entrevista com goffredo da silva telles junior

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De 2 a 8 de junho de 2005 8 NACIONAL Quem é Paulistano do Centro da ci- dade, Goffredo da Silva Telles Júnior nasceu em 16 de maio de 1915, e já em 1932 foi soldado na Revolução Constituciona- lista. A partir daí, nunca mais deixou de militar pela democra- cia. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde lecionou de 1940 a 1985. Além disso, ocupou as funções de vice diretor e diretor, e organizou e coordenou os cur- sos de pós-graduação. Foi depu- tado federal constituinte (1946) e deputado federal (1946-50), secretário da Educação da Pre- feitura de São Paulo (1957) e presidente da Associação Bra- sileira de Juristas Democratas. Incansável defensor dos direitos constitucionais. Goffredo Telles (nome com o qual assinava seus artigos) publicou, em 1959, Lineamentos de uma Consti- tuição realista para o Brasil, defendendo a tese da iniciativa popular no processo de elabo- ração das leis. Em 1963, foi o Lineamentos de uma Democra- cia Autêntica, onde mostrava a necessidade da participação dos setores organizados do povo no processo legislativo. Em 1977, leu sua Carta aos Brasileiros (veja box). Em 1988, em nome de centenas de entidades repre- sentativas da sociedade civil, reunidas no Plenário Pró-Parti- cipação Popular na Constituinte, dirige ao governo sua Carta dos Brasileiros, ao presidente da Republica e ao Congresso Nacional, clamando por uma Assembléia Constituinte livre, autônoma e soberana, desvin- culada do Congresso Nacional e das engrenagens do governo. Em setembro de 1993, em nome daquelas mesmas entidades, em defesa da Constituição, lê, em sessão pública no salão nobre da Faculdade de Direito, a Segunda Carta aos Brasileiros. Anamárcia Vainsencher da Redação A os 90 anos – completados dia 16 de maio, o advogado e professor Goffredo da Sil- va Telles Júnior continua lúcido. E tão preocupado com os destinos da nação brasileira como aos 16 anos, quando começou sua militância po- lítica. Seu olhar sobre o país reete alguns temores porque, embora o Brasil não esteja mais sob o jugo de uma ditadura, tampouco vive uma democracia plena, seja em função do desrespeito dos políticos ao eleitor, pela troca-troca de parti- dos, seja por causa da usurpação de poderes pelo executivo, que passa por cima da Constituição. “A Cons- tituição está esquecida, um trapo velho lançado a um canto”, arma Goffredo Telles em entrevista ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – O que aconte- ceu no país depois da Carta aos Brasileiros? Goffredo da Silva Telles Jr. – A Carta aos Brasileiros foi escrita e lida por mim no pátio interno da Faculdade, onde se reúnem, entre as aulas, os estudantes da Faculdade de Direito. Um pátio enorme, que estava repleto. Eram estudantes, pessoas do povo em geral, jornalistas, políticos de todos os partidos e curiosos que queriam saber o que eu teria a di- zer em 1977, em plena ditadura militar. O que eu teria a dizer ao povo da minha terra, aos brasilei- ros em geral. BF – Como nasceu a idéia da Carta? Goffredo – Era um documento que vinha sendo gestado dentro de mim há muito tempo, pela revolta que me causava aquele regime de força, aquela ditadura em que vivíamos, em contraste com o sentimento generalizado da nacionalidade. Em julho de 1977, durante as férias da fa- culdade, redigi o manifesto que brotava na minha consciência. Em verdade, a Carta aos Bra- sileiros não continha qualquer novidade extraordinária. Era apenas um grito da consciência, de uma consciência ansiosa pela restauração da democracia de- mocrática em nosso país. BF – E quando o senhor a leu no pátio... Goffredo – A repercussão foi imediata, não só entre os estu- dantes, ou entre as pessoas mais próximas de mim, mas entre am- plos círculos populares de todo o país. Era como que o primeiro documento de rompimento com o regime de força que nos infelicita- va. Repercutiu até no estrangeiro. ENTREVISTA ENTREVISTA No Brasil, a lei está em descrédito O professor Goffredo Telles teme pelo futuro do país: o eleitor está cansado e não há respeito à Constituição Na noite de 8 de agosto de 1977, em plena ditadura militar, o professor Goffredo da Silva Telles Júnior leu, em um lotado pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no largo de São Francisco, Centro da cidade de São Paulo, um manifesto, subscrito por centenas de brasileiros democratas. A Carta rompia um longo período de silêncio e medo. Após sucessivos atos institucionais decretados pelos governos militares que usurpavam o poder desde 1964, a Carta foi como um grito incontido contra a ditadura e o cerceamento às liberdades. Alguns de seus trechos: Conclamação: “Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos direitos humanos, contra a opressão de todas as ditaduras”. Ordem jurídica: há uma legítima, outra ilegítima. A ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ilegí- tima. Isso porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do povo. Ordem x força: a ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes; é ilegítimo todo governo fundado na força. Constituição: é ilegítima a outorgada por autoridade que não seja a Assembléia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma revolução vitoriosa, reali- zada com a direta participação