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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito ENTRE SABERES E FAZERES: a produção do conhecimento emancipatório no ensino jurídico Débora Elisa Marinho de Oliveira Belo Horizonte 2009 PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito

ENTRE SABERES E FAZERES: a produção do conhecimento emancipatório no ensino jurídico

Débora Elisa Marinho de Oliveira

Belo Horizonte 2009

PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

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Débora Elisa Marinho de Oliveira

ENTRE SABERES E FAZERES: a produção do conhecimento emancipatório no ensino jurídico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teoria do Direito. Orientadora: Lusia Ribeiro Pereira

Belo Horizonte 2009

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FICHA CATALOGRÀFICA

Bibliotecária: Maria Carmen C.B. Rena – CRB - 1710

Débora Elisa Marinho de Oliveira 34:378 (81) Entre saberes e fazeres: a produção do conhecimento emancipatório no ensino jurídico./ Débora Elisa Marinho de Oliveira, Belo Horizonte, 2009 . 107f. Orientadora: Lusia Ribeiro Pereira Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Bibliografia.

1.Ensino jurídico. 2. Conhecimento. 3. Cidadania. 4. Direito Achado Rua. 5. Pólos de Cidadania. 6. Libertas. I. Pereira, Lusia Ribeiro. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. III. Título.

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Débora Elisa Marinho de Oliveira

Entre saberes e fazeres: a produção do conhecimento emancipatório no ensino jurídico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teoria do Direito.

___________________________________________________________________

Luisa Ribeiro Pereira (Orientadora) - PUC Minas

___________________________________________________________________ Lucas de Alvarenga Gontijo

___________________________________________________________________ Oder José dos Santos

___________________________________________________________________ Júlio Aguiar de Oliveira

Belo Horizonte, 11 de dezembro de 2009.

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À minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Maria e ao meu pai Joaquim (tão presente, mesmo tão longe),

que me deram o colo e o tino; o pão e o ensino; o barco e o norte; a vela e a sorte.

Ao Pepê e Gui, minha inspiração.

Ao Luiz Carlos, companheiro de tantas conquistas.

À minha irmã Paola, tia e mãe, única no meu coração.

À Professora Lusia, pelo carinho do acolhimento, pelo cuidado na orientação,

que me ensinou que professor também dá ombro.

Ao Professor Lucas que abriu as portas da academia.

À Janete que durante estes dois anos cuidou da minha casa e de mim.

Ao amigo Marcelo Moura, cuja generosidade é do tamanho do mundo.

Aos amigos da biblioteca da PUC Minas em Contagem, por muitas vezes

estarem onde eu devia estar.

Ao Rafinha que cada dia mais me encanta, me faz feliz , me faz acreditar que

ser diferente é apenas uma possibilidade de ser.

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“Na escolha entre soluções e caminhos são preferíve is os caminhos”.

Heidegger

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RESUMO

É função da educação fazer com que o conhecimento tenha significado e se torne

significante para os alunos. Não de forma a medir resultados imediatos, mas no

sentido de construir no sujeito uma esperança, no acreditar e almejar algo melhor

para si e para o outro. Arquitetar o desejo. Mapear o mundo para além de si mesmo.

Nesse sentido, para melhor compreender o sujeito do conhecimento e como ele se

constrói na sociedade contemporâneo, é feito neste trabalho uma análise da

“geração internet” tendo como paradigma a geração de 68, cujo lema era “É proibido

proibir”. Partindo do pressuposto que é necessário que o aluno do curso de Direito

deixe de ser espectador do seu processo de construção de conhecimento e se torne

sujeito, no sentido de transformar e redefinir o Direito na sociedade são

apresentadas duas práticas pedagógicas que viabilizam esse olhar: a aproximação

entre Direito e Literatura e os programas de extensão universitária que adotam a

metodologia da pesquisa-ação, propondo ações interventivas. A literatura é produto

cultural de seu tempo e, portanto, instrumento de interpretação e reflexão do mundo,

que possibilita recriar a visão do homem sobre ele mesmo e pode oferecer algo além

do senso comum sobre a realidade. Os projetos Direito Achado na Rua, Pólos de

Cidadania e Libertas, ao adorarem a pesquisa-ação, que tem como ponto de partida

o pluralismo jurídico, a emancipação e a formação da cidadania, oferecem novas

possibilidades para a práxis nos projetos de extensão, em que o sujeito coletivo

deixa de ser alvo de ações assistencialistas para torna-se sujeito de transformação

da sua realidade.

Palavras-chave: Ensino jurídico. Produção do conhecimento. Pesquisa e extensão.

Direito e Literatura. Direito Achado na Rua. Pólos de Cidadania.

Libertas.

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ABSTRACT

The function of education to have the knowledge to have meaning and becomes

significant for the students. Not in order to measure outcomes, but to build a subject

in hope, believe and aspire to something better for themselves and others. Mock

desire. Mapping the world beyond himself. Accordingly, to better understand the

subject of knowledge and how it is constructed in contemporary society, is made in

this paper an analysis of the "Internet generation" as a paradigm and the generation

of 68, whose motto was "It is forbidden to forbid." Assuming that it is necessary for

the student of the law ceases to be a spectator of the process of building knowledge

and become subject to change and redefine the law in society will have two

pedagogical practices that enable this sight: the rapprochement between law and

literature and the university extension programs that adopt the methodology of action

research, proposed actions and intervention actions. Literature is a cultural product of

its time and, therefore, an interpretation and reflection of the world, which allows to

recreate the vision of man about himself and can offer something beyond the

common sense of reality. The projects Direito Achado na Rua, Pólos de Cidadania,

and Libertas the worship action research, which has as its starting point the legal

pluralism, emancipation and citizenship training, offer new possibilities for practice in

outreach projects in which the collective subject is no longer the target of assistance

programs, becomes the subject of transformation of their reality.

Keywords: Legal education. Production of knowledge. Research and extension.

Law and literature. Direito Achado na Rua. Pólos de Cidadania.

Libertas.

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LISTA DE SIGLAS

ASL - Aglomerado Santa Lúcia

CEAM - Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares

CODI - Centro de Operações de Defesa Interna

CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

DOI - Destacamento de Operações de Informações

EUA - Estados Unidos da América

IES - Instituições de Ensino Superior

IHJ - Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ

MEC – Ministério da Educação

NMC - Núcleo de Mediação e Cidadania

NPJ - Núcleo de Prática Jurídica

NEP - Núcleo de Estudos da Paz e Direitos Humanos

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

OEA - Organização dos Estados Americanos

PT - Partido dos Trabalhadores

PUC Minas - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Reuni - Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

SINAES - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UnB - Universidade de Brasília

UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Juventude transgressora.............................................................................15

Figura 2 Passeata dos cem mil .................................................................................16

Figura 3 A invenção da Justiça: colóquio de direito e dramaturgia grega .................64

Figura 4 Produtos da Associação Bela Vista, de Padre Paraíso...............................84

Figura 5 Vila Acaba Mundo, na região Sul de Belo Horizonte...................................85

Figura 6 Trupe A torto e a Direito ..............................................................................86

Figura 7 Banner produzido pela equipe dos Núcleos de Mediação e Cidadania do

aglomerado da Serra.................................................................................................89

Figura 8 Libertas .......................................................................................................93

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SUMÁRIO

1 DESAFIO DA EDUCAÇÃO: DA UTOPIA DE 1968 AO NARCIS ISMO DO JOVEM

DO SÉCULO XXI ......................................................................................................12

1.1 Entre a utopia e o mundo real .................. ........................................................16

1.1.1 Quarenta e um anos depois: o que foi feito de les.......................................17

1.2 A geração pós-68: da utopia social à cultura ao corpo .................................21

1.3 A geração do novo milênio e comportamento socia l no espaço da

universidade ....................................... .....................................................................24

2 A UNIVERSIDADE DO NOVO MILÊNIO: O DESAFIO DA FORM AÇÁO DO

ALUNO CIDADÃO...................................... ..............................................................28

2.1 Função social da Universidade.................. ......................................................28

2.2 Responsabilidade social da Universidade ........ ..............................................30

2.3 A prática pedagógica como fator de mediação no processo de

transformação social ............................... ...............................................................33

3 EDUCAÇÃO E ENSINO JURÍDICO ....................... ...............................................41

3.1 O ensino jurídico brasileiro: para além do posi tivismo.................................43

4 DIREITO E LITERATURA: A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO . .......................50

4.1 O estudo do Direito a partir da Literatura ..... ..................................................51

5 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO E PESQUISA NO CURSO DE DIREITO: AS

EXPERIÊNCIAS DOS PROGRAMAS DIREITO ACHADO NA RUA, PÓLOS DE

CIDADANIA E LIBERTAS............................... .........................................................66

5.1 A produção do conhecimento e a pesquisa no ensi no jurídico....................66

5.1.1 Pluralismo jurídico .......................... ...............................................................68

5.1.2 Assistência e Assessoria jurídica: o caminho da práxis jurídica ..............70

5.1.2.1 O assistencialismo como fortalecedor do monismo no ensino ......................71

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5.1.2.2 A assessoria como práxis para a cidadania ..................................................73

5.2 Direito Achado na Rua.......................... ............................................................74

5.3 Programa Pólos de Cidadania.................... ......................................................78

5.3.1 Metodologias do Pólos de cidadania........... .................................................81

5.3.1.1 Metodologia capital social e mediação..........................................................81

5.3.1.2 A metodologia de pesquisa-ação ..................................................................82

5.3.2 Os projetos do programa Pólos de cidadania .............................................83

5.4 Libertas: um programa em defesa da cidadania ... .........................................91

6 EPÍLOGO...............................................................................................................96

REFERÊNCIAS.........................................................................................................98

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1 DESAFIO DA EDUCAÇÃO: DA UTOPIA DE 1968 AO NARCISI SMO DO JOVEM

DO SÉCULO XXI

O ano de 1968 representou o auge de um momento histórico de intensas

transformações políticas, culturais e comportamentais que marcaram a segunda

metade do século 20. Assistimos a liberação sexual, a manifestação de novas

formas de expressão cultural no cinema, na moda, nas artes plásticas e visuais para

se referir a uma generalização.

No lançamento do livro “1968 – o que fizemos de nos”, Zuenir Ventura analisa

a sincronia de fatos ocorridos em 1968 em diferentes países como França e EUA,

uma rebeldia generalizada, que consagra o princípio libertário: “É proibido proibir”. A

liberdade dos jovens tanto na questão da sexualidade como de expressão é fruto

desse movimento.

Na França, no mês de maio de 1968 a partir de manifestações estudantis

ocorridas nas universidades francesas de Nanterre e Sorbonne, irromperam

sucessivos movimentos de protestos em diversas universidades de países da

Europa e das Américas, que ganharam uma dimensão ainda maior com a ampliação

das revoltas da classe trabalhadora. (PIACENTINI, 2008).

Os jovens franceses lutavam contra a rigidez do sistema educacional. Na

verdade, estes foram parte de uma expressão mais ampla de contracultura dos anos

60, que contestou valores morais julgados ‘incompatíveis’ com os novos tempos.

Entre os símbolos das transformações tecnológicas, sociais e comportamentais na França estavam o automóvel - pessoas eram atropeladas nas ruas por não conseguirem calcular a velocidade dos carros-; a minissaia e a calça jeans-que representavam a emancipação feminina e a modernidade; a valorização das crianças que até então "não existiam", pois não havia a compreensão da infância, e elas eram tratadas como "adultos em miniatura. Nas artes, o cinema da nouvelle vague de François Truffaut e Jean-Luc Godard buscava expressar na tela as transformações, em filmes como "Acossado" e "Os Incompreendidos". (PIACENTINI, 2008).

Entretanto, ‘maio 68’ não pode ser compreendido sem levar em conta os fatos

que eclodiram no mundo nos anos 60, uma década de mudanças na história do

ocidente.

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Os “anos dourados” (década de 1950) foram marcados pelo desenvolvimento

econômico. Os jovens nascidos nesse período tinham a perspectiva de uma vida

futura de abundância relativa.

O desenvolvimento econômico exigiu novos conhecimentos e novas profissões para fazer frente às mudanças aceleradas do capitalismo. No panorama mundial, novas profissões emergiram e o trabalho intelectual foi a proposta mais valorizada como forma para o enfrentamento das contradições do trabalho manual. (TOLEDO, 1998, p.72).

O direito ao estudo e a necessidade de formação profissional passaram a ser

a perspectiva da geração dos anos 60, alimentavam a ideia de que o estudo

universitário e o exercício de uma profissão seriam o passaporte para o sucesso

pessoal, assim como o meio para a participação nas decisões coletivas.

O historiador Eric Hobsbawm citado por Piacentini (2008) afirma, no livro "A

Era dos Extremos", que "a Idade Média acabou de repente" em meados da década

de 1950. Para ele, o crescimento repentino dos números da educação,

especialmente do ensino superior, são um dos motivos que explica as mudanças da

década. "No fim da Segunda Guerra, havia menos de 100 mil estudantes na França.

Em 1960 eram mais de 200 mil e, nos dez anos seguintes, esse número triplicou

para 651 mil". (HOBSBAWN apud PIACENTINI, 2001).

Paralelamente à ansiedade de um futuro melhor no plano econômico, ao lado

de grandes mudanças, conviviam formas autoritárias de regimes políticos e de

costumes da vida social que comprometiam as promessas de um desenvolvimento

mais global, pleno de valores libertários indispensáveis para o projeto emancipatório

do ser humano. (TOLEDO, 1998).

Os anos 60 denunciaram essas contradições, colocando em xeque as formas

autoritárias e a recusa de qualquer sistema de vida fechado e controlado pela elite.

A contestação tomou vários contornos: dos projetos políticos até a expressão via

cultura como a moda e a música. Questionou-se, inclusive, o modelo de família

autoritário e hierárquico, no qual o poder se centralizava na figura do pai. “Numa

nova sociedade em que o poder era colocado dentro de um projeto mais

participativo e comunitário, não havia lugar para formas repressivas e autoritárias

cerceadoras do potencial humano.” (TOLEDO, 1998, p.74).

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Hobsbawn citado por Piacentini (2008) afirma que freqüentemente associa-se

aos anos 60 termos como "subversão", "revolução continuada" e "sociedade do

espetáculo", mas, sobretudo com "rebeliões estudantis". “Não surpreende que a

década de 60 tenha se tornado a década da agitação estudantil.”.

Nos Estados Unidos da América (EUA), movimentos civis de minorias -

negros e mulheres - eclodiram ao mesmo tempo em que John F. Kennedy (1961-

1963) assumia a Presidência com um discurso considerado bastante progressista.

Especificamente no ano de 1968 os fatos mais marcantes nos EUA foram o

assassinado, em 4 de abril, do líder negro Martin Luther King, e o protesto de cerca

de 60 mil manifestantes no Central Park, em Nova York, exigindo o fim da guerra do

Vietnã, em 28 de abril. Segundo Heller citado por Toledo (1998) o movimento de

contestação contra a guerra do Vietnã foi muito mais amplo que o voltado para a

transformação das formas de vida, embora também tenha sido um elemento

importante. Por sua vez Hollanda e Gonçalves asseveram:

Nos EUA, as contradições da guerra do Vietnã davam lugar a um forte movimento de resistência pacifista. A deserção e a desobediência civil assumiam dimensões de radical atitude política. Surgia uma nova esquerda valorizando o domínio da problemática pessoal ou de lutas tidas como secundária – a liberação sexual, a luta dos negros, das mulheres, as reivindicações minoritárias. [...] Bob Dylan, Allen Ginsberg, Black Panthers, novos símbolos e formas culturais tomavam corpo, expressando aquilo que Herbert Marcuse, filósofo de cabeceira da nova intelligentsia chamou de a Grande Recusa. (HOLLANDA; GONÇALVES, 1995, p.69).

Herbert Marcuse, pensador alemão radicado nos EUA, desde a Segunda

Guerra Mundial valorizava o papel transformador dos jovens e acreditava na

importância da utopia e das ações diretas e radicais. “Tendo como inspiração o

fascínio do socialismo, Marcuse (1968) negava a sociedade capitalista pelo fato de

esta depender cada vez mais da produção e consumo de supérfluos e gerar meios

de destruição e defendia uma sociedade diferente, ainda por construir”. (TOLEDO,

1998, p.77).

Heller citada por Toledo (1998) considera que os movimentos jovens na

década de 1960 foram espontâneos e radicais e tinham em comum ilusões

romântico-capitalistas: almejavam novas relações entre as pessoas, numa

sociedade menos voltada para o consumismo e mais para o essencial do ser

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humano, daí as propostas de despojamento material, de vida comunitária, da

valorização do simples, da paz e do amor livre sem barreiras e preconceitos.

O jovem mostrou uma nova cara pelo qual foi identificado e impôs um estilo

próprio. A professora Lusia Ribeiro Pereira assevera:

Os rapazes perderam o ar de nobreza embolorada e deixaram os cabelos crescerem soltos emoldurando um novo rosto, próprio de uma juventude que desafiava os rótulos de seu tempo. As meninas queimaram os sutiãs em praça pública e exibiram uma nova figura da feminilidade. (PEREIRA, 2008).

Figura 1: Juventude transgressora Fonte: Deister (2008).

No Brasil, que também viveu grandes transformações nas artes - com o

Cinema Novo, a Tropicália, e peças de teatro como "Roda Viva" e "O Rei da Vela" as

rebeliões da década de 60 foram mais ligadas a questões políticas, em virtude do

golpe militar (1964-1989).

Desde o governo Goulart, os estudantes se mobilizavam através de

associações como a União Nacional dos Estudantes (UNE). “A partir de 1964,

tornaram-se vítimas da repressão e, principalmente durante o governo de Costa e

Silva (1967-1969), reagiram intensamente.”. (VICENTINO; DORIGO, 1997, p.411).

O auge das rebeliões ocorreu com a Passeata dos Cem Mil, no Rio de

Janeiro, em 26 de junho de 1968, quando foi realizado o mais importante protesto

contra a ditadura militar até então.

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Figura 2: Passeata dos cem mil Fonte: Andrade (2009).

Ventura não esconde seu encantamento por 68:

É possível que no século XX tenha havido ano igual ou mais importante do que 1968, como defendem alguns, mas nenhum tão lembrado discutido e com tanta disposição de permanecer como referência, por afinidade ou por contraste. Ao se comportar como se fosse um ser animado, suspeita-se que 1968 não foi um ano, mas um personagem – inesquecível e que teima em não sair de cena. (VENTURA, 2008, p.13).

A manifestação, iniciada a partir de um ato político na Cinelândia, pretendia

cobrar uma atitude do governo frente aos problemas estudantis e, ao mesmo tempo,

refletia o descontentamento crescente com o governo militar. Dela, participaram

também intelectuais, artistas, padres e um grande número de mães.

Mas a década de 60 foi muito além de um protesto político. Na verdade

representou um momento de profundas rupturas. A família, a escola, a igreja se

impactuam frente a uma realidade nunca dantes pensada.

1.1 Entre a utopia e o mundo real

No capítulo “Há um meia-oito em cada canto” é descrito o sentimento de uma

geração que desejava mudar o mundo e ousava buscar liberdades individuais e

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sociais. 1968 representou o ano em que se decretou um “vamos parar de mentir”,

“vamos parar de fingir ser uma coisa quando somos outra.”(VENTURA, 2008).

Dos desdobramentos positivos de 68, Ventura (2008) destaca vários: dentre

os mais impactantes o maior respeito às preferências sexuais e aos direitos da

mulher, e o fortalecimento dos movimentos negro e gay. Na ala negativa, estão a

violência "Acreditava-se numa violência edificante, pedagógica, o que dava a você o

direito de ser violento, mas não ao outro, e hoje sabemos que toda violência gera

violência” (VENTURA apud VIANNA, 2008) e as drogas. Ventura em entrevista à

Vianna (2008) afirma que havia certa utopia ingênua ao achar que as drogas

poderiam ser um instrumento de abertura das consciências. Mas essa realidade se

mostrou perversa. No fundo, há uma multinacional das drogas que gera mortes. “É

uma tragédia deste século que herdamos do anterior", diz ele.

1.1.1 Quarenta e um anos depois: o que foi feito de les

1968 era uma utopia, entendida como um projeto, um sonho, um desejo de

transformar a vida, os valores, os costumes. Reivindicava a igualdade entre os

sexos, o fim da ditadura, o respeito à vida e ao meio ambiente e a defesa dos

direitos das minorias. A geração descabelada que saiu as ruas, cujo comportamento

era todo pontuado pela política, foi para a prisão, para o exílio, viveu na

clandestinidade, amadureceu e chegou ao poder. Afinal o que restou de tantos

ideais? Quais foram as marcas deixadas por 68? O que foi feito “deles”?

Políticos, professores universitários, magistrados, técnicos ou simples

trabalhadores, a geração de 1968 está em toda parte. São pessoas na faixa dos 60

anos, um pouco mais ou um pouco menos. Em “Há um meia-oito em cada canto”,

Zuenir Ventura relata a presença de representantes da geração de 68 nos mais

diversos segmentos da sociedade brasileira.

A geração de 68 não chegou a eleger nenhum presidente, ainda que os dois últimos – Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva - considerem ter levado para o poder idéias e representantes da turma com a qual reivindicavam ter afinidades eletivas. Em compensação, os remanescentes daquela época formam um enorme elenco que está ou esteve presente em vários escalões do serviço público (sem falar na

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universidade, no showbizz, na publicidade, no jornalismo. (VENTURA, 2008, p.48).

Essa geração teve em José Dirceu, e, posteriormente, em Dilma Roussef,

aqueles que ocuparam o posto mais alto do poder executivo, sucessivamente, no

cargo de Ministro da Casa Civil da presidência da República do governo Lula. Outra

função importante no governo, a de assessor especial da Presidência da República

para Assuntos Internacionais, é ocupada pelo ex-líder trotskista Marco Aurélio

Garcia.

Jacques Wagner é governador do Estado da Bahia; Gilberto Gil, ex-preso

político e exilado, José Gomes Temporão e Tarso Genro, respectivamente nos

ministérios da Cultura, da Saúde e da Justiça; dos integrantes do Partido Verde,

Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e Carlos Minc (atual Ministro do meio Ambiente);

de Arthur Virgílio e José Serra (atual governador de São Paulo) e César Maia que

exerceu três mandatos como prefeito do Rio de Janeiro, o último de 2005-2008.

Também no Supremo Tribunal Federal encontram-se remanescentes daquela

geração. Ventura (2008) enaltece a trajetória do Ministro Celso de Mello, o mais

antigo ministro do Supremo Tribunal Federal e do ministro Eros Grau que militou

ativamente, tendo sido preso e torturado.

