entrevista lucyana peppe

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B.2 DIÁRIOcapital PORTO VELHO-RO . SEGUNDA-FEIRA, 26 DE SETEMBRO DE 2011 ENTREVISTA. Procuradora responsável pelos direitos dos indígenas em Rondônia fala das dificuldades Lugar DIÁRIO: Quais são os desafios em se trabalhar com as questões indíge- nas? LUCYANA PEPE: O princi- pal desafio é o preconceito ge- neralizado dos órgãos públicos, especialmente com aqueles indí- genas que já tem mais contato e já adquiriram algumas caracte- rísticas da nossa sociedade. Para esses indígenas é ainda mais difícil buscar os direitos, por- que existe o preconceito como se eles já não fossem mais indí- genas por terem assimilado al- guns traços da nossa cultura. No Ministério Público Federal não existe nenhuma descriminação quanto ao indígena ser aldea- do, desaldeado, viver na cidade, viver no campo. Tratamos da mesma forma. Em Rondônia são 54 etnias e dentro dessas etnias existem as mais isoladas, que tem nenhum ou pouquíssimo contato com a nossa sociedade, até etnias mais próximas. DIÁRIO: Como trabalhar com etnias tão isoladas? LUCYANA: Todas as de- mandas que chegam atendemos sem nenhuma diferenciação. A função do Ministério Público Fe- deral é fiscalizar para que os di- reitos deles sejam assegurados. A gente intervém frente a outros órgãos públicos como a Funai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Secretaria Estadual de Educação. Dependendo do assunto, nós atuamos frente a diferentes órgãos públicos e par- ticulares que possam estar preju- dicando os direitos deles. DIÁRIO: A atuação da Funai, assim como a Fu- nasa, tem sido alvo de críticas constantes. Como você avalia a atuação des- ses órgãos? LUCYANA: Existem muitas deficiências no atendimento. A Funai atuaria principalmente na função de fiscalização das terras deles e de fazer projetos para que eles possam se autosusten- tar. Caberia a Funai dar esse apoio a todas as comunidades. E ainda existem muitas deficiên- cias. E a Funasa e a Secretaria Especial, criada no ano passado, deveriam dar um atendimen- to digno de saú- de para essas populações. O grande desafio é que tenham equipes para ir até essas al- deias, que con- sigam ter um atendimento rá- pido em caso de emergência, uma frequência de atendimento que proporcione cuidados com os problemas de saúde em geral e para os índios da cidade ter uma base e uma estrutura para atendê-los. DIÁRIO: Como você ava- lia a saúde e a educação hoje aqui no Estado? LUCYANA: Na área da saú- de os problemas eram enormes, não só em Rondônia, mas no Brasil inteiro. Por isso teve um decisão do Governo Federal de criar uma secretaria especial para tentar melhorar a situação. Essa transição aqui em Rondônia se iniciou há alguns meses. Ainda estamos nessa fase de transição. Nossa esperança é que melhore um pouco o atendimento. Na educação existe uma le- gislação Federal que vem do MEC, mas a implemen- tação da educa- ção indígena é do Estado. Ainda existem muitas deficiências. Fal- tam professores do Ensino Fun- damental. Ensi- no Médio então é impossível. O grande proble- ma que a gente encontra é esse: a falta de profes- sores nas aldeias para esses níveis. DIÁRIO: Já foram realiza- dos concursos para professores? LUCYANA: Já teve uma grande vitória para os profes- sores aqui no Estado que foi o concurso para professor indíge- na. Foi uma luta do Ministério Público Federal de se reunir com os indígenas e com os órgãos públicos durante mais de um ano para redigir uma minuta de projeto e que foi entregue ao governador na época. O gover- nador apresentou na Assembleia [Legislativa] e foi efetivado. Rondônia é um dos poucos Es- tados no Brasil que tem uma lei prevendo concurso para profes- sor indígena e isso é um grande avanço porque antigamente os professores eram