Época do acasalamento

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ÉPOCA DE ACASALAMENTO

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P. G. Wodehouse, o mestre dos humoristas de língua inglesa e um dos maiores de todos os tempos, publicou Época de Acasalamento em 1949, romance com que Os Livros da Raposa* inauguraram a Raposa Matreira, colecção de obras de grandes autores cómicos universais.

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ÉPOCA DE ACASALAMENTO

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P. G. Wodehouse escrevendo no escritório de sua casa em Long Island NY, em 1974,

cerca de um ano antes da sua morte.

© John Marmaras - [email protected]

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NOTA DO EDITOR: Alexandre Soares Silva, autor desta tradução para portu-guês do Brasil, colaborou na sua adaptação para português de Portugal, feitapor Carla Hilário Quevedo e Fernanda Mira Barros.

Título original: The Mating SeasonCopyright © tbc

The Estate of P. G. WodehouseCopyright © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007

Venda exclusiva na Europa© do prefácio: Alexandre Soares Silva

Ilustração da capa: César Évora

Todos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-209-0

Os Livros da Raposa são uma chancela dos Livros Cotoviawww.livroscotovia.pt

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P. G. Wodehouse

Época de acasalamento

OS LIVROS DA RAPOSA

RAPOSA MATREIRA

Tradução de

Alexandre Soares Silva

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PREFÁCIO

Alguns escritores gostam de caçar elefantes, seduzir sobrinhas,fundar movimentos, virar ministros da cultura, se viciar em anfetami-nas, elogiar Staline, beber bastante e depois chutar bandejas das mãosde velhinhas francesas — essas coisas todas. P. G.Wodehouse (1881 --1975) gostava de escrever, e passou a vida escrevendo. Acordava às sete da manhã, fazia os exercícios diários e se trancava no escritório. Depoisdo almoço dava um passeio, e na reentrada em casa torcia para nãoencontrar nenhuma visita porque isso significaria perder uma tardede trabalho. Escrevia duas mil palavras por dia, sete dias por semana.Quando chegou perto dos cem anos, reduziu a cota diária para milpalavras.

Escreveu noventa e seis livros. Escreveu também letras para aBroadway, trabalhando com Cole Porter e Jerome Kern. Fez dinheirodesde jovem, fez amigos, teve um bom casamento; e se não teve filhos,teve algo melhor que isso, que são poodles. Para um autor cômico, foimuito respeitado, sendo comparado várias vezes a Shakespeare pelodomínio da linguagem e a Dickens pela criação de personagens. Umavez li um verbete de enciclopédia sobre Tennyson que tinha no meioa frase “teve uma vida idílica e feliz”. Honestamente não acho que issotenha sido verdade sobre Tennyson, mas está muito perto de ter sidoverdade sobre Wodehouse.

Estou dizendo isso porque cada vez que alguém escreve sobre avida de Wodehouse dá um destaque enorme a um episódio que aconte-ceu durante a Segunda Guerra Mundial, como se esse fosse o momentoculminante da vida dele. As pessoas fazem isso porque foi o único mo--mento relativamente dramático da vida de Wodehouse: preso pelosalemães na França, passou um ano em campos de prisoneiros na Polô-nia e na Alemanha, jogando críquete e escrevendo; não muito sabia-

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mente, fez alguns programas engraçados de rádio em Berlim, contandopara o público americano como era a vida no campo de prisioneiros, eacabou sendo acusado de traição na Inglaterra. Foi defendido por Eve-lyn Waugh e George Orwell, entre muitos outros, e atacado por WinstonChurchill e o então Ministro das Informações, Alfred Duff Cooper.

Essa foi uma acusação que demorou anos para ser desfeita, masnão acho que o episódio tenha tido a importância que a maioria dos bió-grafos acham que teve; o tom geral da vida de Wodehouse foi de umnão-dramatismo contente e pachorrento, e mesmo o período passadono campo de prisioneiros foi descrito por Wodehouse como “realmentenão desagradável”. Mas contei o episódio porque há dois detalhes diver-tidos em Época de Acasalamento relacionados a ele.

Entre as pessoas que acusaram Wodehouse estava A. A. Milne, oautor de Winnie the Pooh e dos versos infantis de Christopher Robin.O “horrendo Milne”, como o chamou anos mais tarde AuberonWaugh, comentando o episódio, havia sido amigo de Wodehouse antesda guerra, e foi especialmente venenoso nos artigos que escreveu contraele. Wodehouse se vingou depois da guerra: em Época de Acasala-mento, de 1949, Milne aparece como o autor de versos infantis tãoembaraçosos que nem Bertie Wooster nem uma criança querem ser vis-tos recitando-os num palco.

