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Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das outras gentes pantaneiras no Pantanal transfronteiriço João Batista Alves de Souza * Karoline Batista Gonçalves ** Resumo: Este trabalho apresenta um conjunto de reflexões acerca dos habitantes do Pantanal transfronteiriço (Bolívia, Brasil e Paraguai), que são classificados tradicionalmente, em quatro grupos: proprietários de terras, empregados das fazendas, empresários do ramo turístico e trabalhadores do turismo. No entanto, é latente a presença de outras gentes pantaneiras nesse ambiente. Assim, o presente trabalho busca identificar as outras gentes pantaneiras que habitam na sub-região do rio Paraguai e à fronteira que compreende o Pantanal. Para a obtenção dos dados optou-se pela pesquisa de campo nas comunidades ribeirinhas que vivem ao entorno das áreas protegidas e quilombolas, foram realizadas entrevistas com lideranças e moradores dessas comunidades. Além do mapeamento das comunidades através do uso de um Sistema de Posicionamento Global (GPS) foram coletados pontos com as coordenadas geográficas. Esses pontos foram extraídos do GPS e espacializados no programa ArcGIS 10.6, para a produção da cartografia das outras gentes pantaneiras. Constatamos a presença de um novo grupo de moradores na região pantaneira, formada pela resistência das comunidades ribeirinhas e quilombolas, para a qual os estudos realizados nessa região vem proporcionando pouca visibilidade. Palavras-chave: Gente pantaneira; Fronteira; Pantanal. Introdução A divisão do bioma Pantanal, está caracterizado em pelo menos seis mapeamentos, que estabelecem diferentes propostas de subdivisão da maior planície alagável do planeta, sendo que, a primeira divisão foi realizada em 1979 pela Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), através do estudo de desenvolvimento integrado da bacia do Alto Paraguai e publicado no relatório descrição física e recursos naturais, que dividiu a região em 15 sub-regiões e adotou critérios geomorfológico, hidrológico e fluviomorfologico. Em 1982, o Projeto RADAMBRASIL realizou a divisão de 13 sub-regiões pantaneiras, Franco & Pinheiro (1982), Alvarenga adotaram critérios * Instituto Federal de Mato Grosso do Sul - IFMS. Mestre em geografia pelo PPGG UFGD. [email protected] ** Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Mestre em geografia pelo PPGG - UFGD. [email protected]

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Page 1: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das outras gentes

pantaneiras no Pantanal transfronteiriço

João Batista Alves de Souza*

Karoline Batista Gonçalves **

Resumo:

Este trabalho apresenta um conjunto de reflexões acerca dos habitantes do Pantanal

transfronteiriço (Bolívia, Brasil e Paraguai), que são classificados tradicionalmente, em quatro

grupos: proprietários de terras, empregados das fazendas, empresários do ramo turístico e

trabalhadores do turismo. No entanto, é latente a presença de outras gentes pantaneiras nesse

ambiente. Assim, o presente trabalho busca identificar as outras gentes pantaneiras que habitam

na sub-região do rio Paraguai e à fronteira que compreende o Pantanal. Para a obtenção dos

dados optou-se pela pesquisa de campo nas comunidades ribeirinhas que vivem ao entorno das

áreas protegidas e quilombolas, foram realizadas entrevistas com lideranças e moradores

dessas comunidades. Além do mapeamento das comunidades através do uso de um Sistema

de Posicionamento Global (GPS) foram coletados pontos com as coordenadas geográficas.

Esses pontos foram extraídos do GPS e espacializados no programa ArcGIS 10.6, para a

produção da cartografia das outras gentes pantaneiras. Constatamos a presença de um novo

grupo de moradores na região pantaneira, formada pela resistência das comunidades ribeirinhas

e quilombolas, para a qual os estudos realizados nessa região vem proporcionando pouca

visibilidade.

Palavras-chave: Gente pantaneira; Fronteira; Pantanal.

