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Soldados de Fronteira Henrique Silveira e Ivan Fávero Os homens que protegem a Amazônia brasileira...

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A rotina dos militares que atuam na faixa de fronteira da Amazônia brasileira com a Colômbia e a Venezuela é contada nesse livro reportagem.

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Soldados de Fronteira

Henrique Silveira e Ivan Fávero

Os homens que protegem a Amazônia brasileira...

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Henrique Silveira e Ivan Fávero

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“Se antes de morrer me fosse concedido o privilégio da derradeira viagem, voltaria ao

Rio Negro mais uma vez. Viajaria de Ma-naus, rio acima, até São Gabriel da Cacho-

eira e, se possível, mais longe, na direção da Colômbia. Quinze dias vendo o mundo refletir-se no espelho das águas escuras, o recorte verde da mata ciliar, os papagaios

ao alvorecer e as circunvoluções arrojadas das andorinhas todo final de tarde. Em São Gabriel, sentaria às margens da corredeira,

e perderia o olhar no contorno das mon-tanhas e da igreja dos padres salesianos,

contra o céu de nuvens brancas.”

Dráuzio Varella

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Sumário

Agradecimentos

Apresentação

1. Manaus- Porto de São Raimundo- Tanaka 17

2. A viagem 21

3. Alto Rio Negro

São Gabriel da Cachoeira Cidade mais indígena do Brasil As ilhas de São Gabriel Doenças e perigos da região A medicina e as crenças O alcoolismo A vida nas comunidades

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4. Forças armadas em São Gabriel

O 5º Batalhão e a 2ª Brigada Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Comando Militar da Amazônia Formação dos combatentes de selva Primeiras instruções Guerreiros de Selva Exército como oportunidade Operações na selva Estágio de Adaptação à Vida na Selva Médicos do exército Tenente Coronel Comandos Liderança pelo exemplo O acidente Episódio do Rio Traíra

5. As fronteiras

Companhia Especial de Fronteira (CEF) Plano de Apoio à Amazônia 1º Pelotão Especial de Fronteira 2º Pelotão Especial de Fronteira 3º Pelotão Especial de Fronteira 5º Pelotão Especial de Fronteira 6º Pelotão Especial de Fronteira 7º Pelotão Especial de Fronteira Tríplice fronteira Convivendo com o inimigo A vida no pelotão

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Agradecimentos

À Universidade Federal de Santa Catarina, ao Exército Brasileiro e aos nossos pais, irmãos, amigos, colegas e professores que ajudaram na realização do trabalho. Um agradecimento muito especial à professora Mônica Apareci-da Aguiar dos Santos, que nos colocou em contato com o exército através de sua insistência, perseverança e elegância. Aos membros da 2˚ Brigada de Infantaria de Selva: General Ivan Carlos Weber Rosas, Coronel Caminha, Coronel Fabiano, Major Men-donza e Major Pinheiro. Ao Tenente Coronel Marcos dos Santos França, por todo o apoio e paciência. A todo o estado-maior: Major Cauper, Major Dos Santos, Major Silva Amaral e Major Vier. Agradecemos a paciência e o companheirismo do Capitão Mon-teiro e sua esposa Bruna. Aos capitães de Companhia: Capitão Pessoa e Capitão Rulk, que muito nos informaram e ajudaram. Ao Capitão Paulo Santos, que nos recebeu em Cucuí, fazendo nos sentir em casa quando na verdade estavamos bem longe delas. Um agradecimento geral a todos, civis e militares que moram em Cucuí, pela receptividade e hospitalidade grandiosa. Agradecemos ao grande amigo Tenente Adrien e ao Capitão Al-ves pela confiança e prestatividade. Ao pessoal da Força Aérea Brasileira, Major Gonçalves, Tenente Campos, Tenente Amorim, Sub-oficial Trigo, Sub-oficial Robinson, Sar-

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gento Da Silva e Sargento Freire. Aos Tenentes do MFDV, Utta, Gonzáles, Palleta, Barreto, Ferrei-ra, Aécio e a todos os outros com quem convivemos de forma tão intensa durante a apuração dessa reportagem. Aos pesquisadores do INPA, pela ótima companhia durante a via-gem para São Gabriel. À tripulação da Bajará, cabo Waldemir, cabo Willian, cabo Ma-rksuel, cabo Alemão e Soldado Sabino. Agradecemos ao povo de São Gabriel da Cachoeira, que a todo momento se mostrou disposto a colaborar com nossa missão.

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Apresentação:

O livro “Soldados de Fronteira“ é fruto do trabalho de conclusão de curso realizado pelos alunos Henrique Silveira e Ivan Fávero como projeto final do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no primeiro semestre de 2009. O tema surgiu pela curiosidade e interesse dos estudantes na atu-ação do exército na faixa de fronteira do Brasil com a Colômbia e Ve-nezuela. Tendo em vista a relevância do tema na atualidade e levando em consideração a falta de material publicado sobre o assunto, os alunos sairam de Florianópolis e foram até a região conhecida como “Cabeça do Cachorro”, para participar das atividades realizadas pelos militares na borda noroeste do estado do Amazônas. “Soldados de Fronteira” conta um pouco das histórias abafadas pelos quilômetros de selva amazônica que separam a vida daquelas pes-soas da realidade do restante do Brasil. Através da convivência direta com os militares e do livre acesso às instalações do exército na região de São Gabriel da Cachoeira, os estu-dantes tiveram contato com histórias interessantes e exclusivas sobre os perigos, as dificuldades, as ambições e as alegrias vividas pelos homens que vigiam a porta de entrada do nosso país. Com apoio da Força Aérea Brasileira, puderam conhecer todos os Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs), que fazem parte do esquema de segurança montado pelo governo brasileiro para proteger a região. “Soldados de Fronteira” mostra, através de texto e fotos, uma rea-lidade ainda pouco comentada pelos principais veículos de comunicação

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nos grandes centros urbanos do país. Além disso, o livro descreve um pouco da viagem dos estudantes até a cidade mais indígena do Brasil e as belezas encontradas nos vários dias em que navegaram pelas águas do Alto Rio Negro. A experiência vivida pelos colegas com a realização desse projeto representou muito mais do que apenas a conclusão de um curso de gradu-ação. Representou o contato dos alunos com um Brasil até então conheci-do apenas através dos livros de História e Geografia. Um Brasil cheio de mistérios, crenças, línguas, etnias e, principalmente, repleto de histórias de vida e sere humanos vivendo de forma simples porém, digna.

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“Pegue o mapa do Brasil. Olhe para cima e para a es-querda, no extremo noroeste do estado do Amazonas. O contorno da fronteira com Venezuela e Colômbia

não desenha a cabeça de um cachorro? É essa a região do Alto Rio Negro, terra das Florestas mais preserva-das da Amazônia. Sobrevoa-las é viver o êxtase. Até onde a vista alcança, são 360 graus de mata virgem;

parece o mar”.

Dráuzio Varella

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CAPÍTULO 1 - MANAUS

Porto de São Raimundo – Tanaka

A vista aérea da cidade de Manaus é diferente da maioria das capitais brasileiras. A cidade surge em meio a uma extensa e esmaga-dora área verde contornada por rios caudalosos. De cima não se vê as palafitas, integrantes comuns da paisagem amazônica, já no porto de São Raimundo elas fazem parte do cenário. Localizado a poucos minutos do centro de Manaus, o “porto” é mais um barranco em que os barcos atracam do que propriamente um porto. Ali estão carregadores, vendedores e viajantes em um vaivém in-termitente. Um pequeno comércio ambulante se instala nas proximida-des. Comidas fritas, DVDs piratas, relógios e produtos falsificados são vendidos. Na entrada do porto, homens mal encarados, sem camisa, e com traços indígenas oferecem, por alguns trocados, orientações e ajuda com as malas. “-Vai pra São Gabriel?” é o que perguntam quando é sexta-feira. É sabido que esse é o dia da semana em que sai a maioria das embarcações para a cidade que fica a 1.146 quilômetros de Manaus por via fluvial. A viagem de ida para São Gabriel da Cachoeira é pelo Rio Negro, contra a sua correnteza. Ela pode demorar de quatro a oito dias, dependendo do período do ano. De setembro a março, quando o volume de água está mais baixo, surgem pedras e bancos de areia pelo percurso.

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A pouca visibilidade pode obrigar os timoneiros a parar a viagem durante a noite, procurar um refúgio na margem e esperar até o dia ama-nhecer para continuar. O barco Tanaka Neto IV faz a travessia de Manaus até São Ga-briel há 18 anos. Foi o precursor dos barcos de linha, que sobem e descem o rio transportando pessoas, mercadorias, alimentos e correspondências. Antônio Tanaka dos Santos, 48, iniciou seu empreendimento para levar cargas e mantimentos para os alojamentos de garimpeiros que ex-traiam ouro nas margens do Rio Negro, já próximo a cidade de São Ga-briel. Antes, possuía apenas o barco Tanaka, hoje sua frota é composta de duas balsas, dois barcos e uma lancha rápida. O número de funcionários também aumentou: 35 no total. Dentre eles, práticos de barco, carregadores, ajudantes, cozinheiros e responsá-veis pela limpeza nos barcos. O trabalho foi dividido com sua mulher, Maria de Jesus Souza dos Santos. Antônio quase nem aparece no porto de São Raimundo. Quem fica ali durante o embarque é Jesus. Baixinha, cabelo preso, de óculos e sem brinco, ela negocia o tempo todo. “-Isso vai pra onde meu filho?” Pergunta Jesus, para um senhor que lhe entrega dois grandes en-velopes pardos. O destino da encomenda poderia ser alguma das três cidades em que passa o Tanaka: Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro ou por fim São Gabriel da Cachoeira. O dono dos envelopes então responde: “-São Gabriel” “- Fica 40 reais”, cobra Jesus. Entrevista-lá, horas antes da saída dos barcos, na sexta-feira não é tarefa fácil. Seu celular estrila em intervalos curtíssimos. Alguém pergunta o horário que o barco vai chegar em determinado destino, outros pergun-tam quanto custa para enviar uma encomenda. Mas a grande maioria dos que pedem a atenção de Jesus são os vendedores. Eles enchem os porões dos barcos e o primeiro andar com caixas de frutas, isopores com peixes, latas de óleo, e tudo que mais couber na embarcação. Um acumulado de notas fiscais vai se formando na mesa de Jesus. A variedade é grande. Dentre elas uma está intitulada: “Intimidade Sleep

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Wear”.

Nem sempre os produtos embarcados são meros acessórios ou alimentos. Em 2001, a Polícia Federal apreendeu 7 toneladas de ametis-tas e 300 quilos de tantalita extraídos ilegalmente de terras indígenas e trazidos pelo Tanaka, até Manaus. Jesus pouco se lembra desse episódio em que o dono da carga acabara sendo detido. “Se tem nota fiscal a gente leva, agora se a nota é falsa não tem como a gente saber, né querido!” brinca Jesus com seu

Carregadores enchem os porões do barco Tanaka com mercadorias para os moradores do Alto Rio Negro.

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sotaque manauara esboçando um leve sorriso. Devido ao aumento do fluxo de pessoas e mercadorias nesses barcos, agentes da Capitania dos Portos, da Marinha do Brasil, realizam fiscalizações e inspeções rotineiramente. Para embarcar é necessário ter feito a reserva com antecedência e a apresentação de documentos, informando, entre outros, a data de nas-cimento. “Ninguém quer ficar a mercê de um foragido da polícia dias e dias dentro de um barco sem sinal de celular e sem possibilidades de comunicação”, garante um dos agentes da Capitania que fazia a revista no local. Mas a demora da viagem já não é mais a mesma, há três meses, a nova aquisição da família Tanaka diminuiu o tempo gasto para a traves-sia. Com três motores acoplados, a lancha-rápida consegue fazer o trecho Manaus - São Gabriel em 26 horas. Menos dias de percurso, menos alimentação para os passageiros, menos diárias pagas à tripulação. Resultado: cobra-se 300 reais pelas 26 horas de lancha enquanto de barco, dormindo em redes, e passando dias navegando sai por 240. Ainda assim é grande o fluxo de pessoas nos barcos, e nem sem-pre a lancha faz o trajeto. Jesus diz que por enquanto é de 15 em 15 dias, mas espera aumentar a freqüência dos roncos dos motores sobre as águas escuras do Rio Negro.

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CAPÍTULO 2

A Viagem

A lancha rápida é uma embarcação retangular que durante a na-vegação fica bem rente ao nível da água. Seu interior assemelha-se ao de um ônibus convencional: o motorista na frente, um corredor entre as duas fileiras de assento, poltronas estofadas dispostas lado a lado e banheiros no fundo. Uma minúscula cozinha é improvisada perto da proa. Dali fica mais fácil a capitação da água do rio, em pequenos baldes, utilizada para lavar a louça e cozinhar os alimentos servidos durante a viagem. A lotação máxima é de 120 passageiros, mas apenas 80 assentos estavam ocupados. No momento da partida, uma mãe chorava de dentro da lancha, acenando para seus dois filhos que se despediam a distância, do trapiche do porto de São Raimundo. Eles ficariam em Manaus para continuar os estudos. O motivo do pranto era porque ela sabia que de-moraria um bom tempo para rever os meninos. A distância e o preço da passagem dificulta as idas e vindas dos povos desta região. Sentada ao lado da mulher que chorava, uma pequena e tímida menina observava a cena da despedida. Franciene, de nove anos, também estava de partida, mas por outro motivo, estava voltando para a casa dos pais em São Gabriel. A menina havia passado suas férias escolares de fim de ano na casa dos tios em Manaus. Ela se assemelhava fisicamente com a mãe dos meninos. Ambas tinham a pele morena, traços frágeis, cabelos intensamente pretos e lisos. Eram descendentes da mesma etnia indígena, a Baré, e para qualquer desavisado que as observasse pensaria se tratar

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de mãe e filha. Mas antes da viagem, que agora se iniciava, elas nem ao menos se conheciam. Navegando pela Amazônia não se encontra apenas povos ribeiri-nhos, indígenas e caboclos. Algumas poltronas à frente, espremidos em meio a um grande isopor recheado de cerveja e refrigerantes, uma brasi-leira e seu marido texano conversavam em inglês. Casados há seis anos e de férias no Brasil, eles voltavam do car-naval de São Paulo e gastariam suas últimas semanas de turismo no mu-nicípio de Barcelos. O casal estava em busca dos peixes ornamentais existentes na cidade e nos rios da região. A brasileira conhecia bem o local por ser natural de Manaus, mas era a primeira vez que seu marido navegava por este isolado pedaço do Brasil. A entrada de estrangeiros em áreas amazônicas não é bem vista aos olhos de Ulysses Barbosa. Pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia (INPA) há 30 anos, Barbosa considera que o aumento do fluxo dos “gringos” em terras brasileiras não é, em sua maioria, por motivos inocentes. Segundo o pesquisador, a região vem sofrendo uma ação de ONGs e pessoas de outros países interessados no maior banco genético do mundo: a floresta amazônica. Não que os texanos de férias no Brasil estivessem necessariamen-te com outros interesses a não ser a pesca e o turismo como disseram, mas Barbosa é seguro de que deveria haver uma fiscalização mais rigo-rosa para estas pessoas. Barbosa e os outros quatro membros que compõem a equipe do INPA passarão uma semana capturando exemplares do inseto Díptera – Simuliidae, conhecido popularmente como Pium. Eles estão no rastro de uma doença ainda desconhecida no Brasil transmitida pelo mosquito nas comunidades ao redor de São Gabriel da Cachoeira. No final da tarde, depois de algumas horas dentro da embarcação, os passageiros começam a andar pelos corredores e sentar próximos uns dos outros, assim vários grupos de conversa se formam. Alguns com-pram latinhas de cerveja ou de refrigerante, que são vendidos na lancha. O freezer vira uma espécie de barzinho improvisado. É ali que Barbosa entra em uma conversa longa com Hamilton Gadelha, professor de filo-sofia em uma escola estadual de São Gabriel. Hamilton, que já fora prefeito da cidade, mencionava sua opinião

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sobre a situação em que se encontra a economia local. Segundo ele, a re-gião foi submetida a um “engessamento econômico” devido às criações de áreas de preservação ambiental, reservas biológicas e terras indígenas demarcadas. Praticamente 90% da área de São Gabriel da Cachoeira está den-tro das Terras Indígenas do Alto Rio Negro, Balaio, Médio Rio Negro I e II, de parte das terras Yanomamis, Rio Téa, e Marabitanas-Cué Cué, esta última, ainda em fase de demarcação. Além disso, ainda existem outras sobreposições territoriais como as Unidades de Conservação (Parque Na-cional do Pico da Neblina e Reserva Biológica do Morro dos Seis Lagos) e as Áreas de Prevenção Permante (APPs). No estado do Amazonas, as áreas protegidas por leis federais e estaduais, como parques e reservas florestais, equivalem ao dobro do ter-ritório de Portugal; cinco vezes maior que a Suíça e vinte vezes o tama-nho do Líbano. “- Se a lei não permite a exploração dos recursos naturais, a po-pulação fica sem emprego, sem renda e dignidade”, dizia Hamilton. Para o professor esta política conservacionista é a causa do au-mento do contrabando de minérios, tráfico de drogas e prostituição, re-correntes na região. Barbosa, na sua visão mais preservacionista, fruto dos anos como pesquisador e conhecedor da floresta amazônica discorda: “-É deixar explorar e logo isso aqui acaba. A população local não tem como competir com madeireiras, mineradoras e outras grandes empresas com noções de mercado. O que iria acontecer é que os produtos retirados da natureza pelos locais seriam vendidos a preços baixíssimos a estas empresas. Quem ganharia com isso?” retruca Barbosa. A conversa dos dois é esfriada pelo cheiro da sopa quente que exala do caldeirão da cozinha para toda a lancha. É ali que a fila se for-ma rapidamente, cada um com seu prato vazio em frente às panelas es-perando a vez de se servir. Depois do jantar, os ruídos das conversas diminuem. Com a chegada da noite, os passageiros se acomodam como podem nas desconfortáveis poltronas e dormem. A viagem prossegue por toda a madrugada. A ausência de luz não impede Neguinho de conduzir a lancha pelos meandros do Rio Negro. A escuridão nem sempre é total, a claridade emitida pela lua, mesmo em

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fases em que não está totalmente cheia, faz com que a silhueta da floresta ao redor se torne visível. Os olhos do navegador logo se acostumam com a pouca luminosidade. Quando a dificuldade aumenta, Neguinho liga por poucos segundos um farolete, situado acima do teto da lancha, para ob-servar se a embarcação está a uma distância segura das margens.

O navegador sobe e desce o Rio Negro há dez anos. Conhece bem os segredos e as manhas do segundo maior rio do mundo em volume de água - só perde para o próprio Amazonas, ao qual junto com o Rio Soli-mões ajuda a formar. Neguinho diz que já houve casos em que não conseguiu seguir viagem por causa de fortes tempestades. “- Quando chove muito não da de vê nada pela frente” exclama o navegador. O fluxo de água que passa pelos 1.700 quilômetros de leito do Rio Negro é maior do que o de todos os rios europeus reunidos. Mas este

Com a chegada da noite, apenas a silhueta da mata ao redor do barco continua visí-vel, exigindo habilidade do navegador.