Também é divertido notar que, quando o bebedor inveterado desumo de laranja Gussie Fink-Nottle vai preso por caçar salamandrasna fonte de Trafalgar Square, dá à polícia não o seu próprio e magní-fico nome, mas o de outro dos acusadores de Wodehouse: Alfred DuffCooper. É preciso amar uma pessoa que se vinga de maneira tão carac-teristicamente inocente e benigna.

A.S.S.São Paulo, Maio de 2007

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Embora eu não chegue ao ponto de dizer que tinha o coraçãopesado como chumbo, tenho de admitir que, na véspera de começara cumprir a minha pena em Deverill Hall, eu não estava realmente lámuito animado. Encolhia-me de horror ante a perspectiva de ser recam-biado para uma casa que mantinha relações piegas com uma rufiacomo a minha tia Agatha, ainda para mais debilitado como eu estavadepois de ter tido o filho dela, o Thomas, que é um dos mais proemi-nentes diabos em forma humana, entregue aos meus cuidados durantetrês dias.

Mencionei isto ao Jeeves, que concordou que o programa pode-ria ter sido mais apelativo.

— Mesmo assim — disse eu, tentando acertar, como semprefaço, no lado bom das coisas — é muito lisonjeiro, claro.

— Senhor?— Ser o Eleito do Povo, Jeeves. Ver essa gente toda a andar por

aí a cantar “Queremos o Wooster”.— Ah, sim, senhor. Precisamente. Deveras gratificante.Mas, esperem aí um minutinho. Esqueci-me de que não fazem a

mais pálida ideia do que tudo isto seja. É o que normalmente acontecequando se começa a contar uma história. Uma pessoa sai a correr àfrente, todo alegre e bem disposto como um garboso cavalo de batalhaprestes a dar início à rotina diária e, quando uma pessoa se dá conta,os clientes estão de pé nas patas traseiras a gritar por notas de rodapé.

Deixem-me engatar a marcha-atrás e pôr-vos ao corrente das coisas.A minha tia Agatha, aquela tia que mastiga garrafas de vidro e

mata ratazanas à dentada, chegou subitamente a Londres, vinda doseu ninho rural com o filho Thomas, e ordenou-me, com a autoridadeque a caracteriza, que o instalasse durante três dias no meu apartamento,enquanto o Thomas ia a dentistas e a teatros e fazia outras coisas pre-paratórias para a sua saída de casa e entrada na escola em Bramley-

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-on-Sea. Ordenou-me também que, terminadas essas tarefas, eu seguissepara Deverill Hall, em King’s Deverill, Hampshire, que é a casa de unsamigos quaisquer que ela tem, e oferecesse os meus serviços ao sarauda aldeia. Ao que parece, eles queriam elevar o nível do programa comum cheirinho de talento metropolitano, e a sobrinha do vigário reco-mendou-me a mim.

E assunto arrumado, é claro. Seria inútil dizer à minha tia agoraque eu não me queria nem aproximar do jovem Thos e que não suportoencontros às cegas. Quando a tia Agatha emite as suas ordens, umapessoa cumpre. Mas, como referi, eu estava ciente de uma certa apreen-são quanto ao rumo que as coisas podiam tomar, e o panorama nãome pareceu mais risonho quando fiquei a saber que o Gussie Fink--Nottle estaria entre os presentes em Deverill Hall. Quando se estáencurralado na caverna dos conspiradores, precisa-se de alguma coisabem melhor do que o Gussie para manter a pose.

Ponderei um bocadinho.— Queria ter mais informações sobre essa gente, Jeeves — disse

eu. — Em alturas como esta, gosto de saber o que é que vou enfren-tar. Até agora, só percebi que vou ser o convidado de um terra-tenentechamado Harris ou Hacker ou talvez Hassock.

— Haddock, senhor.— Haddock, hã? — Sim, senhor. O cavalheiro que será o seu anfitrião é um tal Mr.

Esmond Haddock.— É estranho, mas esse nome parece-me familiar, como se já o

tivesse ouvido algures.— Mr. Haddock é o filho do dono de um remédio muitíssimo

conhecido chamado EliminaDor de Cabeça Haddock, senhor. Talvezesse nome em concreto lhe seja familiar, senhor.

— Claro. Conheço muito bem. Não é tão sensacionalmente bomquanto aqueles teus tónicos, mas mesmo assim é um excelente apoiopara o dia seguinte. Então o homem é um desses Haddocks, hã?

— Sim, senhor. O falecido pai de Mr. Esmond Haddock casou-secom a falecida Flora Deverill.

— Antes de falecerem ambos, é claro?— A união entre eles foi considerada um tanto uma mésalliance

pelas irmãs da menina Flora. Os Deverill são uma família muito antigana região e, como acontece com tantas outras nos dias que correm,encontram-se na pobreza.

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— Já estou a ver o filme. O Haddock, embora não seja de ori-gem muito fina por parte do pai, é quem paga as contas semanais?

