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Campinas, 5 a 11 de abril de 2010 12 ornal J U ni camp da MARIA ALICE DA CRUZ [email protected] D istrito de Jordão, Sobral, Ceará. Seu Victório, 72 anos, acorda com o sol, toma um café e se dispõe a traçar o caminho de quase uma hora até a roça. Nem um pouco cansado da rotina na lavoura, tampouco afetado por sinais de velhice, se diz orgulhoso por garantir seu sustento com as pró- prias mãos, cuidando da plantação. A satisfação de envelhecer no interior é resumida em poucas palavras: “A velhice da roça é bem melhor que a da praça (cidade).” Frase esta que inspirou o título da tese “Da velhice da praça à velhice da roça: revisi- tando mitos e certezas sobre velhos e famílias na cidade e no rural”, da antropóloga Adriana de Oliveira Alcântara. Orientada pela professora Guida Guin Debert, ela acompanhou o dia-a-dia de 17 pessoas de Jordão e 15 de Fortaleza, no Ceará, para com- parar a velhice no espaço rural e na cidade e saber como é envelhecer na família, entre diferentes gerações. A antropóloga ouviu também os paren- tes das pessoas investigadas. Depois de ter rompido paradig- mas com a dissertação realizada com homens e mulheres em asilo (longe da família), a antropóloga joga por terra a impressão de que envelhecer na família, convivendo com outras gerações, é um fardo para os velhos, principalmente no espaço rural, onde ela intensificou sua investigação. O percurso para conhecer a inter-relação das multigerações familiares foi longo, mas proporcionou, segundo a antropóloga, satisfação. Aos poucos, rostos como os de seu Victório, foram abrindo a porta da casa, o sorriso, o bule de café e até a caixa de surpresas, repleta de informações relacionadas a economia, família, trabalho e controle da casa. A primeira impressão contes- tada é a de que o trabalho os cansa. “O trabalho na roça, tanto entre homens como mulheres, ainda é um valor de vida. Eles não querem parar. Dizem que foram criados assim e que ‘pa- rar é morrer’. Embora as limitações físicas mostrem que têm de parar, a mente não quer”, revela Adriana. Os resultados da investigação permitem ver uma diferença entre os entrevistados da zona urbana e da rural no que se refere ao trabalho e ao sustento da família. O trabalho é uma questão muito presente na vida dos entrevistados do interior, sejam homens ou mulheres. Segundo a pesquisadora, mesmo recebendo a aposentadoria rural, eles continuam o trabalho na roça e enfatizam que não é o fator econômico que os prende à roça, mas o pertencimento da identi- dade. A produção do alimento para eles também é muito importante, de acordo com Adriana, pois eles fazem questão de sustentar seu grupo doméstico, sobretudo na roça. Já na cidade, a maioria dos entrevistados divide o sustento com os filhos, a partir de rateios das despesas. “Para além do sustento e do dinheiro, entra a produção do alimento; eles não com- pram feijão, nem milho e macaxeira. Produzem tudo e não vão comprar. E durante o ano, estocam”, acrescenta. O cuidado com a família não se limita ao sustento, no interior, pois além da ajuda financeira, segundo os próprios entrevistados de Adriana, os velhos ajudam não só os filhos que moram em sua casa, mas também os outros filhos, já que no interior é comum a família ser mais próxima, segundo Adriana. Outra diferença entre citadinos e rurais é que os filhos do interior moram ao redor da casas de seus velhos, diferente do contexto da cidade. “Melhor estar ajudando que ser dependente”. A independência eco- nômica confere uma identidade que está arraigada no grupo familiar por meio de três categorias enfatizadas por Adriana: trabalho-família-terra. “Não dá para falar em família sem falar em trabalho. Isso para eles é questão moral”. Deixar de trabalhar é comparado a uma doença para os trabalhadores rurais. De acordo com Adriana, eles deflagram a velhice através das limitações físicas, quando sentem dor nas pernas e não podem fazer a caminhada até a roça. “É o valor do trabalho se misturando com o valor da vida”, acrescenta a antropóloga. Quanto à renda, a primeira fonte é a aposentadoria. Em seguida, aparece a bolsa família. Essas duas fontes são imprescindíveis para sustento do grupo familiar. Os filhos, por outro lado, contribuem com o pagamento recebido por “bicos” e faxinas, já que o desemprego entre os jovens é maior que na cidade. Segundo Adriana, a aposentadoria