margens: formas de resistÊncia e reexistÊncia€¦ · resistência e reexistência na periferia...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL PÓSCRÍTICA/ DEDC II- ALAGOINHAS/BA JOSELIA SANTOS DA SILVA MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA Alagoinhas BA 2018

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Page 1: MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA€¦ · resistência e reexistência na periferia de Salvador a partir da produção cultural do Sarau da Onça e do programa de rádio

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

PÓSCRÍTICA/ DEDC II- ALAGOINHAS/BA

JOSELIA SANTOS DA SILVA

MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA

Alagoinhas — BA

2018

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

PÓSCRÍTICA/ DEDC II- ALAGOINHAS/BA

JOSELIA SANTOS DA SILVA

MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Crítica Cultural do

Departamento de Educação – DEDC II da

UNEB como requisito para obtenção do título

de mestre em Crítica Cultural.

Orientador: Professor Dr. Roberto Henrique Seidel

Alagoinhas — BA

2018

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Dedico este trabalho aos colaboradores da

pesquisa: o coletivo Sarau da Onça e o

programa de rádio Evolução Hip-Hop.

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Agradeço a minha família pelo apoio de

sempre;

À Edna por todo apoio, cuidado e motivação;

Às amizades adquiridas ao longo desse

percurso pelas palavras de apoio e incentivo;

Aos colaboradores da pesquisa, o Sarau da

Onça e o Programa de Rádio Evolução Hip-

Hop;

À banca examinadora deste trabalho pelas

sinceras contribuições;

Ao Programa de Pós-Graduação em Crítica

Cultural por ter possibilitado uma grande

experiência no campo do conhecimento;

Ao orientador por oportunizar o meu

amadurecimento no percurso acadêmico.

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[...] É preciso fazer proliferar uma outra

sensibilidade micropolítica, macropolítica,

biopolítica, ecopolítica, cosmopolítica, dar nome

aos bois, romper um consenso que nos quer

abduzir a capacidade de pensar. Sim, fazer do

pensamento uma conspiração cotidiana, uma

insurgência indomável. Ideais fortes precisam às

vezes de centenas de páginas para serem

devidamente desdobradas. Mas por vezes também

cabem em livros minúsculos, sintéticos,

baratíssimos, de fácil circulação, prestes a

passar de mão em mão, nessa forma inusual

entre a análise, o manifesto, o grito, a arma

(PELBART, [online]).

[...] Curiosamente, é quando mais se fala em

defesa da vida que ocorrem as guerras mais

abomináveis e genocidas ‒ o poder de morte se

dá como um complemento de um poder que se

exerce sobre a vida de maneira positiva

(PELBART, 2011).

Page 6: MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA€¦ · resistência e reexistência na periferia de Salvador a partir da produção cultural do Sarau da Onça e do programa de rádio

RESUMO

A presente dissertação propõe uma reflexão sobre as potências de vida que emergem das

margens e se mostram dispostas a contestar a cultura hegemônica e resistir às formas de vida

impostas por esta. Para isso, será tomado como fonte que conduzirá a reflexão o Sarau da

Onça, situado no bairro de Sussuarana, e o programa de rádio Evolução Hip-Hop. O trabalho

aqui apresentado, dessa forma, investiga como que o Sarau da Onça e um programa de rádio

comunitária __

o Evolução Hip-Hop __

tem sido meios de resistência e espaços de contestação,

politização dos discursos e construção de conhecimento. A periferia, embora seja vítima de

vários estigmas e das violências simbólicas, nela existem potências que, colocadas em ação,

podem ser instrumentos contra o sistema hegemônico e opressor. Sendo assim, são colocadas

as seguintes problematizações: O que podem as margens? Como são construídos os modos de

resistência e reexistência? Estes questionamentos são colocados como pontos norteadores da

presente pesquisa, que não objetiva dar conta de todas as indagações, mas propor reflexões

pertinentes ao tema proposto. A dissertação está dividida em três capítulos. No capítulo de

abertura discuto as formas de deslegitimação pelas quais passa a periferia. Desse modo, será

investigado como que a periferia as margens passam pelo processo de desumanização e

negação de suas formas de vida, bem como de sua produção cultural. O capítulo dois traça um

caminho interpretativo que possibilite pensar o Sarau da Onça e o programa Evolução Hip-

Hop enquanto tomadas de posição e, sobretudo, espaço de resistências. O capítulo três é

conduzido por uma reflexão acerca do saber enquanto forma de resistência. O saber será

tomado como via pela qual as margens constroem o autoconhecimento e podem, a partir

disso, questionar a ordem estabelecida e o que foi imposto como forma de vida. Dessa forma,

as lutas serão travadas pela tomada da palavra e do discurso.

Palavras-chave: Margens. Sarau da Onça. Programa Evolução Hip-Hop. Resistências.

