escapes possíveis na produção da cidade

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Gabriela Leandro Pereira ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho Salvador 2010

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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Atutora: Gabriela Leandro Pereira Orientação: Profa. Ana Fernandes Ano: 2010

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA

Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Gabriela Leandro Pereira

ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE

Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho

Salvador

2010

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2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA

Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

2

Gabriela Leandro Pereira

ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE

Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho

Dissertação apresentada em cumprimento

às exigências para obtenção do título de

mestre junto ao Programa de Pós-

Graduação em Arquitetura e Urbanismo –

área de concentração Urbanismo, subárea

Processos Urbanos Contemporâneos –

sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria

Fernandes.

Salvador

2010

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3 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA

Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

3

Gabriela Leandro Pereira

ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE

Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho

Dissertação apresentada em cumprimento

às exigências para obtenção do título de

mestre junto ao Programa de Pós-

Graduação em Arquitetura e Urbanismo –

área de concentração Urbanismo, subárea

Processos Urbanos Contemporâneos –

sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria

Fernandes.

Aprovado em ___________________________________________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Ana Maria Fernandes – Universidade Federal da Bahia - UFBA

___________________________________________________________________

Paola Berenstein Jacques – Universidade Federal da Bahia - UFBA

___________________________________________________________________

Clara Luiza Miranda – Universidade Federal do Espírito Santo – UFES

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4

À amada Sofia.

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5

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pelo apoio parcial financeiro ao trabalho.

À PPGAU-UFBA, por proporcionar encontros tão preciosos e fundamentais para a

elaboração desta dissertação.

À minha orientadora, Ana Fernandes, pelo gentil compartilhamento de seu

conhecimento e pela confiança em mim depositada na conclusão deste projeto.

Obrigada pela atenção, carinho e compreensão nos momentos de maior

necessidade.

À Clara e Paola pelas valiosas colaborações e contribuições que auxiliaram não só

no desenvolvimento e finalização do projeto, mas também no despertar para novas

frentes de estudo e possibilidades de prosseguimento.

Às pessoas que encontrei pelo percurso no desenvolver do trabalho. Por cederam

gentilmente seu tempo e colaborarem com a construção deste projeto. Obrigada

especialmente à Jéssica pelo apoio na aproximação com os moradores de Alice

Coutinho. Obrigada aos moradores do bairro que me receberam tão bem.

Aos amigos do Programa de Pós Graduação, muito mais que companheiros

acadêmicos. Obrigada à Lili, Li, Chu, Clara e Diego pelos momentos compartilhados

em minha estadia em terras baianas. À Cacá, Pedro, Tales e Laura pelo aconchego

com que receberam a mim e Sofia nos retornos necessários a Salvador para

conclusão do mestrado. Obrigada pelo carinho de sempre.

À Ivana pela parceria de sempre, amizade de sempre, presença constante mesmo

que distante.

À minha família, por cercar-me de todo carinho e apoio necessários à conclusão

desta empreitada. Tias, tios, primos e avós. Obrigada pela torcida incessante e por

amarem-me tanto assim.

Page 6: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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6

Ao meu pai, pela confiança incondicional em todos os meus sonhos.

À Mari, por partilhar do mesmo espaço e alegrá-lo com sua presença.

À minha mãe, por conceder-me os mais ricos presentes que um filho pode receber:

raízes e asas.

Page 7: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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7

“Não vês as folhas das árvores, Aurel? Não vês que ainda há um

mundo ao redor de nós? Se o que vês a olho nu não te agrada,

podes cegar-te. Embora para mim, isso seria o mesmo que

blasfêmia”

(Joestein Gaardner, 1997)

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo realizar uma leitura da cidade contemporânea a

partir de suas possibilidades de escape, espacializados como alternativa ou reação

a modelos pré-estabelecidos, formais ou oficiais. Seguindo os passos e espaços por

onde circulam os praticantes ordinários da cidade, busca-se abordar a diversidade

das elaborações criadas por/com eles no meio urbano. Utiliza-se para isso a

cartografia como metodologia alternativa com o intuito de produzir um conhecimento

sobre este tema pautado na experiência cotidiana, no espaço-tempo da lentidão

inventado pelo homem ordinário, no qual objetos, códigos e usos são alterados, e

reapropriados com o objetivo de viver do melhor modo possível. À riqueza da

experiência social não cabe a redução a que lhe é conferida e, menos ainda, a

invisibilidade a que são relegados os homens comuns. Trazer para o visível

iniciativas e movimentos alternativos faz-se necessário para que novos

conhecimentos sobre estas opacidades possam ser produzidos. Sob essa ótica, a

cartografia aproxima-se do bairro Alice Coutinho, em Cariacica (ES) com o intuito de

refinar o entendimento sobre este espaço produzido a partir de um acampamento

em terras da Companhia Habitacional do Espírito Santo – COHAB, promovido pelo

Movimento Nacional de Luta pela Moradia em 1996.

Palavras-chave: escapes urbanos, cotidiano, movimento de moradia, ocupação

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to carry out a reading of the contemporary city from its

escapes possibilities of spacial dimensions as an alternative or reaction of pre-

established models, formal or official. Following the steps and spaces where the

ordinary practitioners walk around we seek to talk about the diversities of the

productions created by/with them in the urban environment. Its used to this the

cartography as a alternative methodology aiming to produce a knowledge about this

subject based on a daily basis experience, in the space-time laziness invented by

the ordinary men in which objects, codes and its uses are altered and reborrowed

aiming the best way of living. In the richness of the social experience doesn't fit its

reduction, even less the invisibility which are banished the common men. To br ing

up alternative initiatives and movements become necessary to the production of new

knowledge about this opacities. In this view, the cartography approaches to Alice

Coutinho, in Cariacica (ES) aiming to improve the understanding about the spaces

produced from COAB settlements, promoted by the Movimento Nacional de Luta

pela Moradia em 1996.

Key-words: urban escapes, daily basis experience, housing organization,

settlement

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa com a localização das informações depositadas............................. 39

Figura 2 – Informações agrupadas por categoria. ...................................................... 40

Figura 3 - Mapa das microrregiões do Espírito Santo. Destacada em vermelho a

Região Metropolitana da Grande Vitória. .................................................................... 43

Figura 4 - Mapa da Região Metropolitana da Grande Vitória ..................................... 44

Figura 5 – Esquema dos escapes percorridos na Aproximação cartográfica 01. ..... 49

Figura 6 - Esquema da relação entre os escapes produzidos, quem o produz, suas

reivindicações e localização na cidade. ...................................................................... 50

Figura 7 - Movimento Hip Hop como escape: Grafite. Esquema do percurso e dos

encontros ...................................................................................................................... 52

Figura 8 - Grafite sendo explorado enquanto seu potencial técnico, por Renato

Pontello, na Rua João Damasceno, Zona Sul, São Paulo. ........................................ 54

Figura 9 - Evolução dos Loteamentos no município de Cariacica. ............................ 58

Figura 10 – Movimento Hip Hop como escape. Esquema do percurso e dos

encontros ...................................................................................................................... 59

Figura 11 - Panfleto de divulgação do Encontro de B-Boys e B-Girls ....................... 65

Figura 12 - Protestos como escape. Esquema do percurso e dos encontros ........... 69

Figura 13 - Protestos de moradores na Rodovia do Contorno na Serra [32]. ........... 70

Figura 14 - Atropelamento na Rodovia do Contorno em Cariacica [30]. ................... 70

Figura 15 - Sobre as diferentes velocidades na cidade. Serra, ES. .......................... 72

Figura 16 – Comércio Informal como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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...................................................................................................................................... 77

Figura 17 - Imagem de satélite de Campo Grande, Cariacica. Destaque para o

recorte da Av. Expedito Garcia, principal via do bairro. .............................................. 80

Figura 18 - Esquema da concentração de vendedores ambulantes identificados na

Av. Expedito Garcia (trecho B). ................................................................................... 81

Figura 19 - Esquema da classificação do tipo de suporte utilizado pelos vendedores

no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B). ............................................................ 83

Figura 20 - Esquema da classificação quanto a mobilidade dos vendedores no

recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B)................................................................... 84

Figura 21 - Esquema da classificação em relação ao tipo de mercadoria vendida

pelos ambulantes no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B). .............................. 85

Figura 22 – Festas religiosas como escape. Esquema do percurso e dos encontros

...................................................................................................................................... 88

Figura 23 - Localização das bandas de congo e das comunidades rurais do

município de Cariacica ................................................................................................. 90

Figura 24 - Ocupação como escape. Esquema do percurso e dos encontros .......... 95

Figura 25 – Movimentação de ciclistas em Cariacica Sede ....................................... 96

Figura 26 - Acesso principal de Alice Coutinho .......................................................... 96

Figura 27: Imagem produzida a partir de imagens do Google Earth, delimitação das

ZEIS no PDM Cariacica (2009) e inserção de marcadores localizando Alice

Coutinho; os municípios vizinhos; Campo Grande; limite da área urbana. ............... 98

Figura 28 - Localização de Alice Coutinho no Território Base: Grande Vitória ....... 105

Figura 29 – Imagem ilustrativa simulando as informações sobrepostas sobre Alice

Coutinho produzidas em campo. ............................................................................... 112

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Figura 30 – Imagem ilustrativa simulando o traçado de Alice Coutinho com

informações e impressões produzidas em campo organizadas de forma legível que

auxiliou-nos nas análises sobre o bairro. .................................................................. 113

Figura 31 – Quadro ilustrativo simulando as informações expostas e agrupadas e

algumas articulações e conexões realizadas entre elas. ......................................... 115

Figura 32 - Esquema dos deslocamentos para a ocupação em relação ao local de

origem de seus moradores ........................................................................................ 119

Figura 33 - Sobreposição da imagem da área de sua ocupação e desenho de um

traçado próximo ao realizado..................................................................................... 131

Figura 34 – Esquema dos fluxos que atravessaram o processo de consolidação de

Alice Coutinho construído a partir das informações fornecidas por alguns moradores.

.................................................................................................................................... 132

Figura 35 - Esquema relacionando os ritmos das negociações com a COHAB-ES e a

velocidade da consolidação da ocupação em Areinha............................................. 132

Figura 36 – Desenho de Seu João - Projeto para o bairro ....................................... 135

Figura 37 - Início da ocupação no bairro Alice Coutinho .......................................... 137

Figura 38 - Praça no início da ocupação em Alice Coutinho.................................... 137

Figura 39 - Início da ocupação em Alice Coutinho. .................................................. 138

Figura 40 - Início da ocupação em Alice Coutinho. .................................................. 138

Figura 41 – Moradores e representantes do MNLM nos trabalhos do início da

ocupação em Alice Coutinho com a máquina alugada através da contribuição dos

moradores................................................................................................................... 139

Figura 42 - Casa de alvenaria na frente e o barraco de tábua nos fundos.............. 142

Figura 43 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus

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moradores ................................................................................................................... 143

Figura 44 - Nome das ruas do bairro. ........................................................................ 144

Figura 45 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus

moradores ................................................................................................................... 145

Figura 46 - Residência e estabelecimento comercial informal em uso

simultaneamente. ....................................................................................................... 152

Figura 47 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus .................................................. 155

Figura 48 - A mais antiga Igreja Assembléia de Deus de Alice Coutinho ................ 155

Figura 49 - Ponto de Pregação utilizando a garagem da casa do próprio pastor. .. 156

Figura 50 - Igrejas apontadas por um morador. Ressalva-se que os pontos de

pregação não foram todos indicados, pois este morador recusa-se a incluí-los na

mesma categoria que as igrejas. ............................................................................... 156

Figura 51 - Crianças brincando na Praça de Alice Coutinho em dia de reunião com o

Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Dezembro, 2008. ................................ 159

Figura 52 - Reunião do Movimento Nacional de Luta pela Moradia com os

moradores debaixo do Juá, na Praça em Alice Coutinho. Dezembro, 2008. .......... 160

Figura 53 - Reportagem do Jornal A tribuna (12/03/2009) ....................................... 167

Figura 54 - Espaço da horta comunitária sendo preparado. Dezembro, 2008. ....... 169

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SUMÁRIO

Introdução ..................................................................................................................... 16

1 A Produção Da Cidade e Seus Escapes: Hibridismos ........................................ 19

1.1 A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos territórios ―formais‖

aos territórios alternativos ........................................................................................ 23

1.2 A cidade a partir das características do espaço: luminosos e opacos; lisos e

estriados .................................................................................................................... 25

1.3 A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes Hegemônicos,

Multidão e Homens Lentos ....................................................................................... 27

1.4 A cidade a partir das subjetividades .............................................................. 29

1.5 A Cartografia como escape metodológico ..................................................... 31

2 Aproximação Cartográfica 01: Território Base: Grande Vitória (ES) .................. 34

2.1 Procedimentos Metodológicos 01 .................................................................. 34

2.1.1 Tempo ...................................................................................................... 34

2.1.2 Espaço ...................................................................................................... 35

2.1.3 Procedimentos ......................................................................................... 35

2.2 Percurso .......................................................................................................... 42

2.2.1 Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude ................... 51

2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras ........ 56

2.2.3 Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude ........ 69

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15

2.2.4 Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo Grande .. 76

2.2.5 Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D‘Água ........... 87

2.2.6 Deslocamento 06: Roda D‘Água – Alice Coutinho ................................. 94

3 Aproximação cartográfica 02: Micro-Universo Ocupação Alice Coutinho

(Cariacica – ES) ......................................................................................................... 105

3.1 Procedimentos Metodológicos 02 ................................................................ 108

3.1.1 Tempo .................................................................................................... 108

3.1.2 Espaço .................................................................................................... 109

3.1.3 Procedimentos ....................................................................................... 109

3.1.4 Os encontros .......................................................................................... 116

3.2 Movimentos ................................................................................................... 118

3.2.1 1º Movimento: Tempo da memória ....................................................... 119

3.2.2 2º Movimento: Tempo da ação .............................................................. 129

3.2.3 3º Movimento: Tempo da esperança .................................................... 162

Articulações ................................................................................................................ 171

Bibliografia .................................................................................................................. 173

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INTRODUÇÃO

Pensar em possibilidades de escapes na produção da cidade contemporânea, tão

rica, complexa, múltipla, inquieta e pulsante, se faz necessário uma vez que ela

apresenta-se como o lugar tanto da sofisticação, quanto das perversidades

(SANTOS, 2005). Faz-se necessário voltar o olhar para caminhos, iniciativas, ações,

dinâmicas, que se apropriem das brechas, fissuras, escapes existentes na lógica do

fazer cidade dominada pela subjetividade capitalística1 (GUATTARI e ROLNIK,

2005). Estas fugas são determinantes para a constituição do espaço e das relações

sociais na cidade. Apresentam-se como um emaranhado de práticas, relações,

ações, situações que vão muito além da dualidade ―formal‖ X ―informal‖, comumente

apontadas como formas/ maneiras opostas ou contraditórias de produção de cidade.

O formal e o informal sobrepõem-se e contaminam-se nos diversos estratos da

experimentação urbana de forma tal que torna-se impossível entendê-los e

identificá-los como elementos dissociados.

A partir de três capítulos estruturais pretende-se tratar da questão dos escapes

possíveis na produção da cidade contemporânea:

1. A Produção Da Cidade e Seus Escapes: Hibridismos

2. Aproximação Cartográfica 01: Território Base: Grande Vitória (ES)

3. Aproximação cartográfica 02: Micro-Universo Ocupação Alice Coutinho

(Cariacica – ES)

O primeiro capítulo tem como objetivo apresentar o referencial teórico que norteia o

trabalho. No segundo capítulo, parte-se em direção ao bairro Alice Coutinho em

1 Ao utilizar a expressão capitalística, Guattari refere-se não apenas as sociedades capitalistas, mas

amplia o conceito estendendo-o até às economias socialistas que dele dependem. Aproximam-se pelo mesmo modo de produção de subjetividade e da relação com o outro. (GUATTARI & ROLNIK, 2005).

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meio a outras possibilidades de escapes na produção da cidade utilizando-se como

território base para esta investigação um percurso que foi se estabelecendo na

região da Grande Vitória (ES). No terceiro opta-se por uma aproximação do bairro,

localizado no município de Cariacica (ES), onde a questão da ocupação urbana para

fins de moradia (―invasão‖) é lida como escape.

Em Articulações encontram-se as últimas considerações sobre os pontos abordados

nos capítulos anteriores, a fim de apresentar algumas conexões finalizando a

dissertação ao mesmo tempo em que abre para outras e novas possibilidades e

leituras sobre os escapes.

Optou-se por iniciar o trabalho pela discussão sobre a produção da cidade

contemporânea tomando como base a híbrida relação entre a produção formal,

oficial da cidade e suas alternativas. O referencial teórico utilizado para o

desenvolvimento desta questão apóia-se em alguns autores e temas, dos quais

destacam-se:

A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos territórios

―formais‖ aos territórios alternativos

A cidade a partir das características do espaço: luminosos e opacos; lisos

e estriados

A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes Hegemônicos,

Multidão e Homens Lentos

A cidade a partir das subjetividades

Mais do que apontar posições e possibilidades duais, opostas ou contraditórias de

produção da cidade, este capítulo tem como objetivo apontar, exatamente, a

complexidade dessas relações que se sobrepõem, contaminam-se e coexistem

permeando e construindo o meio urbano.

A partir do embasamento teórico apresentado no primeiro capítulo, parte-se para o

segundo com o intuito de exercitar o olhar buscando, em experiências

compartilhadas de territorialização, identificar escapes possíveis na produção da

cidade contemporânea.

Page 18: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

18 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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18

Com o objetivo de aprofundar a investigação, optou-se pela produção de uma

cartografia do bairro Alice Coutinho, entendendo-o como possibilidade de reação à

produção hegemônica da cidade. Penetramos por este universo através das falas

dos moradores do bairro, acompanhando-os no movimento das opacidades, o qual

subdividimos em três momentos/movimentos de aproximação: tempo da memória,

tempo da ação e tempo da esperança. A aproximação com os moradores consiste

em uma breve apresentação daqueles que contribuíram mais diretamente com a

pesquisa, passando pelo processo de construção da ocupação, até sua e

consolidação e indícios de um futuro esperançoso.

Page 19: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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1 A PRODUÇÃO DA CIDADE E SEUS ESCAPES: HIBRIDISMOS

Pensar a cidade na contemporaneidade requer a utilização de um repertório

conceitual que a entenda enquanto sua complexidade sem reduzi-la a um conjunto

de relações superficializadas. A cidade contemporânea constitui-se em uma

multiplicidade de elementos heterogêneos que co-existem, sobrepõem-se,

contaminam-se, movimentam-se e resignificam-se a todo o momento. É abrigo e é,

ela mesma, uma multiplicidade de territorialidades, temporalidades e velocidades,

que se articulam e se agenciam constantemente. Mais do que mera portadora de

infra-estruturas físicas e materiais, a cidade é a sobreposição de relações, funções

(produtivas, políticas, disciplinares e simbólicas), escalas (espaciais e temporais/

geográficas e históricas), fluxos, territórios e territorialidades.

Para buscar dar conta desse entendimento da cidade como possibilidade, o conceito

de ―escape‖ atravessa e norteia toda a dissertação. O conceito foi utilizado aqui não

apenas como um substantivo, sinônimo de fuga, ainda que esta definição não seja

incabível. Denominaremos escapes as apropriações do urbano imbuídas de

reivindicações espacializadas, de forma tal que coloque em xeque a ordem sócio-

espacial vigente, ditada por uma ideologia hegemônica (seja do mercado imobiliário,

do mercado fonográfico, da indústria do entretenimento, das relações comerciais,

entre outras).

Entendemos também que nem todas essas criações, essas alternativas adotadas

para se viver na cidade, partam exclusivamente de uma postura intencional e

ideológica de enfrentamento. Podem partir da falta de opção ou da impossibilidade

de serem inseridas na lógica vigente. Ou pode ser ainda que a opção pelo escape

nasça do desejo de inserção muito mais do que de reação ou enfrentamento. De

qualquer forma, este processo e movimento criativos que incidem sobre o fazer

cidade como uma fuga possível, faz parte do que chamaremos aqui de escape.

Apesar da opção de tomarmos por investigação neste trabalho aqueles movimentos

que comumente são entendidos como informais, entendemos que existe que gama

de possibilidades de realização de escapes. Mesmo em algumas estruturas

Page 20: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

20 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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20

estabelecidas, formulam-se apropriações escapatórias em diferentes dimensões e

com variadas intensidades. Adquirem contornos mais rígidos quando surgem como

dobra no interior do aparato legal oficial, vigente no país, por exemplo, quando em

conquistas como a inclusão do Direito à Moradia no rol dos direitos sociais,

garantido pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou

a redação do art. 6º da Constituição Federal; a criação do Estatuto da Cidade como

marco legal-urbanístico em 2001; e a criação do Conselho Gestor do Fundo

Nacional de Habitação de Interesse Social. Uma vez constituídos legitimam

reivindicações de uma coletividade. Em outra dimensão, encontramos ao voltarmos

o olhar para a produção arquitetônica, a obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Incorporada

na produção formalizada por ela, a lógica escapatória existente em sua obra

apresenta-nos um relato composto por elementos heterogêneos, memórias e ações,

produzindo uma arquitetura que tem por interesse trazer para a esfera do visível

aquilo que era relegado ao segundo plano e ―recusado‖ pela ―civilização‖, como a

inventividade da cultura popular brasileira2. Podemos entender a produção de Lina

inserida na dimensão dos escapes formalmente estabelecidos e aceitos na produção

oficial da cidade.

Estas aberturas permitem que olhemos para a cidade como uma produção nem tão

rígida e nem tão controlada. Existe de fato a possibilidade de subversão da lógica

vigente. Os territórios são flexíveis, são movimentos, ainda que se encontrem em

determinados momentos estabilizados. A partir de novos fatores voltam a se

desestabilizar. Como veremos nos capítulos seguintes, a cidade então se apresenta

permeada por fluxos e refluxos que apontam para direções convergentes e

divergentes, configurando uma cidade que tem sido produzida predominantemente

por uma lógica ancorada no modo de produção da subjetividade capitalística, mas

que, no entanto, encontra em diversos espaços, possibilidades de enfrentamento,

criação e ação. A investigação dos escapes implica na possibilidade de novos

protagonistas, principalmente locais e regionais, virem à tona na cena política e

2 OLIVEIRA, 2006.

Page 21: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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21

torna necessário considerarmos a imbricação de escalas a que estas novas

territorialidades estão submetidas. A partir destas leituras e deslocamentos,

conformam-se novos territórios e novas territorialidades. São muitas e diferentes as

nuances da experimentação que permeiam os espaços do urbano se consideramos

a multimensionalidade da vida. É preciso lutar contra o desperdício destas

experiências que, em geral, são muito mais variadas do que a tradição científica e

filosófica considera3.

Para encontrarmos estes microprocessos revolucionários, que têm como traço

comum a recusa a subjetivação capitalística, tomamos como ponto de partida

práticas4 que acontecem na dimensão do cotidiano. De Certeau (1994) apresenta o

cotidiano como um espaço-tempo inventado pelo homem ordinário no qual ele

altera objetos e códigos através da sua arte de fazer, suas táticas e práticas. O

homem ordinário se reapropria do espaço e usa-o a seu jeito com ampla liberdade a

fim de que possa viver do melhor modo possível a ordem social das coisas5.

Investiremos de sentido alguns personagens urbanos que movem-se pelas cidades

agrupados (ideológica e/ou espacialmente), reinventando territórios e

espacialidades, a fim de identificarmos possíveis vias de acesso que possam nos

conduzir em expedições que adentrem as opacidades em seus diferentes níveis.

Perambulando pela cidade, esbarramos com grafiteiros, moradores/ ocupantes/

invasores de terrenos ou imóveis abandonados, artistas de rua, grupos de

manifestações populares, camelôs, ambulantes, integrantes do movimento hip hop,

minorias organizadas, skatistas, etc. Potência de resistência, potência revolucionária

3 SANTOS, 2006; 2007

4 Para De Certeau (1994), as práticas são constituídas de ―maneiras de fazer‖, pelas quais usuários

se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural. Mais do que lances, golpes ou truques singulares, as práticas são improvisações a partir de um determinado conhecimento. É criação e invenção pautada na aplicação de códigos específicos, não isentas de formalidades. ―Toda sociedade mostra sempre, em algum lugar, as formalidades a que suas práticas obedecem‖.

5 DE CERTEAU, 1994.

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22 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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22

ou potência de Multidão6, estes cuja existência em geral é desconsiderada (no

sentido de se tornarem invisíveis) pela sociedade, trazem para o debate questões

que dizem respeito não apenas a eles, mas ao conjunto da sociedade. Parte de uma

multiplicidade, cada um desses grupos e indivíduos atua sobre o urbano constituindo

territorialidades próprias, particulares e relacionam-se com o espaço de formas

diferenciadas, assim como travam lutas que, independente de suas escalas,

possuem considerável alcance político pelo fato de tenderem a questionar o sistema

de produção de subjetividade dominante.

O espaço urbano para estes praticantes ordinários da cidade (espaço físico, político

e simbólico) implica em reivindicação, reapropriação e subversão frente aos modos

de produção da subjetividade capitalística7.

Muros e fachadas utilizados como suporte para a arte pelos grafiteiros;

Lotes vazios e edificações abandonadas são ocupadas por grupos de sem-

tetos e se tornam lugar de moradia;

Ruas e avenidas transformadas em lugar de rito e do sagrado pelos cortejos e

procissões religiosas;

As calçadas ―mapeadas‖ e ―classificadas‖ pelos camelôs e ambulantes

conforme a intensidade do fluxo de capital em circulação, encarnado nos

múltiplos ―corpos passantes‖;

A periferia como lugar de produção artística e protesto pelo movimento hip

hop;

6 HARDT & NEGRI, 2005.

7 A produção da subjetividade capitalística é apresentada por Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005),

como um sistema de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. Para ele, neste modo, a subjetividade apresenta uma natureza industrial, na qual é essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida em escala internacional.

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23 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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23

Mobiliários urbanos vistos como obstáculos a serem desafiados pelos

skatistas e praticantes de parkour;

Os centros urbanos e as vias de circulação mais importantes apreendidas

como lugar de articulação política e palco de manifestações para grupos e

minorias organizadas.

Vetores de revoluções moleculares8, estas diferentes possibilidades de

experimentações e práticas urbanas atualizam-se em uma relação espaço-temporal

continuamente alterada por novos e constantes agenciamentos9 (DELEUZE &

GUATTARI, 1995).

A seguir abordaremos alguns conceitos que permearão e ajudarão a construir a

discussão sobre os escapes no trabalho.

1.1 A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos

territórios “formais” aos territórios alternativos

O espaço geográfico10 participa e/ou compõe direta e indiretamente nossas relações

cotidianas através dos seus muros (concretos e simbólicos), fronteiras, fluxos de

imagens e informações, rugosidades, alisamentos. O espaço-território é uma

categoria múltipla: ao mesmo tempo é o espaço concreto, dominado, instrumento de

controle e exploração, ele também é diferentemente produzido e apropriado

8 Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005) chama de revolução molecular os processos de

diferenciação e os fatores de resistência frente a uma tentativa de controle social que se dá através produção da subjetividade em escala planetária.

9 Um agenciamento comporta componentes heterogêneos, sejam eles de ordem biológica, social,

maquínica, gnosiológica, imaginária. É concebido para substituir o complexo. (GUATTARI & ROLNIK, 2005).

10 O espaço geográfico para o geógrafo Milton Santos (1996) é composto indissociavelmente por um

sistema de objetos e sistema de ações.

Page 24: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

24 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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24

concreta e simbolicamente11. Sobre a constituição de territórios na cidade, o

geógrafo Rogério Haesbaert (2006b) aponta para as condições de precariedade a

que foi relegada grande parte da humanidade em função de um território

convenientemente estruturado para a mais eficiente e barata reprodução do capital,

alicerçada em um modelo político econômico neoliberal. A alienação do território em

suas múltiplas formas, é uma das exigências e condições para a produção

capitalista sob a hegemonia do capital financeiro (RIBEIRO, 2005). No entanto, esta

ordem vigente é instável, pautada em uma convivência contraditória, formada por

distintos regimes de produção territoriais de poder, instaurando o que Gonçalves

(2002) denomina de um ―verdadeiro caos sistêmico‖. Existem, no entanto, espaços

para resposta. Como reação a perversidade da estrutura dos territórios

hegemônicos, territórios alternativos se impõem dentro das ordens sociais

majoritárias configurando-se em contra-espaços12 e novos arranjos espaciais

capitaneados por uma base democrática que permite o florescimento da diversidade.

A colagem de forças sociais e lutas políticas ao território marcando trajetos, criando

caminhos e interrompendo os fluxos desejados pelas classes dominantes, elaboram

novas territorialidades (RIBEIRO, 2005). Haesbaert (2006a) ataca o que ele chama

de mito da desterritorialização. Primeiro por entender que todo processo de

desterritorialização implica em um processo de reterritorialização, de forma que essa

desterritorialização absoluta parece não fazer sentido. E segundo por defender que

na contemporaneidade o que ocorre é a potencialização da possibilidade de

vivenciar vários territórios e processos de territorialização simultaneamente,

resultando em uma multiterritorialidade. Vale ressaltar que a vida em si é

multidimensional. No entanto, para o geógrafo, a multiterritorialidade não é uma

condição que abrange a todos de forma uniforme. Uma grande parte da população

ainda luta cotidianamente pela conquista de um território mínimo, o do abrigo.

A abordagem de território realizada por Haesbaert tem como uma de suas

11 HAESBAERT, 2006

12 HAESBAERT, 2006b.

Page 25: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

25 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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25

referências o pensamento dos filósofos Deleuze & Guattari, mais explícito quando se

refere aos processos de des-re-territorialização. Para os filósofos, território é

sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma, um conjunto de

projetos e representações os quais desembocam uma série de comportamentos e

investimentos, nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos

(GUATTARI & ROLNIK, 2005). O território de Haesbaert incorpora a produção de

subjetividade e os territórios existenciais dos filósofos, porém apresenta uma

dimensão espacial e materializada que raramente é incorporada pelos filósofos.

Embora utilizemos em nossas abordagens, as duas áreas de conhecimento –

geografia e filosofia – faz-se necessária esta distinção inicial. Mais adiante

abordaremos especificamente a relação entre produção de subjetividade e a

produção da cidade.

