão para se proclamar e impor de cimapara baixo, mas para se praticarem einduzirem a partir das vivências quotidi-anas. Hoje, a moral não é para se inculcar,mas para se praticar. Quando muito, ainstituição escolar pode estruturar umambiente, um meio de vida, no seio doqual o indivíduo vai realizar uma expe-riência, seja para conhecer um mundo deregras negociadas e contratualizadas pelosactores em presença, seja sobretudo paraaprender o ofício da cidadania nas suasvárias vertentes: conhecimentos sobre oexercício da democracia nas sociedadespluralistas, capacidades de argumentaçãoe reflexão crítica, aptidões de intervenção/participação na esfera pública, disposiçõesmorais ou virtudes cívicas (responsabili-dade, civilidade, moderação, respeito pelooutro, tolerância, sentido de justiça, soli-dariedade, espírito público, respeito pelalei e pelos direitos humanos, espíritoinsubmisso, amorosidade, cordialidade,

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entre outras), atitudes proactivas e um lequede competências: cognitivas (ou de her-menêutica das situações e dos problemas),éticas (ou de raciocínio moral e de escolhade valores) e sociais (de relacionamentointerpessoal e de intervenção na vidapública, seja cooperando na realização deum projecto, seja participando nas arenasde interacção discursiva, seja resolvendoconflitos à luz do direito democrático, ouainda tomando decisões e assumindo res-ponsabilidades colectivas).Enquanto estatuto jurídico-político queconfere direitos e define deveres, a cida-dania adquire-se (por nascimento, porefeito da vontade, por naturalização). Masenquanto papel ou função social, aprende-se. A escola, enquanto «organizaçãoaprendente» (Birzéa, 2000: 40) e«ecossistema educador» (Barbosa, 1997:241), tem responsabilidades acrescidasnessa matéria, mas não pode pensar quevai ser bem sucedida se não reconstruiras suas práticas de cidadanização, sobre-tudo se tem por horizonte a preparação paraa democracia pluralista num ambiente decrescente interferência e interdependênciade povos, raças, culturas, línguas, etniase religiões. Por um lado, a preparação paraa democracia não se coaduna com o estilotradicional da escola (baseado na transmis-são do saber e na autoridade autoritária),visto dar origem, como sublinha Birzéa(2000: 39), «a cidadãos submissos, a tra-balhadores passivos e a funcionáriosdóceis». Por outro, não sintoniza nem seacomoda, nestes novos tempos, aomonoculturalismo que tem caracterizadoessa instituição. Nestas condições, impor-ta dar lugar a uma abordagem maisconstrutivista da escola (para priorizar aexperiência pessoal dos alunos, a apropri-ação de saberes, a construção de compe-tências, a participação, a autonomização,a assunção de responsabilidades) e que-

brar o gelo do etnocentrismo que rima comlocalismo, nacionalismo, integrismo efundamentalismo. A solução passa então,nesta dimensão, por abrir a escola a ci-dadanias mais amplas e mais coloridas:cidadania mundial, cidadania multicultural,cidadania pós-nacional, cidadaniaintercultural.Assim, a organização escolar amplia o raiode acção da cidadanização e cria condi-ções para práticas de experimentação dademocracia no seu seio: ao nível micro dasala de aula onde se constrõem saberes econhecimentos através de interacçõesdialógicas, mas também ao nível macro dainstituição como organização, desde quese fomente o envolvimento dos alunos nasua gestão. Este envolvimento é decisivopara assimilar a democracia e os seusrequisitos em termos de cidadania:

A participação dos alunos na gestãoda escola aparece como um meioprivilegiado para lhes permitir ex-perimentar as práticas democráticasno seu conjunto, e ainda para melhoradaptar a escola aos alunos e criarassim um ambiente propício àsaprendizagens e ao respeito dosvalores, assim como uma boa atmos-fera na escola (Liégeois, 2005: 3).