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mar de água doce nem sempre oferece uma navegação tranqüila o ano todo. A variação entre o nível do rio no período da cheia e o no período da seca pode chegar a 12 metros. O medico e escritor Dráuzio Varella define da seguinte forma o cenário formado pelos distintos períodos:

“ Dessa diferença resultam paisagens incrivelmente diversas. Na cheia, o rio invade a floresta por muitos quilômetros. Com uma canoa pode-se remar no meio das árvores e penetrar a flo-resta submersa, entre os raios de sol que escapam do filtro das copas e incidem sobre a água escura.Na seca, surgem as praias e emergem ilhas de areia branca, às vezes tão fina que parece talco. Não fosse a marca da água no tronco das árvores, impossível lembrar que tanta beleza estives-se anteriormente submersa.”

No curso do Rio Negro existem mais de mil ilhas que formam os dois maiores arquipélagos fluviais do mundo: Anavilhanas, que fica há 100 quilômetros de Manaus e Mariuá, um pouco mais a frente, na região de Barcelos. Navegar por esta região requer conhecimento. Várias bifur-cações dificultam o trajeto e formam uma espécie de labirinto de águas, exigindo perícia do navegador. Neguinho tem o mapa na cabeça, escolhe calmamente os rumos e direções em que a lancha deve seguir. “- Já errei muitas vezes, mas hoje sei bem o caminho”, garante. O navegador nem mesmo olha para o GPS acoplado na embarca-ção. O aparelho mostra, além da rota, a profundidade de casa trecho do rio. Informações desnecessárias para quem está acostumado a navegar na região assim como um paulistano a dirigir pelas ruas e avenidas de São Paulo. Às três horas da manhã, depois de 495 quilômetros e doze horas de viagem, a lancha chega à Barcelos. A cidade, que já foi a capital do estado do Amazonas no século XVIII, tem cerca de 25.000 habitantes e uma área de 122.496 km². Esta extensão territorial lhe garante o título de maior município do Brasil, e segundo maior do mundo, perdendo apenas para Kiev, na Rússia. Em Barcelos, a lancha é reabastecida com 1.610 litros de óleo

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diesel em um posto construído em cima de uma plataforma flutuante, su-portada por grandes toras de madeiras. Com o preço de R$ 2,30 por litro, foram gastos R$ 3.703,00 para percorrer os 651 quilômetros restantes da viagem. Após a parada, apagam-se as luzes da lancha e os passageiros voltam para as últimas horas de sono. O dia amanhece com o sol despontando vagarosamente no hori-zonte. Os passageiros despertam aos poucos e formam a fila para o café. Nesse momento a atenção se foca em um passageiro que, até então, havia passado despercebido. Os olhares das pessoas desvendavam algo diferente no ar. Uns fitavam de relance, curiosos. Outros seguravam a visão distante, disfar-çando não haver nada de estranho naquela situação. Mas para quem o encarasse veria que o jovem indígena tinha o rosto desfigurado por quei-maduras de 3˚ grau. Uma técnica de enfermagem o acompanhava no seu retorno para casa. Ela contou que além do rosto, o jovem tinha parte dos braços e do tórax também queimados. O tinha ocorrido há um mês. Uma discussão entre amigos, em uma oficina de motores para barcos, foi motivo sufi-ciente para um jogar álcool no outro e atear fogo. “- Na ocasião do incidente todos estavam bêbados”, afirma a técnica de enfermagem. Esta seria apenas a primeira das muitas histórias que ainda seriam reveladas sobre as tragédias provocadas pela bebida. O alcoolismo é um dos casos mais graves de saúde pública da região. Às onze horas da manhã a segunda cidade é avistada. A parada em Santa Isabel do Rio Negro é curta, 10 minutos. Tempo necessário para descer alguns passageiros na menor das três cidades que compõem a região do Alto Rio Negro. Deste ponto a lancha ainda percorreu mais 7 horas de viagem até atracar em São Gabriel da Cachoeira.

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CAPÍTULO 3 - Alto Rio Negro

São Gabriel da Cachoeira São Gabriel da Cachoeira é a cidade do extremo noroeste do esta-do do Amazonas mais distante de Manaus. Ela está situada na região do Alto Rio Negro, a cerca de 200 quilômetros das fronteiras com a Colôm-bia e Venezuela. Sua localização no mapa é exatamente no pescoço da “cabeça do cachorro” e por ela passa a linha do Equador.

Mapa da “Cabeça do Cachorro” mostra os 7 PEFs e São Gabriel da Cachoeira

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A cidade é considerada área de segurança nacional, pois funciona como uma porta de entrada para o Brasil Amazônico. Os rios que nascem em outros países deságuam no Rio Negro e este passa por São Gabriel da Cachoeira. Esta posição estratégica rendeu-lhe ocupações militares desde 1761 com a criação do Forte São Gabriel, pelos portugueses, na tentativa de impedir invasões espanholas. Ao longo dos anos, foram criados novos postos e mais membros do exército foram deslocados a esta região. Atualmente, existe, além de uma Brigada e de um Batalhão de Infantaria de Selva, instalados na própria cidade, mais sete Pelotões Es-peciais de Fronteira espalhados estrategicamente pela “cabeça do cachor-ro”. Assim este território convive há tempos com dois elementos fun-damentais: índios e militares.

A cidade mais indígena do Brasil

São Gabriel da Cachoeira possui 40.806 habitantes de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geográfica e Estatística (IBGE), de julho de 2008. Desse total, 95% são índios ou descendentes de indí-genas, pertencentes a pelo menos uma das 23 etnias existentes na região: Tucano, Baré, Curipaco, Baníua, Cubeu, Dessana... A cidade possui três dialetos oficiais, além do idioma português.

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São eles: o Tucano, o Baníwa e a Língua geral, também conhecida como Nheengatu, ensinada pelos missionários católicos no período colonial. São Gabriel é a primeira cidade do estado do Amazonas a ter um prefeito indígena. Pedro Garcia, de 47 anos, da etnia Tariana, foi eleito com 6.366 votos (51% dos votos válidos contra 26,03% do segundo co-locado) pelo partido dos trabalhadores (PT) em outubro de 2008. Pedro Garcia nasceu em Iauaretê, o maior núcleo urbano do inte-rior do município de São Gabriel. Ele foi um dos fundadores, em 1987, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), atual-mente uma das mais influentes organizações indígenas do Brasil.

Prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Pedro Garcia con-cede entrevista a jornalistas locais.

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O secretário de turismo de São Gabriel, César Maia, conta que está sendo feito um trabalho para rotular a cidade como “a mais indígena do Brasil”. Este slogan seria para atrair visitantes de diversas partes do mundo. Maia afirma que a cidade tem um potencial turístico muito forte, belezas naturais, parques ecológicos, praias de água doce e principalmen-te uma diversidade de culturas, línguas e etnias indígenas. Uma das realizações da secretaria para atrair mais turistas é o Festival Cultural das Tribos Indígenas do Alto Rio Negro (Festribal). O evento, realizado anualmente, reúne um pouco das tradições e rituais da cultura indígena. São cinco noites de festa na cidade, apresen-tações e competições entre as agremiações. Maia diz que o plano para os próximos Festribais é aumentar e priorizar a participação dos indígenas. “-Queremos índios reais e rituais reais no evento, para não acon-tecer de ter índios sentados assistindo aos não índios dançando.” Apesar dos esforços, Maia considera a cidade ainda precária para receber os visitantes. “-Faltam hotéis, bons restaurantes e muitos outros serviços para atender os turistas”, afirma o secretário. “-Para se ter uma idéia, não tem agências de turismo para oferecer passeios ao redor de São Gabriel. Se o turista quiser visitar uma comuni-dade rio acima tem que contratar um barqueiro, por conta própria, para levá-lo”, complementa. Mas a maior barreira que o turismo na região enfrenta é a distân-cia e os altos custos da viagem. “Aqui só vem quem quer mesmo!” elucida Maia. A secretaria de turismo não possui números oficiais de entradas e saídas de turistas na cidade. Mas é consenso entre os funcionários do órgão que o exército ajuda a fomentar o turismo em São Gabriel. Durante o ano todo chegam familiares, amigos, jornalistas, estu-diosos, parlamentares e pessoas dos mais diversos tipos interessadas em conhecer a Organização Militar existente na cidade.

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As ilhas de São Gabriel

São Gabriel é repleto de ilhas, o acesso a elas é por meio de pe-quenas embarcações chamadas de “voadeiras”, ou mesmo em “bongos”, que são canoas construídas a partir de um grande tronco de árvore. Há menos de um quilometro da praia da cidade existe um peque-no pedaço de terra rodeado de águas. È a Ilha do Sol, que devido a sua beleza paradisíaca se tornou o ponto de encontro nos finais de semana de

Um dos pontos turísti-cos mais famosos de São Gabriel, a Ilha do Sol é um lugar de beleza inigualável com areia clara e fina ro-deada pelas águas escuras do Rio Negro.

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famílias e turistas que estão na cidade. Chegar a ela é fácil, os donos das voadeiras cobram R$ 2,00 por pessoa para fazer a travessia. A opção de ir nadando é descartada devido à correnteza naquele trecho. “Já houve algumas mortes de pessoas que julgavam saber nadar, mas não tinham conhecimento da força das águas do Rio Negro”, afirma um dos barqueiros que faz o trajeto. Apenas aos domingos, o único restaurante do local serve refei-ções com peixes, carnes, saladas, arroz, legumes, etc. È freqüente encon-trar coronéis, majores e outros militares do alto escalão almoçando com suas mulheres e filhos na ilha. Entre as muitas ilhas do município, uma está em promoção. Seu Felipe quer R$ 15 mil pela Ilha de Imaculada, onde tomou posse há 12 anos. Ali, a 10 quilômetros rio acima, Felipe Melgueiro Desgarrido, des-cendente de indígenas, da etnia Baré, plantava mandioca e batata. Na ilha de Seu Felipe ainda pode ser observado o forno e a penei-ra utilizados na produção da farinha que ele mesmo fazia. Com 59 anos, Seu Felipe diz estar cansado de trabalhar duro, ele já morou na Colômbia e na Venezuela fazendo serviços de pedreiro e carpintaria. Agora ele vê na venda da ilha uma oportunidade de ganhar um “bom dinheirinho” e ficar mais tranqüilo em sua casa na cidade de São Gabriel, ao lado de sua esposa. Diante da possibilidade de fechar negócio, o preço da ilha cai para R$ 10 mil. Um desconto de 1/3 do valor inicial, sem muito choro. Ao final da conversa Seu Felipe, o “proprietário” da ilha, aceitava, com um aceno de cabeça, a bagatela de R$ 8 mil por um pequeno paraíso es-condido no Rio Negro.

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Doenças e perigos da região

Vizinha a ilha de seu Felipe, separada por uns 300 metros de água, fica a ilha de Cabari. Ali vive uma comunidade com cerca de 60 indígenas da etnia Baníwa. É esse o local onde os pesquisadores do INPA estavam trabalhando. Eles estavam investigando um novo tipo de filario-se encontrada na região. Na ocasião, as lâminas do material obtido deram positivas para a presença do verme “Mansonela Perstans”, que ainda era inexistente no Brasil. Antes havia relato de encontrá-lo apenas em países como Vene-zuela, Colômbia e em partes da África. A Mansonelose se não tratada adequadamente provoca compli-cações no organismo do infectado. O parasita ataca o sistema linfático e a cavidade abdominal, instalando-se em membranas pericárdicas (do coração) e no sistema nervoso central. Os sintomas são frieza nas pernas, febre intermitente, dores de cabeça, coceira por todo o corpo e dores nas articulações. A chegada dos pesquisadores na ilha desperta a curiosidade dos habitantes do local, desacostumados com visitas. O responsável pela equipe, Guilherme Ogawa, de 30 anos, paulistano, formado em biologia na faculdade Mackenzie, aproxima dos nativos e pergunta: “-Quem é o capitão?” A indagação é para descobrir quem é o líder do lugar. O termo “capitão” é comum entre os indígenas, e designa a pessoa que foi esco-lhida, entre eles, para ser o representante da comunidade. Geralmente é o membro mais velho da tribo, dotado de mais experiência, influ-ência e poder de decisão que os demais. “-Sou eu” responde Otílio. Otílio então é cumprimentado pela equipe, e até se recorda de alguns que já estiveram na ilha na época em que coletaram amostras de sangue dos moradores. Guilherme então pergunta se ele e sua equipe poderiam permane-cer por uma semana para coletar alguns borrachudos, os Piuns, como são conhecidos. Otílio responde que não tem problema, que eles podem fazer

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o trabalho. O pesquisador explica que o mosquito aloja suas larvas nas pe-dras em que passa água corrente e pede ao capitão para mostrar onde tem algum igarapé na ilha - os igarapés, comuns na bacia amazônica, são canais ou cursos de água, caracterizados por pouca profundidade, e por correrem quase no interior da mata. Depois de cinco dias, a equipe já contava com vários tubos de ensaio contendo cada um cerca de 30 insetos, além de pedaços de plan-tas e folhas carregadas de larvas do Pium. Já era tempo de despedir dos moradores, agradecer o pouso em redes improvisadas em um barracão e seguir viagem de volta para Manaus. No quinto e último dia em que os pesquisadores estiveram na ilha, uma cobra-papagaio foi vista no tronco de uma árvore, perto das casas da comunidade. A cobra de cor verde, tipicamente da bacia amazô-nica, camuflava perfeitamente com as folhas do arbusto. O ofídio, apesar de não ser venenoso, despertou a preocupação em Seu Plácido, morador da ilha e pai de duas meninas pequenas. “-Minhas filhas costumam brincar naquele lugar todos os dias!” Ele retornou ao local onde a cobra estava, procurou por alguns minutos, mas nada encontrou. “- Deve ter ido embora!” Seu Plácido sabe das dificuldades que enfrentaria se alguma de suas filhas fosse picada por cobra. Ele teria que esperar chegar o socor-ro de São Gabriel, que poderia demorar dias devido à falta de meios de transporte, ou ir para as margens do rio e acenar para qualquer embar-cação que passasse por ali na tentativa de conseguir uma carona para a cidade. No hospital da Guarnição de São Gabriel da Cachoeira, o maior centro de atendimento da região e gerido pelos oficiais de saúde do exér-cito, chega-se em média de 2 à 3 casos de acidentes com ofídios por dia. Em 90% são picadas de jararaca, a predominante na região e de-tentora de um potente veneno. Algumas pessoas chegam já em estado grave devido a demora da viagem – existem cerca de 720 comunidades ribeirinhas espalhadas pelo Alto Rio Negro, algumas a distâncias supe-riores à 300 quilômetros via fluvial.

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Seu plácido sabe que todo cuidado é pouco quando não tem mui-tos recursos disponíveis para o tratamento. Ele sabe que o melhor remé-dio é a prevenção. Na época em que faz a poda e a queima (coivara) na plantação de mandioca que cultiva na ilha não deixa suas filhas chegarem perto – sempre encontra alguma jararaca ou surucucu no terreno. “-Morar no mato precisa ter cuidado!”, diz Plácido com o facão em punho. Outro incomodo para os moradores são os casos de malária. A

Filhas de seu plácido no quintal de casa: a roça

de mandioca da comuni-dade de Cabari

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doença transmitida pelo inseto fêmea Anopheles, costuma castigar a co-munidade, provocando as fortes febres, que como contam, faz o corpo todo tremer sem a pessoa conseguir controlar. Além da febre vem a debi-litação do organismo, perda de peso, perda de apetite e dificuldade para realizar tarefas corriqueiras como andar ou mesmo ficar de pé. Ainda não existe vacina contra a malária e a infecção é causada pela introdução do protozoário “Plasmodium” no organismo humano. A quantidade do parasita no sangue do indivíduo contaminado é medida por cruzes. “- Quanto maior o número de cruzes maior a infecção, uma pes-soa com quatro cruzes por exemplo está com um quadro generalizado de infecção, correndo um alto risco de vida”, explica a Tenente Alecssandra, médica do hospital da Guarnição. Alecssandra relata que em São Gabriel chegou a atendeu um re-cém nascido de 20 dias com dois tipos do parasita no sangue o “Plasmo-dium Vivax” e o “Falciparum”. “- É impressionante como aqui na região os índios sofrem com a malária. Principalmente porque a incidência do mosquito é maior nos fins de tarde, perto de rios e igarapés, horário em que eles tomam seus banhos, lavam as roupas e as crianças brincam na água.” Na comunidade do Cabari, Seu Plácido disse que já houve cerca de 300 casos de malária. Como lá vivem aproximadamente 60 pessoas, na média são cinco infecções para cada morador.

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A medicina e as crenças

Além da malária, cobras e outras enfermidades típicas de regiões tropicais, os médicos também tratam de um assunto delicado na cultura local: as crenças. A Tenente Alecssandra veio há dois meses de São Paulo para trabalhar no hospital de São Gabriel. Ela é formada em medicina pela Universidade de Campinas (Unicamp), fez oito anos de residência, pos-sui especialização em neonato, oncologia e hematologia, além de alguns cursos da área médica no exterior. Com seu currículo, poderia ser uma médica de renome em gran-des centros urbanos. Mas devido a motivos que ela prefere não revelar, mudou o rumo de sua vida e foi trabalhar em uma cidade isolada no inte-rior da selva amazônica. A médica não imaginava que na região um dos maiores empeci-lhos no exercício da profissão seria o abandono do tratamento pelos pró-prios pacientes. È costume dos indígenas procurarem além do hospital e dos profissionais de saúde, apoio dos pajés e curandeiros. Em muitos casos, eles deixam de tomar remédios e seguir as orientações médicas para buscar na reza ou nas bebidas à base de ervas a solução para as suas doenças. Antes de conceder entrevista, a Tenente Alecssandra travava um diálogo não muito harmonioso com o Sargento de Saúde Marinho. Ma-rinho é natural de São Gabriel, descente de índios da etnia tucano. Ele e sua mulher acabaram de ganhar um filho. O recém nascido estava em tratamento com remédios para curar a sífilis congênita - doença transmitida pela gestante durante o parto. A mãe do menino disse às enfermeiras e à médica que levaria a criança para o pajé benzer e não retornou mais ao hospital, deixando o filho sem tomar os medicamentos. Em casa ela disse ao marido que o recém nascido havia recebido alta do tratamento. Um tanto desconfiado, Marinho foi verificar com a médica, que o deixou surpreso e desconsolado ao noticiar que sua esposa havia interrompido o tratamento.

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Alecssandra ainda alertou que agora o menino corria risco de apresentar seqüelas, caso a doença tivesse evoluído para uma neuro-sí-filis devido ao abandono do uso do antibiótico recomendado – no caso a penicilina. Ela orientou Marinho a conversar com a esposa e trazer seu filho para retomar o tratamento o mais rápido possível. Segundo o relações públicas e cirurgião buco-maxilar do hospi-tal, Capitão Giorgetta, ocorre com freqüência casos semelhantes ao de Marinho. Há alguns meses uma menina de 11 anos morreu após passar dois dias tentando curar uma picada de cobra com a ajuda de um pajé. Giorgetta afirma que a recomendação do hospital nestes casos é de que o paciente siga os dois tipos de tratamento. “- Não se deve menosprezar a cultura e hábitos da população local. Se as rezas, a fé, e outros meios de curas alternativas fazem parte dos costumes da região, tudo bem, não vejo nada de mal nisso”. “Nessas horas tudo que for para ajudar está valendo” conclui Giorgetta, “só não pode deixar que a crença suprima o tratamento médi-co”.

