entrevista com o milton por claudia monteiro

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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS GERAÇÕES DE MILITANTES: REFLEXÕES SOBRE A MILITÂNCIA COMUNISTA EM FAMÍLIA Claudia Monteiro * Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a importância da influência familiar como um fator para a adesão do militante ao Partido Comunista do Brasil em meados do século XX. Para isso, analisamos o depoimento oral de um antigo membro do PCB, atuante nas décadas de 1950 e 1960, este era filho de um outro comunista que havia militado no partido nas décadas de 1930 e 1940. Segundo sua narrativa, percebemos que mesmo com todos os percalços vividos pela família devido à perseguição política, as motivações de solidariedade e igualdade que levava ao comunismo sobreviviam, sendo transmitidas de pai para filho, ou seja, muitas vezes razões emocionais e afetivas eram tão importantes para a adesão ao PCB quanto as questões relacionadas à lógica marxista. Abstract This article has as objective presents a reflection on the importance of the family influence as a factor for the adhesion of the militant to Communist Party of Brazil in the middle of the century XX. For that, we analyzed the oral deposition of an old member of PCB, militant in the decades of 1950 and 1960, this militant was son of another communist that had militated in the party in the decades of 1930 and 1940. As your narrative, we noticed that even with all the profits lived by the family due to the political persecution, the solidarity motivations and equality that it took to the communism survived, being transmitted of father for son, in other words, a lot of times emotional and affective reasons were so important for the adhesion to PCB as the subjects related to the Marxist logic. Palavras-chave: memória, família, militância comunista. Key-words: memory, family, communist militancy Alguns significados da reconstrução da memória A realização de entrevistas com velhos militantes nos obriga a pensar na pluralidade da história, das cronologias e das realidades. Como escrever a história inserindo sentimentos, desilusões, críticas, esperanças e avaliações das causas “perdidas”? A entrevista com Milton Ivan Heller, 74 anos, jornalista paranaense, ex-militante do antigo PCB, revelou-nos aspectos da militância política ainda não percebido na análise das fontes escritas levantadas para a pesquisa de mestrado sobre os ferroviários comunistas no Paraná. Milton era filho de um desses ferroviários sobre o qual foram encontradas várias informações nos arquivos da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). Em seu relato, ficou evidente o sentimento de identidade com a causa comunista e a admiração ao falar da militância do pai que, mesmo depois de velho, quando * Professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Campus de Irati- PR, mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Page 1: Entrevista com o Milton por Claudia Monteiro

Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS

GERAÇÕES DE MILITANTES: REFLEXÕES SOBRE A MILITÂNCIA COMUNISTA

EM FAMÍLIA

Claudia Monteiro*

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a importância da influência familiar como um fator para a adesão do militante ao Partido Comunista do Brasil em meados do século XX. Para isso, analisamos o depoimento oral de um antigo membro do PCB, atuante nas décadas de 1950 e 1960, este era filho de um outro comunista que havia militado no partido nas décadas de 1930 e 1940. Segundo sua narrativa, percebemos que mesmo com todos os percalços vividos pela família devido à perseguição política, as motivações de solidariedade e igualdade que levava ao comunismo sobreviviam, sendo transmitidas de pai para filho, ou seja, muitas vezes razões emocionais e afetivas eram tão importantes para a adesão ao PCB quanto as questões relacionadas à lógica marxista. Abstract This article has as objective presents a reflection on the importance of the family influence as a factor for the adhesion of the militant to Communist Party of Brazil in the middle of the century XX. For that, we analyzed the oral deposition of an old member of PCB, militant in the decades of 1950 and 1960, this militant was son of another communist that had militated in the party in the decades of 1930 and 1940. As your narrative, we noticed that even with all the profits lived by the family due to the political persecution, the solidarity motivations and equality that it took to the communism survived, being transmitted of father for son, in other words, a lot of times emotional and affective reasons were so important for the adhesion to PCB as the subjects related to the Marxist logic. Palavras-chave: memória, família, militância comunista. Key-words: memory, family, communist militancy