é dos velhos, e a bolsa família fica para as crianças da casa. Durante toda a pesquisa, Adriana procura mostrar que não existe um enquadramento do que é família e do que é ser velho. Amparada em conceitos do IBGE, Adriana obser- vou também que não é só o fato de o velho ser detentor de um poder econômico que lhe garante autoridade automaticamente, poder de decisão, mas também o de ser proprietário de um imóvel onde o grupo doméstico mora. Ele exerce autoridade mesmo não possuindo renda, o que quebra alguns modelos. Na cidade, porém, a participação dos filhos no rateio pode tirar o poder de decisão dos velhos. “São os desarranjos, não tem como determinar o que é uma família e o que é ser velho. Existem abordagens que o tempo todo refutam a questão da homogeneidade, da velhice. Eu faço várias provocações para a necessidade de flexibilizar o entremeio entre os modelos”, acentua. A partir das histórias como a de seu Victório ou de um trabalhador rural que aos 82 anos matava boi sozinho, Adriana constatou que ser velho não está restrito a ter certa ida- de, assim como ter determinada idade não significa que a pessoa é limitada, doente. “Vi velhos cuidando de filhos doentes. A idade não permite aplicar modelos de vida”, acrescenta. Se- gundo ela, esta é a importante contri- buição da antropologia no sentido de flexibilizar, romper com todas essas convenções. Para ela, não existe mo- delo único para ser velho e tampouco modelo único para família. Políticas públicas Apesar de ter feito uma análise comparativa, Adriana enfatiza que o grande desafio de sua pesquisa foi abordar a questão do espaço rural, por não existirem estudos pontuais sobre a velhice neste espaço. “O rural ainda hoje é visto como coisa menor em comparação à cidade. Como local do atraso, e a cidade, do desenvol- vimento. Sob que ponto de vista?”, questiona. De acordo com a autora, quem decide o que é urbano e rural no Brasil são as câmaras municipais, e o rural fica em desvantagem. Para ilustrar a ideia, ela menciona trecho de uma citação de José Eli da Veiga, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universi- dade de São Paulo: “Os legisladores não observaram o fenômeno da popu- lação brasileira de 1949 a 1970. E a nova configuração territorial exigiria outras elaborações institucionais que se adequassem às cidades com de- mandas tão específicas, como o caso do rural.” Segundo a autora, Eli da Veiga critica o estatuto da cidade por não contemplar o assunto. “O próprio estatuto da cidade não define o que é cidade. Veja que controvérsia”, ques- tiona Adriana. Envelhecendo (bem) no campo Aposentado na zona rural do município cearense de Jordão (no destaque, vista parcial da cidade): estudo comparativo No interior do Ceará, avô é paizinho. Uma forma de tratamento que também surpreendeu Adriana, que sempre viveu em Fortaleza. A relação harmoniosa e de respeito condiz com a resposta dada pelos velhos quanto motivados a apontar a pessoa da família com a qual têm mais proximidade. Muitos deles citaram o nome de um filho, não necessariamente que vive debaixo do mesmo teto, de acordo com a antropóloga. “Eu não vislumbrava esta questão ao iniciar a pesquisa, mas ela me trouxe informações muito importantes sobre as relações nas famílias”, acrescentou. Ela enfatiza que o fato de um filho voltar para a casa por situações de desemprego ou separação nem sempre está associado a afetividade, preferência, ou companheirismo. “Então, morar sob o mesmo teto não é garantia de que esse idoso terá ajuda, carinho e proteção do familiar”, explica. Avô vira ‘paizinho’ A linha que separa o urbano do ru- ral não representa a realidade de modo satisfatório, na opinião de Adriana. O IBGE segue o critério político-admi- nistratrivo proveniente de um decreto de 1938 (período do estado novo em que a população brasileira era predo- minantemente rural), que define que a área urbana é toda sede de município, cidade e de distrito. Adriana acredita que, dessa forma, a definição de perímetro urbano está subordinada a ideia que a linha que separa o urbano do rural. “Por isso insisto que não representa a realidade de um modo satisfatório, uma vez que os interesses políticos, econômicos e tributários podem prevalecer no momento de sua demarcação”, questiona. A antropóloga Adriana de Oliveira Alcântara, autora da tese Envelhecendo (bem) no campo Fotos: Divulgação Foto: Antoninho Perri