Introdução

A divisão do bioma Pantanal, está caracterizado em pelo menos seis

mapeamentos, que estabelecem diferentes propostas de subdivisão da maior

planície alagável do planeta, sendo que, a primeira divisão foi realizada em 1979

pela Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO),

através do estudo de desenvolvimento integrado da bacia do Alto Paraguai e

publicado no relatório descrição física e recursos naturais, que dividiu a região

em 15 sub-regiões e adotou critérios geomorfológico, hidrológico e

fluviomorfologico. Em 1982, o Projeto RADAMBRASIL realizou a divisão de 13

sub-regiões pantaneiras, Franco & Pinheiro (1982), Alvarenga adotaram critérios

* Instituto Federal de Mato Grosso do Sul - IFMS. Mestre em geografia pelo PPGG – UFGD. [email protected] ** Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Mestre em geografia pelo PPGG - UFGD. [email protected]

Page 2: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

geomorfológicos e fatores morfogenéticos nessa divisão. No mesmo ano, Jorge

Adámoli no trabalho que discutiu o conceito de complexo do Pantanal, realizou

a divisão de 10 sub-regiões utilizando critérios fitogeográfico e hidrológico, sendo

essa classificação utilizada nesta análise, acompanhada da faixa de fronteira,

conforme mapa 1:

Mapa 1. Divisão das Sub-Regiões do Pantanal

Logo, observamos que o rio Paraguai e seus afluentes determinam o

fluxo hidrológico do Pantanal e caracterizam esse ambiente formando um grande

mosaico que permeia Brasil, Bolívia e Paraguai. Aziz Nacib Ab'Sáber (1988), ao

abordar o Pantanal Mato-Grossense e a teoria dos refúgios, ressalta que:

Na categoria de uma grande e relativamente complexa planície de coalescência detrítico-aluvial, o Pantanal Mato-Grossense inclui ecossistemas do domínio dos cerrados e ecossistemas do Chaco, além de componentes bióticos do Nordeste seco e da região periamazônica. Do ponto de vista fitogeográfico, trata-se de um velho "complexo" regional, que os mapeamentos de vegetação elaborados a partir de documentos de imagens de sensorialmente transformaram em um mosaico perfeitamente compreensível de organização natural do espaço, nada "complexo" (AB’SABER, 1988, p. 9).

Page 3: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

Segundo o autor, a complexa planície pantaneira abarca ecossistemas

do Cerrado brasileiro, do Bosque Seco Chiquitano boliviano e Chaco paraguaio,

além de possuir fatores bióticos do nordeste e da Amazônia. Após estudos e

mapeamentos desse bioma, foi possível entender que o complexo do Pantanal

se trata de uma compreensível organização natural do espaço. Em relação a

Bacia hidrográfica do rio Paraguai Ab’Saber (1988) caracteriza que:

As águas do paleoleque aluvial do Jauru-Paraguai estendem-se até aos "pantanais" da margem esquerda do rio de las Petas, pró-parte provindo da Bolívia, o qual para jusante, na linha de fronteiras, responde pela formação de uma série de grandes lagoas (Orion ou Providência, Uberaba e Guaíba). A persistência da influência dessas estruturas deposicionais, herdadas do Pleistoceno Superior, é tão grande que o próprio rio Paraguai forma uma espécie de arco, envolvendo a distância a borda sul do antigo leque e se aproximando das lagoas Uberaba e Guaíba, onde se localiza o complexo setor fluviolacustre, do qual o rio de las Petas é tributário (AB’SABER,1988, p.32).

É evidente o papel do Rio Paraguai na composição do complexo

Pantanal, percebemos que o ciclo das águas perpassa as fronteiras entre os

países que abrangem esse ambiente. O Pantanal Transfronteiriço se distribui

entre Bolívia, Brasil e Paraguai, no qual é gerenciado de maneira distinta por

cada um dos países abrangendo sujeitos e comunidades ribeirinhas distintas.

