entrevista cego aderaldo

12
Entrevista com o Cego Aderaldo: aprendizagem como cantador Robert Rowland Extrato de uma longa conversa com Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), conhecido como o Cego Aderaldo, gravada em sua casa, em Quixadá (CE), em 8 de setembro de 1965. CA - Eu vivo pobre. Tão pobre, que até, p’ra mais completar a pobreza, perdi a vista. Porque quando eu tinha cinco anos de idade, já estava eu empregado aqui, na casa de Miguel Clementino de Queiroz, ganhando dois vinténs por dia. À minha custa. Ora, calcule, quando era de noite recebia meus dois vinténs. Levava p’ra casa. Era com esses dois vinténs que comprava- se dois vinténs de farinha p’ra fazer um angu p’ra comer mais meu pai e minha mãe. Era isso.

Upload: robert-rowland

Post on 19-Dec-2015

226 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Entrevista com o cantador nordestino Cego Aderaldo, feita em setembro de 1965 em Quixadá, Ceará. Aderaldo descreve a sua infância, o que aconteceu qiando cegou aos 18 anos, e como se fez cantador.

TRANSCRIPT

Page 1: Entrevista Cego Aderaldo

Entrevista com o Cego Aderaldo:

aprendizagem como cantador Robert Rowland

Extrato de uma longa conversa com Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), conhecido como

o Cego Aderaldo, gravada em sua casa, em Quixadá (CE), em 8 de setembro de 1965.

CA - Eu vivo pobre. Tão pobre, que até, p’ra mais completar a pobreza, perdi a vista.

Porque quando eu tinha cinco anos de idade, já estava eu empregado aqui, na casa de Miguel

Clementino de Queiroz, ganhando dois vinténs por dia. À minha custa. Ora, calcule, quando era

de noite recebia meus dois vinténs. Levava p’ra casa. Era com esses dois vinténs que comprava-

se dois vinténs de farinha p’ra fazer um angu p’ra comer mais meu pai e minha mãe. Era isso.

Page 2: Entrevista Cego Aderaldo

2

Meu caro amigo, como lhe disse há pouco tempo, eu, com cinco anos de idade, comecei a

trabalhar p’ra sustentar minha mãe e meu pai. Meu pai, em 1888, teve uma congestão, que ficou

sem fala e sem ouças e aleijado. Mudo e surdo e aleijado. E eu trabalhando p’ra manter. Ora, eu

ganhava dois vinténs por dia. Com cinco anos de idade. Era com aquilo, com aqueles dois

vinténs, que se comia. Que a gente não tinha mais recursos. Nada não se tinha. Bem, assim fui

crescendo, abraçado com a desventura, até que quando eu ceguei eu tinha dezoito anos. Já eu

estava ganhando mil e seiscentos.

RR – Naquela época o senhor já cantava? Cantava romances?

CA – Não. Trabalhava. Sabia nada. Mas nada, mesmo. Eu admiro como foi que eu

cantei... Que eu trabalhava – olhe, eu pintava, eu trabalhava de ourives, trabalhava de

marceneiro, eu trabalhava de ferreiro, eu trabalhava na enxada, no machado, na foice, tudo, p’ra

mim, era trabalho. Onde fosse p’ra ganhar dinheiro, eu estava preparado. Eu pescava, eu era bom

atirador, eu ganhava o mato a caçar, a matar avoantes, galinhas d’água, essas cousas, patos,

marrecas, pelo mato, tudo que eu encontrava. Naquelas lagoas. Cansei de passar a noite dentro

da lagoa, a pescar, e de manhã atirando em galinhas d’água e patos, essas cousas, p’ra trazer p’ra

casa. E assim ia vivendo. E quando perdi a vista, pronto, acabou-se tudo. Tudo, tudo. Porque

meu pai já estava mudo, minha mãe, mulher muito vergonhosa, não sabia pedir esmola, e nem

andar em casa de vizinho a sentar esperando prato de casa alheia. Pois bem, por esta razão, a

fome, lá em casa, amuletou-se seguramente. Eu me vi sem nada, sem coisa nenhuma. E maginei,

“que é que eu faço?”. Queria cantar, queria cantar bendito, queria inventar uma cousa, que eu

ganhasse o pão de cada dia. Nada. Eu tive um sonho: eu cantando. Quando eu tive esse sonho, eu

cantando, eu disse à minha mãe. Ela achou graça. “Meu filho, você cantando... Interessante, que

eu nunca lhe vi cantar.” Eu digo: “É verdade. Sonhei cantando.”