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ABSTRACT

The present dissertation was a reflection on the potentialities of the life of the emerging

companies and showed itself willing to a hegemonic culture and resistive to the life forms

imposed by this one. For this, the saru of the ounce, located in the neighborhood of

Sussuarana, and the Hip-Hop Evolution radio show, will be taken as a source. The work

presented here, in this way, investigates how the saru of the ounce and a community radio

program __ The Hip-Hop Evolution __ has been means of resistance and spaces of

contestation, politicization of speeches and construction of knowledge. The periphery,

although it is the victim of various stigmas and symbolic violence, there are powers that, put

into action, can be instruments against the hegemonic and oppressive system. Thus, the

following questions are posed: What can the margins? How are modes of resistance and

reexistence constructed? These questions are placed as guiding points of the present research,

which does not aim to account for all inquiries, but to propose reflections pertinent to the

proposed theme. The dissertation is divided into three chapters. In the opening chapter I

discuss the forms of delegitimation through which the periphery passes. In this way, it will be

investigated how the periphery - the margins - go through the process of dehumanization and

denial of their forms of life, as well as their cultural production. Chapter two outlines an

interpretive path that makes it possible to think of the saru of the ounce and the Hip-Hop

Evolution program while taking positions and, above all, a space of resistance. Chapter three

is led by a reflection on knowledge as a form of resistance. Knowledge will be taken as the

way by which the margins build self-knowledge and can, from this, question the established

order and what was imposed as a way of life. In this way, the struggles will be fought by the

taking of the word and the speech.

Keywords: Margins. saru of the ounce. Hip-Hop Evolution Program. Resistors.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................... 9

1. DESLEGITIMAÇÃO DAS MARGENS ................................................................. 12

1.1 A cor das margens ........................................................................................................... 16

1.2 A fabricação das formas de vida ..................................................................................... 29

2. UMA CONSPIRAÇÃO: PENSAR, FALAR E AGIR ........................................... 41

2.1 Sarau da Onça ................................................................................................................. 43

2.3 Programa Evolução Hip-Hop .......................................................................................... 58

2.4 Vozes da resistência ........................................................................................................ 62

3. QUER SER PERIGOSO? VÁ LER UM LIVRO! ..................................................... 67

3.1 O tráfico da palavra ......................................................................................................... 67

3.2 O que podem as margens? .............................................................................................. 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 80

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 82

ANEXOS ......................................................................................................................87

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho intitulado Margens: formas de resistência e reexistência é fruto de

um fascínio antigo pela arte das ruas, que toma forma através dos corpos que vivenciam a

realidade fabricada para as margens. Corpos que sentem tal realidade longe de ser algo

natural, embora naturalizada. É pelo ato de sentir a vida nas condições em que ela é colocada

quando se pensa em espaços periféricos que tais corpos, por meio da arte, criam rotas para a

resistência e fortalecimento dos sujeitos da periferia.

Assim, a questão que conduz a pesquisa é as formas de articulação criadas pelas

margens para driblar os dispositivos de poder que tentam aniquilar a capacidade de pensar dos

sujeitos. A partir da questão levantada o objetivo proposto aqui é refletir sobre modos de

resistência e reexistência na periferia de Salvador a partir da produção cultural do Sarau da

Onça e do programa de rádio Evolução Hip-Hop.

Através do questionamento é possível seguir os rastros, interpretar os sinais e indícios

que podem e dizem muito de uma realidade. Desse modo, é por essa via que a ordem

estabelecida pode ser desvelada mostrando as várias relações de poder, de exploração e

violência simbólica que o sistema opera contra as classes menos prestigiadas. Sendo assim, a

leitura do mundo deve ser feita pelo ato de questionar o que é visível e naturalizado como

verdade absoluta. Foi por esta via que a pesquisa em questão foi desafiada a se desenvolver,

uma vez que sua proposta de estudo requer a descentralização e a crítica do olhar do

pesquisador (a).

Além disso, o estudo realizado entende o Sarau da Onça e o programa Evolução Hip

Hop não como objeto desta pesquisa e sim como colaboradores, uma vez que as ideias

dispostas aqui não são sobre ambas as produções culturais, mas foram construídas a partir

delas.

Nesse sentido, a presente pesquisa se mostra significativa e relevante, visto que propõe

pensar as margens e sua força criativa e política a partir do Sarau da Onça e do programa

Evolução Hip Hop, verificando como estes configuram espaços de resistências e reexistências

dentro da periferia de Salvador.

O Sarau da Onça é uma produção cultural do bairro de Sussuarana que foi criada como

iniciativa de jovens diante da imagem negativa que a mídia divulgava e/ou divulga acerca do

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bairro. Assim, os encontros quinzenais promovidos pelo Sarau da Onça se constituem como

uma ação contra-hegemônica, uma vez que contradiz a ideia veiculada na mídia a respeito do

bairro de Sussuarana enquanto lugar dominado pelo tráfico de drogas e pela violência,

mostrando que em Sussuarana existe arte e cultura e é esta imagem que precisa ser

visibilizada.

