dificuldades na escrita de palavras: sua avaliação numa...

14
Psicologia e Educação 5 Vol. VI, nº 1, Jun. 2007 Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa Bateria de Provas Psicolinguísticas (PAL-PORT)* Maria Isabel Ferraz Festas** Cristina dos Santos Pereira Martins*** José Augusto Simões Gonçalves Leitão**** Resumo: A avaliação da escrita é um dos componentes da PAL-PORT (Bateria de Avaliação Psicolinguística – Portuguesa). A PAL-PORT é uma adaptação, para a população portuguesa, da PAL, bateria de testes em língua inglesa, usada na avaliação das afasias e de outros distúrbios da linguagem e que se insere numa abordagem da neuropsicologia cognitiva. No presente artigo, analisamos o modelo psicolinguístico subjacente aos testes de escrita da PAL e a sua eficácia na explicitação das dificuldades neste domínio. Apresentamos, também, os testes de escrita da PAL: a Prova 20 de escrita de nomes apresentados em gravuras, que permite a avaliação de características semânticas; a Prova 21 de ditado, que testa a conversão fone-grafema e o sistema ortográfico de saída. A Prova 7, de repetição de palavras e de pseudopalavras, será também objecto de análise. A repetição de pseudopalavras permite a avaliação da conversão do input fonológico no output fonológico. Uma atenção particular é dada às variáveis psicolinguísticas de cada uma destas provas. Palavras-Chave: dificuldades de escrita; modelos psicolinguísticos; avalaição. Word Wrinting disorders: Its Assessement Throug Psycholinguistics Batery (PAL-PORT) Abstract: The assessment of writing is an important component of PAL-PORT (Psycholinguistic Assessment of Language-Portuguese). PAL-PORT is an adaptation for the portuguese population of PAL, an English battery of tests used in assessing aphasia and other language disorders, that takes the cognitive neuropsychology approach as is reference point. In this paper we analyze PAL’s psycholinguistic model for writing single words and its success in accounting for writing disorders. We also present writing tests of PAL-PORT: PAL 20 a written naming test that allows the assessment of semantic characteristica; PAL 21 a writing to dictation probe that allows the assessment of phoneme-grapheme conversion and of the orthographic output system. We also present PAL 7, a word and nonword repetition test. Nonword repetition allows the assessment of phonological input to output conversion. We pay particular attention to the psycholinguistic variables of each of these probes. Key-Words: writing disorders; psycholinguistic models; assessment. _______________ * Trabalho realizado no âmbito do Projecto RIPD/PSI/63557/2005, financiado pela FCT, intitulado Avaliação psicolinguística fina de afasias e de outras perturbações da linguagem: Uma bateria integrativa de medidas em tempo diferido e em tempo real. ** Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, email: [email protected] *** Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, email: [email protected] **** Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, email: [email protected]

Upload: doankhanh

Post on 02-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 5

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa Bateriade Provas Psicolinguísticas (PAL-PORT)*Maria Isabel Ferraz Festas**Cristina dos Santos Pereira Martins***José Augusto Simões Gonçalves Leitão****

Resumo: A avaliação da escrita é um dos componentes da PAL-PORT (Bateria deAvaliação Psicolinguística – Portuguesa). A PAL-PORT é uma adaptação, para apopulação portuguesa, da PAL, bateria de testes em língua inglesa, usada na avaliaçãodas afasias e de outros distúrbios da linguagem e que se insere numa abordagem daneuropsicologia cognitiva. No presente artigo, analisamos o modelo psicolinguísticosubjacente aos testes de escrita da PAL e a sua eficácia na explicitação das dificuldadesneste domínio. Apresentamos, também, os testes de escrita da PAL: a Prova 20 deescrita de nomes apresentados em gravuras, que permite a avaliação de característicassemânticas; a Prova 21 de ditado, que testa a conversão fone-grafema e o sistemaortográfico de saída. A Prova 7, de repetição de palavras e de pseudopalavras, serátambém objecto de análise. A repetição de pseudopalavras permite a avaliação daconversão do input fonológico no output fonológico. Uma atenção particular é dadaàs variáveis psicolinguísticas de cada uma destas provas.Palavras-Chave: dificuldades de escrita; modelos psicolinguísticos; avalaição.

Word Wrinting disorders: Its Assessement Throug Psycholinguistics Batery(PAL-PORT)

Abstract: The assessment of writing is an important component of PAL-PORT(Psycholinguistic Assessment of Language-Portuguese). PAL-PORT is an adaptationfor the portuguese population of PAL, an English battery of tests used in assessingaphasia and other language disorders, that takes the cognitive neuropsychology approachas is reference point. In this paper we analyze PAL’s psycholinguistic model for writingsingle words and its success in accounting for writing disorders. We also present writingtests of PAL-PORT: PAL 20 a written naming test that allows the assessment of semanticcharacteristica; PAL 21 a writing to dictation probe that allows the assessment ofphoneme-grapheme conversion and of the orthographic output system. We also presentPAL 7, a word and nonword repetition test. Nonword repetition allows the assessmentof phonological input to output conversion. We pay particular attention to thepsycholinguistic variables of each of these probes.Key-Words: writing disorders; psycholinguistic models; assessment.

_______________* Trabalho realizado no âmbito do Projecto RIPD/PSI/63557/2005, financiado pela FCT, intitulado Avaliação

psicolinguística fina de afasias e de outras perturbações da linguagem: Uma bateria integrativa de medidasem tempo diferido e em tempo real.

** Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, email: [email protected]*** Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, email: [email protected]**** Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, email:

[email protected]

Page 2: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação6

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

Introdução

Uma satisfatória avaliação e consequenteremediação das dificuldades detectadas naescrita torna necessário o recurso a ins-trumentos capazes de realçar não só aevidente complexidade desta mestria, mastambém, e sobretudo, a especificidade dasperturbações que poderão afectar o seuadequado funcionamento. Do mesmomodo, será imprescindível reconhecer e darconta das relações que subsistem entre aescrita e outras mestrias linguísticas quecom ela se relacionam, i.e., a leitura, aprodução e a compreensão orais. Naverdade, sabe-se hoje que, apesar de existiruma relação estreita entre a fala, a leiturae a escrita, os problemas num destesdomínios de actividade linguística podemocorrer de um modo dissociado e indepen-dente dos demais.Os trabalhos oriundos da neuropsicologia,nomeadamente aqueles decorrentes doestudo de doentes com lesões cerebrais,ajudaram bastante a estabelecer a arqui-tectura cognitiva dos processos envolvidosna escrita. A constatação de casos em queas dificuldades de fala e de leitura coe-xistem com bons desempenhos na escritaconduziu a modelos de escrita que não sãointeiramente coincidentes com os modelosexplicativos das outras duas áreas. O factode doentes incapazes de converterem osfones nos grafemas correspondentes serevelarem, apesar disso, capazes de escre-ver palavras familiares (Bub & Kertesz,1982b; Shallice, 1981) levou ao abandonoda hipótese teórica segundo a qual a escritaresultaria sempre, e obigatoriamente, deuma mediação fonológica (que é requeridana fala), responsável pela tradução dos sonsem grafemas (Déjerine, 1914; Luria, 1947/1970). A existência de doentes com difi-culdades na produção oral de palavras queconseguem, ainda assim, escrever essas

mesmas palavras (Caramazza, Berndt, &Basili, 1983) vem reforçar a ideia de queexiste uma representação ortográfica dapalavra que pode funcionar independente-mente da sua representação fonológica. Poroutro lado, considerem-se ainda os casosde pacientes disléxicos que, apesar das suasdificuldades na leitura, conseguem escre-ver (Beauvois & Dérouesné, 1981; Bub &Kertesz, 1982a). Casos documentadoscomo estes sustentam a hipótese de queas representações ortográficas serão dife-rentes para as áreas da leitura e da escrita.Admitida a existência de um modeloespecífico da escrita, este revelar-se-á uminstrumento fundamental para percebermosnão só o funcionamento desta mestria,como também os problemas particularesque a podem afectar. Embora se reconhe-çam algumas diferenças entre as dificul-dades desenvolvimentais e as adquiridas,interessa realçar que umas e outras podemser interpretados à luz deste modelo (Castro& Gomes, 2000; Vidal & Manjón, 2000).Referimo-nos, claro está, às dificuldadesderivadas da componente linguística. Acomponente motora, igualmente importantena produção escrita, exige uma abordagemdiferente. Aliás, a existência destas duascomponentes está na origem de uma pri-meira distinção que é preciso fazer entreagrafias centrais, decorrentes de problemasnos processos linguísticos, e agrafiasperiféricas, causadas por distúrbios ao nívelmotor (Rapcsak & Beeson, 2000).No presente artigo analisaremos como sepodem avaliar as dificuldades de escritadecorrentes da perturbação de processoslinguísticos (as agrafias centrais), e, maisconcretamente, em que medida tal avali-ação é permitida pela PAL-PORT – Ba-teria de Avaliação Psicolinguística dasAfasias e de outros Distúrbios da Lingua-gem (Festas et al, 2006). A PAL-PORTresulta da adaptação de uma bateria de

Page 3: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 7

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

língua inglesa baseada num modelopsicolinguístico, a PAL (PsycholinguisticAssessment of Language) (Caplan, 1992;Caplan & Bub, 1990), e inclui vinte eoito provas que permitem a avaliação dosníveis lexical (planos fonémico e semân-tico), morfológico e sintáctico, nas vari-antes escrita e oral-auditiva do códigolinguístico, em tarefas de compreensão ede produção. Interessando-nos, no âmbi-to deste artigo, as provas destinadas aavaliar as dificuldades de escrita, é sobreelas que nos debruçaremos, após umabreve apresentação do modelopsicolinguístico subjacente e de umaanálise dos principais tipos de dificulda-des que têm sido observadas nesta área.Relativamente às provas relevantes dabateria, elas serão inseridas no modelo,através de uma explanação dos seus ob-jectivos e dos processos que permitemavaliar. Serão, igualmente, discutidos oscritérios que presidiram à selecção dositens e a adaptação que foi necessáriofazer, de modo a respeitar a especificidadeda língua portuguesa.

1. Processos Linguísticos Implicados naEscrita

A escrita pode ser facilmente entendidaà luz do modelo psicolinguístico da PAL-PORT (Caplan, 1992; cf., também, Festaset al, 2006). Neste modelo, e relativamenteà escrita de palavras, podemos conside-rar, fundamentalmente, dois níveis derepresentações e de processos: o lexicale o sublexical. O primeiro nível dá contada escrita de palavras conhecidas que sãoactivadas como um todo. O segundo nívelé mobilizado na escrita de palavras des-conhecidas e de pseudopalavras. O mo-delo assume a existência destas duas vias,inserindo-se numa linha de investigação

amplamente aceite (cf., entre outros, Ellis1982, 1988; Goodman & Caramazza,1986; Rapcsak & Beeson, 2000; Rapp,2002).Atendendo à via lexical, o modelo con-templa representações dos seguintes tipos:o léxico fonológico de entrada, o léxicosemântico e o léxico ortográfico de saída.Sobre estas representações, actuam deter-minados processos: o acesso léxico-se-mântico e o acesso léxico-ortográfico.O léxico fonológico de entrada, nível derepresentação que corresponde ao reco-nhecimento de palavras ouvidas, é fun-damental para a realização de tarefascomo um ditado ou em qualquer situaçãoem que se escreve o que se ouve (tirarnotas de uma palestra ou apontamentosde uma aula, por exemplo). O modelodistingue este nível de representaçãodaquele que está implicado na produçãooral, ou seja, do léxico fonológico desaída.Depois de a palavra ter sido reconhecidano léxico fonológico de entrada, atravésda actuação do processo de acesso léxi-co-semântico, o seu significado é activa-do no léxico semântico. Este sistema,envolvido em todas as actividades denatureza linguística (de compreensão e deprodução orais e escritas), é essencial emtarefas de escrita espontânea e de nome-ação escrita de objectos representados emgravuras, desempenhando, ainda, umpapel importante, embora não indispen-sável, na escrita de estímulos ditados.Com efeito, segundo o modelo aquiconsiderado, a escrita de palavras ditadaspode fazer-se eficazmente, mesmo sem umobrigatório recurso à mediação semânti-ca.O acesso léxico-ortográfico, por sua vez,permite a activação do léxico ortográficode saída envolvido na escrita de palavras,nível de representação que não se con-