Celso de Mello citado por Ventura (2008) não esquece a principal lição da luta

contra a ditadura e como aqueles ideias permanecem vivos no exercício da

magistratura:

Procuramos hoje, estando em posições que nos permitam lutar de maneira eficaz por essas idéias, agir de maneira coerente com esse passado de lutas, impedindo que manobras do poder acabem uma vez mais ressuscitando os fantasmas do passado. Nós vivemos hoje sob o regime democrático, e essa é uma grande conquista que há de ser preservada, não importa os esforços que nos sejam exigidos. (MELLO apud VENTURA, 2008, p.49-50).

Por sua vez o ministro Eros Grau comunista confesso afirma: “Quem foi

nunca deixa de ser“. (GRAU apud VENTURA, 2008, p.50). Detido pelo

Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa

Interna (DOI-CODI) - órgão de inteligência e repressão do governo brasileiro durante

o regime inaugurado com o golpe militar de 31 de março de 1964 - carrega as lições

de 68:

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Eu sou moldado pelo que aprendi com o meu pai e a minha mãe, pelo que li e pelas experiências que vivi. Tenho a impressão de que é muito importante para um juiz - que toma decisões - que ele seja humano. A vida tem me ensinado a ser humano. É muito importante você tomar decisões sendo humano, sem se dar muita importância. Eu nunca me considerei ministro do Supremo. Sou um sujeito que cumpre a sua função, que não é mais importante do que a do jardineiro que plantou aquela árvore. Estou fazendo o que nessa estrutura social cabe a mim fazer, mas nem por isso sou mais ou menos importante que ninguém. Sou tão importante quanto o marceneiro que faz uma mesa, o operário que faz um copo. (GRAUS apud VENTURA, 2008, p.53).

Nas artes, destaque para José Celso Martinez Corrêa, que aos 70 anos,

continua comandando o histórico Teatro Oficina, em São Paulo. Em 1968

José Celso era uma das figuras mais ousadas do cenário artístico brasileiro. Chocou

o público com as cenas de nudez e violência nas peças O Rei da Vela e Roda Viva.

E não o poder do dinheiro e do sucesso. Mas o poder de transformar o mundo, o que é algo muito maior. Nós tiramos a esperança de todo mundo. E isso é bom. Quem tem esperança passa a vida esperando o messias, que pode ser um emprego melhor, mais dinheiro. Isso é loucura. As experiências malucas na arte, a experimentação das drogas, o contato com o outro, tudo isso despertou o conhecimento do corpo. Esse espírito está vivo até hoje. Vejo ainda muita gente querendo tirar a máscara. Muita gente não suporta mais o catecismo. Não suporta mais se fechar para a vida. Essa vontade de se libertar é reflexo do que fizemos em 68. (MARTINS apud ESCOSSIA, 2008).

Ventura (2008) interroga alguns dos protagonistas da revolta de 68 e da luta

armada ou clandestinidade em que se engajaram a seguir: valeu a pena? Onde

pararam os ideais de então?

José Dirceu de Oliveira era um dos principais rostos da geração 60. Como

líder estudantil, defendia a resistência armada contra a ditadura, foi um dos presos

políticos libertados em 71, por troca com o embaixador americano no Brasil, Charles

Elbricht, seqüestrado pelo confronto. Ex-homem forte do Partido dos Trabalhadores

(PT), ministro do governo Lula e deputado federal cassado no escândalo do

mensalão1.

José Dirceu continua fiel de Lula e orgulhoso do passado: "Não abri mão de

nada. Eu me considero representante dessa geração de 68 até hoje. Mudei em

1 “Escândalo do Mensalão ou "Esquema de compra de votos de parlamentares" é o nome dado à maior crise política sofrida pelo governo brasileiro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2005/2006.”. (WIKIPEDIA, 2009).

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muitas coisas, o mundo mudou, mas não nos meus ideais e nos meus sonhos. O

Governo Lula tem valido a pena". (OLIVEIRA apud TAVARES, 2008).

O cientista político João Roberto Martins Filho em entrevista a Escossia

(2008) ao falar sobre o legado de 68 destaca que houve uma desilusão muito

grande:

A geração do movimento de 68 chegou ao poder, seja no governo FHCZ, seja no governo Lula. Atingiu o poder por vias institucionais, quando a perspectiva da época era revolucionária. Símbolos dessa geração são José Dirceu e José Genoino, recentemente punidos pela forma como se comprometeram com as regras do jogo, principalmente o financiamento de campanhas. Essa geração conheceu a política como ela é se comprometeu, às vezes escorregou. O mundo hoje é muito diferente do que havia no sonho dos jovens em 68. Houve a queda do socialismo e avanço do capitalismo. O mundo hoje não é exatamente o que se sonhou na época.

Para Ventura (2008) essa geração traiu um valor que era muito caro em 68,

desvirtuou um valor sagrado de 68, que é o valor da ética:

Diz que fez isso em nome da governabilidade, em nome do pragmatismo, porque se vive uma época muito mais pragmática do que onírica, de sonho. Você tem, de certa maneira, na política, sujar um pouco as mãos. Minha principal crítica, e não tenho tolerância com relação a isso, é que foi desvirtuado esse valor. A ética como uma prática e como um valor. Nada justifica isso. A política não pode ser idealizada, ela exige uma visão mais pragmática, mais realista – por isso eu não faço política. Entendo até que tenha essa lógica, mas acho que tem limites. Uma coisa é você fazer acordos políticos, parcerias em função do bem público. Agora, tem limites, há coisas que você precisa dizer: “a partir daí não faço nada”. Esses limites foram ultrapassados. Transgredidos. (VENTURA apud STANGLER, 2008).

Mas Ventura (2008) sem perder a utopia acredita que o heroísmo destes

jovens (dos que se mantiveram íntegros), jamais passará.

O espírito ideário de 68 após 41 anos provoca um sentimento nostálgico por

parte daqueles que viveram e uma discussão acalorada ao se confrontar a geração

dos anos 60 e a do jovem do novo milênio que se inaugura com a chegada do

século XXI. Afinal qual foi a herança de 68 para essa nova geração, quem são os

filhos e netos de 68 e como respondem aos desafios do novo milênio?

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1.2 A geração pós-68: da utopia social à cultura ao corpo

Não é possível estabelecer comparações entre a geração de 68 e a do novo

milênio, quando se compreende que a sociedade e o espírito do tempo não

permitem a reedição de comportamentos e atitudes. (FONTES, 2008).

Caetano Veloso na obra de Ventura (2008, p.140) sobre a cobrança que se

faz à juventude de hoje quanto a um comportamento semelhante ao de 68

argumenta: "Para se fazer algo igual, teria que ser algo muito diferente".

A frase de Caetano traduz a falta de sentido da teia de comparações que se

tem feito entre as duas gerações. Ou seja, para serem iguais aos jovens de 68, as

gerações contemporâneas teriam que fazer coisas completamente diferentes do que

foi feito naquele tempo, pois a marca da época era o ineditismo. "Não seria repetindo

fórmulas políticas e identitárias (algo impossível) que os jovens de hoje seriam

melhores ou piores do que os de 68.”. (FONTES, 2008).

Não se pode, no entanto negar que como marco temporal e simbólico, 1968

sempre esteve presente no imaginário da juventude e, principalmente, da geração

que o viveu intensamente. A juventude atual, em meio a toda a informação quer

transformar o ontem em algo já distante demais, parece não se importar tanto com a

chamada geração do desbunde, da coletividade, da contestação política.

A questão da ruptura e da continuidade ocorrida entre a “geração do milênio”,

nascida próximo à virada do século XXI, e a de 68, é o tema do capítulo “A falta de

bússola”, no qual Ventura (2008) analisa aspectos que marcam a juventude atual, no

terreno da política e dos costumes:

A geração de 68 queria tudo a que não tinha direito; a atual tem tudo do que precisa, e por isso se apresenta cheia de ambigüidades e paradoxos. Desapegada ideologicamente, não se interessa pela política, não tem preocupações sociais e não protesta nem contesta, pelo menos de forma como faziam os seus antepassados quarentões ou sessentões, anárquicos ou rebeldes. Em vez da militância, ela prefere a abstenção, a renúncia ou a dissidência. São filhos de um tempo que decretou o fim da história, das ideologias e das utopias. (VENTURA apud SANDES, 2008).

Quarenta anos depois, Maria Lúcia Dahal, uma das remanescentes de 68,

afirma que comparando a juventude de 68, quando tinha 20 anos de idade, aos

jovens de hoje o que sobrou foi o individualismo - do tipo que levar um a querer

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matar o outro para tomar o seu lugar, assim como acabou a gentileza no trato com

as pessoas. E completa:

Os jovens da nova geração me parecem meio sozinhos, voltados para si mesmos, alienados, individualistas, dependentes da Internet. Ficam horas no MSN. Em vez de conversar com pessoas, preferem ficar falando com milhares de letrinhas, constata Maria Lúcia, jovem em 1968. E cutuca também o ‘ficar’ dos jovens da geração do milênio: “Com relação ao sexo o pessoal beija, beija, beija e vai embora, ninguém transa”. Tempos outros. De cuidar do corpo, de fugir das doenças sexualmente transmissíveis. O afeto que se encerra. (DAHAL apud SANDES, 2008).

Hobsbawn (1995) afirma perplexo, que quase todos os jovens de hoje

crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica como

o passado público da época em que vivem. Há uma profunda sensação de que tudo

é passado e assim, perde-se a capacidade de cultuarem expectativas em relação ao

futuro. Ventura (2008) assevera que enquanto a geração dos anos 60 olhava o

futuro procurando mudá-lo, a geração do novo milênio prefere pensar no presente,

no aqui e agora.

No mesmo sentido, Lasch citado por Lipovetsky (1983) afirma que as

sociedades contemporâneas vivem no presente, apenas no presente e não em

função do passado e do futuro: “é esta perda do sentido da continuidade histórica,

esta erosão do sentimento de pertença a uma sucessão de gerações enraizadas no

passado e prolongando-se no futuro, que caracteriza e engedra a sociedade

narcísica”. (LASCH apud LIPOVETSKY, 1983, p.49).

A geração do novo milênio cresceu com a interatividade, com os controles

remotos, os videogames, os computadores pessoais, a Internet, os celulares. Adora

explorar novidades tecnológicas, comunicar-se através de e-mails, torpedos e

mensagens instantâneas pela Internet. É também habituada a multimídia,

interatividade, comunicação em tempo real com pessoas distribuídas

geograficamente no mundo todo. É chamada “geração internet“ seus amigos são

virtuais, os namoros também, e estão a um click para deletar o que não querem

ouvir: marca de uma geração que tem dificuldade de lidar com o ‘não’, com a

hierarquia e exigências, que buscam prazer sem limites:

Os jovens atualmente levam mais tempo para sair de casa, começar a trabalhar e dar origem a uma família. Quando chegam ao mercado profissional, não conseguem lidar com as exigências da realidade. Não é raro encontrar hoje nas empresas rapazes e moças sem nenhum respeito à

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hierarquia, que não sabem cumprir prazos e não assumem responsabilidades. Nem se são advertidos por esse tipo de comportamento, reconhecem o erro. Freqüentemente se sentem injustiçados e incompreendidos. E frustram-se com facilidade, pois querem ter prazer o tempo todo – como se isso fosse possível no campo profissional. Como se isso fosse possível na vida. (BUCHALLA, 2005).

Outro aspecto que pontua o comportamento do jovem do novo milênio é a

relação com o corpo. Ao contrário de 68 quando as pessoas estavam mais

preocupadas com o interior do que com a aparência, o que predomina nas

sociedades contemporâneas são os cuidados corporais: é o culto ao corpo.

Ventura (2008) analisa as conseqüências deste comportamento, na

sociedade atual, em oposição a uma preocupação maior com a alma em relação ao

físico, nos anos 60. Naquela época, diz o autor:

Freud estava na moda, ao lado de Marcuse, Mao e Marx. Em certos meios, era difícil conversar sem empregar ou ouvir lugares-comuns psicanalíticos: transferência, repressão, recalque, ato falho, inconsciente, complexo de culpa. A forma de terapia mais recomendada em tempo de coletivismo era “análise de grupo”. “Assumir” – e não “malhar” – era o verbo dessa vulgata. Ela resolvia todas as questões: “você precisa assumir” – fosse uma fraqueza, uma culpa, um desejo, uma preferência sexual. (VENTURA, 2008, p. 41).

Não se pode dizer que seja um comportamento típico dos jovens, mas as

consequências deste comportamento na juventude podem ser obsessivas e cruéis.

Segundo o psiquiatra Benilton Bezerra Jr. citado por Ventura (2008) há hoje a

substituição de um vocabulário psicológico por um vocabulário biológico, uma

ideologia do corpo perfeito e o preconceito contra os que fogem ao padrão ideal,

além da busca de uma forma ideal que nunca é alcançada.

O professor Francisco Ortega, do Instituto de Medicina Social da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tece algumas considerações sobre o assunto:

Agora o corpo e a comida tomam o lugar da sexualidade como fonte potencial de ansiedade e de patologia. Os tabus que se colocavam sobre a sexualidade deslocaram-se para o açúcar, as gorduras e as taxas de colesterol: passaram da cama para a mesa.Acredito que a anorexia está para o século XXI como a histeria para o século XIX. (ORTEGA apud VENTURA, 2008, p. 41).

Ortega citado por Ventura (2008) assevera ainda que um dos resultados disso

seja a abertura cada vez maior de academias, cuja máxima é o interesse exagerado

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pelo corpo e que estaria ocasionando o “desinteresse pelo mundo”, traduzindo-se

numa espécie de atrofia social : “Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o

corpo,o único espaço que restou à utopia. As utopias corporais substituíram as

utopias sociais.“. (ORTEGA apud VENTURA, 2008, p.41).

Como resultado desta utopia corporal o preconceito contra aqueles que fogem

ao padrão dito ideal: os gordos, idosos, feios, baixos e, principalmente, os

“deficientes” físicos. A época da ditadura militar foi substituída nesses tempos

modernos por uma outra ditadura que também proporciona seus efeitos

extremamente maléficos: bulimias, anorexias e depressões, cada vez mais comuns

entre jovens e adultos.

1.3 A geração do novo milênio e comportamento socia l no espaço da

universidade

O espírito universitário, marcado pela inquietação, pelo conflito de ideias, pela

promoção de espaços de reflexão, vem dando lugar a um imediatismo egocêntrico.

Ricci (2000) alerta ser cada vez mais presente nas salas de aula uma crescente

apatia ao longo dos cursos, a ausência de iniciativas coletivas dos alunos e um certo

desdém ou descrença com seu futuro profissional. Parece que vivenciamos o que

Lipovetsky (1983) vem denominando a “Era do vazio”, um processo acelerado e

perigoso de narcisismo, destruindo qualquer possibilidade de normas de conduta

universais, de procuras coletivas, de solidariedade.

A despolitização e a dessindicalização ganham proporções nunca antes atingidas, a esperança revolucionária e a contestação estudantil desapareceram, a contracultura esgota-se, raras são as causas ainda capazes de galvanizarem a longo prazo as energias. [...] Só a esfera privada parece sair vitoriosa desta vaga de apatia; zelar pela própria saúde, preservar a sua situação material, perder os “complexos”, esperar que cheguem as férias: viver sem ideal e sem fim transcendente tornou-se possível. (LIPOVETSKY, 1983, p.49).

Segundo Ricci (2000) os alunos são cada vez mais impacientes, possuem

dificuldades para construírem um processo de conhecimento. Essas dificuldades vão

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além das deficiências cognitivas, se relacionam com a experiência do homem

contemporâneo com o tempo.

O tempo, nesse final de século, é um lapso, uma imagem. Cotidianamente, os jovens são convidados a negar o passado. Os produtos são sucessivamente superados, e, assim, instala-se um sentimento de procura ininterrupta pelo novo e de instrumentalização radical do conhecimento, na busca imediata de soluções a problemas concretos. Os alunos procuram pelas pequenas sínteses e resultados imediatos, valorizam o tecnicismo e o pragmatismo, não possuem tempo para uma elaboração mais sofisticada, complexa. As novas gerações experimentam com sofreguidão a necessidade de se sentirem contemporâneos ao presente, ou seja, toda novidade escapa-lhes por entre os dedos, porque a informação ou produto obtido há instantes é superado em poucos dias. (RICCI, 2000).

Também é notável no interior das salas de aula, o fenômeno de uma

convivência social desrespeitosa, provocando situações constrangedoras no trato

social entre alunos e professores. São constantes as interrupções da aula pelo

professor devido a conversas paralelas, atendimento de telefones celulares, passo e

repasso de bilhetes, risos, atrasos, uso de ipodes, entradas e saídas sem o mínimo

de observação do horário ou gesto de delicadeza para com a pessoa do professor,

reconhecidamente como sujeito de autoridade na condução do processo de ensino

aprendizagem.

Através de questionário aplicado aos professores do curso de Direito da PUC

Minas em Contagem em 2008, foi feita a seguinte pergunta: “Qual sua percepção da

realidade da sala de aula?” As respostas confirmam o comportamento acima

descrito:

Os alunos são muito mal formados nos ensinamentos básicos de educação e cidadania. O ensino universitário está voltado apenas para um melhor posicionamento nos ranking’s da OAB, ENEM, ENADE, etc., sem a preocupação com a formação humana e cidadã. 2 Tenho percebido um crescente número de alunos pouco interessados na aprendizagem, que veem no curso apenas um caminho para o diploma, sem reconhecerem a importância de realmente adquirir conhecimento durante o percurso. Contudo, acredito que um trabalho sério em sala pode melhorar esse aspecto. A sala de aula reflete a cultura moderna de valorização exacerbada do ter, da aparência, do teatro da mídia. Assim, a nota é mais importante que o processo de aprendizagem.

2 Para uma maior liberdade de expressão não foi exigido que o professor se identificasse.

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Segundo Lipovetsky (1983) em poucos anos, o prestígio e a autoridade dos

docentes desapareceram quase por completo: “Hoje o discurso do mestre encontra-

se banalizado, dessacralizado, e o ensino é uma máquina neutralizada pela apatia

escolar, feita de atenção dispersa e de cepticismo desenvolto ante o saber.”

(LIPOVETSKY, 1983, p.37).

Compreender essa complexidade do sujeito humano talvez seja o maior

desafio do mundo contemporâneo. Torna-se necessário ultrapassar os limites de se

referir e culpabilizar o indivíduo, para apreender uma questão mais ampla que se

refere à instauração do sujeito social de direitos e deveres, adulto, capaz de

autonomia e como tal responsável pelos seus atos.

Neste sentido, vale transcrever a resposta de um professor da PUC Minas

Contagem:

O aluno não é um ser que pode ser rotulado. O processo de democratização do ensino superior trouxe uma pluralidade de sujeitos, com propostas e expectativas diversas. A sala de aula, assim, tornou-se desafiadora. O conhecimento, como alvo deixou de ser consenso.

É função da educação fazer com que o conhecimento tenha significado e se

torne significante para os alunos. Não de forma a medir resultados imediatos, mas

no sentido de construir no sujeito uma esperança, no acreditar e almejar algo melhor

para si e para o outro. Arquitetar o desejo. Mapear o mundo para além de si mesmo.

Nesse sentido torna-se importante conhecer melhor o sujeito do

conhecimento e como ele se constrói no mundo contemporâneo. Transformar o

projeto político de uma sociedade democrática em algo factível e de acesso que

englobe todos os sujeitos sociais nas suas mais diversas singularidades. Tornar

material o projeto constitucional historicamente construído pela sociedade brasileira.

Produzir um conhecimento através da leitura e análise de outros sinais e

símbolos; de outros gestos e olhares; de outras histórias contadas e recontadas; de

outros pontos de vistas; de outros lugares do conhecimento; do dito e interdito; do

permitido e proibido. De outros arquivos que possam ser desvelados a partir de

outras perguntas, de uma outra maneira de reordenar as perguntas relativizando o

campo da objetividade do que se sabe e se conhece com a subjetividade do que se

quer conhecer e de quem se propõe a conhecer. A singularidade e a multiplicidade

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do objeto a ser conhecido e do sujeito cognoscente. Este é o desafio da

universidade do novo milênio.

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2 A UNIVERSIDADE DO NOVO MILÊNIO: O DESAFIO DA FORM AÇÁO DO

ALUNO CIDADÃO

O que é Universidade? O dicionário Aurélio da Língua portuguesa define

universidade como “instituição de ensino que abrange várias escolas de nível

superior: universidade de Brasília. / Lugar, prédio onde funciona essa instituição. /

Corpo docente e discente de uma universidade. (FERREIRA, 1993, p.487).

Por sua vez Wanderley (1988, p.7) ensina que o termo universidade está

ligado a muitos outros: “cultura, ensino superior, pesquisa, autonomia, etc. – que

devem ser conjuntamente entendidos.”.

Segundo Thayer (2002) houve um tempo em que o nome “universidade” nos

remetia à idéia da casa do intelecto, o centro do saber universal; educação e

construção do espírito do povo, qualificação das forças de trabalho, fonte do saber

nacional, “saber” do saber ou reflexividade e interrogação da verdade, da ciência, da

justiça, da lei, guardiã e reguladora do progresso.

Certo é que como inúmeras instituições sociais de nosso mundo, questiona-

se se suas finalidades e seus ideais , tradicionalmente aceitos, permanecem válidos

nos dias de hoje. Assim, abrir uma discussão sobre a universidade é interrogar o

que está à sua volta, não há como discutir sobre universidade fora do contexto

histórico em que está esta inserida, é discutir sua função e responsabilidade nas

sociedades.

2.1 Função social da Universidade

Um dos desafios das universidades contemporâneas é trazer de volta a

legitimidade do papel social da universidade. É encontrar estratégias que possam

romper com o modelo vigente e a ousadia de ir de encontro a temas ou objetos de

estudo diretamente ligados aos interesses dos alunos. Isso implica investir na

criação de condições e ambientes nos quais os alunos se vejam motivados a

investigar e a indagar, habilidades necessárias à produção do conhecimento.

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Considerando ser esta a função da escolarização em geral e, da Universidade

em especial, é viável que se substitua o aprendizado do conhecimento como dogma

petrificado, mercadoria apropriada, pelo modo de como o saber é produzido e de

como ele é transformado em conhecimento provisório sob a forma de teoria a

respeito do enigma homem - mundo - homem.

A importância do conhecimento não pode se limitar aos trâmites burocráticos

dos muros universitários. O objetivo da ação universitária deve, pois, projetar-se

para fora dos muros da Universidade, mas sem deixar de enraizar-se nos sujeitos

que transitam no seu interior. Esses são também sujeitos plurais, diferentes,

diversificados, mas todos sujeitos de ação social e construtores de um ordenamento

da sociedade que se deseja democrático, calcado nos princípios éticos da liberdade

e justiça.

Hoje é preciso acreditar novamente na utopia de uma sociedade emancipada

porque construída pela ação de sujeitos autônomos. Para isso a prática universitária

deve ter uma meta para os sujeitos que estão transitando no seu interior:

proporcionar a todos possibilidades de se qualificarem para o exercício de sua

autonomia. Entendendo-se qualificação, não apenas como preparação de mão de

obra produtiva, mas como preparação do sujeito capaz de compreender e enfrentar

as contradições de seu tempo existencial. Ou seja, entendendo-se qualificação

como a preparação de um sujeito capaz de construir sua própria identidade social,

cultural e profissional. Nesse processo, a universidade tem uma função. Exercê-la é

recuperar sua legitimidade.