No que diz respeito ao programa de rádio Evolução Hip Hop, este vai ao ar na Rádio

Educadora FM aos sábados às 17 horas e contribui para o fortalecimento e divulgação do

movimento e cultura Hip Hop, bem como da cultura negra no Estado da Bahia. O programa

Evolução Hip Hop é produzido pela CMA HipHop- Comunicação, Militância e Atitude, que

trabalha com comunicação, mobilização social e produção cultural em que o objetivo é

fortalecer o movimento Hip Hop e o movimento negro, contribuindo para o enfrentamento

dos obstáculos impostos para a realização de mudanças sociais.

No que tange ao percurso metodológico utilizado para desenvolver a pesquisa, as

ferramentas usadas para a coleta de dados foram entrevistas, estudo de materiais e

informações obtidas através do acesso à página do Sarau da Onça e do programa Evolução

Hip-Hop no Facebook.

A entrevista com Sandro Sussuarana, um dos integrantes do Sarau da Onça, foi

realizada por meio da ferramenta de bate-papo do Facebook entre final de março e abril de

2017. Além da entrevista se constituíram como material para estudo as observações feitas em

cada participação no Sarau e o acesso as poesias produzidas pelos organizadores /

idealizadores, bem como por poetas que também se apresentam ou já se apresentaram no

Sarau da Onça.

No tocante ao programa Evolução Hip-Hop, foi realizada entrevista gravada com o DJ

Branco em maio de 2017. Além da entrevista, o site e a página do programa no Facebook

foram essenciais para compor um plano de estudo que culminou no trabalho aqui disposto.

Não posso deixar, porém, de ressaltar a importância do Whatsapp nesse processo de tessitura

da pesquisa, uma vez que este aplicativo possibilitou o acesso a informações e acontecimentos

novos no que diz respeito à Cultura Hip-Hop.

A presente dissertação está dividida em três capítulos. No capítulo de abertura discuto

sobre as formas de deslegitimação pelas quais passa a periferia. Desse modo, será investigado

como que a periferia as margens passam pelo processo de desumanização e negação de

suas formas de vida, bem como de sua produção cultural. Neste capítulo será apresentado dois

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subtítulos. No primeiro será analisada a deslegitimação da periferia pelo viés do racismo

científico. No segundo partirei da discussão dos processos de subjetivação aplicados à

periferia e como que as formas de vida são mediadas por tal processo.

O capítulo dois traça um caminho interpretativo que possibilite pensar o Sarau da

Onça e o programa Evolução Hip-Hop enquanto tomadas de posição e, sobretudo, espaço de

resistências. É discutido também a importância da voz tanto na produção do Sarau da Onça

quanto na Cultura Hip Hop.

O capítulo três é conduzido por uma reflexão acerca do saber enquanto forma de

resistência. O saber será tomado como via pela qual as margens constroem o

autoconhecimento e podem, a partir disso, questionar a ordem estabelecida e o que foi

imposto como forma de vida. Dessa forma, as lutas serão travadas pela tomada da palavra e

do discurso.

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1. DESLEGITIMAÇÃO DAS MARGENS

Neste capítulo de abertura proponho uma reflexão acerca dos processos de

deslegitimação aos quais a periferia é submetida. Antes quero destacar a palavra “margens”,

que compõe a nomeação do capítulo. A escolha da palavra foi feita para referir-se à periferia

e, para isso, o termo passa por uma ressignificação necessária para atender o propósito deste

trabalho. Ao utilizar a expressão “margens” parto não do significado negativo que o termo

pode propor, mas tomo como princípio o sentido positivo que a palavra oferece. Se

considerarmos, então, que margem é aquilo que se encontra em torno de algo, pensemos que

estar localizado na parte de fora, ao redor pode ser uma posição privilegiada.

Assim, a margem pode ser um lugar estratégico e privilegiado, uma vez que se

encontra no lado de fora. Nesse sentido, os sujeitos que vivem nas margens da sociedade se

encontram nessa posição, sendo possível enxergar a realidade de modo que se sintam parte do

todo, que é a sociedade, mas ao mesmo tempo à margem dela. A partir disso pode emergir um

processo de reflexão em torno da realidade observada seguida de tomada de posição a favor

da resistência daqueles que são subalternizados.

As linhas aqui dispostas oferecem um caminho permeado por discussões a respeito das

margens, termo aqui utilizado, como já foi esclarecido, para fazer referência à periferia/favela.

Sendo assim, cabe levantar a questão: O que caracteriza a favela? Para refletir acerca dessa

questão considero pertinente trazer as contribuições teóricas que Licia do Prado Valladares

traz em seu livro A invenção da favela1. Neste livro a autora discorre sobre as diversas

representações sociais a respeito da favela desde o seu surgimento no Rio de Janeiro.