Page 4: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação8

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

funde com o do léxico ortográfico deentrada implicado na leitura. Reconhece-se, assim, a existência de um nível derepresentação correspondente à formaortográfica das palavras conhecidas, espe-cífico da produção escrita, e que seráactivado em situações de ditado, de cópia,de escrita espontânea e de nomeação escritade objectos representados em gravuras.Ainda de acordo com este modelo, aceita-se que, embora possa haver, na escrita,mediação do léxico-fonológico de saída,tal mediação não é um pré-requisto obri-gatório para um adequado acesso ao lé-xico ortográfico de saída.Em suma, podemos dizer que a escrita depalavras conhecidas empreendida comrecurso à via lexical pode ser concretizadade duas formas distintas: por uma subvianão semântica ou directa, que vai do léxicofonológico de entrada ao léxico ortográ-fico de saída, ou por uma subvia semân-tica ou indirecta que dá acesso ao léxicoortográfico de saída através do léxicosemântico (Ver Figura 1).

O facto de sermos capazes de escreverpalavras desconhecidas e pseudopalavrasrevela, contudo, a existência de processose de representações não apenas de nívellexical, mas também de nível sublexical.A possibilidade de escrevermos este tipode estímulos remete-nos para uma via quenão passa pela representação da palavra,isto é, pelo léxico ortográfico de saída.Trata-se de uma rota que, tal como atrásaludimos, pode ser utilizada no ditado e

que liga as unidades sublexicais de doistipos distintos: as do buffer fonológico deentrada e as do buffer grafémico de saída.A escrita baseada na via sublexical serve-se do conhecimento relativo às regras deconversão fone-grafema (CFG) que regu-lam a forma como, numa dada língua, osfones se traduzem em letras ou em con-juntos de letras. Deste modo, o sucessoque possa resultar da mobilização desta viadepende grandemente da regularidade dasregras de conversão fone-grafema (CFG)implicadas nas palavras ditadas. Palavrasirregulares, representativas de correspon-dências fone-grafema não reguladas (i.e.,situações em que um fone pode ser repre-sentado por mais do que um grafema, semque existam regras claras a orientar orecurso a um desses grafemas e não aoutro), precisam da via lexical para seremescritas adequadamente.Admite-se que a via sublexical comportadois processos essenciais. O primeiro dizrespeito, quer à conversão acústico-foné-tica, através da qual o sinal acústico é

processado de modo a permitir a identifi-cação dos respectivos fonemas (definidosem termos de traços distintivos), quer aindaà utilização destes na activação de unidadesno buffer fonológico de saída. Já o segundoconcerne à conversão fone-grafema propri-amente dita, através da qual os fones sãotraduzidos nos grafemas correspondentes nobuffer grafémico de saída (cf. Rapcsak &Beeson, 2000; Rapp, 2002; Whitworth,Webster, & Howard, 2005) (Ver Figura 2).

Figura 1 - Vias lexicais na escrita: a) via directa e b) via indirecta

Page 5: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 9

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

2. Dificuldades na Escrita

As dificuldades na escrita, quer se tratedas adquiridas, quer das desenvolvimentais,são facilmente interpretáveis à luz domodelo acima exposto. Salvaguardadas asespecificidades respectivas, pode dizer-seque, no essencial, as categorias de proble-mas de escrita são comuns aos dois tiposde dificuldades (cf. Vidal & Manjón, 2000;ver, também, Castro & Gomes, 2000).Dada a natureza do presente artigo,incidiremos a nossa atenção nas agrafiasadquiridas.Com base no modelo apresentado, pode-mos distinguir as agrafias com origem nosprocessos lexicais daquelas que se ficama dever a problemas ao nível sublexical(Rapcsak & Beeson, 2000). Nas agrafiascentrais, consideram-se, normalmente, osseguintes subtipos: a lexical ou superfici-al, a semântica, a fonológica e a profunda(cf. Rapcsak & Beeson, 2000; Whitworth,Webster, & Howard, 2005).A agrafia lexical ou superficial resulta,como o próprio nome indica, de um dis-túrbio na via lexical e, mais especifica-mente, no léxico ortográfico de saída(Beauvois & Dérouesné, 1981). O conhe-cimento ortográfico das palavras estáafectado, o que, obviamente, impede o seuuso por parte dos doentes. A escrita só épossível pelo recurso à via sublexical, i.e.,ao conhecimento relativo às regras deconversão fone-grafema. Deste modo, odesempenho do escrevente fica muito

dependente da regularidade da relação entrefones e grafemas. Palavras cujas unidadessublexicais respeitem as regras de conver-são fone-grafema (regulares) e que osten-tam correspondências fone-grafema do tipo“um-para-um” são correctamente escritas,o mesmo não acontecendo com as pala-vras irregulares ou com aquelas em queestão representadas correspondências fone-grafema do tipo “um-para-muitos”. Domesmo modo, estes doentes revelam bonsdesempenhos na escrita de pseudopalavras.Porque a via utilizada é a sublexical, ospacientes com esta agrafia produzem errosque consistem em regularizações gráficasdas palavras irregulares. Fazendo subor-dinar a escrita das palavras irregulares àsregras de conversão fone-grafema, estesdoentes incorrem em erros“fonologicamente aceitáveis”. Dito isto,ressalve-se que variáveis como a frequên-cia da palavra a representar graficamenteexercem, também, alguma influência nodesempenho destes doentes, já que algu-mas palavras irregulares muito frequentespodem vir a ser correctamente escritas poreles.Nos casos de agrafia semântica é, também,a via lexical que está afectada, mas a umnível diferente dos da agrafia superficial.Trata-se de um problema que pode situar-se quer no léxico semântico, quer aindana rota que o conecta ao léxico ortográficode saída (Roeltgen, Rothi, & Heilman,1986). Os doentes com agrafia semânticadesconhecem o significado daquilo que