do povo. Estado de direito: o Estado legítimo é o Estado de Direito, e esse é o Estado constitucional, aquele que se submete ao princípio de que governos e governantes devem obediência à Constituição. Estados de fato, de exceção, autoritários: são aqueles cujo poder executivo usurpa o poder constituinte; aqueles cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e cujos governos não toleram críticas e não permitem contestação, são obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade; são Estados opressores. Esses Estados policiais apregoam que há direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução de seus próprios ideais. Carta aos Brasileiros Um grande jornal de um país anunciou a Carta em manchete, na primeira página. BF – Ao que o senhor atribui ta- manha repercussão? Goffredo – Não digo isso para me vangloriar, mas a Carta sen- do o que foi, como que rompeu a barreira do medo. Depois de- la, começaram a se fazer ouvir as vozes do povo via manifestos de sindicatos, através dos ór- gãos de divulgação de diversas religiões. O povo recomeçou a se fazer ouvir, a poder se ma- nifestar e dizer o que realmente desejava. BF – E de lá para cá a situação melhorou? Goffredo – Todos sabem o que aconteceu depois de 1977. Um movimento incontestável, mesmo nas áreas do governo, em favor de um regime mais brando, de li- berdades da pessoa humana. Só por isso, acredito, valeu a pena aquela leitura no pátio sagrado da Academia de Direito do Largo de São Francisco. BF – O senhor considera que o Brasil vive uma democracia plena? Goffredo – Não quero com isto afirmar que hoje – mesmo esta- belecidas fórmulas democráticas na letra da Constituição – que agora vivemos em um regime de democracia plena. Não, pe- lo contrário. Jamais diria que estamos em um regime ideal, o mais perfeito de democracia. É uma pseudo-democracia. Pela voz dos responsáveis do poder, se diz e prega democracia. Mas, na prática, está muito longe real- mente de ser um regime em que o poder, todo o poder, emana do povo, como está escrito na Constituição. BF – Mas por quê? Goffredo – Por quê? Porque para que todo o poder emane do povo, como está escrito lapidarmente na Constituição, é preciso que haja no poder representantes autênti- cos do povo. Autênticos. E o que vemos? Não digo nenhuma novi- dade. Estamos com um regime de partidos que não são verdadeiros partidos democráticos. BF – O que o senhor quer dizer? Goffredo – O que é um partido? É um conjunto de pessoas que se reúnem em defesa de determi- nado programa, determinadas idéias, nele registradas e consa- gradas. Programa devidamente registrado no Tribunal Eleitoral. Um conjunto de pessoas que se vangloriam de ter um programa de idéias registradas. BF – Então, o que está errado? Goffredo – Mas o que vemos? Não quero causar escândalo, mas acho conveniente dizer com clareza o que acontece, para que a defesa do programa par- tidário seja feita condignamente. Porque, afinal, o povo elege um político que adotou determinado programa. Estou me referindo, evidentemente, ao poder legisla- tivo, onde estão os representantes do povo que foram eleitos por defender determinado progra- ma. Nós eleitores, nós o povo, elegemos quem vai defender um programa. E o que acontece? Numa realidade muito, muito freqüente, representantes eleitos mudam de partido. Vão para um partido que tem outro programa, portanto outras idéias. Como fica o eleitor? Sem representante no poder legislativo. BF – O senhor não acha que o eleitor brasileiro vota mais em pessoas do que em programas? Goffredo – O eleitor se defende da irregularidade votando em pessoas, não em idéias. Mas ele fica decepcionado, porque votou numa pessoa que pensa de de- terminada maneira, pensa como ele. A princípio, o eleitor vai aceitando, mas, com o passar do tempo, vai perdendo a confiança no legislativo. BF – Quais as conseqüências dessa decepção? Goffredo – Hoje, há descrédito nas leis. As pessoas dizem, ‘deixa pra lá, o que queremos é Justiça’. Mas que Justiça? A do juiz? Ao juiz cabe dizer o que a lei quer, não a sua vontade. Se o que valesse fosse a vontade do juiz, aqui teríamos outra ditadura, a da vontade dos juízes. E nós detestamos ditaduras, quaisquer que sejam, e abraçamos as leis para nos defendermos. BF – E quando a lei é desacredi- tada, o que acontece? Goffredo – Atualmente, vive- mos em um regime de perigo. A lei está em descrédito. O poder executivo age no lugar do legislativo, editando medi- das provisórias que entopem o parlamento. Quando a lei está em descrédito, estamos em uma situação irregular e perigosa. Tenho receio que descambe. Os eleitores se cansam e não sei a que isso pode levar! BF – O que fazer, então? Goffredo – Qual é a saída? Mudar a Constituição? Talvez acrescentar alguma coisa, não mudar. É preciso cumpri-la. A Constituição está esquecida, um trapo velho lançado a um canto. Pela Constituição, os três poderes – executivo, legislativo e judiciário – são independentes e harmônicos. Mas ela é violada quando o executivo, via medidas provisórias, ingressa na compe- tência do legislativo, provocando o trancamento dos trabalhos. Robson Oliveira Mobilização de estudantes em defesa do passe livre, em Porto Alegre (RS): “Para que o poder emane do povo, é preciso que haja representantes autênticos do povo” Leonardo Colosso/Folha Imagem