1.2 A cidade a partir das características do espaço: luminosos e

opacos; lisos e estriados

Santos e Deleuze & Guatarri continuam a inspirar a construção de nosso caminho

analítico através de categorizações do espaço. Ainda que Santos tenha em sua

base um discurso de cunho marxista e estruturalista, enquanto Deleuze & Guattari

destacam-se como teóricos do pós-estruturalismo, é possível encontrar em seus

pensamentos possibilidades de diálogo. Sugere-se aqui uma aproximação de duas

das categorias de análise do espaço propostas por Santos, o espaço luminoso e o

espaço opaco (1994, 1996, 2000) e dos conceitos de espaços lisos e estriados

trabalhados por Deleuze & Guattari (1997).

Deleuze & Guattari afirmam que a cidade é o espaço estriado por excelência.

Justificam isso pelo fato de considerarem-na um espaço delimitado, instituído pelo

aparelho do estado, regrado por medidas métricas, dimensionais, repartido segundo

intervalos assinalados. No entanto, ainda que dominante, essa força de estriagem

propicia a restituição de espaços lisos, que surgem como revidação, voltando-se

―contra‖ a própria cidade em forma de ―imensas favelas móveis, temporárias, de

Page 26: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

26 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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26

nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido patchwork, que já nem sequer

são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação‖ 13. ―Uma

miséria explosiva que a cidade secreta‖. Este espaço liso, que surge nas fissuras da

cidade tradicional, subvertendo e rompendo a lógica da estriagem, é o espaço das

multiplicidades não métricas; dos espaços direcionais, não determinados por pontos,

mas por trajetos; ocupados por acontecimentos; espaços de afetos mais que de

propriedades; espaços intensivos, mais que extensivos. Enquanto o espaço

tradicional da cidade é o espaço do progresso, o espaço liso é o espaço do devir,

das possibilidades infinitas e do indeterminado. Estes dois espaços não são, no

entanto opostos, e nem formam um dualismo estrutural embora apresentem

naturezas diferentes. A todo o momento estão em comunicação, contaminam-se,

contagiam-se e se metamorfoseiam, ainda que de maneiras distintas, tendo como

resultado misturas que não são necessariamente simétricas e que se dão através de

movimentos inteiramente diferentes de ambos os espaços.

Para Santos a cidade é o lugar da co-presença e da diferença14. As áreas luminosas

são constituídas ―ao sabor da modernidade‖15. São espaços de exatidão,

racionalizados, racionalizadores, organizados, espaços das verticalidades, formadas

por pontos distantes uns dos outros16, dotados de uma densidade técnica e

informacional que os tornam mais atrativas ao capital17. As áreas opacas são

subespaços onde estas características estão ausentes. São os espaços do

aproximativo, da criatividade, inorgânicos, abertos, onde é possível a re-invenção e

re-apropriação de práticas sociais e afetivas, na busca de um outro futuro18. Para

Santos, são nestes espaços que surgirão outras possibilidades de relações

13 DELEUZE & GUATTARI, 1997.

14 SANTOS, 1994.

15 Idem, ibidem.

16 SANTOS, 2005.

17 SANTOS, 2001.

18 SANTOS, 1999.

Page 27: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

27 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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estruturais e sociais na sociedade, que se darão através de uma revolução que virá

―de baixo‖, invertendo a relação entre opacidades e luminosidades.

―Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço

‗inorgânico‘, é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar,

enquanto a classe média e os ricos estão envolvidos pelas próprias

teias que, para seu conforto, ajudam a tecer: as teias de uma

racionalidade invasora de todos os arcanos da vida, essas

regulamentações, esses caminhos marcados que empobrecem e

eliminam a orientação ao futuro. Por isso, os ‗espaços luminosos‘ da

metrópole, espaços da racionalidade, é que são de fato, os espaços

opacos‖. (SANTOS, M.,1994).

1.3 A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes

Hegemônicos, Multidão e Homens Lentos

Os espaços não são, em sua essência, libertadores ou aprisionadores. É possível

habitar a cidade estriada e luminosa como um nômade, ou mesmo estar inserido em

um espaço liso e opaco e ainda assim, viver de forma sedentária. A fabricação de

espaços lisos (que dispõem de uma potência de desterritoriallização superior ao

estriado19) pelas multinacionais, por exemplo, apresenta-se como uma forma de

possibilitar maior mobilidade do capital no território, subvertendo e sobrepondo-se às

barreiras existentes que possam vir a criar encraves ao processo. Essa capacidade

de subversão e reapropiação dos espaços não é exclusividade dos agentes

hegemônicos. Apesar de estarmos vivendo a era do Império20 – formada pela

articulação e cooperação em rede de pontos-nodais, Estados-Nação dominantes,

instituições supranacionais, grandes corporações e outros poderes –, não é essa

forma de dominação a única força que move os processos de constituição dos

19 DELEUZE & GUATTARI, 1997.

20 HARDT & NEGRI, 2001

Page 28: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

28 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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territórios na atual globalização. A Multidão apresenta-se como uma alternativa

constituída dentro do Império que tem a cidade como seu esqueleto, no sentido do

ambiente construído, e sistema nervoso no sentido de ser tanto o repositório quanto

a fonte das relações sociais e das relações de produção (HARDT, 2008). A Multidão

é um projeto político em elaboração, que tem como objetivo criar uma nova

realidade social pautada na descoberta e construção do comum. A cidade é o lugar

do comum, do espaço comum, onde vigora a participação, a vontade, a decisão, o

desejo; onde a capacidade de transformação das singularidades pode agir tomando

com as próprias mãos as condições biopolíticas da existência (HARDT, 2008;

NEGRI, 2006).

Santos (1994) defende que na cidade, e, sobretudo na grande cidade, a força dos

fracos é seu tempo ―lento‖:

―Creio porém, que na cidade, na grande cidade atual, tudo se dá ao

contrário. A força é dos ‗lentos‘ e não dos que detêm a velocidade

elogiada por Virilio em delírio na esteira de um Valéry sonhador.

Quem na cidade tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-

la – acaba por ver pouco da cidade e do Mundo‖. (SANTOS, M.

1994)

Os velozes ficam a mercê das imagens pré-fabricadas, superficiais, vazias. Já para

os homens lentos, que conhecem os lugares e necessitam deste conhecimento para

sua sobrevivência, essas imagens-miragens são facilmente descobertas como

fabulações. Os homens lentos são habitantes dos espaços opacos e possuem uma

cultura baseada no território, no cotidiano, no contato de gente com gente. Já o

―mundo do tempo real‖, do just in time, dos espaços luminosos e hegemônicos,

buscam uma homogeneização empobrecedora e limitada do ponto de vista das

relações sociais, não do ponto de vista da complexidade técnico-informacional,

focada na operacionalização e funcionamento deste ―mundo globalizado‖. Santos

(2005) aposta na união horizontal dos lugares como possibilidade de reconstrução

da base de uma vida comum. Para ele, a construção de novas horizontalidades

permitirá então, a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que

nos libere da maldição da globalização perversa que vivemos e nos aproxime da

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29 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na

sua dignidade. Hard & Negri (2004) também defendem a necessidade de se criar

uma globalização alternativa, pautada em uma maior colaboração entre as nações.

1.4 A cidade a partir das subjetividades

Optamos por finalizar estas quatro possibilidades de leituras, com a discussão sobre

a cidade e a produção de subjetividade partindo do princípio de que ―a produção de

subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção‖21. Entendendo a

cidade como produção, essa abordagem parece-nos não apenas relevante, mas

necessária. Guattari (1992) aponta a cidade como uma máquina produtora de

subjetividade individual e coletiva. A subjetividade é essencialmente fabricada e

modelada no registro social, por uma multiplicidade de agenciamentos da

subjetivação. Assumida e vivida de dois modos pelos indivíduos em suas existências

particulares, a subjetividade se realiza em uma relação de alienação e opressão, na

qual o indivíduo se submete à subjetivação tal como a recebe, ou uma relação de

expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da

subjetividade, produzindo um outro processo, denominado de singularização 22.

―Todos os devires singulares, todas as maneiras de existir de modo

autêntico chocam-se contra o muro da subjetividade capitalística.

Ora, os devires são absorvidos por esse muro, ora sofrem

verdadeiros fenômenos de implosão. É preciso construir uma outra

lógica – diferente da lógica habitual – para poder fazer coexistir esse

muro com a imagem de um alvo que uma força seria capaz de

perfurar.‖ (GUATTARI, F; ROLNIK, S,2005)

21 GUATTARI & ROLNIK, 2005

22 Idem, ibidem.

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30 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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Cabe destacar que em situações extremas isso funcionaria dessa forma, mas em

geral, vivenciamos essa relação de forma híbrida. Guattari & Rolnik (2005) chamam

a atenção para uma subjetividade mais ampla, a subjetividade capitalística. Os

modos de produção capitalísticos não funcionam apenas no registro dos valores de

ordem do capital, mas funcionam também através de um modo de controle da

subjetivação. A essência do lucro capitalista não se reduz ao campo da mais-valia

econômica, mas está também na tomada de poder da subjetividade. A produção de

subjetividade pelo capitalismo se propaga no nível da produção e do consumo das

relações sociais em todos os meios e em todos os pontos do planeta. A insurgência

de qualquer microvetor de subjetivação singular tende a ser esmagado.

Uma das funções da economia capitalística subjetiva é a segregação, assegurada

pela instauração de sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de

valor e disciplinarização. Essa valorização capitalística se inscreve tanto contra o

sistema de valor de uso proposto por Marx, quanto contra todos os modos de

valorização do desejo e das singularidades. A ordem capitalística fabrica a relação

do homem com o mundo e consigo mesmo, de forma tal que partimos do princípio

de que a ordem do mundo não pode ser tocada sem que se comprometa a idéia de

vida social organizada. A força da subjetividade capitalística está no fato dela se

produzir tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos.

No entanto, o desenvolvimento da subjetividade capitalística traz imensas

possibilidades de desvio e reapropriação, desde que se reconheça que a luta não

está restrita ao plano da economia política, mas inclui a economia subjetiva. Os

afrontamentos sociais se dão entre as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos

e grupos entendem viver sua existência. Alguns dos movimentos sociais da

atualidade se situam nessas rupturas, as quais Guattari & Rolnik (2005) reconhecem

como importantes focos de resistência política por atacarem a lógica do sistema não

como abstração, mas como experiência vivida. Esse ―atrevimento de singularização‖,

denominado de ―revolução molecular‖, não consiste apenas em resistência ao

processo geral de serialização da subjetividade, mas caracteriza-se pela tentativa de

produzir modos de subjetivação originais. No entanto, vale chamar a atenção para o

fato de que toda a sociedade e todo o indivíduo são atravessados, ao mesmo tempo,

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tanto pela segmentaridade molar quanto molecular. Desta forma, as alternativas

existentes podem ser tanto macro quanto micropolíticas23.

A geograficidade do social encontra na cidade sua subjetividade materializada.

Inserir a cidade nessa discussão consiste em entendê-la como produção e como tal

atravessada por todos esses fluxos de subjetivação, seja da subjetividade

capitalística ou vetores de subjetivação singular. Enquanto espaço vivido, a cidade

caracteriza-se pela segmentação espacial e social em todos os estratos que a

compõem (habitar, circular, trabalhar, brincar)24, onde coexistem forças que tendem

a ação homogeneizante do espaço produzido por uma segmentaridade dura e

tentativas de escape produzidas por uma segmentaridade flexível.

1.5 A Cartografia como escape metodológico

Captar essa complexidade nos exigiu a eleição de um percurso metodológico que,

ao mesmo tempo, guiasse e instrumentasse conceitual e operacionalmente nossa

percepção e deixasse grau suficiente de liberdade para a apreensão do existir e

devir dos escapes encontrados. Optamos pelas aproximações cartográficas

enquanto metodologia baseada nas cartografias propostas por Deleuze & Guattari

(1995). A noção de cartografia que trazem estes filósofos distingui-se da noção de

cartografia comumente compartilhada por geógrafos, arquitetos e urbanistas:

cartografia enquanto representação gráfica de objetos e fenômenos distribuídos

espacialmente na superfície terrestre. A cartografia de Deleuze & Guattari trata-se

não de uma ferramenta, mas de uma prática voltada para a experimentação

ancorada no real. É construída de forma aberta e conectável em todas as suas

dimensões, através de suas múltiplas entradas, de forma tal que não possui como

23 GUATTARI & ROLNIK, 2005

24 DELEUZE & GUATTARI, 1996.

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―produto‖ um mapa estático, como os produzidos pelos geógrafos 25. De acordo com

a psicanalista Suely Rolnik (2007), a cartografia é um processo de construção e

desconstrução constante de certos mundos, motivado pelas acelerações e

mudanças repentinas advindas da globalização, dos fenômenos urbanos

corriqueiros ou dos dispositivos de memória individuais ou coletivos. Aqui será

explorada enquanto procedimento metodológico de investigação que possibilita

maximizar as possibilidades de entendimento sobre a criação e produção dos

escapes na cidade.

Entre as pistas apontadas por Passos, Kastrup e Escóssia (2009) para a realização

da cartografia, faz-se necessário entendê-la como uma possibilidade de investigação

que extrapola a oposição entre pesquisa quantitativa e qualitativa. É um método

transversal que atua na desestabilização dos eixos cartesianos trazendo para a

discussão a realidade multiplamente produzida. A realidade cartografada se

apresenta como um mapa móvel, uma onde o saber é a combinação dos visíveis e

dizíveis de um estrato. Será utilizada aqui como experiência de produção de

conhecimento sobre o espaço da cidade, por meio da elaboração de um desenho

impreciso que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que é alterado por diversos

movimentos. Interessa-nos aqui entender como os escapes se apresentam no

ambiente urbano, suas fugas conformadas no território, além das relações que

podem ser criadas e vividas socialmente na urbanidade.

Dividida em duas partes, a Aproximação Cartográfica 01 dedica-se a exploração

mais ampla e menos intensa do território, enquanto a Aproximação Cartográfica 02

consiste em um experimento mais direcionado ao bairro Alice Coutinho, localizado

no município de Cariacica, Espírito Santo, que surgiu a partir de uma ocupação do

Movimento Nacional de Luta pela Moradia, em 1996. Pretendemos com isso ampliar

o conhecimento sobre ele, através de um estudo cartográfico, transformando-o em

uma dimensão apreensível, mas ciente de que este processo inclui permanências e

25 Não cabe aqui generalizar ou subestimar os mapas produzidos pelos geógrafos. Mas faz-se

necessário diferenciá-los da cartografia proposta enquanto um mapa móvel. Mais adiante abordaremos a inclusão de mapas estáticos como elementos que virão a compor a cartografia.

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efemeridades, fixações e fluidez tornando seu registro incapaz de apreender todas

as dimensões de experimentação-produção-construção do espaço.

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2 APROXIMAÇÃO CARTOGRÁFICA 01: TERRITÓRIO BASE:

GRANDE VITÓRIA (ES)

A Aproximação Cartográfica 01 configura-se em rastreio, varredura e exploração do

campo perceptivo26 visando a construção do conhecimento sobre os escapes

encontrados entre os constantes deslocamentos da pesquisa entre Jardim da Penha

– bairro de onde partimos, em Vitória (ES) –, até Alice Coutinho – bairro localizado

em Cariacica (ES), onde pousará a pesquisa no capítulo seguinte. Entendendo a

cartografia como prática27 e a cidade enquanto o campo onde pretendemos que tal

prática seja realizada, este capítulo tem o intuito de ser um exercício que visa a

apontar outras entradas e possibilidades de cartografias sobre o mesmo tema.

2.1 Procedimentos Metodológicos 01

2.1.1 Tempo

Na Aproximação Cartográfica 01, encararemos a investigação como um jogo rápido

de registro das singularidades a partir de esquemas, textos e imagens,

problematizadas a partir de encontros durante o percurso da pesquisa. Isso abrange

um intervalo de tempo linear que vai de março de 2007 a dezembro de 2009, e

também outros tempos incluídos através das lembranças ou projeções de futuro

construídas durante este contato estabelecido entre nós, os sujeitos sociais

envolvidos, a cidade e toda sua complexidade e outros fluxos que possam ter

atravessado o percurso.

26 KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo, In PASSOS,

ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.

27 PASSOS, ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.

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2.1.2 Espaço

A estratégia adotada para definição deste território base teve como referência o

universo por onde transitamos na medida em que avançávamos em direção à

investigação específica da Ocupação Alice Coutinho que será abordada no capítulo

seguinte. Transitar aparece aqui com um sentido mais amplo do que exclusivamente

o do deslocamento físico da pesquisadora até a Ocupação. O território base como

categoria de análise só tem valor quando vinculado ao uso e aos atores

simultaneamente. Nele está implícita uma multiplicidade de formas e conteúdos.

Definimos nosso território transitando por um universo de informações diversificadas,

que em diferentes situações forneceram-nos subsídio para incluirmos nesta

aproximação cartográfica grupos, pessoas, lugares, eventos, etc. que extrapolariam

a proposta de um recorte espacial rígido. A flexibilidade foi indispensável para que

realizássemos certos desvios que achamos necessários, assim como para que

alcançássemos os espaços desmaterializados advindos das investigações virtuais,

por exemplo, que extrapolam a lógica de escala, tempo e distância geográfica.

2.1.3 Procedimentos

2.1.3.1 Rastreamento e investigações

―Rastrearemos‖ os escapes pela cidade neste espaço-tempo, com a finalidade de

construirmos uma cartografia que não tem a intenção de ser um mapeamento

preciso e completo de todas as iniciativas e atuações direcionadas a produção dos

escapes no território, mas sim de capturar e apontar diferentes entradas e saídas

produzidas a partir de determinadas singularidades.

Recorreremos também a investigações virtuais como procedimento, entendendo que

a diversificação dos processos de produção da cidade passa por práticas e

manifestações que vão do espaço simbólico ao concreto, atravessado por fluxos

advindos de espaços virtuais e suportes midiáticos. Em um primeiro momento, as

investigações de tais ―rastros virtuais‖ foram pensadas com o intuito de obtermos

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subsídios que nos auxiliassem- no rastreamento dos sujeitos e grupos pesquisados..

Possibilidade de, a partir das experiências identificadas no espaço real, ampliarmos

o conhecimento e as informações sobre determinados grupos, movimentos, lugares,

etc. Assim como o contrário, identificar no real experiências e personagens

encontrados no espaço virtual, entendendo que estes dois tipos de experiências,

ainda que diferenciadas, coexistem e sobrepõem-se no produzir cidade28. Todos os

atores envolvidos nesse trabalho são atravessados de alguma forma pela veiculação

e divulgação de informações nos mais variados formatos na rede – fotos, vídeos,

textos pessoais em blogs ou textos jornalísticos de agências de notícia, etc. –,

ampliando dessa forma as possibilidades e formulações de saberes sobre eles.

Além dos jovens do hip hop ou do grafite - que possuem explicitamente maior

domínio sobre o uso destas tecnologias29 – pode-se encontrar os praticantes

ordinários da cidade de Cariacica, por exemplo, no site do Youtube encarnados na

figura dos Street Monkeys, grupo de praticantes do Le Parkour de Cariacica, nos

participantes dos bailes funks de ―corredor‖ que acontece nas praças do bairro Nova

Brasília. Os encontros virtuais estão inclusos no percurso realizado. Nessa

perspectiva, o percurso em si é, em parte, desmaterializado e desterritorializado.

2.1.3.2 Os encontros

A aproximação da pesquisadora com os escapes rastreados durante a pesquisa não

se deteve a um método específico ou padrão único. O tipo de experiência e o

envolvimento com as pessoas encontradas no percurso variaram de acordo com

28 No andamento da pesquisa entendemos que poderíamos expandir a utilização dos recursos

disponíveis no meio virtual para além do uso mencionado, criando mecanismos públicos colaborativos de compartilhamento e armazenamento de informações relacionadas aos escapes identificados. Esta proposta encontra-se detalhada adiante na página 37.

29 Na internet entre os grupos de hip hop e rap,os Flogs , Blogs , My Space e comunidades no Orkut

são os mais populares para divulgação de shows e músicas, além do Youtube onde é possível encontrar vários vídeos de grupos e eventos. É comum também encontrarmos sites exclusivos para divulgação de fotos, como o Flickr e os Flogs, sendo utilizado pelos grafiteiros para divulgação de seus trabalhos, assim como também vídeos onde aparecem realizando seus grafites na cidade.

Page 37: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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cada situação resultando em registros e caracterizações diferenciadas, mais ou

menos intensas. De uma forma geral foi feito um esforço no sentido de compreender

quem são os envolvidos nesses processos, a forma com que alteram a lógica de

apropriação e uso do espaço urbano, seu potencial reivindicativo e produtor destes

territórios alternativos (HAESBAERT, 2006b). Reunimos estes encontros de acordo

com a característica do escape abordado, levando em consideração a forma como

este se realiza no meio urbano:

ocupações

festas religiosas

comércio informal de rua

movimento hip hop

protestos

A problematização e caracterização de cada um deles foi sendo construída no

percurso e refinada nos encontros e contatos estabelecidos, de forma que não nos

detivemos na elaboração de uma teoria geral sobre estes escapes, mas sim na

compreensão e acompanhamento destes ―gestos-fios‖ que, segundo Ribeiro

(2005b), costuram no lugar e no cotidiano ―saberes à co-presença, estimulando a

superação do prestígio ainda mantido pelas leituras mecanicistas e funcionalistas da

vida urbana‖. Segundo a autora, portadores de valores compartilhados por

determinados grupos sociais, estes gestos propiciam a criação de lugares onde

antes só havia espaço e racionalização. Acionam a possibilidade de superação da

cotidianidade alienada através de sua presença, ainda que temporariamente. É

através da leitura sensível destas práticas sócio-espaciais, imbuídas de um poder

popular, que se coloca em debate a ordem capitalista na cidade.

2.1.3.3 Proposta-registro

Como forma de registrarmos o conhecimento produzido na pesquisa, elaboramos

uma proposta de registro dos percursos: os lugares transitados (fisicamente ou não);

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38 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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a identificação e localização da dimensão apreensível dos escapes; a constituição

de territórios subjetivos; e os encontros enquanto o universo singular de cada

contato. Para isso, optamos por agrupá-los nas 06 possibilidades de escapes já

definidas que, apesar de serem apresentadas de forma seqüencial, possuem a

liberdade de se cruzar, reaparecer e se reformular sempre que se fizer necessário.

Construímos a narrativa do percurso pautada no conhecimento produzido a partir

das informações, dos encontros, das impressões e do referencial teórico abordado

no Capítulo 1, de forma tal que a relação tempo-espaço não obedecesse

necessariamente a uma ordem linear. Apoiamo-nos na descrição de Rolnik (1989)

sobre o papel do cartógrafo, na qual ela o apresenta como um pesquisador que não

segue nenhuma espécie de protocolo normalizado e tem seu perfil definido

exclusivamente pela sensibilidade. Sem preconceito, utiliza-se de tudo o que

encontra pelo caminho para traçar suas cartografias. Cabe ao cartógrafo

desembaraçar as linhas, acompanhar seu trançar, marcar os pontos de ruptura e de

enrijecimento, analisar seus cruzamentos. Na cartografia tudo funciona ao mesmo

tempo30.Utilizaremos como recurso trechos de diálogo, letras de música, imagens,

mapas e esquemas inseridos no texto.

Entendemos que a metodologia que experimentamos é pautada na possibilidade de

tornar visíveis outras leituras, neste caso, sobre a produção de cidade. Nessa

direção, ser aberta, conectável, desmontável e passível de modificações são

características importantes da cartografia. Além das formas já mencionadas para

registrá-la, sentimos a necessidade de utilizarmos outras formas que nos

permitissem tanto compartilhar informações que por algum motivo ficaram de fora,

quanto estabelecer algum mecanismo de abertura para contribuições de diferentes

fontes e pessoas. Constatamos que a informação sobre a presença de muitos

desses escapes que ficaram de fora – sejam os existentes no próprio percurso que

realizamos quanto os produzidos em outros lugares da cidade, ou em outras cidades

– poderiam enriquecer e constituir um outro panorama dos escapes fornecendo

30 PASSOS, ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.

Page 39: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

39 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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39

subsídios para futuras e novas aproximações e cartografias. Procuramos

experimentar um procedimento virtual, colaborativo onde o armazenamento e

compartilhamento de informações estão vinculados à sua localização geográfica. O

resultado dessas informações pode ser visualizado agrupado por categoria,

estruturada em uma lista, aleatoriamente compondo um mosaico ou em forma de

mapa, cuja representação se dá com o desenho da estrutura urbana, uma imagem

de satélite ou o hibrido dos dois.

Figura 1 - Mapa com a localização das informações depositadas.

Fonte: www.meipi/escapesurbanos.org

Page 40: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

40 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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Figura 2 – Informações agrupadas por categoria.

Fonte: www.meipi/escapesurbanos.org

A cartografia não se reduz ao mapa produzido pelo programa ou as informações

contidas nele. O conhecimento do lugar extrapola o palpável e o estanque de forma

tal que não pode ser simplificada como localizações ou demarcações no espaço. No

entanto, quando abrimos a possibilidade de construção coletiva desse mapeamento

para qualquer internauta, colocamos o mapa nas mãos de um número maior de

pessoas. Crampton & Krygier (2008) 31 reforçam a idéia do mapa como instrumento

de poder, mais do que documentos neutros. Os autores referem-se a este tipo de

mapeamento, que passou da mão de especialistas para o alcance da população

31 In ACSELRAD (org.), 2008

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41 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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com o auxilio da internet, como parte de uma ―insurreição do conhecimento‖32.

Na nossa metodologia, quando incorporamos à produção da cartografia este tipo de

produção, a consideramos como mais uma fonte de informação que pode ser

apropriada por esse método, que não possui preconceito de fonte33.

Desta forma, a proposta-registro vai se constituindo como um atlas eclético,

resultante da somatória de diversos registros possíveis, aberta a novas entradas,

sempre passível de reconstruções na medida em que novos encontros venham a

inserir novos elementos, ou mesmo através da re-elaboração dos diálogos entre os

elementos existentes resultando em novas leituras.

A plataforma digital que utilizamos para armazenarmos novas informações foi a

Meipi (www.meipi.org). Neste sitio desenvolvido por um grupo de artistas e

pesquisadores34, pode-se armazenar informações nos formatos de texto, imagem e

vídeo. Pode ser abertamente alimentado tanto pela pesquisadora quanto por

quaisquer outros colaboradores. Utilizaram como tecnologia a plataforma LAMP

(Linux, Apache, MySQL y PHP), Javascript, Google Maps API, script.aculo.us,

biblioteca javascript, ImageMagick para editar imagens e Recaptcha para configurar

formulários.

O modelo gratuito que utilizamos encontra-se disponível on line para qualquer

usuário perante cadastro no próprio sitio. Este modelo, no entanto, implica em

algumas limitações no que diz respeito ao seu formato, como por exemplo, a

possibilidade de classificação de apenas 4 temas ou categorias diferentes.

Considerando o caráter experimental da utilização desta ferramenta como

instrumento de registro interativo, achamos válida sua utilização ainda que deixemos

32 FOUCAULT, 2003 in ASCELRAD (org.), 2008

33 ROLNIK, 1989.

34 Domenico Di Siena [ALGOMAS - Arte Rivoluzionario]; Alfonso Sánchez Uzábal [Montera34]; Jorge

Álvaro Rey [Lamboratory.com]; Guillermo Álvaro Rey [Lamboratory.com]; Francesco Cingolani [ALGOMAS - Arte Rivoluzionario]; Pablo Rey Mazón [Montera34]

Page 42: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

42 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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42

de fora algumas linhas de investigação adotadas. Os resultados desta proposta

podem ser acessados pelo endereço eletrônico: www.meipi.org/escapesurbanos .

2.2 Percurso

Iniciamos nosso percurso tendo definido o ponto de partida – Jardim da Penha,

Vitória - e o ponto de chegada – Alice Coutinho, Cariacica. Os encontros que

realizamos neste ínterim definiram o percurso, que atravessou principalmente os

municípios de Vitória, Serra e Cariacica. Os três municípios fazem parte da Região

Metropolitana da Grande Vitória35, juntamente com os municípios de Vila Velha,

Viana, Fundão e Guarapari.

35 institucionalizada pelo poder estadual em 1995.

Page 43: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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Figura 3 - Mapa das microrregiões do Espírito Santo. Destacada em vermelho a Região Metropolitana da Grande Vitória.

Fonte: IJSN modificada. Disponível no site www.gov.es.br . Acessado em 20 de dezembro de 2009.

Page 44: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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Figura 4 - Mapa da Região Metropolitana da Grande Vitória

Fonte: IJSN. Disponível no site www.gov.es.br . Acessado em 20 de dezembro de 2009.

Page 45: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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De acordo com dados do IBGE de 2007, residem na Região Metropolitana de Vitória

1.624.837 dos 3.418241 habitantes do estado36. Esta concentração demográfica

juntamente com a concentração econômica conferem a região a função de

centralizadora no que se refere a tomada de decisões, informações, transações

comerciais, financeiras e de prestação de serviços públicos. O período

compreendido entre as décadas de 60 e 80 foram marcantes para a Região que

passou por expressivas transformações principalmente devido à alteração na sua

dinâmica econômica que até então pautava-se no padrão agro-exportador vinculado

à produção cafeeira, passando a assumir um modelo industrial-exportador a partir da

década de 7037. Tais transformações incluem desde grandes instalações, como as

da Companhia Vale do Rio Doce – CVRD e do Porto de Tubarão em 1996; da

Companhia Siderúrgica Tubarão – CST e do Porto de Praia Mole em 1983; e a

construção de diversos conjuntos habitacionais ao longo das décadas de 60, 70 e

80. De acordo com Abe (1999), a implantação desses empreendimentos de grande

capital teve repercussões em diversos setores da economia e da sociedade, com

amplos rebatimentos no urbano. Incluída no processo de modernização e

internacionalização da economia brasileira – cujo modelo estava impondo novas

condições de acumulação e nova modelagem territorial do País – a Região

Metropolitana passou de 111 mil indivíduos em 1950 e para a 194 mil em 1960, 386

mil em 1970, 706 mil em 1980 e 1.063 mil em 1991. As taxas de incremento

populacional decenais a partir da década de cinqüenta foram de 78,7%, 94,7% e

83%, reduzindo-se apenas na década de 80 para 50,5%38.