Figura 2 - Processos sublexicais envolvidos na escrita:a) conversão acústico-fonética e conversão fone-grafema

Page 6: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação10

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

produzem em tarefas de ditado (situaçãoque é permitida pelo recurso às viassublexical e lexical não semântica) oumostram-se incapazes de escrever emtarefas que impliquem, necessariamente, oacesso ao significado, como são os casosda escrita espontânea e da nomeação escritade objectos representados em gravuras.A agrafia fonológica traduz uma disfunçãona via sublexical e manifesta-se por umaincapacidade de escrita de pseudopalavras(Shallice, 1981). De um modo geral, osdesempenhos na escrita de palavras conhe-cidas são bons. Como vimos no modeloapresentado acima, há dois processosbásicos na rota sublexical: um relativo àconversão acústico-fonética e à utilizaçãodas unidades fonológicas na activação dasunidades do buffer de saída, e, outro, àconversão fone-grafema. Assim, os proble-mas podem localizar-se num ou no outrodestes processos. Se o distúrbio for apenasao nível da conversão fone-grafema, odoente manifesta uma impossibilidade deescrever pseudopalavras ditadas, manten-do, contudo, a capacidade de as repetiroralmente. Pelo contrário, se o problemase localiza na conversão acústico-fonéticae na utilização das unidades fonológicasna activação do buffer de saída, as difi-culdades surgirão em duas tarefas: naescrita e na repetição de pseudopalavras(cf. Whitworth, Webster, & Howard, 2005).Por último, a agrafia profunda apresentasintomas comuns às agrafias semântica efonológica, o que denota um distúrbio dasvias lexical e sublexical (Bub & Kertesz,1982a). Por um lado, estes doentes mos-tram-se incapazes de escreverpseudopalavras, sintoma que traduz umadisfunção do sistema de conversão fone-grafema. Por outro lado, os erros semân-ticos (e.g. sofá por cadeira) são frequentesna agrafia profunda. A escrita de palavrasé influenciada por factores como a frequên-

cia (há maior facilidade na representaçãográfica de palavras mais frequentes) e onível de abstracção (nomes concretosapresentam menos erros do que os nomesabstractos). Os erros semânticos verifica-dos em provas de nomeação escrita degravuras ou na escrita espontânea revelamque a via léxico-semântica está afectada.No entanto, tem-se verificado, também,nestes casos, a existência de erros semân-ticos em tarefas de ditado, o que nos mostraque a via lexical não semântica se encon-tra, igualmente, disfuncional. Como jávimos, o ditado não exige o acesso aosignificado. Assim, na agrafia profunda, aperturbação das vias sublexical e lexicalnão semântica parece conduzir a um re-curso, por parte dos doentes, à via lexicalsemântica que, por sua vez, está muitodeficitária.

3. Provas de Avaliação das Dificuldadesda Escrita na PAL-PORT

Expostas as principais dificuldades quepodemos encontrar nas agrafias centrais,vejamos como as mesmas podem seravaliadas numa bateria de provaspsicolinguísticas como a PAL-PORT.A PAL-PORT contempla três provas quepodemos considerar fundamentais na ava-liação dos diferentes tipos de problemasjá expostos. Trata-se da Prova 7 (Repe-tição Oral de Palavras e dePseudopalavras), da Prova 20 (Escrita deNomes Representados em Gravuras), e daProva 21 (Ditado de Palavras e dePseudopalavras).Se pensarmos nas agrafias decorrentes deproblemas na via lexical, recordemos queelas podem derivar de distúrbios no léxicosemântico ou no léxico ortográfico desaída. Começando pelas primeiras, isto é,por aquelas cuja origem é de natureza

Page 7: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 11

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

semântica, vimos que, à excepção do queacontece nas agrafias profundas, a escritaproduzida no âmbito de uma tarefa deditado pode não ser reveladora da pertur-bação, já que tal tarefa pode, precisamen-te, ser executada com recurso às viaslexical não semântica e sublexical. Pelocontrário, a via semântica é indispensávelna escrita espontânea e na de nomes deobjectos apresentados em gravuras. Nestesdois últimos casos, o acesso ao léxicoortográfico de saída só pode ser feitoatravés do acesso ao significado, uma vezque não existe nenhum estímulo escrito ouoral que possa invocar as outras vias(sublexical ou lexical não semântica).A PAL-PORT inclui uma prova, a PAL 20:Escrita de Nomes Representados emGravuras, especialmente vocacionada paraavaliar a intervenção do sistema semânti-co na escrita. Ao apresentar gravurasrepresentando objectos, cujos nomes ossujeitos devem escrever, a PAL 20 testao acesso ao léxico ortográfico de saída pelavia semântica. De forma a realizar a provacorrectamente, torna-se necessário que agravura active o significado do objectorepresentado no léxico semântico o que,por sua vez, dá acesso à forma da palavrano léxico ortográfico de saída, permitindoa sua escrita.Na bateria PAL original, a prova 20 incluitrinta e dois itens, escolhidos em funçãodos seguintes critérios: extensão, frequên-cia e categoria semântica. Na adaptação quefizemos desta prova, respeitámos os mes-mos critérios, embora com algumas alte-rações, de modo a respeitar as caracterís-ticas da língua portuguesa e a contemplarum leque maior de categorias semânticas.Quanto à extensão, na prova PAL originalas palavras com uma sílaba fonética foramconsideradas como curtas e as de três oumais sílabas como extensas. Este critérioteve de ser adaptado às particularidades