— Sim, senhor.— Bom, com certeza é porque pode. Esse EliminaDor de Cabeça

é ouro puro, Jeeves.— Tendo a imaginar que sim, senhor.Ocorreu-me uma ideia que quase sempre me ocorre quando estou

a dar dois dedos de conversa com esta excelente criatura: a saber, queele parecia saber a potes do assunto. Mencionei este facto, e ele expli-cou-me que foi uma dessas coincidências extraordinárias que lhe per-mitiu conhecer a história por dentro.

— O meu tio Charlie ocupa o cargo de mordomo em DeverillHall, senhor. É dele que provêm as informações que possuo.

— Não sabia que tinhas um tio Charlie. Charlie Jeeves?— Não, senhor. Charlie Silversmith.Acendi um cigarro bastante apetecido. A história começava a ficar

clara.— Bom, é mesmo muita sorte. Vais poder fornecer-me todos os

factos salientes, se saliente é a palavra que eu queria usar. Que tipo delugar é Deverill Hall? Agradável? Caminhos de cascalho? Paisagens aperder de vista?

— Sim, senhor.— Boa comida?— Sim, senhor.— E, falando no pessoal. Por acaso existe uma Mrs. Haddock?— Não, senhor. O jovem cavalheiro é solteiro. Reside na casa com

cinco tias.— Cinco?— Sim, senhor. As meninas Charlotte, Emmeline, Harriet e Myrtle

Deverill, e Dame Daphne Winkworth, viúva do falecido P. B. Wink-worth, o historiador. A filha de Dame Daphne, a menina Gertrude Wink-worth, pelo que percebi, também habita na casa.

Quando o Jeeves me deu a deixa das “cinco tias” os meus joelhosfraquejaram um pouco, porque a ideia de confrontar tamanha alcateiade tias, mesmo sendo as tias de outra pessoa, era enervante. Lembrandoa mim mesmo que nesta vida não são as tias que contam mas a cora-gem com que as enfrentamos, recompus-me.

— Percebo — disse eu. — Nem rasto de companhia feminina.— Não, senhor.— A companhia do Gussie pode até ser um alívio.

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— Muito provavelmente, senhor.— Mesmo sendo o que é.— Sim, senhor.Pergunto-me, aliás, se se lembram deste Augustus, cujas actividades

já tive ocasião de mencionar uma ou duas vezes. Façam a vossa menteretroceder. Trapalhão até às guelras, cara de peixe, óculos de tartaruga,bebia sumo de laranja, coleccionava salamandras, noivo da maçadora--mor de Inglaterra, de seu nome Madeline Bassett... Ah, já se lembramde quem ele é? Óptimo.

— Diz-me lá, Jeeves — continuei — como é que o Gussie se foienvolver com essas bactérias? Não é um mistério impenetrável que tam-bém ele esteja a caminho de Deverill Hall?

— Não, senhor. Foi o próprio Mr. Fink-Nottle quem me infor-mou disso.

— Tu viste-o, então?— Vi, senhor. Mr. Fink-Nottle veio cá quando o senhor estava fora.— E como é que ele estava?— Desanimado, senhor.— Como eu, encolhe-se todo ante a possibilidade de visitar aquela

horrível cabana?— Sim, senhor. Mr. Fink-Nottle julgava que Miss Bassett iria acom-

panhá-lo, mas Miss Bassett mudou de planos à última hora e foi resi-dir em The Larches, Wimbledon Common, com uma velha amiga deescola que sofreu recentemente uma desilusão amorosa. Segundo MissBassett, a amiga precisava de alguém que a animasse.

Eu estava longe de compreender como é que a companhia daMadeline Bassett podia animar fosse quem fosse, sendo ela, da cabeçaaos pés, a mulher que Deus esqueceu, mas omiti este comentário. Sóopinei que isso deve ter feito o Gussie espumar um pouco.

— Sim, senhor. Mr. Fink-Nottle expressou aborrecimento com amudança de planos. Na verdade, e isto eu conclui a partir dos comen-tários de Mr. Fink-Nottle, pois Mr. Fink-Nottle teve a gentileza de seabrir comigo, em resultado disso instalou-se uma certa frieza entreMr. Fink-Nottle e Miss Bassett.

— Meu Deus! — exclamei. E já vos explico por que razão exclamei “Meu Deus!”. Se se lem-

bram do Gussie Fink-Nottle, provavelmente também se lembrarão dasequência de circunstâncias que levaram, se é que sequências levammesmo, a que essa terrível Bassett acreditasse firmemente, na sua cabe-cinha oca, que o Bertram Wooster estava a definhar de amores por ela.

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Não vou agora entrar em pormenores, mas ela estava convencida deque, se um dia quisesse romper com o Gussie, bastaria chamar-me deurgência, que eu iria a correr ter com ela, pronto para pagar a licençae encomendar o bolo de casamento.