Isto quer dizer que a universidade tem uma função social e simbólica e dentre

elas pode-se eleger:

• Possibilitar aos sujeitos adquirir e/ou desenvolver valores

positivos perante o trabalho e perante a organização social e econômica da produção;

• possibilitar aos sujeitos construir regras de comportamento que facilitem o desenvolvimento de interações sociais mais humanizadoras e democráticas;

• estimular a construção prazerosa de trajetórias pessoais de vida; estimular formas interativas de acessar informações e processar conhecimentos;

• estimular o desenvolvimento de habilidades cognitivas que permitam compreender e viver a realidade nas suas diversas performances; alertar para a existência e a necessidade de convivência com o diferente e o diferenciado. (PEREIRA, 2007, p.483).

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2.2 Responsabilidade social da Universidade

A responsabilidade social nas empresas quer seja privadas ou públicas

refere-se a uma série de iniciativas e práticas corporativas que procuram diminuir

desigualdades e ajudar no aprimoramento da cidadania, envolvendo empregados,

clientes, fornecedores e comunidade em objetivos sociais.

Segundo Sousa Júnior:

A noção de balanço social das empresas, a idéia de comércio justo (que não opere a base de trabalho escravo, trabalho infantil, trabalho feminino em condições insalubres etc.) a constituição de fundações, campanhas, programas, institutos e outras formas de organização para o desenvolvimento de projetos e para a capacitação empreendedorista, orientada por princípios éticos, passou a ser a expressão qualificada da atividade econômica até como fato de competição na disputa por mercados e por clientes. (SOUSA JÚNIOR, 2008, p.181).

O conceito de responsabilidade social desloca-se para o campo cultural e

acadêmico, uma notação que surgira no espaço do mercado, quando tomou forma a

incorporação dos sentimentos morais, aludindo a essa expressão de Adam Smith,

para trazer a ética para o centro da economia. (SOUSA JÚNIOR, 2008).

Por sua vez Boaventura de Sousa Santos citado por Sousa Júnior (2008)

destaca a importância do movimento estudantil dos anos de 1960 como porta voz

das reivindicações mais radicais no sentido da intervenção social da universidade, e

de imprimir no imaginário simbólico de muitas universidades a concepção mais

ampla de responsabilidade social.

Boaventura de Sousa Santos citado por Sousa Júnior (2008) assevera, ainda,

que a reivindicação da responsabilidade social da universidade assumiu formas

distintas:

Se para alguns se tratava de criticar o isolamento da universidade e de a pôr a serviço da sociedade em geral, para outros tratava-se de denunciar que o isolamento fora tão só aparente e que o envolvimento que ele ocultara , em favor dos interesses e das classes dominantes, era social e politicamente condenável. (SANTOS apud SOUSA, 2008, p.182).

Santos (1997) assevera que há uma discussão sobre a abrangência do

comprometimento da universidade: deve ela comprometer-se com os problemas

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mundiais em geral onde quer que ocorram (a fome no terceiro mundo, desastres

ecológicos, o apartheid, etc.) ou seu maior compromisso é com os problemas

nacionais (criminalidade, desemprego, etc.) ou ainda, numa esfera mais local, na

comunidade em que está inserida: problemas da comunidade em acesso à

assistência jurídica , médica, planejamento regional e urbano, educação de adultos,

entre outros.

No intuito de instituir de vez a responsabilidade social no cotidiano da

universidade, o projeto da reforma universitária que tramita na Câmara dos

Deputados desde 2004 propõe o requisito da responsabilidade social atribuída às

instituições de Ensino Superior:

Nos fundamentos do projeto este requisito está inscrito na disposição de fazer a educação superior interagir com a sociedade de tal forma que a qualidade acadêmica ganhe relevância social. Isto significa, nos termos da justificativa expressa no anteprojeto de lei que trata a reforma da educação superior, romper os muros da torre de marfim da universidade prisioneira de si mesma por meio de um atributo essencial: a equidade, ou seja, a capacidade de transferir, efetivamente, aos setores mais amplos da sociedade, os frutos da atividade acadêmica. (SOUSA JÚNIOR, 2008, p.180).

O Ministro da Educação da época da proposição do projeto Cristovam

Buarque citado por Amador (2003) justifica que a universidade precisa absorver a

multiplicidade racial, facilitar o acesso geral dos cidadãos e ser uma voz ativa na

produção de conhecimento e na crítica da sociedade.

O atual Ministro da Educação Fernando Haddad, citado por Tancredi (2009)

afirma que a demora na aprovação do projeto de reforma universitária não impediu

que várias medidas por parte do governo fossem adotadas como, por exemplo, a

adoção do novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de ingresso

nas universidades; a responsabilização da União pela formação de professores da

educação básica; a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e

Expansão das Universidades Federais (Reuni) e a interiorização das instituições

públicas de ensino superior, são exemplos concretos de que o estudo escola passa

a ser definitivamente uma condição social.

Uma dessas medidas que antecipa o processo da reforma universitária é a

Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da

Educação Superior (SINAES) que no seu Art.3, inciso III ao fixar o objetivo da

avaliação das instituições de educação superior especifica como dimensão

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obrigatória: “A responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no

que se refere sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento

econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural da produção

artística e do patrimônio cultural.”. (BRASIL, 2004).

A Lei 10.861 refletiu o pensamento de ministros e educadores dos cincos

continentes, reunidos em Brasília em 2003 no Seminário Internacional Universidade

XXI um debate sobre o futuro da Universidade, com a participação de organismos

internacionais como Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e

a Cultura (UNESCO), Banco Mundial e Organização dos Estados Americanos

(OEA):

A universidade do futuro deve preservar e aprofundar sua autonomia gestora e renovar seu compromisso e sua responsabilidade social, absorvendo a diversidade étnica e cultural. Precisa oferecer formação técnica, ética e humana. Necessita atuar como fomentadora do desenvolvimento econômico e social dos países. Tem de adotar novas tecnologias de informação e de comunicação. Carece de oferecer educação de qualidade a todos, sem distinção de classe, gênero, etnia ou região. Deve continuar gratuita, crítica, financiada pelo Estado, “pois a educação superior não é mercadoria, mas um bem público e um direito do cidadão”. (SEMINÁRIO INTERNACIONAL UNIVERSIDADE XXI, 2003).

Neste sentido, promover um trabalho acadêmico comprometido com as

questões sociais do mundo contemporâneo é construir a responsabilidade social da

universidade, num processo de recuperação de sua legitimidade institucional. É

fazer com que se cumpra realmente, a vocação de “universitas”, na qual os

problemas mundiais, nacionais, regionais, locais sejam tratados do ponto de vista da

compreensão científica, visando-se a que os sujeitos promovam ações efetivas no

encaminhamento de soluções mais eficazes e permanentes.

Segundo Milton Santos:

A tarefa de incorporar a Universidade num projeto social e nacional impõe primeiro a criação e depois a difusão de um saber orientado para os interesses do maior número e para o homem universal. Devemos estar sempre lembrados de que o internacional não é o universal. O trabalho universitário não é propriamente uma tarefa internacional, mas precipuamente nacional e universal, dependendo, desde a concepção à realização efetiva, da crença no homem como valor supremo e da existência de um projeto nacional livremente aceito e claramente expresso. É a tarefa que nos aguarda. (SANTOS, 1999).

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No caso brasileiro, promover um trabalho acadêmico comprometido com as

questões sociais do mundo contemporâneo é formar profissionais mais eficientes

para áreas de atuação que há longo tempo se mostram estranguladas: educação,

justiça, fome, planejamento urbano e meio ambiente, habitação, saúde, dentre

outros. Ou, ainda, voltar-se para problemas da comunidade imediata como

assistência jurídica, sanitária, educacional, cultural, técnica, etc. É realizar um

trabalho que se efetive numa via de mão dupla, em que os problemas sejam

tratados como objetos de estudo e pesquisa acadêmica, visando à formação de

profissionais que atuem com mais competência na sua área de qualificação.

Para que a universidade se apresente mais próxima da sociedade na qual

está inserida, é imprescindível superar a dicotomia entre teoria e prática. Para que

isso se torne possível, tem-se como ponto de partida que na produção do

conhecimento existe um objeto de estudo, que sobre ele se exerce uma ação

reflexiva utilizando-se de informações teóricas já produzidas, mas também, as

desmistificando para permitir construir outros conhecimentos mais próximos desse

tempo. A universidade deve aproximar seu conhecimento dos problemas que

circundam a realidade e que constantemente impõem aos indivíduos uma

interrogação.

Nessa perspectiva, é necessário substituir o discurso teórico, absoluto e

absolutizante do saber enclausurado na sala de aula por projetos de pesquisa,

ensino e extensão em que os futuros profissionais, ou aqueles que já os são,

tenham o próprio trabalho como ação de conhecer - fazendo.

2.3 A prática pedagógica como fator de mediação no processo de

transformação social

É considerado hoje um pensamento comum aquele que se refere à pouca

eficiência da escola, e da Universidade em especial, em cumprir o objetivo a que se

propõe: desenvolver um processo de ensino-aprendizagem de tal forma que os

alunos apreendam com eficiência os conhecimentos considerados socialmente

necessários.

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A baixa qualidade do ensino tem sido tema de pesquisas, debates, seminários

e estudos, que vão desde uma crítica à escola básica, sua estrutura e seu

funcionamento, sua ideologia reprodutora; atinge o ensino superior - passando pelo

seu processo de ensino e sua relação pedagógica - até um questionamento que,

extrapolando o seu espaço restrito, analisa as suas relações com os segmentos

mais amplos da sociedade.

A Universidade, enquanto instituição social, se organiza, se estrutura e se

transforma de acordo com as necessidades advindas das relações que os diversos

sujeitos sociais estabelecem com seu tempo e espaço que por sua vez são

historicamente construídos. Essas relações, que são sempre antagônicas,

representam a força que movimenta uma determinada sociedade, bem como a

implementação de suas instituições. O redimencionamento desse espaço implica a

elaboração de um projeto pedagógico político-social, visando uma participação mais

ativa na organização da sociedade, o que exigirá por sua vez uma mudança nos

papéis sociais exercidos pelas instituições encarregadas do ordenamento social.

Nesse momento, de demanda real pelo ensino superior no Brasil, pode-se

eleger a Universidade como sendo um dos canais necessários para facilitar o

processo de maior inserção dos sujeitos na construção de uma nova ordem social e,

por conseqüência, a efetivação dessa transformação. Não é a Universidade em si,

pois, que produz a transformação social. Antes, ela se interpõe entre a necessidade

de transformação sentida pelos atores sociais e os projetos políticos pedagógicos

que daí surgem.

O atual sistema político educacional brasileiro, mesmo que aparentemente

sustentado pela bandeira de democratização da sociedade via universalização do

ensino básico e da Universidade, se mostra ainda bastante comprometido com os

princípios de dominação social vigentes. De maneira geral, esse sistema não se

encontra ainda comprometido com projetos políticos de transformação da sociedade,

aspiração da maioria da população, mas se acha muito mais comprometido e

voltado para atender projetos políticos de uma minoria dominante, que aspira pela

permanência do atual processo de dominação. Acrescente-se a esse processo a

representação e o sentimento de classe média que domina parte da classe

trabalhadora brasileira. A sua demanda por instrução assemelha-se ao que se pode

ser chamado de ilustração, o que é diferente de aprender e produzir conhecimentos.

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O comportamento dos alunos, salvo algumas exceções, demonstram essa realidade

que se reflete, muitas vezes no sentimento de desânimo dos professores no

empenho de um projeto político pedagógico mais eficaz.

Assim, o que ainda predomina na escola é uma prática pedagógica onde os

processos de ensino estão mais coerentes com a forma vigente de organização da

produção, base fundamental da organização e estruturação da sociedade.

Nessa forma de organização, o ato de planejar se encontra substancialmente

desvinculado do ato de produzir o objeto; o trabalho manual se separa radicalmente

do trabalho intelectual. O ato pedagógico, numa coerência com esse processo de

produção, tem feito por contemplar muito mais a teoria, separando-a da prática,

enquanto ação social humana e coletiva, portanto, geradora de conhecimento.

Numa gradação metodológica, que sabemos deve estar presente na prática

pedagógica, esta deve estar atenta ao processo global de produção, construção e

elaboração do conhecimento, considerando o aluno, desde o início de suas

atividades - aqui entendidas como prática social histórica - como sujeito ativo de seu

próprio processo de conhecimento e compreensão da realidade. A partir desse

conhecimento inicial é que se procurará levá-los de uma menor para uma maior

compreensão e sistematização do conhecimento.

Nesse processo de definição dos fins e dos objetivos que irão nortear a ação

pedagógica é necessário que a Universidade tenha clareza de qual deve ser o seu

projeto educativo em relação a seus alunos. Um dos pontos de partida para se

definir tal projeto deve ser o de estar claro a questão de a quem se vai educar, para

quê se vai educar; e a partir daí, definir-se-á o que se vai ensinar e qual a melhor

forma de se ensinar.

Ao procurar definir a quem se vai educar, a comunidade acadêmica,

colocando-se como um espaço aberto, buscará identificar nos alunos quais são suas

reais expectativas e que tipo de conhecimento se lhes torna mais necessários

naquele momento. Estando aberta para captar tais expectativas, ela deve prescindir

de seus modelos de conhecimento pronto, previamente definidos e idealmente

concebidos em função de uma sociedade ideal para a qual os alunos, também

sujeitos idealmente concebidos, devem ser preparados.

Tal flexibilidade, contudo, não pode ser exacerbada a ponto de destituir a

Universidade de seu caráter acadêmico. Ainda que não deva desviar os olhos das

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necessidades impostas pelo mercado, não pode, todavia, tornar-se mera instituição

de repetição e domínio ideológico nos moldes da realidade vigente. Há que se

atentar para o caráter formador da academia, para o desenvolvimento do aluno

enquanto sujeito ativo no processo histórico de transformação social.

É o desenvolvimento de uma ação pedagógica em interação cada vez maior

com a realidade dos alunos que irá definir o papel político e social da escola. Ou

seja, uma escola cujo compromisso e função vise inserir seus alunos numa visão de

mundo mais ampla, que lhes permita, cada vez mais, uma maior compreensão de

sua realidade, de suas relações econômicas, políticas, sociais e culturais. Essa

compreensão mais ampla é que poderá facilitar e auxiliar a participação ativa desses

nas decisões que se tornam necessárias na construção desse momento histórico.

Quanto ao conteúdo de ensino a ênfase que aqui se propõe dar não se

identifica com aquela dada pela escola tradicional, onde os conhecimentos eram

depositados na mente de um aluno receptivo e passivo. Não significa, tampouco,

incutir nos alunos os valores de uma sociedade igualitária, a fim de ajustá-los ao que

se pede nesta sociedade.

A efetivação de uma ação pedagógica permeada por determinados

conteúdos de ensino deve estar atenta principalmente a alguns pontos, tais como:

subsidiar a implementação de um projeto político de maior participação nos

processos decisórios da sociedade, o que implica ter clareza da complexidade que

envolve essa organização; facilitar e auxiliar a sistematização de um saber já

inicialmente produzido pelos alunos, em direção ao desvelamento dessa mesma

complexidade; possibilitar aos alunos, através dessa sistematização, o acesso a um

saber historicamente já produzido e cujo domínio se torna importante para a

viabilização desse projeto político.

É assim, pois, que os conhecimentos que serão trabalhados com os alunos

durante a atividade acadêmica não devem ser priorizados a partir de uma pretensa

neutralidade científica, mas sim politicamente selecionados. A ação educativa

desenvolvida em torno desses conhecimentos deve ter uma direção política técnico-

pedagógica, para que tais conhecimentos se transformem em instrumentos que

atendam à necessidade que os alunos, enquanto sujeitos sociais, para uma maior

participação na sociedade. Uma direção política, enquanto na seleção destes

conteúdos se leva em consideração uma visão de mundo, um conceito de homem e

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de sociedade, como também uma forma determinada de se conceber o processo

social e suas relações. Uma direção pedagógica, que no ato de ensinar se una ao

aspecto político, deixando de ser uma questão puramente técnica, para ser uma

expressão concreta e explícita do conceito de homem e de sociedade.

O pedagógico, assim redimensionado, aponta também para um novo

tratamento metodológico que deverá acompanhar a ação educativa. Esse novo

tratamento pressupõe a criação de novas técnicas e novas formas de ensinar, onde

a competência básica da escola, que é a de ensinar a aprender e aprender a

ensinar, se efetive. Assim numa interação cada vez mais próxima, o político e o

pedagógico vão-se traduzindo em habilidade técnica que permitirá a

operacionalização e o alcance dos objetivos que foram claramente estabelecidos na

seleção dos conteúdos de ensino.

A seleção de conteúdos na universidade deve estar atenta à sistematização

de um determinado conhecimento, mas, porém, sem consagrá-lo como absoluto.

Essa seleção se dará em função de algum objetivo, ou projeto político-social, que

neste momento demanda a elaboração, a organização e a produção desse

conhecimento. Assim, ao selecionar e trabalhar os conteúdos de ensino, necessário

se faz estar atento a esse fator de determinação dos mesmos. Não são eles

portadores de um saber neutro, universal e válido para todos, mas resultado de uma

produção humana, social e historicamente determinada.

Em outras palavras, os conteúdos traduzem de acordo com Santos (1997)

um conhecimento que não existe por si mesmo, mas em função de determinados

interesses, de determinadas necessidades colocadas pela sociedade na qual foi

construído. Dessa forma, torna-se importante que sejam trabalhados como um

instrumento necessário a uma ação concreta, que tem uma direção e uma

finalidade, num momento histórico específico.

Essa dimensão, que se propõe seja trabalhada, se contrapõe ao que

normalmente tem sido a seleção de conteúdos de ensino na universidade. Na

maioria das vezes, ela não tem levado em consideração as necessidades e

expectativas sociais quanto à compreensão da complexidade das relações que a

envolvem.

Assim, geralmente, essa prática que se preocupa apenas com a socialização

e a distribuição de alguns conhecimentos, atendo-se a um processo de ensino cujo

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princípio básico é o da transmissão – assimilação corre o risco de atender a

necessidades imediatas e superficiais, sem preparar o aluno como sujeito ativo e

formador de opinião, mas, como mera engrenagem na enorme máquina de

dominação incapaz de perceber seu potencial como parte de um sujeito capaz de

estar e interferir na sociedade da qual é sujeito.

A ação pedagógica que se desenvolve a partir daí enfatiza com prioridade o

conteúdo por si mesmo, em um tratamento metodológico que lida com o

conhecimento como produto pronto e acabado, que deve ser absorvido e

memorizado pelos alunos. Estes, por sua vez, passam a ver no conhecimento

escolar algo de definitivo, não passível de transformação e reelaboração, ficando a

sua aprendizagem apenas no nível da mera assimilação teórica e conceitual. A

aprendizagem real, que é a compreensão de sua própria realidade, não se

configura, ficando limitada apenas ao espaço restrito e burocrático da escola. Ou

seja, aprender é uma fórmula para passar de ano e conseguir o atestado de

conclusão escolar e ser aprovado em concursos que aparentemente lhe garanta

uma participação nos processos decisórios da sociedade. Os conhecimentos, caso

tenham sido adquiridos na escola, não têm nenhum significado fora de seu espaço

imediato.

Assim, numa ação pedagógica coerente com um processo de

transformação, os conteúdos selecionados devem ser significativos para os alunos.

E eles só adquirem significado quando trabalhados em constante interação com as

expectativas e necessidades reais de compreensão da realidade que motivam uma

demanda social por conhecimento.

Esse conhecimento por sua vez não se esgota no processo de receber

informações, mesmo que elas sejam atualizadas. É importante que estas

informações sirvam de ponto de partida para a produção de novos conhecimentos,

que, por sua vez, devem ser comunicados, expressos publicamente, avaliados e

enriquecidos. Nesse sentido, a forma mais eficaz que, no momento, tem se

apresentado para desencadear esse processo é a implementação da pesquisa como

princípio educativo.

Normalmente, quando se discute a forma como se constrói o conhecimento,

as pessoas imaginam que ele está ancorado em algum lugar fora da relação do

sujeito com seu mundo. Pensa-se, por exemplo, que o conhecimento se restringe ao

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acúmulo de teorias previamente estabelecidas, ao deslocamento dessas teorias do

seu contexto de produção e à instituição das mesmas como verdades absolutas.

Assim, elas passam a constituir a única matriz explicativa para problemas/ enigmas

que circundam o homem e a sua existência.

Essa forma de perceber o conhecimento gera um comportamento muito

comum que é a utilização de clichês, slogans, chavões e frases feitas para explicar,

de maneira bastante simplista, qualquer situação que se apresente. Como exemplo:

“Brasil: ame-o ou deixe-o.”; “Voto: um direito de todos; “Brasil, um país de todos”.

Ao contrário, o conhecimento produzido pelo processo da pesquisa parte de

um ponto de vista, de uma problematização sobre um determinado objeto de estudo

recortado da realidade, utiliza informações teóricas já produzidas, mas sempre

dogmatizando, para construir outros conhecimentos necessários à compreensão da

realidade.

Estar atento às perguntas, aos pontos de vista é, portanto, promover a

construção de um conhecimento comprometido com os problemas sociais, culturais,

econômicos e políticos do contexto vivido, traduzindo-os em produtos e processos

úteis para a sociedade em geral. Isso significa romper com a representação segundo

a qual o lugar de produção, circulação do conhecimento é, essencialmente, a

comunidade acadêmica.

A pesquisa é, portanto, a atividade básica da ciência na sua indagação e

construção da realidade. É a pesquisa que alimenta a construção do conhecimento e

o atualiza frente à realidade do mundo. O conhecimento assim produzido passa a ter

significado e significante para os sujeitos que o produzem.

A produção do conhecimento na Universidade se efetiva através da pesquisa.

Construir uma Universidade como centro produtor de conhecimento implica

que todo o seu espaço, bem como os seus sujeitos estejam envolvidos nesse

processo. Todos os momentos, todas as atividades devem ser pensados e

estruturados tendo como eixo o processo de produção do conhecimento. A pesquisa

será, em consequência, a atividade fundamental desse processo.

Segundo Demo educar pela pesquisa tem pelo menos quatro pressupostos:

• a convicção de que a educação pela pesquisa é a especificidade mais própria da educação escolar e acadêmica;

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• o reconhecimento de que o questionamento reconstrutivo com qualidade formal e política é o cerne do processo de pesquisa;

• a necessidade de fazer da pesquisa atitude cotidiana no professor e no aluno;

• e a definição de educação como processo de formação da competência histórica humana. (DEMO, 2003, p.5)

Concretizar esses pressupostos implica em estabelecer metas de um trabalho

acadêmico, redimencionando o conceito de conhecimento, de aprendizagem, de

aluno, de professor, de aula.