da nossa língua, na qual as palavrasmonossilábicas são muito mais raras dosque as existentes na língua inglesa. Destemodo, considerámos como curtas as pa-lavras com uma ou duas sílabas e comoextensas as de três ou mais sílabas foné-ticas. A PORLEX (Gomes & Castro, 2003)serviu de base para seleccionar os itenssegundo este critério. A importância daextensão das palavras na escrita prende-se, sobretudo, com a necessidade de ava-liar aspectos considerados mais periféri-cos, relacionados com o buffer grafémico,sistema que dá início a uma série de fasespós-lexicais necessárias à produção dossinais gráficos na escrita. É fundamentalque este buffer mantenha activa a repre-sentação da palavra enquanto se processaa sua conversão em escrita, daí a sua sen-sibilidade à extensão da palavra (cf.Whitworth, Webster, & Howard, 2005).Relativamente à frequência, e seguindo amesma proporção adoptada na prova ori-ginal, definimos como “pouco frequente”o limite máximo de 27 ocorrências e como“muito frequente” o limite mínimo de 162ocorrências. Na determinação destas fre-quências, orientámo-nos pelos dados dis-poníveis na base CORLEX (Centro deLinguística da Universidade de Lisboa,2003). A frequência é uma variável im-portante, neste tipo de provas, uma vezque nomes conhecidos serão mais facil-mente recordados e reproduzidos. Vimos,aliás, quando apresentámos os casos deagrafia lexical, como a frequência inter-fere no desempenho da escrita de palavrasirregulares.A extensão e a frequência são, assim,variáveis que, embora não tenham umarelação especial com as agrafias semân-ticas, deverão ser consideradas na escolhade palavras presentes em provas deste tipo,já que influenciam o processo da escritaem geral.

Page 8: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação12

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

Quanto à terceira variável considerada –a categoria semântica – essa revela-se umfactor decisivo em provas que exigem orecurso ao significado. O facto de se teremconstatado, em doentes afásicos, dificul-dades selectivas no processamento deinformação relativa a vários tipos deobjectos indicia que o sistema semânticoestará organizado segundo categorias (cf.Forde & Humphreys, 2002). Muitos do-entes revelam grandes problemas em ta-refas de nomeação, reconhecimento, lei-tura ou escrita de nomes relativos aobjectos pertencentes a uma determinada

original, foram consideradas as seguin-tes categorias: animais, frutos, legumese objectos inanimados (instrumentos e ar-tefactos). Na selecção dos itens da nossaprova, incluímos estas categorias e acres-centámos mais duas, as peças de vestu-ário e os meios de transporte, por serembastante referenciadas na literatura (cf.Viglioco, Vinson, Lewis, & Garrett,2004).Após a sua construção, obtivemos umaprova com cinquenta e seis itens selec-cionados de acordo com os critériosacima definidos1 (ver Quadro 1).

:saruvarGmesodatneserpeRsemoNedatircseedavorP-1ordauQsadaredisnoCsacitsíugnilocisPsieváiravsaodnugessnetIedsolpmexE

airogetaC CFM 1 LFM 2 CFP 3 LFP 4 snetiedºN

siaminA acav ahlevo aner atragal 8

soturF ãçam ajnaral ujac aicnalem 8

semugeL aslas atatab solerg solocórb 8

sotnemurtsnI áp odahcam oãpra rodaces 8

sotcafetrA erfoc oirámra úab atimram 8

etropsnarTsoieM ocrab atelcicib oãgav olcicirt 8

oiráutseVsaçeP saçlac oditsev acos ahlitapas 8

;atruCetneuqerFocuoP:CFP.3;agnoLetneuqerFotiuM:LFM.2;atruCetneuqerFotiuM:CFM.1agnoLetneuqerFocuoP:LFP.4

_______________1 É importante referir que nos encontramos numa

fase de construção de provas em que estas não foram,ainda, sujeitas a um trabalho psicométrico queconduzirá, necessariamente, a uma redução donúmero de itens. O estabelecimento das caracterís-ticas psicométricas da PAL-PORT é não só possível,como desejável, apresentando-se como uma dasgrandes vantagens desta bateria relativamente a outrasexistentes nesta área de avaliação (cf., Festas et al.,2006)

categoria, mostrando, contudo, bons resul-tados quando se trata de nomes de objec-tos pertencentes a outras. Em muitos casosestá afectada apenas a compreensão denomes dos seres vivos (e.g., animais,frutos, legumes), revelando-se intacta acompreensão de nomes de seres inanima-dos (e.g., artefactos, instrumentos)(Warrington & Shallice, 1984). Noutroscasos, é o padrão inverso aquele queencontramos (Warrington & McCarthy,1987).Dada a sua relevância, a categoria semân-tica é uma variável presente em todas asprovas da bateria PAL que pretendemavaliar o léxico semântico. Assim acon-tece também com a Prova 20. Na bateria

Se a Prova 20 se destina a avaliar o acessoao léxico ortográfico de saída a partir doléxico semântico, a Prova 21 – Escrita porDitado – permite uma análise de váriostipos de problemas localizados nas viaslexical e sublexical, já que se trata de umaprova de ditado de palavras regulares e