Alguns significados da reconstrução da memória

A realização de entrevistas com velhos militantes nos obriga a pensar na pluralidade da

história, das cronologias e das realidades. Como escrever a história inserindo sentimentos,

desilusões, críticas, esperanças e avaliações das causas “perdidas”? A entrevista com Milton Ivan

Heller, 74 anos, jornalista paranaense, ex-militante do antigo PCB, revelou-nos aspectos da

militância política ainda não percebido na análise das fontes escritas levantadas para a pesquisa

de mestrado sobre os ferroviários comunistas no Paraná. Milton era filho de um desses

ferroviários sobre o qual foram encontradas várias informações nos arquivos da Delegacia de

Ordem Política e Social (DOPS). Em seu relato, ficou evidente o sentimento de identidade com a

causa comunista e a admiração ao falar da militância do pai que, mesmo depois de velho, quando

* Professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), Campus de Irati-PR, mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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já havia deixado o PCB, nunca abandonou os sonhos e os ideais. Este trabalho tem como objetivo

apresentar uma reflexão sobre a importância dessa influência familiar paterna como um fator para

a adesão do militante ao Partido Comunista do Brasil.

Além destas observações, as fontes orais nos levam a refletir sobre a importância da

memória como um fator para a construção de identidades, atualizando no presente o tempo

passado, trazendo-lhe novos significados. O presente determina a visão que Milton Ivan tem de

sua família, do papel do PCB e dos fracassos da militância, o passado não pode ser descolado

deste presente, pois tanto na história como na memória, passado e presente se mistura, a história e

a memória são dirigidas pelo e para o presente. Para Ecléa Bosi, os usos do passado pela memória

em função do presente fazem com que ele se fragmente (BOSI, 1994, p.54). De acordo com

Roberto Vecchi a memória é constantemente recriação e reconstrução, ela “[...] não é a totalidade

mimética do passado, mas uma síntese fragmentária, uma colagem de cacos do ocorrido,

recolocados em seu lugar – no meio de lacunas, vazios, acréscimos” (VECCHI, 2001, p. 86).

Devido às escolhas, recriações e reconstruções realizadas pelo sujeito que lembra, as

reflexões sobre a memória e a história oral realçam no debate acadêmico o problema da

subjetividade e da parcialidade das fontes. O relato de um evento ou de uma história de vida, é

um sistema de determinações capaz de oferecer uma interpretação racional, enunciando

significações de causa e efeito sobre um acontecimento, recordar é reconstruir, é transformar o

que ficou inacabado: “A história e a ficção se misturam, a verdade factual se mistura com

conotações estéticas e éticas” (CATROGA, 2001, p. 21). A realidade efetiva, por sua vez,

pressupõe uma abundância de fatos, uma multiplicidade de intenções, um emaranhado de ações e

relações que vai muito além das experiências do protagonista que relata. No entanto, os

elementos constitutivos da memória não são apenas os acontecimentos vividos por aquele que

rememora, de acordo com Michel Pollack, além do que foi vivenciado pessoalmente, também é

elemento da memória os acontecimentos vividos “por tabela”, ou seja, fenômenos de projeção e

identificação tão grande com o passado, que pessoas que não o viveram se sentem co-

participantes e sujeitos deste mesmo passado (POLLACK, 1992, p. 201).

No caso das lembranças de Milton Ivan Heller, parte do que foi relatado sobre a família e

sobre a sua infância eram acontecimentos vividos “por tabela”, sobre os quais ele ouviu contar

pelo seu pai e outros familiares, ou foi conhecido através de leituras, no entanto, eram histórias

com as quais se indentificava, por isso para ele foi importante reproduzí-las como sua história.