RR – O senhor ouvia outros cantadores?

CA – Não.

RR – Não havia cantadores aqui em Quixadá?

CA – Tinha, não. E se tinha, deixe eu lhe falar com honra, eu não apreciava. Os

cantadores, não. Logo eu não tinha tempo. Escutá-los. Às vezes eu ouvia um cantador cantando,

assim, passava ligeiramente, vi eles cantando. Ouvi um cantador chamado Jitirana, ouvi um

cantador chamado Gerônimo. Ouvi um outro cantador chamado Carinana. E diversos cantadores

Page 3: Entrevista Cego Aderaldo

3

assim. Mas, quer dizer, eu ir mesmo fazer a apreciação, eu nunca pude. Sempre ocupado. O

senhor sabe, quem trabalha p’ra se manter não pode brincar. A brincadeira é muito pouco tempo.

Eu fui um sujeito, não tive tempo nem de namorar, o senhor pode crer. Por causa das ocupações

de casa. Eu fui criado p’ra trabalhar p’ra minha mãe e meu pai. E quem é criado assim tem uma

pena danada de destruir dinheiro. Uma pena doida. Então, por esta razão, eu inventei essas tais

cantigas. Tanto que a primeira cantiga que eu cantei, eu dizia:

Sonhei que em Canindé

eu lá recebi as pagas,

caía dinheiro em minha mão

como o mar soltando vagas,

e quem me dava proteção

era São Francisco das Chagas.

Ia levando cantigas –

E tu, belo Canindé,

cheio de tanta beleza,

tanto ouro em tua igreja

em santidade e riqueza,

tudo aí tem com fartura

mas eu só tenho pobreza.

Bem, eu inventava aquelas cantigas e ia ganhando aquele dinheirinho. Uns me davam um

vintém, uns me davam dez réis, outros me davam dois vinténs, outros me davam trinta réis...

Naquele tempo, dar um tostão era grande coisa. Com um tostão comprava-se muita coisa.

Comprava, por exemplo, meio quilo de carne. Um tostão. Bem. E assim, olhe, eu ia olhar em

Canindé, por exemplo, passava toda a festa lá, cantando. Quando eu vim embora p’ra casa, onde

estava minha mãe, eu trazia dez ‘tões. Foi o dinheiro que eu ganhei na festa. Dez ‘tões, mil e

quinhentos, mil e quatrocentos, mil e duzentos, era isto. Agora, quando minha mãe morreu, aí,

sim, acabou-se o mundo. Total. Que fiquei sem mãe e sem vista. Aí achei ruim. Achei ruim,

daqui deste lugar eu saí pr’a Serra Azul, uma serra que a gente vê daqui a dez léguas, nesse

rumo. Sem guia, porque eu não tinha quem quisesse ir mais eu de graça. E pagar – não tinha

dinheiro. Saí. Agora, com a bengalinha na mão, batendo, batendo e seguindo. Devagarinho, que

Page 4: Entrevista Cego Aderaldo

4

eu não podia andar depressa. Escurecia, chegava a noite, eu só sabia que era de noite por causa

do canto dos grilos. Cantavam aqueles grilos, cantavam aqueles caborés, e eu sabia “está de

noite”. Mas, andando, quando alguém me via e chamava, eu ia naquela casa que chamavam. E,

quando não viam, eu ia seguindo. Se eu saía da trilha, do caminho, ganhava a mata. Só andava

em caminho outra vez quando achasse outro. Mas não tinha essa história “eu vou p’ra tal parte”,

não. É aonde eu saía. Em uma dessas viagens escureceu, e acabou-se. Eu, com muita fome.