O Alcoolismo

O alcoolismo foi apontado pelos moradores de São Gabriel como o segundo maior problema da cidade, atrás apenas do desemprego. Em uma pesquisa feita pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA), em parceria com a Foirn, em 2005, revelou que 15% dos entrevistados consideram o abuso de álcool mais preocupante que a violência, as drogas, o sanea-mento básico, a educação, e a moradia. Os indígenas têm o hábito de consumir o caxiri, bebida fermenta-

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da, a base de mandioca, de alto teor alcoólico. Produzida pelos próprios índios, a ingestão da bebida é feita em rituais e celebrações - mas seu uso não se limita apenas a estas ocasiões. È comum ver os moradores inge-rindo grandes quantidades da bebida pelos arredores da cidade em dias normais.

Mas o consumo não se restringe apenas ao Caxiri, a população in-dígena está também em contato com as bebidas industrializadas. São Ga-briel possui diversos bares e botecos, além de centros comerciais como o Quirinão, que agrupa pequenos estabelecimentos, com estrutura precária, vendendo pingas em garrafas de plástico. O comandante do 5º Batalhão de Infantaria de Selva, Tenente Coronel Marcos dos Santos França, considera como decepcionante o fato de haver abuso de álcool pelos seus soldados – que na grande maioria são descendentes indígenas. “-Às vezes os soldados dão alteração com bebida alcoólica e isso

O alcoolismo é um dos principais problemas em São Gabriel, é comum observar mo-radores locais completamente embriagados pelas ruas da cidade.

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é uma coisa que chateia bastante. Isso é uma coisa que o civilizado con-tribuiu, pois a bebida industrializada tem uma ação mais forte que a de-les” afirma o comandante. Outro oficial do exército, Capitão Pessoa, comenta sobre o mes-mo problema: “- Muitas vezes o soldado some do Batalhão, aparece depois de uma semana, ficou bebendo, escondido em algum lugar.” Pessoa é o res-ponsável pela formação e doutrinação dos recrutas que todo ano chegam ao exército. ”-Já tive que mandar muito novato embora por causa do álcool” completa. Em São Gabriel uma garrafa de pinga custa em torno de três reais. Nos pelotões do exército e nas aéreas de terras indígenas a droga é proi-bida, com isto uma garrafa da bebida chega a custar 50 reais. Santos França conta que em um dos pelotões, houve um arrom-bamento à uma escola estadual por dois jovens da comunidade. Eles le-varam dois computadores e os trocaram por oito garrafas de cachaça, na cidade vizinha de Aduana, na Colômbia, onde o comércio e consumo de bebidas alcoólicas é permitido. Em outro pelotão do exército, também fronteiriço com a Colôm-bia, um caso mais grave ocorreu. Um soldado morreu e outros nove se intoxicaram após ingerirem metanol (álcool metileno) pensando se tratar de uma bebida importada, vendida aos militares por um comerciante co-lombiano. Segundo a psicóloga e ex-Tenente do exército, Marília Megale, a causa do alcoolismo na região está ligada à perda da identidade cultural dos indígenas. “Os índios daqui estão em um processo de civilização, estão há tempos em contato com o branco. Eles assistem televisão, falam em ce-lulares, dirigem carros, desenvolveram o hábito de trabalhar para ganhar dinheiro e gastar depois. Mas muitos se sentem desvalorizados em re-lação aos brancos, não aceitam o fato de haver casamentos entre índias com não índios. E além disso a renda do lugar ainda é baixa, o desempre-go ajuda muito a levar o indivíduo a uma frustração e cair no álcool.” Marília está há dois anos em São Gabriel, veio de São Paulo para ser oficial técnico temporário no exército. No tempo em que trabalhou

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no Hospital da Guarnição viu muitos casos de tentativas de suicídio – em média um a cada semana, principalmente entre adolescen-tes. Para ela isto é parte de um problema social profundo: “-Os pais não sabem educar os filhos nessa nova cultura.” A “nova cultura” a que se refere a psicóloga é o misto de civiliza-ção e tradições indígenas, capitalismo e economia de escambo, ciência e misticismo, etc. Em São Gabriel há, ao mesmo tempo, índios trocando farinha de mandioca por mantimentos para sobreviver e outros andando de cami-nhonetes importadas. Há rituais tribais e lan houses lotadas todos os dias. Há médicos, remédios, hospitais e há pajés, crenças e rezas.

A vida nas comunidades

Estima-se que dos 40 mil habitantes do município de São Gabriel, apenas 15 mil estão na cidade. A maior parte da população vive em zonas rurais, nos chamados povoados ou comunidades indígenas. Alguns des-ses vilarejos são bem pequenos com duas ou três famílias, outros chegam a ter mais de 300 moradores. Bem em frente à cidade, no outro lado da margem do Rio Negro existe a comunidade do Ceware, formada por oito irmãos e suas respec-tivas famílias. Descendentes da etnia Curipaco, eles moravam anteriormente na foz do Rio Içana há 150 quilômetros de São Gabriel. Vieram com a in-tenção de melhorar a qualidade de vida, dar estudos aos filhos e vender na cidade a farinha de mandioca que eles produzem a partir do cultivo do tubérculo em suas terras. O capitão da comunidade, Victor Camico da Silva, de 41 anos,

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explica que a rotina dos moradores é sempre a mesma. Acordam às cinco da manhã, se alimentam de farinha com água – o chibé como é conhecido pelos indígenas – e vão trabalhar no plantio, “fazer a roça” como costu-mam dizer. Ao meio dia voltam para as suas casas no vilarejo e se tiver uma caça ou um peixe para comer eles conseguem trabalhar à tarde. Caso contrário, eles descansam o resto do dia para poupar energia. A obtenção de alimentos é complicada na região. As águas do Rio Negro são ácidas e pobres em nutrientes, o que limita a disponibilidade de peixes. Embora vivam no rio mais de 700 es-pécies de peixes - umas das maiores diversidades do mundo - o número de exemplares de cada espécie é relativamente pequeno. A caça também é um recurso que segundo Victor, está se esgo-tando. Os animais do mato, como porcos e pacas estão cada vez mais adentrando a floresta, e distantes do homem. A maior parte das terras é imprópria para a agricultura. A acidez do solo dificulta uma maior varie-dade de gêneros alimentícios. Resta aos moradores alimentar-se de algumas poucas criações de aves que possuem e de frutas que cultivam como a banana e o mamão, além das silvestres cupuaçu e açaí. Quando vendem a farinha na cidade, a R$ 3 reais o quilo, costumam comprar um pouco de arroz e frango. Mas o primordial mesmo é: “- Sal, sabão e fósforo”, afirma Victor, dizendo serem estes os produtos que todo índio precisa para o dia-a-dia de suas comunidades. Mesmo com as dificuldades, eles conseguem sobreviver indepen-dente dos benefícios que a cidade pode trazer. Victor conta que ele e seus irmãos já passaram um mês alimentando apenas de chibé quando ainda moravam no Alto Içana. “- Foi numa época de seca, não tinha peixe, pouca roça, a cidade longe e tudo muito caro” explica Victor. Há oito anos no Ceware, Victor sente os benefícios da proximi-dade da cidade. Seus filhos pequenos estão na escola. Um de seus irmãos entrou para o exército e a possibilidade de recorrer ao hospital quando alguém da aldeia fica doente traz uma maior segurança aos moradores. Além disso, todos os sábados de manhã, a visita de Bruna é mais um indício de melhora da qualidade de vida. De folga dos atendimentos

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que faz na cidade e no exército, a dentista presta um serviço voluntário, tratando da saúde bucal dos moradores.

O pequeno Adílson, de cinco anos, já teve duas extrações de den-tes devido à cárie avançada que provocava infecções por bactérias. Ele e mais sete crianças foram atendidas em uma manhã. Segundo Bruna o trabalho dela é mais de prevenção e cuidados primários, pois falta in-fra-estrutura para atendê-los na comunidade. Ela dispõe apenas de uma maleta, com equipamentos que ela mesma carrega até o local. O marido de Bruna a acompanha nas incursões pela comunidade. Monteiro é Capitão do exército e também descobriu uma forma de ajudar os moradores do Ceware. Ele está comprando matérias de construção, com recursos próprios, para ser construída uma casa de alvenaria em que Bruna possa atender os moradores. O casal sabe que a estadia deles em São Gabriel durará pouco, já que é comum no exército acontecer transferências depois de dois anos

O Chibé é o principal alimento consumido pelos índios nas comudidades ao redor de São Gabriel da Cachoeira.

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em um mesmo lugar. Assim Monteiro quer deixar a casa para ser utiliza-da por outros possíveis dentistas que desejarem continuar a prestar esse serviço aos moradores da comunidade.

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À esquerda: Vista do porto de São Raimundo; Abaixo: As palafitas marcam o cenário da cidade de Manaus.

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À esquerda e abaixo: O barco Tanaka aguarda os carregadores encherem seus porões para partir rumo a São Gabriel da Cachoeira.

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À esquerda: militares da mari-nha fiscalizam a lancha rápida antes da partida para São Gabriel; Abaixo e na próxima pá-gina: As redes são usadas como camas pelo povo da região.

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A lancha do Tanaka é a forma mais rápida de chegar até São Gabriel pelo Rio Negro.

Os Tripulantes da lancha rápida aproveitam as escuras água do Rio Negro para lavar a louça e cozinhar os alimentos.

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O interior da lancha é similar ao de um ônibus convencional.

Para ajudar a passar o tempo, os passageiros utilizam lap- tops, I-Pods e outros equipamentos eletrônicos durante a viagem.

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O pôr do sol no Rio Negro garante um espetáculo de cores e reflexos antes da escuridão tomar conta da selva amazônica.

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Familias indigênas viajam por vários dias dentro dos bongos para fazer compra em São Gabriel.

Ao longo de todo o rio, crianças indígenas se divertem nas águas escuras e ácidas

do Negro.

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Na página anterior: morador de São Gabriel refletindo no quintal de sua casa; Aci-ma: na maioria das comunidades indígenas é produzida a farinha de mandioca que serve como moeda de troca no comércio local.

A dentista Bruna visita a comunidade Ceware todos os sábados de manhã para pres-tar serviços odontológicos ao moradores locais.

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Nas páginas anteriores: Crianças da comunidade Ceware; Acima à direita: Construção típica da re-gião, conhecida como palhoça; Acima à esquerda: moradoras de São Gabriel da Cachoeira; Abaixo: bongo ancourado em um dos diversos bancos de areia ao longo do Rio Negro.

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Nas páginas anteriores: Crianças da comunidade Ceware; Acima à direita: Construção típica da re-gião, conhecida como palhoça; Acima à esquerda: moradoras de São Gabriel da Cachoeira; Abaixo: bongo ancourado em um dos diversos bancos de areia ao longo do Rio Negro.

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Acima: novos recrutas em forma na primeira formatura ao comandante do 5º BIS; Abaixo: vestindo a farda pela primeira vez.

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Acima: instruções ensinam como prestar continência da forma correta; Nas pági-nas seguintes: A maioria dos soldados vêm das comunidades indígenas da região.

Recrutas recebem noções básicas de higiene e são instruídos a usar papel higiênico.

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O almoço dos recrutas é separado dos oficiais, após a refeição eles lavam suas bandejas e talheres.

Os recrutas só sentam para almoçar após receberem a ordem de um superior.

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Na página anterior: Recém chegados par-ticipam do exaustivo EAVS; Ao lado: militar mata a sede com cipó d´água; Abaixo: pau-

sa para descanço em marchas pela selva são essenciais para manter a tropa em boas

condições físicas.

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Na página anterior: Recém chegados par-ticipam do exaustivo EAVS; Ao lado: militar mata a sede com cipó d´água; Abaixo: pau-

sa para descanço em marchas pela selva são essenciais para manter a tropa em boas

condições físicas.

No EAVS, instruções incitam o sentimento de soberânia dos participantes.

Instrução ensina como fabricar filtro de água com materiais encontrados na selva.

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Acima à esquerda: Capitão verifica as necessidades dos Pelotões de Fronteira antes do PAA; Acima à direita e abaixo: soldados descarregam mantimentos levados pela

FAB aos pelotões de fronteira.

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Acima: Crianças Yanômamis se deliciam com presentes dados por tripulantes da FAB; Próxima página: o tapete verde que forma a maior riqueza da humanidade.

Moradores de São Joaquim fazem fila para pegar carona no vôo da FAB de volta para São Gabriel.

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Segundo PEF: De um lado Brasil, do outro Colômbia.

Militares em Iauaretê, que significa: Cachoeira das Onças.

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Militares tansferidos chegam ao novo lar, 5º PEF - Maturacá

A Fronteira com a Colômbia no Pelotão de Fronteira de Iauaretê

Acima: Chegada ao Pelotão de Fronteira de Cucuí; Na próxima página: a manutenção do armamento é feita todos os dias para garantir o bom funcionamento do equipamento.

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Acima: Chegada ao Pelotão de Fronteira de Cucuí; Na próxima página: a manutenção do armamento é feita todos os dias para garantir o bom funcionamento do equipamento.

No posto de controle fluvial, todos que cruzam a fronteira são fotografados e

cadastrados.

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Soldados em formação proclamam o grito de guerra: SELVA!

Bongo colombiano é revistado no posto de controle fluvial em Cucuí.

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A horta dos pelotões de fronteira garante vegetais frescos na refeição dos soldados.

Soldado se camufla preparando para ação na fronteira com a Colômbia.

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Soldado se camufla preparando para ação na fronteira com a Colômbia.

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Na página anterior: Soldados do pelotão especial de fronteira de Cucuí em ação na tríplice fronteira; Acima: oração do guerreiro de selva.

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Na página anterior: Soldados do pelotão especial de fronteira de Cucuí em ação na tríplice fronteira; Acima: oração do guerreiro de selva.

Capítulo 4- Forças armadas em São Gabriel

O 5˚ Batalhão e a 2˚ Brigada

A 2˚ Brigada de Infantaria de Selva está sediada em São Gabriel da Cachoeira e é responsável pela segurança e soberania do município

Vista aérea do 5º Batalhão de Infantaria de Selva, São Gabriel da Cachoeira

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sede e dos outros dois ao longo do Rio Negro: Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro. Juntos eles somam 295 mil km² - uma área maior do que o Estado de São Paulo. Dentro deste território está a região da “cabeça do cachorro”, que faz divisa com a parte da Colômbia dominada pela Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc) e com a Venezuela. Para vigiar e defender estas fronteiras, a 2˚ Brigada conta com um efetivo de 2.000 mi-litares, comandados atualmente pelo General Ivan Carlos Weber Rosas. Mas a Brigada em si funciona mais como um órgão administra-tivo do que de combate. Ela é encarregada de obter recursos para suprir seu efetivo: coletar e distribuir os mantimentos, comprar armamentos, oferecer combustível etc.. Tanto que a sede da Brigada, situada há cerca de 3 quilômetros do centro da cidade, às margens de uma estrada pavimentada, parece mais um condomínio de casas residenciais do que uma unidade do exército. No pátio do estacionamento da Brigada encontram-se tratores, retro-escavadeiras, e diversas outras máquinas de obras pertencentes a 21˚ Companhia de Engenharia de Construção. Foi preciso trazer a Com-panhia para poder dar início a construção de pontes, estradas, rodovias, tratamento de água e realizar a manutenção das instalações militares na cidade. A 2˚ Brigada é composta por algumas unidades funcionais como a Companhia de Comando e Apoio, Base Logística, Pelotão de Polícia do Exército, Pelotão de Comunicação. Todas elas estão instaladas no espaço físico da própria Brigada. Apenas a sua unidade de combate, o 5˚ Bata-lhão de Infantaria de Selva (5˚ BIS), está localizado a parte, na mesma estrada, há cerca de um quilômetro dali. O 5˚ BIS é o braço armado da Brigada, sua unidade treinada e adestrada para fazer a segurança das fronteiras e partir para o ataque caso ocorra um conflito armado na região. O 5˚ Batalhão de Infantaria de Selva, que também pode ser cha-mado de Comando de Fronteira Rio Negro (5˚ BIS/CFRN), recebeu estas denominações em 18 de junho de 1992. Mas tanto a sua origem, como a da 2˚ Brigada, estão relacionadas à conquista da região amazônica, pelos portugueses, durante o período da união das Coroas Ibéricas. Desde aquela época havia a preocupação de defender o território

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de invasões de outros paises, como Inglaterra, Holanda e França e mais tarde a Espanha com a volta da independência de Portugal em 1640.Além da nomenclatura “5˚ BIS/CFRN” a unidade de combate recebeu também a denominação histórica “Forte São Gabriel”, fazendo referen-cia à primeira organização militar efetivamente instalada na região em 1761. Atualmente metade do efetivo da Brigada está no 5˚ Batalhão; são cerca de 1.000 militares, em sua maioria soldados, treinados para a operações de sobrevivência, guerra na selva e principalmente a vigilância das fronteiras. A entrada do Batalhão é diferente da fachada da Brigada, não pa-rece um condomínio. Uma estátua de um soldado está disposta ao meio de outras duas - um canhão e uma onça pintada. Sua estrutura forma-da por grandes barracões e um alambrado envolvendo todo o complexo físico configura uma sensação de isolamento, onipotência e união. Na cancela de acesso cerca de 10 homens armados com fuzis permanecem o tempo todo, protegendo. Dentro do batalhão é raro ver alguém sem farda. Com a exce-ção de nós repórteres, civil por ali é apenas em dias de confraternização ou abertos a uma visitação. Os militares rotineiramente deslocam-se por entres as vias de asfalto que liga uma instalação à outra. Em tropas ou sozinhos, andam sempre com um destino certo. Não é comum grupinhos de conversa, ou alguém descansando, o clima é serio, de trabalho. Nas paredes do batalhão, frases remetem aos ideais de servidão à pátria e defesa do território brasileiro:

“A missão não se escolhe, nem se discute, cumpre-se. Selva!” “Aqui reina o espírito imortal da Infantaria. Tudo pela Amazônia!”

Mas segundo a maioria dos militares do Estado Maior do 5˚ BIS o principal problema enfrentado na região atualmente não é mais a questão da manutenção da integridade territorial. “- Não existe risco concreto de um ataque ao Brasil, seja das Farc ou das forças armadas dos paises vizinhos. Nós somos uma nação sobera-na e com boas relações externas”, afirma Major Dos Santos, responsável por coordenar as operações realizadas pelo 5˚ BIS.

