entrevista com o prof. dr. silvio josé benelli - revista unesp ciência 2014

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Ilustração: Sandro Castelli D esde 2004, o Brasil possui uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS). A nova legislação procurou transformar qualitativamente a área de assistência no Brasil, que antes operava segundo os padrões das institui- ções de caridade. A PNAS centralizou a gestão do serviço, que passou a ser tratado como um direito do cidadão. O balanço dessa década, no entanto, não é dos me- lhores. “As prefeituras têm dificuldade de cumprir o texto da lei. Mesmo as entida- des públicas, ainda estão longe de tratar as crianças como cidadãs de direito”, diz o psicólogo Sílvio Benelli, professor de Psicologia Social na Unesp de Assis, que deve lançar em agosto o livro Entidades assistenciais socioeducativas: a trama ins- titucional, pela Editora Vozes. O livro é um recorte de sua pesquisa de pós-doutorado, na qual estudou a atuação de diversas entidades de Assistência So- cial, entre elas organizações públicas e Entidades assistenciais atendem população carente seguindo modelo da filantropia e da benemerência religiosa. Psicólogo defende a adoção de novo paradigma, que promova direitos e combata não só os efeitos da pobreza, mas suas causas estruturais Caridade não, cidadania filantrópicas. Por telefone, Sílvio Benelli conversou com a reportagem de Unesp Ciência, e falou sobre sua pesquisa e a avaliação que fez dos serviços prestados. UNESP CIêNCIA Sua formação é em psi- canálise. Como você se envolveu com  a área de Assistência Social? SILVIO BENELLI Eu colaborava como volun- tário em uma ONG, onde minha mulher trabalhava como assistente social, e a diretoria da ONG pediu que eu fosse re- presentante deles no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e no Conselho Municipal de Assistência Social. Quando acabei meu doutorado, me pareceu que seria interessante pes- quisar as entidades que atendem crianças e adolescentes, e decidi focar meu pós- -doutorado nisso. Eu poderia aproveitar minha experiência como conselheiro, porque teria acesso privilegiado ao campo de pesquisa. Passei três anos mergulhado nessa realidade, estudando 25 entidades que atendem crianças e adolescentes em uma cidade de médio porte no interior de São Paulo. UC Como o governo lida com a Assis- tência Social no Brasil?  BENELLI A assistência social é uma política pública que pretende combater a pobre- za e promover a cidadania das pessoas pobres. Seus principais estabelecimentos institucionais surgiram após 2004, com a aprovação da PNAS. Ela criou os Cen- tros de Referência de Assistência Social (CRAS), que têm o objetivo de fornecer proteção social básica às famílias de bair- ros periféricos, que enfrentam questões de violência, desemprego, alcoolismo e drogadição. Seus funcionários, que po- dem ser pedagogos, assistentes sociais e psicólogos, devem conhecer o territó- rio e visitar as famílias. Já os Centros de Referência Especializados de Assistência ENTREVISTA A Guilherme Rosa unespciência .:. agosto de 2014 30 agosto de 2014 .:. unespciência psicologia

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  • Ilustra

    o: San

    dro Ca

    stelli

    D esde 2004, o Brasil possui uma Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS). A nova legislao procurou transformar qualitativamente a rea de assistncia no Brasil, que antes operava segundo os padres das institui-es de caridade. A PNAS centralizou a gesto do servio, que passou a ser tratado como um direito do cidado. O balano dessa dcada, no entanto, no dos me-lhores. As prefeituras tm dificuldade de cumprir o texto da lei. Mesmo as entida-des pblicas, ainda esto longe de tratar as crianas como cidads de direito, diz o psiclogo Slvio Benelli, professor de Psicologia Social na Unesp de Assis, que deve lanar em agosto o livro Entidades assistenciais socioeducativas: a trama ins-titucional, pela Editora Vozes. O livro um recorte de sua pesquisa de

    ps-doutorado, na qual estudou a atuao de diversas entidades de Assistncia So-cial, entre elas organizaes pblicas e

    Entidades assistenciais atendem populao carente seguindo modelo da filantropia e da benemerncia religiosa. Psiclogo defende a adoo de novo paradigma, que promova direitos e combata no s os efeitos da pobreza, mas suas causas estruturais

    Caridade no, cidadania

    filantrpicas. Por telefone, Slvio Benelli conversou com a reportagem de Unesp Cincia, e falou sobre sua pesquisa e a avaliao que fez dos servios prestados.

    Unesp CinCia Suaformaoempsi-canlise.ComovocseenvolveucomareadeAssistnciaSocial? silvio Benelli Eu colaborava como volun-trio em uma ONG, onde minha mulher trabalhava como assistente social, e a diretoria da ONG pediu que eu fosse re-presentante deles no Conselho Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente e no Conselho Municipal de Assistncia Social. Quando acabei meu doutorado, me pareceu que seria interessante pes-quisar as entidades que atendem crianas e adolescentes, e decidi focar meu ps--doutorado nisso. Eu poderia aproveitar minha experincia como conselheiro, porque teria acesso privilegiado ao campo de pesquisa. Passei trs anos mergulhado

    nessa realidade, estudando 25 entidades que atendem crianas e adolescentes em uma cidade de mdio porte no interior de So Paulo.