Cheguei numa água. Fui entrando, entrando, e a água crescendo, e eu andando. Com pouco deu

no pescoço. Eu, já despersuadido de tudo – desse tempo não tinha mais nem mãe –, ora, “tem

nada, não”, entrei mais. No que eu entrei mais, ficou mais raso. O mais fundo parece que era ali.

E fui saindo. Quando eu saí fora, olhe, só pisei em espinha, em formiga mordedeira, em quanta

coisa! Aluá, nos meus pés, me cortei todo, saí por cima de uma cerca velha (não sei o que era) e

saí andando. Mato, muito. Deitava num pau, deitava noutro, eu ouvi um galo cantar. Eu fui p’ra

lá. E, então, tomei o rumo: “vou lá onde está aquele galo”. E vou andando, buracos, o chão todo

cheio de buracos e formigueiros, e, por causa das chuvas, que eram demais, estava tudo...

aqueles buracos terríveis, grandes, metia a perna até o joelho. E assim fui andando, andando. E

quando eu cheguei mesmo debaixo do pé de pau que o galo, por exemplo, estava cantando em

cima, trepado, eu ouvi foi uma voz, gritando:

– Chega, ô Antônio! Tem ladrão lá no poleiro!

Aí eu disse:

– Senhora – que eu ouvi que era a voz de uma mulher –, senhora, não é ladrão, não. É

um cego, desmastreiado, pelo mundo perambulando.

Aí a mulher disse:

– Parece o Aderaldo.

Eu disse:

– É ele mesmo, senhora.

Ela disse:

– Coitadinho, há tão pouco tempo a mãe dele morreu, já ele vive a sofrer. Vai, ô Tônio,

buscar ele.

Lá vai o marido da mulher. Chegou lá, me pegou pelo braço, foi me levando. Chegou lá.

Ela foi perguntando:

Page 5: Entrevista Cego Aderaldo

5

– Já almoçou?

– Não, senhora.

– E a roupa, toda molhada...

Eu contei:

– Passei numa água muito grande.

Ela disse:

– Ai, foi na lagoa Capitão. A lagoa Capitão, onde ele passou. Ora, mas por donde veio,

p’ra sair aqui!

Que essa lagoa Capitão tem muita água. Eu contei que tinha muita aluá, tinha muita

coisa, e ela disse:

– Foi a lagoa. E cadê, você não tem roupa, não?

– Não, senhora.

Eu não tinha roupa, só aquela que estava vestindo. Não tinha rede, eu não tinha nada.

Então o dono da casa armou uma redinha, me deu uma calcinha velha p’ra eu vestir. Eu vesti.

Tirei a minha blusa, e a calça, entreguei lá e fiquei só vestido na calcinha. Me deram um

lençolzinho, e eu cobri o corpo com o lençolzinho. Me deitei. Quando eu fui deitando, a dona

disse:

– Não vá dormir, não, que eu vou fazer uma jantinha pr’o senhor.

Ela fez café, fez umas tapiocas, me chamou. Ora, eu nem sei quantos dias fazia que eu

não comia, eu estava com tanta fome! Comi, à vontade. Fui dormir. Quando foi quatro horas,

mais ou menos, eu me levantei. Chamei:

– Seu Antônio!

– Senhor?

– Mande me dar minha roupinha que eu quero vestir p’ra sair.

– Não, o senhor não sai agora, não. Pode deitar-se à vontade. A mulher não quer que eu

saia, não. E nem eu. Fica ali.