Tendo como foco as relações entre sujeito do conhecimento, função e

responsabilidade social da universidade, práticas pedagógicas, o próximo capítulo

inserirá no mundo do Ensino Jurídico, não no intuito apenas de se apontar

problemas, mas antes analisar quais práticas tem sido efetivas para que o aluno do

curso de Direito deixe de ser espectador do seu processo de construção de

conhecimento e se torne sujeito, no sentido de transformar e redefinir o Direito como

compreensão social e política do mundo, que o mesmo não é uma doutrina que

inventou o mundo. Que essa doutrina não é uma verdade neutra e nem absoluta.

Mas socialmente construída e definida por uma determinada ordem social em função

de um outro ordenamento social. É o privilegiar de um ordenamento social,

considerado legítimo e legitimado, em detrimento do outro, ‘desligetimizado’ e

considerado desviante. E isso não é neutro, mas social e historicamente construído

Nesse sentido, a educação e o ensino, aqui especificamente, o ensino jurídico

pode ser questionado e a ele contraposto outras práticas sociais de ensinar e

aprender.

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3 EDUCAÇÃO E ENSINO JURÍDICO

A educação reclama por um educador que venha demonstrar aquilo que os

livros não enunciam: a educação como morada humana. Pensar eticamente a

universidade como espaço da educação, como morada humana é investir uma

atitude filosófica sócio-política que orienta as relações dos estudantes como

destaque de pensar eticamente os problemas do outro, do mundo; implica em

extravasar o indivíduo egoísta, característica marcante das sociedades

contemporâneas, como visto no capítulo 1 e projetar-se para os desafios do agir.

(ARENDT, 2003).

Neste sentido, a formação no curso de Direito não pode ser provida de código

penal ou civil abstratos, cujos preceitos são reproduzidos e absorvidos como

preceitos incontestáveis. A questão é saber que conhecimento se pretende construir,

sabendo que tal opção acarretará uma perda irreparável para a formação dos

alunos: se escolho reproduzir o conhecimento e privilegiar um método de ensino que

atenda os reclames de uma aprovação em concursos, estará restringindo o âmbito

de construção do conhecimento dos alunos; em contrapartida optar por um

conhecimento que se comprometa simultaneamente com os alunos, demonstrando

que o aprendizado não se pauta numa reprodução normativa, mas na soma dos

sentimentos, angústias que se escondem por detrás dos textos normativos, então

poderemos entender a educação como morada humana.

Direito essencial para o exercício de outros direitos fundamentais, a

educação, hoje, nas palavras do professor José Luiz Quadros de Magalhães, “não é

apenas o ato de informar [...] é conscientização, ultrapassando o simples ato de

reproduzir o que foi ensinado, preparando o ser humano para pensar, questionar e

criar.” (MAGALHÃES, 2002, p.279). Previsto constitucionalmente no artigo 6º e no

artigo 205 cabe ao Estado e à família assegurá-la, como direito de todos.

Por sua vez, a educação que deve se da nos moldes estatuídos pela Lei de

Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96, tem como finalidade precípua a

erradicação do analfabetismo, a universalização do atendimento escolar; a melhoria

da qualidade de ensino, a formação para o trabalho, bem como a promoção

humanística, científica e tecnológica.

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Como fundamento do Estado brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa

humana, há de ser respeitado e servir de substrato cognitivo de todo e qualquer ato

normativo, administrativo ou político praticado na sociedade brasileira. A educação

como núcleo essencial (mínimo existencial) deste princípio “constitui,

modernamente, pressuposto básico para a participação no âmbito do Estado, para o

exercício da cidadania e para o ingresso no mercado produtivo” (BARCELLOS,

2002, p.260-261). E tanto assim o é que não há de se falar em soberania sem a

efetiva e real consciência do povo no que diz respeito aos seus direitos e deveres.

No que diz respeito ao seu poder, ele é soberano.

Considerando que o acesso à Universidade ainda é “privilégio de poucos”

maior ainda a responsabilidade daqueles privilegiados, especialmente os estudantes

do Direito, conhecedores por ofício destes direitos. Privilégio que nas palavras de

Boaventura de Sousa Santos (2005) tolhe o mérito na medida em que em regimes

democráticos o acesso e exercício de direitos fundamentais, dentre os quais se

destaca a educação, deve ser assegurado amplamente.

Educação, que nos limites da reserva do possível nem “precisa” de ser de

primeira qualidade. Mas “precisa” sim despertar no aluno, interlocutor ativo no

complexo processo da construção do seu conhecimento, do conhecimento da

sociedade na qual ele vive, a sua essência humana cívica. Sentimento de

pertencimento. De integração com o todo, resultado de sua integridade enquanto

cidadão.

Mas será que nas salas de aula esta tem sido a questão de fundo?

Novamente a resposta parece ser negativa. Talvez porque quem ensina não

necessariamente está preocupado com essa cidadania. Talvez porque esse

professor não se sente cidadão em sua forma plena. Talvez porque várias têm sido

as práticas de elitização do conhecimento. Talvez porque nas universidades a

formação preponderante construída em bases de conhecimentos meramente

estruturais tem sido útil tão somente para a formação de especialistas, muitas vezes

em áreas que se desenvolvem em flagrante distanciamento das carências sociais.

Urge a aproximação entre os saberes científicos, humanitários, leigos, sociais.

Imprescindível que universidade ofereça respostas às demandas dos cidadãos que

por motivos diversos ainda não tiveram a oportunidade de se assentarem nos

bancos universitários e bem provavelmente nunca terão.

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Pela educação pretende-se formar cidadão-estudante “capaz de compreender

e enfrentar as contradições de seu tempo existencial [...] e construir sua própria

identidade social, cultural e profissional.” (PEREIRA, 1998, p.8) e despertar neste

sujeito suas potencialidades de participação na sociedade. Segundo os

ensinamentos de Cármen Lúcia Antunes Rocha,

a participação há de ser livre e igual para ser democraticamente aceita e praticada. Há de ser livre, porque somente a liberdade qualifica a dignidade da pessoa humana, posta na base de todas as concepções do Direito democrático; e há de ser igual, porque é este princípio que atribui a condição cidadã a cada membro da cidade [Estado], livrando-o da discriminação que diminui e da unanimidade que escraviza a um modelo hermético, quando o homem é dado à abertura ao outro, e externo, o que impõe ao homem escolha que o desconhece e o despreza. (ROCHA, 1999, p.421).

Nada incomum ser na universidade o que insurge nos alunos percepções

contundentes acerca da importância que têm para o desenvolvimento social.

Oportunidade ímpar para inclusão de novos valores neste processo, certamente

mais abrangente quanto maior for a disponibilidade, capacidade e envolvimento dos

professores com a estrutura da universidade.

O cidadão-estudante consciente de seus direitos, que teve seu direito de

educação minimamente assegurado, está mais capacitado para exigi-los para si e

seus semelhantes. Tudo isso sem dizer que existe maior possibilidade deste mesmo

estudante, futuro profissional, atuar diretamente nas searas decisórias do Estado

cuja manifestação soberana é mais evidenciada.

3.1 O ensino jurídico brasileiro: para além do posi tivismo

Para se compreender a realidade atual do ensino jurídico no Brasil, é preciso

considerar o contexto social e político de suas origens, e os objetivos que inspiraram

a criação das primeiras Faculdades de Direito em nosso país.

Nascidos sob o signo do burocratismo, os primeiros cursos jurídicos aqui

implantados tiveram por finalidade preparar técnicos para ocupar cargos na

Administração Pública e para gerir a burocracia do Estado Nacional em formação,

após a ruptura do pacto colonial.

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Os estatutos dos cursos jurídicos, redigidos em 1827 pelo Visconde de

Cachoeira, evidenciam estes objetivos:

Tendo-se decretado que houvesse, nesta Corte, um curso jurídico para nele se ensinarem as doutrinas de jurisprudência em geral, a fim de se cultivar este ramo da instrução pública, e se formarem homens hábeis para serem um dia sábios Magistrados, e peritos Advogados, de que tanto se carece; e outros que possam vir a ser dignos Deputados e Senadores, e aptos para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregados do Estado. (CUNHA, 1986, p.58).

Fiéis à tradição Coimbra de formar quadros para o serviço real, os cursos

jurídicos reproduziram o modelo vigente na ex-metrópole, preparando os quadros da

burocracia nacional emergente, cuja formação jurídica foi sendo plasmada na leitura

dos códigos, das leis, no legalismo e na erudição. Estes elementos foram

perpetrando o elitismo que se configurou em traço marcante dos cursos jurídicos,

mais voltados a atender os interesses do Estado do que à necessidades da

sociedade que legitima sua existência.

O ensino jurídico tradicional primou, pois, por formar bacharéis com uma

visão positivista do fenômeno jurídico, em que a sacralidade da lei é verdade

incontestável, em que o direito é confundido com a lei e o saber jurídico com a

capacidade de memorização. As práticas pedagógicas no curso de Direito, em sua

maior parte, são desenvolvidas de forma desvinculada da realidade social e política;

embasam-se na tradição que remonta às origens históricas das instituições de

ensino jurídico, destacando-se o legalismo e o formalismo. (LEITE, 2007).

Dessa forma, os conteúdos curriculares são desenvolvidos com base em uma

abordagem positivista, privilegiando o específico e o individual, em detrimento de

uma análise mais complexa, entrelaçada, tendo como referência as múltiplas

dimensões de fatores sociais, culturais, políticos e históricos do presente, o contexto

brasileiro e internacional e as relações de poder. O positivismo no ensino jurídico

reduz os alunos a meros reprodutores de textos e falas alheias, sem construir um

pensamento histórico social (dialético).

Estudar e interpretar dialeticamente o direito são requisitos indispensáveis

para a superação do dogmatismo positivista. O fato da lei ser positivada pelo

Estado, por si só, não lhe confere legitimidade inquestionável. Basta lembrar os

regimes autoritários, com seus mais célebres expoentes, como Hitler, Mussolini e

Stalin, bem como ditaduras contemporâneas como Hugo Chaves, Evo Morales, que

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estão amparados pela legalidade, para se constatar que nem tudo que é legal é

legítimo.

Ainda hoje é esse o paradigma dominante na maior parte dos cursos

jurídicos, em que predomina o que Paulo Freire denominou de “educação bancária”,

onde o aluno é levado a armazenar o grande volume de informações que lhe é

depositado pelos professores, sem que seja estimulado a refletir sobre esse

conhecimento, a repensá-lo e perceber eficácia que o mesmo pode ter no meio

social. Assim, o docente, figurativamente, por meio de aulas expositivas, “deposita”

na cabeça do aluno conceitos a serem exigidos, posteriormente, na avaliação,

quando então, aquele obtém o “extrato” daquilo que foi “depositado”. (MARTINEZ,

2002).

Além destas questões de caráter didático-pedagógico, é preciso considerar a

forma como se deu a implantação e funcionamento de grande parte dos cursos

jurídicos no Brasil nas três últimas décadas, sem que houvesse uma real

fiscalização e um efetivo acompanhamento por parte do governo, da qualidade do

ensino oferecido pelas Instituições de Ensino Superior (IES).

O resultado dessa massificação do ensino jurídico, desacompanhada da

criação de uma estrutura que lhes desse efetiva sustentação, foi aterrador. Basta

observar os resultados do Exame da OAB, dos concursos públicos para as carreiras

jurídicas e do grande número de advogados mal preparados para o exercício da

profissão, para se constatar a falência do modelo tradicional.

Como exemplo o último concurso para o Tribunal de Justiça de São Paulo

que abriu 183 vagas, mas apenas 76 candidatos foram aprovados. Também no

último concurso de ingresso ao Ministério Público Federal foram preenchidas apenas

83 vagas das 148 oferecidas. (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO

DE SÃO PAULO, 2009).

Na prova da OAB realizada em maio desse ano no estado de São Paulo ,

apenas 12% dos 18.925 candidatos do Estado inscritos na prova foram aprovados

para a segunda etapa do exame. Com esse resultado, São Paulo ficou à frente de

apenas dois Estados, Amapá, com 11,6%, e Mato Grosso, com 11,8%. Sergipe ficou

em primeiro lugar, com 33% de aprovação. O índice médio de todo o País foi de

17%, para um total de 59.834 inscritos. (TIUSSU, 2009).

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Várias tentativas de superação desse paradigma vêm sendo implementadas,

tanto pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), pela Ordem dos Advogados do

Brasil, pelas Instituições de Ensino Superior (IES), como por profissionais do direito

realmente comprometidos com um ensino de qualidade. Ou seja, como profissionais

que primam pela qualidade, competência e resultados.

A Lei de Diretrizes e Bases, lei n.º 9.394/96, deixando transparecer em seu

texto a necessidade de superação do ensino-memorização, dispõe que “a educação

superior tem por finalidade: I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do

espírito científico e do pensamento reflexivo”. (BRASIL, 1996).

Por sua vez, as diretrizes curriculares para o curso de graduação em Direito

estabelecida na Portaria 1886 de 30 de dezembro de 1994 (MEC/SESU/CEED e

Comissão de Consultores ad hoc) dispõem que:

O perfil desejado do formando de Direito repousa em uma sólida formação geral e humanista, com capacidade de análise e articulação dos conceitos e argumentos, de interpretação , e valoração dos fenômenos jurídico-sociais ¸ aliada a uma postura reflexiva e visão crítica que fomente a capacidade de trabalho em equipe, favoreça a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, além da qualificação para a vida, o trabalho e o desenvolvimento da cidadania.

Já não se vislumbra mais a possibilidade de perpetuação de um ensino

voltado para a memorização ou de aulas baseadas na leitura neutra de códigos

gestados no século XIX. É necessário que se faça a adequação dos conteúdos às

exigências do Século XXI, e que dos alunos não se espere apenas a capacidade de

decorar leis e institutos, mas a habilidade de estabelecer um raciocínio jurídico que

lhes permita interpretá-los adequadamente, buscando extrair deles sua íntima

conexão com os fatos sociais e com a realidade de nosso tempo.

A idéia de universidade como “sede privilegiada e unificada de um saber

privilegiado e unificado” já não atende mais às exigências da sociedade atual,

dinâmica e pluralista, e que espera da universidade “tarefas intelectuais e sociais”.

(SANTOS, 1997, p.222-223).

Já não se concebe hoje um ensino jurídico alheio à complexidade e às

perplexidades da sociedade contemporânea. Como se poderia imaginar um

profissional do direito alheio à questão ambiental, ainda mais agora com a crise

energética que assola o país, à bioética, à dinâmica das relações de consumo, às

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transformações que vêm ocorrendo no mundo do trabalho em razão da globalização

e do neoliberalismo, à uma nova ordem mundial que gera milhões de excluídos, sem

emprego, sem moradia, sem escola e sem acesso à justiça.

Neste sentido, Michel Miaille citado por Sousa Júnior discorre:

O mundo jurídico não pode, com efeito, ser propriamente conhecido, senão, em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do Direito do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social. (MIAILLE apud SOUSA JÚNIOR, 2008, p.176).

A superação da visão dogmática e legalista do direito está intrinsecamente

ligada à percepção de que vivemos um momento histórico de efervescência de

novos direitos. Uma “era de direitos”, dos quais nossos velhos códigos não

conseguem dar conta.

Por esse motivo é que as Faculdades de Direito, mais do que um lugar de

“tradição cultural” precisam ser um lugar de “produção cultural e social”. (KENSKI

apud SOUZA, p.108).

Neste sentido, os cursos jurídicos não podem aprisionar o direito entre as

paredes das salas de aula. Eles precisam interagir com a sociedade através de

convênios com as diversas instituições públicas e privadas, com os movimentos

sociais organizados (ONGs, associação de bairro, etc.) e com as várias formas de

atuação da sociedade civil. Segundo José Geraldo Sousa Júnior:

[...] estudar Direito implica elaborar uma nova cultura para as Faculdades e cursos jurídicos e, um dos eixos fundamentais dessa reformulação cultural tem sido, à luz das diretrizes em curso, constituir-se a educação jurídica uma articulação epistemológica de teoria e prática para suportar um sistema permanente de ampliação do acesso à justiça, com a abertura a temas de problemas críticos da atualidade, dando-se conta ao mesmo tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institutos jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização. (SOUSA JÚNIOR, 2008).

Portanto, melhorar a qualidade do ensino significa, também, melhorar a

qualidade da relação que a Instituição de Ensino Superior mantém com a

comunidade, no caso específico, o ensino jurídico, implementando projetos e

atividades que representem, de fato, um incremento da função social da

universidade.

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Especificamente no ensino jurídico em 1996 a Comissão de Ensino Jurídico

do Conselho Federal da OAB lançou o livro: OAB ensino jurídico: novas diretrizes

curriculares, em que discute o futuro acerca da função do Direito e do papel do

jurista na sociedade. Para Sousa Júnior (2008) esses estudos descortinaram

alternativas paradigmáticas para a construção desse futuro: “o qual pode prefigurar-

se senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a

criação de categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social.”.

(SOUSA JÚNIOR, 2008, p.177).

Estas categorias, percebidas pela Comissão de Ensino Jurídico, foram

enunciadas como demandas:

1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas. (SOUSA, 2008, p.177).

Em estudo preparado para o Conselho Nacional de Educação pela Comissão

de Especialistas de Ensino do Direito do MEC, denominado “Descrição da Área de

Direito”, estes elementos estiveram presentes e se traduziram em indicadores para

aferir a adequação dos cursos existentes e na análise de pedidos de autorização de

novos cursos e de reconhecimento de cursos já autorizados, a saber:

a) padrão mínimo de qualidade, principalmente para os cursos noturnos; b) integração permanente do ensino com a pesquisa e a extensão; c) interdisciplinaridade; d) acervo bibliográfico atualizado mínimo; e) instalações adequadas para a prática jurídica; f) maior dedicação e qualificação do corpo docente, para as atividades de pesquisa e de orientação das monografias finais; g) disponibilidade para áreas de concentração e especialização; h) desenvolvimento de intercâmbios. (SOUSA JÚNIOR, 2008, p.179).

Sousa Júnior (2008) afirma, ainda, que esses indicadores avalizam a

qualificação de projetos pedagógicos coerentes em condições de ultrapassar a fase

de estagnação burocratizante e medíocre a que chegara o ensino do Direito. Neste

sentido Álvaro Melo Filho citado por Sousa Júnior

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a) romper com o positivismo normativista; b) superar a concepção de que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade forense; c) negar a auto-suficiência disciplinar do Direito; d) superar a concepção de educação como sala de aula; e) formar um profissional com perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmático e prático. (MELO FILHO apud SOUSA JÚNIOR, 2008, p.183).

Ou seja, avalizar essas novas demandas significa um novo olhar para o

ensino jurídico, com a adoção de um processo pedagógico de ensino e

aprendizagem crítico, cooperativo, no qual a produção do conhecimento no Direito

não se restrinja à regulação social, a um ato de reprodução do conhecimento, mas

antes seja a construção de novas formas críticas de pensar o ordenamento jurídico,

as relações de cidadania, os princípios ético-jurídicos, num determinado tempo e

espaço.

No próximo capítulo serão abordadas duas possibilidades de se processar o

ensino jurídico: a interface com a Literatura e projetos de extensão que tem como

metodologia a pesquisa-ação.

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4 DIREITO E LITERATURA: A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO

A aproximação entre Direito e Literatura é apontada por muitos como

possibilidade de qualificar a visão dos acadêmicos de Direito, já que a literatura é

produto cultural de seu tempo e, portanto, instrumentos de interpretação do mundo,

que possibilita recriar a visão do homem sobre ele mesmo e pode oferecer algo além

do senso comum sobre a realidade. Um curso de Direito que se pretenda

contemporâneo não poderá ignorar esta nova face da interdisciplinaridade.

Nesse sentido, a relação entre Direito e Literatura parece como uma forma

diversa de abordagem da ciência do Direito, objetivando a superação do modelo

positivista, procurando novas formas de observação trandisciplinares que promovam

um ensino eficiente, e, assim, superar as barreiras colocadas pelo sentido teórico

comum.

Quando o Fausto de Goethe diz que “não me interessa mais do Direito a ciência” a literatura dá vazão a um sentimento que vem permeando uma série de juristas , notadamente aqueles desapegados e, talvez, desapontados, com as fórmulas clássicas de análise da ciência jurídica, quaisquer que sejam elas. Um dos grandes fatores desse fastio se deve, em grande parte, ao abandono da humanidade no Direito, ou, como bem assevera Warat, à profanação do sagrado feita pelos operadores jurídicos hodiernos. (SCHWARTZ, 2009).

A literatura é uma forma de apreensão da realidade social. A partir da

estrutura de construção do texto literário que trabalha com a subjetividade do real,

pode-se apreender a produção de sentido colocado pelo autor, sujeito social de um

determinado tempo e lugar, e a trama de seus personagens também sujeitos sociais,

geográfica e temporalmente constituídos. Assim, na narrativa literária é possível

depreender relações político-sociais, representações jurídicas que vão para além do

imediato proposto e observável de forma objetiva. A narrativa literária trabalha com a

dimensão subjetiva do sujeito. E é certamente nesse aspecto que a mesma pode ser

usada pelo Direito no sentido de expandir a compreensão do que seja ético,

valorativo, do que seja justo ou injusto, além de que “facilita ou introduz o pensador

da teoria do direito às complexidades e riquezas das relações humanas, porque

tanto no direito quanto na literatura a experimentação ensina que nada é simples, há

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sempre mais implicações do que explicações nas áreas humanas.”. (GONTIJO;

DECAT, 2008, p.295).

Para Schwartz (2009) existem relações óbvias entre Literatura e Direito, mas

o contrário não é prática usual. A primeira sempre retratou os conflitos advindos das

relações processuais e das violações aos direitos, com suas conseqüentes cargas

de justiça/injustiça. Este é o caso, por exemplo, do Processo, de Kafka. Em muitas

outras obras também se questiona a validade de uma norma jurídica e o porquê de

sua (des)obediência, como reflete Antígona de Sofócles. “Enfim, o tratamento

literário do Direito é uma constante, tendo-se em vista que este é um sistema social9

e que aquela postula refletir acerca dos fenômenos sociais”. (SCHWARTZ, 2009).

Por sua vez, o Direito não se socorre da literatura para a decisão de suas

lides, mesmo quando se trate de casos análogos reais (não-ficcionais). O

movimento Law and Literature, iniciado nos anos 70, nos Estados Unidos, e que

toma corpo durante os anos 80 naquele país, é uma reação a essa realidade, sendo

encabeçado por autores tais como J. Boyd-White e Richard Weisberg. (SCHWARTZ,

2009).