Ainda de acordo com Abe (1999), o rápido e elevado crescimento da Região

Metropolitana transformou as relações de classes e a estrutura de fracionamento

36 A capital Vtória, aparece como o 4º município mais populoso do Espírito Santo, com 320.156

habitantes. Em 1º está Vila Velha com 413.548; em 2º Serra com 404.688; e em 3º Cariacica com 365.859 habitantes (IBGE, 2007).

37 IJSN, 2001.

38 IBGE, Censo Demográfico.

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social na Grande Vitória, intensificando a segregação espacial. Para o autor,

―materializaram-se no espaço urbano metropolitano as contradições dos interesses

econômicos e desestruturaram-se as antigas territorialidades sociais e políticas‖. A

área de ocupação urbana sofreu intensa e desordenada expansão, comprometendo

seu sítio naturalmente frágil.

Atualmente, apesar das grandes plantas industriais localizadas nesta microrregião

(entre tais destaca-se também a Chocolates Garoto, em Vila Velha), o setor de

comércio e serviços é o mais significativo da economia regional. Destacam-se os

serviços na área de comércio exterior e distribuição de produtos em larga escala

com atuação mais dinâmica na área de logística do comércio exterior e apoio à

economia urbano-industrial.

No percurso que atravessa essa configuração urbana, nos detivemos ao encontro

com 6 possibilidade de escapes produzidos na/pela cidade que foram se revelando a

partir dos estreitamentos estabelecidos durantes o processo. Os escapes, cujas

espacializações na cidade são mais facilmente apreensíveis, foram localizados e

pontuados na Figura 5 (pág. 49). Apesar de não retratar a dinamicidade de seus

atores e seus diferentes graus de mobilidade no espaço urbano, o esquema

apresentado configura minimamente sua dimensão visível no território da

investigação. Buscamos estabelecer inicialmente uma relação entre as

singularidades produzidas, seus produtores e sua espacialização, que se mostrou no

decorrer do percurso mais complexa. Desta forma, seccionadas por deslocamentos,

estabelecemos para iniciar nosso percurso as seguintes relações:

Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude. Encontro com os

muros grafitados, elemento que conecta todo nosso território, e o movimento

hip hop. Atravessamos Vitória e chegamos em Cariacica onde fizemos uma

pausa na Casa da Juventude, no bairro Itacibá. Durante a pesquisa,

realizamos este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.

Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras. Descoberta

Page 47: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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sobre os grupos de rap e encontro com os b.boys e o movimento hip hop no

Terminal de Laranjeiras na Serra, onde paramos para entender este

movimento. Este deslocamento foi realizado de ônibus.

Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude. Encontro

com protestos de moradores dos bairros à margem da BR 101- Rodovia do

Contorno que conecta a Serra a Cariacica. Durante a pesquisa, realizamos

este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.

Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo Grande.

Encontro com o comércio informal de rua, ambulantes e camelôs em Campo

Grande, Cariacica, concentrado principalmente na Av. Expedito Garcia. Este

deslocamento foi realizado de ônibus até a chegada em Campo Grande, e a

pé internamente ao bairro.

Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D‘Água. Encontro com

a festa religiosa do Carnaval de Congo que acontece nesta comunidade da

área Rural do município de Cariacica e os devotos de Nossa Senhora da

Penha que cultivam a manifestação. Este deslocamento foi realizado

parcialmente de carro e parcialmente de ônibus. O deslocamento na

comunidade de Roda D‘Água durante a festa foi realizado a pé.

Deslocamento 06: Roda D‘Água – Alice Coutinho. Encontro com o bairro Alice

Coutinho originado a partir da ocupação de sem-tetos organizada pelo

Movimento Nacional de Luta pela Moradia, próxima a antiga sede do

município de Cariacica. Este deslocamento foi realizado parcialmente de carro

e parcialmente de ônibus. O deslocamento no interior do bairro Alice Coutinho

foi realizado a pé

Priorizamos práticas que sejam reforçadas por uma coletividade, ainda que não

necessariamente realizadas em coletivo. Comunidades e grupos, organizados ou

não, foram abordados sem o intuito de reduzir particularidades, motivações e

trajetórias individuais (estas vêm a assumir papel de destaque na medida em que a

pesquisa se refina, sobretudo no capítulo seguinte). Buscamos entender a forma

Page 48: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

48 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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como se relacionam com o meio urbano em sua diversidade e mutação através da

tessitura de territórios comuns e/ou divergentes que coexistem e sobrepõem-se na

trama da cidade.

Vinculamos a realização dos escapes e aqueles que os produzem às suas reivindicações. O que reivindicam quando formulam seus escapes? Elencamos inicialmente algumas possibilidades: o habitar, a visibilidade, o direito ao culto, ao espaço, a voz, escuta e soluções (

Figura 6, pág. 50). Estas reivindicações não se realizam isoladamente ou de forma

desarticulada, assim como também os escapes não se encerram nelas. À maioria

dos escapes aqui investigados são somadas várias destas reivindicações além de

outras que por ventura tenham sido deixadas de fora, ou se façam presente apenas

em determinadas situações. Por si só estas reivindicações também não distinguem

nem diferenciam a produção dos escapes de quaisquer outras produções realizadas

na cidade. É a forma como se realizam e sua capacidade de improviso e reinvenção

que os diferencia das demais.

Page 49: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

49 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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Figura 5 – Esquema dos escapes percorridos na Aproximação cartográfica 01.

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

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Figura 6 - Esquema da relação entre os escapes produzidos, quem o produz, suas reivindicações e localização na cidade.

Page 51: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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2.2.1 Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude

Jardim da Penha é de onde partimos e iniciamos nosso percurso. Bairro localizado

na porção continental da capital, ele teve seu desenvolvimento vinculado ao

conjunto habitacional criado pelo BNH na década de 70 que arcou com sua infra-

estrutura (ABE, 1999). Situado entre a Universidade Federal do Espírito Santo e a

Praia de Camburi, o bairro, já consolidado, abriga tanto repúblicas de estudantes

quanto famílias classe média. Destaca-se pelo traçado planejado e pelas rotatórias e

praças ajardinadas, equipadas e mobiliadas para práticas de esportes e lazer. Basta

que andemos por suas ruas para que sejamos atraídos pela plasticidade e pelas

cores conferidas pelo grafite às cinzas paredes dos edifícios. Não que isto seja

particularidade deste bairro, pelo contrário, os grafites acompanham-nos por quase

toda a cidade, estampando muros dos bairros da periferia e da classe média.

Elencado como elemento conector do nosso percurso, nele nos detivemos neste

primeiro deslocamento.

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Figura 7 - Movimento Hip Hop como escape: Grafite. Esquema do percurso e dos encontros

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Ao elegermos o grafite como escape, o fazemos principalmente pela sua constante

presença e capacidade de comunicação. O grafite atualiza e re-elabora um diálogo

urbano através do encontro involuntário entre indivíduos que, embora habitem

lugares diferentes, são colocados inevitavelmente frente a frente no espaço urbano.

Através dele a periferia conquista seu espaço e se faz tensamente presente em toda

cidade. É um encontro temporário, que se estabelece em diferentes velocidades: a

do pedestre passante, a do apreciador, a do motorista, a do grafiteiro, etc.

Tendíamos a eleger o grafite como uma possibilidade de escape desarticulado do

movimento hip hop, ainda que cientes da existência de algum tipo de relação entre

eles. A forma como o grafite aparece na cidade e sua freqüência o diferencia dos

demais elementos desta cultura: o b.boy, o MC e o DJ. É bem provável que também

nos encontremos diariamente com estes elementos pelas ruas da cidade. Mas a

menos que estejam reunidos ao som de sua música e realizando sua dança,

permanecerão no anônimo papel que lhes é atribuído: o de meninos suspeitos da

periferia. Diferentemente do grafite, não é comum encontrarmos com freqüência

rodas de b.boys ou rappers realizando batalhas de rima pelas ruas. O que não quer

dizer, é claro, que não existam ou não estejam acontecendo em algum canto da

cidade. Tanto que soubemos de algumas destas práticas, como o encontro de

b.boys que acontece no Terminal de Laranjeiras, na Serra – que abordaremos mais

a frente –, a reunião de rappers na praça do bairro Jardim Botânico, em Cariacica39 e

o freestyle40 nas ruas de Padre Gabriel41, também em Cariacica.

Essa intenção de atribuir ao grafite um caráter autônomo foi estimulada também pela

freqüência com que o grafite tem sido inserido em movimentos de arte e intervenção

39 Através da Gerente de Projetos Urbanos de Cariacica, Ivana Souza Marques, soubemos que no

bairro Jardim Botânico existe um movimento de grupos de rap. Ela contou que na ocasião da elaboração do projeto de uma praça para o bairro, dentre as reivindicações estava a necessidade de criação de um espaço para que esses jovens pudessem se reunir e se apresentar.

40 O freestyle é a arte dominada por alguns Mcs de fazer rimas improvisadas abordando diferentes

temas.

41 O vídeo com a batalha de rimas pode ser visto no site

http://www.youtube.com/watch?v=KcRDdqxkjCw . Acessado em junho de 2008.

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urbana, onde se somam diversas técnicas e produções artísticas. O uso do grafite

enquanto técnica é recorrente nestes movimentos, sem estar necessariamente

vinculado ao universo hip hop, seus temas e mesmo sua produção associada a

artistas integrantes do movimento hip hop.

Figura 8 - Grafite sendo explorado enquanto seu potencial técnico, por Renato Pontello, na Rua João Damasceno, Zona Sul, São Paulo.

Fonte: Página do artista na internet: http://www.flickr.com/renatopontello . Acessado em 10 de janeiro de 2010.

Encontramos o grafiteiro ―Alecs Power‖ e o b.boy ―Eduardo B.Boy‖ mais adiante, no

terminal de Laranjeiras com quem conversamos sobre essa relação entre o hip hop

e a prática do grafite e com base nas colocações feitas por eles optamos por não

desvincular o grafite do movimento hip hop enquanto escape42. Ao falar de sua

42 Abordaremos este encontro mais adiante no item 2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude –

Terminal de Laranjeiras (pág. 56)

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55 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

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história com o hip hop, o grafiteiro deixa evidente a íntima relação existente entre os

elementos dessa cultura e seus integrantes que, embora não dominem todos seus

elementos, entendem-nos como indissociáveis e com o tempo passam a incorporá-

los nas suas práticas. Alecs conta que foi isso que aconteceu com ele. Envolveu-se

primeiramente com a dança, o break, em 1992, acompanhando a movimentação

que acontecia no Parque Moscoso no Centro de Vitória. Passou então a fazer parte

de um grupo de break que também participava de campeonatos, onde encantou-se

pelo grafite que sempre se fazia presente. Aprendeu a técnica e passou a grafitar

pelas ruas da Grande Vitória acompanhado de mais dois dançarinos do grupo.

Criaram a primeira crew de grafite do estado, deixando seus traços pela cidade sob

a sigla de UGI (União dos Grafiteiros Independentes) que passou a ser reconhecida

por outros jovens, instigando-os a criar também suas crews. A crew é uma espécie

de equipe formada por grafiteiros que se unem para pintar. Em geral os grafiteiros

assinam junto de seus nomes o nome de sua crew. Alecs conta que passou alguns

anos pintando sozinho até que foi convidado para participar da crew Luz do Mundo

(composta por Fred, Canela, Fone e Ren), com quem grafita atualmente. A

preocupação com a aceitação do grafite como arte ficou evidente na conversa com

Alecs que fez questão de frisar: ―Só grafitamos em muros que somos autorizados,

pela prefeitura ou pelo proprietário. Não é pichação, é a arte plástica do hip hop‖. Ele

confere ao grafite permitido o status de arte oficial. Institucionalizado, capturado,

dobrado sobre si mesmo, o grafite de Alecs parece precisar de aprovação.

Ao realizar o grafite, o movimento hip hop traz para o visível seu posicionamento

artístico e político. Assim como o faz também o b.boy desafiando os limites e a

flexibilidade do corpo embalado pelas batidas inventadas, fragmentadas, picotadas e

segmentadas produzidas pelo DJ enquanto o rapper ou o MC rima suas frases

quase sempre de protesto incitando alguma reação. É a partir deste entendimento

que entendemos que este universo não se compõe de fragmentos isolados, mas de

um conjunto de relações estabelecidas entre seus diversos componentes. Sob a

ótica do significado de cultura apresentado por Santos, M. (1996), entendemos a

cultura hip hop como uma forma específica de comunicação do indivíduo e do grupo

com o universo.

Page 56: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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―(...) é uma herança, mas também um reaprendizado das relações

profundas entre o homo e o seu meio, um resultado obtido através do

próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as

práticas sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer

a um grupo, do qual é o cimento‖. (SANTOS, M., 1996).

Assim, apontamos nesta possibilidade de ação/espacialização/territorialização da

cultura hip hop na cidade, uma entrada possível para uma cartografia sobre a

produção de escapes.

Seguimos atravessando, a cidade saindo de Jardim da Penha e, guiados pelos

muros grafitados, deslocamo-nos utilizando diferentes meios de transporte (a pé, de

carro e de ônibus) pela Av. Dante Michellini, alcançamos as ruas de Jardim

Camburi, chegamos a Serra encontrando muros na Av. Norte Sul e na BR-101,

retornamos a Vitória pela Av. Fernando Ferrari, alcançamos a Praça dos

Namorados, na Praia do Canto, a Av. Américo Buaiz, a Av. Vitória, as ruas do

Centro e rumamos a Cariacica onde já na BR-262 deparamo-nos com novos

grafites. O encontro com o grafite instigou-nos a buscar mais informações sobre o

movimento hip hop, o que levou-nos até a Casa da Juventude do município que por

promover eventos e encontros da juventude está sempre em contato com estes

grupos por serem formadores de opinião em suas comunidades.

2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras

Chegamos a Cariacica, município que possui uma população de 356.536 habitantes

e uma área de 260 km2 (IBGE, 2007). Aproximadamente 50% de seu território

encontra-se na área rural. Sua configuração urbana está vinculada às necessidades

e exigências de uma economia inserida na lógica global do modelo industrial-

exportador, onde o deslocamento de mercadorias em suas rodovias e as

necessidades das empresas de logística ditam o ritmo e o caráter das intervenções

urbanas. No processo de intensa urbanização promovido pela vinda de grandes

projetos industriais por que passou o estado a partir da década de 60 (destaca-se no

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município a instalação da siderúrgica Belgo Mineira), Cariacica destaca-se por ter

absorvido grande parte da demanda populacional, principalmente a que não foi

absorvida pelo mercado ―formal‖. Aliada a seu modelo de expansão urbana

tipicamente tentacular – conseqüência de sua estrutura física norteada pelos

grandes eixos viários (BR-101, a BR-262, a ES-080 e as ferrovias Vitória-Minas e

RFFSA-Leopoldina, que cortam a malha urbana) – seu território foi sendo ocupado

através do preenchimento dos vazios intersticiais entre estas estruturas, quase

sempre com a presença de loteamentos ilegais, irregulares e ―invasões‖43.

43 IJSN, 2001.

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Figura 9 - Evolução dos Loteamentos no município de Cariacica.

Fonte: Campos, 2007

Page 59: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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Figura 10 – Movimento Hip Hop como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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A Casa da Juventude de Cariacica 44 está localizada na margem da ES-080, próxima

ao Terminal de Itacibá, onde fizemos uma pausa e fomos atrás de pistas que

pudessem subsidiar essa nossa atratividade pelo universo hip hop. Soubemos pelos

coordenadores e funcionários da Casa da existência de alguns grupos de rap no

município, concentrados principalmente nos bairros Jardim Botânico, Castelo

Branco, Flexal e Nova Rosa da Penha. É comum ouvirmos e lermos estes nomes

nas manchetes de jornais precedendo alguma notícia vinculada à violência nas

páginas policiais. Em 2006, Cariacica ocupava o 1º lugar no ranking das cidades

mais violentas da Grande Vitória45. De acordo com dados levantados pela Secretaria

de Estado de Segurança Pública (Sesp) a macro-região, que abrange 25 bairros no

entorno de Nova Rosa da Penha e Flexal teve contribuição significativa em crimes

ligados diretamente ao tráfico de drogas. Em 2009, estudo realizado pelo Fundo das

Nações Unidas para a Infância (Unicef), apontou Cariacica como o terceiro lugar na

lista dos municípios onde mais se matam jovens e adolescentes no Brasil46.

É nesses bairros, onde os índices de criminalidade se destacam, que estão

localizados os grupos citados na Casa da Juventude. Segundo Robson Malacarne,

um dos coordenadores da Casa, em suas apresentações, os grupos estimulam o

debate político e social entre os jovens. Existem no município aproximadamente 6

ou 7 grupos47 que não possuem articulação entre si, realizando suas atividades

44 A Casa da Juventude é um projeto do Departamento da Juventude que está vinculado ao gabinete

do Prefeito. Concentra ações e projetos voltados para a juventude sem estar ligada especificamente a nenhuma secretaria. A proposta da Casa é que esta seja um local de apoio aos movimentos da juventude do município, tanto no que diz respeito à disponibilização da sua infra-estrutura (telecentro, auditório, estúdio, salas de reuniões, assessoria de direitos humanos, etc.), quanto na promoção e elaboração de políticas voltadas para a juventude, como a criação do Conselho Municipal da Juventude.

45 ―Nova Rosa da Penha e Flexal elevam mortes em Cariacica‖, reportagem publicada em 07/07/

2006, no Século Diário. Disponível em http://www.seculodiario.com.br (acessada em 10 de julho de 2009).

46 ―Seis municípios do ES no ranking das cidades onde mais se mata jovens no país‖, reportagem

publicada em 21/07/2009, na Folha Vitória. Disponível em http://www.folhavitoria.com.br (acessada em 10 de julho de 2009)

47 Esse número é baseado nos registros existentes na Casa da Juventude considerando a

participação destes grupos em eventos, seminários, reuniões e conferências realizadas. É provável

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isoladamente. Aliás, de acordo com Malacarne, esta característica está presente na

maioria dos movimentos relacionados à juventude em Cariacica, como o basquete

de rua, a capoeira e o funk. São movimentos que se apresentam mais ou menos

fortes de acordo com as regiões em que estão localizados. No entanto, seu nível de

articulação ainda é precário. Os movimentos que se sobressaem são os que

possuem uma atuação mais explicitamente voltada para a política ou alguma ordem

religiosa – como a União Cariaciquence dos Estudantes Secundaristas48 e a Pastoral

da Juventude49. Apresentam um nível de organização maior, mostrando-se mais

representativos e articulados. Organizações como a Central Única das Favelas –

CUFA possuem no município uma atuação voltada mais para prestação de serviços

e auxilio na realização de eventos do que propriamente um vetor de articulação dos

movimentos da periferia.

Esse encontro instigou-nos a explorar um pouco mais esse escape. Utilizamos para

isso os recursos de busca na internet para termos a dimensão da abrangência da

veiculação midiática da produção desses grupos, em específico dos localizados nos

bairros críticos de Cariacica. A difusão das lan houses, telecentros e ―gatonet‖50 nas

periferias brasileiras, além do relativo barateamento do valor dos computadores de

uso doméstico, tem facilitado o acesso e a utilização destas tecnologias pelos

moradores das periferias, além de ter propiciado que estas coloquem em circulação

na rede uma infinidade de conteúdos produzidos por elas mesmas. Encontramos um

amplo leque de grupos distribuídos pela região metropolitana além de Cariacica, nos

que existam mais grupos no município além destes.

48 Em fase de re-estruturação, o movimento apóia-se na construção do Centro Federal de Educação

Tecnológica do Espírito Santo - CEFET-ES no município como uma possibilidade de reascender o debate entre os estudantes.

49 Além da já tradicional Pastoral da Juventude, outro grupo tem se mostrado bastante atuante no

município, possuindo inclusive representação no Conselho Municipal da Juventude: o Demolay. O Demolay pode ser entendido como o movimento jovem da Maçonaria e em Cariacica é composto basicamente por filhos de Maçons e alguns convidados. Reúnem-se no Bairro Santa Fé desenvolvendo projetos internos e também em parceria com comunidades, voltados para assistência social.

50 Forma clandestina de ter acesso à TV a cabo e internet.

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municípios da Serra, Vila Velha e Vitória. Em alguns, o material encontrado é fruto

de uma produção ―caseira‖, ―amadora‖, com qualidade técnica duvidosa. Outros

apresentam um nível de informação e produção compatíveis com grupos musicais

financiados pela indústria fonográfica ―oficial‖. Santos (2005) fala sobre essa

possibilidade de ―revanche da cultura popular sobre a cultura de massas‖, quando

ela se utiliza de instrumentos que na origem são próprios da cultura de massa para

difundir a sua produção. Ainda segundo Santos, a cultura popular ganharia força por

ser baseada nos símbolos ―de baixo‖, cultivada no território, no cotidiano, por ser

portadora da ―verdade da existência e reveladora do próprio movimento da

sociedade‖. Cabe ressaltar que embora se apropriem dessas tecnologias, não

possuem em geral o seu controle, o que, aliás, é uma incógnita não apenas para os

moradores da periferia, mas para o mundo todo, uma vez que a mega-empresa

Google está monopolizando sistemas, programas e ferramentas. Não é apenas a

periferia do mundo capitalista que está ―refém‖ desta empresa.

Estes movimentos, estes símbolos podem ser percebidos entre as batidas dos DJ‘s,

os passos dos b-boys, os traços dos grafiteiros e atravessando os discursos dos

MC‘s51. As frases de ordem que denunciam as injustiças sociais e incitam reações

são quase sempre intercaladas por clamores a um Deus único e onipresente. Entre

vídeos depositados no youtube52 e páginas do myspace53, os Suspeitos na Mira

cantam e lamentam que seus ―parceiros‖ tenham se desviado da ideologia hip hop e

dão ―Graças a Deus nosso Pai‖ por terem voz para ―dizer o que tem que ser dito‖54.

Renegrado Jorge, um dos mais antigos membros do movimento hip hop local, narra

em seu videoclip – gravado no ponto de ônibus do maior Shopping de Vitória – os

pensamentos de um velho mendigo que mora embaixo da Terceira Ponte ao

51 Estes 4 elementos, o DJ, o b.boy, o grafite e o MC compõem a cultura hip hop, de acordo com

Eduardo B-boy, um dos encontros que tivemos nesse percurso e que apresentaremos mais adiante.

52 www.youtube.com

53 www.myspace.com

54 ―Narrativa‖, Suspeitos na Mira. Música disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=BSiG1ejSV1E&feature=related (acessado em 17 de julho de 2009)

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observar a ―burguesia‖ que freqüenta o shopping. Enquanto espera a morte ―com

muita felicidade‖, agradece ―a Deus por não se parte da sociedade‖55. As meninas do

Mulheres de Atitude – MDA, são exceção nesse universo dominado pelos homens e

encaram com seriedade essa responsabilidade ao percorrerem bairros como Feu

Rosa e Novo Horizonte, na Serra e Morro do Romão em Vitória, localizados nos

morros e periferias da região metropolitana , evocando o heroísmo de Joana D‘Arc e

denunciando a violência contra a mulher. ―Mulheres sendo espancadas por

namorados, por maridos/ Sou mulher que não aceita por homem ser maltratada/

Respaldada pela Maria da Penha, que nos protege de canalhas‖ 56, cantam elas.

Alguns grupos, como o Inversão Brasileira, reúnem integrantes de diferentes

municípios, neste caso, Vila Velha e Cariacica. O território do hip hop inclui diversos

territórios constituídos de fragmentos urbanos do alto do morro, do fundo dos vales,

dos espaços elitizados, conectados pela letra, pela dança, pela batida quebrada,

pela expressão gráfica, pelo jeito de andar e vestir da cultura hip hop, que se

materializam e se fazem presentes em toda cidade carregados de intensidades de

periferia.

Foi acompanhando a movimentação dos gorros e bonés virados para trás; das

correntes presas aos bolsos dos bermudões; dos tênis estilo ―All Star‖, quase

sempre acompanhados de uma mochila a tira colo, que interrompemos nossa

investigação virtual e tomamos um ônibus rumo ao Terminal de Laranjeiras 57, na

Serra. Denunciavam a corpografia58 advinda da experiência urbana singular das

55 Vídeo depositado no site http://www.youtube.com/watch?v=1MQAXEiDXEg (acessado em 17 de

julho de 2009)

56 Música disponível no site oficial do grupo: http://www.myspace.com/mulheresdeatitude (acessado

em 24 de julho de 2009)

57 A partir da década de 90, Laranjeiras consolida-se enquanto principal centro de comércio e

serviços de acentuada importância municipal, apresentando estabelecimentos e equipamentos urbanos de abrangência metropolitana, em geral localizados ao longo de eixos viários que apresentam concentração deste tipo de uso. Atualmente tem recebido boa parte da classe média capixaba que não encontra mais muitas opções de empreendimentos residenciais acessíveis na capital.

58 Por corpografia entende-se ―uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou

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periferias. Desviamo-nos momentaneamente do percurso rumo a Alice Coutinho

para seguirmos esses b.boys que, em uma tarde ensolarada de sábado, tomavam

esta condução e dirigiam-se ao terminal. O terminal, comumente utilizado como local

de passagem e de baldeação, inusitadamente era o destino final desses jovens.

Para lá se direcionam, todo segundo sábado do mês, centenas deles, oriundos

principalmente das periferias da região metropolitana. O local é palco do ―Encontro

de B.Boys e B.Girls do Terminal‖. O encontro agrega em média 80 a 100 dançarinos

e aprendizes que se apresentam nas rodas formadas sob a batuta do DJ e do MC,

além de centenas de passantes que ao serem surpreendidos com tal movimentação

fazem uma pausa em seus percursos e prestigiam curiosos a exibição dos jovens

por alguns minutos. São diversos os fluxos e vetores atuando neste movimento

múltiplo produzido na/pela periferia – onde já conquistaram seu espaço – atualizado

neste ―não lugar‖ onde são construídas novas possibilidades de agenciamentos e

relações. Para Souza & Rodrigues (2004), a relação entre a periferia e o hip hop é a

sua essência, é a forma que as pessoas que moram em espaços pobres e

segregados encontram de fazer política. São as relações que se estabelecem entre

estes indivíduos pelo fato de estarem juntos em determinado espaço, nesse caso a

periferia, que Santos (1996) chama de transindividualidade. Essa

transindividualidade alimenta a criação cultural e artística dos integrantes do

movimento.

O terminal é um importante nó da rede viária urbana. O movimento apropria-se de

sua localização estratégica e sua articulação com as diferentes periferias da Região

Metropolitana através do sistema Transcol59, estruturado a partir de linhas que

coletam passageiros dos bairros e os direcionam aos terminais, de onde partem as

linhas de abrangência metropolitana. Quando o hip hop utiliza-se da potencialidade

do terminal e elege-o como o lugar do encontro, realiza nele outro escape. Apesar

seja, parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o molda, mesmo que involuntariamente (...)‖. (JACQUES, 2007)

59 Principal sistema de transporte público da região

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de parecer óbvia a característica articuladora destas estruturas urbanas,

percebemos o quão subutilizadas e impessoais são. Apropriando-se delas

imprimem aí novos significados. O hip hop ―carrega‖ a periferia para o centro e

reinventa o terminal e se espalha a partir dele.

Figura 11 - Panfleto de divulgação do Encontro de B-Boys e B-Girls

O evento começa assim: chega um grupo carregando a aparelhagem de som,

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acompanhado em geral do MC e do DJ – responsáveis por ditar o ritmo e batida das

performances dos b.boys. Os demais dançarinos começam a saltar dos ônibus e

agrupam-se em volta da aparelhagem enquanto fazem exercícios de aquecimentos.

Aos poucos a roda vai se fechando e todos estão ansiosos para começar suas

apresentações. Ao som da batida do DJ o MC dá as boas vindas aos dançarinos, e

a roda começa. Nela se vê passos, saltos, rodopios e encenações onde se misturam

disputa, desafio, ―brodagem‖ e solidariedade. É o b.boy que faz um movimento mais

complexo e é aplaudido pelos companheiros; é o iniciante – fruto das oficinas e

projetos sociais que trabalham a cultura hip hop – que é incentivado pelos

professores; é o movimento novo, diferente que é questionado pelos veteranos,

gerando um clima de tensão na roda; são as provocações e respostas dadas às

críticas através de sucessivas performances quase sempre desafiando este ou

aquele b.boy causador da discórdia. Os tradicionais freqüentadores, ou melhor,

passantes, do terminal, disputam uma ―janela‖ entre os b.boys da roda e apreciam

as apresentações. No entorno da roda, alguns iniciantes na dança break aproveitam

a presença de seus professores e de dançarinos mais experientes para pedirem

dicas e treinarem novos movimentos. Não vêem a hora de tornarem-se também o

centro da atenção e serem admirados pelos outros b.boys e pelos passantes do

terminal.

Fomos atrás de um dos organizadores do encontro, o ―Eduardo B.boy‖ – como se

autodenomina em uma página de relacionamentos na internet –, integrante do grupo

de break Ultimate B.Boys. Através dele soubemos um pouco mais da estória deste

evento que existe há 10 anos no terminal. Inicialmente não possuíam autorização.

Quem começou o movimento foi o grupo Vitória Crew que, articulado com outros

grupos, convocavam os demais integrantes do movimento que, juntamente com

seus aparelhos de som, realizavam no terminal suas performances. Não demorou

para que a Companhia de Transportes Urbanos da Grande Vitória - Ceturb proibisse

tais manifestações. Concomitantemente o movimento hip hop conquistava abertura

junto aos projetos sociais da Grande Vitória e através dos cursos, oficinas e

workshops de grafite, streetdance, discotecagem e etc. conquistavam mais adeptos.