A análise do presente trabalho levará em consideração os sujeitos e

comunidades que vivem na faixa de fronteira dos países que abrangem esse

ambiente, conforme área apresentada no mapa1. É importante ressaltar, a

fronteira que perpassa esse ambiente assume um papel social de classificação,

onde cada Estado soberano gerencia sua área com práticas advindas de sua

legislação e seus aspectos históricos culturais. Por esse motivo, os sujeitos a

serem observados são aqueles que vivem interações e estabelecem relações

em uma área em que o limite é imposto apenas para as relações sociais e não

para os elementos da natureza.

No que tange a área do Pantanal em cada país, identificamos que o

Pantanal boliviano abarca parte do Departamento de Santa Cruz, nas províncias

de Germán Busch e San Matías; o Pantanal brasileiro, por sua vez se distribui

entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e por fim, o Pantanal

Page 4: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

paraguaio situado no Departamento do Alto Paraguay nas cidades de Carmelo

Peralta, Fuerte Olimpo e Bahía Negra.

Para a realização deste trabalho, nos pautamos numa reflexão

esclarecedora acerca da identificação das “gentes pantaneiras”, o que levou a

busca de dados através da pesquisa bibliográfica e de campo, fornecendo

elementos que permitiram identificar as gentes pantaneiras, e qual a proximidade

e relação de pertencimento que eles estabelecem com esse ambiente.

A realização das pesquisas de campo em distintas áreas do Pantanal,

foram fundamentais para identificar as gentes pantaneiras, sendo que esse

trabalho foi realizado nos seguintes lugares: na Bolívia, Parque Nacional

Otuquis, comunidade Chaleira Warnes; no Brasil, Parque Nacional do Pantanal

Mato-Grossense, comunidade Paraguai Mirim e nas comunidades quilombolas

localizados na sub-região Paraguai do Pantanal sul-mato-grossense; e no

Paraguai no Parque Nacional Rio Negro, na Estación y Reserva Biológica Três

Gigantes e na Bahía Negra.

Na primeira etapa foi realizada a pesquisa documental, através de um

levantamento de dados nas atas de criação das associações das comunidades

quilombolas, certificados de auto definição expedido pela Fundação Cultural

Palmares- FCP para as comunidades pesquisadas. Também foram analisadas

as legislações ambientais que dispõem sobre as áreas protegidas nos três

países, com o intuito de entender como o gerenciamento delas, influenciam na

vida das comunidades que vivem ao entorno destas.

Já na segunda etapa foram realizadas entrevistas com os seguintes

sujeitos: lideranças e membros das comunidades quilombolas, equipe do INCRA

do setor quilombola que atende a região de Corumbá. Somado a isso, foi

realizado uma “escuta ativa e metódica”3 com o analista do ICMBio responsável

pelo gerenciamento do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, agentes

das ONGs Instituto Homem Pantaneiro (Brasil), Lidema (Bolívia) e Guyra

Paraguay (Paraguai).

Ademais, foram realizadas entrevistas, com moradores das comunidades

3 Em concordância com Bourdieu (2007, p. 695) entende-se por “escuta ativa e metódica” aquela que se situa a meio termo entre a entrevista não-dirigida (aberta) e a semiestruturada (questionário fechado).

Page 5: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

que vivem ao entorno dessas áreas protegidas, guardaparques e comunidades

quilombolas, que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, e

responderam questionários de identificação das comunidades.

Após a realização das entrevistas e contatos com os moradores dessa

região, iniciamos a construção de uma cartografia das gentes pantaneiras, nesse

aspecto foi realizado o mapeamento do Pantanal Transfronteiriço (Bolívia, Brasil

e Paraguai), através de visitas técnicas, captação de imagens, inserção de dados

no Google Maps. Por meio do uso de um Sistema de Posicionamento Global

(GPS) foram coletados pontos com as coordenadas geográficas nas pesquisas

de campo em algumas comunidades. Esses pontos foram extraídos do GPS e

espacializados no Pantanal Transfronteiriço.