Vale ressaltar, ainda, que a partir da análise de obras literárias, inaugura-se

um campo fértil para a realização de estudos e pesquisas jurídicas, que permite uma

reflexão acerca da realidade social e jurídica através da narrativa literária. Essa

prática pedagógica permite um repensar do direito via interdisciplinaridade, na

medida em que se baseia no cruzamento dos caminhos do direito com as demais

áreas do conhecimento, através do qual seja possível questionar seus pressupostos,

seus fundamentos, sua legitimidade, seu funcionamento, sua efetividade.

4.1 O estudo do Direito a partir da Literatura

Schwartz (2009) aponta vários argumentos que justificam o diálogo entre

Direito e Literatura. O motivo central apontado, ano entanto, é o fato do Direito não

ser um fenômeno isolado das demais ciências, como apregoa Kelsen em sua obra

“Teoria pura do Direito. O autor defende um Direito que se auto-recrie dia a dia e

que se vincule a uma noção biológica de redes de conexão, interligadas de tal forma

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que o todo se construa a partir da parte e vice-versa. Fundamenta tal argumento na

teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann, que ao assevera que o Direito é um

sistema fechado e aberto ao mesmo tempo, preserva a necessária autonomia do

sistema jurídico sem que se elimine a necessidade de contato com outros sistemas

sociais - caso da arte. (SCHWARTZ, 2009).

O segundo argumento é o “colocar-se no lugar do outro”. A literatura por

intermédio de suas narrativas e de seus personagens, de enviar o leitor para a

vivência de outrem, o faz refletir e posicionar-se em relação ao caso posto.

Outro ponto abordado é a busca de humanidade no Direito através da

Literatura. O positivismo jurídico criou a divinização da norma jurídica e do

formalismo processual, “Esqueceu-se, pois, de elementos essenciais para o deslinde

de uma lide jurídica: a psique e o comportamento humano, afinal normas são regras

de conduta – conduta humana. Ocorre que essa conduta/violação não pode deixar

de ser, no mínimo, observada.” (SCHWARTZ, 2009).

Nesse sentido, afirma García Amado citado por Schwartz:

É na área de humanas, e muito em particular na literatura, onde podemos recuperar uma perspectiva global do ser humano, sua natureza, suas necessidades, desejos, medos, etc.. E a partir dessa perspectiva podemos avaliar e criticar as insuficiências e os defeitos do Direito e de sua visão míope e cúmplice das mais diversas opressões sociais. (AMADO apud SCHWARTZ, 2009, tradução nossa). 3

A Literatura também pode ser considerada como uma boa fonte de

conhecimento do Direito, pois aborda dimensões do fenômeno jurídico que não são

tocadas pelos métodos pedagógico-jurídicos tradicionais, a saber:

a) Como se comunicam os juristas - o porquê e a finalidade da construção dos discursos dos jurisconsultos. As histórias sobre Direito serão, sempre, histórias sobre como ostentar poder mediante a tradição repetida dos contos sobre seus feitos Pode-se verificar aqui, portanto, que a Literatura narra a construção da auto-referência do sistema jurídico, ou seja, da novidade pela repetição, da (re) construção mediante o pré-construído (sistemas de regras processuais e de formalidades no campo do Direito).

3 Es en las humanidades, y muy en particular en la literatura, donde podemos recuperar una perspectiva integral del ser humano, de su naturaleza, sus necesidades, sus apetencias, sus miedos, etc., y desde esa perspectiva podemos valorar y criticar las insuficiencias y defectos del derecho y de su punto de vista miope y cómplice de las opresiones sociales más diversas. (AMADO apud SCHWART, 2009).

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b) A forma de tratamento dos juristas em relação aos “outros” – a Literatura oferece uma descrição acurada dos modos de relação entre os juristas e os não/juristas (leigos no Direito). c) Como os juristas estruturam suas argumentações –os advogados exitosos são sempre apresentados com as seguintes características: capacidade para a manipulação verbal, elitismo e isolamento, relativismo ético no exercício de sua profissão, frugalidade e passividade e distância frente ao sofrimento alheio. (SCHWARTZ, 2009).

Por fim, para Schwartz (2009) o estudo do Direito baseado na Literatura retira

o fulcro legalista da ciência do Direito. Partindo da premissa que nas obras literárias

é possível encontrar respostas pertinentes ao Direito e a Justiça, torna-se

necessário estabelecer como estudar o Direito a partir da Literatura.

A relação entre Direito e literatura pode ser representada de três modos:

Direito da Literatura - estuda como a lei e a jurisprudência trata os fatos da escrita

literária; Direito na Literatura – objetiva analisar e teorizar questões relativas à

justiça, à lei e ao poder nas obras literárias; e Direito como Literatura - aborda

conceitos da teoria literária, como autor, narrador, descrição, narração e tempo

ficcional e verifica-se em que medida esses conceitos correspondem e contribuem

na compreensão dos conceitos jurídicos. (GALUPPO, 2008).

O estudo do Direito na Literatura é aquele que se apresenta como o mais

construído e desenvolvido, não raro, por exemplo, um juiz cita uma obra literária

para fundamentar sua decisão, assim como, um autor transforma em arte uma

causa jurídica.

Os temas podem abordar questões relativas ao modo de ser e o caráter dos

juristas, especialmente os advogados, algumas vezes apresentados como heróis,

outras como vilões; as representações que uma sociedade exterioriza a respeito de

suas normas jurídicas; o tratamento que o Direito e o Estado dispensam às minorias

ou grupos oprimidos, como mulheres, imigrantes, negros, etc.

Schwartz (2009) relaciona algumas obras selecionadas por temas pelo Law

and Literature Movement a serem objeto do estudo do Direito na Literatura, a saber:

a) Antígona, de Sófocles – o debate que opõe o direito natural ao direito

positivo;

b) Criton, de Platão – descreve a desobediência civil (assim como a Antígona,

de Sófocles).

c) Eumênidas, de Ésquilo - trata da passagem da vingança à justiça;

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d) Robinson Crusoé, de Defoe, e/ou o Senhor das Moscas, de William

Golding - relação entre homem e natureza, bem como o estabelecimento de normas

a partir de um “zeramento” conceitual, que pode interessar sobremaneira à ciência

do Direito.

g) O Processo, de Kafka – texto que narra a história de Joseph K., bancário,

que é preso, julgado e condenado por um misterioso tribunal, jamais conhecendo as

razões de tal ato.

h) O Mercador de Veneza, de Shakeaspeare – analisa a questão do abuso do

Direito e da legitimidade dos contratos.

i) Medida por Medida, de Shakeaspeare – tratar da efetividade da lei.

j) Fausto, de Goethe – questiona as forças e o limite do pacto contratual.

No entanto, para o objetivo proposto, ou seja, a construção de novos

paradigmas no ensino jurídico, na obra o Mercador de Veneza, de Shakeaspeare,

interessa muito mais o desvelar os motivos e os sentimentos humanos de cada

parte, do que a tecnicidade jurídica.

Assim como em Antígona interessa o sentimento de indignação que conduz

seus atos a afrontar os editos do Estado (representado pelo Rei Creonte); os atos

em função de um dever que coloca acima de qualquer lei humana, de qualquer

poder; a desmedida presente no comportamento de Antígona e Creonte; a dicotomia

entre homem/mulher, juventude/maturidade, o culto aos mortos/preocupação com os

vivos; o respeito às obrigações morais com a philia (família) e às tradições, uma

busca incansável da realização do que manda a consciência: “minha consciência e

não o justo, a lei ...” (OST, 2007, p.173) uma rebeldia proclamada na busca da

justiça.

O mesmo inconformismo pode ser lido no comportamento do pastor negro

Martin Luther King na luta contra a segregação e a favor dos direitos cívicos:

“Sustento que todo aquele que infringe uma lei a fim despertar a consciência social

contra essa injustiça, e aceita voluntariamente uma pena de prisão a fim de

despertar a consciência social contra essa injustiça, demonstra, em realidade, um

respeito superior pelo direito.” (KING apud OST, 2007, p.176).

Martin Luther king assim como Antígona cada qual com suas motivações e no

seu tempo defendem a resistência, induzem à desobediência civil, por recusarem a

ordem injusta, no entanto, “a recusa da ordem julgada injusta soe é possível porque

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um indivíduo tomou-se a si mesmo como ser livre, não determinado por qualquer

uma natureza qualquer [...] nem por um estatuto social imposto de fora”. (OST,

2007, p.224).

Seguiremos a uma análise á obra Capitães de areia de Jorge Amado com

objetivo de não somente conhecer as mazelas vividas pelas crianças e adolescente

da década de 30, mas de se fazer uma reflexão sobre os 72 anos que separam a

obra da realidade atual, com olhar nos personagens, nas suas subjetividades, que

transportadas para o ano de 2009 permite uma reflexão dos direitos sociais na

sociedade brasileira.

Jorge Amado foi o romancista mais lido da história brasileira, assim como um

dos mais admirados e criticados:

Ele foi o primeiro grande escritor a fazer a opção preferencial pelo leitor, não pela crítica; pelo povo, não pela elite. Nunca chegou a ser totalmente perdoado por isso. Sempre houve quem torcesse o nariz para um certo cheiro que emanava de seus romances: de mistura de raças, de miscigenação e sincretismo. (VENTURA, 2001).

Suas obras são influenciadas pela tendência literária da década de 30 que

retratava as condições miseráveis da classe trabalhadora e a distância das classes

sociais: é a “arte da denúncia”, do "romance proletário", a "poesia social".

Jorge Amado temperou seus romances com advogados corruptos,

desenhando uma justiça melindrosa, comprada pelos “caxixes”, termo que identifica

o suborno na obra “Terras do sem fim” (1943). Propôs-se a escrever para o leitor

humilde, estudante ou trabalhador. As obras retratam as mazelas da sociedade

baiana: os desmandos dos coronéis, as relações arcaicas de trabalho, o drama dos

operários e o mundo das greves. Os heróis são oriundos das camadas populares,

que adquirem consciência da opressão que os vitimam e através da ação política

sonham com uma sociedade mais justa. Os opressores, por sua vez, são

representados pelos latifundiários e burgueses.

A repressão a Amado não era gratuita. Desde o começo da década, o autor vinha se notabilizando pela contestação em livros como Cacau, Suor, Jubiabá e Capitães da areia, em 1937. Os dois primeiros, referências explícitas ao mundo do trabalho; os dois últimos, à marginalidade social urbana. Em todos eles temos o avesso da literatura "sorriso da sociedade" - expressão utilizada para definir a produção do tipo "água com açúcar" que pontificara entre nós no período da Belle Époque. O romance amadiano volta-se para a base do edifício social e joga luz sobre suas margens e

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desvãos, para ali descobrir/construir o humano. O centro das narrativas é a representação do outro, seja de uma perspectiva de classe, de gênero ou de etnia. O que nelas se vê tencionado é o drama de seres a princípio incompletos, irrealizados enquanto cidadãos, mas que saem - ousam sair - para enfrentar a adversidade provinda de uma estrutura econômica, política e ideológica herdada do passado colonial. Mais que isto: seres que realizam nesse enfrentamento a sua formação como agentes sociais. Indivíduos como o Sergipano de Cacau, a Linda, de Suor, ou o Balduíno de Jubiabá: personagens cujos gestos e falas não apenas se inserem nas lutas históricas de seu tempo, mas que pretendem, mais que isto, propor uma pedagogia da indignação e do confronto, na linha do "herói positivo" da literatura socialista da época. (DUARTE, 2008).

“Capitães de areia” narra o cotidiano de crianças pobres que vivem num velho

trapiche na cidade de Salvador. Os heróis são meninos de rua liderados por Pedro

Bala (filho de mãe desconhecida e pai morto em movimento grevista), pequenos

bandidos que na verdade são vítimas de uma sociedade que os oprime: “Havia, é

verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer

carinho, a falta de todas as palavras boas [...]. A alegria daquela liberdade era pouca

para a desgraça daquela vida.”. (AMADO, 1979, p. 34).

O romance contrasta a sensibilidade e humanidade das crianças com a

desonestidade das classes dominantes, representada pela burguesia, pela Igreja e o

próprio Estado. Os confrontos das classes sociais é pano de fundo da narrativa. De

um lado, os meninos de rua: “Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados,

agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,”. (AMADO, 1978,

p.27). Do outro, os burgueses aprisionados em suas mansões. Donos do dinheiro,

de bens materiais e das forças policiais.

A miséria das crianças é representada pela pobreza do trapiche que “Durante

anos foi povoado exclusivamente pelos ratos [...] que o habitava como senhores

exclusivos.”. (AMADO, 1978, p.20), por ser um espaço aberto e receptivo, é símbolo

de liberdade, enquanto as mansões, geralmente cercadas por grades, são espaços

desumanos que confinam seus moradores.

Segundo Álvaro Cardoso Gomes, Jorge Amado altera o sentido de

propriedade:

São os pobres, os deserdados da sorte que possuem a cidade mágica na Bahia, porque só eles é que são capazes de admirar sua beleza secreta, seus mistérios e responder à sua voz, ao passo que, para as classes elevadas, a cidade não passa de um espaço físico, frio e desumanizado, onde exercem seu falso domínio. (GOMES, 1998, p.87).

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Neste conflito de classe, a ideologia burguesa era legitimada pelos

representantes do Poder Judiciário, apoiada pelo clero e propagada pela mídia:

A polícia tem o papel de cão-de-guarda das classes dominantes e, por isso mesmo, ostensivamente se presta a expurgar do sistema social todos aqueles que possam representar ameaça à manutenção da ordem. Esse comportamento repressivo da polícia pode ser visto na visão crítica que o narrador tem dela e, mais especificamente, em certas cenas em que se mostra o autoritarismo, como a da prisão forjada de Pedro Bala e a do reformatório. (GOMES, 1998, p.78).

A Igreja está a serviço dos poderosos, e por eles é mantida, despreza as

classes humildes, à exceção do padre José Pedro: “Era mesmo um dos mais

humildes entre aquela legião de padres da Bahia. Em verdade fora cinco anos

operário numa fábrica de tecidos, antes de entrar para o seminário. [...].” (AMADO,

1978, p.645). Padre José era nobre por ter sido operário, por ser “homem do povo”,

que viveu para defender o povo.

A imprensa, por sua vez, tendenciosa e maniqueísta exige ações contra os

“pequenos criminosos”, que tiram o sossego do cidadão honesto:

Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos "Capitães da Areia", nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo Jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do Dr. Chefe de Polícia. (AMADO, 1979, p.10).

O “Jornal da Tarde” convoca ações enérgicas do chefe da polícia e do

Juizado de Menores para extinguir os que se dedicavam “à tenebrosa carreira do

crime”. Aponta a causa dessa vida de criminalidade: “naturalmente devido ao

desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos”.

(AMADO, 1978, p.10). Assim como a solução: “o que se faz necessário é uma

urgente providência da polícia e do Juizado de Menores no sentido da extinção

desse bando, e para que recolham esses precoces criminosos [...], aos institutos de

reforma de crianças ou às prisões.”. (AMADO, 1978, p.10).

“Cartas à redação” continua com a compilação de cinco cartas em resposta à

repercussão da matéria. Nas cartas do chefe de polícia (em resposta redigida pelo

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secretário) e do Juiz de menores, há uma discussão quanto a quem caberia a

responsabilidade da iniciativa com relação ao “bando de crianças delinqüentes”.

(AMADO, 1978, p.14). Mas as diferentes opiniões em grande parte são atenuadas

com os tributos feitos pelo juiz àquele que o mencionara; dessa forma, a saudação

ao “patrício” Dr. Chefe de Polícia do Estado, igualmente empregada ao “patrício” Sr.

Diretor do Jornal da Tarde, enfatiza o reconhecimento entre os que se aproximam

não por serem conterrâneos, e sim por sobressaírem como senhores distintos e

cordiais, ao menos aparentemente, entre si. (NAKAGAWA, 2005).

O “Jornal da Tarde” não poupa elogios a estes ilustres cidadãos. Por outro

lado, são transcritas as cartas “de uma mãe, costureira” (AMADO, 1978, p.17) e do

padre José Pedro (AMADO, 1978, p.18), além de apenas ocuparem os espaços

internos do caderno jornalístico, sem direito aos “clichês” ou comentários comuns

nas páginas principais, ambos têm suas denúncias aos maus tratos no reformatório

questionadas. No texto da “mãe costureira”, ao manter as incorreções na escrita da

denunciante, o jornal reduz a sua credibilidade, além de frisar a sua diferença social.

(NAKAGAWA, 2005). Por contrariar o ponto de vista do jornal sobre as possíveis

causas da delinqüência infantil, a carta do padre José Pedro recebeu um título

pejorativo: “Será verdade?”.

A última carta decorre das críticas ao Reformatório Baiano de Menores

Delinqüentes e Abandonados. O diretor dirige-se ao “Exmo. Sr. Diretor”, retornando

a conversa entre os pares de um grupo, com o emprego de honrarias exageradas

aos colegas como “rútila inteligência” e pejorativas para os demais “mulherzinha do

povo”, “padre do demônio”. (NAKAGAWA, 2005). Nega as acusações e faz um

convite à redação do Jornal para uma visita “previamente agendada” ao

reformatório.

O capítulo termina com uma reportagem elogiosa à instituição, destacando a

improcedência da acusação: “o reformatório baiano é uma grande família – onde

deviam estar os Capitães de areia”. (AMADO, 1978, p.21).

A violência que os “Capitães de areia”, praticam é inscrita no texto quase

sempre como justa e, mesmo, necessária - uma resposta à violência econômica

sofrida e transformada em agressão quando praticada pelo aparelho repressivo

(Estado), violência que lhes priva de experimentar a cidadania plena.

A concepção estatal de formar cidadão é sinônimo de reformar:

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Certa vez, uma reportagem nossa desfez um círculo de calúnias jogadas contra aquele estabelecimento de educação e seu diretor. Hoje, ele se achava na polícia esperando poder levar consigo o menor Pedro Bala. A uma pergunta nossa, respondeu: -Ele se regenerará. Veja o título da casa que dirijo; “Reformatório”. Ele se reformará. (AMADO, 1978, p.173).

O Reformatório representa o próprio Estado. Pedro Bala durante a breve

passagem nessa instituição experimentou a grandeza dos métodos “educativos”:

“Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do

Reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala”.

(AMADO, 1978, p.174).

O capítulo “Reformatório” é um retrato fiel e crítico da atuação dos

Reformatórios criados na década de 30-40. Com objetivo de proteção e assistência

ao “menor” pretendiam, respaldadas nas leis que as legitimaram, como o Código de

Menores, de 1926, “recuperar os menores”. Sobre o real papel destas instituições

descreve Irene Rizzini:

O que ocorria na prática era nada mais que o recolhimento de crianças nas ruas por meio de um aparato policial repressivo e punitivo e o encaminhamento delas às inúmeras instituições criadas nas décadas de 1930 e 1940. Em 1941, numa tentativa de centralizar a assistência ao “menor”, o Governo Vargas criou o Serviço de Assistência ao Menor – SAM –, que, rodeado por princípios e propostas modernas como educação e formação profissional para atuar no “combate à criminalidade e na recuperação de delinqüente”, na realidade revelou-se uma instituição na qual se praticavam abusos e corrupção tais que lhe renderam a fama de “escola do crime”, “sucursal do inferno”, “sem amor ao menor” entre outras denominações. No discurso de proteção à infância, no entanto, estava embutida a proposta de defesa da sociedade: “defesa contra a proliferação de vagabundos e criminosos [...] que não correspondiam ao avanço das relações capitalistas em curso” (RIZZINI apud CABRAL; SOUZA, 2004, p. 81).

O Decreto n. 17.943-A de 1927 consolidava as leis de assistência e proteção

aos menores, buscando sistematizar a ação de tutela e coerção, que o Estado

passou a adotar, o que consolidou, na esfera legal, o olhar específico para o

problema social emergente da infância e da adolescência: os “menores” passaram a

ser definidos, assim, como “delinqüentes” (efeito do problema social) e

“abandonados” (causa do problema social). A uma nítida criminalização, da infância

pobre, caracterizada como “abandonada” e “delinqüente”. (CABRAL; SOUZA, 2004,

p.80). Verifica-se ser o mesmo conceito de infância pobre explicitado na reportagem

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“Crianças ladronas” do Jornal da Tarde, em “Capitães de areia” citado no tópico

anterior deste trabalho.

Jorge Amado encarna essa concepção do “menor infrator” na explicação do

comportamento criminoso de Pedro Bala pelo diretor do reformatório ao bedel,

É o chefe dos tais Capitães de areia. Veja... o tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu Lombroso... mas se lesse conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com esta idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser tratado como qualquer... vamos lhe dar honras especiais... (AMADO, 1978, p.175).

O Diretor apela à doutrina do criminologista italiano Cesare Lombroso4 para

explicar a índole criminosa de Pedro Bala. O destino do chefe dos “Capitães de

Areia” está traçado desde sempre, e ao Estado resta usar o seu direito de coerção

(moral e física) para garantir a paz dos cidadãos de bem.

“Canção da Bahia, canção da liberdade” é a última parte do romance, e um de

seus capítulos, “Notícias de jornal”, traz o destino de quatro ex-integrantes do mais

temido grupo de menores baianos: Professor, Gato, Boa-Vida e Volta Sêca.

Professor tornou-se pintor famoso no Rio de Janeiro cuja principal

característica é a de fazer da obra de arte uma representação da realidade que ele

experimentou em vida. Gato ‘O vigarista’ e Boa-Vida ‘o malandro’ acabam se

envolvendo com a polícia, “[...] como se Jorge Amado quisesse com isso acentuar a

marginalização final de algumas personagens, que jamais conseguem se adaptar à

vida em sociedade devido à falta de consciência. (GOMES, 1998, p.92).

No entanto, é o destino de Volta Seca que ganha destaque. Ele se uniu a um

grupo cangaceiro liderados por Lampião. As crueldades do ‘jovem cangaceiro’ são

narradas em detalhes. A notícia de sua prisão esgotou a edição do “Jornal da Tarde”

que descrevia seu semblante como “rosto de criminoso nato”. (AMADO, 1979,

p.276). No julgamento, o promotor reforça a idéia de criminoso nato e desumano.

Jorge Amado se utiliza de superlativos típicos do discurso, para ironizar a fala do

promotor e quando se refere às lágrimas dos jurados e do juiz.

[...] belíssimo, vibrantíssimo e apaixonadíssimo [...], que fizera os jurados chorar, e até o próprio juiz tinha limpado as lágrimas, ao descrever o Dr. Promotor com sublime força oratória, o sofrimento das vítimas do feroz

4 Adepto da Escola Positiva de Direito Penal, que relacionava certas características físicas, tais como o tamanho da mandíbula à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas.

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cangaceiro menino. O público ficou indignado porque Volta Sêca não chorou durante o júri. Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma. (AMADO, 1979, p.277).

Mas, a literatura de Jorge Amado não é uma distopia. Muito pelo contrário, ele

acreditava no poder de superação do sujeito a partir de sua consciência como

cidadão e de seu papel na história. No entanto, como sair da condição de

marginalizado à cidadão?