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Se o indivíduo é, inevitavelmente, um ser social, quando falamos de identidade como

inerente à construção de um grupo, o “vivido junto” gera a ligação que cada indivíduo tem a um

outro: temos histórias em comuns que determina nossa coesão e unidade. O exemplo mais claro

de uma ligação forte entre indivíduos, motivada por histórias vividas em comum é a família, este

“recontar” constante das lembranças familiares feitas pelos seus membros, quase sempre é levado

em consideração ao definirmos nossa própria identidade individual. De acordo com Philippe

Ariès, “toda a evolução de nossos costumes contemporâneos tornou-se incompreensível se

desprezarmos esse prodigioso crescimento do sentimento da família” (ARIÈS, 1981, p. 274). As

entrevistas orais nos fornecem dados privilegiados sobre as relações e histórias familiares que são

muito pouco perceptíveis em outros tipos de fontes. As lembranças familiares tem a função de

unir afetivamente, para Halbwachs a memória do “vivido junto”, das experiências comuns,

herdadas ou partilhadas, é fundamental para coesão social do grupo (HALBWACHS, 1990, p.

122).

A história falada: a voz de um velho militante

Walter Benjamim lamentava que se tornava “cada vez mais raro o encontro com pessoas

que sabem narrar alguma coisa direito” (BENJAMIM, 1983, p.57). O bombardeio de

informações e de explicações nos priva do prazer de decifrar “aquela lenta superposição de

camadas finas e transparentes, que oferece a imagem mais exata da maneira pela qual a narrativa

perfeita emerge da estratificação de múltiplas re-narrações” (Idem, p.63). Segundo Benjamim a

troca de experiência advindo da narrativa tem uma utilidade:

Esta pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida – em qualquer caso o narrador é um homem que dá conselhos aos ouvintes. Mas se hoje ‘dar conselhos’ começa a soar nos ouvidos como algo fora da moda, a culpa é da circunstância de estar diminuindo a imediatez da experiência (Idem, p. 59).

Fontes orais são fontes narrativas, o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou

relatada, e transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história. Para Lucília

Neves as narrativas, “são instrumentos importantes de preservação e transmissão de heranças

identitárias e tradições” (NEVES, 2006, p. 43). Sem qualquer poder de alteração do que se

passou, o narrador pode atuar modificando ou reafirmando o significado do que foi vivido e a

representação individual ou coletiva sobre o passado.

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“Filho de peixe né...”

O pai de nosso entrevistado foi militante do PCB nas décadas de 1930 e 1940. De acordo

com a Revista O Cruzeiro (17 de setembro de 1949, p.69-94), Jorge Herlain, era russo de

nascimento, natural da Sibéria, chegou ao Brasil em 1912 quando tinha 6 anos em companhia dos

pais e duas irmãs, vindos todos morar em Curitiba. Atingindo a maioridade, Herlain empregou-se

na “Rede de Viação Paraná-Santa Catarina”. Em 1935, por ter se envolvido nas atividades da

“Aliança Nacional Libertadora” foi demitido do emprego e teve de fugir da ação da polícia. Para

tanto, tinha de mudar seguidamente de trabalho nas colônias que circundavam a capital

paranaense. Todavia, em 1937, foi detido, processado por atentar contra a segurança nacional e

sentenciado a dois anos de prisão que cumpriu na Penitenciária do Paraná. Transferiu-se em 1942

para o Rio de Janeiro trabalhando nesta capital em várias firmas. Em 1945 apresentou-se ao

Partido Comunista do Brasil e pelos seus antecedentes foi aceito como membro da Secretaria

Sindical do Comitê Central do Partido. Depois disso Jorge Herlain partiu para São Paulo, onde

foi detido novamente pela polícia.

Na ficha de Jorge Herlain da DOPS havia as seguintes informações: tinha trabalhado

durante 14 anos na Rede de Viação Paraná-Santa Catarina (EFSPRG), foi um dos promotores da

greve ocorrida em 1934, por pregar indisciplina entre os ferroviários e ser suspeito de distribuir

boletins comunistas acabou sendo suspenso no mesmo ano. Logo após o fracasso do movimento

subversivo comunista que irrompeu na Capital Federal no dia 27/11/1935 e como estava sendo

procurado pela polícia local, desapareceu (Dossiê DOPS, n. 1961, top.386).