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No Brasil, a lei está em descrédito

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Page 1: Entrevista com Goffredo da Silva Telles Junior

De 2 a 8 de junho de 20058

NACIONAL

Quem éPaulistano do Centro da ci-

dade, Goffredo da Silva Telles Júnior nasceu em 16 de maio de 1915, e já em 1932 foi soldado na Revolução Constituciona-lista. A partir daí, nunca mais deixou de militar pela democra-cia. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde lecionou de 1940 a 1985. Além disso, ocupou as funções de vice diretor e diretor, e organizou e coordenou os cur-sos de pós-graduação. Foi depu-tado federal constituinte (1946) e deputado federal (1946-50), secretário da Educação da Pre-feitura de São Paulo (1957) e presidente da Associação Bra-sileira de Juristas Democratas. Incansável defensor dos direitos constitucionais. Goffredo Telles (nome com o qual assinava seus artigos) publicou, em 1959, Lineamentos de uma Consti-tuição realista para o Brasil, defendendo a tese da iniciativa popular no processo de elabo-ração das leis. Em 1963, foi o Lineamentos de uma Democra-cia Autêntica, onde mostrava a necessidade da participação dos setores organizados do povo no processo legislativo. Em 1977, leu sua Carta aos Brasileiros (veja box). Em 1988, em nome de centenas de entidades repre-sentativas da sociedade civil, reunidas no Plenário Pró-Parti-cipação Popular na Constituinte, dirige ao governo sua Carta dos Brasileiros, ao presidente da Republica e ao Congresso Nacional, clamando por uma Assembléia Constituinte livre, autônoma e soberana, desvin-culada do Congresso Nacional e das engrenagens do governo. Em setembro de 1993, em nome daquelas mesmas entidades, em defesa da Constituição, lê, em sessão pública no salão nobre da Faculdade de Direito, a Segunda Carta aos Brasileiros.