contratados em cargo comissionado, não tinham carreira. Esse projeto é muito avançado em termo de cidadania porque ele contempla o que está previsto na Constitui- ção: que a carreira do professor e a escolaridade indígena sejam diferenciadas de acordo com a cultura deles. Então eles têm todas as garantias do professor não-índio, mas com as especifi- cidades dos indígenas. DIÁRIO: A pior média do Enem 2010 é de uma escola indígena de São Paulo... LUCYANA: Existem avanços na educação, mas o Estado pre- ÍNDIO E ÍNDIO EM QUALQUER FOTOS: RONI CARVALHO Lucyana Peppe atua no Ministério Público Federal em Rondônia desde 2008 Lucyana destaca uma vitória na educação em Rondônia cisa cada vez mais capacitar os professores indígenas que tem hoje para que melhore o nível da educação. E tentar conseguir colocar professores de todas as séries nas aldeias. O grande pro- blema é que o aluno estuda até a 4ª série e depois ele tem que ir para a cidade, e aí começa o choque cultural. Além do pre- conceito, muitas vezes eles mes- mos não querem sair e com isso começam os problemas. DIÁRIO: Quantas uni- dades de ensino possuem hoje voltadas aos indíge- nas? LUCYANA: Cerca de 80. DIÁRIO: A construção das usinas afetou de algu- ma maneira demandas? LUCYANA: A própria exis- tência das usinas afeta todo o Estado. Quem mora em Porto Velho consegue perceber as mu- danças na população, saúde, educação, moradia e para eles afeta também, das mais variadas maneiras. São mais de 50 etnias, algumas vivendo em áreas de- marcadas, outras em comunida- des que ainda não estão demar- cadas. Então, todas são afetadas em algum grau. Uma das nossas funções é garantir que as em- presas diminuam essa influência que está tendo na terra. Isso está sendo acompanhado de perto. As empresas fazem um es- tudo para saber qual vai ser o impacto da usina em cada uma das comunidades e, a partir daí, sabendo quais são os impactos, são feitos projetos pra mitigar. Na realidade os impactos existem na saúde, educação, na parte de pressão do homem branco em cima das terras deles, porque com o aumento do fluxo populacional há chance de ter mais invasões. Tudo isso vai ser abrandado de alguma forma. DIÁRIO: Como está o atendimento na Casa de Saúde Indígena? LUCYANA: A saúde em ge- ral aqui no Estado é bem precá- ria. Para os indígenas também, falta tudo. A gente está nessa transição da Funasa para a se- cretaria, acompanhando, e pre- cisa mudar essa gestão, porque recurso tem, eles só não estavam sendo bem aplicados. A gente acredita que com uma melhor gestão, a tendência é melhorar. DIÁRIO: Como você ima- gina o panorama para os próximos meses em rela- ção aos atendimentos com os indígenas e as ações do Ministério Público? LUCYANA: Continuar com o nosso trabalho. Nós temos ações nas mais variadas áre- as. Fiscalizamos para que eles obtenham todos os benefícios previdenciários, no contato com a Defensoria Pública da União, para que eles comecem a aten- dê-los de maneira mais efetiva e a defensoria está sendo bem atuante. A gente tem trabalha- do em casos de descriminação contra eles, em que a gente en- tra com ações de danos morais. Atuamos resolvendo questões de terras, de extração ilegal de ma- deira, madeireiros clandestinos. Existem áreas que não foram bem demarcadas e precisam de modificações. Uma grande conquista nos- sa foi conseguir que o Tribunal de Justiça elaborasse um pro- vimento, regu- larizando os registros civis dos indígenas, que agora pode incluir a etnia, o nome indígena e que era algo que os cartórios daqui resistiam demais. A im- plementação aconteceu em 2009 e até hoje alguns cartórios ainda resistem, mas hoje já está assegurado le- galmente. Esse projeto de lei e o con- curso público para professores foram as nossas vitórias. Eles sofrem muita discrimi- nação. Os que optam