A gestão democrática da escola, fundamen-tando-se no direito que a criança tem emtomar parte nas decisões que lhe dizemrespeito (artigo 12º da Convenção Inter-nacional dos Direitos da Criança),complementa a democracia no acto deaprender (pelo protagonismo que é atri-buído à criança nas aprendizagens em salade aula) e torna-se peça-chave nacidadanização para a democracia atravésda prática. O seu valor é insubstituível jáque permite, segundo Liégeois (2005: 13),«experimentar a tomada de decisão demo-

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crática», «ser actor implicado na melhoriado funcionamento da escola» e «exprimiropiniões, reivindicações e ideias sobre tudoaquilo que concerne a escola».A educação para a cidadania democrática,tomando a escola como centro de referên-cia, vai obrigar essa instituição a banharos seus espaços nas águas da democracia.Não podemos educar para a democraciaa não ser democraticamente (verMougniotte, 2004: 6-8), seja no interiordo espaço sagrado da sala de aula, sejanos lugares e nos redutos do meio ambi-ente escolar. Sem quadro educativo demo-crático, a democracia torna-se uma mira-gem. Como diz a autora já citada: «Oensino e a aprendizagem da democraciaserão um fracasso se não se processam nummeio e num quadro educativo democrá-ticos» (Liégeois, 2005: 27).A tirar daqui todas as consequências,precisamos de implementar os princípiose os valores da democracia em qualquercircunstância do processo escolar, inclu-sive nas situações em que os alunosmanifestam insucesso e dificuldades deaprendizagem. Educar para a cidadaniademocrática, no particular contexto daescola, é ter em conta essas situações, jáque são lesivas do direito à educação:

O êxito escolar nem sempre repre-senta um êxito da educação emsentido pleno; em contrapartida, oinsucesso escolar suporá a negaçãoou mutilação do direito à educação,ao dificultar a marcha pela escola-ridade, uma vez que esta se con-verteu em sinónimo desse direito(Sacristán, 2005: 130).

Assim, há que ser atencioso e solidário como aluno e o colega que tem dificuldadesem aprender. Afinal, educar para a cida-dania democrática é também educar para

a solidadiedade e o cuidado do outro,sobretudo se está em dificuldades. Não poresmola ou caridade, mas por obrigaçãocívica decorrente dos valores e dos prin-cípios da democracia. Do ponto de vistapedagógico, essa solidariedade pode ma-terializar-se em cursos de apoio aos alu-nos atrasados ou até em acções tutoriaisde aluno para aluno, o que seria interes-sante para promover o sentimento deresponsabilidade educativa entre pares. Aideia de «cidadania pedagógica», tão caraa F. Galichet (2005: 111), teria aí umespaço para a sua concretização.A escola que se organiza para fomentara cidadania democrática junto dos alunosnão se fecha nem rejeita os contactos como meio. Como poderia ser de outro modose esse meio, configurado pela família eos agentes da sociedade civil, possuirecursos para enriquecer e complementaro trabalho da escola? Uma «bolha esco-lar» separada do meio que a cerca seriasempre empobrecedor. A ligação da escolaà família e à comunidade local é quepermite recolocar a criança e a sua apren-dizagem da cidadania numa sociedade queé a sua. Permite observar e experimentardirectamente a sua aprendizagem da vidaem sociedade nos lugares onde vive. Jápara a família e a comunidade, essa liga-ção com a escola permite compreender eparticipar democraticamente nos processosde educação das crianças, quanto mais nãoseja por razões de eficácia e de respon-sabilidade. Neste capítulo, asdescontinuidades normativas entre as ins-tituições em presença só poderia prejudi-car a aprendizagem da cidadania. Assim,há que preservar (ou estabelecer e reatar)os vínculos entre os três agentes respon-sáveis pela porção mais significatica dainfluência educadora sobre as crianças.Com isso, criaríamos condições para darrealismo e sustentabilidade à preparação

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das crianças para o exercício da cidadaniademocrática. Se a escola, enquanto agên-cia preponderante nessa matéria, está ounão a desempenhar adequadamente o seupapel, não é assunto que importa discutiraqui. Até porque alguma coisa quererádizer a proliferação de retórica sobre anecessidade de fazer da escola uma placagiratória e um catalisador de vontades eenergias para a realização dessa metaeducativa.Assim, é sem dúvida mais interessante, equem sabe mais necessário, deslocar oolhar para o plano normativo e ver quepode fazer a escola na cidadanização paraa democracia, não olvidando, nem por uminstante, as dificuldades, os obstáculos, osdesafios e as perspectivas que isso impli-ca, aqui e agora, no real pedagógico dasescolas.