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Segundo o Major, o maior inimigo do exército brasileiro na região é o trabalho incessante dos narcotraficantes. A pasta de coca, ou mesmo a cocaína pura produzida pela guerrilha colombiana, é transportada para dentro do Brasil pelas calhas dos rios da região. “- Existe o trabalho de formiguinha, são pequenos traficantes que cruzam a fronteira com a droga escondida nos barcos.Geralmente não são membros das Farc que a transportam, mas sim indígenas locais, agricultores colombianos, e comerciantes que em busca de dinheiro fácil acabam sendo recrutados pelo tráfico”, relata Dos Santos. A dificuldade do exército para fazer uma fiscalização rigorosa é devido à extensão territorial da “cabeça do cachorro”. O município de São Gabriel possui 109.185 Km², uma área maior que a do estado de Santa Catarina – que possui 95.346 km². A faixa de fronteira que o 5˚ BIS tenta controlar se estende por 1.600 quilômetros. Além disso, os recursos disponíveis são limitados. Dos Santos tem que lidar com a escassez de combustível quando prepara algumas operações. “- Para fazer uma viagem de voadeira é preciso levar vários tambores de gasolina.Tem lugares que estão a 300 quilômetros daqui”. Segundo o major, a verba destinada para a compra do combustível - que chega ao preço de R$ 3,00 o litro nos postos da cidade – nem sempre supre as necessidades do Batalhão. Outra desvantagem que o exército enfrenta é com a manutenção dos motores de popa, a maioria está na oficina. E a potencia deixa a desejar; a maioria é de 25 ou 40hp - quando o ideal seria motores de 115hp, para uma maior agilidade sobre as águas. Mas a luta para coibir o transporte de ilícitos ultrapassa o ambiente aquático e a selva também se mostra como um desafio à fiscalização. “- Fechar 100% da fronteira é impossível, o exército atua mais nos rios, onde geralmente se escoa os ilícitos. Mas é comum, quando o traficante vê um bloqueio, se embrenhar na mata e passar ali dois ou três dias, esperando a hora propícia para passar pela fiscalização.O preço da droga faz valer a pena ficar dias na mata”, explica Major Dos Santos. Com todo este quadro desfavorável a uma proteção efetiva das fronteiras resta atuar mais com medidas preventivas. O exército é o único órgão que leva a presença do estado a uma região com um enorme vazio demográfico.

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Dráuzio Varella, em um de seus inúmeros textos sobre a atual situação da cabeça do cachorro, já resumia a importância dos militares na região. “Não fossem eles, quem estaria aqui?” indaga.

As Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farcs)

“- Seria suicídio!” é assim que o sub-comandante do 5˚ BIS, Ma-jor Cauper, define uma possível tentativa de ataque das Farc ao Brasil. A convicção do Major está baseada não apenas no poderio bélico, mas em uma questão de sobrevivência. “- Nós sabemos que os guerrilheiros utilizam a cidade de São Gabriel para apoio logístico”. Comida, remédios, combustível, vestimentas, materiais de cons-trução, peças de motor de popa são alguns dos produtos que abastecem os acampamentos das Farc. A certeza vem de um levantamento que o exército fez no Camanaus - principal porto de São Gabriel. Toda semana balsas vindo de Manaus descarregam uma quanti-dade destes suprimentos que a cidade por si só não consegue consumir. A confirmação deste esquema de suporte logístico as Farc é vista também nos postos de fiscalização instalados nas fronteiras. Diariamente sobem pequenos barcos, levando estes produtos para a Colômbia. São Gabriel é área de fronteira e é permitido por lei o fluxo de

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pessoas dos países vizinhos e o livre comércio. Para um colombiano ou venezuelano vir comprar mercadorias no Brasil, precisará apenas de apresentar a nota fiscal, quando estiver retornando ao seu país. Essa dependência que as Farc têm do Brasil diminuem as pro-babilidades de um confronto. Mas não impede de haver alguns confli-tos pontuais. Em 1991 ocorreu um ataque a um destacamento militar, resultando na morte de três brasileiros – conhecido como episódio do “Traíra”. Recentemente houve troca de tiros, quando soldados brasileiros perseguiam traficantes que fugiam por entre a floresta para a Colômbia. Caso ocorra uma guerra declarada na região, os Pelotões de Fron-teira, o 5˚ BIS e a 2˚ Brigada, receberiam o apoio do Comando Militar da Amazônia (CMA), que por fim receberia a ajuda do exército nacional, representado nessas situações principalmente pela Brigada Pára-quedista e pela Brigada de Operações Especiais. Estas duas unidades são treinadas para emergências em todo o território nacional, tanto que a Brigada de Operações Especiais mudou de sede do Rio de Janeiro para Goiânia. O motivo da migração para o centro do país é garantir acesso rápido a qualquer localidade do Brasil em poucas horas. Os militares da Operações Especiais são a tropa de elite do exér-cito brasileiro. São os combatente mais adestrados e preparados para qualquer tipo de operação.

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Comando Militar da Amazônia

O Comando Militar da Amazônia (CMA), é o órgão militar má-ximo da região. Está sediado em Manaus e é responsável por proteger 11.000 quilômetros de fronteira com sete paises sul americanos: Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Além da 2˚ Brigada em São Gabriel, o CMA possui outras qua-tro, espalhadas pela Amazônia. Uma na cidade de Boa Vista (RR), outra em Tefé (AM), Porto Velho (RO) e Marabá (PA). Todas elas são pólos militares, composto por batalhões, companhias e oficiais de várias outras localidades do país. Além dessas grandes unidades operacionais, dispõe, ainda, da 8ª e 12ª Regiões Militar, a primeira em Belém (PA) e a segunda em Ma-naus, que são grandes comandos logísticos-administrativos. No total a força terrestre do órgão está presente em 62 localidades da Amazônia Brasileira. O Comando Militar da Amazônia possui em seu quadro um efe-tivo de 25.000 homens, em uma área de atuação que compreende os es-tados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e partes do Tocantins e Maranhão. No topo dessa cadeia de hierarquias está o General Luis Carlos Gomes Mattos que, desde abril de 2009, ocupa o cargo de autoridade máxima no âmbito militar da região amazônica. Antes do General Mattos, quem estava à frente do CMA era o General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, conhecido por ter comandado a missão de paz da Onu no Haiti desde o início da atuação das tropas brasileiras em junho de 2004 até meados de 2005. Durante sua estadia no CMA, General Heleno sempre pediu mais investimentos militares para a Amazônia, chamando atenção para as di-ficuldades enfrentadas pelos soldados que atuam na região. Heleno ¹afirma que o exército está com aparelhagens sucateadas, mas que mesmo assim garante a soberania do território amazônico. Ape-sar de portarem um armamento em uso há mais de 40 anos – os fuzis automáticos leves Fal e Parafal – os militares indígenas são considerados os melhores combatentes de selva do mundo. ¹Afirmação de Heleno em entrevista cedida ao programa Canal Livre, da rede Bandei-rantes, em abril de 2008. Disponível em: http://www.youtube.com./watch?v=3VBikxTuol8

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A Formação dos Combatentes de Selva

“Acostumados a andar desde pequenos pela floresta fechada, ob-ter alimentos a base de caça e pesca, construir cabanas e abrigos e co-nhecer as formas de sobreviver na selva, os indígenas são inegavelmente os mais preparados para integrar o exército brasileiro na Amazônia”. A afirmação é de quem conhece bem o assunto, Capitão Pessoa é o coman-dante da 2˚ Companhia de Fuzileiros de Selva do 5˚ BIS. Sua companhia tem a missão de instruir, educar e treinar os recru-tas que anualmente chegam ao exército por meio do serviço militar obri-gatório. “- É transformar o civil em soldado”, como ele mesmo define. Pessoa diz com convicção que os soldados nativos da região con-seguem se deslocar por enormes distâncias na selva sem se perder. Mas o que mais impressiona é a resistência física de seus recrutas. “- Eles con-seguem caminhar carregando muito peso na mochila e com pouquíssima alimentação. São acostumados a ingerir menos nutrientes e nem por isso perdem em vigor físico” explica o Capitão. Com essa predisposição natural para se adaptar ao ambiente de selva o trabalho da 2˚ Companhia acaba sendo ensinar as técnicas mili-tares comum em qualquer organização militar no país. Aulas de tiros, de manutenção do armamento, de táticas de guerra. E teorias como regimen-tos internos da corporação, direitos e deveres do militar... Mas a maior dificuldade, segundo Capitão Pessoa, é ensinar aos recrutas alguns hábitos e costumes da sociedade civilizada. “- Sem querer menosprezar a região, o nível daqui é bem aquém do resto do Brasil”. A equipe de recrutamento do Capitão precisa instruir os jovens indígenas modos que até então muitos deles não estavam acostumados. Comer com garfo e faca, usar o banheiro em vez de defecar no mato e uti-lizar papel higiênico, são algumas das missões a serem aprendidas pelos pupilos. Além disso, o idioma torna uma barreira para o aprendizado. Al-guns destes jovens viviam em comunidades e falam apenas o dialeto de seus conterrâneos. Pessoa conta que em uma ocasião viu um recruta com o coturno em cima da guia da calçada do Batalhão. Como a pintura era

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nova, e ainda estava branca, o capitão pediu ao jovem para tirar o pé. Não obtendo resposta depois de duas insistências, o Capitão enfiou um pontapé no recruta. Mas tarde é que ficou sabendo que ele não falava português.

Para a melhorar a pontaria dos recrutas, o treinamento exige que eles equilibrem uma cápsula vazia encima do fuzil antes de darem o primeiro tiro.

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Primeiras Instruções

Delson Vasconcelos tem 19 anos, cumpre seu serviço militar obrigatório, é de Santa Isabel do Rio Negro. Na primeira semana de ins-truções no 5˚ BIS, em São Gabriel, coloca seu relógio de pulso para des-pertar às 4:00h da manhã. Delson prefere acordar mais cedo devido à tensão que sente em perder o horário, que inicia às 5:20h quando deve se apresentar para o café da manhã. Antes morava com os pais, tinha um quarto apenas para eles, ago-ra dorme em um alojamento com mais de 50 recrutas, em beliches de me-tal. Ele não acha ruim, estava esperando por isso, sua intenção é crescer no exército, quer fazer o curso de cabo. Sua rotina é igual à de seus outros colegas. Nos primeiros dias, aprender a marchar, vestir a farda, prestar continência... Ensinar aos recrutas o ângulo correto que a mão faz com o braço e este com o tronco é uma tarefa que exige paciência e tempo. Uma fila se forma em frente aos instrutores e repetidas vezes eles simulam a apresen-tação formal que devem fazer durante a temporada de serviço militar. “-Soldado Zezinho, do 4˚ pelotão, permissão para falar com o senhor?” diz um recruta, ensaiando. “-A mão mais reta soldado, acima da altura do olho!” corrige o instrutor. “-Soldado Zezinho...” “-Enverga essa mão soldado, senão vai pagar dez!” ameaça. Enquanto aprendiam o modo correto de bater continência, uma outra turma estava fazendo o reconhecimento dos equipamentos. Duas filas de recrutas sentados se formavam no pátio de um barracão e no cen-tro eram espalhadas as armas e munições. Após decorarem a nomenclatura, viravam de costas, os equipa-mentos eram mudados de posição. A uma ordem dos instrutores eles voltavam a olhar e deveriam acertar o nome que eles ouviram minutos antes. Morteiros, canhão sem recuo Karl Gustaf 84 mm, metralhadora P. 50, metralhadora Mag, Fuzil Automático Pesado (Fap), Fuzil Automá-

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tico Leve (Fal), são algumas das armas que muitos ali nunca viram. Es-pingarda calibre 12, pistola Imbel 9mm, são especificações que demoram a decorar. Pistola sinalizadora, binóculos, luneta, mira a laser... Todos este aparatos militares não fazem parte da cultura dos indígenas. A maioria não assistiu aos filmes de guerra norte americanos ou seriados policiais. Mas dentre esses armamentos todos, um eles nunca erram, a balestra – conhecido também como arco e flexa.

Recrutas em formação ainda como civis, momentos antes de vestirem a farda pela primeira vez.

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Guerreiros de Selva

A maioria dos capitães e membros do estado maior do 5˚ BIS são “guerreiros de selva”. Para conseguir esse rótulo, é preciso fazer o Curso de Operações na Selva (COS), realizado pelo Centro de Instruções e Guerra na Selva (CIGS), em Manaus. O CIGS é considerado o mais completo e eficaz treinamento militar para atuar em ambiente de selva. Membros das forças armadas da França, Argentina e dos Estados Unidos já vieram participar desses treinamentos. O grau de exigência é alto, e as tarefas a serem realizadas requerem muita natação e desloca-mentos na mata, ambas com equipamentos pesados. Na prática, não é obrigatório fazer o COS, os inscritos são volun-tários. “Em sua maioria são militares que gostam de desafios e respeitam a Amazônia” afirma um sargento que está se preparando para se tornar “guerreiro de selva”. Nos documentos oficiais do exército existe uma breve descrição do que se encontra no curso: “As dificuldades na selva equatorial são extremas - o isolamento, os grossos pingos de água que caem das copas das árvores, o zumbido e as picadas constantes e incômodas dos insetos, os animais selvagens, a terra molhada coberta de folhas e troncos de árvores mortos que difi-cultam a locomoção, a elevada umidade atmosférica onde se proliferam inúmeras doenças tropicais, enfim, a morte muito próxima em todas as situações”. O Comandante do 5˚ BIS, Tenente Coronel Marcos dos Santos França, fez o curso e passou cinco anos como instrutor. Ele lembra que já ocorreram ao menos seis casos de morte durante o COS. Em uma delas o militar estava com amidalite e mentiu para o médico para não ser desligado do curso. Seu estado se agravou e ele foi transferido para São Paulo em busca de um tratamento mais eficaz – não resistiu. Em outra ocasião um sargento estava com febre amarela e não sa-bia - morreu também. Mas o grande risco é com os afogamentos. Quatro militares já vieram a óbito desta forma. As bases de instruções são na floresta, algumas a mais de 90 qui-

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lômetros de Manaus. Teve um ano que dois militares foram infectados por uma virose. Preocupados com o ocorrido, o CIGS que está subordi-nado ao CMA, pediu que o Inpa verificasse aquela região. Resultado: 10 vírus desconhecidos foram encontrados. A periculosidade do COS é tanta que para não haver processos judiciais contra o CMA, o interessado em fazer o curso assina um termo se responsabilizando pela própria vida. Mas com o passar dos anos, foi necessário haver um acompanhamento médico mais preciso. Hoje são feitos testes físicos e provas de aptidão antes de ingressar no curso. Durante as atividades, os militares passam por checagens diárias. Dessa forma foi possível obter uma maior prevenção, de uma doença que geralmente surgia entre os participantes do curso - a Rabdomiólise. Devido ao intenso desgaste físico as células do músculo esque-lético lesionadas liberam seus componentes no plasma sanguíneo. Entre estes elementos esta a mioglobina, que é um pigmento contendo ferro. Os rins, ao filtrar estes componentes podem sofrer uma obstrução de suas estruturas, resultando em necrose tubular aguda ou insuficiência renal. O indivíduo com este quadro apresenta dores musculares, câim-bras, urina na cor escura e debilidade e perda das funções. O acompanha-mento médico freqüente da saúde dos participantes do COS consegue impedir que alguém chegue a este estágio de desgaste. Segundo o Capitão Pessoa, é fundamental que os militares mais graduados do 5˚ BIS, sejam Guerreiros de Selva. “Aqui em São Gabriel é selva pura. O oficial precisa conhecer como funciona este ambiente para poder comandar uma tropa e defender isto aqui.” Mas Pessoa adverte que os recrutas, nascidos e criados na região, conseguem ter um desempenho melhor que militares de patentes altas. “Em questão de sobrevivência na selva, eles deixam qualquer oficial no chinelo, mesmo aqueles que fizeram o curso do CIGS” afirma o Capi-tão. O argumento que justifica esta teoria é o de que os militares “guerreiros de selva” fizeram apenas três meses de treinamento intensivo na selva, já os recrutas indígenas viveram nela desde que nasceram.

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Exército como oportunidade

No ano de 2009, 164 recrutas incorporaram ao 5˚ BIS. Eles en-traram em filas, marchando pela primeira vez, vestindo camiseta branca e calça jeans. Depois saíram para os vestiários, colocaram as fardas e voltaram para o pátio. Do alto, com um microfone, o comandante Santos França dá as boas vindas ao “sangue novo que agora corre nas veias do Batalhão”. Eles são jovens da faixa etária de 18 anos, a maioria descendente de indígenas, nativos da região. Possuem a pele morena, cabelos lisos e escuros, estatura baixa e os olhos um pouco puxados. O visitante desavi-sado poderia pensar que está em um país da Ásia. Do total de recrutas cerca de 35% ficarão para o ano seguinte, o resto provavelmente terá baixa. Os critérios para a seleção são preparo físico, conduta e aprendizado. Segundo Major Dos Santos, em muitas vezes o recruta falta ao expediente, se envolve em confusões e abusa de bebidas alcoólicas. Esses são os maiores motivos de baixa. Aqueles que permanecem no batalhão podem chegar ao período máximo de sete anos, após isto entram automaticamente para a reserva não remunerada. Foi o que fez Carlos Orleílson Garcia Grande, 26, que veio de Manaus para fazer o serviço militar obrigatório em São Gabriel. Durante sua estadia no exército, terminou o ensino médio, casou-se e conseguiu juntar dinheiro para construir uma casa para os pais. Ago-ra Orleilson tem planos de montar uma ‘lan house’ na capital e mudar para lá com sua mulher e o filho que está previsto para nascer em julho. Ele considera gratificante a oportunidade que teve no exército, de sua turma de 300 recrutas que ingressaram em 2002, apenas 70 consegui-ram permanecer os sete anos no batalhão. A idéia de acumular um capital servindo ao exército é comum en-tre a maioria dos recrutas e soldados. Os gastos são poucos - alimentação e o dormitório são oferecidos pelo 5˚ BIS - e por ser uma região de selva é garantido por lei 20% a mais do salário normal da patente. Mas para o administrador da Funai em São Gabriel, Benedito Machado, esse sistema de baixa do exército após o período de sete anos é

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preocupante. Muitos desses soldados acostumam a ter uma renda mensal e não estão preparados para depois ingressar no mercado de trabalho. “- Esse retorno a exclusão financeira forma a mão de obra da ile-galidade” pondera Machado. Segundo ele, esta política das forças arma-das estaria fornecendo recrutas para o narcotráfico, contrabando e demais meios ilícitos de obter dinheiro. Atento a esta questão, o Ministério da Defesa implantou, em 2004, o Projeto Soldado Cidadão em todo o território nacional. Durante a estadia no exército o jovem pode fazer cursos profissionalizantes para melhorar as chances de obter trabalho após a conclusão do serviço mi-litar. No 5˚ BIS são oferecidos cursos nas áreas de construção civil,de informática, de saúde.. José Alberto Brito da Silva não pegou a época do projeto. Ele foi soldado de 95 à 2001 e nesse período atuou em todos os 7 pelotões de fronteira. Com as diversas missões de deslocamento que fazia foi apren-dendo a navegar pelos diversos rios da região. Hoje ganha a vida como prático de barco. Não são apenas os indígenas que vêem uma oportunidade finan-ceira no exército, muitos dos sargentos e oficiais pedem para serem trans-feridos para São Gabriel devido a alguns benefícios concedidos exclusi-vamente para o local. Além dos 20% a mais no salário, servir na selva garante uma apo-sentadoria mais próxima. A cada dois anos conta oito meses a mais de serviço. E as vantagens não param por ai. O Subcomandante do 5˚ BIS, Major Cauper, ganhou R$ 55 mil para sair do Rio de Janeiro e mudar com sua família para São Gabriel. Esse bônus, o exército concede de acordo com a patente e com a distância a ser percorrida ao trocar de organização militar. O dinheiro serviria como um “auxílio” para comprar as passagens para a família, os móveis da nova casa e outros gastos. Passados dois anos, Cauper pode pedir outra transferência. Ao fazer uma simulação o major diz que se fosse de São Gabriel para Floria-nópolis receberia algo próximo de R$ 75 mil. Segundo Cauper, muita gente está vindo para esta região de sel-va devido aos bônus obtidos por deslocar uma distância grande dentro do país. Ele critica esta postura: “- Tem militar que passa um ano aqui

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tentando convencer a esposa de que o lugar não é tão ruim e o outro ano contando os dias para ir embora”. Uma atitude que estava se tornando comum na cidade era a quei-ma de fogos que alguns militares faziam em comemoração ao término do período de estadia em São Gabriel. “- Isso mancha a imagem da institui-ção. Esse é o tipo de militar que não está apto ao exército. È o cara que não vive sem um shopping center”, recrimina Cauper.