Portanto, conhecendo a minha opinião sobre essa Bassett, M.,compreenderão imediatamente por que razão este paleio sobre friezasme arrancou um alarmado “Meu Deus!”. O pensamento do perigo queeu corria nunca me largou e a minha alma só se iria realmente descon-trair quando aqueles dois estivessem a caminho do altar. Só depois deo padre ter pronunciado a frase definitiva é que o Bertram iria respi-rar livremente outra vez.

— Ah, bom — disse eu, esperando que tudo corresse pelo melhor.— Só um arrufo de namorados, com certeza. Estão sempre a acontecer,estes arrufos de namorados. A esta hora, provavelmente já se deu umareconciliação completa e o Deus do Amor está de volta à cena, risonhoe saltitante. Ah! — continuei, enquanto alguém tocava à campainhada frente — está alguém lá fora à espera. Se for o jovem Thos, diz-lheque eu espero que ele esteja pronto, todo limpinho e rosadinho, às setee quarenta e cinco esta noite, para ir comigo a uma representação deO Rei Lear no Old Vic, e ele que não tente fugir. A mãe dele disse queele tem de ir ao Old Vic, e portanto ele vai ao Old Vic de certezinha.

— Creio ser mais provável que seja Mr. Pirbright, senhor.— O Comida-de-Gato? Porque achas tu que é ele?— Mr. Pirbright também cá esteve durante a sua ausência,

senhor, e disse que voltaria mais tarde. Vinha acompanhado da irmã,Miss Pirbright.

— Santo Deus, é verdade? A Corky? Eu pensava que ela estavaem Hollywood.

— Julgo que a menina veio a Inglaterra de férias, senhor.— Serviste-lhe um chá?— Sim, senhor. O menino Thomas fez de anfitrião. E posterior-

mente Miss Pirbright levou o jovem cavalheiro a ver um filme.— Gostava tanto de não me ter desencontrado dela! Não vejo a

Corky há séculos. Ela estava bem?— Sim, senhor.— E o Comida-de-Gato? Como estava ele? — Desanimado, senhor.— Estás a confundi-lo com o Gussie. Era o Gussie, se bem te

lembras, que estava desanimado.— Mr. Pirbright também.

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— Parece haver muita desanimação aos pulos por aí, ultimamente.— Atravessamos dias difíceis, senhor.— É verdade. Bom, arrasta-o até cá.O Jeeves desapareceu da sala, e momentos depois reapareceu na sala.— Mr. Pirbright — anunciou.O Jeeves acertara. Uma olhadela ao meu jovem visitante foi o sufi-

ciente para eu perceber que ele estava desanimado.

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E, atenção, não é frequente encontrarmos o nosso objecto de es-tudo nestas condições. Um tipo excepcionalmente esfuziante, em regra.De facto, considerado no seu todo, eu diria que, de todos os tipos foliõesdo Drones Club, o Claude Cattermole Pirbright talvez seja o mais folião,tanto no palco como fora do palco.

Digo “no palco” porque é sob os holofotes que ele aufere o enve-lope semanal. Pertence a uma família célebre no teatro. O pai foi ohomem que escreveu a melodia para The Blue Lady e outros grandessucessos que eu infelizmente perdi, por estar no berço nessa época.A mãe era a Elsie Cattermole, que foi durante muitos anos uma estrelaem Nova York. E a irmã, a Corky, arrebata a clientela com a sua garrae a sua espièglerie, se é que é esta a palavra que eu quero usar, desdeos dezasseis anos.

Foi quase inevitável, portanto, que, quando saiu de Oxford e sepôs a olhar à volta à procura de um modo de vida que lhe permitissetrês refeições diárias completas e tempo para jogar um bocado de crí-quete, ele tivesse escolhido os tamancos e os coturnos. E hoje em diaé a primeira escolha dos directores quando têm de pôr em palco umacomédia de costumes e querem alguém para fazer de Freddie, o amigofolgazão do herói, envolvido na segunda trama amorosa. Se num espec-táculo desses aparecer um tipo esguio, flexível como um salgueiro-cho-rão, aos saltos com uma raquete na mão e a gritar “Olá, meninas!” poucodepois de o pano ter subido, nem vale a pena procurar no programa.É o Comida-de-Gato.

Nessas ocasiões, ele começa animado e continua animado até che-gar ao fim, e o mesmo sucede na vida privada. Também aí, animação

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é o epíteto dele. O Pongo Twistleton e o Barmy Phipps, que interpre-tam todos os anos no Drones o estridente diálogo cruzado de comédia“Pat e Mike”, do qual ele é autor e produtor, contaram-me que quandoele os está a ensaiar nas falas e na mímica é mais parecido com o Grou-cho Marx do que com qualquer outro ser humano.

No entanto, agora, como digo, o Comida-de-Gato estava desani-mado. Percebia-se a milhas. Tinha o sobrolho tingido pela palidez dopensamento e o ar de um homem que, se dissesse “Olá, meninas!”, o diria como a personagem de um drama russo que anuncia que o avo-zinho se enforcou no celeiro.