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Campinas, 5 a 11 de abril de 201012 ornalJ Unicampda

MARIA ALICE DA [email protected]

Distrito de Jordão, Sobral, Ceará. Seu Victório, 72 anos, acorda com o sol, toma um café e se dispõe a traçar o

caminho de quase uma hora até a roça. Nem um pouco cansado da rotina na lavoura, tampouco afetado por sinais de velhice, se diz orgulhoso por garantir seu sustento com as pró-prias mãos, cuidando da plantação. A satisfação de envelhecer no interior é resumida em poucas palavras: “A velhice da roça é bem melhor que a da praça (cidade).” Frase esta que inspirou o título da tese “Da velhice da praça à velhice da roça: revisi-tando mitos e certezas sobre velhos e famílias na cidade e no rural”, da antropóloga Adriana de Oliveira Alcântara. Orientada pela professora Guida Guin Debert, ela acompanhou o dia-a-dia de 17 pessoas de Jordão e 15 de Fortaleza, no Ceará, para com-parar a velhice no espaço rural e na cidade e saber como é envelhecer na família, entre diferentes gerações. A antropóloga ouviu também os paren-tes das pessoas investigadas.

Depois de ter rompido paradig-mas com a dissertação realizada com homens e mulheres em asilo (longe da família), a antropóloga joga por terra a impressão de que envelhecer na família, convivendo com outras gerações, é um fardo para os velhos, principalmente no espaço rural, onde ela intensificou sua investigação. O percurso para conhecer a inter-relação das multigerações familiares foi longo, mas proporcionou, segundo a antropóloga, satisfação. Aos poucos, rostos como os de seu Victório, foram abrindo a porta da casa, o sorriso, o bule de café e até a caixa de surpresas, repleta de informações relacionadas a economia, família, trabalho e controle da casa. A primeira impressão contes-tada é a de que o trabalho os cansa. “O trabalho na roça, tanto entre homens como mulheres, ainda é um valor de vida. Eles não querem parar. Dizem que foram criados assim e que ‘pa-rar é morrer’. Embora as limitações físicas mostrem que têm de parar, a mente não quer”, revela Adriana.

Os resultados da investigação permitem ver uma diferença entre os entrevistados da zona urbana e da rural no que se refere ao trabalho e

ao sustento da família. O trabalho é uma questão muito presente na vida dos entrevistados do interior, sejam homens ou mulheres. Segundo a pesquisadora, mesmo recebendo a aposentadoria rural, eles continuam o trabalho na roça e enfatizam que não é o fator econômico que os prende à roça, mas o pertencimento da identi-dade. A produção do alimento para eles também é muito importante, de acordo com Adriana, pois eles fazem questão de sustentar seu grupo doméstico, sobretudo na roça. Já na cidade, a maioria dos entrevistados divide o sustento com os filhos, a partir de rateios das despesas. “Para além do sustento e do dinheiro, entra a produção do alimento; eles não com-pram feijão, nem milho e macaxeira. Produzem tudo e não vão comprar. E durante o ano, estocam”, acrescenta.

O cuidado com a família não se limita ao sustento, no interior, pois além da ajuda financeira, segundo os próprios entrevistados de Adriana, os velhos ajudam não só os filhos que moram em sua casa, mas também os outros filhos, já que no interior é comum a família ser mais próxima, segundo Adriana. Outra diferença entre citadinos e rurais é que os filhos do interior moram ao redor da casas de seus velhos, diferente do contexto da cidade.

“Melhor estar ajudando que ser dependente”. A independência eco-

nômica confere uma identidade que está arraigada no grupo familiar por meio de três categorias enfatizadas por Adriana: trabalho-família-terra. “Não dá para falar em família sem falar em trabalho. Isso para eles é questão moral”. Deixar de trabalhar é comparado a uma doença para os trabalhadores rurais. De acordo com Adriana, eles deflagram a velhice através das limitações físicas, quando sentem dor nas pernas e não podem fazer a caminhada até a roça. “É o valor do trabalho se misturando com o valor da vida”, acrescenta a antropóloga.

Quanto à renda, a primeira fonte é a aposentadoria. Em seguida, aparece a bolsa família. Essas duas fontes são imprescindíveis para sustento do grupo familiar. Os filhos, por outro lado, contribuem com o pagamento recebido por “bicos” e faxinas, já que o desemprego entre os jovens é maior que na cidade. Segundo Adriana, a aposentadoria é dos velhos, e a bolsa família fica para as crianças da casa.