Utilizamos as bases de mapeamento das unidades territoriais do Brasil

e Mato Grosso do Sul elaborados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística), da SERNAP (Servicio Nacional de Áreas Protegidas) na Bolívia e da

SEAM (Secretaria del Ambiente) no Paraguai. A base hidrográfica utilizada foi

da ANA (Agência Nacional de Águas) para representação do rio Paraguai no

Bioma Pantanal e da SERNAP que forneceu a base hidrográfica do lado

boliviano. Com o banco de dados atualizado, foi produzido um mapa de

localização das gentes pantaneiras em parceria com o (LABGEO) Laboratório

de Geoprocessamento da UFGD, que detém a licença de uso do software

ArcGIS (ESRI, 2018).

A utilização dos dados obtido por meio desses procedimentos resultaram

na construção de uma cartografia das “gentes pantaneiras”, que poderá ser

visualizada com mais detalhes no mapa 2. Tendo em consideração tais

aspectos, pretendemos, a seguir dialogar com os elementos que possibilitam

entender como é construído o “ser pantaneiro”.

As gentes pantaneiras e suas territorialidades no Pantanal Transfronteiriço

Considerando os aspectos apresentados acerca da totalidade do

Pantanal Transfronteiriço constatamos que esse ambiente possui uma

localização estratégica, que apresenta reflexos de outros ambientes, e ao

mesmo tempo, abarca um conjunto de relações culturais, sociais e econômicas

Page 6: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

caracterizadas por cada país que o compõe. Nesse sentido, para identificar como

o referencial “ser pantaneiro” se forma nos sujeitos que vivem nesse ambiente é

necessário definir o que entendemos por território e territorialidade.

Em concordância com Raffestin (2015, p. 22) consideramos o território

como uma produção a partir do espaço constituindo o resultado de uma ação

conduzida por um ator que, ao apropriar-se do espaço o territorializa e projeta

um trabalho, adaptando as condições dadas as necessidades de uma

comunidade ou sociedade.

Entendemos a territorialidade, conforme Saquet (2011, p.77) como as

relações sociais, identidades, diferenças, apropriações do espaço geográfico,

intencionalidades e práticas espaciotemporais dos homens entre si e com a

natureza. Assim, os e vínculos que o sujeito cria com seu território revela sua

territorialidade. Desta forma, ao analisarmos as gentes pantaneiras identificamos

que os processos de socialização e sociabilidade influenciam na formação de

sua territorialidade.

Diante dessas definições para uma melhor visualização acerca de quem

são essas gentes pantaneiras, produzimos um mapa retratando a área do

Pantanal Transfronteiriço, e as gentes pantaneiras identificadas através das

vivências das pesquisas de campo em cada país, conforme o mapa a seguir:

Page 7: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

Mapa 02. Localização do Pantanal Transfronteiriço - Bolívia – Brasil – Paraguai e as gentes pantaneiras

Page 8: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

Em relação as comunidades quilombolas identificadas, dados da

Fundação Cultural Palmares (FCP) afirmam que no estado de Mato Grosso do

Sul existem vinte e duas comunidades quilombolas certificadas, sendo que na

região do Pantanal sul mato-grossense foram identificadas quatro comunidades,

no município de Aquidauana – MS localiza a comunidade Furnas dos Baianos

(cuja área encontra-se fora de nossa análise), enquanto no município de

Corumbá – MS localizam-se as comunidades quilombolas; Maria Theodora,

Ribeirinha Família Campos Correia e Ribeirinha Família Ozório.

Levando em consideração o Pantanal Transfronteiriço e a área de

abrangência da presente pesquisa caracterizada pela faixa de fronteira

apresentada conforme o mapa 2. Essa delimitação justifica os motivos pela qual

a comunidade quilombola de Aquidauana não foi considerada, pois localiza-se

fora dessa área de abrangência. A comunidade quilombola Maria Theodora

Gonçalves (ACTHEO) está localizada na área central da cidade de Corumbá. E

as comunidades quilombolas ribeirinhas, Família Campos Correia e Família

Ozório estão localizadas na margem direita do Rio Paraguai, numa área

periurbana4 de Corumbá.