    UC ComoogovernolidacomaAssis-tnciaSocialnoBrasil?Benelli A assistncia social uma poltica pblica que pretende combater a pobre-za e promover a cidadania das pessoas pobres. Seus principais estabelecimentos institucionais surgiram aps 2004, com a aprovao da PNAS. Ela criou os Cen-tros de Referncia de Assistncia Social (CRAS), que tm o objetivo de fornecer proteo social bsica s famlias de bair-ros perifricos, que enfrentam questes de violncia, desemprego, alcoolismo e drogadio. Seus funcionrios, que po-dem ser pedagogos, assistentes sociais e psiclogos, devem conhecer o territ-rio e visitar as famlias. J os Centros de Referncia Especializados de Assistncia

    entrevista a Guilherme Rosa

    unespcincia .:. agosto de 201430 agosto de 2014 .:. unespcincia

    psicologia

  • A Assistncia Social no Brasil

    Brasil

    2005 2009 2013

    PoRCentAGem De muniCPioS que ReAlizAm SeRvioS SoCioASSiStenCiAiS no PAS

    tRABAlhADoReS DA ASSiStnCiA SoCiAl: SeGunDo A eSColARiDADe (2013)

    Brasil

    2009

    2013

    7.968 unidades, distribudas em 5.437 municpios

    PoRCentAGem De muniCPioS Com CRAS no BRASil

    72,5%

    97,6%

    17.420 unidades,em 2.414 municpios

    muniCPioS Com entiDADeS PRivADAS liGADAS Ao SuAS (2014)

    Brasil

    43%

    PoRCentAGem De muniCPioS Com PRimeiRA-DAmA fRente DA PoltiCA De ASSiStnCiA SoCiAl

    Brasil

    2009

    2013

    2.229 unidades, distribudas em 2.032 municpios

    PoRCentAGem De muniCPioS Com CReAS no BRASil

    20,1%

    36,5%

    23,4%

    Sem instruo

    mdio

    Ps-graduao

    Fontes: IBGE; Pesquisas de Informaes Bsicas de Municpios

    fundamental

    Superior

    Sem declarao de escolaridade

    49,4%

    26,7%

    1,2% 1,4%

    15,4%5,9%

    Social (CREAS) realizam a proteo social de alta complexidade, atendendo a casos como violncia sexual, adolescentes que cometeram atos infracionais e trabalho infantil. Alm desses, tambm existe uma srie de estabelecimentos assistenciais histricos, que funcionam pelo vis da ca-ridade, controlados por grupos religiosos e ONGs. A partir de 2005, com a criao do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS), o governo englobou essas entida-des em sua poltica de Assistncia Social.

    UC Quantoaassistnciasocialim-portantehoje?Benelli Sem dvida, a assistncia social necessria hoje, mas ela s um palia-tivo, porque no se prope a uma trans-formao estrutural da sociedade. Veja bem, o nosso prprio modo de vida que produz a pobreza e a misria, que mais tarde se tornam objeto de interferncia da Assistncia Social. O governo instala um CRAS num bairro de grande vulnera-bilidade social, mas no se questiona por que o bairro est ali, em primeiro lugar. O que o prefeito e os secretrios fizeram para isso acontecer? Em vez de respon-derem a essa pergunta, eles deixam sob responsabilidade dos funcionrios do CRAS atender comunidade de nume-rosos pobres que vivem ali.

    UC Oqueexatamentevocencontrouemcampo?Benelli Em minha anlise, dividi as en-tidades de Assistncia Social que encon-trei em seis possibilidades de funciona-mento, baseadas em paradigmas que se desenvolveram durante momentos his-tricos distintos. As mais antigas so as entidades criadas por grupos religiosos, que eu classifico como pertencentes ao paradigma da caridade. Desde o mundo medieval, o catolicismo tem se ocupa-do com as crianas pobres, com grupos como os salesianos e os orionitas. Alm deles, tambm temos entidades evang-licas e espritas.

    UC Eoquequeremessesgrupos?Benelli Na caridade a pretenso da en-tidade fazer o bem aos pobres, com

    trabalho voluntrio, boa vontade, mas com muito amadorismo. L no se fala de crianas como cidados de direito, mas como objetos de proteo e tutela. Esses grupos esto atendendo s crianas por razes religiosas: o importante fazer o bem quelas almas.

    UC Esseparadigmarenetodasasen-tidadesreligiosas?Benelli No. O segundo paradigma o da promoo humana. Ele tambm abrange grupos religiosos, mas com uma pequena nuance: eles incorporam o tema dos direi-tos humanos. A ideia dessas entidades profissionalizar os pobres, para que eles ganhem dignidade. Como eles dizem: no dar o peixe, mas ensinar a pescar. Esse paradigma segue uma perspectiva pueril diante da realidade, propondo que se o indivduo quiser muito, mas muito mesmo, de algum jeito ele vai se dar bem. Assim, oferecem oficinas de panificao, corte e costura, trabalho domstico. Ningum prope profissionalizar as crianas para que elas se tornem, um dia, engenheiros.