Cumprimentei-o cordialmente e disse-lhe que lamentava ter estadofora quando ele me veio visitar, sobretudo porque ele tinha vindo acom-panhado da Corky.

— Adoraria ter conversado com a Corky — acrescentei. — Nãofazia a menor ideia de que ela estava de volta a Inglaterra. Agora receiobem que me tenha desencontrado dela.

— Não, não te desencontraste.— Desencontrei-me, sim. Parto amanhã para um lugar chamado

Deverill Hall, em Hampshire, para dar uma ajudinha no sarau local.Parece que a sobrinha do vigário insistiu em me incluir na trupe, mas amim o que me confunde é como é que essa criatura de Deus ouviu falarde mim! Uma pessoa não imagina que a sua reputação chegue tão longe!

— Mas que idiota me saíste tu, é a Corky!— A Corky?Fiquei embasbacado. Há poucas criaturas na vida melhores do

que a Cora (“Corky”) Pirbright, com quem eu mantenho a mais ami-císsima das relações desde a infância, pois nesses anos de formação fre-quentámos as mesmas aulas de dança, mas nada no seu comportamentome deu alguma vez a ideia de que ela fosse aparentada com o clero.

— O meu tio Sidney é o vigário lá no sítio, e a minha tia está fora,em Bornemouth. É a Corky que toma conta da casa na ausência dela.

— Meu Deus! Coitado do Sid! E ela arruma-lhe o escritório, aposto?— Provavelmente.— Endireita-lhe a gravata?— Não me surpreenderia.— E diz-lhe que ele fuma demais, e sempre que ele se instala con-

fortavelmente num cadeirão, ela puxa-o dali para fora para lhe ajeitaras almofadas. Ele deve estar a sentir-se como que a viver no Livro dasRevelações! E a Corky não acha o presbitério muito monótono, depoisde ter estado em Hollywood?

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— Nada disso. Adora aquilo. A Corky é diferente de mim. Eu nãoseria feliz fora do show business, coisa de que ela nunca gostou real-mente, embora tenha feito tanto sucesso. Acho até que ela nunca teriasequer subido ao palco se não fosse a Mãe querer tanto. O sonho daCorky é casar com alguém que viva no campo, e passar o resto da vidaenterrada em vacas e cães e nessas coisas. Suponho que é o efeito dosangue de tantos terra-tenentes nas nossas veias. O meu avô era agri-cultor. Mal me lembro dele. Era só patilhas, e estava sempre a lamen-tar-se por causa do estado do tempo. Andar numa azáfama na paró-quia e a organizar espectáculos locais é o que a Corky gosta mesmode fazer.

— Tens alguma ideia do que ela quer que eu faça para os cam-pónios de lá? Não é a “Cantiga do Casamento do Guarda”, espero?

— Não. Vais ficar com o papel de Pat no número de diálogo cru-zado que eu escrevi.

Isto chegou com o rótulo de notícia agradabilíssima. Com dema-siada frequência, nestas orgias os oficiais de alta patente que coman-dam a coisa mandam-nos tocar a “Cantiga do Casamento do Guarda”que, por algum motivo, desperta sempre os piores sentimentos nosselvagens que ficam de pé, atrás da última fila do teatro. Mas, que sesaiba, nunca houve um único rústico desses sempre-em-pé que nãodevorasse um bom número de comédia. Há qualquer coisa na cena doActor A a bater na cabeça do Actor B com um guarda-chuva e doActor B a espetar a barriga do Actor A com um instrumento igualmentepontiagudo que parece falar ao mais profundo dessa gente. Disfarça-dos com uma barba verde, e com a ajuda apropriada do resto do elenco,eu podia prever com toda a segurança que teria os frequentadoreshabituais a rebolar de riso pelos corredores.

— Certo. Óptimo. Esplêndido. Posso agora encarar o futuro decoração leve. Mas se a Corky queria alguém para o papel de Pat, por-que é que não te escolheu a ti? Sendo tu um profissional experiente.Ah, já percebi o que deve ter acontecido. Ela ofereceu-te o papel a tie tu armaste-te em bom, achaste que estavas muito acima destas coisasde amador.

O Comida-de-Gato abanou o coco melancolicamente. — Não foi nada disso. Nada me daria mais prazer do que actuar no

sarau de King’s Deverill, mas nem tive essa oportunidade. As mulhereslá do salão de festas odeiam-me de morte.

— Então já as conheces? Como é que elas são? Um harém demegeras, imagino.

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— Não, ainda não as conheci. Mas estou noivo da sobrinha delas,a Gertrude Winkworth, e a ideia de que ela se vai casar comigo deixa--as doentes. Se eu aparecesse a um quilómetro de distância de DeverillHall, elas largavam os cães atrás de mim. Por falar em cães, a Corkycomprou um hoje de manhã, no canil de Battersea.