Fiquei deitado. Quando clareou mais ou menos o dia, levaram tapioca, levaram café, eu

tomei com tapioca, tomei mais, eu não fumei porque nesse tempo eu não fumava. Então sucedeu

que a mulher disse:

Page 6: Entrevista Cego Aderaldo

6

– Bem, o senhor só sai daqui amanhã, que eu hoje vou bater sua roupinha, vou remendar,

e amanhã eu mando o filho meu lhe deixar na casa de comadre Santana, que ela tem muito filho,

pode ser que ela lhe arrume um. Andar mais o senhor. Mas o senhor, assim, sem guia, é muito

ruim. Eu não lhe arrumo um menino que eu só tenho um. Se eu tivesse dois, eu lhe arrumaria.

Bem, fiquei satisfeito. Ela lavou minha roupinha, arremendou, ajeitou, eu almocei na

casa, jantei, de tardezinha vesti minha roupinha limpa, dormi naquela rede ali junto da casa, foi

de manhã. Tomei café com tapioca. E ela mandou o filho:

– Vá, meu filho. Leva ele na casa de comadre Santana. Diga a comadre Santana que eu

mando pedir a ela que ela use caridade com este pobre cego, dê p’ra ele um menino p’ra andar

mais ele, ao menos uns dias, enquanto ele se acostuma mais.

Então o menino me levou. Chegou lá, me entregou à mãe dele [sic]. Contou a história:

– ’Tá aqui. A mamãe mandou que a senhora ajeitasse um menino dos seus p’ra andar

mais o cego.

Aí ela disse assim:

– Porque ela não deu o dela? Porque não deu?

Aí o menino:

– Não, dona Santana, é porque mamãe só tem eu.

Ela achou graça:

– ’Tá direito. Ele fica por aqui. Se algum se agradar dele, irá mais ele.

Ora, eu toda a vida fui muito jeitoso com menino, demorei por lá uns quatro dias, quando

estava p’ra sair os meninos todos queriam ir mais eu. Todos eles. Foi preciso eu escolher à

vontade um p’ra levar. Bom, levei um. Cantando as minhas cantigas feias, mal feitas que era um

horror. Quando cheguei num lugar chamado Vazante, que eu cheguei na ponta da rua, tive logo

notícia que tinha um cantador aí me esperando p’ra me dar uma pisa.

– Vai, vai!

– Que cantador é esse p’ra querer me dar uma pisa? Eu nunca cantei com um cantador...

– Pois ele está aí.

Eu perguntei quem era. Disseram:

– Chama-se Antônio Felipe.

– Canto com ele, não. Eu não sei cantar.

Page 7: Entrevista Cego Aderaldo

7

Mas aquela rapaziada dali juntou-se tudo e disseram:

– Vamos mandar o cego cantar mais esse cantador. Mas nós vamos dar palmas só ao

cego. P’ra esse cabra não ser insultante e agora de fora querer expulsar o cego com as

cantiguinhas dele.

E então esse cantador apareceu lá p’ra cantar comigo. O pessoal:

-Vamos dar palmas ao cego, vamos dar palmas p’ra ele.

Ora, não que eu fosse merecedor, é que eles estavam já aborrecidos com o cantador

querer me desacatar, eu andar atrás de ganhar o meu vintém, pouquinho mesmo, e ele, então,

com as cantigas boas dele – que eram muito boas, não havia dúvida –, então querer levar a troça.

Por esta razão o povo dali foram bater palmas p’ra mim. Ora, foi um regozijo que eu ganhei de

palmas. Mas as cantigas que eu cantei foi da mais péssima. E o homem cantava bem, não há

dúvida nenhuma. Cantigas muito bem feitas, muito bem aprumadas, muito direitas. E eu era só

dizendo besteira. E o povo dando palmas só a mim.

RR – Mas como é que o senhor sabia cantar repente?

CA – Eu cantava o que vinha na boca.

RR – Mas se não tinha ouvido outros cantadores...

CA – Mas eu ouvia agora aquele cantando, dizendo bom como o diabo, e eu dizendo

ruim. Mas ia. Por exemplo, se ele dizia:

Aderaldo, eu p’ra cantar

não sou cantor de caatinga.