Page 9: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 13

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

irregulares e, ainda, de pseudopalavras.A existência de palavras irregulares –aquelas em que as correspondências fone-grafema não obedecem a regras explícitas– possibilita a avaliação da funcionalidadedo léxico ortográfico de saída. Comovimos, este sistema é necessário para aprodução escrita deste tipo de palavras. Orecurso à via sublexical e às regras deconversão fone-grafema é ineficaz para oefeito, uma vez que as palavras irregularesnão podem ser reproduzidas com base emtais regras. A sua escrita exige uma re-presentação da sua forma ortográfica comoum todo. Quando esta está afectada, a únicapossibilidade será recorrer à aplicação dosistema CFG o que, muito naturalmente,se redunda em produções escritas comerros. É precisamente isto que acontece noscasos de agrafia superficial ou lexical eque é possível avaliar através da Prova 21.As pseudopalavras, por sua vez, são in-dispensáveis para testar a integridade davia sublexical e, mais propriamente, a deum dos seus processos, o da conversãofone-grafema. A produção escrita de pa-lavras ditadas pode fazer-se por via lexical.Como já vimos, a representação gráfica daspalavras irregulares depende desta últimavia e a das palavras regulares, emboraexecutável com recurso à via sublexical,também poderá ser suportada pela vialexical. Deste modo, a produção depseudopalavras apresenta-se como o testepor excelência para avaliar a integridadeda via sublexical. Ao não existirem comopalavras, as pseudopalavras não podem teruma representação no léxico ortográficode saída e, assim sendo, a única forma deproceder à sua representação gráfica seráatravés do recurso ao sistema de CFG. Épor esta razão que a Prova 21 integra umconjunto de pseudopalavras que, ao seremditadas e escritas pelos sujeitos, permiti-rão avaliar a eficácia do sistema CFG.

A Prova 21 foi, assim, construída com basenestes três tipos de itens: palavras regu-lares, palavras irregulares e pseudopalavras.Na prova original em que nos baseámos,as palavras foram, ainda, escolhidas tendoem conta a sua frequência (moderada) ea extensão (de uma a três sílabas). Emborativessemos respeitado os critérios de se-lecção dos itens da prova original, algunsdestes tiveram de ser adaptados de modoa respeitar as especificidades da línguaportuguesa.A frequência moderada foi definida a partirdos limites estabelecidos para “pouco” e“muito” frequente, considerando-se, parao efeito, as palavras situadas entre osvalores de 27 e 162 na CORLEX. Rela-tivamente à extensão, dada a dificuldadede encontrar, no português, palavrasmonossilábicas, foram seleccionadas, nasua grande maioria, palavras cuja exten-são varia entre duas e três sílabas.Vejamos o caso do critério que presidiu,nesta prova, à distinção entre palavrasregulares e irregulares. As relações exis-tentes entre o plano fónico e o códigoortográfico da variedade europeia da lín-gua portuguesa leva a que a escrita apre-sente um maior número de situações deirregularidade desta natureza do que aleitura (sendo que, no caso da leitura, será,agora, relevante o sistema de ConversãoGrafema-Fone ou CGF). Ainda assim, asirregularidades atestadas não são tão sig-nificativas como noutras línguas, como oinglês, por exemplo. De facto, em portu-guês existem regras para quase todas ascorrespondências grafema-fone (cf. Festas,Martins, & Leitão, no prelo), o que fazcom que estejamos perante uma língua naqual a relação entre os planos da escritae da oralidade é bastante transparente(Veloso, 2005). No entanto, e como já seafirmou, no que respeita às correspondên-cias fone-grafema envolvidas nos meca-

Page 10: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação14

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

nismos sublexicais da escrita, existem maissituações caracterizadas pela ausência deregras bem explícitas que as regulem (cf.Castro & Gomes, 2000). Para a Prova 21,considerámos irregulares as palavras emque estivessem representados casos de nãocorrespondência unívoca entre fone egrafema (seriam, portanto, casos de “um-para-muitos”) e sempre que essa corres-pondência não esteja regulada por regrasexplícitas. A verificação concomitantedestas duas condições para a definição decasos de irregularidade conduziu-nos à nãoconsideração de situações como a davibrante múltipla no português europeu,que tanto pode ser representada, na escri-ta, por <r> ou por <rr>. Acontece, porém,que qualquer uma destas representaçõesgráficas é perfeitamente previsível e estáclaramente regulamentada: <r> representasempre a vibrante múltipla em inícioabsoluto de palavra (rato, roer) e <rr> emposição intervocálica (correr, parra).Deste modo, foram consideradas apenas asseguintes situações:

[s] que, em posição intervocálica, pode serrepresentado pelos grafemas <s> (pressa),<ç> (caça), <x> (auxiliar);[z] que, em posição intervocálica, pode serrepresentado por <s> (casa), por <z> (azo)e por <x> (exame);[S] que, em ataque se sílaba, pode serrepresentado por <ch> (chave) e por <x>(xarope);[Z] que, em ataque se sílaba, pode serrepresentado por <g> (antes de <e> ou de<i>: gelo) e por <j> (jeito).

Foram, ainda, consideradas as consoantesmudas (homem), cuja ocorrência não éprevisível por qualquer regra explícita.Para o grupo das palavras regulares foramseleccionados itens representativos decorrespondências fone-grafema que obede-cem a regras explícitas.

No que concerne aos critérios utilizadosna escolha das pseudopalavras, estes jáforam devidamente explanados num outrolocal, a propósito da apresentação da Provade Leitura Oral da PAL-PORT. Na verda-de, a Prova de Leitura Oral e a Prova deEscrita por Ditado que agora apresenta-mos partilham as mesmas pseudopalavrase, logo assim, se socorrem dos mesmoscritérios de selecção deste tipo de itens(Festas, Martins, & Leitão, no prelo).Escolhidos os itens de acordo com oscritérios acabados de explanar, obtivemosa Prova de Escrita por Ditado com um totalde noventa e seis itens, distribuídos doseguinte modo: sessenta palavras (vinteirregulares e quarenta regulares) e cinquen-ta e seis pseudopalavras.A propósito dos problemas de escritadecorrentes de perturbações na viasublexical, e para além de realçar o papeldo sistema CFG na sua equação, aludimosjá, nos Pontos 1 e 2 do presente artigo,à intervenção de um outro processo, o quese refere à conversão acústico-fonética eà utilização das unidades fonológicas naactivação das representações do buffer desaída. Assim sendo, a funcionalidade destavia pode ser igualmente testada por tarefasde repetição oral de pseudopalavras, comose propõe no âmbito de uma das provasda PAL-PORT: a Prova de Repetição Oralde Palavras e de Pseudopalavras (Prova7). Porque nos interessa aqui particular-mente o caso das pseudopalavras, vejamosos critérios utilizados na selecção deste tipode itens.A prova original comporta vintepseudopalavras construídas a partir daalteração e manipulação de palavras ates-tadas em inglês. Segundo Caplan (1992,p. 412), estes itens obtiveram-se alterandomúltiplos traços distintivos de fonemaspresentes em palavras existentes na línguainglesa. As pseudopalavras foram, ainda,agrupadas de acordo com a sua estrutura