— Deus a abençoe — disse eu, distraído, porque estava concen-trado neste romance em que ele se metera e estava a tentar separar onovelinho de lã dele daquele emaranhado que era o gangue das tias esei-lá-mais-quem que o Jeeves mencionara. Até que percebi quem elaera. A Gertrude, filha de Dame Daphne Winkworth, viúva do falecidoP. B. Winkworth, o historiador.

— É por isso que vim ver-te.— Por causa do cão da Corky?— Não, por causa desta história da Gertrude. Preciso da tua ajuda.

Vou contar-te a história toda.Mal ele entrara, eu oferecera ao Comida-de-Gato um hospitaleiro

uísque com soda, do qual até agora ele tinha tomado umas duas sorvi-delas e um gole. Agora, o Comida-de-Gato emborcava o resto de um sótrago, e a coisa parece ter sortido efeito porque, tendo o uísque descidogoela abaixo, ele falou com animação e fluência.

— Queria começar por dizer, Bertie, que, desde que o primeiro serhumano saiu a rastejar das lamas primordiais e a vida começou nesteplaneta, nunca ninguém amou ninguém como eu amo a Gertrude Wink-worth. Digo isto porque quero que compreendas que aquilo a que estása assistir não é um desses namoricos leves de Verão, é uma verdadeirapaixão, digna de um Teatro Nacional. Eu amo-a!

— Isso é bom. Onde é que a conheceste?— Numa casa em Norfolk. Estavam a pôr em cena umas peças

amadoras e chamaram-me para as produzir. Meu Deus! Aqueles cre-púsculos no velho jardim, com os passarinhos a cantar sonolentos nosarbustos e as estrelas a começarem a espreitar no…

— Muito bem. Continua.— Ela é maravilhosa, Bertie. Não faço a menor ideia porque é

que ela me ama.— Mas ama-te?— Ah sim, ama-me! Ficámos noivos e ela voltou a Deverill Hall

para dar a notícia à mãe. E o que achas tu que aconteceu quando eladeu a notícia à mãe?

Bom, a verdade é que ele tinha revelado o final da história logono início.

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— A mãe esperneou?— Deu um berro que se conseguia ouvir em Basingstoke.— E Basingstoke fica…— A uns trinta quilómetros, em linha recta.— Conheço Basingstoke. Abençoado seja, sim, conheço bem.— Ela…— Passei um tempo lá quando era miúdo. Uma velha ama minha

vivia em Basingstoke numa casa geminada chamada “Balmoral”. Ela cha-mava-se Hogg, por estranho que pareça. A ama Hogg. E tinha soluços.

Os modos do Comida-de-Gato começaram a ficar um pouco ten-sos. Parecia um rufia sempre-em-pé de aldeia a ouvir a “Cantiga do Casa-mento do Guarda”.

— Olha, Bertie — advertiu — que tal não falarmos sobre Basings-toke nem sobre a tua ama? Para o diabo com Basingstoke e para o diabocom a tua maldita ama! Onde é que eu ia?

— Parámos na altura em que Dame Daphne Winkworth estavaa dar um berro.

— Isso mesmo. As irmãs dela, quando lhes disseram que a Ger-trude queria casar com o irmão da Miss Pirbright lá da paróquia e que esse irmão era actor de profissão, também começaram aos berros.

Brinquei com a ideia de perguntar se esses berros se teriam tam-bém ouvido em Basingstoke, mas conselhos mais ajuizados prevale-ceram.

— Elas não gostam da Corky e não gostam de actores. Quandoelas eram jovens, durante o reinado da Rainha Isabel, os actores eramconsiderados uns canalhas e uns vagabundos, e elas não conseguemmeter naquelas cabecinhas que o actor moderno é um cidadão comrecursos que ganha as suas sessenta libras por semana e investe a maiorparte em títulos do Tesouro muito seguros. Ai, se eu conseguisse pensarnuma maneira de enganar o pessoal dos impostos, seria um homemrico! Não conheces nenhuma maneira de enganar o pessoal dos impos-tos, pois não, Bertie?

— Não, lamento. Duvido até que o Jeeves conheça. Então man-daram-te passear?

— Pois foi. Recebi uma carta triste da Gertrude a dizer que nãodava. Se quiseres, podes perguntar porque é que não fugimos juntos.

— Ia perguntar agora mesmo.— Não consegui dar-lhe a volta. Ela teme a ira da mãe.— Difícil de lidar, essa mãe?

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— Dificílima. Foi directora de uma grande escola para raparigas.A Gertrude pertenceu a esse grupo de condenadas e nunca recupe-rou da experiência. Não, fugirmos os dois parece estar fora de ques-tão. E o pior é isto, Bertie. A Corky conseguiu um contrato para mimcom o estúdio dela em Hollywood e eu posso ter de viajar a qualquermomento. É uma situação terrível.