Operações na selva

“O sujeito até pode vim para São Gabriel interessado no conforto financeiro, mas aqui ele vai ter que suar a camisa”, revela o major Dos Santos. O Suor não é apenas por ficar fardado o dia todo debaixo de um sol equatorial. “Aqui todas operações que nós planejamos, elas são re-ais”, completa. Devido a lei complementar número 117, de 2 de setembro de 2004, o exército ganhou poder de polícia para atuar nas fronteiras da “cabeça do cachorro”. Patrulhamento, revista de pessoas, de barcos, ve-ículos, aeronaves e executar apreensões em flagrante delito, passaram a ser obrigações dos militares. “Todas as missões que fazemos, nós saímos com armas reais, com munições reais, pois os perigos são reais”, esclarece Dos Santos. “Nos outros batalhões do exército trabalha-se muito com simulações. Aqui no 5˚ BIS é diferente. Eu posso ter que trocar tiro de fuzil se deparo com guerrilheiros ou traficantes na mata.” Esta designação de atuar mais ostensivamente é devido à falta de poder público na região. No posto da Polícia Federal em São Gabriel, fica

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um pequeno efetivo – apenas dois agentes nas duas vezes que a reporta-gem visitou o local. O Ministério da Defesa está priorizando a presença das forças armadas na Amazônia. Estima-se que a 2˚ Brigada de Infantaria de Selva terá um aumento de 2.400 militares em 2009, finalizando a sua implanta-ção definitiva em São Gabriel. A crescente preocupação com esta área vem dos resultados ob-tidos através das operações que o 5˚ BIS realiza por determinação do Comando Militar da Amazônia. A Operação Curare, por exemplo, foi uma das mais complexas que Dos Santos atuou. Ela englobou várias localidades da Amazônia, fazendo um levantamento para verificar a atuação de ONGs estrangeiras, a presença de narcotraficantes e garimpos ilegais. Dos Santos relata que deslocou uma tropa de 500 militares até as cidades de Santa Isabel e Barcelos. Dividiram-se em pequenos grupos e de lá subiram por todos os afluentes do Rio Negro até a Fronteira com Guiana e Venezuela. Uma outra parte da tropa tomou o sentido inverso e partiu na direção do rio Japurá, afluente do Solimões, ao sul. Os militares percorreram um total de 5.000 quilômetros fluviais em voadeiras, num período de 18 dias, em novembro de 2007. Na opera-ção – que possui o nome de um forte veneno extraído de plantas típicas da América do Sul – foram encontradas pistas de pouso clandestinas, utilizadas para o tráfico de drogas, e a presença de muitos estrangeiros nas áreas dos índios yanomamis, supostamente a serviço de ONGs. Dos Santos é critico com relação à atuação de ONGs na região Amazônica. “-A maioria está aqui para beneficio próprio. Se fosse para ajudar eles iriam para o Sertão Nordestino. Lá, os moradores precisam muito mais de ajuda do que os indígenas daqui, e, no entanto não se vê ONG no sertão”. A hipótese que o exército cogita é a de que por trás do assis-tencialismo às comunidades, o verdadeiro interesse é a biopirataria. Le-vantar dados de fauna, flora e dar o bote na maior riqueza genética da humanidade. Todas as informações obtidas na operação são repassadas do CMA para o Ministério da Defesa em Brasília. Para o ano de 2009, está programada outra Curare, no calendário fixado na parede da sala de ope-

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rações, bem acima da cadeira do Major Dos Santos.

Estágio de Adaptação à Vida na Selva (EAVS)

O EAVS é um treinamento composto de instruções básicas de sobrevivência na selva. A duração é de cinco dias e quatro noites no in-terior da floresta amazônica. Todos militares que servem em São Gabriel precisam obrigatoriamente fazer este estágio. Os recrutas, os oficiais graduados transferidos para o Batalhão e até mesmo os profissionais de saúde do exército - médicos, farmacêuti-cos, dentistas - passam por esse período de internato na selva. Amanda Barreto é formada em enfermagem, trabalhou por três anos no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) – órgão do governo federal na região para dar assistência médica às comunidades indígenas. Amanda entrou para o exército este ano, como Oficial Técnica Temporária e irá exercer seus conhecimentos na área de saúde a serviço do 5˚ BIS. Mas antes de cuidar de pacientes, ela aprendeu a sobreviver na selva. Foram cinco dias sem tomar banho, o tempo todo de farda, dor-mindo em redes penduradas em galhos de árvores e se alimentando dos diversos bichos encontrados na mata. O EAVS é realizado na Base de Instrução (BI) do exército, loca-lizada a 10 quilômetros da cidade. A BI é composta por trilhas e cabanas

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onde são feitas as instruções. Na entrada da base uma frase chama a aten-ção: Aprenda a suportar o desconforto e a fadiga sem queixar-se. Amanda conta que a umidade, o calor, e as chuvas que deixavam a farda molhada dificultavam realizar as atividades. Armadilhas, cons-trução de abrigos, nós e amarrações, obtenção de alimentos de origem vegetal e animal são apenas algumas delas.

As instruções de ofidismo costumam despertar inquietações nos participantes. Não basta saber o que fazer em caso de picada, na selva uma cobra pode virar alimento e para isso é preciso saber como pega-lá. Os participantes aprendem as técnicas de dar o bote antes dela e segurar seu pescoço impossibilitando um ataque. As cobras utilizadas para as instruções são jibóias, típicas da região e não peçonhentas. Sorte de um dos soldados que por um descuido levou uma mordi-da na mão e rapidamente ela enrolou em seu braço. Após alguns minutos de tensão, os ajudantes conseguiram abrir a boca da cobra e tirá-la do soldado. As presas do animal deixaram dois furos em sua mão.

Militares recebem instruções no Estágio de Adaptação à vida na Selva (EAVS).

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A jibóia foi parar na panela que preparava a sopa servida na jan-ta. Além dela o menu contava com uma cotia, quatro galinhas e quatro tipos de peixes. Sangue e um pouco de pena também foi adicionado ao caldeirão. Amanda fazendo careta comenta “tem gosto similar a um ma-chucado na gengiva”. Aprender a matar, limpar e preparar os animais são fundamentais em um estágio de sobrevivência, mas nada se compara a importância de obter água. Para isso são ensinadas inúmeras maneiras. Uma delas é tirar as roupas do corpo, esticá-las para armazenar o máximo de água da chuva e depois torcer em cima de um recipiente. Outra forma são os cipós d’agua que se cortados da forma proporcionam quantidades generosas do líquido. E caso encontre água parada na mata, existe formas de purificá-la com coador de folhas e filtros de bambu, podendo ingerir sem prejuízos a saúde. O cansaço que o ambiente de selva proporciona é visto dentro das redes colocadas no acampamento da base. Terminada as tarefas diárias, os participantes desmaiam nelas. Quando estão em grupos, a sensação de segurança aumenta. Por isso é que umas das mais temíveis atividades do EAVS é o pernoite isolado. “Nada foi pior que dormir sozinha, foi a pior experiência da mi-nha vida”, revela Amanda. Ás 17:30h, a viatura foi deixando um a um dos participantes a beira de uma estrada. Eles teriam que caminhar mata adentro, achar um local para montar a rede, fazer fogo e passar a noite toda a sós. No interior da floresta escurece cedo, ás 18:00h já não há mais luz. Amanda conta que tentou colocar fogo em alguns gravetos, mas es-tavam molhados. ”Fiquei no escuro a noite toda, mas não fechei os olhos um minuto sequer”.

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Médicos do exército

Carlos Arthur Ferreira e Lucas Henriques Barreto são médicos. Ferreira é recém formado; Barreto exerce a profissão há dois anos. Por motivos diferentes foram obrigados a ir para São Gabriel da Cachoeira. A Universidade de Taubaté (Unitau), onde Ferreira cursava me-dicina, foi escolhida entre outras faculdades do estado de São Paulo para fornecer médicos ao exército nos anos de 2007, 2008 e 2009. Da sua turma, cerca de 20 colegas tiveram que se incorporar a uma organização militar no final do curso – três deles, incluindo Ferreira foram designados para servir na Amazônia. Barreto não se apresentou ao serviço militar quando fez 18 anos, usou a justificativa que já havia ingressado na faculdade - na cidade de Presidente Prudente, interior do estado de São Paulo - e se tornou refra-tário. Em 2009 foi convocado para então fazer o serviço militar obrigató-rio. Ambos receberam a mesma sentença do estado: passar um ano como médicos do 5˚ BIS. Eles nunca ouviram falar da cidade de São Gabriel, não sabiam da dificuldade de acesso, da distância e não estavam preparados para mudar para um lugar como esse. Mesmo sem conhecer um ao outro, eles procuraram advogados especializados no assunto para evitar ter de servir na Amazônia. Todos apresentaram o mesmo veredicto: “Entrar na justiça apenas adiará, pois quando o processo for analisado em Brasília, você perderá a causa”, es-cutaram os médicos. Assim, a contragosto, os dois arrumaram suas malas e foram para uma região distante mais de 3.000 quilômetros em linha reta das suas. Antes de ser convocado, Ferreira pensava em fazer cursinho para prestar residência, e moraria em Campinas no estado de São Paulo – ci-dade onde sua namorada mora e estuda publicidade. Barreto morava na capital paulista, trabalhava em dois hospitais, recebia uma média de R$ 16 mil por mês e morava sozinho em um apar-tamento de três quartos no Morumbi.

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Ferreira não gostou da cidade logo no início, depois de quatro dias em São Gabriel foi internado com sintomas de Herpes Zoster, de-sencadeado pela baixa imunidade. Segundo ele próprio, a queda de sua imunidade foi devido à depressão. Barreto não gostou do exército. Ele conta indignado que foi in-sultado por um tenente temporário – oficial do exército que não seguirá a carreira militar e nem possui um curso superior - apenas porque sua barba estava um dia sem fazer. Barreto agora receberá um salário de R$ 3,8 mil mensais, equi-valente ao cargo de aspirante à oficial. Seu pai e sua mãe vieram até São Gabriel para acompanhar uma etapa difícil da vida do filho. Ele e Ferreira, depois de aprenderem o básico das técnicas mili-tares no 5˚ BIS, serão incorporados em alguns dos Pelotões Especiais de Fronteira (PEF), irão ser os médicos de comunidades isoladas no interior da Amazônia por 10 meses e 15 dias. Em situações diferentes vieram outros dois médicos recém for-mados para São Gabriel: Júlia Paletta e Aécio Freitas são voluntários. O astral deles é diferente, estão animados com a experiência. “Se tiver guerra, vamos para a guerra, se tiver que lutar, vamos lutar” brinca Jú-lia. Ela tem apenas 24 anos, é loira, de pele muito clara e olhos azuis. Com um corpo magro e de estatura baixa, aparenta ter menos idade do que tem. Júlia é uma das poucas militares do sexo feminino no Batalhão. “È estranho, quando cheguei aqui o pessoal olhava para mim como se eu fosse um alienígena” recorda com seu sotaque mineiro e com expressões fisionômicas delicadas. Ela se formou em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora, cidade onde nasceu, e recentemente passou para residência em anestesia no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Ge-rais (UFMG). Júlia optou ser voluntária do exército, pois era a única forma de trancar sua residência por um ano e conseguir ganhar um “bom” dinhei-ro. Ela receberá o salário padrão de Aspirante à Tenente e mais o auxílio viagem no valor de R$ 25 mil na vinda e mais o mesmo valor quando voltar para Minas Gerais. Na residência receberia apenas o salário de

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cerca de R$ 1,6 mil. Aécio quis ser voluntário do exército porque considera a experi-ência “rica em aprendizados”. Ele quer se especializar em infectologia, e “aqui é o paraíso das doenças tropicais”. Aécio foi quem tratou a mão do soldado ferido pela cobra no EAVS. Estava como médico de plantão do estágio e participava constan-temente das informações dadas pelos instrutores aos participantes. Animado com a selva, com os desafios do novo ambiente, Aécio promete se dedicar ao máximo que puder para ajudar os povos das comu-nidades carentes da região. É justamente nesse contexto que encaixa a principal critica de Barreto e Ferreira sobre esta política do exército de obrigar médicos à servir na Amazônia. “Tem muitos recém formados em medicina, de vários lugares do Brasil que querem vim para cá” afirma Barreto. “O problema é que falta comunicação entre as regiões militares. Ocorre de vir pessoas do estado de São Paulo obrigadas e outras pessoas de outros estados que gostariam de vir como voluntárias não ficam nem sabendo que existe esta oportuni-dade aqui”. Ferreira argumenta que nos Pelotões de Fronteira não tem apare-lhos para realizar diagnósticos, não tem recursos para exercer a medicina aprendida nas faculdades. “No final das contas o médico ali, atua como um enfermeiro”, critica. Na visão dos dois não é necessário um médico ter que ficar em Pelotões, atendendo comunidades 300 ou menos habitantes. O ideal seria ter um agente de saúde para verificar se precisa ou não escoar um pacien-te até o Hospital da Guarnição em São Gabriel. “Mas o estado não faz dessa forma porque fica mais caro transportar doentes em aviões, do que manter um médico por lá”. Aécio tem um ponto de vista contrário. Ele considera importante ter médicos nos Pelotões e recorda de um princípio da medicina em que “a clínica é soberana”, ou seja, vale mais o parecer do médico do que diagnósticos por aparelhos. Dos oito médicos em São Gabriel, quatro são voluntários, a ou-tra metade está por obrigação. Eles participam do MFDV, programa do exército para recrutar médicos, farmacêuticos, dentistas e veterinários

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para servir por um ano nas diversas organizações militares no Brasil. Porém com nas outras carreiras, exceto medicina, o número de voluntários é alto, e chega a ser disputado através de notas de provas a vinda para o exército. No caso dos médicos é ao contrário, quem tira as melhores notas pode escolher se quer ou não ir para o exército. Geral-mente vêm os últimos colocados, obrigados. Júlia se solidariza com seus colegas, “- Eles chegaram aqui que-rendo morrer, pois eles já tinham namoradas, empregos fixos na cidade deles, e ganhando cinco vezes mais que vão ganhar aqui no exército”.Ela defende um aumento do salário para haver mais voluntários na área médica. “- Infelizmente, o que move nosso mundo hoje é dinheiro. Por-que alguém iria querer vir para cá, ganhando um salário de tenente, rece-bendo ordens que talvez ele não concorde e sofrer o treinamento militar? É muito complicado, todo médico que vem, fica um ano e vai embora correndo”.

Aécio mostra a ambulância precariamente equipada do éxercito, mas considera ótima a experiência como médico na região.

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Tenente Coronel

“- Boa tarde Batalhão!”, diz o tenente coronel Marcos dos Santos França ao microfone, em cima de um palanque construído no pátio cen-tral do 5˚ BIS. “ – Boa tarde Comandante!”, responde um coro de aproximada-mente 700 militares. “ – No Forte São Gabriel, a missão....”, incita. E o coro mais uma vez responde: “ – Não se escolhe, nem se discute, cumpre-se! SELLVAAAA!” Quem não está acostumado com a cara fechada dos soldados, com a potência do grito de guerra, e com a disciplina, ao ver esta cena descrita pode imaginar que eles estão prestes a sair em combate. Mas não. Reuniões como essa acontecem toda semana, e são chamadas de formaturas (quando a tropa se apresenta para o comandante ou quando ele precisa dar algum recado em comum para todos). Quando ele entra no Batalhão, os soldados da guarda se levan-tam, batem continência e gritam: “- Selva!”. Se algum sargento, tenente, capitão, ou quem quer que seja cruzar o caminho do comandante, batem continência. No refeitório, antes de sentar, todos batem as continências e pe-dem permissão para almoçar. Santos França parece pouco ligar. Seu sem-blante demonstra que apenas aceita a formalidade porque assim tem que ser. Ele veio de família humilde, do Rio de Janeiro, seu pai era esti-vador e sua mãe costureira. Estudava em escola pública e possuía “um horizonte bastante limitado”, como ele mesmo define. Não tinha idéia do que era escola militar e achava um “negócio” muito estranho: “- Uma escola que você estuda e ainda recebe!”. Após prestar os primeiros concursos, viu que estava longe de con-seguir uma vaga. Sua tia foi quem pagou então um cursinho e em 1979 entrou para a Escola Preparatória de Cadetes em Campinas (SP). Depois que saiu da escola após um ano, estabeleceu um vínculo duradouro com o exército. De campinas foi para a Academia Militar das

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Agulhas Negras (Aman) em Rezende (RJ) para se tornar um oficial de carreira. Depois que se formou na Aman foi para João Pessoa (PB), onde ficou por dois anos e se casou com sua atual esposa. Dali por diante foram diversos destinos, sempre em média de dois anos em cada lugar. Em Manaus, por exemplo, Santos França morou por sete anos, mas nesse período foi transferido três vezes para outras capi-tais. Em seus trinta anos de profissão, sempre sonhou em servir na Amazônia, o que só ocorreu agora em janeiro de 2009. “- A ficha não caiu ainda. Fiz o curso para gerir batalhão, estudei muito sobre a região. Mas muita coisa ainda é novidade. Me sinto realizado com o lugar que ocupo agora”, relata Santos França sobre ser o comandante de mais de 1.000 militares em São Gabriel da Cachoeira. Antes de chegar onde está, o Comandante do 5˚ BIS, completou os mais temidos e complicados treinamentos do exército brasileiro. Ele começou com o Básico Pára-quedista (Pqdt) no Rio e Janeiro. Santos França diz ser o curso de maior exigência física do exército. “- Muitos militares pensam em abandonar o Pqdt, porque ele é basicamente exercícios físicos. Você chega a perder de três a quatro quilos em uma manhã, recupera à tarde e no dia seguinte torna a perder de novo”. “O pára-quedista é preparado para ir além da linha de combate, ocupar o ponto e resistir ali por três dias. Então ele tem que estar acostu-mando a andar muito, carregar muito peso” explica. Como estava preparado fisicamente, Santos França terminou o Pqdt sem maiores problemas, mas no Curso de Operações na Selva (COS), em Manaus, cogitou a hipótese de abandonar o treinamento por-que “além do desgaste físico existia a pressão psicológica”, afirma o co-mandante. Porém a vontade de atuar em ambiente de selva o fez continuar e finalizar o curso já que os formados no COS, geralmente, são enviados para as bases militares da região amazônica. Não foi o que ocorreu no seu caso, ele foi nomeado instrutor do CIGS – órgão que realiza o COS e permaneceu por cinco anos nesse posto. Mas não foram consecutivos estes cinco anos. Nesse período, Santos França foi transferido algumas vezes e fez até serviços de se-

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gurança de embaixada. Em Goiânia, fez o curso de Comandos - o mais “casca grossa” do exército brasileiro.