De acordo com a autora, o cortiço pode ser considerado o “germe” da favela, tendo em

vista que os primeiros interessados em investigar o cenário urbano e popular do Rio de

Janeiro dedicaram atenção ao cortiço, que foi considerado da seguinte forma:

[...] Considerado o locus da pobreza, no século XIX era local de moradia tanto para

trabalhadores quanto para vagabundos e malandros, todos pertencentes à chamada

“classe perigosa”. Definido como um verdadeiro “inferno social”, o cortiço carioca

era visto como antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às

epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral. Percebido como espaço

propagador da doença e do vício, era denunciado e condenado através do discurso

médico e higienista, levando à adoção de medidas administrativas pelos governos

das cidades (VALLADARES, 2005, p. 24).

1 Aporte teórico sugerido pelo professor Dr. Luciano Justino na qualificação deste trabalho.

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O descobrimento das primeiras favelas no Rio de Janeiro revelou que as habitações

nelas encontradas eram semelhantes às do cortiço. Assim, a favela passou a ser o novo lugar

da pobreza sendo interpretada como problema e se tornado tema do discurso higienista de

médicos e também de engenheiros. A partir disso, a representação da favela enquanto

habitação anti-higiênica, lugar propício às doenças era respaldo para construção de projetos de

eliminação das favelas.

Entre os recenseamentos que foram realizados no Rio, o de 1950 mostrou que nas

favelas existe uma população trabalhadora, dado que questiona os discursos anteriores

difundidos sobre a favela como lugar da preguiça e da vagabundagem. Vale ressaltar também

que a inclusão da categoria relativa a conjuntos de habitações precárias no recenseamento,

“encontrados até hoje sob o título de ‘aglomerado subnormal’, a partir do caso do Rio,

contribuiu para a generalização do uso da palavra favela que, progressivamente, passou da

categoria local a categoria nacional” (VALLADARES, 2005, p. 71).

Valladares (2005) afirma que a partir de uma análise de algumas pesquisas realizadas

sobre a favela foi possível perceber uma convergência de características atribuídas a ela. A

partir disso, a autora considera tais características como verdadeiros “dogmas”, uma vez que

são compartilhadas sem que se faça nenhum tipo de questionamento.

O primeiro “dogma” diz respeito à forma particular como a favela ocupa o espaço

urbano, seu modo diferente de crescimento em relação aos demais bairros. O segundo

“dogma”, definido pela autora como forte, se refere à ideia construída acerca da favela como

“o locus da pobreza, o território urbano dos pobres” (VALLADARES, 2005, p. 151). A força

de tal dogma, retomado das representações anteriores acerca da favela, consiste no seu amplo

compartilhamento, atitude também verificada nas ciências sociais. O terceiro “dogma”

consiste em uma unidade da favela, ou seja, se pensa e se discute a favela no singular

desconsiderando, pois, a sua heterogeneidade.

A repetição dos três dogmas citados acima tem como consequência a perpetuação de

ideias redutoras e preconceituosas acerca da favela. Em vista disso, Valladares (2005) aponta

para a necessidade de adotar o questionamento de tais ideias para que se possa construir novas

interpretações levando em consideração a complexidade do processo de diferenciação social

na sociedade brasileira e nas favelas.

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Nesse sentido, o que foi apresentado aqui no que se refere a algumas representações

construídas acerca da favela tem o intuito de fazer pensar de forma questionada sobre o tema

provocando a desconstrução de estereótipos.

Diante disso, voltamos à questão: o que caracteriza a favela? Cabe dizer que a

favela/periferia no sentido em que é tomada aqui não está condicionada às ideias redutoras

provenientes das representações anteriores sobre a favela. A favela é constituída pela

heterogeneidade em sua realidade espacial e social. Ela não é lugar exclusivo da pobreza. O

tráfico de drogas não é a sua atividade dominante. Na realidade complexa da favela que a

mídia esconde, não por acaso, existe empreendedorismo, existe criação de arte, cultura e

produção de novas formas de vida, de resistências.

É interessante ressaltar o conceito de cultura marginal, uma vez que este perpassa o

presente trabalho. O conceito de cultura, segundo Chauí (2009), vem do verbo latino colere,

que significa o cultivo. Com o passar do tempo o conceito de cultura evoluiu e passou a

designar o mesmo que civilização. De acordo com a autora:

[...] Com o Iluminismo, a cultura é o padrão ou o critério que mede o grau de

civilização de uma sociedade. Assim, a cultura passa a ser encarada como um

conjunto de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite

avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução

( p. 24-25).

Nesse contexto a cultura servia para medir o grau de evolução da sociedade baseando-

se no modelo ocidental. Dessa forma, a cultura que fugisse a esse padrão era vista como

primitiva.

Na segunda metade do século XX a cultura passa a ter um sentido mais abrangente,

como nos afirma Chauí (2009, p. 28-30):

A cultura passa a ser compreendida como o campo em que os sujeitos humanos

elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si

próprios o possível e o impossível, a direção da linha do tempo (passado, presente e

futuro), as diferenças no interior do espaço (a percepção do próximo e do distante,

do grande e do pequeno, do visível e do invisível), os valores – o verdadeiro e o

falso, o belo e o feio, o justo e o injusto – que instauram a idéia de lei e, portanto, do

permitido e do proibido, determinando o sentido da vida e da morte e das relações

entre o sagrado e o profano.