Durante toda a pesquisa, Adriana procura mostrar que não existe um enquadramento do que é família e do que é ser velho. Amparada em conceitos do IBGE, Adriana obser-vou também que não é só o fato de o velho ser detentor de um poder econômico que lhe garante autoridade automaticamente, poder de decisão, mas também o de ser proprietário de

um imóvel onde o grupo doméstico mora. Ele exerce autoridade mesmo não possuindo renda, o que quebra alguns modelos. Na cidade, porém, a participação dos filhos no rateio pode tirar o poder de decisão dos velhos. “São os desarranjos, não tem como determinar o que é uma família e o que é ser velho. Existem abordagens que o tempo todo refutam a questão da homogeneidade, da velhice. Eu faço várias provocações para a necessidade de flexibilizar o entremeio entre os modelos”, acentua.

A partir das histórias como a de seu Victório ou de um trabalhador rural que aos 82 anos matava boi sozinho, Adriana constatou que ser velho não está restrito a ter certa ida-de, assim como ter determinada idade não significa que a pessoa é limitada, doente. “Vi velhos cuidando de filhos doentes. A idade não permite aplicar modelos de vida”, acrescenta. Se-gundo ela, esta é a importante contri-buição da antropologia no sentido de flexibilizar, romper com todas essas convenções. Para ela, não existe mo-delo único para ser velho e tampouco modelo único para família.

Políticas públicasApesar de ter feito uma análise

comparativa, Adriana enfatiza que o grande desafio de sua pesquisa foi abordar a questão do espaço rural, por não existirem estudos pontuais sobre a velhice neste espaço. “O rural ainda hoje é visto como coisa menor em comparação à cidade. Como local do atraso, e a cidade, do desenvol-vimento. Sob que ponto de vista?”, questiona.

De acordo com a autora, quem decide o que é urbano e rural no Brasil são as câmaras municipais, e o rural fica em desvantagem. Para ilustrar a ideia, ela menciona trecho de uma citação de José Eli da Veiga, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universi-dade de São Paulo: “Os legisladores não observaram o fenômeno da popu-lação brasileira de 1949 a 1970. E a nova configuração territorial exigiria outras elaborações institucionais que se adequassem às cidades com de-mandas tão específicas, como o caso do rural.” Segundo a autora, Eli da Veiga critica o estatuto da cidade por não contemplar o assunto. “O próprio estatuto da cidade não define o que é cidade. Veja que controvérsia”, ques-tiona Adriana.

Envelhecendo (bem) no campo

Aposentado na zona rural do município cearense de

Jordão (no destaque,

vista parcial da cidade): estudo

comparativo

No interior do Ceará, avô é paizinho. Uma forma de tratamento que também surpreendeu Adriana, que sempre viveu em Fortaleza. A relação harmoniosa e de respeito condiz com a resposta dada pelos velhos quanto motivados a apontar a pessoa da família com a qual têm mais proximidade. Muitos deles citaram o nome de um filho, não necessariamente que vive debaixo do mesmo teto, de acordo com a antropóloga. “Eu não vislumbrava esta questão ao iniciar a pesquisa, mas ela me trouxe informações muito importantes sobre as relações nas famílias”, acrescentou. Ela enfatiza que o fato de um filho voltar para a casa por situações de desemprego ou separação nem sempre está associado a afetividade, preferência, ou companheirismo. “Então, morar sob o mesmo teto não é garantia de que esse idoso terá ajuda, carinho e proteção do familiar”, explica.

Avô vira‘paizinho’

A linha que separa o urbano do ru-ral não representa a realidade de modo satisfatório, na opinião de Adriana. O IBGE segue o critério político-admi-nistratrivo proveniente de um decreto de 1938 (período do estado novo em que a população brasileira era predo-minantemente rural), que define que a área urbana é toda sede de município, cidade e de distrito. Adriana acredita que, dessa forma, a definição de perímetro urbano está subordinada a ideia que a linha que separa o urbano do rural. “Por isso insisto que não representa a realidade de um modo satisfatório, uma vez que os interesses políticos, econômicos e tributários podem prevalecer no momento de sua demarcação”, questiona.

A antropóloga Adriana de Oliveira Alcântara, autora

da tese

Envelhecendo (bem) no campo

Fotos: Divulgação

Foto: Antoninho Perri