Anamárcia Vainsencherda Redação

A os 90 anos – completados dia 16 de maio, o advogado e professor Goffredo da Sil-

va Telles Júnior continua lúcido. E tão preocupado com os destinos da nação brasileira como aos 16 anos, quando começou sua militância po-lítica. Seu olhar sobre o país refl ete alguns temores porque, embora o Brasil não esteja mais sob o jugo de uma ditadura, tampouco vive uma democracia plena, seja em função do desrespeito dos políticos ao eleitor, pela troca-troca de parti-dos, seja por causa da usurpação de poderes pelo executivo, que passa por cima da Constituição. “A Cons-tituição está esquecida, um trapo velho lançado a um canto”, afi rma Goffredo Telles em entrevista ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato – O que aconte-ceu no país depois da Carta aos Brasileiros?Goffredo da Silva Telles Jr. – A Carta aos Brasileiros foi escrita e lida por mim no pátio interno da Faculdade, onde se reúnem, entre as aulas, os estudantes da Faculdade de Direito. Um pátio enorme, que estava repleto. Eram estudantes, pessoas do povo em geral, jornalistas, políticos de todos os partidos e curiosos que queriam saber o que eu teria a di-zer em 1977, em plena ditadura militar. O que eu teria a dizer ao povo da minha terra, aos brasilei-ros em geral.

BF – Como nasceu a idéia da Carta?Goffredo – Era um documento que vinha sendo gestado dentro de mim há muito tempo, pela revolta que me causava aquele regime de força, aquela ditadura em que vivíamos, em contraste com o sentimento generalizado da nacionalidade. Em julho de 1977, durante as férias da fa-culdade, redigi o manifesto que brotava na minha consciência. Em verdade, a Carta aos Bra-sileiros não continha qualquer novidade extraordinária. Era apenas um grito da consciência, de uma consciência ansiosa pela restauração da democracia de-mocrática em nosso país.

BF – E quando o senhor a leu no pátio...Goffredo – A repercussão foi imediata, não só entre os estu-dantes, ou entre as pessoas mais próximas de mim, mas entre am-plos círculos populares de todo o país. Era como que o primeiro documento de rompimento com o regime de força que nos infelicita-va. Repercutiu até no estrangeiro.

ENTREVISTAENTREVISTA

No Brasil, a lei está em descréditoO professor Goffredo Telles teme pelo futuro do país: o eleitor está cansado e não há respeito à Constituição

Na noite de 8 de agosto de 1977, em plena ditadura militar, o professor Goffredo da Silva Telles Júnior leu, em um lotado pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no largo de São Francisco, Centro da cidade de São Paulo, um manifesto, subscrito por centenas de brasileiros democratas. A Carta rompia um longo período de silêncio e medo.

Após sucessivos atos institucionais decretados pelos governos militares que usurpavam o poder desde 1964, a Carta foi como um grito incontido contra a ditadura e o cerceamento às liberdades. Alguns de seus trechos:

• Conclamação: “Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos direitos humanos, contra a opressão de todas as ditaduras”.

• Ordem jurídica: há uma legítima, outra ilegítima. A ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ilegí-tima. Isso porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do povo.

• Ordem x força: a ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes; é ilegítimo todo governo fundado na força.

• Constituição: é ilegítima a outorgada por autoridade que não seja a Assembléia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma revolução vitoriosa, reali-zada com a direta participação do povo.

• Estado de direito: o Estado legítimo é o Estado de Direito, e esse é o Estado constitucional, aquele que se submete ao princípio de que governos e governantes devem obediência à Constituição.

• Estados de fato, de exceção, autoritários: são aqueles cujo poder executivo usurpa o poder constituinte; aqueles cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e cujos governos não toleram críticas e não permitem contestação, são obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade; são Estados opressores. Esses Estados policiais apregoam que há direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução de seus próprios ideais.

Carta aos Brasileiros

Um grande jornal de um país anunciou a Carta em manchete, na primeira página.

BF – Ao que o senhor atribui ta-manha repercussão?Goffredo – Não digo isso para me vangloriar, mas a Carta sen-do o que foi, como que rompeu a barreira do medo. Depois de-la, começaram a se fazer ouvir as vozes do povo via manifestos de sindicatos, através dos ór-gãos de divulgação de diversas religiões. O povo recomeçou a se fazer ouvir, a poder se ma-nifestar e dizer o que realmente desejava.