Fiquei calado por um momento. Estava a tentar lembrar-me deuma coisa que eu tinha lido nalgum sítio sobre uma coisa não poderextinguir outra coisa, mas não consegui lembrar-me do quê. A ideiageral era a de que se uma rapariga te ama e tu és obrigado a pô-la delado durante algum tempo, ela ficará à tua espera, portanto usei esteargumento, mas o Comida-de-Gato disse que isso era muito bonito etal mas que eu não sabia tudo. O enredo, garantiu-me, ia começar acomplicar-se.

— Chegamos agora — anunciou ele — ao demónio do Haddock.E é aqui que eu preciso da tua ajuda, Bertie.

Eu disse que não estava a perceber a essência da questão, e eledisse que era claro que eu não estava a perceber o raio da essência daquestão, mas será que eu não podia esperar um segundo, caramba, edar-lhe uma oportunidade de me explicar, e eu respondi-lhe, Ah, poisclaro, certamente.

— O Haddock! — resmungou o Comida-de-Gato entre dentese exibindo outros sinais de emoção. — O Haddock, o Destruidor deLares! Tu sabes alguma coisa acerca desse parasita de primeira, Bertie?

— Só sei que o seu falecido pai era o dono daqueles EliminaDorde Cabeça.

— E deixou-lhe dinheiro suficiente para levar alguém à falência.Não estou a sugerir, é claro, que a Gertrude se casaria com ele pordinheiro. Ela desprezaria um acto tão ignóbil como esse. Mas além deter mais dinheiro do que a gente sequer imagina, o homem parece umaespécie de deus grego e é extraordinariamente magnético. É o que diza Gertrude. E, pior que isso, deduzo pelas cartas dela que a família aestá a pressionar. E tu podes imaginar como é a pressão de uma mãee quatro tias.

Comecei a entender o espírito da coisa.— Queres dizer que o Haddock está a tentar entrar na jogada?— A Gertrude escreve-me e diz-me que ele lhe proporciona os

momentos mais excitantes que já viveu. O que te dá uma ideia da espé-cie de pinga-amor que aquele miserável é. Ainda não há muito tempoestava a proporcionar à Corky a mesma coisa. Pergunta-lhe, quando

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a vires, mas com cautela, porque ela é sensível como um abcesso em rela-ção a isso. Estou a dizer-te, o homem é uma ameaça pública! Deviammantê-lo acorrentado, em prol da pureza das mulheres! Mas nós vamosdar-lhe uma lição, não vamos?

— Ai vamos?— Ora se vamos. Ouve lá o que eu quero que tu faças. Hás-de

concordar que, mesmo um tipo como o Esmond Haddock, que pareceser a coisa mais próxima do Don Juan que alguma vez já existiu, nãopode agir completamente à vontade à tua frente?

— Estás a dizer que precisa de privacidade?— Exacto. Então, assim que tu chegares a Deverill Hall, começas

logo a estragar-lhe o joguinho sinistro. Ficas sempre ao pé da Gertrude.Juntinho a ela, como se tivesses cola. Atento para que ele não se encon-tre com ela sozinho no jardim das rosas. Se houver planos para visitasao jardim das rosas, tu fazes-te incluir. Estás a perceber, Bertie?

— Estou a perceber, pois — respondi, um tanto ou quanto nadúvida. — O que tens em mente é qualquer coisa na linha do cordei-rinho da Maria. Não sei se tu por acaso conheces o poema (eu costu-mava recitá-lo quando era pequeno) mas, no geral, a questão era quea Maria tinha um cordeirinho cuja lã era branca como a neve, e ondequer que a Maria fosse, o cordeirinho ia sempre atrás. Ora, tu queresque eu baseie a minha técnica na do cordeirinho da Maria?

— É isso. Ficas à coca a cada segundo, que o perigo é tenebroso.Bom, para te dar uma ideia, a sugestão mais recente dele é que, numadestas manhãs, ele e a Gertrude peguem numas sanduíches e vão acavalo até um sítio que fica a uns vinte quilómetros de distância, à beirade penhascos e coisas do género. E sabes o que é que ele pretende fazerquando chegarem lá? Mostrar-lhe o Salto dos Amantes.

— Ai sim?— Não digas “Ai sim?” dessa maneira displicente. Pensa, homem.

Vinte quilómetros de ida, depois o Salto dos Amantes, depois vinte qui-lómetros de regresso. A imaginação fica tonta só de pensar nos exces-sos que um tipo como o Esmond Haddock pode cometer numa caval-gada de quarenta quilómetros com um Salto dos Amantes pelo meio.Não sei para que dia terá sido planeada a expedição mas, seja lá qualfor, tu tens de estar presente do princípio ao fim. Se possível, a cavalgarno meio deles. E, pelo amor de Deus, não afastes os olhos dele nem porum segundo, sobretudo no Salto dos Amantes. Aí é que vai ser a zonade perigo. Se notares a menor tendência por parte dele, lá no Salto dosAmantes, para se inclinar sobre ela e lhe segredar ao ouvido, tu inter-

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rompes a cena como um relâmpago. Olha que eu conto contigo, Bertie.A minha felicidade depende de ti.