Apoiados pelos projetos sociais, e sob a organização do grupo Ultimate B.boys, foi

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elaborado o projeto do ―Encontro de B.Boys e B.Girls do Terminal‖ e através dele

conseguiram o apoio da Ceturb. Tal apoio consiste apenas no aval para realização

do evento uma vez por mês. Todas as despesas (como o transporte da aparelhagem

e aquisição de equipamento) são bancada pelos Ultimate B.Boys. Eduardo e

Alecsandro (o grafiteiro Alecs Power) queixam-se da falta de subsídio para

realização do evento que a cada dia cresce mais. Sabem da responsabilidade que

têm na manutenção do evento, principalmente junto aos seus alunos. Os dois dão

aulas em projetos sociais da Região Metropolitana e sabem o quão aguardado é o

dia do encontro pelos jovens e crianças das periferias em que trabalham: ―Tem

gente que mata cursinho até para vir aqui. Sabe que é uma vez por mês só‖, conta

Eduardo. Ele acredita que esta parceria dos projetos sociais com o movimento hip

hop é fundamental para o sucesso de iniciativas que têm por premissa resgatar

crianças e adolescentes em situação de risco. Eduardo lembra que desviar esses

jovens do mundo das drogas e do crime faz parte da filosofia do hip hop. Querendo

ou não, seus alunos são alertados que, ao aderirem ao movimento hip hop, estão

aderindo a uma postura e um posicionamento que vai além das letras, dos passos

do break, ou dos traços do grafite. Estão aderindo e um estilo de vida. Perguntamos

o que leva os jovens à essa adesão. Instantaneamente Eduardo responde: ―A mídia.

Está na mídia. Ele vê que o cara tá lá na televisão e vê que pode tá lá também‖.

Percorremos mais um pouco o espaço do terminal observando a circulação dos

b.boys misturados aos passageiros dos ônibus que paravam para assistir o

movimento. Notamos que são poucas as meninas do movimento presentes. Em

geral estão acompanhadas de namorados e poucas são as que arriscam alguns

movimentos do break ao lado da roda principal. Enquanto isso o DJ chama a

atenção de alguns b.boys que tumultuam a roda, enquanto um rapaz queixa-se de

que furtaram seu celular na mochila enquanto estava entretido aguardando seu

momento de entrar na roda. Os motoristas em horário de descanso procuram um

―buraco‖ na roda para prestigiar a apresentação e um grupo de crianças, talvez

alunos ou iniciantes, dão os primeiros passos na dança.

Decidimos que é hora de voltar para o ponto de onde nos desviamos e optamos por

pegar a BR-101, Rodovia do Contorno, para retornarmos a Cariacica. No caminho,

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algumas questões não nos deixaram esquecer do Terminal. Não é irônico que o

garoto que teve o celular furtado tivesse exatamente o estereótipo dos suspeitos

desse tipo de furto? Negro, magricelo, jovem, de bermudão, corrente pendurada,

camisa larga e boné pra trás? Lembramos do comentário dele quando se deu conta

do furto, mas que na hora pareceu-nos irrelevante: ―Depois a gente vai lá reclamar

com os ‗caras‘ e eles acham ruim, não acreditam na gente!‖, se referindo aos

seguranças do Terminal. Ainda que almeje ser notado, ser visto, a sua própria

imagem, sua corporeidade60, caricatura do menino da periferia, é uma barreira para

que suas queixas e suas denúncias sejam encaradas com seriedade pelos

detentores contextuais do poder, nesse caso, o segurança do Terminal. No

momento, sua visibilidade está relacionada com a imagem de suspeito. Lembramos

de fato semelhante narrado por Faustini (2009), ao se recordar de um acontecimento

de sua adolescência na baixada carioca, quando voltava para casa com seus

amigos. Foram abordados por policiais militares, mas só um deles levou o tapa na

cara, o que era negro. Faustini atribui a sua invisibilidade de branco junto aos

policiais a justificativa de não ter sido também agredido. Estar na mídia é, para o

menino do hip hop, o seu devir branco. Sua possibilidade de ser invisível em

situações como a narrada por Faustini e, em outras, ter a visibilidade dos brancos. O

devir branco aqui não se refere exclusivamente à cor da pele, mas a toda uma série

de atribuições e ideais que carrega esse devir majoritário: a do belo, a do bem

sucedido, a do aceito, a do que possui permissão para circular sem ser barrado, a

do que pode cobrar por justiça sem ser ridicularizado, etc. A desconfiança é violenta

com os meninos da periferia. José Junior (2006) também relata um episódio de

desconfiança quando foi com um amigo comer pela primeira vez em um Mc‘Donalds

no Rio. A volta pra casa foi surpreendida com o espancamento dos dois por policiais.

Quantas não são as histórias de desconfiança, humilhação e violência para com

estes meninos? O papel de suspeito lhes é comum, assim como a ânsia em deixar a

invisibilidade. O devir escape para estes meninos é a visibilidade dos brancos?

60 ―(...) corporalidade ou corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu

me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade (...)‖ (SANTOS, M. 1996)

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Ainda que incomodados com tal in-conclusão tomamos nosso caminho de volta

deixando em aberto a continuidade dessa discussão.

2.2.3 Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude

Figura 12 - Protestos como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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Figura 13 - Protestos de moradores na Rodovia do Contorno na Serra [32].

Fonte: www.gazeaonline.com.br

Figura 14 - Atropelamento na Rodovia do Contorno em Cariacica [30].

Fonte: www.gazeaonline.com.br

Tomamos a BR-101 rumo a Cariacica através desta rodovia, conhecida como

Rodovia do Contorno neste trecho em que se desvia da capital Vitória. Na década

de 90, as faixas em seu entorno então em processo de consolidação, tiveram

algumas de suas áreas destinadas ao desenvolvimento de atividades metropolitanas

do setor terciário, apresentando predominância de estabelecimentos de grande porte

destinados a comércio e serviços com elevado grau de especialização. Algumas

grandes glebas abrigam empreendimentos cujos raios de atendimento extrapolam

os próprios limites estaduais, como as Estações Aduaneiras de Interior (EADIs) no

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município de Cariacica. Nos últimos anos, o município tem trabalhado para afirmar

seu potencial logístico, tirando proveito de sua localização geográfica, da

proximidade com o complexo portuário, das infra-estruturas rodoviária e ferroviária

que atravessam seu território, assim como da existência de grandes áreas ainda

disponíveis favoráveis a instalação de equipamentos de grande porte.

Deparamo-nos com grandes velocidades em busca de tempos reduzidos, em busca

da adequação ao ―mundo do tempo real‖, do “just-in-time‖ das empresas de

logística, da racionalidade única, cuja criação é limitada a um pequeno número de

agentes, impondo um ritmo de vida incompatível com o ritmo no qual o mundo

cotidiano sobrevive. Em Cariacica, os fluxos oriundos da transnacionalização dos

arranjos econômicos, são brutamente materializados: caminhões-baús e containers

atravessam e sobrepõem-se ao tempo das pequenas práticas conectadas às rotinas

locais. Observamos as pessoas que trafegam a pé ou de bicicleta pela rodovia em

uma velocidade bem mais lenta nos perigosos (e praticamente inexistentes)

acostamentos.

Em determinados trechos, estas faixas também concentraram expressivo

quantitativo de comércio varejista de pequeno e médio porte, assim como bairros

populares, confirmando as tendências de alguns fragmentos da Rodovia assumir

características tipicamente locais com dinâmicas urbanas, superiores àquelas

registradas no restante da rodovia.

Enquanto o funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma demanda

desesperada de regras que obedeçam à dinâmica de interesses privados, o

cotidiano supõe uma demanda desesperada de Política, resultado da consideração

conjunta de múltiplos interesses (SANTOS, 2000).

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Figura 15 - Sobre as diferentes velocidades na cidade. Serra, ES.

Fonte: Pesquisa MG-ES, um sistema infra-estrutural. Disponível em http://www.pucsp.br/artecidade/mg_es/index.htm

Em meio a apitaços, panelaços, sinais de fogo e cheiro de pneu queimado,

encontramos um grupo de moradores reagindo a esta lógica perversa na qual a vida

é banalizada e seu valor minimizado frente ao valor das mercadorias. O cidadão é

relegado a segundo plano. A indignação parte de mais um dentre tantos os

atropelamentos que acontecem quase diariamente na rodovia. Em 2008, o Espírito

Santo possuía três dos dez pontos mais perigosos das rodovias brasileiras. Dois

deles localizados na Rodovia do Contorno (BR 101) e um na BR 262, também em

Cariacica61. No entorno da rodovia estão localizados 13 populosos bairros do

município, entre eles Nova Rosa da Penha, que se originou de sucessivas

ocupações irregulares em áreas do Estado na década de 70/80. Um dos pontos

mais críticos da rodovia é exatamente na entrada deste bairro. De acordo como

61 Jornal A Gazeta, 02/12/2008. Disponível no endereço eletrônico:

http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2008/12/37837-estado+tem+tres+dos+dez+pontos+com+maior+indice+de+acidentes+nas+estradas+federais.html . Acessado em 03/03/2009.

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inspetor da Polícia Rodoviária Federal Marcos Wiris Rainha62, é nas entradas dos

bairros que a maioria dos atropelamentos acontece. Estas dezenas de acidentes e

atropelamentos anuais denunciam a incompatibilidade entre a velocidade da rodovia

e o ritmo de vida dos moradores e trabalhadores do entorno que locomovem-se em

geral a pé, de ônibus ou bicicleta.

Encontramos alguns deles materializando sua insatisfação utilizando-se das já

usuais práticas de barricadas como reação a violência com que modelos

hegemônicos e excludentes são impostos. O que está em jogo nesta movimentação,

o que os une na rodovia, independente de uma organização, é a própria

sobrevivência. Suas, de seus filhos, familiares e amigos. A causa que os une

momentaneamente, o comum entre eles é a valorização da vida. Querem através

desses atos tornarem-se visíveis. E assim conseguem, ao escorregarem do interior

das áreas opacas, aonde moram, e ocuparem e interromperem o fluxo, ainda que de

matéria, das área luminosas. A cidade não é indissociável de sua estrutura física.

Nem os fluxos o são. Ainda que Castells (1999) fale da emergência de uma

―sociedade em rede‖ em detrimento da ―sociedade territorial‖, inserida na lógica de

uma economia global almejada pelo município, esta continua a ser composta tanto

de espaços de fluxo quanto de espaço de lugares. Ainda que na rodovia predomine

a lógica espacial dos espaços de fluxos, seu oposto, a organização espacial

historicamente enraizada, momentaneamente questiona e coloca em ―xeque‖ este

domínio, pois na realidade, são os dois o mesmo lugar. Como nos comunica Santos,

São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o

espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas

contendo simultaneamente funcionalidades diferentes, quiçá

divergentes ou opostas. (SANTOS, M. 2005)

Os deslocamentos e atropelamentos na rodovia também incluem aqueles moradores

62 Jornal A Gazeta, 13/06/2008.

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que trabalham nas empresas instaladas na beira da rodovia, assim como os

moradores de outras periferias da região metropolitana, que necessitam aguardar,

em pontos de ônibus precários ou improvisados, o transporte público para voltarem

para suas residências. Estes trabalhadores cruzam e arriscam-se diariamente na

rodovia. Ao mesmo tempo em que é o perigo, a existência da rodovia e toda a

problemática que apresenta com a instalação das empresas e o intenso fluxo de

cargas pesadas advindo dessas atividades, enquanto vetor de crescimento

econômico, apresenta-se como uma possibilidade de trabalho para os moradores do

entorno.

Ainda que pulsem as barricadas, o lugar tem sua lógica e seu significado

determinados pelas diferentes formas e estruturas de poder. Neste tipo de

manifestação, em geral, os poderes oficiais (municipal, estadual ou federal), tendem

a favorecer o setor de serviços avançados, primando pela participação destes nos

índices de emprego e no PIB (Produto Interno Bruto), resguardando assim a

possibilidade de atrair novos de investimentos para a área.

Mesmo considerando a fragilidade deste movimento frente aos poderes –

principalmente ao poder policial que em geral age de forma autoritária e covarde

contra estes manifestantes – achamos válido considerar estas reações enquanto

potência pelo fato de trazer para o visível o afrontamento dessas grandes estruturas

materializadas em infra-estrutura e logística (acho que é mais isso que a fragilidade

da estrutura global. Não?) a também fragilidade da estrutura global pautada nos

espaços de fluxo ao revelar sua dependência da estrutura física da cidade.

Gonçalves (2002) apresenta-nos a força dos ―piquetes‖ realizados por moradores

desempregados do bairro operário de La Matanza, na região da Grande Buenos

Aires, na Argentina. O movimento bloqueou o tráfego das carretas na rota

economicamente mais importante do país.

Se trató de una lucha ‗pueblada‘como dicen los argentinos, porque

involucró a todos los integrantes del barrio, con distintas estrategias

de sobrevivencia y distintas modalidades y experiencias de lucha. El

episodio de La Matanza constituyó un aprendizaje en las

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potencialidades del sentido territorial de las nuevas formas de

organización de la población, al tiempo que evidencia el carácter

antipopular del gobierno, a pocos meses de haber asumido. El

gobierno tuvo que firmar un convenio con los insurrectos de La

Matanza, aceptando todas sus exigências. (CECEÑA, 2001 in

GONÇALVES, 2002).

Desta forma, indicamos a espacialização dos protestos como escape por emergir de

um contexto dominado pelos vetores da racionalidade hegemônica enquanto seu

oposto. Pela ousadia da pausa em um movimento que não admite interrupções, por

dar visibilidade aos que são invisibilizados nos acostamentos inexistentes e pela

capacidade aglutinadora independente de movimentos oficiais institucionalizados.

Nossa aproximação com escape até então foi consideravelmente superficial, do

ponto de vista do contato com os envolvidos em sua realização. Restringimo-nos em

lançar um olhar atento a esta situação de dentro do ônibus que conduziu-nos de

volta a Cariacica. Um refinamento desta possibilidade junto aos moradores do

entorno que vivenciam cotidianamente esta situação parece-nos um passo válido

que apontará outras cartografias possíveis e mais precisas deste movimento.

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2.2.4 Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo

Grande

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Figura 16 – Comércio Informal como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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Depois dessa passagem pela Rodovia do Contorno, voltamos a Cariacica via

Terminal de Itacibá. Esse desvio permitiu que compreendêssemos um pouco mais

da configuração do município. Ainda no ônibus, percebemos que, à medida em nos

aproximávamos do Terminal, as pessoas movimentavam-se e agitavam-se rumo à

porta de saída. Quando o ônibus parou, dirigiram-se a outra fila, que conduzia aos

ônibus rumo a outro terminal, o de Campo Grande. Esta migração quase que em

massa dos passageiros de um ônibus para o outro, instigou-nos saber o motivo de

tal deslocamento coletivo. Era fim de semana, véspera de uma data comemorativa,

situação na qual o consumo bate recordes no país. Tal fato levava os moradores

das periferias por onde passamos a dirigirem-se ao principal centro comercial do

município, Campo Grande.

De acordo com ABE (1999), o asfaltamento da BR-101 na década de 60 foi o vetor

que impulsionou o surgimento de vários bairros ciliares a ela, dentre eles Campo

Grande. Na década de 90, o bairro consolidou-se enquanto centro de comércio e

serviços de acentuada importância, em Cariacica, apresentando estabelecimentos e

equipamentos urbanos de abrangência metropolitana, em geral localizados ao longo

de eixos viários que apresentam concentração deste tipo de uso.

Pouco depois de atravessar a BR-262, antes da chegada ao terminal, notamos que

as pessoas preparavam-se para saltar e fizemos o mesmo. Saltamos na principal via

do bairro, a movimentada Avenida Expedito Garcia, onde coexistem pequenos

estabelecimentos comerciais formais, grandes magazines de redes multinacionais,

barracas e bancas improvisadas de vendedores de variadas mercadorias, clientes,

moradores, trabalhadores, restaurantes, supermercados, botecos, lanchonetes,

guardas, andarilhos, mendigos. Compreendemos que em Campo Grande cruzam-

se moradores de todas as regiões do município. Comumente referem-se ao bairro –

em tom de brincadeira – como Big Field, com o intuito de ressaltar sua importância

no município. Big Field é lugar de destaque. É onde residem as pessoas de maior

poder aquisitivo, onde é possível encontrar algum tipo de diversão a noite, onde

concentram-se as melhores escolas e universidades privadas do município, onde é

possível encontrar uma diversidade de estabelecimentos comerciais para fazer

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compras.

Conversando com uma professora que dá aula de inglês no bairro, ela explicou-nos

que o trecho entre a BR-262 e a pracinha de Campo Grande (identificada pela letra

―A‖ na Figura 17) é a ―ala mais nobre‖ do bairro, onde se encontram as lojas mais

caras. Nela percebemos que sua estrutura urbana é também um pouco mais

generosa, com calçadas mais largas e o trânsito flui apenas em uma direção. O

trecho ente a praça e o posto de gasolina (identificado pela letra ―B‖ na Figura 17) é

onde a aglomeração é maior. As calçadas parecem ser mais estreitas, o trânsito de

mão dupla e os pontos de ônibus sem estrutura necessária, fazem com que a

sensação de tumulto seja maior. Do posto de gasolina em direção a saída do bairro

(indicado pela letra ―C‖ na Figura 17) a ambiência modifica-se e aos poucos já se

assemelha com as instalações da BR-262.

Tentamos fazer um paralelo com Vitória, mas não encontramos nela nenhuma

centralidade que possua características semelhantes. Talvez a única centralidade

que comporte de longe a sobreposição apresentada em Campo Grande, pelo fato de

agregar diferentes estabelecimentos comerciais e freqüentadores diversificados,

seja a centralidade conferida ao maior shopping da cidade. Mas tal comparação

torna-se descabida ao considerarmos que, no caso do shopping, a acessibilidade

física e simbólica é rigidamente controlada pela iniciativa privada, onde normas de

conduta e comportamento são estabelecidas de forma a assegurar um mínimo de

―ordem‖ e ―segurança‖ a seus freqüentadores.

No entanto, identificamos um elemento que conecta as diferentes centralidades,

inclusive o shopping, e faz-se presente onde quer que se apresente concentração de

gente: o ambulante, o camelô, o ―cara do carrinho‖. Criamos um recorte imaginário

abrigando o trecho mais denso da Av. Expedito Garcia (representado pelo retângulo

amarelo da Figura 17) e decidimos analisar um pouco a dinâmica desses

comerciantes, que denominaremos aqui como vendedor informal de rua.

Contabilizamos aproximadamente 100 vendedores neste trecho, embora estimemos

que este número seja maior devido aos vendedores realmente ―ambulantes‖, que

não se fixam em determinado local. A fugacidade destes vendedores levou-nos a

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abordá-los sem, no entanto, preocupar-nos em quantificá-los com precisão.

Figura 17 - Imagem de satélite de Campo Grande, Cariacica. Destaque para o recorte da Av. Expedito Garcia, principal via do bairro.

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

Marcamos então um encontro nesta avenida com a Gerente de Projetos Urbanos da

Prefeitura Municipal de Cariacica e também mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFES, Ivana Souza Marques, que na

ocasião estava realizando pesquisa também neste bairro para sua dissertação de

mestrado, com quem compartilhamos impressões acerca desta atividade enquanto

possibilidade de escape.

Percebemos que estes vendedores encontram-se concentrados na própria Avenida

Expedito Garcia e no início de suas transversais, próximos às esquinas. Estas são

as áreas de maior movimento e trânsito de pessoas. Assim como também as

esquinas são os lugares de pausa para travessia dos cruzamentos. Entre a

desterritorialização do grande capital e a virtualização do fluxo das transações

financeiras, a oportunidade de lucro para estes vendedores circula em um espaço-

tempo apreensível e determinável ainda que mutável. Movimento e pausa guiam a

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lógica de fixação e deslocamento dos vendedores pela avenida, levando em

consideração o tipo de suporte disponível e as características dos elementos

construídos do entorno, assim como o tipo de mercadoria vendida. São muitas as

variantes envolvidas e determinantes para a espacialização deste comércio informal

de rua. Passamos a percorrer e a observar a espacialização dos comerciantes na

avenida. Eles se encontravam em frente à pizzaria fechada (ao menos nesse

horário), caminhando pelas calçadas, em frente a lojas maiores como Stapi,

Eletrocity, Casas Bahia, Tim Celular, Lojas Franklin, Lojas Avenidas, em frente à

farmácia, apoiados na parede da farmácia, apoiados no parapeito do Supermercado

Extra Plus, na esquina do Supermercado, na lateral do Supermercado, apoiados na

parede em frente a clínica odontológica, concentrados na esquina do Leevre, em

frente a financiadora Dacasa, na esquina da IBI-C&A, em frente a papelaria

Castorino Santana, ao lado do supermercado Schwuab, em frente ao supermercado,

em frente ao banco BMG. Por vezes encontram-se localizados no leito da rua, ora

na calçada, ou ainda entre um e outro utilizando o desnível da calçada como apoio.

Figura 18 - Esquema da concentração de vendedores ambulantes identificados na Av. Expedito Garcia (trecho B).

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

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Identificamos vários tipos de tipos de suportes que os vendedores usam para expor

suas mercadorias. Vão desde mesinhas portáteis ao chão da própria calçada. Dos

capôs dos carros, aos gradis, paredes externas e outros elementos das fachadas

dos imóveis localizados na avenida. De kombis, vans ao próprio corpo. Há um

diálogo constante entre estes variados elementos: é o cara do cachorro quente que

guarda seus banquinhos e mesinhas no depósito da loja de celular; o vendedor de

DVD que aproveita-se do portão da escola que não abre aos sábados; é o vendedor

de queijo que protege-se do sol na sombra da banca de jornal. Embora exista

também aparentemente competição e rivalidade entre vendedores formais e

informais, essas reciprocidades urbanas estão presentes no dia-a-dia na dinâmica

desta e provavelmente de outras centralidades. O tipo de suporte também

pressupõe investimentos e recursos variados, que influenciam também nas

estratégias de conquistas de clientes. De buzinas, a mega-fone, carros de som e a

própria voz, são instrumentos utilizados para atrair fregueses e clientes. A buzina do

―olha aê o picolé e o chip-chup‖ já é clássica. Assim como o ―tin tin tin‖ do triângulo

do vendedor de quebra-queixo‖. O vendedor de DVD pirata coloca-nos a par dos

últimos lançamentos da indústria cinematográfica e oferece-nos 3 lançamentos por

valor equivalente a uma entrada no cinema. Não apenas ter instrumentos de

comunicação, mas poder de convencimento parece fundamental para ter sucesso

neste ramo.

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Figura 19 - Esquema da classificação do tipo de suporte utilizado pelos vendedores no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

Alguns suportes utilizados permitem que possam circular pela avenida enquanto

outros exigem que se fixem em determinados pontos. Chamamo-os aqui de fixos,

híbridos e nômades. Dos fixos, cuja mobilidade é a mais limitada, destacamos as

barraquinhas, banquinhas, tabuleiros apoiados em caixotes, além de suportes

apoiados. Geralmente a estabilidade de seus apoios está na dependência de sua

imobilidade. Os híbridos possuem a capacidade de deslocamento, mas tendem à

fixação quando encontram público receptivo a suas mercadorias. Destacamos entre

os híbridos principalmente os carrinhos de comida e bebida, entre eles os de água

de côco, de salgado, de pururuca e batata frita (estes dois últimos utilizam carrinho

de supermercado). Os nômades utilizam em geral o próprio corpo para

deslocamento. Na figura abaixo (Figura 20) apresentamos uma representação da

espacialização destes vendedores no momento da pesquisa. Cabe ressaltar que

esta representação é meramente ilustrativa uma vez que como já abordamos aqui,

as estruturas utilizadas como suporte pelos vendedores são montadas e

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desmontadas diariamente, mesmo as que apresentam-se enquanto característica a

imobilidade. São fixas dentro de um espaço de tempo definido pela sua presença na

avenida. Quando encerram suas atividades, desmontam suas barracas, bancas,

etc., que serão remontadas no dia seguinte. Em alguns casos, alteram-se os

vendedores presentes na Avenida no período do dia e da noite, e após o desmonte

do vendedor diurno, chega o vendedor noturno e monta no mesmo lugar sua

estrutura. Alternam-se no uso do lugar. A figura do nômade aparece simbolicamente

representada no esquema. Como explicamos anteriormente, não nos prendemos a

localização ou percurso deste vendedor e o entendemos em constante movimento

entre os vendedores representados63.

Figura 20 - Esquema da classificação quanto a mobilidade dos vendedores no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

63 Entendemos que este constante movimento esteja permeado por momentos de pausa e fixações

temporárias. Apenas nos referimos a este vendedor como movimento constante para acentuar seu diferencial frente aos demais.

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Esta relação fixação ou mobilidade está também diretamente relacionada ao tipo de

mercadoria a ser vendida e a infra-estrutura necessária em cada caso. Dentre as

mercadorias que identificamos estão bolsas, cintos, capas de celular, chapéus,

óculos, relógio, tapete, acessórios, utensílios domésticos, artesanatos, bjouterias,

eletrônicos, vestimentas, calçados, brinquedos, CDs, DVDs, etc. Entre as comidas e

bebidas destacam-se churros, cocada, papa (Figura 21). E qual a relação entre ser

fixo, híbrido ou nômade? Um comentário sobre só um ser nômade?

Figura 21 - Esquema da classificação em relação ao tipo de mercadoria vendida pelos ambulantes no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

Percebemos que existem espaços definidos, áreas restritas a cada um, que não

pode ser ocupada por outro e algum tipo de organização, ainda que na ocasião não

tenhamos conseguido identificar formalmente seus representantes. Na ocasião, os

vendedores estavam prestes a ser desalojados pela Prefeitura por ocasião de um

projeto denominado Calçada Viva, que tinha por objetivo adequar as calçadas da

Avenida a um padrão compatível com o exigido pelas normas de acessibilidade. O

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clima entre os vendedores era de tensão e nossa presença, sondando sobre suas

atividades, parecia representar uma ameaça à permanência dos mesmos, que não

se mostraram muito receptivos a nossas tentativas de contato.

Optamos por analisar as informações que conseguimos e tentar junto a prefeitura

entender sobre o projeto Calçada Viva. Antes de sairmos de Campo Grande, no

entanto, deparamo-nos com Verônica, moradora de Alice Coutinho, bairro originado

a partir de uma ocupação organizada pelo Movimento Nacional de Luta pela

Moradia, em 1996. Conhecemo-nos em um trabalho que realizamos no bairro em

200564. Verônica convidou-nos para o chá de panela de sua filha e dá notícias do

bairro que agora já possui asfalto na rua principal. O convite veio a calhar em meio a

nosso interesse pelos escapes produzidos na cidade. Alice Coutinho pareceu-nos

propício para tal abordagem, uma vez que o bairro nasce em condições adversas,

em direção contrária à produção oficial e formal da cidade, construído coletivamente

pautado nas experiências coletivas de seus moradores. Aceitamos o convite.

Na Prefeitura, tivemos acesso ao projeto na Secretaria de Planejamento e

Desenvolvimento Urbano de Cariacica e pudemos constatar que a área destinada

para os ambulantes que seriam retirados das calçadas e da Avenida era

consideravelmente pequena comparada a quantidade de vendedores. O projeto

prevê a relocação deles para uma rua transversal à Expedito Garcia. Ao analisarmos

o diagnóstico realizado pela empresa de consultoria contratada pela Prefeitura,

constamos que não existem dados suficientes sobre os ambulantes que subsidiem

este dimensionamento. Nem dados quantitativos ou qualitativos, mesmo quando

abordada questões referentes a mobilidade, ao trânsito e à atividade econômica. É

como se não existissem, salvo um mapa onde aparecem em classificação

semelhante aos demais obstáculos nas calçadas, como postes, lixeiras, ou outros

elementos construídos.

Os territórios tecidos por estes vendedores quando espacializam-se pela cidade

64 Detalharemos essa relação e o trabalho que desenvolvemos no bairro Alice Coutinho no capítulo

seguinte.

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trazem para o debate uma série de discussões que passam por questões de

(i)legalidade em relação a venda de mercadorias piratas, no não pagamento de

impostos e tributos, além da obstrução de vias públicas. Mas também atualizam as

possibilidades de apropriação e criação na cidade. Silva (2007) apresenta essa

relação em seu trabalho, no qual atribui ao ambulante a produção atual de territórios

na cidade através do modo como o próprio indivíduo se apropria dos espaços,

invertendo, trocando, transformando e adjetivando de modo inesperado os espaços

públicos planejados. Utilizando-se também do termo escape, a autora define essa

produção do ambulante como um escape por entender que são ―frestas encontradas

pelos usuários da cidade para a manifestação de uma subjetividade singular‖.

Pactuamos com a afirmação de Silva e apontamos neste comércio informal de rua a

possibilidade de escape pelo seu caráter de constante (re)criação em um universo

que tende a eliminá-lo. Refinar o contato com estes vendedores, aproximando-nos

do fugaz processo de territorialização estabelecido por eles no cotidiano urbano,

parece-nos outra porta por onde podem-se desdobrar cartografias e outras

compreensões acerca desta movimentação.

2.2.5 Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D’Água

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Figura 22 – Festas religiosas como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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―Iá iá você vai a penha? Me leva ô, me leva‖65

Este canto é trecho de uma música conhecida dos moradores do Espírito Santo seja

por estar incorporada ao tradicional repertório das bandas de congo locais, ou pelo

fato de ter sido popularizada no fim da década de 90 por uma banda capixaba 66 que

fez sucesso no estado unindo elementos do rock ao do ritmo popular, criando o

rockongo. Lembramos dessa canção na visita que fizemos a Prefeitura para

tomarmos conhecimento de informações sobre os vendedores informais de Campo

Grande.Lá, nos deparamos com uma agitação suscitada pela proximidade da festa

do Carnaval de Congo que acontece na área rural do município. Na ocasião, a

Secretaria de Cultura, em parceria com a Secretaria de Planejamento, estava

realizando um levantamento na comunidade de Roda D‘Água com o objetivo de

identificar e mapear os grupos de congo da comunidade, seus mestres e demais

integrantes. Tínhamos em mente partir da Prefeitura para Alice Coutinho, aceitando

o convite que recebemos de Verônica que encontramos em Campo Grande. No

entanto, atraídos pela festa do Carnaval de Congo em Roda D‘Água, desviamos

novamente do percurso imaginado. Convidamos alguns amigos e fomos

experimentar a festa.

65 Trecho de uma canção popular tocada pelas bandas de congo durante as festividades do Carnaval

de Congo de Máscaras, no Município de Cariacica-ES.

66 Banda Manimal.

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Figura 23 - Localização das bandas de congo e das comunidades rurais do município de Cariacica

Fonte: Encarte do CD Banda de Congo de Cariacica, ES-Brasil.

Instigou-nos a possibilidade de acompanhar esta festa-ritual que se atualiza

anualmente na comunidade através da realização do evento, recriando a

territorialidade do culto. A territorialidade não provém do simples fato de se viver

num lugar, mas da comunhão que se mantém com ele67. ―Territórios temporários‖,

são tecidos anualmente pelos devotos, mas a territorialidade das bandas de congo,

são cultivadas diariamente na comunidade quando práticas como a da confecção

dos tambores são ensinadas aos mais novos.