BF – E de lá para cá a situação melhorou?Goffredo – Todos sabem o que aconteceu depois de 1977. Um movimento incontestável, mesmo nas áreas do governo, em favor de um regime mais brando, de li-berdades da pessoa humana. Só por isso, acredito, valeu a pena aquela leitura no pátio sagrado da Academia de Direito do Largo de São Francisco.

BF – O senhor considera que o Brasil vive uma democracia plena?Goffredo – Não quero com isto afi rmar que hoje – mesmo esta-belecidas fórmulas democráticas na letra da Constituição – que agora vivemos em um regime de democracia plena. Não, pe-lo contrário. Jamais diria que estamos em um regime ideal, o mais perfeito de democracia. É

uma pseudo-democracia. Pela voz dos responsáveis do poder, se diz e prega democracia. Mas, na prática, está muito longe real-mente de ser um regime em que o poder, todo o poder, emana do povo, como está escrito na Constituição.

BF – Mas por quê?Goffredo – Por quê? Porque para que todo o poder emane do povo, como está escrito lapidarmente na Constituição, é preciso que haja no poder representantes autênti-cos do povo. Autênticos. E o que vemos? Não digo nenhuma novi-dade. Estamos com um regime de partidos que não são verdadeiros partidos democráticos.

BF – O que o senhor quer dizer?Goffredo – O que é um partido? É um conjunto de pessoas que se reúnem em defesa de determi-nado programa, determinadas idéias, nele registradas e consa-gradas. Programa devidamente registrado no Tribunal Eleitoral. Um conjunto de pessoas que se vangloriam de ter um programa de idéias registradas.

BF – Então, o que está errado?Goffredo – Mas o que vemos? Não quero causar escândalo, mas acho conveniente dizer com clareza o que acontece, para que a defesa do programa par-tidário seja feita condignamente. Porque, afi nal, o povo elege um político que adotou determinado programa. Estou me referindo, evidentemente, ao poder legisla-

tivo, onde estão os representantes do povo que foram eleitos por defender determinado progra-ma. Nós eleitores, nós o povo, elegemos quem vai defender um programa. E o que acontece? Numa realidade muito, muito freqüente, representantes eleitos mudam de partido. Vão para um partido que tem outro programa, portanto outras idéias. Como fi ca o eleitor? Sem representante no poder legislativo.

BF – O senhor não acha que o eleitor brasileiro vota mais em pessoas do que em programas?Goffredo – O eleitor se defende da irregularidade votando em pessoas, não em idéias. Mas ele fi ca decepcionado, porque votou numa pessoa que pensa de de-terminada maneira, pensa como ele. A princípio, o eleitor vai aceitando, mas, com o passar do tempo, vai perdendo a confi ança no legislativo.

BF – Quais as conseqüências dessa decepção?Goffredo – Hoje, há descrédito nas leis. As pessoas dizem, ‘deixa pra lá, o que queremos é Justiça’. Mas que Justiça? A do juiz? Ao juiz cabe dizer o que a lei quer, não a sua vontade. Se o que valesse fosse a vontade do juiz, aqui teríamos outra ditadura, a da vontade dos juízes. E nós detestamos ditaduras, quaisquer que sejam, e abraçamos as leis para nos defendermos.

BF – E quando a lei é desacredi-tada, o que acontece?Goffredo – Atualmente, vive-mos em um regime de perigo. A lei está em descrédito. O poder executivo age no lugar do legislativo, editando medi-das provisórias que entopem o parlamento. Quando a lei está em descrédito, estamos em uma situação irregular e perigosa. Tenho receio que descambe. Os eleitores se cansam e não sei a que isso pode levar!

BF – O que fazer, então?Goffredo – Qual é a saída? Mudar a Constituição? Talvez acrescentar alguma coisa, não mudar. É preciso cumpri-la. A Constituição está esquecida, um trapo velho lançado a um canto. Pela Constituição, os três poderes – executivo, legislativo e judiciário – são independentes e harmônicos. Mas ela é violada quando o executivo, via medidas provisórias, ingressa na compe-tência do legislativo, provocando o trancamento dos trabalhos.

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Mobilização de estudantes em defesa do passe livre, em Porto Alegre (RS): “Para que o poder emane do povo, é preciso que haja representantes autênticos do povo”

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