Uma outra versão da história do militante comunista Jorge Herlain nos é narrada por um

de seus filhos Milton Ivan Heller. A entrevista foi realizada em Curitiba no dia 30 de julho de

2005.

Eis a transcrição do relato: “O salário do ferroviário era miserável e na minha família as

três primeiras crianças que nasceram morreram com poucos dias, depois eu nasci e por algum

motivo eu consegui sobreviver e depois disso vieram mais duas imãs, e o meu pai depois que ele

foi demitido da Rede ele ficou o tempo todo a serviço do partido, inclusive teve um congresso de

ferroviários no Rio de Janeiro, e o meu pai embora tivesse sido demitido da Rede foi indicado

pela categoria em assembléia pra representar os ferroviários no congresso no Rio, isso indica que

ele devia ter alguma liderança. [...] O meu pai ficou muito tempo entre prisões e foragido e

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clandestino e tal e ficou muitos anos fora, desligado da família, eu fui criado em casa de parente,

uma parte em Curitiba, uma parte no Rio de Janeiro. Depois que a minha mãe faleceu o meu pai

tornou a casar de novo e teve mais oito filhos, e foi uma coisa difícil né, porque não foi uma

família estruturada, minha mãe era uma pessoa já doente, morreu relativamente cedo, tinha

anemia, na época também a nossa medicina era muito precária, a pessoa tinha tuberculose morria

de tuberculose, outra tinha pneumonia morria de pneumonia, minha mãe morreu porque a

medicina era muito atrasada e também a família não tinha recurso pra procurar um tratamento

melhor, essas coisas. E o meu pai quando a gente finalmente se reencontrou isso já em 1945, de

1934 a gente só foi se reencontrar em 1945, quando houve aquela abertura democrática, anistia

dos presos políticos, a legalidade do partido, ele falava ás vezes sobre a greve dos ferroviários,

mas eu tinha o quê? 11 anos, ou seja, pra mim ele tava falando grego, eu me arrependo disso,

porque com o tempo a gente acaba adquirindo consciência política e eu entendi que aquelas

memórias do meu pai era importante.

Em 1945 meu pai era secretário sindical do comitê nacional do Partido, então ele viajava

muito, participava de assembléias, tinha uma conferência dele em Madureira no Rio de Janeiro,

que eu me lembro de uma frase dele, na sua exposição sobre a política do Partido, a defesa dos

trabalhadores, e aquela coisa, Revolução Russa, eu tô lá no meu cantinho, com fome, querendo ir

pra casa, daí um sujeito perguntou: como é a democracia socialista? É diferente da democracia

capitalista? E o meu pai disse assim: não existe democracia capitalista, porque o capitalismo o

povo é explorado, o trabalhador não tem direito, isso e aquilo tal, e aquilo que ele falou realmente

ficou, gravou. Mas antes disso o pai fundou o Partido aqui no Paraná, o Partido Comunista, e

ajudou a fundar o Partido em vários outros Estados, inclusive ele falava muito em Vitória no

Espírito Santo, [...] só mais tarde eu conversando com os dirigentes mais velhos do partido que eu

fiquei sabendo que ele ajudou a fundar o Partido no Rio Grande, em Santa Catarina, em vários

Estados, inclusive no Espírito Santo, então ele era profundamente engajado. Agora com o tempo,

na mocidade, a gente tem a impressão que o Partido Comunista era o bom, o certo, os heróis e tal

e os outros eram todos bandidos, e a gente não tinha noção da fraqueza ideológica, política e

cultural do próprio partido. Meu pai mesmo tinha dificuldade pra escrever, tinha uma letra bem

miudinha assim, e sempre trocava o t pelo b, ele não era capaz de dizer tesoura, ele dizia besoura,

por causa da descendência russa, ele nunca procurou estudar e ninguém do Partido procurou

motivar pra que ele estudasse, pra que adquirisse mais cultura, mais conhecimento, então era

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aquela coisa: tudo o que Marx e Engels disseram sobre determinadas coisas lá, eles ficavam

repetindo aquilo como se fosse alguém que estivesse lendo a Bíblia, querendo adaptar a realidade

brasileira ao marxismo, quando tinha que se adaptar o marxismo à realidade brasileira. O Partido

nunca conseguiu realmente se qualificar, se transformar em um partido capaz de conduzir, eles

falavam muito na Aliança Operário-Camponesa, eles não eram capazes de conduzir muito nem

operários, nem camponeses.