Quem tem o seu gado ferra,

quem tem o bezerro carimba.

Homem que não tem açude

no verão cava cacimba,

– eu dizia –

No tempo que eu era moço

comia meus ensopados

mas hoje, como sou velho,

como macaco torrado.

Page 8: Entrevista Cego Aderaldo

8

Era isso, aquelas cantigas de menino, que eu tinha aprendido menino, assim, brincando

em terreiro, e aquilo tudo eu levava. E o povo achava bonito, mas não era bonito, era mesmo que

queriam proteger-me. Sabe de que [sic] quando findou aquele negócio fomos ver o apuro. Dois

mil réis. Foi o apuro. Eram dez ‘tões dele e dez ‘tões meus. E eu já animado. Porque dez ‘tões

p’ra mim era muito dinheiro. E pr’as cantigas feias, ruins, que eu cantava ganhava pouco. Bem,

tinha ali um senhor, disse: “Dêem os dois mil réis pr’o cantador de fora. Deixem estar o cego

comigo.”

Assim fizeram. Deram os dois mil réis ao homem e eu fiquei, segundo aquele senhor

falou – chamavam ele Pacheco –, e eu com pena daqueles dois mil réis ir soltos, todinhos, e eu

não ficava com nem um tostão. Mas fiquei parado. Quando ele saiu, chegou, disse:

– Como é, tem adonde durma?

Digo:

– Tenho, vou dormir lá, lá fora na rua.

– Não, dorme aqui mesmo. Vamos ali p’ra casa.

Eu fui, cheguei lá, ele que levava o menino da Serra Azul mais eu, ele disse à mulher:

– A redinha você arma aqui, nessa parte do vizinho, duas redes aí, que é uma pr’o menino

do Aderaldo e uma p’ra ele.

Ela foi logo armar as tais redes, preparar. Quando eu passei pr’a rede, ela disse:

– Vai dormir, não. Agora é que vai jantar.

Ora, foi muita coalhada, queijo, muito bom, leite cozido, bem quentinho, gostei demais.

Isto era mais ou menos uma hora da madrugada. Bem, depois fui me deitar. Quando o dia

amanheceu, me levantei falando em sair. Ali o dono da casa disse:

– Você não vai, não. Você ’tá de luto sem ter luto. Eu vou mandar fazer uma roupinha de

luto p’ra você.

Pois ele mandou fazer uma blusa preta e eu vesti. Foi quando botei luto. Fazia talvez onze

meses que minha mãe tinha morrido, ou mais. Eu não tinha com que comprar... E ele me deu

uma blusa, vesti, logo botei uma tira no chapéu, uma tira preta. Eu passei mais ele uns três dias.

O regozijo que eu tinha ali, todo mundo alegre, “Cego Aderaldo, Cego Aderaldo” e tal,” vai

cantar muito bem, tem a voz muito boa...”

Page 9: Entrevista Cego Aderaldo

9

A voz era boa, não havia dúvida, mas as cantigas não valiam nada. Agora, eu maginando

ele me dar nem que seja dois mil réis, quando ‘tava p’ra sair,

– Coronel Pacheco, eu vou embora.

– Está vexado?

– Eu não, o senhor sabe, a vida é esta, eu não posso parar.

– Tem razão. Mas você, quando quiser descansar, venha pr’aqui. Venha pr’aqui. Aqui

tem cana, tem carro p’ra fazer farinha, tem muita mandioca, tem muito côco, você vindo pr’aqui

não lhe falta nada, não. Comer na nossa casa, p’ra um cego como você, não falta, não.

Ora, p’ra mim era uma grande garantia já. Bem, agora ele meteu a mão no bolso, pegou

um papel.

– Pronto, ’tá aqui, o seu dinheiro.

Peguei e meti no bolso. Ele disse:

– Não, venha cá. Deixe eu lhe dizer. Quanto é esse papel que eu lhe dei?

Eu quis esbrugar mesmo, quis dizer que era muito dinheiro. Disse:

– Cinco mil réis.