Jorge Amado acreditava que para haver cidadãos conscientes nas camadas

subalternas, era necessário, em primeiro lugar, haver leitores. “O passo seguinte

consiste em fazer do texto um paradigma de inconformismo, uma espécie de escola

de cidadania.”. (DUARTE, 2008). É nessa perspectiva que se pode apreender o

personagem João José. Ele figura como síntese da utopia amadiana da leitura na

construção de um mundo novo a partir do gesto de ler e narrar:

João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da barra, se tornara perito nesses furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando no fundo do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heróicos e lendários. Era o único que lia corretamente entre eles e, no entanto, só estivera na escola um ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heróico de suas vidas. (AMADO, 1978, p.29).

Com ele, ler e narrar tornam-se atitudes políticas: “os volumes roubados e

empilhados entre tijolos metaforizam a construção da consciência e do edifício da

cidadania entre os pobres”. (DUARTE, 2008).

Mas é em Pedro Bala que Jorge Amado revela a sua crença na força do

homem de construir um mundo mais justo e humano, através da luta e da ação. O

jovem ladrão transforma-se um ativo líder proletário. O sofrimento, a vida em

desamparado são condições básicas para a formação do caráter do jovem herói

que, no final do romance, já conscientizado, se põe a contestar as estruturas do

sistema social.

Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o

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camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida. No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia. E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma família. (AMADO, 1978, p.235).

Apesar do retrato cruel de uma realidade que leva ao crime e à

marginalização, há uma utopia na obra: os personagens a princípio incompletos,

irrealizados enquanto cidadãos, ousam sair da condição de humilhados e

desfavorecidos para enfrentar a adversidade provinda de uma estrutura econômica,

política e ideológica:

Que adianta a vida da gente? Só pancada da polícia quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia pode mudar [...] Agora vou mudar minha [...] Vou estudar com um pintor no Rio. [...] Um dia vou mostrar como é a vida da gente...Faço o retrato de todo mundo...[...]. (AMADO, 1978, p.200).

João José o “Professor” tornou-se um pintor famoso, sua arte representava a

realidade da sua infância. Através da superação reescreveu a sua história. Assim

como Pedro Bala: de líder de meninos de rua à líder sindical. Nega as classes

dominantes, as desigualdades e os abusos do Estado, e a partir dessa negação se

constrói como sujeito de seu tempo.

Transcorridos 71 anos de sua primeira edição, a repressão a qual os menores

foram submetidos não conseguiu interromper o caminho dessa história de marginais.

Nos dizeres de Duarte (2008) Os meninos passaram de "dominados" a "excluídos".

Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do

Adolescente de 1990, que garantem às crianças e adolescentes direitos

fundamentais como saúde, alimentação, educação, dignidade, lazer dentre outros, a

situação do menor de rua ganhou nos últimos anos uma dimensão ainda mais grave,

como por exemplo, o envolvimento com o uso e tráfico de drogas e a prostituição

infantil. Assim, ainda hoje é freqüente denúncias de abusos e maus-tratos nas

casas da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.

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Os problemas sociais persistem em função de ainda não se ter conseguido

minimizar as desigualdades econômicas, dificultando o cumprimento das garantias

previstas na Constituição, e um efetivo Estado Democrático de Direito.

O diálogo entre Direito e Literatura propicia este estudo da sociedade em seu

tempo, em seus múltiplos aspectos que permita refletir ações no hoje e planejar o

amanhã, porém, o estudo do direito e literatura junto às escolas de Direito é ainda

uma prática pedagógica ainda pouco comum na cultura jurídica brasileira, no

entanto, algumas experiências positivas têm permitido aprofundar as interfaces

existentes entre o Direito e a Literatura.

Como exemplo, podemos citar o projeto Direito & Literatura, promovido pelo

Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), realizado pela TVE/RS e apresentado pelo

Prof. Lênio Luiz Streck desde 2006, junto à linha de pesquisa “Direito e Literatura”,

com objetivo de estudar as interfaces existentes entre o Direito e a Literatura. Os

clássicos da literatura são discutidos através de um diálogo entre, e com professores

de ensino jurídico e de Literatura.

Vale também citar congressos e oficinas com o tema “Direito e Literatura

promovido pelas universidades, como o promovido pela PUC Minas em Serro em

maio de 2008, sob a coordenação do Professor Lucas Gontijo. O evento titulado “A

invenção da justiça: colóquio de direito e dramaturgia grega”, foi realizado na praça

da igreja matriz, onde os alunos do curso de Direito da PUC Minas Serro e da PUC

Minas São Gabriel vivenciaram uma experiência inusitada, principalmente se

considerarmos o público em questão: sob a luz do luar e proteção do deus Baco o

colóquio intercalou palestras com sessões de curtas e música. Foram ainda

projetados os filmes Medeia de Pasoline e Medeia de Lars Von Trier.

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Figura 3: A invenção da Justiça: colóquio de direito e dramaturgia grega Fonte: Gontijo (2008)

Outro exemplo, que evidencia cada vez mais a consolidação no ensino

jurídico do diálogo entre Direito e Literatura na prática é a inclusão do grupo de

estudo “Direito, arte, literatura e interdisciplinaridade” no Congresso do Conselho

Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) com objetivo de

discutir integrar e divulgar os trabalhos nesta linha de pesquisa desenvolvidos nos

programas de mestrado e doutorado.

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As experiências narradas revelam uma preocupação em dar novas faces ao

ensino jurídico: comprometido em desenvolver habilidades que permita aos futuros

operadores do Direito serem menos tecnicistas e mais capazes de promover

reflexões sobre a condição humana, que compreendam o Direito no seu ambiente

histórico, cultural, político, e assim possam fazer parte da construção de uma

sociedade mais igualitária e justa.

E é nesta perspectiva que o próximo capítulo analisará a pesquisa no ensino

jurídico, especialmente a pesquisa-ação implantada mais diretamente pelo

Programa Direito Achado na Rua da Universidade de Brasília (UnB) e o Pólos de

Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também será

analisado o programa de extensão Libertas da Faculdade Milton Campos, como

práticas pedagógicas que apontam para uma nova dinâmica do ensino jurídico nos

cursos superiores.

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5 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO E PESQUISA NO CURSO DE DIREITO: AS

EXPERIÊNCIAS DOS PROGRAMAS DIREITO ACHADO NA RUA, P ÓLOS DE

CIDADANIA E LIBERTAS

5.1 A produção do conhecimento e a pesquisa no ensi no jurídico

O mundo do Direito é o mundo real, portanto, não há como o Direito dar

respostas às complexidades das sociedades contemporâneas pautada por dilemas

éticos nas relações interpessoais, pela desigualdade social, o desrespeito aos

direitos humanos e aos princípios da igualdade e dignidade humana,

constitucionalmente garantidos, concebendo o conhecimento jurídico como um

conjunto normativo ideal, que não necessita ser questionado, uma mera

interpretação dogmática da lei. No Direito, o conhecimento advém da interpretação

das leis e as pessoas autorizadas a interpretar as leis são os próprios juristas.

Por outro lado, a pesquisa jurídica, a que incumbiria o papel de protagonista

na produção do conhecimento científico-jurídico, está atrelada á dicotomia do

constitucional/inconstitucional, da legalidade/ilegalidade, ou seja, essencialmente

regulatória não alcança as atuais demandas sociais.

A metodologia utilizada nas pesquisas é meramente reprodutora, fruto da

concepção na área jurídica das verdades sedimentadas, estabelecidas e

incontestáveis, chancelados por doutrinadores – a qualidade do trabalho muitas

vezes é medida pelo número de autores consagrados citados - devidamente

adjetivados como “brilhantes”, “festejados”, ou seja, “incontestáveis”, portanto, aos

pesquisadores não resta alternativa, senão reproduzir o que já está pronto.

O conhecimento jurídico é atualizado de forma a não produzir transformações, mas cópias. Conhecer nesse campo equivale a deixar as coisas tal como estão e não intervir na sua forma de atuação. Trata-se de uma visão limitada do conhecimento. (LIMA; VARELLA apud BAPTISTA, 2008, p.45).

Neste mesmo sentido, Faria e Campilongo (1991) ressaltam que a pesquisa

empírica - e mesmo a produção teórica praticamente inexiste nas faculdades de

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Direito: “as escolas não assumem, há tempos, a função de produtoras de

conhecimento jurídico; quando muito, limitam-se, e quase sempre mal, a reproduzir

o legalismo oficial”. “incapaz de ir além da pura forma das normas jurídicas para

examiná-las em termos de suas origens históricas, de suas implicações sociais e de

sua efetividade”. (FARIA; CAMPILONGO, 1991, p.44).

Apesar do quadro nada animador da pesquisa jurídica nas universidades em

que o desinteresse pela pesquisa por parte dos docentes só é superado pelo

descaso do corpo discente, Luciano Oliveira e João Maurício Adeodato asseveram

que houve uma área de pesquisa, a sócio-jurídica, que apresenta alguns resultados

interessantes:

Quem se debruçar sobre o que foi feito em termos de pesquisa sócio-jurídica no Brasil, dos anos 80 para cá, irá se defrontar — contrariando talvez certo senso-comum pessimista — não com uma ausência de trabalhos mas, ao contrário, com um acervo de realizações que, considerando as condições sob as quais se faz ciência no Brasil, até poderia ser qualificado de surpreendente. (OLIVEIRA; ADEODATO, 1995).

A pesquisa sócio-jurídica, mesmo atuando em contextos avessos aos seus

métodos, objetos e problemas, contribuiu para a introdução crítica e reflexiva no

pensamento jurídico brasileiro. (FARIA; CAMPILONGO, 1991).

É nesta perspectiva de produção de um conhecimento crítico e reflexivo que

serão analisados o projeto “Direito Achado na Rua”, que nasceu como um curso de

extensão universitária à distância produzida em 1987 pelo Núcleo de Estudos da

Paz e Direitos Humanos (NEP) da Universidade de Brasília (UnB), que é ainda hoje

um dos principais e mais respeitados projetos de ensino e extensão da UnB; o

programa “Pólos de cidadania” da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

que através da metodologia pesquisa/ação, questiona sobre a ciência e sobre o

papel do conhecimento no mundo atual, assim como, entende a produção do

conhecimento como uma via de mão dupla e que a pesquisa em sócio-jurídica deve

abandonar a relação sujeito-objeto, em favor da relação intersubjetiva entre

pesquisador e pesquisa; e o Projeto Libertas da Faculdade Milton Campos.

Antes, porém, de apresentarmos a proposta dos projetos supracitados é

necessário uma melhor compreensão do conceito de pluralismo jurídico, assistência

e assessoria jurídica, que permeia as propostas dos mesmos.

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5.1.1 Pluralismo jurídico

Numa sociedade multicultural, marcada pelo desrespeito aos direitos sociais

(moradia, educação, etc.), pela má administração governamental, desigualdade na

distribuição de renda, corrupção em todos os poderes, o desvio dos interesses

estatais sempre no interesse de minorias, pelo poder judiciário moroso e

desacreditado dentre outros aspectos, propicia-se as movimentações sociais em

busca de soluções de conflitos, que acabam se consubstanciando em formas de

pluralismo jurídico, definido por Sabadell (2002, p.119) como a “teoria que sustenta a

coexistência de vários sistemas jurídicos no seio da mesma sociedade.”.

O Estado não é a única fonte de criação das normas jurídicas (monismo

jurídico), neste sentido Boaventura de Sousa Santos citado por Sabadell (2002,

p.119) afirma que “Sendo embora o direito estatal o modo de juridicidade dominante,

ele coexiste na sociedade com outros modos de juridicidade, outros direitos que com

ele se articulam”. Como exemplo, podemos citar as normas de comportamentos e

sanções aplicadas no âmbito de vários grupos, ou organizações sócias: prisões,

igrejas, comunidades indígenas, etc.

Wolkmer (1997) estabelece a existência de um pluralismo jurídico estatal, que

é reconhecido, permitido e controlado pelo Estado e um pluralismo jurídico

comunitário, que age num espaço formado por forças sociais e sujeitos coletivos

com identidade e autonomia próprias, subsistindo independente ao controle estatal.

Para o autor “O pluralismo surge devido à falta de atenção do Estado para com

aqueles mais necessitados, pois é destas classes mais sofridas e necessitadas que

surja a regulamentação estatal.” (WOLKMER. 1997, p. 301).

As pesquisas mais conhecidas sobre o pluralismo jurídico no Brasil são de

Boaventura de Sousa Santos. O sociólogo português empreendeu uma pesquisa

empírica em uma favela do Rio de Janeiro, ao qual chamou de Pasárgada. Ele faz

menção a uma ordem jurídica à parte do que chama de “direito do asfalto”, um

direito informal, reconhecido pelos moradores da favela, que se pautava na

mediação, e que apresentava diferenças e semelhanças com relação ao direito

estatal. Boaventura assevera que:

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Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da concepção específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social - neste caso a habitação. (SANTOS, 1999, p.87).

Para Wolkmer (1994) o pluralismo jurídico apresenta-se como um novo

paradigma de compreensão e produção científica da teoria do direito, com eficácia e

legitimação, descentralizador e democrático. Caracteriza-se por formas alternativas

de produção e aplicação do direito.

Recente discussão sobre o pluralismo jurídico nasceu da afirmação do

presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro Gilmar Mendes, quando do

julgamento da ADPF n. 144, que "cada vez mais nós sabemos que o Direito deve

ser achado na lei e não na rua". Sobre tal consideração assevera o Professor

Marcelo Cattoni:

No Estado Democrático de Direito, este tipo de afirmação merece maiores explicações, para que não crie uma falsa oposição entre lei e rua. Pois se é certo que o Direito não deve ser reduzido à vontade não-mediada institucionalmente de maiorias conjunturais, por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade. [...] Gilmar Mendes, ao assim pronunciar-se, estaria se referindo "pejorativamente" à importante escola de pensamento jurídico liderada por este grande intelectual que é José Geraldo Souza Júnior, na esteira de Roberto Lyra Filho? E também a todos os que em algum momento lutaram contra o "Direito" (sic) da ditadura sob a bandeira do então chamado genericamente de "Direito alternativo" e lutaram justamente para o que naquele momento era alternativo à Ditadura se tornasse o Direito democrático de pós-1988? O certo é que ele atinge também a todos nós que não reduzimos o Direito à mera estatalidade. É claro que todo o Direito é público, não resta dúvida quanto a isso. Mas o público não se reduz ao estatal, no Estado Democrático de Direito. E que está numa relação pública de equiprimordialidade entre público e privado. O pluralismo jurídico que Gilmar Mendes critica com seu pronunciamento não coloca em risco a constitucionalidade democrática. Numa sociedade democrática, aberta de intérpretes da Constituição, o pluralismo jurídico é interno ao próprio Direito democrático e é condição de racionalidade discursiva para que publicamente possamos no exercício da cidadania construir, ao longo da história da nossa comunidade jurídica, os ideais de justiça e de bem-comum que devem dar sentido a essa história (art. 1.º, V, da CRFB). Assim é que a coerência normativa exigida pela integridade do/no Direito é de princípios e não a meras convenções do passado. Se o Direito não nascer na rua, se a legalidade não nascer da informalidade e na periferia, e não se sustentar com base em razões que sejam capazes de mobilizar os debates públicos pela atuação da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem uma perspectiva generalizada, universalizanda, instaurada pelas lutas por reconhecimento e inclusão, não ganhar os fóruns oficiais, não ganhar o centro do sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como falar-se em legitimidade democrática?

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Somente o Direito "achado" (sic) na lei será legítimo, se for construído publicamente a partir da rua... É na mediação discursiva entre a informalidade e a formalidade, garantida pelos processos deliberativos constitucional e democraticamente institucionalizados, legislativos, administrativos e jurisdicionais, que o poder político é gerado comunicativamente e a legitimidade é gerada pela legalidade. (OLIVEIRA apud SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2008).

Em seu trabalho sobre pluralismo, Wolkmer citado por Steiner (2008)

perpassa a noção alienante constante do conceito de sujeito de direito individual. A

tal visão, opõe-se o sujeito coletivo: “sujeito vivo, atuante e livre, que se

autodetermina, participa e modifica a mundialidade do processo histórico-social”.

Numa visão política-sociológica, Wolkmer conceitua tais novos sujeitos

históricos, como:

Identidades coletivas conscientes, mais ou menos autônomos, advindo de diversos estratos sociais, com capacidade de auto-organização e autodeterminação, interligadas por formas de vida com interesses e valores comuns, compartilhando conflitos e lutas cotidianas que expressam privações e necessidades por direitos, legitimando-se como forca transformadora do poder e instituidora de uma sociedade democrática, descentralizadora, participativa e igualitária. (WOLKMER apud STEINER, 2008).

Nesta concepção o sujeito deixa de ser coadjuvante de sua existência para

dar real sentido a ela. No próximo tópico será discutida a assistência e a assessoria

jurídica, uma distinção necessária para a compreensão da extensão nos cursos de

Direito.

5.1.2 Assistência e Assessoria jurídica: o caminho da práxis jurídica

A expressão ‘extensão’ é utilizada pela Constituição da República para

nomear um dos "tripés" fundamentais da Universidade brasileira: "Art. 207 - As

universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão

financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre

ensino, pesquisa e extensão. (BRASIL, 2008, p.138).

A idéia de extensão que será abordada visa ultrapassar os muros da

Academia e promover uma integração de pesquisa/aprendizagem com o meio

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social. Neste sentido Paulo Freire citado por Furmannn (2004) sugeria não apenas a

substituição da expressão "extensão" por outra expressão "comunicação", mas

tentava demonstrar que a extensão é o ato dialogal da Universidade com a

sociedade. É o momento em que a universidade conversa com a sociedade.

A partir de posturas críticas quanto à função do ensino jurídico na formação

do futuro operador do Direito a extensão ganha um novo significado podendo atingir

um papel mais importante, a educação para a cidadania, o que torna o Direito um

instrumento de conscientização política e transformação social.

A seguir discutiremos o conceito de assessoria jurídica e assistência

judiciária, os dois pilares da atividade de extensão desenvolvida por estudantes de

Direito.

5.1.2.1 O assistencialismo como fortalecedor do monismo no ensino

A prática dos cursos de Direito em sua maioria, a extensão universitária se

pauta em idéias assistencialistas nas quais os estudantes apenas fornecem serviços

técnicos a populações carentes, para solução de litígios: “A cidadania se resume a

entender os direitos conferidos e exercê-los através do ordenamento jurídico já

instituído. A assistência intelectual serve apenas para informar o cidadão de sua

cidadania. A cidadania existe pronta em alguma legislação.” (FURMANN, 2004).

Freire citado por Furmann distingue duas possibilidades de assistência: a

intelectual e a material.

Na primeira o sujeito recebe informações que são depositadas em sua mente, geralmente por meio de palestras (pelo que Freire chama de método bancário de ensino), ignorando-se a cultura popular e a experiência do sujeito, não transformando nem o "atendido" em sujeito do conhecimento e muito menos a universidade. A segunda possibilidade é mais autoritária ainda, apenas se fornecendo algum produto pronto, como no caso de elaboração de petições sem a menor disposição ao diálogo. (FREIRE apud FURMANNN, 2004).

Em ambas, pode-se concluir que o objetivo é a diminuição da litigiosidade, em

que o sujeito é mero objeto, elas se limitam ao legal instituído. “No assistencialismo

não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que revelam passividade e

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‘domesticação’ do homem (FREIRE apud FURMANN, 2004). Assim não superam a

concepção modesta de Direito, ignorando o pluralismo jurídico.

Presença comum como atividade de ‘extensão” nos curso de Direitos são os

chamados escritório-modelo, cuja função é dar um amparo legal gratuito às pessoas

carentes que não podem pagar um advogado para resolver as suas demandas. De

caráter obrigatório para a formação do aluno, o escritório-modelo parte, tanto na

teoria como na prática, de uma concepção assistencialista. Essa atividade visa

também ministrar ensino jurídico prático aos alunos do curso de Direito. “Como se

vê, este tipo de assistência seria quase que estritamente Professional Advocatícia,

não fosse o seu caráter de extensão universitária, que proporciona o contato, ainda

que superficialmente, com a realidade social.” (SOUSA JÚNIOR, 2008).

Outras propostas de extensão em Direito critica por Furmann (2004) por se

limitam a "Assistência" intelectual, é a formulação de cartilhas, panfletos, folders e

todo o tipo de material informativo sobre o Direito, ou na realização de palestras,

conferências e cursos; “não há diálogo com a comunidade e a efetividade destas

atividades de pretensa educação é questionável.” (FURMANN, 2004).

Por sua vez, as atividades de mediação e conciliação, geralmente, são feitas

com o intuito de solver problemas específicos como pequenos danos, acidentes de

trânsito, brigas de vizinhos, com intuito de evitar o trâmite no Poder Judiciário.

Geralmente o ‘conciliador’ irá avaliar a situação jurídica, prever as conseqüências e

propor a solução: “As partes figuram como espectadores. Sua participação se

resume a concordar ou discordar do acordo, sob a coação de enfrentamento do

moroso e custoso Poder Judiciário. (FURMANN, 2004).

Apesar de não podermos desmerecer a sua importância, a assistência

judiciária desenvolve de fato um contato muito reduzido com a comunidade devido à

sua metodologia de trabalho individualizante, que se esgota com a prestação de um

serviço legal imediato, na maioria dos casos, não se procura educar as pessoas

para o exercício de sua cidadania. E como lembra Sousa Júnior:

[...] incapaz de dar resposta às novas demandas sociais, quando se constata a emergência de novos sujeitos coletivos e grupos marginalizados do processo produtivo, impedidos de exercerem a sua cidadania e de verem seus direitos reconhecidos e respeitados. (SOUSA JÚNIOR, 2008).

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As críticas à assistência judiciária como uma práxis que não dialoga com a

sociedade, não objetiva a formação da cidadania, por ser mero reprodutor do ensino

dogmático e positivista, levou à busca de novas perspectivas de extensão

universitária em Direito, que os estudantes, apropriando-se do nome criado nos

movimentos sociais, denominaram Assessoria. (FURMANN, 2004).

5.1.2.2 A assessoria como práxis para a cidadania

As assessorias jurídicas dos movimentos sociais surgiram, no Brasil, a partir

dos anos 1960, em parte como decorrência dos limites políticos contidos num

sistema político autoritário e, em parte, como reação a uma formação jurídica

dogmática e positivista, que impedia a percepção do direito como estratégia de

superação de uma realidade injusta e de exclusão social. (SOUSA JÚNIOR, 2008).

Eduardo Guimarães de Carvalho citado por Sousa Júnior (2008) propõe

algumas características que designam a atuação das assessorias jurídicas:

criatividade, advento de novas relações entre advogados e clientes, descrença no

Judiciário, respeito às práticas populares, conscientização, participação e crítica às

práticas paternalistas.