[...] Depois na ilegalidade o meu pai continuou militando, mas daí ele começou a ter

problemas cardíacos e ele meio que foi se afastando, mas ele nunca deixou de acreditar nas coisas

que ele acreditava. Mas foi envelhecendo, problemas cardíacos e um bando de filhos, de repente

ele descobriu que tinha que ser pai, já que não pode educar a primeira geração tinha que educar a

outra, dar alguma assistência, daí ele foi se afastando, mas através do noticiário ele sempre

procurava saber como é que estava o movimento e tal, e também os companheiros da época dele

que atuavam foram morrendo, as pessoas tem o mau costume de morrer e vão embora né, então

ele foi perdendo a referência, morreu o Miguel Pan, que era um líder ferroviário da época dele,

daí morreu o Hortêncio, que trabalhava com ele. O meu pai morreu em 1972, faz tempo já.

A minha mãe era descendente de polonês, esses imigrantes, filhos de imigrantes, tem uma

dificuldade de se comunicar, de aprender, a mãe sabia que o meu pai vivia foragido, mas não

atinava essas coisas. Eu me lembro que uma vez, eu tinha de 5 pra 6 anos, a primeira recordação

que eu tenho, e o pessoal do DOPS cercou a casa, nós morávamos na casa de minha vó, e

cercaram a casa, e a minha vó muito ingenuamente dava café para os policiais, bolinho de arroz,

aí o policial chegou e me pegou no colo, queria saber do meu pai: “onde é que ta o teu pai?”, “o

meu pai ta fugindo”, “porquê ta fugindo?”, “porquê os bandidos querem pegar ele.” Minha vó ia

chegando mas deu risada... [risos] Depois a gente ficou sabendo que o meu pai tava na casa de

um alemão, que tinha um sítio aqui em Quatro Barras, um dia a gente foi visitar lá, era um sítio

bem moderninho, tinha um tanque de peixe, esse alemão devia ser simpatizante do comunismo,

porque deu guarida por muito tempo né, e polícia procurando ele, querendo saber, interrogando

gente.

Depois o meu pai foi preso, não me lembro muito bem a época, mas eu devia ter 11 ou 12

anos, ele tava preso, ficou no Ahú, um tempão no Ahú, não existia penitenciária. Nós íamos

visitar, eles reclamavam que ficavam preso 24 horas por dia em uma cela lá, em dez, doze preso

onde cabia dois, três, isso existe até hoje, hoje muito pior, as instalações são as mesmas e o

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número de presos aumentou geometricamente, e eu sei que os presos lá fizeram um movimento,

uma greve de fome, e conseguiram que eles tivessem acesso ao pátio, apanhassem sol, fizessem

exercício, tinha até uma foto do meu pai jogando basquete, uma fotinha pequena, não sei aonde

foi parar esta foto.

[...] Quando o Prestes saiu da cadeia em 1945 eu morava no Rio, aquele famoso

reencontro com a família e tal e o partido alugou uma sede próximo ao Largo da Lapa, uma sede

enorme, cada vez que a gente chegava lá tinha três, quatro mil pessoas, era uma coisa

inacreditável, um mundo de gente, o partido botava mesinhas, colocava a bandeira, a famosa

foice e o martelo, as pessoas iam e se inscreviam no partido, o Partido realizava comícios-

monstro, eu assisti vários assim, o primeiro foi no campo do Vasco, em São Januário, super

lotado, depois fizeram vários comícios no Largo que fica no início de quem vai para a Zona Sul,

e o no Largo Carioca que chamavam o famoso Tabuleiro da Baiana, que é uma área enorme,

super lotado.