“- Quando eu fui para o Comandos, quase todo dia eu pensava em pedir para ir embora”, risos, “porque é muito difícil, é um curso que quem não consegue fazer da primeira vez, nunca mais volta para fazê-lo”, brinca Santos França. Mas, analisando as estatísticas, parece haver um fundo de rea-lidade. Dos 95 inscritos de sua turma, 79 se apresentaram, cerca de 20

O Tenente Coronel Santos França que possui grande parte das especializações existente no exército.

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foram embora no primeiro dia, e “aos trancos e barrancos”, como ele mesmo define, 21 candidatos conseguiram se formar. Ainda assim, foi considerado um ano com índice alto de conclusão do curso de Ação e Comandos.

Comandos

O comandos é um militar que é preparado para ser lançado em uma missão que, muitas vezes, não tem previsão de retorno. Até certo ponto ele é um ser “descartável” explica Santos França. O objetivo do comandos é destruição, morte e confusão na re-taguarda profunda do inimigo. Ele se infiltra, de algum meio - pode ser terrestre, fluvial ou aéreo - cumpre a sua missão e volta por sua conta. “- Normalmente ele está bem equipado, bem armado e possui bastante conhecimento técnico” relata o comandante. No curso as atividades começam cedo, às 4 horas da manhã estão fazendo exercícios físicos. O objetivo não é de obter índice, mas sim de aumentar a resistência. Tudo é feito com o equipamento: mochila e fu-zil. Segundo o comandante, não se consegue formar um atleta ou um nadador dessa maneira, mas o ganho de resistência é muito significati-vo. Não tem horário certo para dormir. Não tem horário certo para comer. A incerteza faz parte do treinamento. Instruções de lutas, com ênfase em técnicas de eliminação do oponente, fazem parte da programação além de aprender as técnicas de

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patrulha, guerrear isoladamente e também de comandar pequenos gru-pos. Tudo que se aprende teoricamente é posto em prática, por isso, Santos França afirma ser um curso caro para o exército. “- Se no curso eles dizem que você vai ser lançado em um rochedo no mar há três qui-lômetros da costa, você é lançado!”. O curso tem atividades com submarinos, helicópteros e aviões. È feito no Rio de Janeiro, mas possui etapas em Manaus, Brasília, Petrolina (PE), Santa Maria (RS), Angra dos Reis (RJ) e São João Del Rei (MG), para aprender sobre os diferentes ambientes operacionais. Uma das atividades chamada de “teste de reação de líder” é apli-cada quando os participantes já estão no limite da exaustão. Semanas an-tes de iniciar o teste, a comida vai sendo cada vez mais racionada. “- Eles não tiram completamente porque senão você apaga, mas vão diminuindo até que chega num ponto que você não recebe nada de comida e não re-cebe água. É nessa hora que inicia o teste” relata o comandante. O teste é composto de 20 oficinas, e tem duração de um dia. “-Você recebe uma situação, tem que resolver e rapidamente passa para a próxima”. Geralmente é uma equipe de quatro pessoas. Em algumas ta-refas eles já estabelecem quem vai liderar, em outras fica em aberto para avaliarem a capacidade de liderança de cada um. Na etapa de preparação do teste, Santos França já havia perdido de oito à dez quilos, devido ao racionamento de alimentos. Terminado o teste, ele recorda que estava com 20 quilos a menos do que quando entrou para o curso de comandos. “- Eu olhei no espelho e não acreditava no que estava vendo. Olhei meu braço e falei: Ué cada meu braço?” “- O seu metabolismo fica tão alterado, que você não consegue dormir por mais que duas horas seguidas, eu despertava repetidas vezes no meio da noite e voltava a dormir de novo”. Santos França diz que teve um intervalo no curso, que ele estava tão ruim que não consegui ir para casa. No dia seguinte sua esposa foi buscá-lo. “-Quando ela me viu me deu força, mas depois eu a escutei dizendo para alguém: “- Poxa, porque que ele está fazendo isso com ele mesmo?”,relata, com alguns risos contidos, o comandante do 5˚ BIS.

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Liderança pelo exemplo

O tenente coronel Santos França, além de ser comandos é tam-bém Forças Especiais (F.E). O militar F.E é um especialista em guerra irregular - aquela guerra que ainda não está configurada - em que não existe linha de combate. Ele aprende a se infiltrar em territórios diversos, e fazer mapeamento, investigações, e até repreensão a terroristas e guer-rilheiros. Para fazer o curso mais gabaritado do exército é obrigatório antes ter feito o de comandos. O Forças Especiais tem o “passaporte” para atu-ar em qualquer tipo de operação, em qualquer missão.

O comandante do 5˚ BIS, também é um dos militares com maior tempo de selva no Brasil. Foram mais de 10 mil horas, fruto da época em

O Tenente Coronel Santos França em frente ao efetivo do que comanda, no 5º BIS.

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que atuou no CIGS. Seu maior aprendizado foi fazer sistema com a selva. “Da mesma forma que você pode ser beneficiado, pode ser também bas-tante prejudicado, então tudo tem que ser adaptado para este ambiente, porque senão ele cobra”. Mas isto na parte militar, porque pessoalmente Santos França diz que tudo que está ligado com a selva o atrai. “Eu gosto bastante daqui”, afirma, com ponderação. Apesar de passar por intensos treinamentos militares, o coman-dante é uma pessoa calma. Entrevista-lo é uma tarefa demorada. Fala pausadamente e explica no mínimo detalhe cada pergunta a ele feita. Santos França diz que o seu principal objetivo no 5˚ BIS é alcan-çar a liderança pelo exemplo. “- Eu procuro trabalhar com meu efetivo pelo convencimento, pela credibilidade”. “-Se você tiver a capacidade de convencer as pessoas, você con-segue liderar sem utilizar a hierarquia, sem usar a chefia. Isso é uma coisa difícil e é disso que estou indo atrás”. Santos França desperta admiração e respeito aos seus subalternos no batalhão. Segundo o capitão Rulk, ele é considerado uma lenda dentro do exército. Mas informalmente, conversando com os repórteres, Rulk deixa escapar um apelido: “Sinistrão”. A alcunha é uma brincadeira do capitão, que demonstra a admira-ção pela dedicação do comandante com as Forças Armadas do país e pelo seu histórico no exército brasileiro.

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O acidente

Em abril de 2004, Santos França participaria de um salto de pára-quedas comemorativo ao dia do exército em Goiânia. Ele e a equipe fi-zeram um ensaio do salto, na mesma aeronave e na mesma altura que saltariam, estava tudo certo. No dia da comemoração o tempo estava bom, a equipe saiu em queda a 10mil pés, Santos França fez a navegação e se dirigiu para o local em que desceria. “A 400 pés, já com o alvo enquadrado eu fui liberar a mochila e não me lembro de mais nada, fui acordar no hospital”. No dia seguinte, é que tomou conhecimento do que ocorrera. “Provavelmente eu tive uma crise convulsiva durante o salto, justamente na hora que eu fui fazer a liberação da mochila”. Com a crise Santos França ficou inconsciente e o pára-quedas fez uma série de curvas. Devido a essas curvas o pára-quedas perdeu a sustentação e caiu mais rápido. O chão era de concreto. “-Ainda bem que eu não lembro de nada, mas o pessoal que ou-viu disse que o barulho parecia de uma batida de carro.” O resultado do acidente foram fraturas múltiplas e exposta do úmero. O osso fragmentado passou por quatro cirurgias demorando qua-se dois anos para se consolidar. Seu fêmur foi dividido em três partes e existe uma placa que ago-ra pega o osso por inteiro. Teve uma fratura de costela. Uma fratura no sacro, na altura da base da coluna, perto de onde passam inervações que garantem o movimento dos membros inferiores. Seu coccix quebrou em três lugares, a bacia subiu de um lado e ficou desnivelada. A cartilagem do ilíaco se rompeu. O capacete foi destruído no acidente, mas foi o que impediu de não haver seqüelas neu-rológicas. Quando o médico veio falar com ele, não havia nada comprovado ainda, mas Santos França talvez voltasse a andar apenas com bengala ou muletas. Foi nesta etapa que o comandante mostrou sua determinação e

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perseverança. Depois de um período inicial de seis meses em cadeira de rodas, passou por sessões de quatro a cinco horas por dia de fisioterapia.E a incerteza de que andaria normalmente foi ficando cada vez mais afas-tada. Com o tempo voltou a caminhar, nadar e a correr. “E hoje em dia com limitações eu voltei a fazer tudo que fazia antes”, garante o tenente coronel. “-De vez em quando eu faço uma corrida, mas depois fico uma semana doendo”. No total foram dois anos de tratamento intenso, e San-tos França se considera ainda em processo de recuperação. Depois de 12 cirurgias com anestesia geral e várias outras mais simples, o comandante do 5˚ BIS diz que sua meta agora é ter mais qua-lidade de vida. “Gostaria de chegar aos 80 anos da forma como meu pai está.” diz referindo-se ao fato de seu progenitor ter feito poucas ativida-des físicas e mesmo assim gozar de boa saúde. “Acho difícil, eu com 47 já estou todo estropiado!”, brinca o comandante. Na época do seu acidente, o exército iniciou um processo de re-forma, que consiste em aposentar o militar. Santos França nunca deixou de acreditar que comandaria uma unidade na Amazônia e que consegui-ria mudar as expectativas médicas a cerca de sua recuperação.Quando lhe perguntei de onde tirou forças para se recuperar de um aci-dente grave como esse, sentenciou: “Eu sou comandos!” “ Quem é comandos nunca desiste!”

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Episodio do “Rio Traíra”

“Tudo não durou mais de cinco minutos. Os dois soldados de sentinela, Sansão Gonçalves e Aldemir Lopes, morreram na hora com tiros na cabeça. Um outro, Sidimar Moraes, tentou pegar a arma, mas também foi metralhado. Os 15 restantes, rendidos na barraca central, só não foram eliminados por clemência. Foi assim que, numa manhã de fevereiro, o temor de uma invasão na Amazô-nia ganhou contornos reais. Um destacamento de 17 soldados bra-sileiros, que ocupava as margens do Rio Traíra, na fronteira com a Colômbia, foi atacado por mais de 40 homens armados, prova-velmente guerrilheiros das Forças Armadas Colombianas (Farc).”

O texto acima extraído do livro Inventário da Amazônia de Chico Otávio, relata o episódio ocorrido no dia 26 de fevereiro de 1991. Após o ataque ao destacamento, o exército brasileiro deflagrou uma reação que resultaria, dias depois, na morte de pelo menos sete colombianos. Ainda segundo o autor, não ficou evidente a verdadeira identida-de dos mortos no conflito conforme o trecho a seguir:

“Desde então, o Exercito sustenta que os mortos eram guer-rilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia que reagiram ao cerco da tropa brasileira. Um sargento e dois soldados que participaram da ação, comerciantes colombia-nos, e parentes da vitima afirmam que os mortos eram garim-peiros sem ligação com a guerrilha, que foram perseguidos, capturados, torturados e executados por militares brasileiros”.

O posto militar do Rio Traíra era um produto do projeto Calha Norte, implantado em 1985. Ele foi concebido com o propósito de prote-ger uma área considerada vulnerável para a segurança nacional. Ao mes-mo tempo em que previa o aumento da presença do Estado na fronteira,

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o projeto apontava a necessidade do desenvolvimento econômico-social dessa área, inclusive com o estímulo à migração. O Hospital da Guarnição de São Gabriel da Cachoeira, o porto de Camanaus, e as edificações dos Pelotões Especiais de Fronteira da cabe-ça do Cachorro também são frutos do Calha Norte. Após o episódio do Traíra, o governo intensificou a atuação nessa região. Tanto que os recursos e a área de influencia do Calha Norte au-mentaram. Ele passou a abranger municípios que estão fora da área de fron-teira, além dos Estados do Acre e de Rondônia. O número atual de mu-nicípios incluídos é de 151; destes, 95 na fronteira política. A área total coberta é de 10.938 quilômetros, abrangendo agora 25% do território nacional. Antes, ele só cobria 17%. Em dezembro de 2008, o presidente da república Luis Inácio Lula da Silva lançou o “Amazônia Protegida”, projeto que prevê a criação de mais 28 pelotões de fronteira. A idéia é que os novos pelotões estejam prontos para reagir imediatamente a qualquer ameaça e para monitorar ações suspeitas, seja no trafico de drogas ou no biogenético.

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Capítulo 5 - As Fronteiras

Companhia Especial de Fronteira

Subordinado ao 5˚ Batalhão de Infantaria de Selva estão os sete Pelotões Especiais de Fronteira (PEF). Todos construídos para povoar e defender a região de fronteira com a Colômbia e Venezuela. Não existe acesso terrestre para nenhum pelotão. Antigamente a estrada que ligava São Gabriel ao 4˚ PEF, garantia uma maior mobilida-de entre os dois pontos. Hoje metade dela está tomada pelo mato e em alguns trechos as pontes estão destruídas. O acesso aos pelotões via fluvial é incerto, depende da altura da água. Em certos trechos as pedras emergem e impossibilitam a travessia. No 3˚ PEF, localizado a 320 quilômetros em linha reta de São Gabriel a viagem pode demorar semanas. È devido a este isolamento dos pelotões e as dificuldades de aces-so que foi criado a Companhia Especial de Fronteira (CEF). A compa-nhia, instalada dentro do 5˚ BIS, é responsável pela logística dos pelo-tões. Semanalmente, são feitos levantamentos sobre a quantidade de suprimentos ainda existentes nos pelotões. É grande a preocupação em não deixar faltar alimentos e remédios para os militares nas fronteiras. Para isto não ocorrer, o contato por rádio é constante entre os membros da Cef e os pelotões. Eles tentam calcular os estoques com os cronogramas dos vôos da Forca Aérea Brasileira (FAB) que transportam

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em determinados períodos os materiais necessários para possibilitar a sobrevivência dos PEFs. Esses vôos são realizados por meio do Plano de Apoio a Amazô-nia (PAA), uma parceria entre Exército Brasileiro e FAB. O PAA dura em torno de cinco dias consecutivos, geralmente começa na segunda e termina na sexta-feira. A missão da CEF é embalar todo o material a ser transportado e desloca-lo até o aeroporto Uaupés. Porém a trabalho da companhia se inicia antes mesmo do período dos vôos. O responsável pelo embarque das mercadorias é o tenente Adrien. Quando a FAB envia o comunicado estipulando as datas dos vôos, ele precisa avisar em até 24 horas os pelotões e os quatro maiores comércios locais.

Dessa forma, os militares na fronteira entrem em contado com os comerciantes de São Gabriel através de e-mails, msn ou mesmo telefone e encomendam os mais variados produtos.

Tenente Adrien utiliza o rádio para fazer contato com os pelotões de fronteira.

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O exército garante a alimentação dos soldados que servem nas fronteiras, assim como a energia elétrica e as moradias. Mas é preciso pagar do próprio bolso quando é algo supérfluo. Adrien, que já comandou por um ano e dois meses o 2˚ PEF, diz que sempre encomendava chocolate, sorvete e refrigerante. E até alguns produtos de higiene pessoal como barbeadores, desodorantes e papeis higiênicos mais “macios” que os disponibilizados pelo exército. Ele calcula que aproximadamente 70% dos materiais embarca-dos no PAA são do exército. Dentre eles, alimentos secos e perecíveis, materiais de construção, armamento, combustível, e remédios. Os 30% restantes são utensílios pessoais. “- Em épocas de páscoa, por exemplo, uma grande quantidade de ovos de chocolate. No natal, árvores, enfeites e presentes, são embarcados”, afirma o tenente. Geralmente quem está no PEF utiliza o serviço do furriel – um militar membro da CEF, que fica em São Gabriel e possui acesso às con-tas bancárias dos soldados para efetuar os pagamentos e outras movimen-tações financeiras. Há três meses no comandando da CEF, está o Capitão Alves. Ele afirma que o principal problema em gerir sua companhia é restrição fi-nanceira. “Para o próximo PAA não deverá embarcar combustível. Então eu tenho que passar isto para os pelotões e achar um meio deles econo-mizar a gasolina e o diesel porque eles não podem ficar sem”. Um outro exemplo é com a questão da comunicação. “- Cada PEF possui uma estação de rádio. Se queimar uma fonte de alimentação, como ocorreu no 4˚ PEF, a gente fica com pouca possibilidade de comu-nicação”, conclui Alves referindo-se a um incidente ocorrido na semana anterior da entrevista. Na semana da entrevista o problema estava no 7˚ PEF, localizado em Tunuí. O gerador queimou deixando o destacamento do exército sem energia. Para não estragar a carne que estava congelada, os militares tive-ram que pedir para utilizar o freezer do Distrito Sanitário Especial Indí-gena (DSEI). A energia só voltou depois de cinco dias.

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Plano de Apoio à Amazônia

Durante a terceira semana de março de 2009, acompanhamos o Plano de Apoio a Amazônia (PAA). Foram 20 vôos em um período de cinco dias que os pilotos da FAB fizeram entre São Gabriel da Cachoeira e alguns dos Pelotões Especiais de Fronteira. Deste total, nós repórteres embarcamos em 10 vôos, pois por res-trição da Força Aérea Brasileira não é possível transportar civis quando as aeronaves estiverem carregando galões de combustível. O avião C 105 Amazonas, de fabricação espanhola, tocou o chão do aeroporto de Uaupés, em São Gabriel, às 10 horas da manhã de uma segunda-feira. A partir de então se inicia uma maratona de tarefas. Os membros da CEF já estão na pista de pouso, para colocar as mercadorias na aeronave. Ao mesmo tempo o mecânico da FAB inspeciona asas, fuselagem e sistemas elétricos. A maioria das pistas em que o avião pousará nos próximos dias são pequenas, com irregularidades e desníveis. Uma delas não está nem asfaltada – é de terra batida. O trio de pilotos é composto pelos tenentes Campos e Amorim e pelo major Gonçalves. O major veio de Campo Grande para aprender, na Amazônia, com os dois tenentes a pousar o C 105 Amazonas em pistas pequenas. Para isso eles utilizaram um recurso da aeronave chamado de “reverso”. A turbina de um avião é programada para gerar um fluxo de ar para trás, aumentando a propulsão para a decolagem e a velocidade de cruzeiro. Com esse sistema ela inverte seu funcionamento e passa a gerar um fluxo de ar para frente, reduzindo assim a velocidade da aeronave quando toca o solo. Durante a terceira semana de março de 2009, acompanhamos o Plano de Apoio a Amazônia (PAA). Foram 20 vôos em um período de cinco dias que os pilotos da FAB fizeram entre São Gabriel da Cachoeira e alguns dos Pelotões Especiais de Fronteira. Deste total, nós repórteres embarcamos em 10 vôos, pois por res-trição da Força Aérea Brasileira não é possível transportar civis quando

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as aeronaves estiverem carregando galões de combustível. O avião C 105 Amazonas, de fabricação espanhola, tocou o chão do aeroporto de Uaupés, em São Gabriel, às 10 horas da manhã de uma segunda-feira. A partir de então se inicia uma maratona de tarefas. Os membros da CEF já estão na pista de pouso, para colocar as mercadorias na aeronave. Ao mesmo tempo o mecânico da FAB inspeciona asas, fuselagem e sistemas elétricos. A maioria das pistas em que o avião pousará nos próximos dias são pequenas, com irregularidades e desníveis. Uma delas não está nem asfaltada – é de terra batida. O trio de pilotos é composto pelos tenentes Campos e Amorim e pelo major Gonçalves. O major veio de Campo Grande para aprender, na Amazônia, com os dois tenentes a pousar o C 105 Amazonas em pistas pequenas. Para isso eles utilizaram um recurso da aeronave chamado de “reverso”.