3. Escola, Cidadania e Democracia: queresponsabilidades?

A relação de implicação entre escola, ci-dadania e democracia está para durar, dadasas circunstâncias da vida contemporânea.É certo que não podemos pedir à escolaque assuma responsabilidades que a trans-cendem, ou que só parcialmente cabem nassuas atribuições. Ainda assim, não pode-mos deixar de recorrer a ela quando se tratade lançar as bases da cidadanização paraa democracia. Sabemos que tem condiçõespara desempenhar um importante papelnessa matéria, mas também estamos avi-sados que deve conceber a sua missão emfunção de novas perspectivas. Areconceptualização dessa missão, operadaa traços largos no anterior apartado, deixaantever a assunção de novas responsabili-dades. Que responsabilidades?A procura de resposta para esta questãoé necessária para redefinir o rumo da escola

na preparação de cidadãos para a demo-cracia, mas de pouco valeria se não sereunissem duas condições: por um lado,um quadro legislativo e normativo para agirnesse sentido. Por outro, recursos e ins-trumentos para levar adiante aquilo que érequerido. Não se pode dizer, na situaçãopresente, que a escola pública portuguesacarece dessas condições. O enquadramen-to legal para promover a cidadania demo-crática na escola existe (é mesmo redun-dante numa série de peças legislativas daassembleia e do governo) e os recursosnão são assim tão poucos. O que pareceexistir de menos – num certo climadepressivo que se apoderou das escolas –é a coragem e a determinação em tornode uma escola cidadã, verdadeiramenteempenhada na educação para a cidadania.A reversão desta situação, no actual estadode coisas, passa por um renovar de com-promissos com a cidadanização no ambien-te escolar e com a assunção de novasresponsabilidades. Na ordem dos compro-missos, seria importante recolocar a cida-dania na agenda da escola, dando-lheprioridade e destaque no projectoeducativo. Já no plano das responsabili-dades, há que levar por diante a efectivademocratização da escola, seja ao nível dasrelações pedagógicas na sala de aula (re-conhecendo os direitos da criança e asvantagens que daí advêm para as aprendi-zagens), seja ao nível do governo e dadirecção da instituição (dando lugar àparticipação de todos os interlocutores dacomunidade educativa: pais, professores,alunos, pessoal não docente da escola,representantes da administração educativae das autarquias, representantes das acti-vidades de carácter cultural, artístico,científico, ambiental e económico, desdeque assumam relevo para o projectoeducativo da escola). Na medida do pos-sível, é preciso afrontar os principais

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obstáculos à democratização da escola.Antes de mais, os de carácter estrutural,ou seja, os burocráticos: «O principalentrave estrutural à democratização daescola é o seu aspecto burocrático. A escolaé uma organização, e é assim frequente-mente governada e gerida de maneiraburocrática» (Liégeois, 2005: 20). É poisimportante reflectir nas estratégias quepoderiam ajudar a passar de uma gestãoburocrática para uma gestão democrática,desocultando impasses, denunciando cons-trangimentos e pondo a claro resistênciasda própria tutela.Em seguida, particular atenção devia serdada aos problemas de fundo, essencial-mente culturais. A democratização daescola choca agora com os preconceitosdos adultos relativamente aos alunos: osvalores mais firmemente estabelecidosentre os adultos significativos das escolasafirmam que o poder é dos professores eque os alunos vêm à escola para aprendera ordem e a obediência. Qualquer poderatribuído aos alunos só pode significardesordem e anarquia. Teme-se, portanto,a fragilização da autoridade docente e obloqueio da gestão da escola, não seimaginando que isso pode ser uma ficção,útil apenas aos adultos. Há, pois, quedesmistificar os pressupostos desse raci-ocínio, partilhando poderes e responsabi-lidades com os alunos.Assim como se partilha poder e respon-sabilidade com os alunos (por ser umaforma eficaz de preparar para a exercícioresponsável da cidadania democrática),também se deve partilhar alguma formade poder e responsabilidade com outrosmembros da comunidade educativa. Emprimeiro lugar com os pais e encarregadosde educação, não apenas porque têmdireitos a respeitar, mas porque são essen-ciais ao reforço das aprendizagens esco-lares. Depois, com os representantes da

sociedade civil, uma vez que podem trazerà escola os seus saberes e os seus conhe-cimentos na área da cidadania, especial-mente quando se articulam com organiza-ções de defesa e promoção dos direitoshumanos.A ligação da escola com o meio, na linhadesta abertura aos representantes da soci-edade civil, deve ser cultivada sem com-plexos e sem reticências. É nesse contextoque os alunos podem ter acesso a amplosprogramas de luta contra as desigualdadese as injustiças sociais, e é aí, como refereEnguita (2001: 104),

que se encontram os saberes pro-fissionais, os conhecimentos técni-cos, as destrezas práticas e asexperiências sociais que a escolaprecisa para apoiar o seu labor; ou,se se prefere, os grupos, as orga-nizações e as instituições que ospossuem e com os quais podeentabular relações cooperativas.