Filho de peixe né... Eu me criei com aquela... [breve silêncio] Eu cheguei a ser aqui do

Secretariado Estadual do Partido.

Em 59, eu fui numa assembléia do Partido, daí falaram: “e a Klabin, a maior fábrica de

papel da América Latina, e o Partido não tem nada lá”, daí me mandaram pra lá. Eu fui lá, fazer

uma investigação, pra ver como é que era, acabei ficando lá mais de dois anos, organizamos

sindicatos, fizemos greve, daí chegou o momento que ninguém mais me dava emprego. E eu

tinha que pagar pensão, aí descobri que eu só tinha a roupa do corpo, não tinha nada, cabeça

cheia de minhoca, de revolução utópica que não chegava nunca, sabe do quê? Eu vou cuidar da

minha vida, fiz uma declaração lá que eu me afastava, o pessoal protestou, mas daí eu já estava

com 32 anos, casei e fui cuidar da família, nasceu um filho, depois nasceu outro, mas sempre

continuei amigo do pessoal da minha época, nunca passei pra outra trincheira, em 64 após o

golpe a polícia militar do Paraná me denunciava como subversivo, e mesmos colegas meus

achavam que eu era comunista, e eu não queria explicar que eu não estava mais envolvido. Não

me envergonha também não me orgulho, não há motivo nem pra orgulho, nem pra vergonha. O

capitalismo não oferece solução alguma pra nenhum problema social, até sai nos jornais, trabalho

escravo no interior do país, favela, miséria, falta de assistência médica, então o socialismo era

uma esperança, que era com a queda do mundo socialista, o capitalismo se tornou absoluto né,

mas o que move o capitalismo é o lucro, o maior lucro possível, se possível honestamente, mas se

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não desonestamente. Aí se que dane a desigualdade social, o ideal do capitalismo é que exista

sempre um exército de desempregados e os empregados se sujeitam a trabalhar por um salário

menor, aceitam piores condições de trabalho. Nesta greve de ferroviários, o pessoal trabalhava 12

horas por dia, pra ganhar uma miséria que não dava nem pra alimentar a família, o ordenado era

insuficiente, isto é típico do capitalismo”.

Considerações finais

No depoimento de Milton Ivan Heller fala o ancião do tempo presente, mas em seu

dircurso está presente a percepção da criança que ouvia perplexa as histórias dos adultos, os

sonhos do jovem militante que ouvia atentamente os discursos do pai e também a visão do adulto

que resolveu cuidar da vida e da família, abandonando a militância desiludido com os fracassos e

os erros do Partido Comunista. São múltiplas temporalidades entrelaçadas, que traz em si

memórias de experiências vividas pessoalmente ou relatadas por terceiros, registram-se nestas

memórias “[...] sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em uma narrativa entrecortada

pelas emoções do ontem, renovadas ou resignificadas pelas emoções do hoje” (NEVES, 2006,

p.18). Muitos destes sentimentos, como a admiração pela militância e o engajamento do pai,

demonstra a importância dessa influência paterna para a adesão de Milton Ivan ao Partido

Comunista, ou seja, as ações humanas e as convicções políticas nem sempre são motivadas por

uma lógica racional.

A memória tem um caráter livre; a história vivida não é transportada tal e qual para os

depoimentos: “lembrar não é reviver, mas refazer, repensar, com imagens e idéias de hoje as

experiências do passado” (BOSI, p.398, 1994). O que dá autoridade à fala de Milton Ivan Heller é

a experiência vivida, “a matéria de onde surgem as histórias” (BENJAMIM, 1983, p.64), isto lhe

permite principalmente dar conselhos, nos avisar que os males que os comunistas tanto

combatiam ainda persistem e é preciso curá-los.

Referências bibliográficas

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BENJAMIN, Walter. “O narrador: observações sobre a obra de Nikolai Leskow”. ____. Textos

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CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Lisboa: Quarteto, 2001.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

NEVES, Lucília de Almeida. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte:

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POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Revista Estudos históricos. Rio de Janeiro,

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