Bom, é claro, se um homem com quem estivemos na escola par-ticular, no colégio e em Oxford nos diz que conta connosco, não temosoutra alternativa a não ser deixar que ele conte connosco. Afirmar quea tarefa me agradava seria exagerar os factos, mas respondi Muito bem,muito bem, e ele agarrou-me na mão e disse que se existissem maistipos como eu o mundo seria um lugar melhor, o que era uma visãoque diferia muito da da minha tia Agatha, e que, palpitava-me, iria dife-rir muito da do Esmond Haddock. Talvez umas quantas almas em Deve-rill Hall viessem a amar o Bertram, mas eu apostava que o nome de E.Haddock não estaria no rol.

— Bom, tiraste-me um peso dos ombros — disse o Comida-de--Gato, tendo soltado a minha mão e depois voltado a agarrá-la e aespremê-la. — Saber que tu vais estar em campo, a trabalhar comoum mouro pelos meus interesses, é coisa que não tem preço. Não metenho alimentado bem ultimamente, mas esta noite vou jantar comgosto. Quem me dera que houvesse alguma coisa que eu pudessefazer por ti, em troca.

— E há — respondi.Passara-me pela cabeça um pensamento, sem dúvida causado

pela menção da palavra “jantar”. Desde que o Jeeves me contara dafrieza que havia entre o Gussie Fink-Nottle e a Madeline Bassett, euestava mais que preocupado com a ideia de o Gussie jantar sozinhonaquela noite.

Quero dizer, sabem como é quando se acabou de passar por umdesses arrufos de namorados e depois se vai jantar sozinho. Começa--se a matutar na rapariga durante a sopa e a indagar se não terá sidouma idiotice envolvermo-nos com ela. Com o prato de peixe, esse sen-timento intensifica-se, e quando já se terminou o poulet rôti au cressone estamos a pedir o café, provavelmente já chegámos à conclusão defi-nitiva de que a rapariga não passa de um trapo e de um esqueleto e deum tufo de cabelo, e que seria perfeita loucura contratá-la como par-ceira para a vida toda.

Aquilo de que precisamos nestas ocasiões é de uma companhia ale-gre, que nos afaste os pensamentos sombrios, e parecia-me a mim queaqui estava a oportunidade para a proporcionar ao Gussie.

— E há — insisti. — Conheces o Gussie Fink-Nottle? Ele andadesanimado, e eu tenho motivos para querer que ele não fique sozi-nho esta noite a matutar. Podias jantar com ele?

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O Comida-de-Gato mordeu o lábio. Eu sabia o que lhe estava apassar pela cabeça. Ele estava a pensar, como outros já pensaram, queo primeiro requisito para um jantar agradável é que o Gussie nãoesteja presente.

— Jantar com o Gussie Fink-Nottle?— Isso mesmo.— Porque é que não vais tu?— A minha tia Agatha quer que eu leve o filho dela, o Thomas,

ao teatro.— Mas podes faltar.— Não posso. Ela nunca mais me ia deixar em paz.— Bom, está bem.— Que os céus te abençoem, Comida-de-Gato — disse eu.E isto fez com que o Gussie me saísse da cabeça. Foi de coração

leve que me recolhi para descansar naquela noite. Mal sabia eu, comose costuma dizer, o que a manhã me reservava.

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Se bem que, na verdade, na fase inicial a manhã trouxe umas coi-sas bastante boas. Como geralmente acontece nestas ocasiões em quese está frito lá pela noitinha, o dia começou extremamente bem. Sabendoque às 2h53m eu ia despachar o jovem Thos para a cidadezinha cos-teira de Borstal, tomei o pequeno-almoço a cantarolar, e ao almoço,lembro-me bem, estava igualmente num excelente estado de alma.

Levei o Thos à estação de Vitória, empurrei-o para dentro do com-boio, dei-lhe uma libra e fiquei a acenar a minha mão de primo atédeixar de o ver. A seguir, depois de passar pelo Clube da Rainha para um joguito ou dois de squash, voltei para casa ainda animadinho.

Até aí tinha tudo corrido bem. Ao pôr o chapéu no cabide doschapéus e o guarda-chuva no suporte para guarda-chuvas, pensava quese Deus não estava no Céu e se nem tudo estava bem na Terra, estava--se tão perto disso que não fazia diferença. Não tinha sequer o menorindício de um palpite, se é que me entendem, de haver à espreita, numaesquina, o amargo despertar, com um saco cheio de chumbo na mão,pronto para me rachar o occipital.

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