O filão de conhecimentos e experiênciasdisponíveis no meio envolvente é pratica-mente ilimitado e seria uma pena não osaproveitar no trabalho de cidadanizaçãoescolar para a democracia.A escola autista, cortada da corrente da vidaque circula à sua volta, não é uma boa escolade cidadania. Se é verdade que priva osalunos do confronto com os problemas dacomunidade (o que já é negativo), tambémé certo que não tira partido dos recursosque essa comunidade oferece para atenderàs novas necessidades dos alunos em ter-mos de cidadania (preparação para respon-sabilidades acrescidas no mundo da vidafamiliar e social, adequação ao pluralismode valores e estilos de vida, àinterculturalidade, à transnacionalidade e àassunção de protagonismo em múltiplasesferas políticas).

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Uma escola cuja vocação é a cidadanizaçãoolha de outra maneira para a comunidadeque a rodeia. Vê nela um parceiro daeducação e desenvolve relações cooperati-vas com as suas estruturas organizativas.Neste sentido, procura que essas estruturasestejam representadas na escola, não apenasde direito (o que já acontece), mas de facto.Quer dizer: tomando parte na definição doprojecto educativo da escola, acompanhan-do a sua realização e contribuindo para asua avaliação.A participação democrática nas escolas, sejados representantes da comunidade local, sejados pais e dos alunos, dos professores e dopessoal não docente, é absolutamente neces-sária para configurar uma comunidade edu-cativa apostada num projecto de educaçãopara a cidadania. Há que recuperar a fé nacomunidade educativa, pois, como diz o ex-director da UNESCO (Mayor, 2002: 24),«Recuperar a fé na ‘comunidade educativa’seria um primeiro passo na direcção de umaeducação para a cidadania».Mas há obstáculos a transpor, se quiser-mos que essa participação não se trans-forme em paródia ou cena burlesca. Antesde mais, a falta de informação (há mem-bros da comunidade educativa que desco-nhecem os seus direitos de participação nasestruturas da escola e que ignoram asfunções dos vários órgãos). Depois, aaversão à participação (é mais cómodoserem os outros a decidir, e isto tanto dolado dos professores como do lado dosalunos e dos pais, para já não falar deoutros sectores da comunidade educativa).Em seguida, o cepticismo e o sentimentode impotência (isto consiste em não acre-ditar nas potencialidades da participaçãopara melhorar as coisas). Mais adiante, aobsessão pela eficácia (parece que discu-tir, dialogar, negociar e consensualizar éperder tempo). A seguir, temos os pre-conceitos, resistências e desconfianças entre

os membros da comunidade educativa (entrealunos e professores, entre professores e pais… e por aí fora). Mais além, a subversãodas estruturas de participação (confisca-sea participação de certos actores decidindoantes das reuniões; o que se faz a seguiré gerir o consentimento a decisões pré-tomadas). Finalmente, e para nos cingirmosao mais notório, horários pouco compatí-veis com os interesses de todos os mem-bros da comunidade educativa; falta deinformação atempada sobre os temas quese vão discutir e uma concepção burocrá-tica e formalista da participação (participa-se para cumprir formalidades).A identificação destes entraves à participa-ção democrática nas escolas não deve gerarsentimentos de apatia e desânimo, pois épossível vencê-los com alguma vontade edeterminação. Sem heroísmos individua-listas, pois os problemas são sistémicos eàs vezes até ultrapassam a esfera decompetências das escolas.Ainda assim, há mudanças que a comu-nidade educativa pode operar, especialmen-te no que concerne a democratização dosprocessos deliberativos em função de todosos actores representados nos órgãos daescola. Com esta iniciativa, dá-se semdúvida um precioso contributo para criarum ethos escolar democrático, potenciadorda cidadanização para a democracia.É sabido que a influência desse ethos,conjugada com a influência do currículooculto e do meio envolvente, é que édeterminante na formação de democratas.Por isso, faz sentido dizer com Birzéa(2000: 69) «que se deve promover aeducação para a cidadania por intermédiodo ethos escolar e do curriculum informale oculto, assim como através de relaçõesintensas com o meio ambiente social». Seisto for feito numa perspectiva democráti-ca, a escola será um pilar decisivo dademocracia tanto na forma de governo como

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sobretudo na modalidade de estilo de vida.Apesar de tudo, é sempre possível pergun-tar: vai a escola, por esse facto, garantir ofuturo da democracia? O futuro da demo-cracia não está garantido, mas é provávelque dependa da escola tal como surge aquireconsiderada no sentido da cidadania.

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