Tomamos novamente a Rodovia do Contorno, dessa vez por um curto trecho, e

67 SANTOS, 1997.

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atravessamos a pista em direção a zona rural do município. Deixamos a estrada

asfaltada e seguimos pela estrada de Roda D‘Água até encontrarmos a

movimentação que denunciava o evento. Encontramos as bandas de congo ainda

reunidas se preparando para a procissão pelas ruas da comunidade rural em direção

ao centro comunitário, onde se transforma em festa, que este ano se restringiu ao

encontro das bandas, sem o suporte já costumeiro de barraquinhas de comidas e

vendedores de bebidas. Os policiais encontravam-se de prontidão para que tal

determinação fosse cumprida. Soubemos pelos freqüentadores assíduos da festa

que no ano anterior haviam acontecido alguns tumultos e até alguns carros foram

atacados. Pelo fato de não apresentar uma estrutura que garantisse a segurança

dos freqüentadores no local, a prefeitura não teria permitido a realização da festa

que ocorre geralmente após a celebração religiosa. No entanto, próxima a área onde

estacionavam os carros que chegavam para acompanhar a celebração, nos

deparamos com um vendedor ambulante que utilizava sua kombi como se fossem

prateleiras de supermercado. De portas abertas, os produtos, inclusive as proibidas

bebidas alcoólicas, ficavam em exposição. Como dissemos no sub-item anterior,

onde houver concentração de gente, lá estarão os comerciantes informais de rua,

que por não se deterem exclusivamente a um ponto ou uma estrutura enraizada,

acompanham a movimentação das massas pela cidade.

Aproximamo-nos do som dos tambores, deixamo-nos envolver pelas cores em

movimento. Nos gestos, nas roupas, nas rezas, nas danças, nos ritos. Os corpos

rodopiam livremente pelas ruas de terra e lama. Entre eles, fiéis, moradores,

curiosos, admiradores e estudiosos, que rodopiam rememorando a subversão e a

conquista de tempos outros. Tempos em que a máscara do João Bananeira, hoje

adereço, camuflava e libertava para a festa o corpo prisioneiro da cor que trazia

impregnada na pele. Ao se tornar invisível, a pele preta – transmutada em múltiplas

cores de tecidos improvisados cobrindo o corpo em sua totalidade – forjava uma

indefinição quanto à sua condição de escrava e apropriava-se dessa possibilidade

temporária de, através da sua não identificação, suprimir barreiras, re-siginifcar

lugares e re-criar o território habitual pela ocupação simbólica do espaço pelo corpo

momentaneamente liberto. Um corpo em festa. Essa brecha no tempo durava o

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período em que os senhores, livres, deslocavam-se sem empecilhos – a não ser o

da distância – de Roda D´Água ao convento onde prestavam sua homenagem e

suas preces à Nossa Senhora da Penha, padroeira do Estado. Impedidos de fazer

tal percurso, os escravos criaram a sua própria festa, intitulada Carnaval de Congo

de Máscaras. A comunidade de Roda D‘Água manteve o ritual e anualmente recria-o

por três dias: Domingo de Ramos, Domingo de Páscoa e o dia da padroeira, Nossa

Senhora da Penha (uma semana após o Domingo de Páscoa).

Ao invés dos tradicionais hinos e cânticos católicos, ouvimos pelas ruas da

comunidade, em formato de cortejo, as músicas criadas e re-criadas pelos

descendentes dos escravos reproduzidas pelas bandas congo da região, que

prestam homenagem também a São Benedito.

A festa enquanto escape reinventa as relações entre os sujeitos e o ambiente

momentaneamente. Resignifica os espaços habituais através da alteração

temporária e regular de seu uso. Anualmente. Ruas que cotidianamente são

utilizadas para o deslocamento são apropriadas pelos fiéis em celebrações,

cerimônias, rituais e festas. Tecem circunstancialmente ―territórios sagrados‖ para

além dos muros e paredes de edifícios religiosos (igrejas, terreiros, templos,

conventos) que se desfazem, ou não, após o término das celebrações 68. Outras

festas religiosas acontecem tanto em Cariacica, quanto nos outros municípios da

região metropolitana, inclusive outros rituais nos quais participam as bandas de

congo, mas talvez pela sua peculiaridade do acontecimento lembramos da Festa de

São Pedro, realizada na praia do Suá em Vitória. Sua procissão subdivide-se em

procissão marítima e terrestre. Diferentes relações se estabelecem nesta ocasião.

Em Roda D‘Água, a cidade ―invade‖ a comunidade e o município enquanto

administração, apropria-se da festa e faz dela sua ―bandeira‖ cultural. Atualmente a

68 Em alguns casos, esses territórios deixam marcas visíveis, que se transformam em marcos

urbanos, como por exemplo a ―Cruz do Papa‖, em Vitória – ES. Outras vezes, são os marcos e símbolos religiosos que determinam o local dos festejos, como por exemplo, a Festa da Penha, em torno do Convento de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha – ES.

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administração pública participa de perto da organização desta festa que há algum

tempo tinha a comunidade como produtora exclusiva da festividade. A maioria dos

integrantes das bandas e atuantes no movimento organizado da região podem até

não concordar com a forma como o processo é conduzido, mas todos cobram do

poder público mais apoio e patrocínio para as bandas. Como é o caso do Mestre

Tagibe, que acha que as bandas de congo são pouco solicitadas para participarem

de eventos oficiais municipais por cobrarem cachê.

Mestre Tagibe é um dos mestres de congo morador de Roda D‘Água. Viemos a

encontrá-lo posteriormente a nossa ida à comunidade, trabalhando de vigia na

Secretaria Municipal de Educação de Cariacica. Através dessa descoberta pudemos

entender um pouco mais sobre o micro-universo dos moradores da comunidade e

integrantes das bandas. Seu Tagibe sempre viveu em Roda D‘Água e desde

pequeno acompanhava seu pai, também mestre de congo, quando este saía para

tocar. ―Com meu pai aprendi a ser congueiro‖, conta ele. Morar na área rural era

muito duro pois enfrentavam várias dificuldades. Ser congueiro também era difícil,

pois era comum que as pessoas não reconhecessem o valor dessa manifestação.

Ele conta que chegaram a ser apedrejados, ao realizarem algumas apresentações, o

que os deixou muito ―chateados‖. Para Seu Tagibe, hoje a situação está diferente,

pois existe esse reconhecimento. Para ele, isso se deu também pela importante

participação dos jovens, com mais ―instruções‖ neste movimento. ―Porque no nosso

tempo o pessoal tudo não sabia ler, saber escrever o nome era pra rei, entendeu?

Hoje você vê gente que já acabou os estudos tocando congo, outras pessoas mais

inteligentes, tudo...‖, conta o Mestre. Existe um esforço em resgatar certas práticas,

como a confecção de instrumentos e difundi-la aos mais novos. Seu Tagibe acredita

que seja esse o seu papel, pelo fato de ser mais velho e ter acompanhado seu pai e

os antigos mestres sempre que saíam para tocar. ―O que me inspirou a fazer esse

tambor é trazer os antepassados pra dentro da banda. Meus avós...‖.

Destas relações singulares, cotidianas, cultivadas por estes homens lentos, não

mais isolados na área rural, mas participantes ativos da vida urbana e ocupando

principalmente os lugares que lhes são reservador na cena política, vislumbramos

possibilidades de escape pautadas no conhecimento cego que possuem deste

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território, construída a partir dos limiares onde cessa a visibilidade69·.

2.2.6 Deslocamento 06: Roda D’Água – Alice Coutinho

69 CERTEAU, 1994.

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Figura 24 - Ocupação como escape. Esquema do percurso e dos encontros

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Figura 25 – Movimentação de ciclistas em Cariacica Sede

Figura 26 - Acesso principal de Alice Coutinho

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De Roda D‘Água partimos para nosso encontro em Alice Coutinho. Tínhamos que

presenciar o ritual do chá de panela que povoa o imaginário das meninas de

diferentes classes sociais. Deslocamo-nos em direção à antiga sede do município,

localizada a cerca de 20 Km do Centro de Vitória, na Rodovia José Sette (ES-80)

que atravessa o município rumo a Santa Leopoldina. Ao longo da rodovia, surgiram

na década de setenta outros bairros, como Itacibá, Tucum e Santana. A Sede

Municipal, gradualmente perdeu as características de núcleo independente para

tornar-se um dos subúrbios conurbados ao Núcleo Central, deixando de abrigar o

edifício-sede da Prefeitura Municipal. Esse crescimento pulverizado prosseguiu na

década atual, fazendo de Cariacica o município mais populoso do Estado, mas com

os índices sociais e de serviços urbanísticos abaixo de quase todos os demais da

Região Metropolitana70.

No período entre 89/9871, as ocupações das áreas vazias no município ocorreram de

forma disseminada no espaço urbano, uma característica de ocupação peculiar ao

município de Cariacica. Porém observamos que, em algumas áreas, essas

mudanças ocorreram mais significativamente. Próximo á sede, os novos

loteamentos ocorreram dispersos dentro da área urbana, enquanto a ocupação

irregular foi mais intensa. As ocupações ou parcelamentos que tiveram suas

densidades modificadas mais intensamente, mudando de vazio ou baixa densidade

para média ou alta densidade, ocorreram principalmente às margens das rodovias

BR-101 e ES-080. É exatamente na via de ligação dos bairros Sede e Residencial

Prolar que está localizado o acesso para Alice Coutinho.

Inserido em uma Zona Especial de Interesse Social – ZEIS72, o bairro teve sua

origem na ocupação ocorrida em 1996, organizada pelo Movimento Nacional de Luta

pela Moradia em Cariacica – MNLM.

70 ABE, 1999.

71 INSTITUTO DE APOIO À PESQUISA E AO DESENVOLVIMENTO JONES DOS SANTOS NEVES,

2001.

72 Plano Diretor Municipal, 2008.

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Figura 27: Imagem produzida a partir de imagens do Google Earth, delimitação das ZEIS no PDM Cariacica (2009) e inserção de marcadores localizando Alice Coutinho; os municípios vizinhos; Campo Grande; limite da área urbana.

Chegamos ao bairro retribuindo ao convite que recebemos. Tivemos a oportunidade

de conversar com moradores antigos e novos, adultos e crianças. Pudemos

perceber o crescimento do bairro nestes últimos quatro anos. Parece-nos que quase

todos os lotes estão ocupados. Evidente também é a constatação de que o bairro

não é um conjunto homogêneo e uniforme. O contraste das edificações mais

recentes, ainda barracos de madeira, com as construções mais antigas em maior

número, a maioria já em alvenaria, é evidente. Esta diferenciação não diz respeito

meramente à tipologia ou a qualidade construtiva das habitações. É como se o

bairro possuísse territórios específicos pertencentes a determinados grupos, com

áreas permitidas, áreas restritas, algumas mais permeáveis, áreas de sobreposição

harmônica, áreas hostis a quem não é do bairro, etc. Circulamos pelas ruas na

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companhia de algumas crianças conhecidas e ao passarmos por determinadas

áreas era comum ouvir comentários como: ―a gente nunca vem aqui‖, ou ―eu não

conheço nenhuma menina daqui‖. Quando questionamos a razão disto, geralmente

ouvíamos: ―minha mãe não gosta, porque diz que é perigoso‖, ―só tem gente

estranha‖, ou coisas do tipo. Essa idéia de perigo, aliás, apareceu outras vezes nas

conversas das crianças. Talvez esse fato explique o pequeno número de crianças

brincando pelas ruas do bairro e no vazio central destinado para a praça (ainda não

executada). Foram relatados pelas crianças episódios de violência como um

esfaqueamento na praça, rotineiras batidas policiais por conta de tráfego de drogas,

dois assassinatos, além das constantes fugas de menores internos da UNIS-

Unidade de Integração Social do ICAES – Instituto da Criança e do Adolescente do

Espírito Santo, que procuram esconderijo no bairro. Os comentários sobre a questão

da violência não ficaram restritos apenas ao bairro, mas também envolviam os

bairros vizinhos. Sobre o bairro Pró-Lar, por exemplo, comentaram que: ―Aqui [Alice

Coutinho] se comparado com o Pró-Lar, até que não está tão tenso. Lá está tenso!

As crianças não podem nem ficar na rua... E é férias! Porque se tiver na rua e a

polícia passar vai junto. Eles não respeitam nem menina... E pressiona até dizer

onde é a boca. Mas os meninos esconderam tão bem que ninguém sabe... Nem a

polícia acha. Dizem que vão mandar a Tropa de Elite!‖

Para entendermos como se deu o processo que originou o bairro, recorremos a duas

pessoas que acompanharam desde o início sua ocupação e tiveram papel

fundamental no seu surgimento: Paulo Assis e Elias Ferreira Nunes. Os dois fazem

parte do Movimento Nacional de Luta para Moradia- MNLM no Espírito Santo. Elias

atua no Movimento desde 1996 e Paulo é mais antigo. Os dois contam que se

envolveram inicialmente no movimento dos bairros onde moravam (que também

surgiram de ―invasões‖) motivados pela Comunidade Eclesial de Base, da Igreja

Católica, na qual participavam. Percebemos este movimento atuando como

dispositivo que, ao agregar diferentes atores, potencializa outros desdobramentos.

Observamos que ainda hoje, ainda que em menor intensidade, a igreja católica

possui um papel relevante na constituição de movimentos, ou grupos sociais do

município. O envolvimento do Elias no movimento de moradia aconteceu devido a

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um convite da associação de moradores de Porto Novo para auxiliar no

cadastramento das famílias para o processo de uma nova ocupação que seria feita

em Vila Oásis (também no município de Cariacica).

―Aí, eu fui entender, porque a importância da moradia na vida de uma

família. Porque você via as pessoas falando, via as pessoas

colocando a situação delas. E foi como o Paulo falou. Quando você

começa a falar de moradia para alguém que não tem, você começa a

entrar na questão da moradia. Mas também na questão da vivência

delas, da gente mesmo.‖ (Elias)

A ocupação de Vila Oásis foi um processo demorado, pois a área era difícil de ser

ocupada por existir ali uma plantação de eucalipto, o que levou o grupo a optar pela

ocupação de outra área, em Areinha. Essa área é hoje o bairro Alice Coutinho.

É importante ressaltar que a administração pública do município de Cariacica é

marcada pela corrupção e descontinuidade administrativa. Com isso, a ausência de

políticas habitacionais agravou mais ainda o problema da moradia no município. Em

um período de 20 anos, o município teve 12 prefeitos (quando deveria ter tido 5).

Vários deles foram afastados do cargo por irregularidades administrativas.

Tabela 1 - Prefeitos do Município de Cariacica a partir de 1983

1983 a 1984 Vicente Santório Fantini Em 10/84 se afasta devido a um derrame cerebral.

1984 a 1986 Nelço Secchin (Vice-Prefeito): Assume em out/84. Em fev/86, é afastado sob a acusação de corrupção.

1986 a 1987 Claudionor Antunes Pinto: Permanece de 12 de Fevereiro de 1986 a 04/87, como interventor.

1987 a 1989 Milton da Rocha Melo: Presidente da Câmara que assume em abril/87 a janeiro/89, em lugar do interventor.

1989 Vasco Alves de O. Júnior: Governou de 1 de janeiro de 1989 a 18 de maio de 1989. Afastado por acusação de irregularidades administrativas.

1989 Augusto César Meloti Melo: Vice assume o lugar de Vasco

1989 Vasco Alves de O. Júnior: Governou durante 14 dias. Afastado após anulação de uma Liminar

1989 Augusto César Meloti Melo: Governou durante os meses de setembro e outubro.

1989 a 1992 Vasco Alves de O. Júnior: Retorna à Prefeitura por decisão do Conselho Superior da Magistratura do Espírito Santo. Reassume em 3 de Outubro de

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1989 até 04/92

1992 Augusto César Meloti Melo: Governou de 04 à 12/92

1993 a 1996 Aloízio Santos: Eleito e empossado sob a égide da Lei Orgânica do Município de Cariacica

1997 a 2000 Dejair Camata: Morreu em acidente automobilístico em 26 de março de 2000

2000 Jesus dos Passos Vaz: Assumiu no dia 26/03. No dia 1° de novembro foi afastado pela Câmara de Vereadores

2000 Joscelino Miguel da Silva: Assumiu na manhã do dia 2 de novembro

2001-2003 Aloísio Santos: Assumiu o cargo no primeiro minuto, numa iniciativa inédita, tendo sido o primeiro prefeito do País a assumir o Governo de madrugada. A solenidade na Câmara foi bastante concorrida pelos políticos, população e imprensa, pela novidade.

2004-2008 Helder Salomão: Candidato do PT, se elegeu com 72,46% dos votos, contra 27,54% do candidato a reeleição Aloízio Santos.

Na visão do Elias, a prefeitura de Cariacica viveu no governo de Vicente Santório

(1983-1984) um dos piores momentos de uma política baseada no populismo, sem

planejamento, onde famílias ficaram ricas com a distribuição de terras do município

e aprovação de loteamentos irregulares.

É neste contexto de instabilidade administrativa e ausência de proposições para a

questão habitacional que aconteceram diversas ―invasões‖ no município, como Porto

de Santana e Flexal.

―Não se planejou nada. Famílias ficaram ricas. As nossas terras

foram distribuídas para famílias. Pode ir lá, em Porto de Santana ver.

Os bairros ficaram sem planejamento.‖ (Elias)

Nas ocupações, era comum acontecerem desentendimentos entre os envolvidos:

―O povo ia marcando, pegava aquelas cordinhas e cada um marcava

o seu. E as mortes que aconteciam era por causa da questão dos

lotes‖ (Elias)

Outra questão presente nas ocupações é a questão da especulação imobiliária. A

maioria destas ocupações ocorreu em locais sem nenhuma infra-estrutura e foi

ocupada por pessoas que não possuíam condições financeiras sequer para a

compra de materiais de construção. No entanto, a pressão dos moradores sobre o

poder público, acabou por algumas vezes refletindo em resultados e melhorias para

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o bairro. Quando isto acontecia, era comum que aparecessem especuladores

interessados em comprar estes lotes:

―A gente não consegue controlar os especuladores, que há um

monte. Tem pessoas que têm uma certa condição e ele vai e tira

aquela família dali. E aquilo fica servindo pra ele ter ganho depois.‖

(Paulo)

Nunca existiu no município uma proposta clara para a questão habitacional

defendida pelos governantes; no entanto autorizavam-se, de maneira irregular,

novos loteamentos, sem infra-estrutura.

―E aí o que acontece, fica o bairro totalmente abandonado e a

administração pública não tem condição de atender todos os

loteamentos clandestinos que vai sendo formado. Leva o povo que é

necessidade de organizar pra ir cobrar a água, a iluminação pública,

cobrar esgoto e transporte. (...) Enquanto as administração poderia

fazer um projeto pra habitação com toda infra-estrutura, eles prefere

atender as necessidades das imobiliárias, que deixa os loteamento

clandestino. (...) A prefeitura muita das vezes da mais oportunidade

pra essas imobiliárias do que construir o projeto.‖

Na ocupação de Areinha, o processo foi diferente dos demais. Com o aprendizado

das ocupações mais antigas – que aconteceram sem nenhum planejamento e hoje

apresentam carências de espaços e equipamentos públicos – o Movimento

modificou sua postura.

―Quando eu entrei no movimento a nossa filosofia já era outra. Olha,

nós vamos ocupar, mas primeiro nós vamos ver aonde nós estamos,

e o que vai acontecer no futuro com relação às ruas, a praça. Então,

na ocupação que nós fizemos lá, nós pensamos nisso. Deixamos as

ruas, deixamos a praça, espaço para escola, espaço para centro

comunitário, creche. Lá tem muitos espaços pro público. E foi difícil

segurar o povo pra isso. Nós tivemos que enfrentar muita resistência

do povo. Nós deixamos uma praça num lugar privilegiado, então as

pessoas achavam que ali tinha que ser moradia.

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A gente vai conversando com as pessoas e hoje muitos que estavam

lá até tem uma certa consciência, mas no geral numa ocupação vai

quem chega primeiro, ocupa e pega o melhor espaço. Hoje nós não

queremos só ocupar o espaço. Nós queremos construir um projeto

de um bairro, onde todos possam morar com qualidade de vida.‖

(Elias)

Neste processo, a decisão de estabelecer espaços que seriam públicos para o bairro

foi previamente definida, ainda que alguns moradores fossem contrários por

acharem desperdício de espaço. No entanto, na fala do Paulo é possível entender o

posicionamento do Movimento e seus líderes nesta iniciativa de planejar o bairro:

―Isso era falta de experiência mesmo. É que a necessidade obrigava

a gente a fazer uma coisa que a gente não tinha grande experiência

pra ta fazendo hoje. Hoje não, com o decorrer da caminhada a

experiência foi chegando e fomos de fato pensando diferente.

Adianta ocupar pra deixar o povo sofrer sem ruas, sem esgoto, sem

nada. Ou adianta planejar? E aí nós fomos nos organizando.‖ (Paulo)

Enquanto possibilidade de fazer cidade, consideramos muito rica a produção e

espacialização de ocupações como esta, motivadas pela escassez e conquistadas

coletivamente por um grupo heterogêneo na tessitura de um novo território. Assim

como no caso do comércio informal, propomos que a questão da moradia seja aqui

pensada para além do binômio legalidade/ilegalidade, já há bastante tempo inserido

na lógica do fazer cidade73. Enxergamos as ocupações como um rompante, de certa

forma, na lógica do mercado imobiliário e das políticas públicas voltadas para

habitação. Interessa-nos sua complexidade e diversidade. Polvilhando em várias

73 Em São Paulo (1886) e Rio de Janeiro (1889), os códigos de postura tornaram proibitiva a

construção de cortiços nas áreas centrais que assim como a prática da autoconstrução da moradia, proliferavam-se. (MARICATO, 1997).

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cidades brasileiras, as ocupações tecem um território espacialmente descontínuo

embora com conteúdo semelhante. Configuram um ―território-rede‖74 de ocupações.

Diante dos diferentes escapes aqui apresentados, podemos perceber o quão

múltipla e complexa são as relações sócio-espaciais e afetivas estabelecidas na

cidade. Propomos então, dar continuidade a esta investigação, aproximando-nos

deste último encontro, refinando a pesquisa através do contato direto com os

moradores que residem em Alice Coutinho, a partir do qual desenharemos novos

traços de horizontes emancipatórios neste paradigma emergente75.

74 HAESBAERT, 2006.

75 SANTOS, 2006.

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3 APROXIMAÇÃO CARTOGRÁFICA 02: Micro-Universo Ocupação

Alice Coutinho (Cariacica – ES)

Figura 28 - Localização de Alice Coutinho no Território Base: Grande Vitória

Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).

Permanecemos em Alice Coutinho. O ―ponto final‖ de um extenso percurso

percorrido no capitulo anterior, no qual atravessamos e nos aproximamos de

diversos territórios. Nesta segunda aproximação, damos continuidade à linha

metodológica adotada, optando por ampliar o encontro com a ocupação, hoje bairro,

Alice Coutinho. Essa aproximação se dará através do estabelecimento de novos

encontros, com o intuito de refinarmos a investigação sobre este escape específico.

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Tomamos como referência a leitura do lugar a partir das conversas com seus

moradores, que gentilmente nos guiaram pelos passos e espaços que percorreram

até chegarem à ocupação e realizarem nela sua necessidade/desejo de habitar.

Nesta busca, foi feito um esforço no intuito de não reduzirmos a leitura sobre o

habitar em habitat76·, isolando-o na sua função de moradia. Nem de reduzir a

discussão à questão legal da propriedade. Ao analisarmos o histórico das lutas pela

moradia no Brasil77, notadamente verificamos a indissociabilidade da luta pela

moradia de outras lutas como a luta por melhor qualidade de ensino, lazer, trabalho,

transporte, mobilidade, saúde, etc.

Entendemos a ocupação como a realização de um processo de singularização e

rompimento com o modo de produção da subjetividade que caracteriza as

sociedades contemporâneas. Rompe-se – a princípio – com a tradicional

especulação imobiliária que ao longo dos anos vem ditando as regras do jogo na

organização e valoração das cidades. Rompe-se também com o posicionamento

dependente em relação ao Estado como provedor universal, ainda que estes

rompimentos sejam passíveis de adaptações, reformulações, e por vezes,

reaparições. A questão da especulação, por exemplo, ressurge redimensionada e

atualizada no interior das ocupações. Flexíveis e mutáveis há sempre algo de

precário e frágil na constituição dos escapes que ameaça sua existência enquanto

singularidade. Existe sempre o risco de serem recuperados, seja por uma

institucionalização, por um devir-grupelho78, pela rigidez hierárquica das

organizações, ou mesmo pelo indivíduo como sugere Baumann (2001). Para ele o

indivíduo é o oposto do cidadão e tende a buscar seu próprio bem-estar através do

bem-estar da cidade. Para tanto insiste na reencarnação dos modelos dominantes.

Para Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005), a subjetividade capitalística possui uma

força que se produz tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos. Nesse

sentido, entendemos que inserida nesta movimentação, a ocupação enquanto

76 LEFEBVRE, 1991.

77 GOHN, 1991.

78 GUATTARI & ROLNIK, 2005

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escape, se realiza não como uma constância, mas como uma alternância de

tempos, sentido e significado, composta por ciclos de aceleração, estabilização,

apagamento e ressurgimento na qual a produção de subjetividade traz

possibilidades de desvio e reapropriação.

No conjunto das dinâmicas inseridas neste processo de mutação espacial, social e

econômica, persiste um ―potencial escapatório‖ capaz de alavancar uma seqüência

de revoluções moleculares, a despeito do modo de funcionamento do

grupo/grupelho que por vezes se realiza no interior destas revoluções, de forma

retrógrada e autoritária. Cabe indagarmos o que de fato está em jogo nesse caso?

Munidos de tais questionamentos adentramos Alice Coutinho e nos aproximamos de

seus moradores com o intuito de realizarmos uma leitura sensível deste micro-

universo, que contribua para ampliar o entendimento acerca da formação dos

escapes na cidade. São diversas as abordagens possíveis. Optamos pela

construção de uma tessitura através da qual as relações sociais, os conflitos, os

diálogos e a sociabilidade entre os moradores da ocupação fossem se

descortinando. Construir um conhecimento sobre a ocupação a partir dos encontros

com seus moradores é perceber de que maneira os sujeitos se movimentam

organizando, expressando e construindo a realidade em que vivem. Entendemos

que assim conseguiremos nos desvencilhar das leituras ―oficiais‖ e consensuais

sobre as ocupações e avançar na direção da construção de uma narrativa coerente,

pautada nas experiências vividas por estes praticantes ordinários da cidade.

Santos (2006) define a razão ocidental como razão indolente, cuja indolência é

responsável pelo imenso desperdício da experiência social, contribuindo para a

disseminação do pensamento único. Embora ele não fale de cartografia, por sua

proposta de investigação estar pautada em uma racionalidade ampliada, não apenas

no que diz respeito a novos conhecimentos, mas em novos processos de produção

de conhecimentos79, consideramos coerente a aproximação deste autor com o

79 SANTOS, 2006.

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método. Em questão está o comprometimento com uma produção de conhecimento

desvencilhada de formulações pré-estabelecidas.

3.1 Procedimentos Metodológicos 02

Entendemos que a investigação aqui proposta é uma continuação da investigação

realizada no Capítulo 2. Ali, agrupamos os escapes em possibilidades de

espacialização levando em consideração a forma como se realizavam no meio

urbano, sendo uma delas as ocupações. Cada grupo de escapes abarcou encontros

diferenciados a partir dos quais se desenvolveu a leitura sobre aquela possibilidade.

Alice Coutinho foi um desses encontros e propomos sua ampliação e refinamento

aproximando-nos de alguns moradores. São nos encontros que os componentes

destes grupos e movimentos são apresentados enquanto singularidades, enquanto

estratos possíveis da multiplicidade.

3.1.1 Tempo

As investigações em campo foram realizadas em um intervalo de tempo que vai de

março de 2007 a dezembro de 2009, estando a maior parte das entrevistas e

conversas com os moradores concentradas entre setembro de 2008 e janeiro de

2009. As informações e leituras que realizamos sobre Alice Coutinho, no entanto,

carregam um conhecimento anterior do lugar devido ao fato de a pesquisadora ter

trabalhado no bairro no Projeto de Extensão Célula, entre 2004 e 200580, e também

ter realizado uma proposta de intervenção projetual na área em seu Projeto de

80 O Projeto ―Desenvolvimento sustentado do bairro Alice Coutinho, Cariacica-ES‖ foi realizado pelo

Programa de Extensão CÉLULA- Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo do DAU-UFES, entre os anos de 2004 e 2005 sob a coordenação do Prof. Milton Esteves Júnior. O projeto foi inserido em uma experiência acadêmica de integração das disciplinas Projeto de Arquitetura 7 e Urbanismo 4 e o Programa de extensão. A experiência resultou em um Dossiê contendo o diagnóstico da ocupação realizado pelos alunos e os projetos resultantes das disciplinas que foi entregue aos moradores da ocupação e representantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia.

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Graduação em 200681.

3.1.2 Espaço

A área delimitada pelo MNLM durante o processo de ocupação de Alice Coutinho é

nossa referência, apesar de seus limites estarem sujeitos a expansão ou retração

caso faça-se necessário a partir das leituras realizadas. Transitar pelos espaços por

onde transitam os moradores implica em entender e ampliar o entendimento sobre

esse escape para além do deslocamento físico da pesquisadora. O território da

ocupação como categoria de análise só tem valor quando vinculado ao uso e aos

atores simultaneamente. Definimos esse território transitando pelo universo de

informações diversificadas, que em diferentes situações forneceram-nos subsídio

para incluirmos nesta aproximação cartográfica grupos, pessoas, lugares, eventos,

etc. que extrapolariam a proposta de um recorte espacial mais rígido.

3.1.3 Procedimentos

Praticaremos a cartografia como procedimento e construção. A ela está associado o

ato de nos lançarmos na busca por informações e impressões que contribuam para

a construção desta narrativa que inclui observação, conversas formais e informais

com diferentes atores – moradores, representante, coordenadores do MNLM, etc. –

pesquisas bibliográficas, pesquisas na internet, deambulações pela cidade, visitas à

Prefeitura Municipal de Cariacica, conversas formais e informais com os técnicos da

Secretaria de Planejamento, etc.