Page 11: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 15

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

silábica: dezasseis monossílabos, dos quaisonze itens CVC (consoante/vogal/conso-ante) e cinco itens CCVCC (consoante/consoante/vogal/ consoante/consoante) equatro itens com três sílabas, classifica-das, no teste original, como portadoras deuma“estrutura complexa”.Tal como aconteceu na adaptação detodas as outras provas da PAL, houvenecessidade de ajustar estes critérios aalgumas especificidades da língua por-tuguesa.Relativamente às estruturas silábicas queapresentam codas ramificadas, como acon-

ainda não resolvida em torno do estatutofonológico deste “elemento” nasal, que temsido considerado, na literatura, ora comosegmento consonântico, ora comoautosegmento nasal (cf. Câmara, 1996;Barbosa, 1994; Mateus et al., 1990; Mateus& Andrade, 2000).Na estrutura complexa respeitou-se orequisito de serem pseudopalavras com trêssílabas.Para a prova final, foram, então,seleccionadas quarenta pseudopalavras,distribuídas pelas estruturas CVC, CCV.CVe Complexa (Ver Quadro 2).

oãçitepeRedavorPadsarvalapoduesPedsolpmexE-2ordauQ

aruturtsE 1 solpmexE megirOedemoN snetiedºN

CVC ler lef 22

VC.VCC omurd omurp 01

axelpmoC agiteb ajitob 8

.lagov/etnaosnoc/etnaosnoc:VC.VCC;etnaosnoc/lagov/etnaosnoc:CVC)acibálisaruturtsE(.1sabalissêrt:axelpmoC,lagov/etnaosnoc

tece na categoria original de monossílabosCCVCC, estas são muitíssimo raras emportuguês. Tratando-se, para além do mais,de pseudopalavras obtidas a partir denomes concretos monossilábicos, estastornam-se mesmo impossíveis de encon-trar. Assim, optou-se por usar, em alter-nativa, pseudopalavras conseguidas atravésda manipulação e alteração de palavras coma estrutura CCV.CV (consoante/consoan-te/vogal.consoante/vogal). Ainda que estassejam necessariamente bissilábicas, averdade é que se mantém, através destaopção, o número de segmentos fonológicos(cinco) dos itens respectivos da provaoriginal.As pseudopalavras monossilábicas comestrutura CVC foram obtidas a partir denomes monossilábicos com a mesma es-trutura que são em número muito reduzidoem português. Evitou-se o uso de estru-turas CVnasal, dada a discussão teórica

Considerações Finais

A avaliação dos desempenhos da produ-ção escrita, feita com base num modelopsicolinguístico, permite-nos uma análisedetalhada das dificuldades, ultrapassando,assim, as limitações de exames mais clás-sicos que não nos fornecem qualquerelemento relativo aos processos e compo-nentes particulares que estarão na origemdos problemas. Tratando-se de um modeloespecífico da escrita, este faculta-nos aoportunidade de um exame fundamentadonuma arquitectura cognitiva sólida e fica,através dele, realçada a singularidade destamestria no conjunto das actividades lin-guísticas.Neste artigo, vimos como uma avaliaçãodesta natureza se torna possível através deprovas como aquelas que integram a PAL-PORT. Apresentámos aqui três testes quenos facilitam uma análise de diferentes vias

Page 12: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação16

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

e processos implicados na escrita. A Prova7, ao exigir a repetição de pseudopalavrasouvidas, incide a sua atenção sobre aconversão auditivo-fonética e sobre aactivação das unidades fonológicas nobuffer de saída, testando um dos doisprocessos sublexicais intervenientes naescrita. O outro processo sublexical – aconversão fone-grafema – é avaliado pelaProva de Ditado que permite, igualmente,averiguar a integridade da via lexical, maisconcretamente, do léxico ortográfico desaída. A intervenção do léxico semânticona activação da forma ortográfica dapalavra é necessária à realização da Provade Escrita de Nomes Representados emGravuras que, desse modo, nos dá umaindicação da funcionalidade da via léxico-semântica. Pela aplicação destas provas,podemos ficar com uma ideia clara dospontos fortes e fracos do circuito descritoe, sobretudo, dos processos específicos queafectam o desempenho de um determina-do doente.A construção de provas desta naturezarequer um trabalho apurado, onde a inter-venção de linguistas se mostrou indispen-sável, nomeadamente na adaptação para alíngua portuguesa das variáveispsicolinguísticas da bateria original elabo-rada de acordo com as características dalíngua inglesa. Procurámos mostrar, nestetrabalho, que critérios nortearam a escolhados itens constantes em cada uma dasprovas descritas.Interessa-nos realçar que estamos peranteprovas que, obedecendo a um modelopsicolinguístico, foram construídas a par-tir de critérios explícitos e ponderados.Assim sendo, a avaliação que elas possi-bilitam constitui um fundamento essencialpara a edificação de um programa derecuperação e superação das dificuldadesda escrita. Estando vocacionadas para aavaliação de afasias, a estrutura da bateria

em que se inserem atendeu às caracterís-ticas destas populações. No entanto, eporque partem daquilo que hoje se sabeacerca da arquitectura cognitiva relativa àescrita, não será difícil adaptar estas pro-vas a outros distúrbios, nomeadamente àsdisgrafias desenvolvimentais.

ReferênciasbibliográficasBarbosa, J. (1994). Introdução ao estudo

da fonologia e morfologia do portu-guês. Coimbra: Livraria Almedina.