A turbina de um avião é programada para gerar um fluxo de ar para trás, aumentando a propulsão para a decolagem e a velocidade de

A tripulação em frente ao Amazonas, a ajuda da FAB é essencial para a sobrevivência dos Pelotões de Fronteira.

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cruzeiro. Com esse sistema ela inverte seu funcionamento e passa a gerar um fluxo de ar para frente, reduzindo assim a velocidade da aeronave quando toca o solo. Outra dificuldade dos pilotos é com a visibilidade. Como na re-gião amazônica o índice pluviométrico é alto, as fortes chuvas atrapa-lham a enxergar as pistas. Uma manobra comum que se faz nesse caso é pilotar sempre rente a copa das árvores, fazendo a aeronave planar abaixo da nebulosidade. Devido a esse método os pilotos dessas áreas são conhecidos como “araras”, uma referência às aves que também sobrevoam a mesma altura. No PAA, geralmente o avião sai com os mantimentos de São Ga-briel e descarrega nos pelotões. No total são cerca de 60 toneladas trans-portados nos cinco dias. Na volta é comum vir militares que saíram de férias ou pessoas das comunidades indígenas próximas aos pelotões. Para demonstrar a importância do apoio da Força Aérea Brasilei-ra aos pelotões uma placa está pregada em todos os quartéis: “Da primei-ra tábua ao último prego, todo material empregado nestas instalações foi transportado nas asas da FAB”.

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Pelotões Especiais de Fronteira

1˚ PEF - Iauaretê

Após pousar no aeroporto Uaupés, no primeiro dia de PAA, o avião da FAB, depois de carregado, partiu para Iauaretê – distrito de São Gabriel, localizado a 246 quilômetros. È nesta comunidade, de aproxi-madamente 3.000 habitantes, que está sediado o 1˚ Pelotão Especial de Fronteira (1˚ PEF). Durante a viagem é possível ver a selva Amazônica como um imenso tapete de várias tonalidades de verde. Em alguns pontos deste tapete se encontram umas manchas negras, são as sombras das nuvens projetadas na floresta. Ir além de São Gabriel da Cachoeira, no sentido das fronteiras, é sobrevoar os pontos mais distantes do centro do Brasil – lugares em que não existem desmatamentos. No do interior amazônico a natureza é soberana. Após 39 minutos de vôo, a uma velocidade de 450km/h, surge enfim a civilização. Iauaretê no dialeto indígena tucano significa “cacho-eira das onças”. Sua ocupação começou de forma definitiva em 1927 com alguns padres e freiras brasileiros e europeus se instalando por lá com o objetivo de catequizar os indígenas – as chamadas missões salesianas. Antes dis-so, elas já existiam, mas apenas de forma itinerante pela região. Cerca de 50 militares esperavam o avião da FAB para descarregar as sete toneladas e 400 quilos de suprimentos e outros materiais e trans-portá-los até a sede do pelotão. Mas não eram apenas mercadorias que ficariam em Iauaretê, a aeronave trouxe também um médico para a comunidade. Carlos Artur

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Ferreira foi destinada para prestar seu serviço militar obrigatório no 1˚ PEF. Agora, o recém formado em medicina será o responsável por prestar atendimento aos moradores e militares que estão em uma das re-giões mais isoladas do país. A localização de Iauaretê no mapa é dentro da boca da cabeça do cachorro. Apenas um rio – o Uaupés – separa o pelotão da comunidade de Aduana na Colômbia. Por ali é comum ver índios que não sabem ao certo se são cidadãos colombianos ou brasileiros. “Índio não tem fronteira”, é o que diz a maioria das pessoas da região. O tenente Bacchini há três meses é o comandante do 1˚ PEF. O jovem de 23 anos, nascido em Juiz de Fora (MG), diz que o trabalho de seus subordinados na fronteira é manter a presença do estado. Eles não fazem uma fiscalização ostensiva contra a entrada de ilícitos e não averiguam todo barco que vem do país vizinho. Para o te-nente, não há meios de coibir a ação dos narcotraficantes apenas com o seu efetivo de 66 homens - sendo 5 oficiais, 9 sargentos, 16 cabos e o restante soldados. Segundo Bacchini, a guerra do pelotão é contra a escassez de recursos para atender a comunidade. Apenas um médico é pouco para a população, e é comum faltar remédios, e materiais hospitalares. Em Iauaretê existem dois hospitais: o São Miguel e o Calha Nor-te, sendo que este último está desativado. O que ainda funciona possui um centro cirúrgico que nunca foi utilizado, pois nunca teve um médico cirurgião no hospital. Ferreira já sabe das condições que irá enfrentar. Ele não fez resi-dência, não possui experiência em cirurgia e ainda não terá aparelhos de diagnósticos para auxiliá-lo nos tratamentos. O major Cauper do 5˚ BIS, comandou o pelotão de Iauaretê de1993 à 1994. Ele confirma os mesmos argumentos de Bacchini, di-zendo que naquela época sua maior luta era administrativa. “- Faltam muitos recursos e isto acaba sendo uma preocupação para o comandante.Naquele período nós tínhamos energia elétrica apenas 7 horas por dia”. Atualmente todos os sete pelotões possuem eletricidade 24 ho-ras por dia, fornecida pela Companhia Energética do Amazonas (Ceam), como é o caso de Iauaretê. Em alguns PEFs mais distantes a energia é

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produzida por geradores instalados nos pelotões. Durante o período noturno é proibida a navegação pelo rio, mas mesmo a presença de energia elétrica não ajuda os militares a fiscalizar este fluxo de embarcações.

No pelotão não existe faróis, refletores e nenhum outro mecanis-mo de fazer a vigília noturna. Apenas um militar fica de prontidão em uma pequena sentinela construída as margens do rio Uaupés. Perto dali se encontra a vila militar com dez casas, dispostas lado a lado, onde mora o comandante, alguns sargentos com suas famílias e os profissionais de saúde. No seu segundo dia em Iauaretê o médico Ferreira já se deparou com sua primeira tarefa. Às 8 horas da manhã, quando estava saindo de sua residência, veio o soldado Isaque, um tanto apavorado, dizendo que seu pai não estava bem. O jovem militar, natural de Iauaretê, explicou ao doutor que os sintomas que seu pai apresentava eram de fortes dores de cabeça e vômi-

Sentinela vigía a fronteira com a Colômbia em Iauaretê.

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tos. Ferreira não sabia como proceder, ainda não conhecia as instalações e nem sabia onde encontraria remédios. Quem atendeu o Pai de Isaque foi um enfermeiro do pelotão, que depois o encaminhou ao médico. Após examiná-lo, Ferreira disse que era um caso de dor de cabeça comum. O avião da FAB fazia sua segunda etapa de entrega de suprimen-tos em Iauaretê. Após decolar aconteceu ali o que ninguém esperava. O estado de saúde do pai de Isaque piorou. Foi constatado que ele estava tendo um derrame. Quando a informação chegou ao 5˚ BIS, o avião já havia parti-do novamente para fazer as entregas no 2˚ PEF em Querari. O tenente Adrien, que havia recebido o alerta se deslocou até o aeroporto e, por rádio, repassou a informação aos pilotos. Estes últimos consultaram um médico da Força Aérea em Ma-naus, que desautorizou o resgate do pai do soldado. Segundo os pilotos a orientação que eles tiveram era que neste caso o paciente não suportaria variações de pressão e altitude e agravaria seu quadro. O pai do soldado Isaque morreu no final da tarde, em Iauaretê, no primeiro dia de trabalho de Ferreira. Sinal de que sua temporada na fronteira será de grandes desafios.

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2˚ PEF – Querari

A 200 quilômetros acima de Iauaretê, por via fluvial, se encontra o 2˚ Pelotão Especial de Fronteira (2˚ PEF), sediado na comunidade in-dígena de Querari. A posição que o pelotão ocupa no mapa é nos dentes superiores dianteiros da cabeça do cachorro. É o mais distante de São Gabriel da Cachoeira, a exatamente 335 quilômetros via aérea. Devido ao seu isolamento e por ser próximo aos acampamentos das Farcs – alguns a 30 quilômetros – o pelotão de Que-rari deveria ser o mais preparado, melhor equipado e com maiores possi-bilidades de comunicação com o 5˚ BIS. Mas não é bem assim. Para começar a pista de pouso possui ape-nas um quilômetro - uma das menores dos pelotões, ficando atrás apenas de Tunuí. Pousar ali é “uma tarefa que não permite muitos erros”, diz o tenente Campos, que dentre os pilotos é o que tem mais experiência em pistas curtas. “Isso dificulta a vinda de aeronaves de grande porte, e deixa inviável a aterrissagem em dias de chuvas”. O efetivo do pelotão na época da visita dos repórteres era de ape-nas 25 soldados, sete sargentos e um tenente - que exerce a função de comandante da tropa e juiz de paz na comunidade. Em Querari vivem, além dos militares, cerca de 120 índios, da etnia cubeu. Os acampamentos da guerrilha, geralmente, contam com 300 a 500 membros cada. O cabo Vasquez está há 18 anos servindo no 2˚ PEF e conta que em novembro de 1998, durante a tomada de Mitú pelas Farcs, ouvia-se tiros, rajadas e granadas. A cidade colombiana, que fica a 50 quilômetros de Querari, hoje está livre, mas acredita-se que muitos guerrilheiros ainda transitam pela região por meio de embarcações utilizadas para o transporte de drogas. Para fazer a patrulha, os militares brasileiros dispõem apenas de um barco com motor de popa de 25 Hp. “Sabemos que os guerrilheiros passam por aqui, mas pouco podemos fazer. Muitas vezes não temos nem combustível para as rondas”, afirma um dos solados do pelotão. A vulnerabilidade do 2˚ PEF foi tema da reportagem que o jorna-lista Rodrigo Rangel fez para a revista ¹Época em setembro de 2007. Já

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a revista ²Veja , em 1999, mostra como o exército brasileiro se prepara caso ocorra uma invasão das Farcs na região de Querari.

Para os soldados do 2˚ PEF, o isolamento é a principal dificulda-de.Existe apenas um rádio para fazer contato com o 5˚ BIS, e eles estão há sete meses sem telefone. Desde que o aparelho estragou, os militares falam com as famílias apenas pela internet. Quando a família não possui um computador ou acesso a rede, não existe comunicação. Ali muitos estão há meses sem contato. Um dos soldados perdeu o irmão e ficou sabendo uma semana depois.

¹A reportagem de Rodrigo Rangel pode ser acessada em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG80777-6009,00-NA+FRONTEIRA+COM+AS+FARC.html ²A reportagem da Veja, está disponível no endereço: http://veja.abril.com.br/101199/p_190.html

Entrada do 2º Pelotão Especial de Fronteira - Querari

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3˚ PEF – São Joaquim

A localização do 3˚ Pelotão Especial de Fronteira é no focinho do cachorro. Junto com Querari são os mais distantes de São Gabriel. Porém São Joaquim apresenta maior dificuldade de acesso, sua rota fluvial é praticamente inviável a maior parte do ano. As corredeiras e pedras pelos caminhos permitem a passagem apenas para as pequenas embarcações e a viagem pode demorar mais de uma semana. O isolamento extremo foi o que motivou a antropóloga Fabiane Vinente a fazer sua tese de doutorado na comunidade indígena de São Joaquim. O 3˚ PEF, tem o solo coberto por areia e as estruturas e instala-ções são de madeiras. As casas dispostas lado a lado parecem pequenas pousadas. As construções do pelotão de São Joaquim se assemelham às de Iauaretê e Querari. Todos os três PEF foram criados em 1988. Além dos 44 militares, comandados pelo tenente Paiva, cerca de 250 índios da etnia Curipacu vivem nessa área próxima ao rio Içana. Fabiane está analisando a influência do exército na comunidade. Nos 28 dias que passou em São Joaquim, ela constatou que os indígenas que se tornam militares são bem vistos pelos membros de seu grupo. Porém, ela aponta que ainda é cedo para tirar conclusões sobre as conseqüências da introdução de salários em economias baseadas no escambo. Além disso, a antropóloga investiga uma provável mudança nas hierarquias da sociedade indígena. Na tese que ela apresentará daqui a um ano na Unicamp, a ama-zonense quer desvendar como o dinheiro e o poder obtido pelos jovens indígenas no exército pode lhes conferir “status”, e dar a eles posições de decisões dentro de suas comunidades. A chegada do avião da FAB é o evento do mês, conta a antro-póloga. “Desde as crianças, até os senhores de idade vem para a pista acompanhar o descarregamento das mercadorias”. “Isto demonstra o grau de isolamento daqui. Se São Gabriel já é uma cidade distante, e que poucas pessoas conhecem, São Joaquim então é um lugar extremamente escondido”, diz a antropóloga. Na volta da aeronave da FAB havia 38 indígenas, indo de carona

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para a cidade. A maioria viajava para buscar o dinheiro do bolsa família – que pode chegar ao valor máximo de R$ 182,00. O capitão da comunidade de São Joaquim, o indígena Ramiro, também estava na aeronave, mas destinava-se à São Gabriel por outro motivo. Ele iria conversar com o prefeito Pedro Garcia, para conseguir alguns recursos que a comunidade estava precisando: dentre eles uma moto-serra e materiais de construção. Se na ida os indígenas passam 51 minutos no avião, no retorno para casa eles passarão por cerca de oito dias e oitos noites em bongos sobre o rio Içana. Uma boa parte do dinheiro recebido na cidade, já ficará na via-gem de volta, em despesas com a gasolina, a R$ 3,00 o litro, e óleo para o motor.

5˚ PEF – Maturacá

O 5˚ Pelotão Especial de Fronteira está situado no sopé do Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, com 2.994 metros³ . Ele foi constru-ído em 1994, próximo à aldeia indígena de Maturacá. O tenente Maiko Oliveira é o atual comandante do 5˚ PEF. Nasci-do em Santa Isabel do Rio Negro, ele é o primeiro descendente de índios a se tornar oficial do exército na região. A oportunidade de Maiko surgiu quando sua irmã se casou com um militar que servia em São Gabriel. Após mudar para outras cidades, o casal sempre levava o menino com o objetivo de lhe proporcionar uma melhor educação escolar. Maiko sempre quis ser militar e retornar para a região do Alto Rio Negro. Depois que se formou na Aman, pediu transferência para o 5˚ BIS. O pelotão que ele comanda hoje está situado em uma área estratégi-ca.

³Medição revista pelo IBGE e pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) em 2005, antes se acreditava que o pico possuía 3.014 metros de altitude.

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Maturacá é uma comunidade de 1.200 índios ianomâmis dentro das terras demarcadas para esta etnia. Neste território é como se existis-se um país dentro do Brasil. A entrada não é permitida para um cidadão comum e quem tem a posse das terras são os próprios índios. A Terra Indígena Ianomâmi possui 9,4 milhões de hectares e um subsolo repleto de minerais. Em parte deste território está o Parque Na-cional do Pico da Neblina e a Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, que contém nióbio, ferro, manganês... O garimpo clandestino de ouro também está presente na região. Em Maturacá, segundo um dos militares do pelotão, o grama do mineral é vendido pelos garimpeiros a R$ 30,00. Na Bolsa de Valores, Mercado-rias e Futuros de São Paulo (BM&FBovespa) o grama é comercializado a R$ 61,50. Mas a maior problemática da região de Maturacá, segundo o Exér-cito Brasileiro, é questão da soberania do território nacional. O General Augusto Heleno alertou, em abril de 2008, quando ainda era Comandante Militar da Amazônia, que a criação de extensas áreas indígenas nas fron-teiras representa perigo para a integridade do país.

Entrada do 5º Pelotão Especial de Fronteira - Maturacá

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“Pela primeira vez estamos escutando coisas que nunca escuta-mos na história do Brasil. Negócio de índio e não índio? No bairro da Liberdade, em São Paulo, vai ter japonês e não-japonês? Só entra quem é japonês? Como um brasileiro não pode entrar numa terra porque é uma terra indígena?”, afirmou Heleno em palestra conferida no clube militar no Rio de Janeiro. A posição do exército é de que a criação destas reservas deixa as comunidades indígenas a mercê da influência de Ongs estrangeiras, interessadas na biopirataria e nos minerais da região. Heleno ainda 4afirma que a política indigenista deve ser revista no Brasil. O estado precisa estar mais presente nas áreas indígenas, le-vando apoio, assistência médica, educação e incrementando valores na-cionalistas em prol de uma pátria unificada e fortalecida. Caso isso não ocorra, os estrangeiros, que já estão em grandes quantidades na região poderão cultivar valores nos indígenas que serão contrários à soberania nacional. O exército levanta até a hipótese de no futuro haver conflitos ar-mados, resultado dessa política de separação.

6˚ PEF – Pari-Cachoeira

O 6˚ Pelotão Especial de Fronteira, foi criado em 1999. Sua po-sição no mapa é no maxilar do cachorro, onde está situada a comunidade indígena de Pari-Cachoeira. O rio mais próximo, o Tiquié, está a quatro quilômetros. O 6˚ PEF possui todas as suas estruturas nas cores verde e branco. A vista ao redor é de 360˚ graus de selva. O novo dentista do pelotão que chegou com o vôo da FAB, para ficar um ano em Pari-Ca-choeira, ao por os pés em terra firme exclamou:

4 A matéria em que Heleno critica a política indigenista está disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u393029.shtml

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“- Minha mulher não vai aceitar ficar aqui nunca! Vai querer ir embora no primeiro mês!”, disse referindo-se ao fato de que sua compa-nheira chegaria depois para morar com ele no 6˚PEF.

O capitão Rulk, que hoje está no 5˚ BIS, foi comandante de Pari-Cachoeira de 2003 à 2005. “Era para passar dois anos, mas gostei tanto de lá, que liguei para o coronel e pedi para ficar mais um ano. Eu tinha um vínculo afetivo muito forte com a tropa e com a comunidade”. Rulk avalia que o militar que recebe a missão de comandar um pelotão de fronteira recebe um enriquecimento profissional gigantesco. “- Eu tive até que aprender um pouco do dialeto local da comuni-dade pois a maioria não sabia o português”. O capitão diz que a vida no PEF devido ao isolamento é sofrida de todas as maneiras, mas o pessoal que está lá fica muito unido. “- Acon-tece com todos que chegam para passar uma temporada nos pelotões. No início estranham, com o tempo se acostumam e quando partem sentem saudades.” Rulk viu muitas esposas de militares reclamarem da vida no PEF,

Soldados do 6º Pelotão Especial de Fronteira carregam isopores com alimentos levados pela FAB ao PEF.