Buscamos desenhar o campo de força no qual encontram-se os moradores da

81 O Projeto de Graduação denominado ―Arquitetura e Informação: uma investigação sobre espaços

públicos e acesso a informação‖ aborda a inclusão de políticas públicas voltadas para a instalação de equipamentos e estruturas tecnológicas que cumpram a função de potencializar as trocas e a comunicação entre as periferias das cidades.

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ocupação. Informações referentes ao seu cotidiano, suas atividades, suas

necessidades, queixas e desejos foram fundamentais para que penetrássemos nos

espaços visíveis e nas opacidades deste bairro. Não se trata de dar conta de toda a

problemática, complexidade e histórico das ocupações no Brasil através de um

estudo de caso. Optamos por investigar esses moradores, ―ex-sem-teto‖,

entendendo-os não como conformadores de um determinado segmento social, mas

de uma determinada forma de inserção no espaço urbano. Ao tomarmos como fio-

condutor os depoimentos de alguns de seus moradores estamos conscientes que tal

atitude implica em fazer escolhas dentro de uma pluralidade de opções possíveis.

Entendemos que esta postura inverte a lógica de compreender primeiramente toda a

extensão do objeto para depois investigarmos suas práticas. No entanto, interessa-

nos caracterizar a constituição de territórios, a partir de suas práticas e seus modos

de vida. Os modos de vida, se atribuídos a totalidade do segmento sem-teto, ou dos

invasores e ainda dos moradores, culminaria em parâmetros esvaziados ou seu

contrário, parâmetros artificialmente criados que tentam englobar uma totalidade que

é irreal.

Para tanto consideramos fundamental colocar ―na mesa‖ todas as informações e

dados produzidos em campo para que possamos identificar e (re)articular as linhas

que os conectam de forma tal que seja possível realizarmos uma leitura desta trama

urbana que nos é tão cara nesta proposta de investigação. Coordenamos 3 ações

que apresentam como resultado 3 movimentos: emaranhar, desemaranhar, tecer.

Ao emaranhar, tratamos de exteriorizar as informações absorvidas e produzidas no

campo, na qual coexistem diferentes construções, afetos, espaços e tempos de Alice

Coutinho e seus moradores. Essa figura de linguagem remete a essa compilação

sobreposta de fluxos variados de informações que tomamos como base para a

produção de nossa cartografia.

Ao desemaranhar, tratamos de expor de forma l inteligível? as informações

produzidas, destrinchando e caracterizando as principais linhas de força

encontradas, para sua conseguinte distinção, rearticulação, costuras e novas

tessituras. Essa figura remete a questões de legibilidade e agrupamento do

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conteúdo produzido.

Por fim realizamos a tessitura das relações, amarração, conexões, entrelaçamentos

e construções desta trama complexa, deixando inevitáveis ―fios perdidos‖ e pontos

sem arremate.

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Figura 29 – Imagem ilustrativa simulando as informações sobrepostas sobre Alice Coutinho produzidas em campo.

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Figura 30 – Imagem ilustrativa simulando o traçado de Alice Coutinho com informações e impressões produzidas em campo organizadas de forma legível que auxiliou-nos nas análises sobre o bairro.

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Figura 31 – Quadro ilustrativo simulando as informações expostas e agrupadas e algumas articulações e conexões realizadas entre elas.

Ao exteriorizarmos, começamos a organizar as informações, conectando e tecendo

algumas das relações possíveis entre aquele lugar e os elementos que o compõem

– sejam eles as pessoas que conversamos e outras mencionadas no decorrer da

pesquisa, os fatos importantes, as movimentações cotidianas, etc.

Percebemos a existência de algumas linhas guias que estruturam ou atravessam o

discurso sobre o surgimento da ocupação, sua consolidação enquanto bairro e a re-

estruturação das vidas dos moradores que optaram reconstruir suas vidas lá. Linhas

de tempo e espaço resultaram em diferentes velocidades entremeadas por afetos e

desafetos, relações de poder, conquistas, medo e esperança.

Detectamos 3 linhas de força/movimento recorrentes durante o trabalho de campo,

que entendemos como resultantes do entrelaçamento de três tempos: o tempo da

memória, o tempo da ação, e o tempo da esperança. Embora impregnada de uma

lógica temporal, a proposta não pretende ser um ―relato‖ linear da trajetória do

bairro. Cada um desses tempos apresenta diferentes temporalidades, advindas das

mais variadas dinâmicas e acontecimentos.

Tempo da memória: Remete aos fatos que antecederam o início da

ocupação, marcados quase sempre por processos relacionados a perdas e

dificuldades que de alguma maneira se confluíram nesse escape realizado

como ocupação.

Tempo da ação: É caracterizado pela fixação do grupo, antes disperso. São

os processos de territorialização e significação que, instáveis e dinâmicos,

constituíram e constituem cotidianamente a comunidade. É o tempo da

construção de um conhecimento coletivo sobre o lugar. Lugar novo, novo

aprendizado e novas formulações onde a ocupação enquanto prática espacial

apresenta-se como detonadora de uma consciência política pautada nos

direitos do cidadão – ainda que não totalmente desvinculada de uma

consciência política politiqueira. A ocupação só se realiza no coletivo. Não se

realiza enquanto uma fuga egoísta. Precisa de gente.

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Tempo da esperança: Esta terceira linha é uma projeção a partir de

perspectivas concretas ou não, na qual vislumbramos futuros possíveis

utilizando como referência não apenas o presente (e o passado)

materializado, mas os presentes possíveis não realizados que permanecem

enquanto força, enquanto potência, enquanto gérmen de mudança. Nesta

direção apontamos a superação do aspecto negativo do bairro invadido pelo

aspecto positivo de comunidade através da produção de uma nova história,

sempre em construção pelos sujeitos e pela conjunção de forças existentes,

da qual apontam conquistas políticas, na esperança da criação de saídas que

atualizem a utopia da cidade.

3.1.4 Os encontros

A aproximação da pesquisadora com a ocupação se deu principalmente pelos

encontros estabelecidos. Realizamos conversas formais e informais com alguns

moradores nas quais abordamos questões referentes ao processo de constituição

da ocupação, ao cotidiano e a expectativas futuras. Deixamo-nos ser guiados por

eles nestas conversas de forma tal que, ao invés de definirmos um roteiro rígido de

perguntas, optamos pela flexibilização do itinerário respeitando o rumo tomado por

cada morador, aprofundando naquilo que cada um apresentasse como mais

relevante. As conversas passaram de alguma forma pela questão da participação

dos moradores na construção da ocupação e da reconstrução da própria vida

naquele espaço. Passaram também pela construção das suas casas, pela relação

estabelecida com o a coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia de

Cariacica – MNLM – e com os demais moradores.

O universo dos encontros e sua trajetória foram sendo desenhados na medida em

que as conversas aconteciam. Os próprios moradores, quase sempre, indicavam

outros moradores para fazermos contato, contribuindo para a construção de uma

narrativa apoiada em práticas comuns, experiências particulares, solidariedades e

lutas. Um percurso repleto de idas e vindas, que foram abrindo caminhos e

delimitando o campo/espaço-tempo a ser percorrido. São histórias e pessoas que se

cruzam acrescentando, confirmando ou contradizendo informações, que redefinem a

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todo o momento os contornos deste escape.

O trabalho não tem a intenção de causar mal estar nem constrangimento aos

moradores de Alice Coutinho ou atuar como delator de atividades ilícitas que

possam estar acontecendo no bairro. Menos ainda de expor seus moradores a

situações comprometedoras. Certos cuidados foram tomados neste sentido, como a

substituição dos nomes reais dos moradores por nomes fictícios e entrelaçamento

das histórias e informações fornecidas82. As falas referentes a assuntos mais

delicados foram agrupadas e dissolvidas de forma tal que não seja possível

identificar a fonte das informações.

Camila83, adolescente e moradora do bairro, atuou como uma espécie de ―fio de

Ariadne‖ conduzindo-nos pelo bairro e auxiliando-nos no contato com os demais

moradores.

Estiveram diretamente envolvidos em nossos encontros 12 moradores, com idades

que variam entre 17 e 83 anos, além de outros tantos cujos contatos estabelecidos

foram mais fugazes. O que mora há mais tempo na ocupação está lá desde o início

(1996) e o que chegou por último mora há apenas 04 anos (2004). Dentre os

moradores, alguns são atuantes no Movimento, possuindo inclusive algum cargo na

coordenação municipal, enquanto outros apenas acompanham a luta de longe. São

segmentaridades de um agenciamento coletivo pautado na participação ativa de

diferentes sujeitos movidos por lógicas particulares e comuns, impulsos, desejos e

experiências articuladas em uma trama de relações sócio-espaciais que tem na

ocupação uma possibilidade de realização de experiência compartilhada de

territorialização na cidade.

82 Os coordenadores do Movimento Nacional de Moradia, Paulo Assis e Elias Ferreira foram

identificados com seus nomes verdadeiros por já se tratarem de pessoas públicas.

83 A partir daqui já usaremos os nomes fictícios, exceto dos representantes oficiais do MNLM.

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3.1.4.1 Proposta-registro

Como proposta capaz de apresentar este entendimento empírico sobre a ocupação

produzido no campo, sugerimos a produção da cartografia a partir dos 3 tempos-

movimentos identificados em campo: tempo da memória, tempo da ação e tempo da

esperança. Como subsídio para a elaboração desta cartografia, nos utilizamos dos

registros dos encontros, parcialmente gravados em mp3 e sistematizados. Estes

registros servirão como ferramentas que nos auxiliarão nas leituras e interpretações

deste escape. Outras fontes utilizadas foram imagens, mapas e anotações

registradas no diário de bordo ao qual recorremos por diversas vezes para

resgatarmos impressões e anotações realizadas no campo. Conectando estes

fragmentos, utilizaremos da narrativa que, assim como a apresentada no capítulo

anterior, não pretende ser fiel na sua relação espaço-tempo com os acontecimentos.

São enfocados recortes que falam das práticas cotidianas, dos itinerários

percorridos, dos afetos, da rede de relacionamentos, do visível, do que é passível de

apreensão ainda que fluido, do simultâneo. Estes recortes representam leituras

possíveis de um território multiplamente construído.

3.2 Movimentos

[Des][re]territorializações. Movimentos de ruptura da ordem na vida de seus atuais

moradores que oriundos de diferentes lugares e carregados de motivações também

diferentes, deslocaram-se rumo à ocupação. Sem-teto ou não84, são pessoas que

por diversos motivos estavam em condições de vulnerabilidade no que se refere ao

habitat: meeiros expulsos do campo, sobreviventes de chacinas, dissidentes de

outras ocupações, desempregados sem condições de arcar com as despesas de um

aluguel ou moradores de periferias precárias e esquecidas, através de uma corajosa

afirmação da vida lançaram-se em direção à criação de novos agenciamentos sócio-

84 Embora nenhum dos entrevistados tivesse casa própria, poucos foram os que não possuíam de

fato um lugar para morar. No entanto as condições em que viviam anteriormente estavam distante do que se possa imaginar enquanto ideal de moradia. Existiram casos também em que as pessoas ocuparam para vender ou alugar, não cabendo classificá-los como ―sem-teto‖, uma vez que seu objetivo não é de conquistar um abrigo, mas o de lucrar com futuras negociações imobiliárias.

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espaciais.

Figura 32 - Esquema dos deslocamentos para a ocupação em relação ao local de origem de seus moradores

3.2.1 1º Movimento: Tempo da memória

Foi a reação de medo e apreensão de algumas crianças ao perceberem o som dos

helicópteros da polícia sobrevoando o bairro no dia em que realizávamos em Alice

Coutinho parte de nossa pesquisa de campo, que detonou em nós o interesse por

conhecer as histórias que carregam seus moradores, acreditando que estas

experiências que trazem consigo e colocam em jogo na construção deste novo

território são elementos fundamentais para entendermos este escape para além das

superficialidades. É óbvio que sua constituição está também pautada em fatos e

motivações anteriores à existência do bairro e que vieram a culminar na ocupação

deste espaço em 1996. Essa percepção aconteceu ainda em 2005, quando

estávamos envolvidos no Projeto de Extensão Célula, do curso de Arquitetura e

Urbanismo da UFES. A freqüência com que íamos ao bairro, acompanhada dos

demais participantes do projeto e integrantes do Movimento Nacional de Luta pela

Moradia, agregou-nos, e aos demais integrantes do grupo, o status de confiável

junto aos moradores. Durante o tempo em que ficávamos lá percorrendo as ruas do

bairro e transitando entre reuniões na casa de um ou outro morador para o

desenvolvimento do projeto, era comum que fossemos acompanhados por grupos

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de crianças que, na maioria das vezes, não possuíam autorização dos pais para

ficarem ―perambulando‖ pelas ruas em outras ocasiões. ―Minha mãe falou que com

vocês eu posso ir‖. Era comum escutar frases como essa das crianças, ou mesmo

de suas mães. Não raramente, estas mesmas crianças nos elegiam seus

confidentes e desde então passamos a ―colecionar‖ histórias que foram compondo e

sobrepondo trechos dessa tessitura urbana de conexões nem sempre óbvias ou

previsíveis em todos os momentos, passando por trágicas a banais em outros.

São estas movimentações em direção a Alice Coutinho que nos interessam neste 1º

Movimento, que de alguma foram se construindo e culminaram no agrupamento de

seus moradores. São os fatos destacados por eles, seja quando indagados por nós

sobre o assunto, seja quando espontaneamente deixaram escapar alguma história

ou alguma lembrança.

3.2.1.1 Claudia

Ainda espanta-nos a naturalidade com que Claudia, em 2005, na ocasião com seus

aproximadamente 7 anos, contou-nos sobre como um dia tentou matar sua mãe

atirando-lhe um objeto na cabeça. Poderíamos acreditar que se tratava apenas de

estripulia de criança regada aos exageros próprios de sua pouca idade, motivada

pela banalidade da violência e da morte anunciada e exaltada descabidamente pelos

populares filmes hollywoodyanos se, no desenrolar da conversa, não tivéssemos

sido atingidos por uma seqüência de outras revelações tão ou mais cruéis que esta

contada pela pequena. Noticiava-nos que a tentativa de homicídio foi recíproca e

gabava-se por também ter saído ilesa ao empurrão que recebera da mãe com o

intuito de que rolasse para baixo da roda do ônibus em determinada ocasião.

Questionava-nos sobre a cor de sua pele (cabocla, mistura de índio com negro, de

cabelos escorridos, lábios grossos e olhos apertados) e sobre a justificava dada pela

sua mãe: ela contava que por não gostar da menina abandonou-a muito tempo

exposta ao sol quando era pequena. Claudia foi para Alice Coutinho morar com sua

avó que, aparentemente, possuía melhor condição ou disposição para cuidar da

garota. Sua mãe tem outro marido, outros filhos e com seu pai ela não tem contato.

Apesar de visitar Claudia com freqüência, ela afirmava que não gostaria de morar

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com a mãe novamente, que preferia morar com a avó. Tempos depois soubemos

que elas se mudaram e não tivemos mais notícias suas.

3.2.1.2 As irmãs

Ainda em 2005, o tal helicóptero da polícia anunciado anteriormente, aterrorizava

duas irmãs, de aproximadamente 8 e 9 anos, a ponto de chorarem de medo em

plena rua da então pacata tarde de Alice Coutinho. Diferentemente da Claudia, as

irmãs não nos contaram nada em um primeiro momento, mas nos deixaram

preocupados a ponto de irmos atrás de informações sobre a história das meninas.

Descobrimos que tinham ido morar lá por intermédio do Conselho Tutelar. O pai das

meninas havia sido denunciado e preso por agressão contra elas e sua mãe. Morar

em Alice Coutinho era uma possibilidade de esconderijo, da improbabilidade de

serem localizadas pelo pai. No entanto, a proximidade do bairro com algumas

instituições prisionais deixava as irmãs em estado de alerta, sempre amedrontadas

com a possibilidade de uma fuga. Quando o helicóptero da polícia sobrevoa a área

em altitude mais baixa, é sinal de que houve alguma fuga. Vários moradores já

relataram que o bairro está na rota de fuga dos menores internos da UNIS 85 e vários

são os casos de residências que foram invadidas e utilizadas como refúgio por eles.

Na cabeça das meninas, um desses fugitivos poderia ser seu pai. Daí o pavor e a

reação imediata de se esconder atrás de nós como se pudéssemos servir de escudo

e proteção no caso de sua indesejada aparição. Com o passar do tempo o medo das

meninas foi diminuindo e elas mesmas nos contaram essa história.

Comum também era o convite para uma pausa para o café na casa de um e de

outro, quando não almoços, ou lanches, os quais exigiam de nós um ―jogo de

cintura‖ apurado para que conseguíssemos escapar de alguns desses convites tão

generosos. A boa aceitação deste projeto pelos moradores do bairro foi importante

para essa nossa nova aproximação (2008-2009), onde realizamos uma série de

encontros e conversas tanto com moradores com quem já havíamos tido contato

85 Unidade de Internação Socioeducativa

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naquela época, quanto outros que até então nos eram desconhecidos.

3.2.1.3 Camila86

Reflexo dessa boa relação estabelecida com os moradores de Alice Coutinho foi a

permanência do contato com Camila. No trabalho que realizamos em 2005, ela era

uma das crianças que acompanhou de perto nossas atividades no bairro junto com

seus muitos irmãos. Acompanhava-nos mesmo quando possuía ordem expressa do

padrasto de não sair de casa. Questionava a autoridade do mesmo pelo fato dele

não ser seu pai. Ela conta que quando foi a Alice Coutinho pela primeira vez

detestou. ―Só tinha mato‖. Bem diferente da vida dinâmica que tinha quando morava

em Porto de Santana, onde tinha liberdade para brincar na rua. Foi um

desentendimento com o avô, com quem vivia, que levou a família a mudar para Alice

Coutinho há quatro anos atrás. Só mudaram depois que a casa de alvenaria ficou

pronta – ainda que sem reboco ou piso – e desde então só mexeram em algumas

fiações da parte elétrica e no telhado, que foi arrancado durante uma ventania há

alguns aos atrás.

3.2.1.4 Verônica

Conhecemos Verônica também em 2005, na época em que realizávamos o trabalho

com a equipe da UFES. Na época, recém chegada à Alice Coutinho, Verônica quase

sempre recepcionava-nos de forma calorosa assim que chegávamos ao bairro e

mostrava-se muito interessada nas atividades que estávamos realizando. Bem

articulada e falante, nos dias em que não aparecia, sua ausência era logo percebida.

Com o tempo ficamos sabendo pelas suas filhas que quando o marido estava em

casa ela não saía, pois ele não gostava que ela ficasse na rua de papo com ―os

outros‖. O reencontro com Verônica, já separada do antigo marido, proporcionou-nos

longas conversas. Ela disponibilizou-nos gentilmente o espaço de sua casa para que

pudéssemos utilizar como apoio durante a realização da pesquisa e lá passou a ser

86 Deste ponto em diante , os encontros foram realizados na pesquisa de campo entre 2008-2009.

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nosso ponto de chegada e partida. Mãe de Camila, Verônica mudou para Alice

Coutinho com os filhos e o então marido logo após o nascimento de seu 6º filho. Foi

durante o período em que estava hospitalizada, após o parto da criança – que na

ocasião precisou ficar alguns dias internada – que a confusão entre seu pai e seus

filhos aconteceu. A família morava no porão da casa do pai de Verônica em Porto de

Santana em condições precárias. ―Morava no porão da casa do meu pai... Igual a

rato. Rato é que mora no porão.‖. A briga culminou na expulsão da família. No

entanto, mediante a ameaça de denunciar o pai por agressão e maus tratos,

Verônica conseguiu um acordo: sairia de seu porão e não denunciaria o pai se este

construísse uma casa para ela e sua família. Estabelecido o acordo, Verônica soube

da existência de Alice Coutinho através de pessoas do bairro e da igreja que

freqüentava:

―Dona Morena que mora em Porto de Santana me falou a respeito. A

Lena, que era minha vizinha lá também já tinha me falado a respeito,

e eu vim. (...) Eu vim sem nunca ter vindo aqui nesse lugar! Peguei

um ônibus no terminal e vim! Quem sabe ler vai a Roma! [risos].‖

Ela conta que antes de ir para Alice Coutinho a sua família havia se juntado e

comprado um lote para ela em Vila Velha, mas que ela não aceitou pois o lugar era

praticamente inacessível.

Foram muitas as dificuldades enfrentadas para permanecer em Alice Coutinho.

―Não tinha água, não tinha luz. Só tinha mato! Só pirambeira e ainda

um monte de árvore. Eu falei: ‗Como eu vou fazer? ‘. Minha vontade

era de armar uma cabana nas árvores! Parecia que eu tava contando

piada né?! Ele perguntou: ‗Você ta animada pra vir? ‘. Eu falei: ‗Eu

tenho escolha? Não tenho escolha né?! Ou vai, ou vai, então... e

vim... Desmatar o lugar [risos]‖

3.2.1.5 Seu Jairo e Dona Conceição

Acostumados com a vida na roça, Seu Jairo e Dona Conceição gostariam de ter

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continuado por lá. A ida para Alice Coutinho há 5 anos atrás, se deu por motivo de

necessidade. Moravam na ―roça‖, em São Gabriel da Palha, localizada na região

norte do ES e sempre trabalharam por lá, no plantio: ―Eu vim pra cá porque o patrão

vendeu a terra né... vendeu a terra e nós perdemos o emprego. Eu trabalhava com o

patrão há 33 anos! Ele vendeu a terra e nós tivemos que ir embora‖. A ida para a

cidade era vista pelo casal como algo indesejável e a falta de infra-estrutura na

época tornava essa adaptação ainda mais difícil: ―Acostumado com a roça, a gente

não chegou aqui achando muito bom não... tinha violência também... agora ta

melhorando... Não tinha água também...‖. Eles contam que o filho veio primeiro para

a ―cidade‖ e depois de um tempo conheceu o Paulo Assis, que teria ―passado‖ o lote

para ele. Então, o casal, quando veio de São Gabriel para a ―cidade‖, já foi direto

para Alice Coutinho.

3.2.1.6 Dona Maria

Dona Maria foi outro reencontro. Na época em que a conhecemos, além de ser um

dos moradores que mais participavam das atividades que realizávamos, era também

integrante da coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia de

Cariacica. Chamávamo-nos carinhosamente pelos nossos apelidos, demonstrando

estar super íntima e à vontade com a nossa presença por lá. Hoje Dona Maria não

participa mais tão ativamente do Movimento e também não se mostra tão

empolgada com as questões do bairro, ainda que seu discurso permaneça focado

na confiança no crescimento e desenvolvimento da comunidade. Moradora de Alice

Coutinho há 07 anos, conta que quando chegou lá só havia mato e ―bicho‖: ―Era um

matagal, nem tinha poste!‖. Sua trajetória é marcada por uma tragédia: o

assassinato de seu marido em Padre Gabriel, também em Cariacica. Ela conta que

mudou do bairro do dia para a noite com medo que seus filhos também fossem

assassinados. Aceitou a proposta de uma vizinha que possuía um lote em

Ecoporanga – município localizado na região norte do ES – que recebeu como

pagamento de uma transação que realizou, mas nunca tinha dado uso: ―Nem sabia

onde ficava Ecoporanga. Arrumei as malas, peguei os meninos e fui para a

rodoviária‖. Dona Maria alega que o bairro em que morava era muito violento,

principalmente por causa do tráfico de drogas: ―Até o cachorro, davam maconha pra

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ele fumar!‖, exemplifica ela com o intuito de que pudéssemos compreender a

dimensão do tráfico no bairro. A vida em Ecoporanga, município voltado para

atividades rurais, apresentou para ela outra relação de vizinhança e de vida em

comunidade: ―É outra vida... lá não era Vitória. Era uma convivência diferente. O

vilarejo onde eu morava era minha família!‖. A casa onde morava não tinha trancas

nas portas nem nas janelas. Logo que chegou se assustava ao cruzar na estrada

com homens carregando facão, enxada e outras ferramentas. Com o tempo se

acostumou com o fato de que estes poderiam ser apenas instrumentos de trabalho,

não armas. A volta para Cariacica foi motivada pela escassez e dificuldade do

trabalho na ―roça‖: ―Não tinha outro serviço. Meus filhos queriam trabalhar, e outros

serviços também...‖. A ida para Alice Coutinho foi intermediada pelo seu cunhado

que também integrava o Movimento. Enquanto finaliza a construção de sua casa,

Dona Maria mora com 02 de seus 04 filhos em uma casa vizinha a sua, cedida por

outra pessoa que foi morar em outro bairro.

3.2.1.7 Dona Celestina

Uma das poucas testemunhas do início da ocupação de Alice Coutinho que

permanece morando no bairro, Dona Celestina, no alto de seus 83 anos, recebeu-

nos no sofá de sua casa na companhia de alguns de seus netos e uma amiga

também moradora do bairro. Chegamos até ela por indicação de Dona Maria, com o

auxilio de Camila ,que agendou-nos uma visita. Sua casa está localizada próxima à

divisa do bairro com Antônio Ferreira Borges, perto da área onde foi construído o

barracão de lona que abrigou durante um bom tempo os primeiros habitantes de

Alice Coutinho. Uma senhora negra, simples, que traz na face as marcas do tempo e

das lutas. O que motivou a saída dessa moradora de Morrinhos – também em

Cariacica – e a busca por um novo lugar para morar foram as dificuldades no acesso

à casa onde morava:

―Minha casa lá era numa barroca. E todo dia nós tinha que sair de lá

pra modo de levar um menino que eu tinha na APAE, e tinha doença

na perna que eu tinha e eu caí muito morro abaixo‖

Dona Celestina se refere aos 12 anos de Alice Coutinho como uma vitória e lembra

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como chegou lá em 1996 com toda a família:

―Aqui foi uma invasão né.?! (...)Eu vim com o Paulo Assis. Isso tudo

aqui era barracão de lona. Ali onde era a creche ali era o

acampamento do pessoal. Quando vinha acampava num

barracãozão de lona que tinha. Todo mundo acampava ali. E agora

depois ia fazendo os barraquinhos de lona, nos lotes.‖.

3.2.1.8 Joaquim

Joaquim, também testemunha do início da ocupação, ainda lembra do dia que

acampou em Alice Coutinho com sua mãe e seus irmãos em julho de 1996. Lembra-

se da quantidade de carrapatos! A mudança não lhe agradou, mas não tinham

condições de permanecer pagando aluguel e morando em lugar de tão difícil acesso.

Vindos de Nova Rosa da Penha, permaneceriam debaixo do ―pé de árvore‖ por

quase um ano. ―Aquele pé de árvore ali é o cartão postal do bairro... com um monte

de barraquinha...‖. Casado e pai de 06 filhos (04 com a ex-mulher, e 02 com a atual),

mudou-se da casa da mãe, onde morava inicialmente, para outra casa também no

bairro.

3.2.1.9 Dona Helena

Moradora do bairro há 05 anos, Dona Helena lembra que quando foi pra lá uma

parte do bairro já possuía ruas abertas e os gatos de luz e água. Mas também tinha

muito mato ainda. Para ela não foi fácil conseguir um lugar para morar. Contou muito

com a ajuda de amigos: ―Tive que vir em muitas reunião... tive ajuda de Paulo e

Rosangela... Hoje se eu to aqui e agradeço a Rosangela e ao Paulo‖. A amiga

conseguiu primeiro e ajudou-a depois. ―Ela veio pra aqui... aí depois que ela veio

pra cá a gente veio‖, conta Dona Helena, que foi para lá com o marido e 06 filhos.

Antes disso morava em condições precárias em Campo Verde. ―Vim pra cá porque

aqui é melhor do que lá‖.

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3.2.1.10 Seu José

Morador do bairro desde 1998, Seu José morava antes em Santa Rosa. Foi morar

em Alice Coutinho para não ter mais que pagar aluguel. Ficou sabendo desta

movimentação através de um primo lá em Santa Rosa, onde já se ouvia boatos da

ocupação. Quando foi morar em Alice Coutinho ainda não estava envolvido com o

movimento de Moradia. Apesar de não ter estado presente no dia da ocupação, seu

José parece saber detalhes do acontecido em 03 de julho de 1996. Das 20 famílias

acamparam, nem todo mundo permaneceu porque alguns não tiveram coragem de

enfrentar o mato (da altura de uma árvore ou mais altos até), carrapatos, animais,

espinhos, cobras, etc.

3.2.1.11 Seu Francisco e Dona Edilene

Seu Francisco mora no bairro há 8 anos e quando chegou ainda não havia ruas.

Algumas pessoas já estavam morando debaixo da ―lona preta‖, debaixo do ―pé de

arvore‖, onde hoje está construída a escola. Seu Francisco e família juntaram-se a

eles. Ficaram sabendo da ocupação através de colegas que moravam em Nova

Rosa da Penha. No entanto, Dona Edilene conta que quem passou as informações

mais precisas foi o Paulo Assis, que com freqüência estava em Nova Canaã, onde

moravam: ―Ele sempre tava lá em Nova Canaã... Ele que informou que ia abrir aqui

a área‖. Optaram por deixar Nova Canaã por acreditarem que na ocupação, ainda

que não tivesse nada, seria possível construir um lugar melhor para viver. Seu

Francisco afirma que estava certo: ―Aqui cresceu muito mais do que Nova Canaã.

Quando eu saí de lá tava com onze anos que nós estava morando lá. Ta do mesmo

jeitinho. Aqui não. Aqui era aquele mato puro... E cresceu mais‖.

3.2.1.12 Kaka

―Casei aos 18 anos, fui pra casa da minha sogra, no bairro Limão. Tive 5 filhos.

Depois de casado houve a separação entre eu e minha esposa. Ela me deixou com

5 filhos. Aí cuidei deles e graças a Deus consegui botar eles na idade adulta. Hoje

eu tenho 3 filhas casadas‖. É dessa forma que Kaka inicia sua história em Alice

Coutinho. Há aproximadamente 5 anos, Kaka conseguiu seu lote:

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―Sempre pedi a Deus que me abrisse a porta, pra eu comprar um lote

para que eu viesse a ter minha casinha mesmo no lugar... A minha

situação... eu morava no quintal da minha ex-sogra e necessitava

assim de um lote pra ter um lugarzinho meu mesmo‖.

Foi através do contato com Paulo Assis que Kaká conseguiu seu tão sonhado lote.