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O conceito de cultura é um tanto complexo, uma vez que ao falarmos de cultura temos

que, inevitavelmente, lembrar que a cultura é submetida a divisões assim como a sociedade é

dividida em classes. Dessa forma, podemos falar em cultura dominante, cultura popular,

cultura marginal, etc.

A ideia de cultura como sofisticação, atributo que um indivíduo possui e, por isso, é

considerado um “tipo especial de pessoa”, como afirma Williams (1969), desde sua invenção,

colocou o outro, o povo, “despossuídos desse atributo” em um lugar inferiorizado. De acordo

com o autor, esse tipo de cultura alimentada por certas pessoas “consiste em diferenças

triviais de comportamento, em sua variedade trivial de modos de falar” causando assim a

divisão social segundo o critério do que é ou não é cultura.

Esta ideia de cultura como algo restrito a uma parcela da população e, por isso, se diz

especial, consiste em sacralizar, isolar tudo o que for considerado e definido como cultura. A

ideia é que todas as coisas que forem designadas como tal fiquem protegidas para que

ninguém toque, apenas contemple, é a cultura como algo sagrado. Nesses termos ela será

reservada a poucos, aos cultivados, enquanto o povo não pode ter acesso.

Seguindo essa lógica, ao passo que um grupo hegemônico define certas coisas como

cultura para sacralizá-las, por outro lado tudo o que não for incluído nesse círculo será

amplamente rejeitado e divulgado como vulgar, ou seja, do povo, da massa, do outro

desconhecido. Isto se baseia na ideia das massas em que as pessoas comuns são encaixadas.

Williams contrapõe essa concepção, enfatizando que “as massas não existem de fato, o que

existe são modos de ver pessoas como massas”. No entanto, como afirma o autor, o termo

“massas” tornou-se a nova palavra para referir-se aos outros, desconhecidos, aos sujos, à

multidão, “que não me inclui”.

[...] a vulgaridade do gosto e dos hábitos, algo que seres humanos imputam com

facilidade a outros seres humanos, foi tomada como pressuposto, como uma forma

de estabelecer contato. A nova cultura foi construída a partir dessa fórmula [...]

(WILLIAMS, 1969, p.17).

Essa noção de vulgaridade das massas construiu as bases de uma cultura sacralizada.

Contrapondo a essa concepção, Williams (1969, p. 12) assevera que:

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[...] Uma cultura são significados comuns, o produto de todo um povo, e os

significados individuais disponibilizados, o produto de uma experiência pessoal e

social empenhada de um indivíduo.

Nesse sentido, a cultura é algo comum a todos, ela pertence a todos e não apenas a um

pequeno grupo dominante. A produção artística e cultural da periferia exemplifica muito bem

o que se vem discutindo até aqui.

Não é nenhuma novidade o fato de a periferia ser um espaço que tem seus direitos

negados. Para ir mais longe, podemos ainda dizer que a periferia passa por um processo de

desumanização, de deslegitimação da vida em seu aspecto mais natural e de todas as formas

em que essa vida existe e resiste. Diante dessa constatação, cabe dizer que para o grupo

dominante da sociedade, a cultura e a arte é incompatível com a periferia e vice-versa.

A produção artístico-cultural da periferia é confrontada pelas ideias de um grupo

hegemônico que se considera possuidor de uma cultura que não se define como comum. A

Cultura Hip Hop, por exemplo, não é legitimada enquanto cultura pelo grupo dominante. Pelo

contrário, é vista e entendida por este como um conjunto de práticas de pessoas ignorantes da

periferia (dança, música...), destituídas de significados. Em outras palavras, se o hip hop é da

periferia, portanto, é coisa do povo, das massas que habitam as favelas, que não sabem falar e

não tem conteúdos, logo não é cultura, de acordo com os termos que vimos.

Dessa forma, a arte produzida na periferia não é vista como produção artística e

cultural, até porque quando se pensa ou se fala em favela a última coisa que se projeta é a

periferia como produtora de arte e cultura.

Isto envolve não apenas o julgamento quanto à forma e ao conteúdo da arte periférica,

mas sobretudo a origem social e racial dos sujeitos produtores dessa arte. O preconceito

construído acerca da periferia, na verdade, se resume no preconceito contra as pessoas deste

lugar, que não possuem poder econômico e são, em sua grande maioria, de pele negra, fato

que por si só é gerador de inúmeros estereótipos.