    UC Eosgruposno-religiosos?Benelli Eles esto agrupados no para-digma que eu chamo de filantropia. Ele surge a partir do final do sculo XIX, quando os empresrios se deram conta de que nas cidades havia um grande con-tingente de miserveis. Agora, eles no se preocupavam mais com os pobres porque eram religiosos, mas sim porque eram filantropos. Eu localizo a grupos como o Rotary, o Lions Club e a Maonaria. A filantropia pretende seguir uma lgica cientfica e racional para amparar a po-breza. Querem transformar os pobres em pessoas de bem, teis para a sociedade. Para isso, pretendem corrigir os proble-mas morais dessas pessoas por meio do trabalho. Assim, tambm usam da lgica da profissionalizao, e do cursos de secretariado, office-boy, marceneiro. De quebra produzem mo de obra barata para suas empresas.

    UC OtrabalhodasONGstambmpodeserencaixadonesseparadigma?Benelli Sim, eu localizo no paradigma

    da filantropia todo o terceiro setor. Nas ltimas dcadas, surgiu a ideia de respon-sabilidade social empresarial. Os empre-srios descobriram que ajudar os pobres pode dar lucro, voc pode associar sua marca a uma ONG e colocar no rtulo que uma empresa amiga da criana. Por isso, alguns autores chamam o terceiro setor de refilantropizao da questo social.

    UC Equalseriaoquartoparadigma?Benelli Seria o que chamei de Assistn-cia Social como clientelismo assisten-cialista do poder pblico. As prefeituras tm descoberto na rea da criana e do adolescente uma nova possibilidade de conseguir dividendos eleitorais. Em mi-nha experincia como conselheiro, vi que existe uma dificuldade para as pre-feituras executarem a poltica de Assis-tncia Social de forma sistemtica, com planejamento de longo prazo. Elas reali-zam trabalhos muito pontuais, atuando somente quando algum vem pedir aju-da. Em muitos municpios, ainda temos o Fundo Social de Solidariedade gerido pela primeira-dama. So organismos que recebem doaes e repassam para as en-tidades, dentro de uma lgica clientelista. uma prtica que deveria estar extinta se as prefeituras seguissem a lgica da Assistncia Social como poltica pblica.

    UC Ecomoseriaisso?Benelli o quinto paradigma que identi-fiquei, o da Assistncia Social como pol-tica pblica. Como psiclogo, digo que s possvel comear a atuar a partir desse paradigma, pois os outros esto abaixo

    da crtica. O problema o limite terico e tcnico que est nos documentos que organizam esse paradigma. O Brasil, por exemplo, tem uma histria grande de Educao Popular com Paulo Freire. Seria importantssimo que os trabalhadores dos CRAS se apropriassem dessas questes, mas a literatura deles trata muito pouco de cidadania, de direitos, de participao popular. Fala-se mais em profissionalizar e ajudar os pobres.

    UC Eosprofissionaisqueatuamnaas-sistnciasocialestopreparados?Benelli comum que os editais de con-curso para contratar educadores sociais exijam apenas ensino mdio. Se mesmo para psiclogos e pedagogos j difcil lidar com a misria, imagine para uma pessoa sem qualificao. Ela vai trabalhar a partir de quais referncias? Pode ter di-ficuldades para entender o campo social e agir a partir do preconceito. Muitas ve-zes, as visitas domiciliares dos tcnicos do CRAS funcionam como trabalho de polcia, fiscalizando se a casa est suja, se o marido est presente, se as crianas esto na rua... Eles vo ali moralizar, no fazer um trabalho de acolhida.

    UC Qualseriaasoluo?Benelli O que falta a educao popular, a prtica pedaggica visando a formao da conscincia crtica. Para englobar es-sa entidade hipottica, eu formulei meu ltimo paradigma: o socioeducativo. Ele adotaria a legislao atual sobre direitos humanos e poltica da criana, mas pro-moveria aes assistenciais emancipa-trias. Os educadores precisariam estar cientes de que so cidados mediadores de direitos para outros cidados.

    UC Vocencontroualgumaentidadeatuandoassim?Benelli Esse paradigma socioeducativo um modelo a ser construdo, que ainda no existe na realidade. visando sua construo que trabalho na formao de futuros psiclogos na universidade. No futuro, boa parte deles vai atuar na Assistncia Social. Esse paradigma ainda um horizonte a ser alcanado.

    Para o psicanalista, entidades religiosas, filantrpicas e ONGs costumam oferecer

    formao profissionalizante apenas para carreiras que

    oferecem perspectivas de baixo poder aquisitivo, e no ensinam os jovens

    a pensar criticamente

    96,3%

    98,6%

    99,6%

    unespcincia .:. agosto de 201432 agosto de 2014 .:. unespcincia 33

    psicologia