De acordo com ata de criação da Comunidade Quilombola Ribeirinha

Família Ozório (AQUIRRIO), localizada nas margens do rio Paraguai, foi fundada

por Miguel Ozório, neto de escravos. A trajetória da família Ozório sempre esteve

ligada ao Rio Paraguai, desde a chegada da família no início da década de 1960,

na Ilha de Chané e Porto São Pedro, essa trajetória seguiu sempre o ciclo das

águas do Rio Paraguai, ou seja, nos períodos das cheias a família era obrigada

a mudar de lugar, alterando sua trajetória sempre de acordo com a densidade

de drenagem do Rio Paraguai.

A trajetória dessa comunidade está diretamente vinculada ao ciclo de

cheias que ocorreram no Rio Paraguai no século XX, de acordo com o

levantamento e estatística descritiva dos níveis hidrométricos do rio Paraguai

disponibilizados pela régua de Ladário através do Serviço de Sinalização Náutica

4 De acordo com Correlano (1998) no espaço periurbano existe três tipos de espaços: espaços naturais, espaços rurais e espaços urbanos. Ver mais em: Steinberg (2003) Entrena Durán (2003) que adotam o termo periurbanização.

Page 9: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

do Oeste (SSNO), as maiores cheias do rio Paraguai ocorreram em maio de

1905, quando o rio atingiu 6,62 metros, em 1988 o rio chegou a atingir 6,64

metros.

Os dados obtidos pelo SSNO, apontam que em 1974, ocorreu um cheia

que o nível do Rio Paraguai atingiu 5,46 metros, o que levou a família Ozório

mudar do Porto São Pedro, após perder as plantações e animais e deslocar-se,

para um território próximo à Ilha do Pescador, conforme imagem 1 do mapa 2,

onde permaneceu até 1981.

Desde o início da década de 1980, os descendentes de Miguel Ozório

sobrevivem da pesca e agricultura familiar cultivando hortaliças, frutas e legumes

nesse território. A comunidade luta pela titulação desse território e da gleba 2,

área localizada nas proximidades da Ilha do Pescador, consonante com a

imagem 1, do mapa 2. Além dessa luta a comunidade ribeirinha enfrenta um

problema que está diretamente ligado ao ciclo das águas, conforme aponta o

membro da comunidade:

Aqui o rio Paraguai tem muita fartura, apesar que para pescar precisamos ir cada vez mais longe. Temos a horta para o nosso sustento, produzimos de tudo aqui, mas quando as águas do rio começam a subir, temos que dar um jeito, tivemos que mudar o lugar da nossa horta, é bem longe daqui, é lá no assentamento, plantar lá fica mais caro, tem um custo, mas nós precisamos plantar, não tem outro jeito. Então numa parte do ano, plantamos aqui, e na outra parte lá, quando as águas começam a baixar voltamos para cá. Todo ano é assim, em janeiro vamos para o Paiolzinho, ou perdemos tudo (Jorge Ozório, liderança da

comunidade AQUIRRIO).

O rio Paraguai que influenciou a trajetória da família Ozório ao longo dos

últimos quarenta anos, ainda interfere diretamente no cotidiano da comunidade.

Observamos que o cultivo da horta na comunidade está organizado em dois

períodos; de janeiro a junho o cultivo é realizado num lote cedido no

assentamento Paiolzinho, distante 18 km da comunidade. De julho a dezembro

o cultivo de hortaliças é realizado na área periurbana, onde está localizado o

núcleo familiar da comunidade.