1.1 A cor das margens

A periferia é um espaço marcado pela estigmatização e abandono por parte do poder

público. O discurso oficial, da cultura dominante, se apropria da visão negativa que se

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construiu a respeito das periferias para difundir e perpetuar o estigma sobre os jovens negros

moradores de favelas. Vale dizer que o estigma que a periferia carrega tem cor. A segregação

social pela qual passam os moradores de periferias está fundamentada não apenas na classe

social de origem, mas também na cor da pele.

Desde que a noção de raça foi criada para colocar o negro em posição de inferioridade

e sempre o separando, colocando-o à margem com base em definições totalizadoras, as

pessoas de cor ainda no contexto contemporâneo resistem e lutam pela garantia de espaço.

É nesse sentido que a palavra negro não pode jamais ser considerada vazia de sentido,

uma vez que ela carrega consigo toda história de escravização, inferiorização, violência e,

sobretudo, de resistência de um grupo humano específico. Além disso, como aponta Cuti

(2010), a palavra negro remete de imediato para o fenótipo, alvo das ações racistas. É por esse

motivo, segundo o autor, que a palavra negro vem sendo combatida, pois a mesma faz

lembrar a história social e o fenótipo do homem de cor e, consequentemente, tira o véu que

encobre o racismo, trazendo à tona a reivindicação antirracista.

As diferenciações entre negros e brancos só passaram a existir quando os brancos

entraram em contato com outros povos com diferenças fenotípicas em relação a eles, como a

cor da pele, o tipo de cabelo e formato do nariz. A partir desse encontro os povos brancos

atribuíram às suas características físicas uma superioridade que Cuti (2010) chamou de

congênita. Sobre isso o autor faz a seguinte ilustração:

Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares seus,

estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar para ele,

obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente diferente de

você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a você, acreditar nisso e

fazer até você crer nos argumentos dele [...] Racismo é isso (CUTI, 2010, p. 2).

Assim, a ideia de superioridade de um grupo social em relação a outro foi imposta,

injetada no imaginário social, de modo que as práticas de discriminação foram legitimadas

pelos argumentos criados pelos racistas. Cuti (2010, p. 3) enfatiza:

Uma pessoa racista é uma pessoa complexada, ou seja, alguém com doença

psíquica. Se um individuo diz que ele é o Super Homem, está querendo dizer que

tem poder mais que os outros. O sentimento de superioridade congênita, por que se

tem a pele e olhos claros, nariz estreito e cabelo liso, é uma doença psíquica.

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Como aponta a citação acima, o sentimento de superioridade branca é, na verdade,

uma doença que faz com que um grupo humano acredite ser superior a outro grupo baseado

em diferenças triviais.

Desse modo, a atitude do racista lhe garante uma série de vantagens e privilégios na

sociedade devido a seu fenótipo dominante. A prática racista para chegar a tal objetivo utiliza

a estratégia mais bem calculada em termos de crueldade. O homem branco criou sua própria

superioridade em relação ao mundo negro e, através da violência e humilhação, fez o homem

de cor acreditar fielmente na sua inferioridade. Sobre o racismo Moore (2007, p. 282- 283)

enfatiza:

Parece suficientemente óbvio que o racismo corresponde a uma forma específica de

ódio; um ódio peculiar dirigido especificamente contra toda uma parte da

Humanidade, identificada a partir de seu fenótipo. É o fenótipo dos povos

denominados negros que suscita o ódio: um ódio profundo, extenso, duradouro,

cujas raízes se perdem na memória esquecida da Humanidade e que remetem a

insolúveis conflitos longínquos.

Esse ódio contra a Humanidade especificamente negra possui uma existência histórica

e está presente em todos os âmbitos da sociedade. Segundo Moore (2007), todo esse ódio,

preconceito dos brancos racistas contra as diferenças fenotípicas dos negros, carrega um

indiscutível objetivo: se aproveitar da condição de inferioridade imposta aos negros para

usufruir de todos os privilégios e vantagens reservados unicamente aos brancos. Vale salientar

que essas discussões tecidas até aqui vem pontuando questões acerca do racismo científico,

que foi a base para subjugar o mundo negro. Mais adiante veremos como que a construção da

inferioridade do povo negro, a sua condição social no período escravocrata se constitui como

base para produção das classes sociais excluídas.

A estratégia de imputar a inferioridade ao outro ao longo dos anos foi modelada,

aperfeiçoada e fortalecida, de modo que o mundo negro foi submetido à alienação racial da

qual Fanon (2008) fala. Além disso, todo o processo de subjugação do povo negro causou

neste a neurose que Fanon (2008) aborda com maestria em Pele negra máscaras brancas.

De acordo com Fanon (2008), o sentimento de inferioridade que se desenvolveu no

negro acabou provocando neste a neurose. Esta leva o indivíduo negro a assumir a atitude de

recuar ou obedecer às ordens de um branco por acreditar na sua inferioridade. Por outro lado,

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o negro, sob o efeito da neurose, pode tentar se aproximar do branco e querer se apropriar de

sua cultura e de seu modo de ser, numa tentativa incansável de provar aos povos

despigmentados a sua condição de ser humano, sua inteligência e capacidade. Nas palavras de

Fanon (2008), “[...] o preto, escravo de sua inferioridade, o branco, escravo de sua

superioridade, ambos se comportam segundo uma linha de orientação neurótica” (p. 66).