Por simpatizar com o Movimento, ele acabou exercendo no bairro o papel de auxiliar

na coordenação local, ainda que informalmente.

―Uma coisa muito importante que eu vou falar pra você: Eu amo o

bairro Alice Coutinho. É o mais importante. Eu amo o bairro Alice

Coutinho. E é esse o motivo que eu faço qualquer coisa pra ajudar,

pra trabalhar‖.

Quando questionado da onde vem esse amor todo pelo bairro, ele explica:

― É porque eu nunca tive né... Um homem tem que ter uma casa pra

morar. Pra ir e pra voltar. Eu tinha lá mas tava no nome da minha ex-

mulher, que eu tenho muito carinho. Mas não considero meu lá não.

Que é a coisa mais importante, mesmo que seja debaixo de uma

lona, mas é saber que ali você vai administrar aquilo ali. Não é

mandar, mas sim administrar. Hoje eu tenho plena liberdade. Eu

tenho plena liberdade né, de trazer meus amigos pra minha casa,

não importa o que nós vamos fazer, o que nós vamos comer, mas

nós vamos estar juntos!‖.

3.2.1.13 Bethânia

Hoje com 39 anos, Bethânia mora em Alice Coutinho desde 2001. Antes morava em

Flexal, nos fundos do restaurante aonde trabalhava. Quando o restaurante fechou as

portas, se viu sem teto. A mãe dela, que já é falecida, morava na ocupação, e a

ajudou a conseguir um lote também. Com o tempo seus irmãos também foram morar

lá. No início Bethânia achou que a ocupação não daria certo. ―Tinham poucas ruas

abertas...‖. Ela conta que o sonho de seu marido é voltar para Viana: ―Em Viana tudo

é perto!‖. Ela possui dois filhos que já são casados.

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Apresentamos alguns dos moradores do bairro relacionando-os aos fluxos –

motivações, acontecimentos, sentimentos, etc. – que impulsionaram seus

deslocamentos para um Alice Coutinho que só existia enquanto potência. Estes

fluxos atravessaram a constituição desse novo território que se construiu a partir de

diferenciados processos de des-re-territorializações nos quais diversos elementos de

memórias foram acentuados enquanto singularidade, conferindo a um e outro

habilidades e competências que, compartilhadas, forneceram importantes

contribuições na construção dos novos traços de sociabilidade e territorialidades.

Entendemos a ousadia da chegada e a opção pela permanência como momentos

chaves nesse processo que implica em mudanças significativas, alterações,

atualização de novas e das já enraizadas práticas e mesmo no abandono de outras

que não puderam mais ser estabelecidas em sua forma anterior. Assim,

reelaboraram se não o ritmo da vida no campo, o estreitamento das relações de

vizinhança lá permitidas. Outras práticas, no entanto, foram, ao contrário, cerceadas

por imperativos como a violência, que impede a utilização da rua em sua

potencialidade, por crianças e adolescentes. Satisfação e insatisfação mesclam-se

com a insegurança e a esperança nesse novo espaço-condição.

3.2.2 2º Movimento: Tempo da ação

Adentramos o tempo da ação tomados pelas considerações realizadas sobre o

tempo da memória. Os territórios neste novo tempo se definem na subjetividade dos

afetos, na materialidade do traçado urbano, entre estriamentos e alisamentos, nas

práticas cotidianas, onde as atuações políticas e pessoais confundem-se conferindo

significado e sentido ao lugar. Neste tempo de ação se realizam as tentativas de

demarcação e construção do bairro assim como a reconstrução de vidas e casas,

em meio a enfrentamentos e conflitos.

De 1996 (ano em que teve início a ocupação) a 2009 (ano em que interrompemos

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nosso contato com o bairro), o processo de consolidação de Alice Coutinho passou

por diferentes momentos, alternando-se entre momentos de inquietação e

estabilidade. Em junho de 1996, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia –

MNLM, providenciou um ônibus que levaria os militantes ao local do acampamento,

sem, no entanto, revelar a eles seu destino. Achavam que iam participar de uma

festa em comemoração ao Dia Nacional de Luta por Moradia, promovida anualmente

pelo Movimento. Não sabiam que a ―festa‖ programada era a ocupação da área que

pertencia a COHAB, em Areinha.

―O Movimento se encontrou a meia-noite em frente ao Palácio

Anchieta, em Vitória. Levaram um ônibus com o pessoal da

ocupação de Porto de Santana. Convidaram para uma ‗festa‘ para

comemoração do dia Nacional de Ocupação e trouxeram em um

ônibus para cá‖.

―Aí eles falaram assim, olha, a festa que nós vamos é uma ocupação.

Aí nós fomos, e ai quando nós chegamos nesse lugar, já era uma

hora da manhã. Aí o Paulo falou assim, ó, a área que nós vamos

ocupar é essa, ai que quem quiser voltar pode voltar, e os que

quiserem ficar vamos ficar, vamos começar a roçar isso aqui e

vamos ocupar essa área.‖

A estratégia adotada pelo Movimento funcionou em parte. Algumas das famílias

preferiram retornar. A COHAB, proprietária da área, exigiu sua desocupação para

que iniciassem as negociações. O Movimento concordou e a COHAB propôs que

fosse criada uma cooperativa para que pudesse ser estabelecida uma parceria entre

Movimento, Prefeitura e COHAB, a COOP-Areinha. Apesar de concordarem com a

criação da cooperativa, esta não saiu do papel. A negociação com a COHAB não

evoluiu o que culminou no retorno do grupo para o acampamento. Segundo Elias,

um dos coordenadores do Movimento, o grupo ―voltou dessa vez pra ficar‖, roçando

e construindo os barracos de lona na área onde hoje se encontra a escola.

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Figura 33 - Sobreposição da imagem da área de sua ocupação e desenho de um traçado próximo ao realizado

Fonte: DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

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Figura 34 – Esquema dos fluxos que atravessaram o processo de consolidação de Alice Coutinho construído a partir das informações fornecidas por alguns moradores.

Figura 35 - Esquema relacionando os ritmos das negociações com a COHAB-ES e a velocidade da consolidação da ocupação em Areinha.

A ocupação avançou em um ritmo muito mais frenético que o das negociações.

Enquanto estavam presos às respostas da COHAB, os moradores permaneceram

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concentrados debaixo das lonas evitando uma ocupação dispersa. A pausa nas

negociações foi o estopim para que Movimento e moradores desconsiderassem a

possibilidade de acordo e partissem efetivamente para a apropriação da área.

Reagiram aos entraves da burocracia construindo o bairro e suas casas.

―O povo tem que ter moradia.(...) Enquanto a COHAB estava

enrolando nós, nós estávamos esperando por eles. Mas enquanto

eles pensavam que nós estava parado, nós continuamos!‖

―Quando eles [COHAB] chegavam pensando que a gente tava aqui,

a gente já tava lá. Quando vinha aqui novamente nós já estava com

o poste até ali.... Quando voltaram a dar uma atenção aí de novo nós

já tinha botado casa pra lá, ali já tinha outra, já tinha poste tudo até

aqui na praça. Enquanto eles estão enrolando nós... e por resto, eles

não arranjaram jeito de tirar nós mais!‖

3.2.2.1 Expansão

O acampamento expandiu-se e transformou-se em bairro com a participação ativa

de diferentes atores. Ainda que conduzido de perto pela coordenação do Movimento,

as construções diárias eram realizadas por moradores comuns através do

compartilhamento de práticas que trouxeram de outras experiências. Estas

experiências e a atualização destas práticas feitas a partir de tomadas de decisões

coletivas direcionaram os caminhos e formas que a ocupação veio a tomar ao longo

dos anos. Por parte do Movimento, as experiências adquiridas na participação de

outras invasões, trouxeram à tona preocupações com os problemas gerados pela

ocupação desordenada. Tinham como referência o bairro Flexal – também em

Cariacica – que, mais de 20 anos depois de sua ocupação, apresentava sérios

problemas relacionados a acessibilidade e carência de espaços públicos. Em

resposta a tal preocupação, Seu João – um dos moradores que posteriormente veio

a ser um dos coordenadores do grupo – utilizando-se de experiência adquirida com

esquadros em trabalhos anteriores e também o conhecimento de morador de outras

ocupações, elaborou o que chamou de ―rascunho‖ do projeto do bairro para

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apresentar aos moradores em uma reunião. O rascunho foi aprovado e a ele

atribuído o cargo de ―engenheiro do bairro‖.

―A pequena experiência que eu tenho com esquadro, eu vou tentar

fazer o melhor, falei. Aí comecei com o papel a riscar, riscar, riscar, e

vi que se a gente sai com a rua reta lá de cima, sem aquela curva lá

no final, aquela rua ia saindo lá de cima e ia sair lá em baixo. Aí, a

gente achou por bem de fazer a rua principal vindo por ali, virar aqui

e ajuntar aqui e virar também. (...) Fiz desse jeito, levei pra reunião e

pensei que eles não fossem aprovar não. Porque os terrenos estão

tudo tipo cocado, não ta no esquadro. Por que? Porque ta rodando o

bairro! Coloquei em cima da mesa lá o desenho, todo mundo olhou,

olhou, olhou, aprovou que eu podia fazer a medição daqui pra frente,

organizar a medição tudo de acordo com aquilo que tava ali.(...) Por

isso que tem umas pessoas aí que falam ‗nosso engenheiro‘! Falam

que eu sou engenheiro só porque eu risquei! (risos) Quem faz o risco

é arquiteto né!‖

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Figura 36 – Desenho de Seu João - Projeto para o bairro

Fonte: Acervo MNLM apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

Do projeto, algumas poucas alterações foram feitas, como a redução da largura das

ruas de 10 para 8 metros, sob a argumentação de ser possível ampliar o número de

lotes com essa alteração.

O projeto do bairro não envolvia apenas o traçado e dimensionamento de ruas e

lotes. Havia também uma espécie de zoneamento elaborado em conjunto com a

coordenação do Movimento, que tinha a intenção de promover através de uma

ocupação hierarquizada, a diversidade e trazer o desenvolvimento para o bairro. Na

zona comercial, abrir-se-ia a possibilidade de fornecer lotes para comerciantes que

não necessariamente residissem no bairro. Outras áreas teriam um zoneamento

hierarquizado de acordo com o ―poder aquisitivo‖ dos moradores. Essa segregação

é explicada por alguns moradores e pela coordenação do Movimento com uma

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alternativa para atrair moradores que possuíam capital pra investir no bairro.

Acreditavam que se houvessem áreas destinadas a eles, não ―misturada‖ com os

demais moradores, a proposta seria mais facilmente aceita. O questionável é por

isso?

―As ruas já estavam tudo marcadinhas (...).As pessoas mais...

digamos assim... de pouca cultura, ia ficar na Rua 10. As de mais

cultura aí era em outra rua‖.

―O pessoal achava que o comércio aqui era muito fraco. Aí começou

a ocupar aqui o pessoal...‖.

Nenhuma das duas idéias de zoneamento funcionou. O projeto do novo bairro

pauta-se em um ideal de cidade impregnado no imaginário coletivo. Seu traçado

segue o dos bairros vizinhos, assim como sua estrutura fundiária e morfológica.

Assim como se tentou fazer o zoneamento. O projeto reforça o que já foi dito antes,

sobre a necessidade de afirmar e distanciar do estereotipo da ocupação

desordenada, desorganizada, tumultuada, insalubre e carregada de preconceito, não

apenas por parte dos outros mas por parte dos próprios moradores da ocupação.

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Figura 37 - Início da ocupação no bairro Alice Coutinho

Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

Figura 38 - Praça no início da ocupação em Alice Coutinho.

Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

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Figura 39 - Início da ocupação em Alice Coutinho.

Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

Figura 40 - Início da ocupação em Alice Coutinho.

Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

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Figura 41 – Moradores e representantes do MNLM nos trabalhos do início da ocupação em Alice Coutinho com a máquina alugada através da contribuição dos moradores.

Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005

Com o aumento do número de pessoas que se dirigiam à ocupação pedindo lotes, o

Movimento e os moradores que estavam há mais tempo envolvidos no processo,

elaboraram algumas normas e procedimentos que precisavam ser respeitados para

que a pessoa tivesse direito ao lote. Precisavam freqüentar as reuniões semanais,

preencher uma ficha com um histórico que indicasse os motivos da ida para a

ocupação. Os moradores contam que tentavam sondar mais informações sobre

essas pessoas para averiguarem a real necessidade delas, mas nem sempre era

possível. As pessoas que conseguiam tinham um prazo de 15 dias para começar a

construir de lajota. Essa estratégia foi adotada tanto para dificultar possíveis

tentativas de despejo – nas quais construções de lona e de tábua são mais

facilmente retiradas – quanto para evitar que oportunistas deixassem os lotes vazios

especulando.

―Eu vinha e roçava para poder fazer, mas não tinha dinheiro pra

fazer. Aí um camarada que trabalhava sendo diretor, que tava junto

aí, pegava e marcava com 15 dias tirava o lote da pessoa. Mas aí

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com 15 dias eu cheguei pra outra reunião e já tinha passado pra

outro já. Quer dizer, eu limpei terreno para os outros. Aí depois eu

peguei e vendi peça de ferramenta minha e vim pra debaixo da lona‖.

―[O Movimento] Botou uma pressão pra eu construir em 15 dias, mas

eu não tinha dinheiro... Aqui tinha essa política de se fazer em 15

dias...‖

Essas normas, no entanto, atingiam também as pessoas que não tinham condições

de adquirir material de construção forçando o Movimento e a coordenação local a

serem mais flexíveis.

―É justo tomar o lote da pessoa, o cara comprovando ali o motivo

porque não pode? Quer dizer, aí a gente pegava e dava mais um

tempo para a pessoa, esperava mais.‖

Situações como essas acabaram por criar atrito com diversos moradores que se

sentiam injustiçados, e as relações entre os moradores e seus representantes

começam a se desgastar. Hoje existem lotes que estão há mais de 02 anos sem

nada construído87. Foram várias as estratégias adotadas pelos moradores na

construção de suas casas. Os que trabalhavam durante o dia intensificavam o ritmo

das construções de madrugada ou nos fins de semana, com a ajuda amigos e

parentes.

Das casas que visitamos, encontramos situações e processos diferenciados.

1. A família só mudou com a casa pronta, que foi construída pelo avô, com 3

quartos, 1 cozinha e banheiro, direto na alvenaria. Desde sua construção (há

87 Ainda hoje a questão da propriedade não foi resolvida e a posse da área continua a ser da

COHAB-ES, embora haja um acordo de que será estudada a forma de transferência do titulo de propriedade para os moradores.

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4 anos) não foram feitas mais alterações, apenas o telhado que foi destruído

por uma ventania. Ainda não possui revestimento, tem quintal e é isolada no

lote.

―Eu não sou arquiteta, mas falo com ele que tá tudo mal feito!‖

2. Casa de alvenaria em construção há 07 anos. Enquanto isso a família mora

na casa ao lado, cedida por outra moradora.

3. A casa teve 3 etapas: primeiro foi construído o barraco de lona, depois o

barraco de tábua, e por último a casa de alvenaria.

4. Mora na casa da sogra enquanto termina a construção em alvenaria da sua

casa. Constrói em geral nos fins de semana com ajuda de amigos e

parentes.

5. Já havia um barraco de tábua, pois a família conseguiu um lote que havia

sido abandonado. Depois de um tempo construíram um novo barraco de

tábua, depois a casa ―de verdade‖, de alvenaria.

6. A primeira moradia foi debaixo da lona. Depois em um barraco de tábua que

conserva até hoje no fundo do lote e está emprestado para um amigo que

constrói na casa ao lado. Hoje reside na casa de alvenaria, na parte de trás

do comércio que divide na mesma edificação.

7. Primeiro construíram um ―barraquinho‖ e tábua e depois de alvenaria. As

duas construções permanecem no lote. Hoje em uma mora o marido e em

outra a esposa.

8. Construíram direto em alvenaria. Enquanto construíam alugaram uma casa

no bairro por 3 meses.

9. Primeiro construiu um barraco de tábua no fundo do terreno para ocupar o

lote. Enquanto construía morava na casa da sogra. Agora mora no barraco

enquanto constrói a casa de alvenaria na frente. Não pretende derrubar o

barraco de tábua quando a casa ficar pronta para ter como recordação e

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também para hospedar amidos e visitas.

Figura 42 - Casa de alvenaria na frente e o barraco de tábua nos fundos

10. Depois de trocar de lote 3 vezes, construiu direto em alvenaria. Enquanto

construía morava na casa do pai em outro bairro.

11. Morou primeiro em um lote provisório, depois mudou para um definitivo. Já

havia no lote um barraco de ―madeirite‖ que utilizou enquanto construía o

seu.

Como na construção do bairro, a casa também apresenta referências e citações. No

entanto, variações se fazem necessárias devido aos obstáculos impostos seja pelo

método de construção utilizado, pela situação financeira, pelos arranjos familiares

existentes, etc. Quase sempre permanecem a distinção entre entrada social e de

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serviço, embora seja dispensável uma vez que os ―serviços‖ são realizados pelos

próprios moradores. A distribuição dos cômodos no interior da residência, em geral

também toma como referência essa mesma casa burguesa, mas se realiza de forma

particular, também adaptada à condição financeira do morador, embora permaneça

como ideal a ser alcançado ao fim da interminável obra. Adaptações em relação ao

número de pessoas por cômodo também se fazem necessárias.

A primeira área ocupada foi onde hoje é a creche. A abertura das ruas teve início

pela Rua 11, que juntamente com as ruas 10 e 12 foram as primeiras a serem

ocupadas. Estima-se que cerca de 30 famílias ocuparam essa área em um primeiro

momento. Esse processo não esteve imune as tentativas de repressão.

―A gente pensou até que não ia dar certo né, quando a polícia

começaram a despejar o povo aí... Qual invasão que não acontece

isso assim da polícia querer despejar o povo?‖.

Figura 43 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus moradores

Em 2000 houve a primeira tentativa de ―invadir‖ o terreno da Blokos Construtora

para construir uma rua de saída para o ―asfalto‖, que não teve êxito.

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Em 2001 as ruas ainda não estavam totalmente abertas e não havia muitas casas.

Existiam muitos bichos que entravam nas casas. Alguns moradores afirmam que

ainda hoje existem cobras.

Em 2002 a expansão da ocupação chega à Rua Floriano Coutinho, que avança em

direção ao que hoje é a entrada do bairro.

Em 2003 ainda existiam lotes e barracos desocupados para morar. Não havia muitas

construções da igreja católica pra baixo. ―Era tudo mato‖. No entanto, alguns

moradores afirmam que já estava tudo loteado apesar das ruas não estarem

abertas. Prevaleciam os ―gatos‖ de luz e água e muitos dos barracos eram de tábua.

A conexão do bairro com o ―asfalto‖ ainda não existia. De 2003 em diante foi o

período de maior desenvolvimento do bairro.

Em 2004 foram abertas as últimas ruas e a expansão alcança a Rua Esperança e

avança em direção à Rua Antário Filho. A área entre a praça e o bairro Ferreira

Borges constitui a parte mais consolidada do bairro.

Figura 44 - Nome das ruas do bairro.

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Figura 45 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus moradores

Algumas relações se estabelecem a partir dessas sucessivas etapas de expansão

do bairro. Durante nossas caminhadas presenciamos alguns moradores se referirem

á área ocupada mais recentemente (indicada pela cor azul na Figura 45 ) como

―cafundó do Judas‖. No ―cafundó do Judas‖ concentram-se os moradores mais

recentes do bairro e as edificações mais precárias. Percebemos um olhar de

desconfiança para com eles por parte dos moradores mais antigos. Semelhante

desdém foi direcionado para a parte ―baixa‖ do bairro vizinho, Andorinhas. ―Croca‖,

favela, ―um monte de casa tudo empilhada‖, foram expressões utilizadas para se

referir a eles e a forma com que ocupam os fundos de vale. Esta atitude, no entanto,

demonstra uma necessidade de distinguir eles próprios dos demais moradores,

numa tentativa de valorizar sua condição de não-favelado visivelmente externada

quando falam que moram em um bairro planejado.

―Temos uma planta! Um dos bairros de Cariacica que é todo

projetado, todo planejado chama-se Alice Coutinho!‖

O uso da expressão ―bairro planejado‖ aparece carregada de uma civilidade

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renegada à ocupação, à favela, à ―croca‖. O bairro planejado liberta os moradores,

ex-invasores, de toda carga negativa da invasão e atualiza-os enquanto cidadãos,

enquanto comunidade.

Ao estabelecerem estes limites entre o que são e que não são, incorporaram uma

prática que outrora lhes afetou diretamente enquanto ainda estavam acampados.

―Eu mesmo ouvi com esses próprios ouvidos aqui, quando eu fui em

comércio ali dentro [referindo-se ao bairro vizinho, Antônio Ferreira

Borges], pessoas dizer que a partir do momento que vieram esses

sem terra pra cá nós ficamos prejudicados, nós não temos sossego

mais. Que isso não devia, de ter vindo esse povo pra cá. Porque que

não foi pra outro lugar... (...) Tudo de errado que acontecia lá eles

colocavam a culpa em cima do pessoal aqui.‖

A aproximação com o outro é que exige a distinção. Classificações e distinções

estabeleceram uma relação conflituosa entre os moradores dos bairro Antônio

Ferreira Borges e os moradores da ocupação que, com o tempo, foi minimizado.

―No começo eles começaram a achar ruim nossa presença, mas

depois eles concordaram. Não criaram problema nenhum não...‖

Junto com o avanço e as conquistas dos moradores de Alice Coutinho veio também

a substituição da diferenciação pela busca da igualdade, pelo direito de ter direitos.

Essa é uma constante que atravessa diferentes dimensões da vida dos moradores

do bairro, impregnando sutilmente detalhes do dia-a-dia, como a decoração de Natal

do bairro, não prevista pela Prefeitura. Presenciamos em uma das reuniões com a

comunidade, um discurso emocionado de um de seus representantes, sobre a

conquista das luzes para o Juá. Em todos esses anos de existência, nunca haviam

conseguido que sua árvore tivesse o destaque merecido junto às autoridades e

técnicos que decidem sobre a decoração de Natal do município.

Aos poucos identificamos outras sutis relações simbólicas que revelaram o respeito

e o peso conferido ao ensino pelo Movimento e pelos moradores do bairro.

Elegeram a construção da escola como símbolo do início da ocupação. Na área

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onde acamparam inicialmente os primeiros moradores, hoje está localizada a

―Escola Municipal de Ensino Infantil Amélia Virginia Barbosa Machado‖, que ao

longo dos anos teve sua área preservada pelos moradores que atuaram como

fiscais zelando pela sua não invasão. Tanto que nela, mesmo na época da abertura

das ruas, foram até temporariamente ocupadas, mas nunca por instalações fixas. É

perto da escola que moram também os moradores mais antigos, na primeira etapa

consolidada do bairro.

Algumas pequenas demonstrações de construções coletivas e afetivas imprimem ao

espaço significado peculiar. As ruas do bairro que dão continuidade às já existentes

no bairro vizinho, foram inicialmente numeradas e posteriormente receberam nome

escolhidos pelos próprios moradores:

―Cada rua tem uma história...‖

―A rua 12 tem esse nome em Ferreira Borges, mas em Alice

Coutinho se chama Rua Jorge Pinheiro. A rua 11 é a Rua da Vitória,

a Rua 10 é a Rua Olga Nascimento, e a rua que divide o bairro Alice

Coutinho com Antonio Ferreira Borges é a Rua 15. Foi o povo que

escolheu o nome das ruas. Rua Araribóia, Rua Antário Filho, Rua

Antonio Baldino, Rua Elienir Dornellas (que freqüentava a igreja

católica, mas morreu), Rua Piauí, Rua Bela Vista, Rua Cajueiro.

Quando a gente tava lá falamos que nome a gente coloca nessa rua

aqui? Vamos sugerir o que? O que que tem aqui? Aí vimos um de pé

de caju lá na frente que ta lá até hoje. Aí resolvemos, vamos botar

Cajueiro então! Porque ta na direção do cajueiro. Aí trouxe isso aí

pro meio do povo, o povo aprovou‖

O primeiro ―bico de água‖ foi feito na casa de Jorge Pinheiro, morador do bairro

vizinho que permitiu que ―puxassem‖ de sua casa os bicos e realizassem suas

instalações provisórias. Como forma de homenageá-lo, foi dado seu nome a uma

das ruas do bairro.

Em contrapartida, o nome do ―bairro‖ foi uma escolha política, cuja estratégia

adotada pelo Movimento consistiu em chamar a atenção do então prefeito, Aloísio

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Santos88. ―Foi uma tentativa de sensibilizar o prefeito‖, afirma um integrante do

Movimento avaliando como positivo o resultado desta ação, pois o bairro ganhou

visibilidade junto a administração municipal. Nem todos os moradores concordam

com essa escolha.

―Aqui é reconhecido como se fosse continuação de Ferreira Borges...

Isso aí foi puxação de saco! Paulo puxando o saco do homem lá que

fez... Eu, até eu mesmo não concordo‖

3.2.2.2 Práticas, usos e improvisos

O início da ocupação aponta vários improvisos. O acampamento no meio da rua

pressupunha a limpeza da área e armação do barraco de lona. Ocupou-se primeiro

a área onde hoje é a creche, onde permaneceram acampados por quase um ano,

antes da abertura das ruas.

Dentre as estratégias utilizadas para esta construção, destacam-se algumas

práticas, marcantes nos espaços opacos, dentre elas a produção dos ―bicos‖ ou

―gatos‖ de água e luz. A água foi apontada pelos moradores como a questão mais

séria.

―A água a gente puxava de mangueira de borracha, aí encanava pra

dentro das residências, pra casa de um, pra casa de outro... A luz era

a mesma coisa, puxava do poste‖.

―Vinha água lá do Ferreira Borges e a gente pegava e distribuía

aqui... Mas tinha muita falta de água sabe... A gente só pegava água

a noite, porque a partir de oito horas tinha. Mas de manhã, quando

todo mundo levantava não tinha mais, da torneirinha... não tinha

nenhuma. Começava a tirar o pessoal lá de cima e aqui não

88 Alice Coutinho foi a mulher do ex-prefeito Aloízio Santos. Na ocasião da ocupação,ela havia

acabado de falecer.

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chegava... A gente só tirava a noite pra poder construir.. no tonel. As

vezes 20 litros, 4...‖

Em uma das tentativas da Companhia Espírito Santense de Saneamento – CESAN

de barrar a execução dos ―bicos‖ foi colocado um relógio único, para as famílias que

moravam no bairro. Obviamente, esta tentativa fracassou, pois o valor dividido ente

os moradores raramente era pago. Alguns afirmam que nunca pagaram. Os ―bicos‖

geravam também uma movimentação interna, uma rede informal de prestações de

serviços. O conhecimento exigido para sua execução levava alguns moradores a

contratarem aqueles moradores mais habilidosos, ou que detinham mais

conhecimento na área das instalações para fazê-lo – embora muitas fezes tais

serviços fossem executados de graça, pela camaradagem.

―Eu me pendurava no poste a noite, fazia gato pra um aqui, e

ganhava 20 reais, fazia mais outro ali e ganhava mais 20 reais.

Ganhava o dinheiro com os ―bicos de luz‖ pra poder completar o

dinheiro da mangueira e pra poder me manter. A dificuldade era os

vazamentos‖.

A busca pelos vazamentos acontecia de madrugada em função da pressão da água

ser maior.

―Ia cada um com uma lampadazinha procurar bico de água...

Quantas noites nós já não fizemos isso... Tinha dia que era 1h da

noite e nós estava lá, passando nas ruas, caçando aonde é que tava

vazando água... Porque de dia quase não tinha pressão nenhuma da

água, era todo mundo usando. Então... certamente não tem água pra

fulano porque beltrano tá usando. Mas de noite como não tinha

ninguém usando, aí você ia ver onde é que tava vazando...‖

Tais práticas renderam alguns encontros inusitados nas madrugadas.

―Quantas e quantas das vezes eu topei com camarada que tava aí

escondido no meio dos matos, e lá vai eu com a lanterna no meio

dos trilhos e daí a pouco tinha um camarada e falava: ‗ó, não fala

nada que me viu aqui não!‘. Eu falava, ‗não rapaz, fica tranqüilo!‘.

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Camarada se escondendo de outro que queria matar ele e ele se

escondendo, e eu to nem sabendo de nada. Em tempo até de tomar

uma bala com a cara a fora em prol dos outros, em prol do povo.‖

Esse sentimento de trabalhar em prol de uma causa, de um povo, de uma

coletividade perpassa diversas outras situações, conferindo às relações construídas

pelos moradores momentos solidariedade, tensão e conflito.

O uso individual da água era ―controlado‖ por todos os moradores e ações tidas

como egoístas eram repreendidas, em alguns casos até com violência:

―O pessoal vendo eu aguando a horta, quando faltava água para

eles então era porque eu tava aguando planta...Não tinha nada a

ver... Porque eu tinha o meu ―bico de água‖ que vinha lá do Ferreira

Borges, independente da rede dos outros. Mas aí começaram a

comprar galinha, comprar cachorro, aquele monte de coisa pra poder

ficar aqui em cima da minha horta. Aí eu desisti. Pra evitar confusão.

Fui agarrado pela garganta mesmo, por causa de água!‖.

As estratégias que conferimos utilizadas para a construção dos ―bicos‖ poderiam

estar enquadradas na definição de gambiarra feita por Portela (2007), na qual ―o

processo de construção de coisas pressupõe um estado de precariedade, de falta, e

uma conseqüente ação de adaptação à esse estado, na base do improviso‖. Ainda

presentes no bairro, os ―bicos de água‖ eram a forma de obtenção de água de todos

os moradores, até 2005, quando, devido ao aumento de moradores, passaram a não

dar mais vazão a quantidade de água solicitada. Neste momento, substituíram a

gambiarra pela instalação da rede padrão de água, solicitando-a junto a CESAN. A

rede foi instalada em etapas, tendo início pela área entre o bairro Antônio Ferreira

Borges e a Rua Nova Esperança. A adesão de parte dos moradores à rede da

CESAN solucionou o problema da falta de vazão das instalações improvisadas,

culminando na permanência dos ―gatos‖ na maioria das casas do bairro.

Assim como os gatos de água, os gatos de luz avançavam acompanhando a

expansão do bairro. Em 1999 foram colocados os primeiros 9 postes e em 2000

mais alguns.