por viver na cidade têm suas razões. O im- portante é que o indígena, onde quer que ele esteja, que seja bem atendido, que tenha os direitos garantidos. Os da aldeia, nossa grande luta é que a Funai desen- volva projetos de sustentabilida- de, para que não precisem vir para a cidade trabalhar. A gente não briga só pelo atendimen- to médico digno, mas também para que sejam feitas políticas de prevenção de doenças. Além disso, a questão da madeira. O estado está todo devastado, com exceção das terras indígenas e das unidades de conservação, então existe uma pressão muito forte para a questão da madei- ra nas terras indígenas. A gente tem uma força tarefa com a Po- lícia Federal, com o Ibama, que é pra tentar coibir isso. E essas ações vêm dando resultado. Ain- da é pouco perto do tamanho dos problemas, mas aos poucos vamos obtendo várias respostas. DIÁRIO: Existe algum procedimento específico para a população carcerá- ria indígena? LUCYANA: Nós temos um procedimento instaurado, jus- tamente para tirar esses indíge- nas que estão respondendo um processo penal ou que estão presos, dessa invisibilidade. Na verdade, na maioria das vezes, eles respondem como se não fossem indígenas. A gente ofi- ciou todas as delegacias e varas judiciais para saber os proces- sos contra indígenas e muitas responderam que não existia, mas na realidade é porque eles não reconhecem aquelas pessoas como indígenas. Nessa parte pe- nal ainda existe um preconceito muito grande. Se ele fala portu- guês, se ele sabe dirigir, ele res- ponderia como se não fosse in- dígena. Só que a legislação, o Có- digo Penal, traz algumas espe- cificidades para o processo do indígena. Preci- sa ser feito um laudo antropo- lógico para ve- rificar se aquela conduta dele se enquadra dentro da cultura indí- gena. Por exem- plo: existe um crime no Código Penal que é o curandorismo, a pessoa se passar por médico para curar alguém. Alguém em sã consciência iria processar um pajé por isso? Não pode. Em todos os crimes você pode ter um componente cultural e aí nesse caso, você vai ter que levar isso e consideração quan- do for dar a pena. Não é que necessariamente ele não vai ser condenado, mas vai depen- der de como é aquela conduta na cultura dele. E isso está na constituição, ela que manda preservar isso. Às vezes até a própria comunidade aplica uma pena para o indígena. Ainda estamos fazendo um levantamento para saber qual o número de indígenas presos. LARISSA TEZZARI [email protected] @larissatezzari EXISTE UM CRIME NO CÓDIGO PENAL QUE É O CURANDORISMO, A PESSOA SE PASSAR POR MÉDICO PARA CURAR ALGUÉM. ALGUÉM EM SÃ CONSCIÊNCIA IRIA PROCESSAR UM PAJÉ POR ISSO? NÃO PODE NA REALIDADE OS IMPACTOS EXISTEM NA SAÚDE, EDUCAÇÃO, NA PARTE DE PRESSÃO DO HOMEM BRANCO EM CIMA DAS TERRAS DELES, PORQUE COM O AUMENTO DO FLUXO POPULACIONAL HÁ CHANCE DE TER MAIS INVASÕES Paulistana de nascimento e formada em direito em 2000 pela Universidade de São Pau- lo (USP), a Procuradora da República Lucyana Pepe foi delegada da Polí- cia Federal durante seis anos quando, em 2008, veio para Rondônia e ingres- sou no Ministério Público Federal, onde trabalha com a popula- ção indígena. E assuntos ligados aos indígenas são recorrentes: em maio desse ano, grupos de Rondônia e do Amazonas invadiram a sede da Fundação Nacional de Saú- de (Funasa) em Porto Velho, reivindicando melhorias no atendimento dos povos indí- genas. No início do mês, ín- dios Paumari, de Lábrea (AM), instalados no bairro Nacional, pediram ajuda ao Ministério Público Federal para conse- guir atendimento de saúde e assistência social. Na semana passada, lideranças indígenas de Ji-Paraná pediram a saída do coordenador da Funai no município, Vicente Batista. Esses e outros assuntos são temas da entrevista que Lucyana concedeu ao Diário da Amazônia.