De acordo com as palavras de Fanon, tanto o sentimento de superioridade quanto o de

inferioridade, o primeiro alimentado pelo branco e o segundo pelo negro, leva ambos a um

estado doentio, que resulta em comportamentos neuróticos.

O complexo de inferioridade do negro, bem como os significados negativos atribuídos

à palavra negro tem origem na mentalidade racista do branco, que levantou a questão da

humanidade dos povos negros e fez com que estes duvidassem da sua condição de humanos.

[...] começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe

uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer

originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu

acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou uma besta fera,

que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de

cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo” (FANON,

2008, p. 94).

As palavras supracitadas exemplificam os efeitos do racismo, como o estado de

neurose experimentado pelo negro ao se deparar com estratégias discriminatórias, que

deslegitimaram sua vida, esvaziando-a de sua humanidade e valor.

O discurso racista, colonial, se apoia no estereótipo como ferramenta para propagar e

fortalecer a ideologia racista. Os estereótipos negativos impostos ao negro foram fixados

como verdades inquestionáveis e para sua manutenção a ideologia racista emprega a repetição

ininterrupta.

Nesse sentido, o racismo nos dias atuais se encontra cada vez mais arraigado na

consciência do povo brasileiro, uma vez que, à medida que o tempo passa e a sociedade se

transforma, ele, o racismo, também passa por metamorfoses e se insere nas novas estruturas,

cada vez mais forte e eficaz.

Longe de recuar diante da educação e da ciência, e em vez de ser contido pelo

acúmulo crescente de conhecimentos, o racismo adentra-se na ciência e converte-se

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em modo de educação. Ele ressurge como um racismo mais “científico”, mais

“refinado” e, crescentemente, mais “cordial” e “educado” (MOORE, 2007, p. 289).

Como afirma o autor, o racismo consegue se adequar facilmente às novas realidades e

se efetivar de forma sutil e, consequentemente, cada vez mais eficiente. Desse modo, o

racismo mantém os privilégios do segmento hegemônico intocáveis. Os benefícios que tal

grupo possui estão praticamente em todas as dimensões, social, política, econômica,

psicológica, enquanto todos esses recursos são negados à população alvo das agressões

racistas.

Diante de todo histórico de subjugação e inferiorização do homem de cor, surgiu a

necessidade de criar uma resposta às ideias que despersonalizaram e desumanizaram o povo

negro. Assim, foi de dentro dessa parcela da Humanidade que se originou o grande

movimento de reivindicação antirracista, o movimento da Negritude. Tal movimento tem

como idealizadores Aimé Césaire e Leópold Sedar Senghor.

Em seu Discurso sobre a Negritude Aimé Césaire afirma que o conceito da Negritude

tem suas bases na Revolução do Haiti, em que se elaborou uma resposta do mundo africano

escravizado ao mundo ocidental hegemônico. Daí decorre a importância da Revolução do

Haiti, uma vez que foi nesse momento histórico que a Negritude foi colocada de forma

radical.

A Negritude assim como proposta por Aimé Césaire busca a desalienação do mundo

negro, seu protagonismo, valorização e legitimação. Em outras palavras, o que o movimento

da Negritude propõe é a autoafirmação, a revalorização antirracista do ser negro. Para o autor,

a negação do negro deve ser seguida de uma afirmação racial, é transformar o negativo em

positivo e legitimar isso. Nesse ponto Cuti (2010) também enfatiza que, se a palavra “negro” é

carregada de significados negativos que são utilizados para ofender, deve-se partir, então, da

ressignificação dessa palavra, atribuindo-lhe um teor positivo e assumindo-a com orgulho.

Feito isto, corta-se o mal, tira-se, portanto, a arma de ofensa das mãos dos racistas.

Cabe dizer que as margens não sofrem violência e opressão sem resistência e produção

de respostas ao poder que aí é investido. As margens a periferia resistem, reagem e

mostram essa força cada vez maior. Pensemos no Sarau da Onça, na força que tal iniciativa

possui e na importância dela para o bairro de Sussuarana como para outras periferias de

Salvador. É um espaço que convida a pensar, a refletir, a questionar verdades estabelecidas e

estereótipos e lugares criados para o negro, sobretudo da periferia. Melhor que falar é sentir o

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que se está dizendo, olhos atentos nas palavras de Negreiros Souza presente na antologia do

Sarau da Onça (2017, p. 77):

É detector de metal ou melanina?

Passei por 5 agências bancárias, tirei tudo de dentro da bolsa

Só prá não ter ouvir aquela porta de vidro travar

Seguida daquela vozinha insuportável da gravação eletrônica

Me dizendo:

- Deposite seus objetos de metal na caixa ao lado

Moedas, chave, celular, sombrinha...