O pressuposto da assessoria jurídica é o diálogo entre a Universidade e a

Sociedade, que permitirá a construção do conhecimento:

Parte-se da proposta de que cada um, por ter uma experiência de vida diferenciada, detém um conhecimento e somente a partir do diálogo entre o popular e o acadêmico é possível construir um conhecimento crítico. Somente com a congruência do conhecimento acadêmico e do popular, um de cunho preponderantemente teórico e outro de cunho preponderantemente prático, é possível estabelecer diálogo e, por fim, um conhecimento crítico a partir de práxis (direito vivo). O que se busca não é impor conhecimentos ao membro da comunidade mas lhe possibilitar, a partir do diálogo, a construção do seu próprio conhecimento. (FURMANN, 2004).

A abertura do diálogo com a comunidade permite um pensar coletivo de

construção do Direito, a partir do ‘como’ a questão jurídica pode ser problematizada

e ‘como’ poder-se-á encontrar uma solução a partir do intercâmbio de

conhecimentos.

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Pela sua própria natureza a assessoria jurídica é um trabalho que dá

condições efetivas ao estudante de Direito desenvolver e exercitar a sua práxis

social. ”E por práxis entendemos, não apenas a face técnico-prática do Direito, mas,

sobretudo, a capacidade criativa de reflexão do fenômeno jurídico a partir de um

contato direto com a realidade social, fonte material deste fenômeno.” (SOUSA

JÚNIOR, 2008).

O trabalho de assessoria jurídica visa em última instância à emancipação e à

autonomia dos grupos sociais oprimidos por meio da educação para a cidadania, ao

mesmo tempo busca estimular a organização e o desenvolvimento da sociedade,

para que assim, de maneira autônoma, ela possa desenvolver os meios para

reivindicar seus direitos e sanar as suas carências do cotidiano, constituindo-se, pois

como sociedade civil. (SOUSA JÚNIOR, 2008)

E na perspectiva do pluralismo jurídico e numa assessoria jurídica

emancipatória que iremos apresentar os programas Direito Achado na Rua, Pólos de

cidadania e Libertas , nos quais o sujeito coletivo deixa de ser alvo de ações

assistencialistas para torna-se sujeito de transformação da sua realidade.

5.2 Direito Achado na Rua

“Direito Achado na Rua” é uma linha de pesquisa do Núcleo de Estudos para

a Paz e dos Direitos Humanos (NEP) da Universidade de Brasília, uma unidade de

pesquisa organizada em perspectiva temática e interdisciplinar, administrativamente

vinculada ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM). O NEP atua

no propósito de reunir pessoas e entidades públicas e privadas para debater e

desenvolver novas formas de ensino e aprofundar a pesquisa sobre a paz e os

Direitos Humanos. (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, Centro de Estudos Avançados

Multidisciplinares, 2009).

A origem imediata deste projeto é a solicitação de advogados de assessorias jurídicas populares, de comissões de direitos humanos e de movimentos sociais e suas organizações urbanas e rurais, no sentido de que a Universidade desenvolvesse um programa capaz de atender às expectativas de uma reflexão acerca da práxis social constituída na sua

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experiência comum de luta por justiça e por direitos. (SOUSA JÚNIOR, 1993, p.8).

O projeto “Direito Achado na Rua” teve sua concepção na filosofia da Nova

Escola Jurídica Brasileira (NAIR), um movimento fundado por Roberto Lyra Filho que

“propõe uma filosofia jurídica que permitiria transformar direito de instrumento de

dominação em instrumento de libertação” (JUNQUEIRA, 1993, p.47), um

pensamento alternativo, voltado para a formulação de uma concepção jurídica de

transformação social.

Segundo Sousa Júnior (1993) a Nova Escola Jurídica Brasileira trouxe à tona

a discussão sobre a função, o sentido e os modos de produção do conhecimento

científico nas Universidades, que associado à práxis de luta social, constrói um

saber alternativo comprometido com a análise da estrutura social, tendo por objeto a

transformação nacional.

Lyra Filho citado por Junqueira (1993) adota um posicionamento designado

humanismo dialético que objetiva fundamentar os Direitos humanos, assim como a

práxis jurídica de povos, classes, grupos e indivíduos espoliados e vítimas da

opressão.

O humanismo dialético está mais próximo da prática, da vida jurídica real, do que a teoria legalista (não confundamos a legalidade com o legalismo que é a sua transformação em fetiche, desconhecendo tudo o que fica juridicamente situado fora do bitolamento legislativo e canonizando como jurídico tudo que ali se pôs, ainda que não seja o direito autentico, mas o foco do autoritarismo). (LYRA FILHOA apud SOUSA JÚNIOR, 1993, p.8).

Farias e Campilongo citados por Sousa destacam o projeto da UnB:

Como o próprio nome indica, tem uma preocupação não tanto com o direito dos códigos, ensinado nas faculdades, mas com as diferentes formas jurídicas efetivamente praticadas nas relações sociais. Optando por uma análise 'crítica' do direito estatal, questionando as estratégias de neutralização e despolitização estabelecidas pela dogmática jurídica e privilegiando a transformação social em detrimento da permanência das instituições jurídicas, ou seja, tratando a experiência jurídica sob um ângulo assumidamente político este projeto da UnB tem por objetivo agir como transmissor de informações em favor de uma ordem normativa mais legítima, desformalizada e descentralizada. (FARIA; CAMPILONGO apud SOUSA, 1993, p.9).

Ao descrever a proposta do Direito Achado na Rua, Costa (2004) destaca a

necessidade de abandonar a idéia de que o Estado é o único criador do Direito, e

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superar a concepção de que o Direito advém do sujeito “abstrato”, para em seguida,

compreender que “a criação do direito é plúrima e provém principalmente do meio

social, local onde é possível encontrar o sujeito de direito real formado a partir de

suas vivência e lutas pela sobrevivência.” (COSTA, 2004, p.24).

Atualmente o projeto é coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa, a

equipe é formada por 35 pesquisadores e 7 estudantes que trabalham em 5 linhas

de pesquisas:

• A recuperação histórica das demandas esquecidas no ensino e no

conhecimento do direito;

• Educação para os direitos humanos e cidadania;

• Movimentos sociais - a emergência de novos sujeitos: o sujeito coletivo de

direito;

• O direito achado na rua;

• Trabalhadores pobres, direito, justiça e cidadania.

Os trabalhos de extensão promovidos pelo curso de Direito da UNB, algumas

vezes em parceria com os cursos de Serviço Social, Psicologia, dentre outros,

efetivamente levou o mundo acadêmico para a periferia da sociedade, local em que

é possível a constatação de conflitos jurídicos e demandas da sociedade. Em todos

os projetos é visível a participação interdisciplinar, o contato direto e contínuo com a

comunidade, o trabalho conjunto entre ensino, pesquisa e extensão, e tem como fio

condutor a efetividade dos direitos e garantias fundamentais ou simplesmente a

efetividade dos Direitos humanos e dos cidadãos. (OLIVEIRA, 2004).

Sousa Júnior (2008) cita dois projetos do Núcleo de Prática Jurídica da

Faculdade de Direito da UnB, com fundamentação teórica em O Direito Achado Rua,

que permite aos estagiários não só do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), mas de

diferentes programas, a possibilidade de exercitar a assessoria jurídica, numa

atividade de consultoria e de capacitação.

O primeiro busca responder através de uma coluna semanal num jornal de

grande circulação local questões propostas por leitores, com ênfase na interação

entre leitores da comunidade e acadêmicos. A partir dos questionamentos da

comunidade os alunos promovem uma pesquisa sobre o tema sob a supervisão de

orientadores e professores realizam reuniões semanais para discussão e aprovação

dos textos que serão publicados em resposta àquelas perguntas.

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As abordagens, aliás, têm proporcionado a tomada de posição por parte dos alunos-autores em situações jurídicas no limite hermenêutico. Por exemplo, quando os alunos, antes da decisão do Supremo Tribunal Federal, viram a possibilidade constitucional de progressão de regime de pena de preso condenado por crime hediondo, ao responderem a pergunta do presidiário neste sentido; ou, quando sustentaram a razoabilidade jurídica, contra-legem, da união estável entre pessoas de mesmo sexo. O que se depreende de posicionamentos assim descritos é a acentuada disposição dos alunos de não só informarem os leitores, mas de atribuir aos comentários um sentido emancipatório à consideração dos problemas, dando ao Direito uma dimensão realizadora da cidadania. (SOUSA JÙNIOR, 2008, p.196).

As soluções apresentadas também não se restringem as “recomendações”,

mas convertem-se em ações práticas, com a indicação dos órgãos específicos

quando a intervenção judicial por meio do NPJ.

O segundo é o projeto Promotoras Legais Populares, tem o objetivo de

capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos, engaja estudantes do

Direito numa relação direta com movimentos sociais e organizações da sociedade

civil.

Segundo Carolina Tokarski, citada por Sousa Júnior (2008), este projeto

“serve de palco para a relação da Universidade com o meio social em que está

inserida – levando-a passar – de uma posição de isolamento para uma postura de

abertura dialógica entre sujeitos e conhecimentos”.

O projeto “Direito Achado na Rua” ao promover uma reflexão do direito, abre

espaço para o intercâmbio de experiências, em condições de atualizar as práticas de

docência e de pesquisa em Direito, provocando uma visão diferenciada do que é o

ensino jurídico, do que consiste a prática jurídica e a concretização do triple ensino,

pesquisa e extensão. Neste sentido Martins afirma que:

Do Direito Achado na Rua e de outras iniciativas com o mesmo compromisso decorre uma mudança pedagógica silenciosa operada pelo crescente envolvimento de estudantes e de docentes com a extensão universitária. Novos perfis discentes e docentes começam a ser engendrados, como também modos muito mais complexos e eficazes de organização do fazer universitário, maiores aberturas e diversidade de modelos pedagógicos. (MARTINS, 2007, p.8).

No próximo tópico apresentaremos o programa Pólos de cidadania, que assim

como o Direito Achado na Rua tem um trabalho voltado para a produção científica e

um projeto ético-político de inclusão social, que representa uma “aposta na

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democracia como processo de participação, de organização social, de cidadania e,

conseqüentemente, de inclusão social.” (SOUSA JÚNIOR, 2008, p.197), numa

perspectiva de um Direito interpretado a partir da ótica da dignidade humana e da

solidariedade, presente no engajamento comunitário que se busca atingir.

5.3 Programa Pólos de Cidadania

Fundado em 1995 com sede na Faculdade de Direito da Universidade Federal

de Minas Gerais (UFMG) o Programa Pólos de Cidadania visa transformar os

ensinamentos obtidos na sala de aula em algo factível aos olhos dos estudantes,

aliando atividades de ensino, pesquisa e extensão com o objetivo de promover por

meio da pesquisa-ação - que inclui a definição de ações após pesquisas e

diagnósticos - a inclusão e a emancipação de grupos sociais com histórico de

exclusão e trajetória de risco.

A pesquisa científica é a base de nosso trabalho, pois revela um retrato da situação de comunidades. A partir dos resultados, criamos meios para que os projetos de extensão solucionem os problemas e, na sala de aula, discutimos os aspectos sobre a realidade mostrada pelo estudo. Há uma relação estreita entre pesquisa, extensão e ensino. (GUSTIN apud DIVERSA, 2005).

Nesse sentido, o Programa abre novas possibilidades de estudo e torna-se

objeto de pesquisa para estudantes da graduação, do mestrado e do doutorado.

Quando criamos o projeto, pensávamos numa forma de colocar fim ao enclausuramento dos estudantes nas salas de aula, diz a professora Miracy Barbosa Gustin. O estágio, segundo ela, oferece um outro tipo de capacitação, mas que não aproxima tanto os alunos da realidade social que os cerca quanto esse programa. Participando do Pólos Reprodutores de Cidadania, os estudantes, avalia a professora, aumentam muito a capacidade individual de compreensão de situações, porque eles são testemunhas. (DIVERSA, 2005).

A equipe multidisciplinar se tornou interinstitucional, congregou outras

comunidades acadêmicas – como Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

(PUC Minas), Fumec e Milton Campos – e é apoiado financeiramente pela Pró-

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Reitoria de Extensão da UFMG, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico, trabalha com a manifestação da cidadania nas relações

individuais e coletivas. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

O programa está presente em áreas muito pobres, como aglomerados de

favelas, e também em bairros de periferias carentes. Daí surgem demandas

bastante objetivas, como por soluções negociadas de problemas do dia-a-dia dessas

comunidades. “Em 80% dos casos, atuamos como mediadores. Queremos também

evitar ações judiciais porque sabemos que o Judiciário não suporta mais tantas

ações”, (GUSTIN apud AFONSO, 2002).

Atualmente o Pólos conta com uma equipe de cerca de 60 membros, entre

professores, profissionais, alunos e funcionários das áreas de direito, sociologia,

comunicação, economia, psicologia, arquitetura, administração, serviço social e

artes cênicas e é coordenado pela professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin.

A professora Sielen Barreto Caldas sub-coordenadora do programa, assevera

sobre a importância da interdisciplinaridade: “O contato do aluno do Direito com

outros cursos amplia a sua percepção do conhecimento, da realidade, até o discurso

é desconstruído: o aluno “aprende” a falar”. (Informação verbal) 5

Atua em frentes de trabalho diversificadas, como mediação de conflitos e

mediação comunitária, organização popular em vilas e favelas, redução da violência

e de riscos na regularização fundiária sustentável, geração de condições de

prevenção à exploração sexual infanto-juvenil, saúde mental e cidadania e

organização e construção de identidade coletiva da população de rua. (SIMEONE,

2005).

A professora Sielen afirma que hoje as comunidades em uma ótima aceitação

dos projetos propostos pelo Pólos, mas no início havia um receio quanto às reais

intenções da Universidade: “eles acreditavam que a universidade estava na

comunidade tão somente para levantar dados, ou seja, esta era apenas objeto de

estudos”. (Informação verbal).

Sua atuação não se resume às vilas e comunidades da Região Metropolitana

de Belo Horizonte, mas também a outros municípios de Minas Gerais, como, por

exemplo, na região do Vale do Jequitinhonha. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE

MINAS GERAIS, 2009).

5 Entrevista concedida no dia 20/10/2009 na Faculdade Mineira de Direito

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O programa Pólos de Cidadania atua de acordo com três marcos teóricos -

cidadania, subjetividade e emancipação. Para conceituá-los, serão utilizadas as

próprias definições do programa.

“Cidadania é a democratização de relações para sustentação da diversidade

étnica, religiosa, de gênero, sócio-econômica ou de qualquer outro tipo. A cidadania

pode ser construída e realizada em espaços domésticos, produtivos e político-

comunitários.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Nesta concepção o exercício da cidadania depende da capacidade de

organização e de mobilização dos sujeitos e que por meio desta sejam capaz de

transformar a sua realidade em vez de serem apenas público-alvo de ações de

assistência.

Toda essa experiência tem evidenciado a noção de cidadania como algo a ser produzido – nas situações concretas de vida dos sujeitos e suas circunstâncias históricas, em que as várias formas de exclusão e de opressão são desveladas – mas, ainda, como algo passível de ser reproduzido – uma idéia de cidadania que não é apenas inclusiva, mas expansiva. (SIMEONE, 2005).

Partindo do pressuposto da cidadania como um aprendizado para os sujeitos,

assume a Universidade o papel de aproximar dessa realidade cotidiana o saber nela

e por ela produzido. Não como algo a ser dado a esses sujeitos, sequer tomando-os

como objetos, mas construído na interação com eles. “Isso torna esses projetos um

verdadeiro desafio de fala e de escuta assumido por pesquisadores e estudantes,

uma instigante aventura de produção coletiva de saberes. Assim como a cidadania,

o conhecimento não é algo pronto – é também uma possibilidade”. (SIMEONE,

2005).

A subjetividade é definida como “a capacidade de autocompreensão e de

responsabilidade do indivíduo, que demonstre competência criativa que permita a

expressão de uma personalidade autônoma e crítica frente aos grupos sociais.”

(UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Já por emancipação entende-se a “capacidade de permanente de reavaliação

ou rompimento com as estruturas opressoras (sociais, políticas, culturais e

econômicas), com o propósito de ampliação das condições jurídico-democráticas de

sua comunidade e de aprofundamento da organização e do associativismo.”

(UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

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A metodologia do Pólos se fundamenta no relacionamento permanente entre

investigações e atuação social, com entrecruzamento e retro-alimentação de seus

resultados.

A característica marcante dessa metodologia é o envolvimento ativo da própria comunidade em uma atuação interativa e emancipadora. Dessa forma, a pesquisa passa a ser um elemento de transformação e os integrantes das comunidades sujeitos ativos e não meros destinatários de ações externas. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Três metodologias diferentes e interconectadas constituem a base das ações

do Pólos. São elas a metodologia constituição de capital social, de mediação e da

pesquisa-ação.

5.3.1 Metodologias do Pólos de cidadania

5.3.1.1 Metodologia capital social e mediação

“Capital social pode ser definido como o conjunto de normas, instituições e

organizações que promovem a confiança e a cooperação entre as pessoas, as

comunidades e a sociedade em seu conjunto.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE

MINAS GERAIS, 2009). A metodologia do capital social permite,

criar e aprimorar as relações de solidariedade e de confiabilidade entre os indivíduos, grupos e coletivos e aprimorar a capacidade de mobilização e de organização comunitárias, traduzindo um senso de responsabilidade da própria população sobre seus rumos e sobre a inserção de cada um no todo. Estes elementos subjetivos manifestam-se em ganhos concretos sobre a resolução de seus problemas, por possibilitarem maior acesso aos direitos e conseqüente melhoria da qualidade de vida e de bem-estar. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Já a metodologia de mediação utilizada pelo Programa Pólos objetiva

solucionar conflitos recorrentes nas comunidades onde o programa está presente,

aumentando a efetividade de suas ações e às demandas e necessidades da

população por maior harmonia e estabilidade de convivência.

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A conexão entre a metodologia capital social e mediação é indispensável para

as ações do programa, pois,

as equipes voltadas para as ações de mediação, atuam através de atendimentos realizados no interior de um núcleo localizado em uma comunidade, e uma outra frente composta por equipes de expansão de atividades, que trabalha externamente e em conexão com a rede social mista existente na comunidade e se dedica às ações de constituição e incremento de capital social. Uma completa a ação da outra. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

5.3.1.2 A metodologia de pesquisa-ação

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é

concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de

um problema coletivo e na qual os pesquisadores e os participantes representativos

da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Tem por pressuposto que os sujeitos que nela se envolvem compõem um grupo com

objetivos e metas comuns, interessados em um problema que emerge num dado

contexto no qual atuam desempenhando papéis diversos. (THIOLLENT, 2002).

Ao optar por trabalhar com pesquisa-ação, por certo tem-se a convicção de

que pesquisa e ação devem caminhar juntas quando se pretende a transformação

da prática. No entanto, a direção, o sentido e a intencionalidade dessa

transformação serão o eixo da caracterização da abordagem da pesquisa-ação.

(FRANCO, 2005).

Boaventura Santos Sousa conceitua pesquisa-ação como:

A pesquisa-ação consiste na definição e execução participativa de projetos de pesquisa, envolvendo as comunidades e organizações sociais populares a braços com problemas cuja solução pode beneficiar dos resultados da pesquisa. Os interesses sociais são articulados com os interesses científicos dos pesquisadores e a produção do conhecimento científico ocorre assim estreitamente ligada à satisfação de necessidades dos grupos sociais que não têm poder para pôr o conhecimento técnico e especializado ao seu serviço pela via mercantil. (SANTOS, 2004, p.55).

Kincheloe citado por Franco (2005) afirma que a pesquisa ação, que é crítica,

não pretende apenas compreender ou descrever o mundo da prática, mas

transformá-lo. A condição para ser pesquisa-ação crítica é o mergulho na práxis do

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grupo social em estudo, do qual se extraem as perspectivas latentes, o oculto, o não

familiar que sustentam as práticas, sendo as mudanças negociadas e geridas no

coletivo.

O programa Pólos de cidadania ao adotar a metodologia de pesquisa-ação

entende que:

[...] deve haver uma constante conexão da teoria com a prática, estruturada por meio dos conceitos de cidadania, intercompreensão, estabilidade social e emancipação. [...] Assim, trata-se de uma linha metodológica qualitativa que se realiza através da atuação coletiva, ou seja, deve-se priorizar ações, discussões e decisões de equipe – especialmente da rede social comunitária – utilizando-se do controle metodológico da intersubjetividade e da interdisciplinaridade. Os resultados devem ser processados nas comunidades e por elas mesmas, formando um círculo virtuoso de revisão de práticas sociais, de mobilização e de organização popular que favorece a cidadania. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Conclui-se, portanto, que o conhecimento construído é socializado. O sujeito

coletivo não é apenas objeto de pesquisa, mas sujeito de ação capaz de

acompanhar e, ao mesmo tempo, transformar a realidade.

5.3.2 Os projetos do programa Pólos de cidadania

O Programa Pólos de Cidadania é constituído por projetos orientados por

eixos temáticos, que podem ser renovados ou recriados de acordo com demandas

de interesse público formuladas diretamente por comunidades ou instituições

parceiras.

Atualmente, o Programa desenvolve seis projetos: Vale de Cidadania, Saia da

Rua; Trupe A Torto e a Direito; Vila Acaba Mundo; Escola que Protege e Núcleo de

Mediação e Cidadania.

O projeto Vale de Cidadania tem como objetivo a criação e o monitoramento

de associações de geração de trabalho e renda em municípios do Médio Vale

Jequitinhonha. Voltado para o fortalecimento de grupos de mulheres e jovens, o

Mosaico baseia todas as suas atividades no princípio da inclusão produtiva nos

marcos da economia popular solidária, com o intuito de reduzir os índices de

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pobreza e de riscos sociais nas áreas em que atua. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE

MINAS GERAIS, 2009).

Foi desenvolvido a partir do Projeto Criança e Adolescente em Situação de

Risco: Geração de Renda como Alternativa de Prevenção à Exploração Sexual

(Projeto 18 de Maio), executado também pelo Programa Pólos de Cidadania. Nesse

projeto, realizaram-se pesquisas diagnósticas sobre o problema da exploração

sexual infanto-juvenil e sobre as condições sócio-econômicas de alguns municípios

do Médio Vale Jequitinhonha, como Araçuaí, Comercinho, Medina, Itaobim, Padre

Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa. A partir desses dados, o projeto

estruturou ações voltadas para a prevenção da exploração sexual como campanhas

de mobilização, apresentações teatrais, distribuição de materiais informativos e

constituição de associações de confecção artesanal voltadas para a geração de

renda e inclusão social. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Figura 4: Produtos da Associação Bela Vista, de Padre Paraíso Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais (2009).

O projeto Saia da Rua tem como objetivo a realização de diagnósticos de

perfis sócio-culturais e econômicos de grupos de jovens e mulheres com histórico de

violência e exclusão para a constituição de cooperativas de geração de renda. Sua

ação é focada em moradoras e trabalhadoras de rua da região metropolitana de

Belo Horizonte.