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mas segundo ele, depois que elas iam embora falavam que o período que viveram ali estavam sempre com os maridos e foram os melhores anos de seus casamentos. Ele não teve a mesma sorte. Nos três anos que morou em Pari-cachoeira, Rulk ficou distante de sua namorada, que morava em Salvador (BA). “- O namoro era por internet, messenger, email” ainda assim com racionamento de tempo pois naquele período o pelotão contava com ape-nas 7 horas de energia por dia. “- Era o tempo necessário para não estra-gar a carne no freezer”, relembra Rulk. Mas ficar longe não atrapalhou seus sentimentos. Ele afirma que nunca traiu sua namorada durante sua estadia no PEF. O segredo foi uma técnica que segundo ele é difundida entre os militares que vivem longe de suas companheiras: a sublimação. A técnica consiste em transformar a energia sexual em gastos ca-lóricos. “- Então eu corria, fazia flexões, jogava futebol, malhava, traba-lhava e no fim do dia, eu desmaiava”, explica o capitão. Hoje ele está casado e há dois anos nasceu o pequeno Raid. Mas ele afirma que mulheres sempre foi motivo de conflitos no pelotão.“- Os soldados tem um certo poder aquisitivo, isto desperta o inte-resse das meninas, pois eles podem dar um presente, um perfume etc...” e muitas vezes isso termina em brigas entre os próprios indígenas. Rulk recorda de um episódio em que teve que reunir toda a co-munidade. Havia boatos de que uma emboscada seria feita para matar um soldado de sua tropa. Na reunião que contou com o apoio do líder local, o ancião Henrique de Castro, foi colocado de um lado os militares do pelotão e de outro os jovens de Pari - Cachoeira. Rulk então pediu para que os membros do pelotão que fossem nativos da própria comunidade se levantassem. Em torno de 40% dos sol-dados se levantaram. Então o capitão pediu para quem fosse descendente de índios se levantassem. E 90% do pelotão ficou de pé. O capitão conclui: “- Vocês estão vendo? Vocês estão brigando com gente da mesma raiz de vocês. Aqui não tem soldado e não soldado, aqui tem irmãos de sangue”. Atualmente o comandante do 6˚ PEF , tenente Jim, diz que os conflitos internos diminuíram e a unidade entre militares e os índios da

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comunidade foi finalmente comprovada em setembro de 2008. Informações sobre uma provável invasão das Farc ao pelotão, fez com que os 1.000 habitantes da comunidade se agrupassem com os mili-tares e juntamente com o reforço vindo do 5˚ BIS formassem uma frente de defesa. O ataque não se realizou, mas de qualquer forma as palavras de Rulk se concretizaram na mentalidade dos moradores do local. E segun-do os militares esta relação próxima com os índios é vital para os Pelo-tões Especiais de Fronteira.

7˚ PEF – Tunuí

O 7˚ Pelotão Especial de Fronteira foi criado em 2003. Sua po-sição no mapa é nos olhos da cabeça do cachorro. Nas imediações do pelotão, existe a comunidade indígena de Tunuí-Cachoeira. São da etnia baniúa e vivem basicamente da caça, pesca e cultura de subsistência de mandioca e abacaxi. Como a pista de pouso do pelotão suporta apenas pequenos avi-ões, o abastecimento de Tunuí é feito via fluvial. O funcionamento do 7˚ PEF também é diferente dos demais. Os soldados servem em sistema de rodízios. A cada dois meses troca a tro-pa de Tunuí. No pelotão não existe vilas residenciais e as famílias não acompanham os militares que são destacados para lá. O Ministério da Defesa criará até 2018 mais 28 pelotões de fron-teiras aos moldes de Tunuí. Eles serão prioritariamente “células de vigi-lância militar” e servirão para monitorar e reagir imediatamente a qual-quer ameaça, nos 11.000 quilômetros de fronteira da Amazônia. O projeto que custará R$ 1 bilhão faz parte do programa Amazô-nia Protegida, elaborado com base na Estratégia Nacional de Defesa lan-çada em dezembro de 2008 pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva.Nessa nova concepção, os 28 pelotões serão a ponta de um sistema estra-

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tégico de defesa que contará com menos gente e mais equipamentos.

Tríplice Fronteira

A tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia é um local estratégico do ponto de vista da segurança nacional. È a principal entrada para o noroeste do estado do Amazonas. O rio Negro que nasce nos An-des e segue seu curso para o Brasil só se torna um rio brasileiro depois dessa localidade. Bem próximo ao marco que divide os três países, no distrito de Cucuí, está instalado o 4˚ Pelotão Especial de Fronteira (4˚ PEF). A ori-gem do mais antigo dos pelotões – construído em 1940 - vem desde o século 18, quando os portugueses criaram no local o Forte São José de Marabitanas. A posição do pelotão no mapa é em um ponto entre a nuca e a orelha da cabeça do cachorro. Do lado venezuelano existe o pelotão San Simon Bolívar, conhecido como Chaparro, formado por um efetivo de 20 soldados em sistema de rodízio. O próprio comandante, que se identificou com Aguillera, está há menos de um dia no pelotão e sua permanência assim como a dos demais, será de no máximo dois meses. Um dos soldados cavava uma espécie de trincheira na entrada do pelotão, perto de uma placa com o título “Ora-cíon del guerrero selvático”. No 4˚ PEF também existe uma placa seme-lhante, porém com a oração em língua portuguesa. A ausência de fardas e a postura displicente da maioria dos solda-

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dos venezuelanos dá a impressão de serem membros de uma milícia ou guerrilha de selva. Eles vestiam calções de futebol, estavam sem camisas e com fuzis HK à tiracolo. Uma imagem diferente da que se vê nos mili-tares brasileiros que trajam obrigatoriamente um fardamento pesado em um clima quente e úmido. A relação entre os vizinhos é amistosa. Na visita em que fez aos venezuelanos, o comandante do 4˚ PEF, capitão Paulo Santos, convidou-os para uma partida de futebol, no gramado de Cucuí. Ao final da conver-sa ainda brincou “Costuma ficar uns quatro a zero para o Brasil”. O entrave existente na região é no lado colombiano. Paulo Santos conta que, quando chegou ao pelotão em novembro de 2007, o acampa-mento da Frente 16 das Farc estava a oito quilômetros do 4˚ PEF. A Frente 16 é uma das mais fortes de toda a estrutura da guer-rilha. Ela é responsável pela gestão da pasta de coca produzida em seu “território” e pela movimentação do dinheiro obtido com a negociação da droga. Em janeiro de 2008 o exército colombiano ocupou a cidade de San Felipe e as instalações de Guadalupe – uma pequena fazenda aban-donada que a Frente 16 utilizava como base operacional. Na investida do exército não houve confrontos, os membros das Farc souberam previamente da ação dos militares colombianos e parti-ram para o interior da selva. Hoje os militares brasileiros acreditam que os guerrilheiros da Frente 16 estão na Amazônia venezuelana. A migração para um local mais distante fez com que diminuísse pela metade o fluxo de embarcações que subiam e desciam o rio Negro, em um vaivém que sempre despertou suspeitas no lado brasileiro. Paulo Santos afirma que o comércio de São Gabriel abastecia os guerrilheiros quando eles ainda estavam próximos ao pelotão. Combustí-vel, alimentos, peças de motor de popa e remédios para a malária são os produtos que mais se encontra nas revistas a esses barcos.

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Convivendo com o inimigo

O 4˚ PEF é o pelotão com o acesso fluvial mais facilitado até São Gabriel da Cachoeira. As águas do rio Negro garantem navegabilidade praticamente o ano todo. A viagem em barcos pequenos pode ser feita em até seis horas. Mas a facilidade pode ser um obstáculo quando o objetivo é fis-calizar a fronteira. Em frente ao pelotão existe uma palhoça com um computador e uma câmera digital – é o posto de controle fluvial. O lugar é alto e muito próximo da margem do rio. Dali pode-se avistar a longas distâncias. Toda e qualquer embarcação que pretende cruzar a fronteira precisa parar no posto para ser vistoriada pelos milita-res. É como se fosse uma alfândega. Ernesto Calistrato saiu de San Felipe com seus dois sobrinhos e sua mãe a caminho de São Gabriel. Ao passar pelo posto de controle eles desceram da embarcação, subiram até a palhoça e fizeram o cadastro exigido pelo exército. Para prosseguir viagem é preciso apresentar documento de identi-dade, explicar o motivo pelo qual está entrando no Brasil e tirar fotos 3x4 que irão compor os dados do cadastro. Após isto, na presença dos tripulantes, os soldados do pelotão fazem a revista do pequeno bongo de Ernesto. Um grande feixe de cipó amarrado despertou a curiosidade do cabo Alves. Ele enfiou a ponta da faca no interior do material para verificar se não havia nada dentro. As malas e as panelas foram abertas, rápidas olhadas e tudo em ordem. Antes de dar o aval para a família de Ernesto seguir viagem foi conferido quantos litros de gasolina havia nos galões. Por lei só pode entrar no Brasil 200 litros, mais que isso constitui crime de descaminho de combustível. A fiscalização na tríplice fronteira inicia às 6:00 h e vai até às 18:00 h. Após esse período fica proibida a navegação por este trecho do rio. Durante a noite toda ficam alguns militares no posto fazendo a vigí-lia. A eficácia do patrulhamento é comprometida por falta de recur-

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sos. O farolete usado para iluminar os dois quilômetros de uma margem a outra estava quebrado. O único óculos de visão noturna (ovn) existente no pelotão já demonstrava sinais de avaria. As lentes possuíam riscos, prejudicando a visualização. Outro fator que preocupa o capitão Paulo Santos são os motores de popa de seu pelotão. Um de 25hp e outro de 40 hp. “As Farc possuem motores mais potentes que os nossos”. O capitão relata que em março de 2007 os guerrilheiros passaram na frente do pelotão em um barco equipado com motor de 115hp. Eles abanaram as mãos para os militares em um gesto de provocação. A informação que chegou depois ao capitão é que eles estavam embriagados. “Atitudes como essa não são comuns e não correspondem com o perfil dos guerrilheiros. Mas caso nós fizéssemos uma investida para apreendê-los, nós não teríamos como alcançá-los”.

Paulo Santos viu em dezembro de 2007 – um mês após ter assu-mido o comando do 4˚ PEF - os frutos do trabalho do posto de controle

Soldados do 4º Pelotão Especial de Fronteira de Cucuí em ação na tríplice fronteira

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fluvial. Os seus soldados, ao revistar uma embarcação, identificaram e prenderam um brasileiro foragido da Polícia Federal. Após um interrogatório no quartel do pelotão, o detento contou que trabalhava para a guerrilha. Fazia parte da produção de cocaína e que já havia passado com muita droga durante a noite na fronteira. A inteligência do exército sabe que isso ocorre e sabe das dificul-dades de vigiar uma extensa área de selva. O posto de controle fluvial de Cucuí é apenas um mínimo entrave para os narcotraficantes. A guerrilha possui outros modos e meios de desviar da fiscaliza-ção militar e transportar e distribuir seu produto para dentro do Brasil. Mas se a vantagem está nas mãos dos traficantes, a sorte nem sempre está com eles. Um episódio ocorrido em abril de 2006 ilustra essa tese. O cabo Gregório estava em seu dia de folga do pelotão. Natural de Cucuí e conhecedor da região como poucos resolveu ir pescar junto com seu filho de oito anos, na margem oposta do rio. Durante a pescaria ouviu barulhos na mata, chegou mais perto, pois pensou se tratar de algum animal que poderia abater e obter uma maior quantidade de carne – até o momento Gregório havia pegado pou-cos peixes. Para sua surpresa viu quatro homens vestidos de preto e carregan-do sacos pretos nas costas. Era por volta das 16h20. Gregório abaixou e se escondeu na mata com seu filho para esperar que fossem embora. Voltou para o pelotão e avisou o comandante. Uma equipe de dez militares foi montada e partiram em uma voadeira no sentido em que os suspeitos estavam. O encontro com os prováveis guerrilheiros aconteceu em um igarapé por volta das 17h. Os colombianos abriram fogo dando início a uma troca de tiros. Um deles conseguiu fugir, outros dois foram presos e um morto. Na operação, os militares apreenderam três fuzis com numeração raspada, três pistolas e dois revólveres, além de uma mala com gran-de quantidade de dinheiro – 153.560 euros, US$ 105.100, R$ 135.111, 4.020 pesos colombianos e 1.377.500 bolívares venezuelanos. Depois do ocorrido chegou uma carta ao pelotão ameaçando Gre-gório e o Comandante. Com poucos dizeres o aviso foi dado: “Mais cedo ou mais tarde vocês serão assassinados”. Passados três anos após o incidente Gregório ainda não se sente

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tranqüilo. Sai de Cucuí apenas para ir à São Gabriel e mesmo assim anda nas ruas apenas durante o dia e “cabreiro”. Os dois colombianos continuam presos em Manaus. Gregório diz que preferia não ter ido pescar aquele dia se pudesse voltar no tempo. O capitão Paulo Santos afirma que apesar de não estar presente na época este foi o maior confronto do 4˚ PEF com os narcotraficantes. A ultima vez em que se teve notícias de guerrilheiros em Cucuí foi no dia 31 de dezembro de 2008, na noite de reveillon. Quatorze componentes das Farc, com armamento pesado, esta-vam no distrito procurando dois traficantes para um provável acerto de contas. Paulo Santos ao receber essa informação, montou uma patrulha, mas chegaram quando eles já haviam partido.O ano de 2009 começou com ares de preocupação.

A Vida no pelotão

Por mais que existam exemplos de conflitos e ações de guerri-lheiros na região da tríplice fronteira, a rotina dos soldados do 4˚ PEF é voltada para tarefas simples e corriqueiras na busca de preencher o dia com atividades e ajudar a passar o tempo. A comunidade de Cucuí, composta por 600 pessoas em sua maio-ria indígenas da etnia baré, está sofrendo um processo de despovoamen-

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to. Antigamente os 200 quilômetros da BR-307 que ligava o distrito à São Gabriel ajudava a fomentar o comércio e o transito de pessoas. A estrada de terra batida está há alguns anos interditada. O vo-lume de águas derrubou as pontes de madeira e a vegetação cresceu im-pedindo a passagem. Até mesmo o deslocamento da Frente 16 das Farc contribuiu para a diminuição do fluxo de embarcações que subiam o rio.

A rotina nos pelotões se sustenta no lema “Vida Combate e Tra-balho”, escrito geralmente em pequenas muretas nos arredores dos quar-téis. O combate é raro. E a vida acaba sendo uma dedicação ao trabalho. De segunda à sexta os soldados acordam às 06h30 e tomam sem-pre o mesmo café da manhã - Pão, manteiga, café e leite. Depois iniciam o treinamento físico militar. Alongamentos, flexões, abdominais, e uma corrida pelas poucas ruas da comunidade. Às 09h30, estão de banho tomado e fardados para se apresentar ao comandante. Após a formalidade, cada um cuida da tarefa a que foi

“Larangeiras” começam a despertar por volta das 6:30 hrs no alojamento do 4º PEF

em Cucuí.

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designado. Alguns vão para serviços de carpintaria, outros aparam as gramas do pelotão. Alguns militares cuidam da parte administrativa e fazem relató-rios, outros cuidam de uma pequena horta, da pocilga e do galinheiro. Quem faz parte do corpo da guarda do posto de controle fluvial passa ho-ras esperando uma embarcação se aproximar para haver algum trabalho a fazer. E como o movimento caiu, o local se tornou um ponto de encon-tro para conversas casuais. Ali soldados e cabos contam historias, riem um pouco e distraem ao som de um pequeno rádio portátil com músicas de forró e tecno brega. Ao meio dia retornam ao refeitório. Arroz, feijão carne e macar-rão é o prato principal dos 66 militares do 4˚ PEF. Por volta das 18h é servido o jantar, bem parecido com o almoço. Nos finais de semana, com o efetivo dispensado do serviço, não se vê quase ninguém circulando em Cucuí. À noite, a má iluminação das ruas dificulta ir de um lugar para o outro. As casas são pequenas, com pa-redes de madeira um tanto envelhecidas. Não existem calçadas e o mato toma conta ao redor da comunidade. O fato de passar meses - talvez anos - em um mesmo lugar, an-dando sempre pelas mesmas instalações e convivendo com as mesmas pessoas, pode abalar o psicológico de dos militares. Para melhorar a temporada de seus subordinados no pelotão o capitão Paulo Santos promove churrascos, almoços e torneios esportivos nos finais de semana. Ele sabe que é difícil a adaptação a este modo de vida. “Nosso maior combate aqui é a depressão”. O sargento Salviano está no seu segundo ano de pelotão. Em 2008, serviu em Pari-Cachoeira. Agora em Cucuí, ele conta os dias para no final do ano poder voltar para Feira de Santana, na Bahia. Ele quer rever sua ex-noiva e tentar reatar seu relacionamento, que terminou ano passado, enquanto estava no PEF. O sargento Costa divide a mesma residência na vila militar em Cucuí com Salviano. Ele também está contando os dias para poder voltar para Manaus. O motivo está na tela de seu notebook, a namorada com quem passa horas conversando pelo msn nos finais de semana. Tanto Costa como Salviano sabiam que enfrentariam muita so-

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lidão em suas temporadas nos pelotões. Ambos vieram preparados para isto. Salviano afirma que está tendo um aprendizado para a vida toda. “Aqui a gente aprende a dar valor a coisas pequenas que, quando estamos na cidade, nem notamos.” O sargento de 26 anos considera o PEF como um teste, um desafio de “desenvolver uma força interior e se desprender dos relacionamentos, das facilidades e comodidades do mundo lá fora”. A mesma visão possui Costa. “Eu estou testando quanto tempo agüento ficar neste isolamento. Tem dias que eu passo o tempo todo me perguntando o que estou fazendo aqui”. Os relatos dos dois são parecidos aos da maioria das pessoas que vêm de outras regiões para servir nos pelotões. Proteger a Amazônia e levar a presença do estado para estas localidades tão distantes tem seus custos, suas dificuldades e um pouco de sofrimento. Muitos se referem aos pelotões como um “fim de mundo”, um lugar que ninguém quer ir e muitos menos permanecer por longo tempo. Pode até ser. Mas os militares da cabeça do cachorro costumam dizer que “Aqui nao é o fim do mundo, é o começo do Brasil”.

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Hierarquia do poder que controla a Amazônia brasileira.

Mapa da “Cabeça do Cachorro” com a localização exata de cada um dos 7 Pelotões Especeiais de Fron-tiera e do 5º BIS

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A rotina dos militares queatuam na faixa de fronteira daAmazônia brasileira com a Colômbia e a Venezuela é contada nesse livro reportagem.“Soldados de Fronteira” conta a experiência de Henrique Silveirae Ivan Fávero durante o mês em queparticiparam das atividades do exércitobrasileiro na região conhecida como “Cabeça do Cachorro“. A reportagem é um relato que nostraz a sensação do isolamento, o dia-a-dia, as estóriase as dificuldades vividas pelos homens que tomam conta deuma das maiores riquezas da humanidade: a Amazônia brasileira.

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