Conforme Galdino; Clarke (1997 p. 6), entre os meses de janeiro a junho

há maior ocorrência do pico de cheia do rio Paraguai, de acordo com os autores

Page 10: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

a régua de medição dos níveis do rio Paraguai, instalada no 6º Distrito Naval da

Marinha Brasileira, no município de Ladário-MS, é o principal referencial do

regime hidrológico dessa bacia hidrográfica, possibilitando até mesmo a

caracterização de um dado período como sendo de seca ou de cheia.

Diante dessa realidade a comunidade quilombola encontrou uma

maneira de resistir ao ciclo das águas do rio Paraguai. No entanto, os

pescadores dessa comunidade enfrentam a escassez do pescado, que a cada

ano tem diminuído significativamente. O mesmo ocorre com a Comunidade

Quilombola Ribeirinha Campos Correia (AQF2C), conforme imagem 3, da figura

2.

Segundo dados da ata de criação da comunidade quilombola Campos

Correia, essa comunidade foi fundada por Fermiana Campos nascida em

Cuiabá, casada com Teodoro Correia, nascido em Poconé no estado de Mato

Grosso, após o casamento eles trabalharam em várias fazenda da região

pantaneira, até meados da década de 1970, com o núcleo familiar composto por

6 filhos a família Campos Correia passou a ocupar uma região chamada Buracão

na área periurbana de Corumbá.

A comunidade quilombola ribeirinha Campos Correia sempre manteve

um vínculo de sobrevivência com o rio Paraguai, identificamos durante a

pesquisa de campo que a maioria dos descendentes de Fermiana Campos não

permaneceram no território tradicionalmente ocupado. A imagem 3 do mapa 2,

retrata os barcos abandonados em um porto improvisado entre um corricho e o

rio Paraguai. Como podemos observar no relato de um membro dessa

comunidade, que morando há mais de 30 anos no território assinala para o

distanciamento do lugar:

Estamos do lado do rio, sempre dependemos dele, mas com o passar dos anos, os peixes diminuíram, aí tivemos que buscar outros recursos. Da nossa família mesmo temos poucos pescadores e isqueiros, com barco a remo fica difícil, o pescado está cada vez mais longe, eu estou trabalhando lá na mineração, minha esposa continua pescando, mas está cada dia mais difícil. O rio continua o mesmo, mas os peixes se acabaram nessa

região (Paulo Correia, membro da comunidade AQF2C).

Page 11: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

De acordo com o membro da comunidade quilombola, uma das formas

de sobrevivência é não depender apenas da pesca, grande parte dos moradores

dessa comunidade iniciaram outros tipos de atividades, tais como: a diaristas, no

setor de metalurgia e trabalhos informais.

Nos últimos anos as atividades de pesca tem diminuído gradativamente,

com o aumento das práticas turísticas na região, está cada vez mais difícil para

os ribeirinhos terem acesso ao pescado. Identificamos que apesar das

dificuldades apresentas, seis membros da família Campos Correia são

pescadores profissionais e possuem carteira de pescaria profissional emitida

pelo Ministério da Pesca e Aquicultura - MPA.

Em relação as comunidades ribeirinhas que vivem no Pantanal, mais

precisamente ao entorno do Parque Nacional Mato-Grossense podemos

destacar os coletores de isca da comunidade Barra do São Lourenço conforme

figura 11, e a comunidade Paraguai Mirim como é possível observar na imagem

12 do mapa 02. Essas comunidades vivem da pesca e da coleta de iscas, que

posteriormente, são comercializados para aqueles que se dedicam a pesca

esportiva. Essas comunidades não possuem acesso por estradas, sendo o rio

Paraguai a principal fonte para garantir seu sustento e deslocamento.