Ele riu-se.

– Não. É cinquenta.

Ora, calcule, meu bom amigo, eu nunca tinha pegado em cinquenta mil réis, nem no

tempo em que eu tinha vista! Cinquenta! Que se eu trabalhava a mil e seiscentos o dia, quando é

que eu juntava cinquenta mil réis p’ra tirar? Não, quando vinha a paga, eu tirava era muito

pouco. Depois disso, ficava tudo no forro de cimento. Nunca tinha pegado em cinquenta mil réis

meus, não. Era cinquenta mil réis!

– Guarde, muito bem guardado.

– Sim, senhor.

E eu meti o dinheiro no bolso, e minha vida era palpar o bolso, p’ra ver se ‘tava dentro.

De vez em quando, eu passava a mão. Já com medo, eu andando de pé, que não fossem me

roubar, aí no caminho, com aquele dinheiro. Quando o povo perguntava:

– Pacheco lhe deu alguma coisa?

– Não, ele disse que ia dar lá na Recolhada. Ia dar lá.

Page 10: Entrevista Cego Aderaldo

10

Mas era com medo do caminho que eu devia ir, com três léguas, de poder eu dizer que

levava e eles ir me atacar. Era com medo. Bem, fui-me embora pr’a Recolhada. Ora, meu amigo,

a palma que eu tive, ali naquele lugar chamado Vazante, foi o tamanho da vaia que eu tive

quando cheguei na Recolhada. Cantando as minhas besteiras. Não teve quem achasse graça.

Tudo cousa muito ruim. É que tinha ali um cego chamado José – chamavam ele José dos Santos

–, tocava violão muito bem e cantava modinhas muito bem. Aí, teve pena de mim, e disse assim:

– Não, façam isso com o cego, não. Eu também sou cego e eu sei as cousas como são. O

cego canta muito bem. Mas ele não sabe tocar. Ele não tem instrumento. E como é que ele pode

fazer uma cantoria bem feita? Não pode. Agora, querem ver como ele canta bonito?

Bem, nesse tempo eu cantava a modinha que dizia:

Não acho ser valentia

lutar com as ondas do mar.

Mais valente é meu coração

que nasceu para te amar.

Bem, ele disse:

– Cante a sua poesia.

Eu cantei

(cantando) Nas tranças dos teus cabelos

fui aprender a nadar.

Faltou-me a luz nos meus olhos,

não pude mais navegar.

Não acho ser valentia

lutar com as ondas do mar.

Mais valente é meu coração

que nasceu para te amar.

Mais valente é meu coração

que nasceu para te amar.

– e o cego acompanhando com a perfeição melhor do mundo. Ô cego p’ra tocar bem!

Quando acabei a poesia foi uma palma estrondosa.

Page 11: Entrevista Cego Aderaldo

11

– Olha você como estão batendo palmas! E bateriam em todas se ele estivesse cantando e

tocando o instrumento dele. Mas ele não tem instrumento. E não é isso, vocês não podem botar

de taxa nele e sim a falta dele é ele não tem instrumento. E nem saber tocar. Uma vez que ele

saiba tocar ele há-de ser um cantador muito bom. O Aderaldo ainda vem, todo mundo dizer,

“cantador muito bom, o Cego Aderaldo!”

E aquilo me animou o drama. O cego abriu-me a remanescência e deu-me mais ou menos

um conforto. Ficou sendo meu amigo até quando ele morreu. Pois bem, e por aquilo eu comecei

a me estirar na cantoria, comecei a cantar, comecei a fazer minhas cantiguinhas, depois comprei

uma rabequinha feita por aqui. Dois mil e quinhentos. E eu tocava na rabequinha, minhas toadas,

minhas cousinhas. Eu, cantando, ‘tava ganhando meu dinheiro. E, depois, fui me refazendo, fiz a

minha orquestra de dezoito figuras. A minha orquestra.

Page 12: Entrevista Cego Aderaldo

12