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Entrevista com a procuradora Lucy Peppe, responsável pelos direitos dos indígenas em Rondônia.

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Page 1: Entrevista Lucyana Peppe

B.2 DIÁRIOcapitalPORTO VELHO-RO . SEGUNDA-FEIRA, 26 DE SETEMBRO DE 2011

ENTREVISTA. Procuradora responsável pelos direitos dos indígenas em Rondônia fala das dificuldades

Lugar

DIÁRIO: Quais são os desafios em se trabalhar com as questões indíge-nas?

LUCYANA PEPE: O princi-pal desafio é o preconceito ge-neralizado dos órgãos públicos, especialmente com aqueles indí-genas que já tem mais contato e já adquiriram algumas caracte-rísticas da nossa sociedade. Para esses indígenas é ainda mais difícil buscar os direitos, por-que existe o preconceito como se eles já não fossem mais indí-genas por terem assimilado al-guns traços da nossa cultura. No Ministério Público Federal não existe nenhuma descriminação quanto ao indígena ser aldea-do, desaldeado, viver na cidade, viver no campo. Tratamos da mesma forma. Em Rondônia são 54 etnias e dentro dessas etnias existem as mais isoladas, que tem nenhum ou pouquíssimo contato com a nossa sociedade, até etnias mais próximas.

DIÁRIO: Como trabalhar com etnias tão isoladas?

LUCYANA: Todas as de-mandas que chegam atendemos sem nenhuma diferenciação. A função do Ministério Público Fe-deral é fiscalizar para que os di-reitos deles sejam assegurados. A gente intervém frente a outros órgãos públicos como a Funai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Secretaria Estadual de Educação. Dependendo do assunto, nós atuamos frente a diferentes órgãos públicos e par-ticulares que possam estar preju-dicando os direitos deles.

DIÁRIO: A atuação da Funai, assim como a Fu-nasa, tem sido alvo de críticas constantes. Como você avalia a atuação des-ses órgãos?

LUCYANA: Existem muitas deficiências no atendimento. A Funai atuaria principalmente na função de fiscalização das terras deles e de fazer projetos para que eles possam se autosusten-tar. Caberia a Funai dar esse apoio a todas as comunidades. E ainda existem muitas deficiên-cias. E a Funasa e a Secretaria Especial, criada no ano passado, deveriam dar um atendimen-to digno de saú-de para essas populações. O grande desafio é que tenham equipes para ir até essas al-deias, que con-sigam ter um atendimento rá-pido em caso de emergência, uma frequência de atendimento que proporcione cuidados com os problemas de saúde em geral e para os índios da cidade ter uma base e uma estrutura para atendê-los.

DIÁRIO: Como você ava-lia a saúde e a educação hoje aqui no Estado?

LUCYANA: Na área da saú-

de os problemas eram enormes, não só em Rondônia, mas no Brasil inteiro. Por isso teve um decisão do Governo Federal de criar uma secretaria especial para tentar melhorar a situação. Essa transição aqui em Rondônia se iniciou há alguns meses. Ainda estamos nessa fase de transição. Nossa esperança é que melhore um pouco o atendimento.

Na educação existe uma le-gislação Federal que vem do MEC, mas a implemen-tação da educa-ção indígena é do Estado. Ainda existem muitas deficiências. Fal-tam professores do Ensino Fun-damental. Ensi-no Médio então é impossível. O grande proble-ma que a gente encontra é esse: a falta de profes-sores nas aldeias para esses níveis.

DIÁRIO: Já foram realiza-dos concursos

para professores?LUCYANA: Já teve uma

grande vitória para os profes-sores aqui no Estado que foi o concurso para professor indíge-na. Foi uma luta do Ministério Público Federal de se reunir com os indígenas e com os órgãos públicos durante mais de um ano para redigir uma minuta de projeto e que foi entregue ao governador na época. O gover-nador apresentou na Assembleia [Legislativa] e foi efetivado. Rondônia é um dos poucos Es-tados no Brasil que tem uma lei prevendo concurso para profes-sor indígena e isso é um grande avanço porque antigamente os professores eram contratados em cargo comissionado, não tinham carreira. Esse projeto é muito avançado em termo de cidadania porque ele contempla o que está previsto na Constitui-ção: que a carreira do professor e a escolaridade indígena sejam diferenciadas de acordo com a cultura deles. Então eles têm todas as garantias do professor não-índio, mas com as especifi-cidades dos indígenas.