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Outras gambiarras foram criadas desde o início do processo de ocupação. O bairro

foi ―desenhado e demarcado no chão‖ pelos moradores com ―pau de vassoura‖ e

barbante. Na elaboração do projeto do bairro utilizaram-se das referências que

cultivaram no local, como, por exemplo, o Juá, para estabelecerem referências e

relações de distância. Como disse seu José,

―A gente sabia que o pé de Juá tava no meio do bairro‖

Detentores de um conhecimento cego sobre o espaço89, desenvolveram técnicas e

relações espaço-tempo singulares a partir das quais dominam seu território.

Em geral práticas e usos são atualizados e reafirmados pelos moradores de forma

inventiva e também via apropriações de modelos já estabelecidos. Eles são

reelaborados sem burocracias ou outras preocupações normativas.

O que antes era um bar, agora acrescido de uma parede que o divide ao meio no

comprimento, passa a dividir espaço com uma padaria. A ―venda‖ do Seu João de

frente para a praça serve também de salão para sua mulher. Entre uma venda e

outra de chup-chup90, balas, pão, refrigerante, biscoitos e acetona, atende-se a

clientela de mulheres que procuram o serviço da manicure e são atendidas nos

bancos e mesas improvisados no ―puxadinho‖ da venda.

89 DE CERTEAU, 1994.

90 O nome deste produto pode variar de acordo com a região do país: chup-chup, geladinho, sacolé.

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Figura 46 - Residência e estabelecimento comercial informal em uso simultaneamente.

Relações de proximidade entre cliente e dono do bar são facilmente estabelecidas

quando casa e bar aglutinam-se no mesmo terreno ou na mesma construção. O bar

do Seu Manuel, por exemplo, fica sempre fechado e, os fregueses querem comprar

algo, ―chamam‖ na sua casa, no portão ao lado.

―Eu boto aqui dentro e ela [sua mulher] mesmo que atende. Ela ta

doente, e não pode ficar andando...‖

A escassez de estabelecimentos comerciais no bairro é justificada por alguns

moradores pela inadimplência gerada pelo costume de ―comprar fiado‖.

―A questão de ter pouco comércio é por conta de uma meia dúzia

que não gosta de cumprir com o seu dever. (...) Ó, quase ninguém

viu essa venda minha aqui abarrotada de mercadoria de cima

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embaixo...É sempre pouquinho. Pouquinho, com preço razoável, pra

vender só no dinheiro.‖

Enquanto os comerciantes queixam-se dos clientes, estes se queixam dos altos

preços cobrados por eles.

A feira anuncia sua chegada pelo alto-falante da kombi, de onde o feirante nômade

circula pelas ruas do bairro vendendo de peixe a verduras. A informalidade no

comércio só é colocada em xeque pelos moradores quando oferece perigos

evidentes aos consumidores, como é o caso da venda de remédios.

‖ Tem comércio que vende remédio mas poxa, você vai comprar

remédio assim? Esse dipirona, um monte de trem doido aí... Da onde

eles tiram esse remédio pra vender? Que ninguém vê eles

comprando de farmácia, de onde vem esse remédio que não tem a

licença nem nada pra poder vender? Eu não compro remédio aqui....‖

Pudemos identificar dezenas de igrejas e templos ao percorrermos as ruas do bairro.

No entanto, fomos informados por alguns moradores que não correspondem à

realidade, pois existe uma distinção estabelecida por alguns deles que diferenciam

as igrejas e templos dos ―pontos de pregação‖. Os pontos de pregação seriam os

casos em que moradores transformam sua própria casa um lugar de reunião de

determinada denominação religiosa, seja através da construção de um ―puxadinho‖

para frente, ou da re-elaboração do espaço da garagem, ou mesmo somando-se ao

usos já estabelecidos em seus cômodos – como as salas por exemplo – ao uso para

o culto. Esta prática é criticada por alguns.

―Se a pessoa tá com ponto de pregação na casa dela não é

considerada igreja não. (...) Isso aqui não é igreja não... Isso aí é

plaquinha que eles colocaram agora. Ali é residência de ―Fulano‖, ali

é residência de ―Ciclano‖, não foi liberado para igreja na época. Ele

ta fazendo ponto de pregação na casa dele! (...) Aquelas duas ali não

foram autorizadas, nem pelo Movimento, nem pela COHAB pra ser

igreja.‖

―Daqui a pouco boto uma plaquinha aqui e faço ponto de pregação

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com nome de igreja e tal e coisa. Aí eu que to fazendo agora por

minha conta. A COHAB não sabe disso, o Movimento de Moradia

não sabe disso, não autorizou‖.

Os moradores que realizam, coordenam, ou mesmo alugam espaços em suas casas

para essas práticas questionam essa distinção, pois entendem o ―ponto‖ como um

espaço em trânsito necessário enquanto não se estabelecem oficialmente em lugar.

Para eles, o ―ponto‖ é mais um improviso, outra gambiarra.

―O ponto é um local provisório. A igreja vai ser construída na Rua

Antário Filho‖.

Em determinados momentos, percebemos que a indignação por parte dos que não

reconhecem nestes núcleos de autoridade religiosa, passa por questões que

começam pautadas no receio pela prática de charlatanismo e enganações, mas se

desenvolvem apontando preocupações quanto à migração de fiéis de suas

congregações. Existe uma disputa evidente entre os ministros, pastores, ou outros

nomes utilizados para denominar as autoridades religiosas locais, que se configuram

enquanto representações de poder e não raramente sobrepõem-se ao papel de

autoridade política local. Tanto que comumente entram em conflito com outros

poderes estabelecidos, como o do tráfico.

―Pastor que falou demais teve que ‗sair fugido‘ da ocupação.‖

A figura do pastor é tão representativa junto aos moradores que, ao referirem-se às

igrejas, não utilizam como referência sua denominação, mas sim o nome do pastor

que exerce a função de líder religioso: Igreja do Pastor ―Fulano‖, Igreja do Pastor

―Beltrano‖, Igreja do Pastor ―Ciclano‖, etc. (Figura 50). Por ―oficiais‖, alguns

moradores entendem as igrejas que tiveram autorização do Movimento para se

estabelecer, totalizando uma católica e sete evangélicas de diferentes

denominações.

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Figura 47 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus

Figura 48 - A mais antiga Igreja Assembléia de Deus de Alice Coutinho

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Figura 49 - Ponto de Pregação utilizando a garagem da casa do próprio pastor.

Figura 50 - Igrejas apontadas por um morador. Ressalva-se que os pontos de pregação não foram todos indicados, pois este morador recusa-se a incluí-los na mesma categoria que as igrejas.

O improviso permeia também as relações estabelecidas entre a praça e seus

usuários e freqüentadores. Assim como a área reservada à escola desde o início da

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ocupação do bairro, a área da praça foi pensada e incorporada na dinâmica do

bairro, apesar de não ter sido executada até hoje. A praça figura o imaginário de

vários moradores que a descrevem como se a estivessem realmente materializando-

a, principalmente os que acompanharam o processo desde o início, como Joaquim:

―Metade é uma quadra poli-esportiva e da metade pra lá é um jardim

que vai ser em frente à igreja católica. Foi programado desde o

princípio! (...). ―É a única área de lazer que está tendo no momento‖.

Algumas ações relativas à construção coletiva da praça foram tentadas mas, na

opinião de alguns moradores, encaradas com desdém pelo grupo que exerce

alguma influência na área, principalmente entre os jovens.

―Cá pra cima só dá bagunça minha filha, tem nada que dê jeito não...

Só uma intervenção política. Veio o pessoal de uma comunidade aí,

pra arrumar as plantinhas lá na praça, fazer banquinho... quando eles

foram derrubou tudo...os próprios malandros daqui...eles não gostam

de nada bonito...‖

Enquanto público, o acesso democrático a esse lugar tem sofrido constantes

restrições, ainda que em determinados momentos agregue diferentes usos e

práticas, como as brincadeira de crianças e reuniões comunitárias.

―Bate bola, reunião, festividade, festinha né... Inclusive a última

festinha foi a reunião com o prefeito. Teve reunião também do

lançamento da obra aqui. A área de festa e lazer é sempre aqui na

área da praça mesmo.‖

O Juá que confere imponência a área, tornou-se referência tanto pela sua beleza e

por testemunhar no passado reuniões comunitárias muito disputadas, quanto por

abrigar sob sua sombra os ―rapazes‖ do bairro. De lá acompanham e controlam a

movimentação do entorno, utilizando-se da presença intimidadora de seus cães,

constituindo um território reconhecido pelos moradores e freqüentadores como o

território do tráfico.

―(...) fazer uma praça pra que os filhos da gente possa brincar na

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praça e ficar vendo tráfico e prostituição não interessa... Eu vou levar

minha filha pra ficar lá brincando no parquinho e o outro lá passando

droga... é o que acontece lá.‖

Nesse contexto, o espaço público – a rua e a praça – frequentemente festejado nos

estudos sobre a periferia como o lugar da sociabilidade, da liberdade, tem sido no

bairro vinculado principalmente ao espaço da violência, do ilícito.

―Na pracinha é cheio de drogas ali. Começou a ficar mais forte tem

pouco tempo. Os meninos que ficavam na rua se envolveram agora.

O pessoal do bairro mesmo. Vem gente dos bairros vizinhos

comprar‖

―Na rua ficam umas crianças com mães desnaturadas, que acabam

indo para o mau caminho‖

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Figura 51 - Crianças brincando na Praça de Alice Coutinho em dia de reunião com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Dezembro, 2008.

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Figura 52 - Reunião do Movimento Nacional de Luta pela Moradia com os moradores debaixo do Juá, na Praça em Alice Coutinho. Dezembro, 2008.

Entre as mães com que conversamos, foi unanimidade esta preocupação e a

proibição por parte delas da permanência de seus filhos nestes lugares. Soubemos

de vários episódios que contribuíram na construção desse sentimento de medo e

insegurança que ronda os moradores: o mais aterrorizador culminou com o

assassinato e degolação de um casal suspeito de ter denunciado os traficantes do

local. Algumas pessoas relataram que já tiveram suas casas ―vigiadas‖,

constantemente rondadas por pessoas na tentativa de escutar o que se fala dentro.

Simulações de arrombamento e bilhetes ameaçadores também foram utilizados

como forma de amedrontar. Como forma de medir poder, os traficantes chegaram a

expulsar um dos moradores do bairro que atuava junto com o Movimento.

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Como alternativa, nos momentos de lazer, utilizam-se os quintais ou casas de

vizinhos amigos, onde as crianças podem brincar juntas.

―O lazer das crianças é ir pra escola e voltar pra casa. No sol ainda!

Ou no frio. Quando não é sol é no frio e pisando na lama!‖

―Melhor é deixar pra se divertir quando pode. Dentro do quintal ou

quando a gente pode sair com eles pra fora né‖.

A maioria busca freqüentar espaços de lazer em outros lugares. Quando possuem

condições, optam por freqüentar lugares em Vitória, os quais foram citados a Praça

dos Namorados, o Parque Moscoso, a Praia de Camburi e o Shopping Vitória. Em

Cariacica, Campo Grande é citada como uma possibilidade de lazer, sendo que o

lugar mais próximo é a Praça de Cariacica Sede, onde em alguns dias da semana é

realizada uma feira de comida e artesanato.

―Aqui em Cariacica não tem coisa boa pra criança brincar. Não tem

divertimento. A não ser o pula-pula de tarde [na Praça de Cariacica

Sede] não tem mais nada!‖.

Esta alternativa atrai principalmente as crianças. Os adolescentes e jovens, buscam

na Sede outro tipo de divertimento, as lan houses, sendo que a freqüência com que

vão a estes estabelecimentos está diretamente relacionada com a sua situação

financeira.

―Gosto de ir na lan house. Tem três em Cariacica Sede, eu já fui em

todas. (...) É dois reais a hora. Quando eu não compro roupa gasto

tudo na lan house‖.

Como parte indissociável da cidade, Alice Coutinho compartilha de várias das

questões que perturbam os moradores e pensadores da cidade, tais como tráfico,

violência (seja do bandido, seja do automóvel), mercantilização da vida, o consumo

exarcebado, etc. Chama-nos atenção no bairro a postura dos jovens, onde essa

relação intensa com o consumo é gritante. Talvez não mais que a estabelecida entre

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os jovens de outras localidades. Salta-nos aos olhos talvez por estar inserida em um

contexto de dívidas e dificuldades em arcar com necessidades primárias. Ainda

assim, não poder participar do jogo do consumo parece ser humilhante. Celulares de

última geração são exibidos e re-negociados a todo o momento. São comumente, e

ironicamente, utilizados como moeda de troca e pagamento de empréstimos e

dívidas realizadas.

Assim como no resto da cidade, coexiste no bairro uma infinidade de minúsculos

territórios submetidos a diversas lógicas. Ainda assim, os laços de amizade criados a

partir das relações de vizinhança mostram-se mais estreitos que em territórios

produzidos de forma menos intensiva. Os moradores da ocupação carregam uma

dimensão de vida que embora não seja exclusiva deles, reflete sua capacidade de

reinvenção, enfrentamento e solidariedade que encontra rebatimento nas suas

práticas, táticas e formas de se relacionar com o mundo.

Embora tenhamos dividido nossa análise em 3 tempos, até agora, parece-nos

evidente o quão indissociáveis são. O tempo da memória atravessa o tempo da ação

a todo o momento, na fala dos moradores, na história do traçado, no chão, na praça.

3.2.3 3º Movimento: Tempo da esperança

Enquanto nos dois movimentos anteriores caminhávamos com o objetivo de

aproximarmo-nos da ocupação, neste terceiro e último movimento caminhamos em

sentido oposto. Aos poucos, vamos nos afastando com o intuito de, a uma certa

distância, delinear perspectivas futuras, indicações de continuidade, mudanças e a

re-elaboração deste escape.

Quando iniciamos esta expedição e imaginamos explorar um universo fruto de uma

ocupação, nos deixamos levar pela expectativa de encontrarmos nele uma

comunidade idealizada, como se o fato de ter sido construída a partir de uma

necessidade comum, fosse capaz de criar entre seus moradores relações mais

harmoniosas e duradouras do que aquelas existentes em outros territórios. Não

demorou muito para que nos defrontássemos com as tensões existentes na

construção deste território alternativo.

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―Um mora de lado o outro mora do outro e as pessoas não se juntam!

Você entende? Tem que ta se juntando, tem que ta se organizando

pra fazer um trabalho legal‖

A ocupação como realização não escapa de fissuras e vulnerabilidades próprias da

coletividade.

Realizam-se nela múltiplos movimentos simultâneos ampliando e dispersando as

possibilidades de sociabilidade que vão muito além da frágil idealização da militância

dos ―sem-teto‖. Constroem-se a partir de desejos não apenas coletivos, mas

sobretudo individuais, onde cada morador esforça-se para sanar a sua própria

necessidade básica de habitar. Em determinados momentos, estes fluxos de desejo

e necessidade apontam para uma mesma direção, enquanto, em outros, se

distanciam. No entanto, ambos estão vinculados ao (com)partilhamento de um lugar

comum: o bairro Alice Coutinho. Partilha significa duas coisas: a participação em um

conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. O

conceito de partilha sensível91 agrega, ao mesmo tempo, um comum partilhado e

partes exclusivas. É no ínterim dessas repartições de partes e de lugares que se

construíram as bases desse escape.

Ao abordar o conceito de comunidade, Maria da Glória Gohn (1991), em seu estudo

sobre movimentos sociais e luta pela moradia, demonstra como, nos anos 70 e 80, o

a ―comunidade‖ foi utilizado por diversos setores de forma oportunamente

diferenciada. Os movimentos populares criados a partir de ações da sociedade civil,

utilizavam-se do conteúdo político do termo para conferir sentido a uma nova cultura

política, fundada no aprendizado de uma nova cidadania, em que reivindicações em

torno da noção dos direitos ocupavam um lugar central. Os movimentos sociais

criados por estímulos dos agentes da sociedade política utilizavam-se do termo em

seu sentido funcional-positivista, como ―lócus geográfico espacial‖, criado a partir da

91 RANCIÈRE, 2000.

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rede de relações informais, negadora de uma leitura social a partir de uma

sociedade dividida em classes. E os programas oficiais do governo, utilizavam o

termo comunidade para denominar o caráter agregador das entidades criadas pelo

estímulo do poder público como comunitárias.

Em Alice Coutinho, Movimento e moradores vivenciam tensões que resultam do

confronto das relações de poderes ali estabelecidas e questionadas. Assim como

tensa também é a relação estabelecida entre moradores e traficantes. A

sociabilidade, enquanto ato de estar junto92, implica nestas relações. A sociabilidade

encontrada em Alice Coutinho não se reduz aos conflitos, ainda que sua existência

não deslegitime a vida coletiva. O conflito é constituinte de um espaço social

coletivizado, posto que é múltiplo e diverso.

A atuação conjunta do Movimento com os moradores foi responsável pela notável

consciência e atuação política dos mesmos. Isso é facilmente percebido em

qualquer conversa que se tenha no bairro. Observamos a importância dada à

atuação política e seu entendimento enquanto espaço de ações e possibilidades,

quando freqüentamos as reuniões com representantes da Prefeitura. Os moradores,

ou ao menos a parcela mais atuante deles, entendem a ocupação como parte da

cidade e lutam para sua inclusão e pelos seus direitos, reafirmando e exercitando

sua cidadania. Em geral, os moradores estão sempre bem informados sobre os

acontecimentos políticos do município e principalmente os relacionados ao bairro. A

adesão de alguns deles ao Movimento é outro destes reflexos.

―...depois de eu observar bastante o Paulo Assis, ver como é que ele

trabalhava, eu, decepcionado com várias outras ocupações que eu já

estive... Jardim Carapina, eu fui um dos fundadores de lá, Flexal II eu

sou um dos fundadores de lá... Não deu certo porque os camaradas

que eu ajudava a eles sempre só queria saber da minha ajuda, e na

hora de aparecer, quem aparecia era só eles. Aqui, por exemplo,

Paulo Assis eu passei a ajudar ele, ele quis que eu crescesse junto

92 SANTOS, 1996

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com ele. Ele deu chance para todos nós que entrou junto com ele

acompanhar os trabalhos todinhos. Aonde tinha uma reunião ele

falava ‗ó, vai ter reunião e é bom vocês está lá‘. Tanto é que o

negócio lá da UFES, ele falou ‗é bom que você esteja lá‘. Então ele

sempre procurou valorizar o trabalho da gente deixando a gente

participar de várias reuniões a ponto é que eu já fui parar lá em

Brasília a fora, fui lá pra São Paulo a fora, ganhei viagem de graça.

Com os outros que eu trabalhava, nunca que eles me deram uma

chance de nada. Sempre eu trabalhava, trabalhava, trabalhava, e na

hora de ir dizer quem fez isso aí o camarada dizia assim: ‗foi eu que

fiz‘. Eles nunca sabia falar nós. Já Paulo Assis não... ele falava nós,

nós, nós... Com aquele negócio dele ficar falando sempre nós, aí eu

achei por bem de ajudar. Falei ‗eu vou ajudar vocês um dia, se não

der certo a gente para‘. Até hoje não teve jeito de parar! Tentei sair

fora, mas não tem jeito!‖

Da mesma forma que o apoio dos moradores ao Movimento pôde ser percebido, por

exemplo, na vitória do candidato a vereador Paulo Assis, um dos coordenadores do

MNLM de Cariacica, nas eleições realizadas em 2008. Sua vitória foi atribuída ao

trabalho que desenvolve junto aos moradores de Alice Coutinho e também outras

ocupações.

Quando levada para outras instâncias, a tensão entre essa relação já vivenciada no

interior do bairro, extrapola seus limites e ganha visibilidade com contornos

duvidosos. Sinais dessa situação já apareciam quando um dos representantes do

Movimento assumiu um cargo comissionado ainda na primeira gestão do Prefeito

Helder Salomão, do PT (2004-2008). Queixas do tipo ―agora que estão ‗na Prefeitura‘

esqueceram da gente‖ eram comuns. Assim como seu contrário, ―agora que estamos

na Prefeitura não param de pedir que consiga material de construção e emprego

para parentes‖. As discordâncias entre representantes do Movimento e moradores

quanto aos critérios de elegibilidade dos candidatos a lotes na ocupação também

sempre existiram. Assim como as insinuações de práticas politiqueiras realizadas

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pelo Movimento, favorecendo determinadas pessoas, partidos ou aliados políticos.

Em março de 2009, Paulo Assis teve sua vitória questionada junto ao Ministério

Público sob suspeita de barganhar votos em troca de lotes em Alice Coutinho e

prometer regularização fundiária. Pelos corredores da prefeitura, corre o boato que

tal denúncia foi feita por um suplente que assumiria o posto caso o vereador fose

deposto. Até o momento as investigações não foram concluídas.

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Figura 53 - Reportagem do Jornal A tribuna (12/03/2009)

Fato é que Movimento e moradores destacam-se por ocupar os lugares que lhes são

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seus por direito, principalmente nas instâncias participativas junto ao poder público

municipal. Durante o processo de elaboração do Plano Diretor Municipal de

Cariacica, em 2006, por exemplo, a participação direta do Movimento na figura de

seus representantes foi determinante na definição e delimitação das áreas precárias

no município e inclusão de bairros oriundos de ocupações informais, como Alice

Coutinho, nas ZEIS.

Já em Alice Coutinho, o Movimento ensaia sua retirada do ―comando‖ da ocupação

na expectativa de que as pendências em relação à regularização fundiária se

resolvam. Este é o limite de sua presença, estabelecido pelo próprio Movimento.

Cabe aos moradores construir formas de não deixar escapar a consciência política

cultivada durante todos esses anos. Nesta fase de transição, existe uma

movimentação em torno da constituição de chapas para que se concretize um

processo eleitoral que democraticamente escolha o grupo que irá representá-los

oficialmente mediante a criação de uma associação de bairro.

―O bairro já ta pronto, agora é nós que tempos que investir, trabalhar,

pra que nós viermos a ver o progresso aqui dentro! E esse trabalho,

vai depender de nós, comunidade. De nós, comunidade...‖

―Pra nós, crescer o bairro Alice Coutinho, a gente precisa estar unido

e correndo atrás das autoridades. Achamos o poder, né?!‖.

Através do somatório da diversidade de experiências de sobrevivência, visualizamos

a possibilidade de construção de espaços de esperança que ultrapassem a idéia de

alcançar ―benefícios‖ em infra-estrutura e serviços. O projeto em desenvolvimento da

horta comunitária aponta nessa direção, alimentando um entendimento de cidade

como lugar da reprodução social da vida, restando ainda esperança em uma

atualização da utopia de cidade. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou de

lentidão, para que espaços lisos sejam recriados.

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Figura 54 - Espaço da horta comunitária sendo preparado. Dezembro, 2008.

Mesmo diante de toda a vulnerabilidade a que está exposta a construção da

sociabilidade entre os moradores, o sentimento de pertencimento a uma coletividade

existe. E é importante que exista e que se fortaleça. Esse auto-reconhecimento

enquanto morador ―da comunidade‖ tem a força necessária para enfrentarem ilesos

os olhares preconceituosos que a cidade lhes direciona. Ser ―da comunidade‖

diferencia-os, ainda que, principalmente para os mais jovens, essa associação não

seja desejável. São outros os modelos e estereótipos que gostariam que lhes

fossem associados: o da ―Garota Fantástica‖93, o de participante do Big Brother

Brasil, o de modelo, de atriz, etc. O que eles querem, é outra forma visibilidade.

93 Quadro do Programa Fantástico da Rede Globo no qual acontece um concurso de beleza e a

vencedora ganha o título de Garota Fantástica e firma contrato com uma grande agência de modelos.

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As conquistas ―da comunidade‖, no entanto, têm despertado a admiração dos

moradores dos bairros vizinhos, que em outros momentos, hostilizavam-nos. A

admiração é fruto não somente por aquilo que os moradores já conquistaram para o

bairro, mas também pelo entendimento de que, se fossem somadas as forças,

poderiam conquistar muito mais. As conquistas dos moradores de Alice Coutinho

beneficiam diretamente os moradores dos bairros vizinhos, mais antigos:

―Eles tem mais de 25 anos que não consegue nada pra lá! Depois

que nós viemos praqui, conseguimos melhorias pra lá‖.

―Essa obra [do orçamento participativo] que nós ganhamos pra 2009

foi para o bairro Andorinhas. O Andorinhas ta cheio de lama, ta

ruim... A rua do valão, que sai lá em Cariacica vai ser feita. Nós

ganhamos. Andorinhas, Nova República, Cajueiro... Tinham 20

pessoas do bairro deles só. Da gente tinha muito mais né, muita

gente daqui. No final juntamos com o Ferreira Borges, com

Andorinhas... Juntamos com vários bairros, fizemos uma reunião e

entramos com eles né, pra ajudar eles que eles estavam precisando.

Aqui a gente tem força pra conseguir as nossas coisas. Lá eles não

tem força. Aí a gente fez um acordo: ‗vamos ajudar o pessoal de

Andorinhas? Vamos...Vamos apoiar a obra deles? Vamos‖

Talvez nesse reconhecimento possa estar a chave para que se perpetue o potencial

reivindicador e articulador imbuído no ideal de comunidade. Prova deste

reconhecimento foi a proposta elaborada por um morador do Bairro Antonio Ferreira

Borges que, em uma reunião organizada pela Prefeitura para discussão do Plano de

Ordenamento Territorial – POT, no qual seriam delimitados e definidos os bairros e

seus nomes, sugeriu que prevalecesse o nome Alice Coutinho para denominar o

bairro ao qual ele seria agregado, um dos bairros vizinhos. Essa operação não

precisou ser realizada, e o nome do bairro Alice Coutinho passou a figurar

oficialmente no mapa municipal desde o final de 2009.

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ARTICULAÇÕES

Tentamos através da leitura destes encontros, contribuir para a ampliação do

universo de debates sobre as possibilidades de produção da cidade contemporânea.

Procuramos falar das movimentações marginais e dos espaços por onde transitam

estes praticantes ordinários e todos os demais habitantes da cidade. Os conteúdos

que encontramos neste caminho tanto vagam sem formas muito definidas, quanto

cristalizam-se em formas fixas. Expusemos alguns conflitos, diálogos e

possibilidades de interações e sociabilidade que vieram a revelar e atualizar

questões banalizadas pelo senso comum que em geral tende para a redução da

significação da experiência.

Tentamos elaborar registros que falam da vida cotidiana, dos itinerários percorridos,

dos afetos, dos eventos urbanos, do que é passível de apreensão, ainda que fluido,

do simultâneo, do híbrido, do que está à margem, das opacidades. Enquanto

realizamos esta possibilidade de leitura do território e seu conteúdo, construímos

uma, dentre tantas, cartografias possíveis da cidade.

Encontramos também uma enorme quantidade de outras formas e outros conteúdos

que poderiam fazer parte desta cartografia. Concluímos que são diversas as

motivações que impulsionam o surgimento de um escape: a necessidade, o desejo

de rompimento e enfrentamento a determinadas racionalidades hegemônicas, o

oportunismo, o negócio. Essa distinção é relevante e faz-se necessária distingui-la

em nossa reflexão sobre o caminho percorrido.

Construindo novas ou atualizando nem tão novas possibilidades de existência no

urbano, os escapes são construídos pautados em racionalidades ou novas

imposições e limites disciplinares sobrecodificados em substituição aos códigos já

desgastados? O que temos de mais claro nesta discussão é a impossibilidade, ou

inviabilidade, de uma classificação rígida no que diz respeito ao seu papel de

articulador de novas formas de produção da cidade. Os escapes constituem um

discurso aberto sobre a produção da cidade, onde não cabem restrições.

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172 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA

Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

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Enquanto método, emaranhamos, desemaranhamos e tecemos algumas tessituras

possíveis dos escapes potenciais e o micro-universo no qual se encontram. Temos

por certo que outras tantas tessituras poderiam ser desenvolvidas, ou mesmo

refeitas. Ainda existem dúvidas se em todas as abordagens conseguimos nos livrar

das rígidas análises classificatórias tão presente nos estudos científicos acadêmicos.

Dúvida também se em determinados momentos não acabamos por nos aproximar

mais das representações superficiais da realidade do que das cartografias

subjetivas. Ainda assim, enquanto prática, enquanto experimento metodológico,

entendemos que o aprofundamento e refinamento da proposta de investigação virá a

partir do momento em que novas cartografias sejam praticadas e esta revisada.

Page 173: Escapes Possíveis na Produção da Cidade

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promovido pelo PPG-AU:UFBA em junho de 2009.

http://noolhodarua.wordpress.com/

http://bocadolixo.wordpress.com/category/hip-hop/

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Le Parkour Cariacica ES 02: http://www.youtube.com/watch?v=qH4b_Bi8An8

Freestyle em Padre Gabriel [part1]: http://www.youtube.com/watch?v=KcRDdqxkjCw

Vídeo do grupo de rap Suspeitos na Mira:

http://www.youtube.com/watch?v=BSiG1ejSV1E&feature=related

Vídeo do grupo de rap MDA- Mulheres de Atitude:

http://www.youtube.com/watch?v=l-78EOqmymM

http://www.youtube.com/watch?v=Te-aq6Rvsyw

http://www.youtube.com/watch?v=psHevPynHoU&feature=related

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Renegrado Jorge: http://www.youtube.com/watch?v=1MQAXEiDXEg

Fotologs, my spaces, perfis e páginas de relacionamento:

Rap Capixaba:http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=14589857

Projeto Rua Free Style: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=47227128

Fotolog do grupo de rap In-Versão Brasileira: http://www.fotolog.com/inversao

My Space do grupo de rap In-Versão Brasileira:

http://www.myspace.com/inversaobrasileira

My Space do grupo de hap Família G.A.M: http://www.myspace.com/familiagam

Orkut do grupo de rap Família G.A.M:

http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=7241869022001306049

Palco MP3 do grupo de rap Família G.A.M:

http://palcomp3.cifraclub.terra.com.br/familiagam/

Flog do grupo de rap Família G.A.M: http://www.flogao.com.br/familiagam

My Space do MC Adikto: http://www.myspace.com/mcadikto

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My Space do Suspeitos na Mira: http://www.myspace.com/suspeitosnamira

Página do Suspeitos na Mira no site da Trama:

www.tramavirtual.com.br/suspeitosnamira

My Space do grupo de rap MDA- Mulheres de Atitude:

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