Beauvois, M.-F., & Dérouesné, J. (1981).Lexical or orthographic agraphia. Brain,104, 21-49.

Bub, D., & Kertesz, A. (1982a). Deepagraphia. Brain and Language, 17, 146-165.

Bub, D., & Kertesz, A. (1982b). Evidencefor lexicographic procesing in a patientwith preserved written over oral singleword naming. Brain, 105, 697-717.

Câmara Jr., J. M. (1996). Estrutura dalíngua portuguesa, 25ª edição.Petrópolis: Vozes.

Caplan, D. (1992). Language: Structure,processing, and disorders. Cambridge,MA.: The MIT Press.

Caplan, D., & Bub, D. (1990).Psycholinguistic assessment of aphasia.Mini-Seminar presented at The AnnualConvention of the American Speech-Language-Hearing Association. Seatle:WA.

Caramazza, A., Berndt, R., & Basili, A.(1983). The selective impairment ofphonological processing: A case study.Brain and Language, 18, 128-174.

Castro, S.-L., & Gomes, I. (2000). Difi-culdades de aprendizagem da línguamaterna. Lisboa: Universidade Aberta.

Centro de Linguística da Universidade deLisboa (2003). Corlex. Disponível emhtpp://www.clul.ul.pt.

Page 13: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação 17

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

Déjerine, J. (1914). Sémiologie desaffections du système nerveux. Paris:Masson et Cie.

Ellis, A. W. (1982). Spelling and writing(and reading and speaking). In A. W.Ellis (Ed.), Normality and pathology incognitive functions. London: AcademicPress.

Ellis, A. W. (1988). Normal writing pro-cesses and peripheral acquireddysgraphias. Language and CognitiveProcesses, 3, 99-127.

Festas, I., Leitão, J., Formosinho, M.,Albuquerque, C., Vilar, M., Martins, C.,Branco, A., André, L., Lains, J.,Rodrigues, N., & Teixeira, N. (2006).PAL-PORT – Uma bateria de avalia-ção psicolinguística das afasias e deoutras perturbações da linguagem paraa população portuguesa. In C. Macha-do, L. Almeida, A. Guisande, M.Gonçalves, & V. Ramalho (Eds.), XIConferência Internacional AvaliaçãoPsicológica: Formas e Contextos. Actas(pp.719-729). Braga: Psiquílibrios.

Festas, I., Martins, C., & Leitão, J. (noprelo). Avaliação da CompreensãoEscrita e da Leitura de Palavras naPAL-PORT (Bateria de AvaliaçãoPsicolinguística das Afasias e de ou-tras Perturbações da Linguagem paraa População Portuguesa). Revista Edu-cação: Temas e Problemas (nº especialsobre leitura, 4 (2) (2007).

Forde, E., & Humphreys, G. (Eds.) (2002).Category specificity in brain and mind.Hove: Psychology Press.

Gomes, I., & Castro, S-L. (2003). Porlex:A lexical database in EuropeanPortuguese. Psychologica, 32, 91-108.

Goodman, R. A., & Caramazza, A. (1986).Aspects of the spelling process:Evidence from a case of adquireddysgraphia. Language and CognitiveProcesses, 1, 263-296.

Luria, A. R. (1970). Traumatic aphasia:Its syndromes, psychology, andtreatment (english trad.). The Hague:Mouton. (Trabalho original publicadoem 1947)

Mateus, M., H., & d’Andrade, E. (2000).The Phonology of Portuguese. Oxford:Oxford University Press.

Mateus, M., H. (1990). Fonética, fonologiae morfologia do português. Lisboa:Universidade Aberta.

Rapcsak, S. Z., & Beeson, P. M. (2000).Agraphia. In S. Nadeau, L. Rothi, &B. Crosson (Eds.), Aphasia andlanguage: Theory to practice (pp. 184-220). New York: The Guilford Press.

Rapp, B. (2002). Uncovering the cognitivearchitecture of spelling. In A. Hillis(Ed.), The handbook of adult languagedisorders (pp. 47-69). New York:Psychology Press.

Roeltgen, D., Rothi, L. & Heilman, K.(1986). Linguistic semantic agraphia:A dissociation of the lexical spellingsystem from semantics. Brain andLanguage, 27, 257-280.

Shallice, T. (1981). Phonological agraphiaand the lexical route in writing. Brain,104, 413-429.

Veloso, J. (2005). A língua na escrita e aescrita na língua. Algumas consideraçõesgerais sobre a transparência e opacida-de fonémicas na escrita do português eoutras questões. Da Investigação àsPráticas. Estudos de Natureza Educa-cional. Publicação Periódica do CentroInterdisciplinar de Estudos Educacionaisda ESSE de Lisboa, 6 (1), 49-69.

Vidal, J. G., & Manjón, D. G. (2000).Dificultades de aprendizage eintervención psicopedagógica: Lecturay escritura (vol. 2; 2ª ed.). Madrid:Editorial EOS.

Viglioco, G., Vinson, D., Lewis, W., &Garrett, M. (2004). Representing the

Page 14: Dificuldades na Escrita de Palavras: Sua Avaliação numa ...psicologiaeeducacao.ubi.pt/Files/Other/Arquivo/VOL6/PE VOL6 N1/PE... · escrita de nomes apresentados em gravuras, que

Psicologia e Educação18

Vol. VI, nº 1, Jun. 2007

meaning of object and action words:The featural and unitary semantichypothesis. Cognitive Psychology,48,422-488.

Warrington, E., & McCarthy, R. (1987).Categories of knowledge: Furtherfractionation and an attemptedintegration. Brain, 110, 1273-1296.

Warrington, E., & Shallice, T. (1984).Category specific semanticimpairments. Brain, 107, 829-853.

Whitworth, A., Webster, J., & Howard, D.(2005). A cognitive neuropsychologicalapproach to assessment andintervention in aphasia. Hove:Psychology Press.