DIÁRIO: A pior média do Enem 2010 é de uma escola indígena de São Paulo...

LUCYANA: Existem avanços na educação, mas o Estado pre-

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Lucyana Peppe atua no Ministério Público Federalem Rondôniadesde 2008

Lucyana destaca uma vitória na educação em Rondônia

cisa cada vez mais capacitar os professores indígenas que tem hoje para que melhore o nível da educação. E tentar conseguir colocar professores de todas as séries nas aldeias. O grande pro-blema é que o aluno estuda até a 4ª série e depois ele tem que ir para a cidade, e aí começa o choque cultural. Além do pre-conceito, muitas vezes eles mes-mos não querem sair e com isso começam os problemas.

DIÁRIO: Quantas uni-dades de ensino possuem hoje voltadas aos indíge-nas?

LUCYANA: Cerca de 80.

DIÁRIO: A construção das usinas afetou de algu-ma maneira demandas?

LUCYANA: A própria exis-tência das usinas afeta todo o Estado. Quem mora em Porto Velho consegue perceber as mu-danças na população, saúde, educação, moradia e para eles afeta também, das mais variadas maneiras. São mais de 50 etnias, algumas vivendo em áreas de-marcadas, outras em comunida-des que ainda não estão demar-cadas. Então, todas são afetadas em algum grau. Uma das nossas funções é garantir que as em-presas diminuam essa influência que está tendo na terra. Isso está sendo acompanhado de perto.

As empresas fazem um es-tudo para saber qual vai ser o impacto da usina em cada uma das comunidades e, a partir daí, sabendo quais são os impactos, são feitos projetos pra mitigar.

Na realidade os impactos existem na saúde, educação, na parte de pressão do homem branco em cima das terras deles, porque com o aumento do fluxo populacional há chance de ter mais invasões. Tudo isso vai ser abrandado de alguma forma.

DIÁRIO: Como está o atendimento na Casa de Saúde Indígena?

LUCYANA: A saúde em ge-ral aqui no Estado é bem precá-ria. Para os indígenas também, falta tudo. A gente está nessa transição da Funasa para a se-cretaria, acompanhando, e pre-cisa mudar essa gestão, porque recurso tem, eles só não estavam sendo bem aplicados. A gente acredita que com uma melhor gestão, a tendência é melhorar.

DIÁRIO: Como você ima-gina o panorama para os próximos meses em rela-ção aos atendimentos com

os indígenas e as ações do Ministério Público?

LUCYANA: Continuar com o nosso trabalho. Nós temos ações nas mais variadas áre-as. Fiscalizamos para que eles obtenham todos os benefícios previdenciários, no contato com a Defensoria Pública da União, para que eles comecem a aten-dê-los de maneira mais efetiva e a defensoria está sendo bem atuante. A gente tem trabalha-do em casos de descriminação contra eles, em que a gente en-tra com ações de danos morais. Atuamos resolvendo questões de terras, de extração ilegal de ma-deira, madeireiros clandestinos. Existem áreas que não foram bem demarcadas e precisam de modificações.

Uma grande conquista nos-sa foi conseguir que o Tribunal de Justiça elaborasse um pro-vimento, regu-larizando os registros civis dos indígenas, que agora pode incluir a etnia, o nome indígena e que era algo que os cartórios daqui resistiam demais. A im-plementação aconteceu em 2009 e até hoje alguns cartórios ainda resistem, mas hoje já está assegurado le-galmente.

Esse projeto de lei e o con-curso público para professores foram as nossas vitórias.