Quanto ao Pantanal boliviano podemos elencar a imagem 10 do mapa 02,

que mostra a comunidade Chaleira Warnes localizada ao entorno do Parque

Nacional e ANMI Otuquis. Os moradores dessa comunidade além de terem uma

relação de proximidade com a área protegida, trabalham com atividades ligadas

a mineração no Cerro Mutún que também está localizado na área de entorno do

parque, ou trabalham com a pecuária em estâncias localizadas no interior da

área protegida. Durante as pesquisas de campo nas áreas protegidas do

Pantanal boliviano identificamos várias comunidades vivendo ao entorno dessas

áreas como é o caso do Parque Nacional e ANMI Otuquis, e outras que vivem

no interior como, por exemplo a ANMI San Matías que possui 26 comunidades

distribuídas por sua extensão.

No tocante ao Pantanal paraguaio observamos a presença da

comunidades indígena Ishir, conforme imagem 07 do mapa 02, que vivem em

uma área entre as cidades paraguaias de Fuerte Olimpo e Carmelo Peralta, e

possuem uma relação de uso e pertencimento com o rio Paraguai, isso porque

Page 12: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

seu deslocamento e necessidades básicas estão condicionadas aquilo que o rio

pode proporcionar. Na imagem 08 e 09 do mapa 02 verificamos as relações que

os moradores da Bahía Negra estabelecem como rio Paraguai. Essa cidade

abarca a o Parque Nacional do Rio Negro, e também tem seu acesso,

deslocamento e necessidades dependentes ao rio Paraguai. O acesso a Bahía

Negra, Fuerte Olimpo e Carmelo Peralta é feio através do serviço aéreo SETAM-

Servicio de Transporte Aéreo Militar ou por pequenas embarcações, do qual

destacamos o Aquidabán, que sai da cidade de Concepción via rio Paraguai

sempre as terças-feira chegando a Bahía Negra as sextas-feira levando

passageiros e mercadorias.

Portanto, ao observarmos os brasileiros, bolivianos e paraguaios que

habitam esse ambiente, identificamos que eles estabelecem uma relação direta

de dependência com ele e com o rio Paraguai. Porém, é válido destacar que

muitas vezes, os sujeitos que formam as pequenas comunidades no Pantanal

Transfronteiriço passam desapercebidos por aqueles que não analisam o

Pantanal em sua totalidade, e o termo “gente pantaneira” por muitos anos ficou

associado apenas aos que se dedicam a pecuária, ignorando aqueles que

também estabelecem uma relação de interação e dependência com este

ambiente.

Considerações finais

O presente trabalho apresenta uma série de reflexões acerca de quem

seriam os sujeitos que produzem a cartografia das “gentes pantaneiras” tal qual

foi identificado através das pesquisas de campo, sendo eles: quilombolas,

ribeirinhos, bolivianos e paraguaios.

Desta forma, os quilombolas que habitam a sub-região Paraguai do

Pantanal sul-mato-grossense, podem ser classificados em dois grupos: os

quilombolas ribeirinhos que se identificam como pantaneiros e os quilombolas

urbanos, cuja identidade está mais ligada ao “ser corumbaense”.

Quanto aos bolivianos, notamos que por um certo período não tinham

uma relação de proximidade com o Pantanal, e este era desconhecido ou

confundido com o Chaco. Essa relação de “ser pantaneiro” é recente, tendo em

Page 13: Entre o rio e a fronteira: as formas de resistência das

vista que por muitos anos essa condição estava ligada aqueles que se

dedicavam a lida com o gado.

Já os paraguaios não expressam esse referencial de “ser pantaneiro”,

até porque a região que abarca o Pantanal paraguaio é desprovida de

infraestrutura e políticas públicas. O referencial identitário está mais ligado ao

Chaco, ou seja, “ser chaqueño”, que “ser pantaneiro”.

Por fim, entendemos que tanto os quilombolas, ribeirinhos, bolivianos e

paraguaios pelas relações que estabelecem com esse ambiente, devem ser

considerados “gentes pantaneiras” porque suas vidas estão condicionadas as

dinâmicas e aos ciclos que esse ambiente determina, no entanto, o que

verificamos é que esse referencial é apenas atribuído a alguns grupos de

interesse.

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