O projeto Vila Acaba Mundo atua diretamente em defesa da regularização

fundiária da Vila Acaba Mundo, uma pequena comunidade situada na região centro

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sul de Belo Horizonte entre os bairros Sion, Mangabeiras e Belvedere, uma das

regiões com o metro quadrado mais caro da cidade.

Ocupada há quase meio século, inicialmente por trabalhadores das grandes

mineradoras que exploram a região, a Vila é uma comunidade com histórico de

exclusão e vulnerabilidade social. Além disso, ocupa irregularmente uma área nobre

da cidade e, portanto, alvo de grande especulação imobiliária. Sua população tem

acesso restrito a direitos básicos como saneamento, energia elétrica, educação de

qualidade e transporte regular, apresentando assim altos níveis de vulnerabilidade

social, analfabetismo e desemprego.

Figura 5: Vila Acaba Mundo, na região Sul de Belo Horizonte

Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais (2009).

O projeto visa a promoção de ações de mobilização para a efetivação do

processo de regularização fundiária, além de fomentar e capacitar grupos produtivos

locais. As atividades são formuladas de acordo com as demandas apontadas pelas

lideranças comunitárias e identificadas por diagnósticos realizados na própria vila,

As ações propostas pelo projeto são interdependentes e construídas junto

com a comunidade de acordo com a metodologia adotada pelo programa Pólos. Seu

objetivo é a emancipação dos indivíduos e da comunidade, o fortalecimento da

cidadania e o incremento do capital social local. Dessa forma, os moradores da vila

se tornam sujeitos ativos na transformação de sua própria realidade e não meros

receptores de ações externas.

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O projeto Vila Acaba Mundo também tem como objetivo incentivar a criação

de grupos de geração de renda para promover a inclusão social e a melhoria da

qualidade de vida da comunidade. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS,

2009).

A Trupe A Torto e a Direito é um grupo de teatro de rua que utiliza a

linguagem teatral como forma alternativa de mobilização social. O objetivo do projeto

é usar a diversão para educar a comunidade, ajudando-a a refletir sobre sua própria

realidade, presente no espetáculo, mas que muitas vezes passa despercebida no

dia-a-dia.

Todos os espetáculos são fundamentados em técnicas de teatro popular de

rua e são exibidos em espaços comunitários como calçadas, praças, salões

paroquiais e associações de bairro. Após as apresentações, sempre há um debate

reflexivo entre atores e expectadores acerca do tema abordado na peça e sobre os

direitos humanos e fundamentais. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS,

2008).

Figura 6 : Trupe A torto e a Direito

Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais (2009). O projeto Escola que Protege tem como objetivo qualificar professores da

rede pública municipal de ensino para compreender e atuar de maneira adequada,

eficaz e responsável diante das situações de violências sofridas pelos alunos.

Atualmente, o projeto promove a capacitação de 20 formadores e, com a

colaboração desses, de outros 420 educadores e 180 componentes da rede de

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proteção da criança e do adolescente nos municípios de Betim, Contagem, Itaobim,

Nova Lima e Teófilo Otoni. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

O Núcleo de Mediação e Cidadania (NMC) é o mais antigo projeto do

Programa Pólos de Cidadania, atende a população dos aglomerados dos bairros

Santa Lúcia e Serra, na Região Centro-Sul, e do Jardim Felicidade, no Norte da

capital mineira. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009), atua em

equipes interdisciplinares formadas por profissionais e estagiários de Direito,

Psicologia, Serviço Social, Ciências Sociais e Comunicação Social.

Os Núcleos de Mediação e Cidadania estão instalados em comunidades e trabalham sempre com dois tipos de equipes, formadas por profissionais e estagiários. Uma delas faz atendimentos individuais na sede do Núcleo, que, normalmente, abriga outros projetos públicos ou comunitários, e é integrada por um advogado, um psicólogo e um profissional de serviço social. “As pessoas sempre chegam procurando pelo advogado, mas o atendimento nunca é realizado apenas sob o ponto de vista do Direito, mas, sim, de acordo com a percepção dos profissionais sobre o problema ”, explica Sielen Barreto Caldas, subcoordenadora do Programa Pólos de Cidadania. (DIVERSAS, 2005).

Os NMCs utilizam a mediação como uma forma de resolução extrajudicial de

conflitos, com o objetivo final não só de solucioná-los mas também de desobstruir as

esferas judiciais. Basicamente, a atuação dos NMCs é direcionada à criação de

mecanismos que favoreçam a participação dos envolvidos no processo de resolução

dos seus conflitos, fazendo com que eles sejam também autores das soluções e

compreendam a noção de direito de cada um dos participantes.

A ação destes núcleos se assenta sob dois eixos: a mediação em

atendimento e a mediação comunitária. A primeira é voltada a indivíduos em conflito,

e se ocupa em receber os participantes e com eles por em marcha o processo da

mediação propriamente dito.

“O Núcleo é muito importante para nós, porque lá a gente é bem tratado e as coisas se resolvem”, diz a faxineira Iara de Souza Amaral, de 56 anos. Moradora no Aglomerado Santa Lúcia, há dois anos, ela procurou o Núcleo, atrás de advogados. “Estava vendendo uma casa lá no Palmital e eles me ajudaram. Não tive de entrar na Justiça. A gente fez tudo amigavelmente e dona que comprou me pagou direitinho, não tive nenhum problema”, conta. A venda de uma casa foi, igualmente, o motivo que levou Marlene Nazário de Oliveira a procurar o Núcleo. Ex-vizinha de Iara, ela acha que a solução “não podia ser melhor”, porque o negócio que fez com uma proprietária em Santa Luzia, na Região Metropolitana, não lhe deu dor de cabeça. “Troquei de casa e fiquei mais de um ano indo lá no Núcleo. Todo mês, a dona

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pagava na frente do advogado. Os recibos, os papéis, tudo foi resolvido no Núcleo. Eu adorei o jeito de eles me atenderem”, afirma. (DIVERSA, 2005).

Já a mediação comunitária é responsável por realizar a interlocução entre o

núcleo e os grupos organizados da comunidade, na tentativa de coletivizar as

demandas passíveis de serem coletivizadas. Assim, questões individuais levadas

aos Núcleos de Mediação ganham um caráter comunitário, envolvendo novos e

diversos sujeitos de direito. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

O aluno do 10º período de Direito David Francisco Lopes Gomes há 18 meses

faz estágio no Programa Pólos de Cidadania, mais especificamente no Projeto do

NMC Santa Lúcia. Ele acredita ser uma oportunidade ímpar de aliar a prática à

teoria. Revela, ainda que muitos colegas não conseguem enxergar a aplicação do

Direito no Pólos, esta postura advêm da concepção da Universidade como único

local do saber, argumenta: “Há saberes distintos, que se fundamentam de formas

distintas. Aprendemos muito com o diálogo com o chefe do congado, apesar de não

deixar de ser um choque de cultura”. (informação verbal).

Como exemplo a experiência do Núcleo de Mediação e Cidadania do

Aglomerado da Serra: o curso “Meu Direito ao Trabalho e à Justiça Cidadã”. Trata-

se de uma parceria entre o Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito

da UFMG e a Associação dos Magistrados do Trabalho (AMATRA).

Por meio de um diagnóstico realizado pela equipe, confirmou-se a crescente

demanda da comunidade acerca de noções sobre o direito do trabalho e

previdenciário. Ao considerar que o trabalho tem grande valor na constituição da

subjetividade e na consolidação da dignidade, o curso foi pensado também como

instrumento para a emancipação e conseqüente democratização do acesso à

justiça, a partir da construção de conhecimento crítico. (UNIVERSIDADE FEDERAL

DE MINAS GERAIS, 2009).

O objetivo do curso foi demonstrar que por meio do conhecimento do Direito é

possível emancipar cidadãos de uma comunidade, assim como torná-los

multiplicadores de saberes. Além disso, buscou-se capacitar a população, a partir de

14 anos, e jovens adultos em noções básicas de direito do trabalho e previdenciário

e das formas de acesso ao Poder Judiciário.

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Figura 7: Banner produzido pela equipe dos Núcleos de Mediação e Cidadania do aglomerado da Serra.

Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais (2009).

Outro exemplo bem sucedido da atuação do NMC foi o processo de

desapropriação da Vila Estrela uma das vilas que compõem o Aglomerado Santa

Lúcia (ASL), com população estimada em 4000 habitantes e que faz divisa com os

bairros São Pedro e Santo Antônio para construção do Parque Ecológico Santo

Antônio, obra aprovada no Orçamento Participativo de 2006.

A comunidade estava carente de informações, não se sabia qual seria a área

abrangida pelo Parque, quais as famílias estariam sujeitas à desapropriação,

tampouco quando começariam as obras.

A equipe, em conjunto com representantes da comunidade, procurou obter informações jurídicas e dados do Poder Público sobre o que poderia ser feito para o replanejamento da construção. A partir dos levantamentos realizados, pensou-se em apresentar uma ação civil pública que tivesse como fundamento a existência de um patrimônio histórico-cultural na Vila. Ao mesmo tempo, prosseguiram-se as tentativas de negociação junto à Prefeitura. (NICÁCIO et al, 2008).

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O objetivo da equipe era demonstrar que intervenções públicas, muitas vezes,

interferem sobre direitos essenciais, tais como o de moradia, e desestabilizam

relações de vizinhança e convivência em comunidades periféricas.

No intuito de estruturar a ação civil pública, iniciou-se um processo de resgate

de memória coletiva a partir da coleta de fotos, documentos, relatos de “causos” e

eventos. Também foi contatado o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria

Pública de Minas Gerais, parceiro do Programa Pólos, a fim de que os moradores

pudessem ter acesso à assistência judiciária.

Durante todo o processo, o Pólos atuou de forma a organizar e mobilizar o

grupo junto a outros parceiros, mediando diálogos entre os moradores e entre estes

e o Poder Público. Algumas características foram notadas no grupo, como a

descrença na Justiça e na capacidade de reivindicação de direitos, o que dificultava

a mobilização e a resolução do problema.

À medida que as negociações com a prefeitura foram apresentando resultados, afastou-se a possibilidade de se ajuizar a ação civil pública. Por meio dessas negociações, com o apoio da Defensoria Pública e do Programa Pólos, as famílias que desejavam sair do local foram indenizadas e, as que desejavam ficar, permaneceram. A área do Parque foi diminuída, de forma a não afetar os moradores que não queriam deixar o local. . (NICÁCIO et al, 2008).

A atuação do NMC e assim como todos os projetos do Pólos de Cidadania e

do Direito Achado na Rua nos remete a um novo olhar sobre a função e o fazer da

Universidade nas sociedade contemporâneas. Historicamente a universidade como

instituição é o lócus formal da produção do conhecimento. No entanto, Boaventura

de Sousa Santos adverte que o conhecimento científico produzido pela universidade

não é o único e é imprescindível esta esteja preparada para se abrir às práticas

sociais:

A ecologia dos saberes é a extensão universitária ao contrário. O conhecimento científico tem de saber dialogar com outros conhecimentos que estão presentes nas práticas sociais e, assim, trazê-los para dentro da universidade. O que significa, eventualmente, que os alunos da universidade terão contato com líderes comunitários, que, hoje, não são credenciados para ensinar na Academia, mas, provavelmente, podem trazer a ela sua experiência. É isso exatamente o que faço, na minha experiência como sociólogo, como lema da minha vida profissional. É integrar as grandes teorias epistemológicas, abstratas, às práticas concretas. (SANTOS, 2005).

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Reconhecendo as práticas sociais e a pluralidade do conhecimento o

programa Pólos de Cidadania e Direito Achado na Rua, se efetiva através da leitura

e análise de outros sinais e símbolos; de outros gestos e olhares; de outras histórias

contadas e recontadas; de outros pontos de vistas. De outros arquivos que possam

ser desvelados a partir de outras perguntas, de uma outra maneira de reordenar as

perguntas, relativizando o campo da objetividade do que se sabe e se conhece com

a subjetividade do que se quer conhecer e de quem se propõe a conhecer.

Professores, estudantes, profissionais e comunidade estimulam em suas ações, a

compreensão de direitos e deveres, no sentido da ampliação das condições jurídico-

democráticas e de organização, visando a uma inclusão efetiva.

5.4 Libertas: um programa em defesa da cidadania

O Programa Libertas é uma iniciativa do Centro de Extensão da Faculdade de

Direito Milton Campos e atua como grupo de pesquisa e extensão universitária para

produção de diagnósticos sociais e jurídicos para a comunidade de Nova Lima.

Tem como finalidade cumprir o dever da instituição para com a comunidade

em que está inserido, no caso, a população novalimense. Com isto, o programa

reafirma sua convicção de que a faculdade não é apenas um lugar onde se formam

profissionais liberais, mas também um centro de pesquisa a serviço da comunidade.

“No caso específico do Direito, estar a serviço da comunidade significa o

desenvolvimento de pesquisas sobre a efetivação dos direitos humanos e o

desenvolvimento da cidadania, em busca de uma sociedade mais solidária e

emancipada.” (CHAVES, 2007, p.5).

O primeiro encontro relacionado à idéia do Programa Libertas ocorreu em fins

de 2005, a partir de palestra do professor Herman Nebias Barreto, durante a I

Semana de Iniciação Científica da Milton Campos.

A discussão se deu em torno de quais caminhos poderiam ser tomados por aqueles que se importavam com o compromisso da instituição com a pesquisa aplicada à realidade social, com a comunidade que a cerca e com a efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana. (CHAVES, 2007, p.5).

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Já no início de 2006, esse grupo se reuniu em seminário sobre pesquisa,

extensão e direitos fundamentais e ouviu palestra da professora Miracy Gustin sobre

o programa Pólos, da UFMG. Nascia ali o embrião do Libertas, cujo estatuto seria

reconhecido logo depois pela direção da FDMC.

Em outubro de 2006, foi firmado convênio com a Prefeitura de Nova Lima,

regulando os termos de cooperação entre as duas instituições. A primeira ação

solicitada pela Prefeitura foi o mapeamento do terceiro setor e a construção da Rede

Sócio-Assistencial do Município, destinados a subsidiar os trabalhos da Secretaria

de Ação Social e da própria Prefeitura.

Pelo lado do Libertas, o convênio abriu a chance de ele se legitimar frente à sociedade, para cumprir seus objetivos de gerar emancipação social e estudar a práxis das relações jurídicas locais para, a partir delas, erigir diagnósticos científicos capazes de contribuir para o crescimento e a efetivação do estado democrático de direito, compromisso da Milton Campos como instituição de ensino de direito. (CHAVES, 2007, p.5)

O Libertas tem como objetivo a emancipação social, garantias de direitos

fundamentais, construção de cidadania participativa e defesa do Estado

Democrático de Direito. Do ponto de vista acadêmico objetiva formar pesquisadores

críticos habilitados a compreender o direito e as práticas sociais de forma integral e

crítica. Neste sentido:

O Projeto Libertas justifica-se por meio de várias perspectivas. Inicialmente, do ponto de vista acadêmico, ele pretende formar um pesquisador-extensionista que funcione, na comunidade acadêmica, como um contraponto à mentalidade jurista praxista e imune a considerações éticas que treina o operador do direito para ignorar ou distorcer a finalidade legal em função do êxito. (GONTIJO, 2007, p.3).

Trata-se, pois, de um projeto, que será viabilizado pela atividade de pesquisa

e extensão acadêmica com a finalidade de produzir diagnósticos e arquitetar planos

de ação em parceria ativa com os próprios grupos e entidades comunitárias. Há, em

cumprimento da práxis das pesquisas jurídicas – pois o direito é uma ciência social

aplicada -, a delimitação pela territorialidade do município de Nova Lima, uma

realidade determinada e detentora de identidade e história peculiar. “A comunidade

urbana de Nova Lima sedimenta “meio social” para pesquisa aplicada, onde pode-se

compreender, aprender, compartilhar e criticar a realidade de que se cerca.”.

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Figura 8: Libertas

Fonte: Jornal Milton Campos (2007)

Vale também ressaltar a proposta interdisciplinar do projeto e a perspectiva

de firmar convênio com instituições públicas e privadas, sempre com olhar na

pesquisa:

O projeto Libertas pretende alargar os campos da pe squisa jurídica, assumindo inicialmente um caráter teórico interdisc iplinar e, num segundo momento, mediante convênios com outras inst ituições públicas e privadas e também parcerias com o Núcleo de Assistência Judiciária da Faculdade de Direito Milton Campos, u m caráter extensionista. Interdisciplinar, pois vai além do e studo dogmático das normas em vigor e incorpora abordagens sociológicas , filosóficas, históricas, antropológicas e psicanalíticas. ( FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS, 2008).

O Libertas incorporou ao seu trabalho a Faculdade de Administração, por

meio de um plano de atuação conjunta e de complementaridade entre direito e

administração, assim como também conta com a atuação do Mestrado em Direito

Empresarial da Faculdade Milton Campos que acompanha e monitora as pesquisas.

Em 2008 o projeto trabalhava com 9 sub-linhas de pesquisa, a saber:

1) O papel da pragmática lingüística na fundamentação racional de

normas de ação;

2) Foucault, Direito e a Parresia;

3) Direito e psicanálise;

4) Direito e cultura: reflexões críticas sobre o direito autoral;

5) Formação da Clínica de Direito Ambiental;

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6) O papel do direito na solução democrática de conflitos internacionais;

7) História crítica do Direito: análise genealógica dos discursos e práticas

de exclusão e marginalização dos diferentes no Brasil;

8) Desafios contemporâneos ao modelo clássico do Direito Administrativo:

capacitação para a ação extensionista junto ao terceiro setor de Nova Lima;

9) Integração de interesses na gestão dos recursos hídricos através dos

subcomitês de bacia hidrográfica: mediação e capacitação. (FACULDADE

MILTON CAMPOS, 2008).

O plano de metodologias adotado pelo Projeto Libertas procura conciliar a

fundamentação teórica com a experiência de campo, ou seja, concatenar teoria e

prática.

O Projeto faz-se inovador porque rompe com os métod os tradicionais de pesquisa, que tiveram a sociedade como mero “obj eto” de suas observações, ao manter a deficiente postura metodol ógica “sujeito / objeto”. A partida metodológica, aqui, alinha-se às teorias comunicativas, participativas e emancipatórias que buscam reconhecer o outro como sujeito co-participativo de seu próprio diagnóstico e, deste modo, coordenar a pesquisa e a extensão acadêmicas em prol de uma descolonização solidária. (FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS, 2008).

A atuação do Projeto Libertas consiste na elaboração de uma estrutura de

ação com produção de diagnósticos e a conseqüente elaboração de planos de ação

em parceria ativa e incondicional com os próprios grupos e entidades comunitárias.

Sua finalidade acadêmica, por outro lado, consiste na formação de um operador do direito que reconheça e compreenda a lacuna existente entre a normatividade jurídica formalmente vigente e a própria percepção da normatividade por parte dos destinatários das normas jurídicas em comunidades em situação de risco social. (FACULDADE MILTON CAMPOS, 2009).

De acordo com Gontijo (2007) a elaboração do Projeto Libertas resultou da

percepção de duas perspectivas consideradas equivocadas no ensino e na pesquisa

em Direito.

A primeira consiste num ensino do Direito que não possibilita ao aluno travar contato com a experiência do Direito. Do reconhecimento desta insuficiência surgiu a pretensão de possibilitar, ao aluno pesquisador da graduação, o contato com a normatividade realmente incidente em certas comunidades, no caso, interpretar e generalizar as experiências na comunidade visando a produzir um conhecimento que possa ser utilizado

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em outras pesquisas ou ações dirigidas à consolidação da cidadania. (GONTIJO, 2007, p.2).

O Projeto Libertas pauta sua atuação no reconhecimento de que o

desenvolvimento da cidadania deve enraizar-se na própria comunidade. Utilizando a

metodologia da pesquisa-ação reconhece nos membros da comunidade pesquisada

como sujeitos de discurso. Eles são parceiros na produção do conhecimento e na

elaboração dos planos de ação, uma vez que estes visam, principalmente,

emancipá-los.

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6 EPÍLOGO

Após quase 200 anos de história do ensino jurídico no Brasil, o momento é de

se saber qual modelo de ensino se pretende, para quem e para quê. Se o Direito

nasceu burguês, para a construção de uma elite política, na sociedade brasileira

contemporânea cabe a ele o papel de “ferramenta” na efetivação do Estado

Democrático de Direito, preconizado na Constituição da República de 1988. É

chegada a hora de escolhas.

É preciso escolher entre as amarras de um ensino dogmático e positivista, de

conteúdo estéril e alheio a críticas de amplitude sócio-histórica, que estabelece

verdades irrefutáveis em contraponto com um ensino que objetiva a formação de

alunos autônomos, críticos, agentes de seu processo de conhecimento, que dialoga

com o mundo e a ele dá significado.

É preciso escolher entre subir o morro, ir ao encontro das comunidades,

compartilhar experiências, ciente da mão dupla que os saberes se efetivam, numa

práxis acadêmica mais democrática e cooperativa ou o enclausuramento imposto

pelas salas de aulas, com seus prédios pomposos.

É hora de romper com os métodos tradicionais de pesquisa (que fazem da

sociedade um mero “objeto” de suas observações) e alinha-se às teorias

comunicativas, participativas e emancipatórias que buscam reconhecer o outro como

sujeito co-participativo.

É hora de deslumbrar a sala de aula como espaço democrático que

oportunize a discussão, o questionamento da ordem jurídica imposta em favor dos

interesses de minorias, que possibilite ao aluno visualizar-se a si mesmo como um

componente ativo e cooperador do processo de ensino e aprendizagem.

É hora de reconhecer que ao futuro advogado, juiz, promotor, não basta

aprender Direito Tributário e Direito Empresarial, é preciso ir além, ampliar

horizontes e incluir na pauta curricular as disciplinas de ética, cidadania e direitos

humanos, que contribuem na formação do agente jurídico para a vida

È hora de ouvir os meninos do trapiche, os marginalizados, os quilombos, a

quem o direito desde sempre renegou acesso à justiça, num ato de resgate da

dignidade e cidadania.

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É hora de se conceber Direitos e Garantias fundamentais além de cláusulas

pétreas.

É hora de buscar alternativas que permita aos jovens acreditar na utopia da

construção de uma sociedade pautada na ética, no bem comum, de fazê-lo crer que

assim como a geração de 1968 eles são protagonistas da História.

É hora de reconhecer a pluralidade de direitos construída nas praças, nas

ruas, nas vilas, no mundo real.

É a hora de construir um Direito interventor, que promova significativas

mudanças sociais, e que possibilite ao aluno conhecer a verdadeira realidade social

e a própria Justiça.

É hora de acreditar no papel libertador do Direito.

Que este epílogo seja um pensar para novos começos.

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