Eles sofrem muita discrimi-nação. Os que optam por viver na cidade têm suas razões. O im-portante é que o indígena, onde quer que ele esteja, que seja bem atendido, que tenha os direitos garantidos. Os da aldeia, nossa grande luta é que a Funai desen-volva projetos de sustentabilida-de, para que não precisem vir para a cidade trabalhar. A gente não briga só pelo atendimen-to médico digno, mas também para que sejam feitas políticas de prevenção de doenças. Além disso, a questão da madeira. O estado está todo devastado, com exceção das terras indígenas e das unidades de conservação, então existe uma pressão muito forte para a questão da madei-ra nas terras indígenas. A gente tem uma força tarefa com a Po-

lícia Federal, com o Ibama, que é pra tentar coibir isso. E essas ações vêm dando resultado. Ain-da é pouco perto do tamanho dos problemas, mas aos poucos vamos obtendo várias respostas.

DIÁRIO: Existe algum procedimento específico para a população carcerá-ria indígena?

LUCYANA: Nós temos um procedimento instaurado, jus-tamente para tirar esses indíge-nas que estão respondendo um processo penal ou que estão presos, dessa invisibilidade. Na verdade, na maioria das vezes, eles respondem como se não fossem indígenas. A gente ofi-ciou todas as delegacias e varas judiciais para saber os proces-sos contra indígenas e muitas responderam que não existia, mas na realidade é porque eles

não reconhecem aquelas pessoas como indígenas. Nessa parte pe-nal ainda existe um preconceito muito grande. Se ele fala portu-guês, se ele sabe dirigir, ele res-ponderia como se não fosse in-dígena. Só que a legislação, o Có-digo Penal, traz algumas espe-cificidades para o processo do indígena. Preci-sa ser feito um laudo antropo-lógico para ve-rificar se aquela conduta dele se enquadra dentro da cultura indí-gena. Por exem-

plo: existe um crime no Código Penal que é o curandorismo, a pessoa se passar por médico para curar alguém. Alguém em sã consciência iria processar um pajé por isso? Não pode. Em todos os crimes você pode ter um componente cultural e aí nesse caso, você vai ter que levar isso e consideração quan-do for dar a pena. Não é que necessariamente ele não vai ser condenado, mas vai depen-der de como é aquela conduta na cultura dele. E isso está na constituição, ela que manda preservar isso. Às vezes até a própria comunidade aplica uma pena para o indígena.

Ainda estamos fazendo um levantamento para saber qual o número de indígenas presos.

LARISSA TEZZARI [email protected] @larissatezzari

EXISTE UM CRIME NO CÓDIGO

PENAL QUE É O CURANDORISMO, A PESSOA SE PASSAR POR MÉDICO PARA

CURAR ALGUÉM. ALGUÉM EM SÃ

CONSCIÊNCIA IRIA PROCESSAR UM PAJÉ POR ISSO?

NÃO PODENA REALIDADE

OS IMPACTOS EXISTEM

NA SAÚDE, EDUCAÇÃO, NA

PARTE DE PRESSÃO DO HOMEM

BRANCO EM CIMA DAS TERRAS

DELES, PORQUE COM O AUMENTO

DO FLUXO POPULACIONAL HÁ

CHANCE DE TER MAIS INVASÕES

Paulistana de nascimento e formada em direito em 2000 pela Universidade de São Pau-

lo (USP), a Procuradora da República Lucyana Pepe

foi delegada da Polí-cia Federal durante seis anos quando, em 2008, veio para Rondônia e ingres-sou no Ministério Público Federal, onde trabalha com a popula-ção indígena.

E assuntos ligados aos indígenas são

recorrentes: em maio desse ano, grupos de Rondônia e do Amazonas invadiram a sede da Fundação Nacional de Saú-de (Funasa) em Porto Velho, reivindicando melhorias no atendimento dos povos indí-genas. No início do mês, ín-dios Paumari, de Lábrea (AM), instalados no bairro Nacional, pediram ajuda ao Ministério Público Federal para conse-guir atendimento de saúde e assistência social. Na semana passada, lideranças indígenas de Ji-Paraná pediram a saída do coordenador da Funai no município, Vicente Batista.

Esses e outros assuntos são temas da entrevista que Lucyana concedeu ao Diário da Amazônia.