E por um triz minha alma não ficou por lá

Mas a porta tem um problema comigo e insiste em travar

Pensei em fazer um strip

Em tirar a roupa TO-DA, mas, sabia que se fizesse isso ainda não

ia dar conta

Poderia ser taxada como escandalosa, louca, tonta

O guarda do banco me interpelou com o olhar e me disse:

- Senhora, já tirou tudo de dentro da bolsa?

Olho prá ele e lhe respondo

- Já tirei tudo de dentro da bolsa

Não tenho DIU no útero ou você quer dá uma olhada?

E novamente na agência eu tento adentrar, mas a porta novamente insiste em apitar.

Então eu olho pro guarda e digo:

Meu filho eu já tirei tudo, será que seu tirar além da roupa,

minha alma e minha pele eu consigo entrar?...

E sem quase nada, sem cor, sem dignidade, realizo a minha terceira tentativa

E novamente a porta insiste em travar

O problema não tava na bolsa, no corpo tá no meu DNA

Então, o que me resta é apenas questionar

é detector de metal ou melanina?

Na pequena narrativa fica bastante claro o tom de revolta e crítica perante o sistema

racista e opressor que ainda impera em nossa sociedade. Questiona-se para quem é

direcionada a criação do sistema de segurança, a exemplo da agência bancária. Em outras

palavras, a questão que se coloca é sobre o alvo da condenação, opressão e humilhação em

que o padrão escolhido é o sujeito negro e periférico, o que fica claro nas últimas frases:

Então, o que me resta é apenas questionar é detector de metal ou melanina? Para ir mais

além, cabe dizer que esse padrão é baseado também na origem social dos sujeitos, uma vez

que a questão de raça está ligada à classe social. Isso encontra uma razão de ser no fato de a

classe desfavorecida de hoje se constituir como herança de um passado escravocrata. Assim,

quem ocupa, em sua maioria, a classe menos prestigiada é o negro. Isso não é um cálculo

guiado por um determinismo. Não está sendo dito aqui que o negro pertence à classe

desfavorecida, sendo impossível a este uma ascensão social. Se essa classe social é, em sua

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maioria, composta por negros isso se deve ao passado de escravização e a produção de

desigualdades, que desde o início colocou o povo negro em condições desfavorecidas.

Contudo, as barreiras impostas pelas desigualdades são enfrentadas e derrubadas, exemplo

disso é a entrada de jovens negros nas universidades.

Dentre as ações e movimentos que se inspiraram na Negritude de forma prática vale

ressaltar o movimento Hip Hop. A cultura Hip Hop, segundo Miranda (2018), nasceu nos

Estados Unidos em 1970, influenciada por elementos de outros lugares. De acordo com o

autor:

[...] Tudo começa com os DJs. Dois deles se destacaram. O primeiro foi o DJ Kool

Herc, jamaicano que na adolescência migra com a família para os EUA, em busca de

melhores condições, indo morar no Bronx, bairro popular de Nova York. Leva duas

importantes tradições: uma refere-se aos sound systems (sistemas de som), que

passou a armar nas ruas para suas festas e a outra, ao hábito de falar em cima de

bases rítmicas [...]. Estabelecia-se ali o ponto crucial para uma verdadeira revolução

(p. 204-205).

Conforme o autor afirma, essas festas atraíam grande quantidade de jovens, incluindo

muitos membros de gangues, que enxergaram na manifestação uma nova forma de competir,

mas com o uso da arte e não da violência. Assim, dessa arte de improvisar um discurso

rimado, surgiram os raps, sigla para rhythm and poetry e em português quer dizer “ritmo e

poesia. Nesse contexto também se desenvolveu o breaking, espécie de dança, assim como o

grafite já começava a ser utilizado pelos jovens para demarcar território. O outro DJ, segundo

Miranda (2018), é Afrika Bambaataa, que fundou a Universal Zulu Nation em 12 de

novembro de 1973. Trata-se de uma organização que definiu os princípios universais para o

Hip Hop, estabelecendo uma base teórica para o movimento. O termo Hip Hop é empregado

para se referir aos quatro elementos, a saber: o DJ (Disc Jockeys), o MC (Mestre de

cerimônia), o grafite e o Breaking (a dança). De acordo com Miranda (2018, p. 69), “[...]

diferente do Rap e do Breaking, o Graffiti e o DJ tiveram origem anterior à existência do Hip-

Hop”. Segundo o autor, no seu sentido original o graffiti, no italiano, fazia referência a

“assinaturas, frases ou desenhos feitos espontaneamente nas ruas”. Foi com a sua

incorporação enquanto elemento do Hip Hop que a prática do graffiti ganhou contornos

diferentes, com a utilização de tinta spray e desenhos mais elaborados. O DJ, enquanto

elemento do Hip Hop, com o uso de toca-discos e aparelhagens como o Sampler e o Mixer,

elabora composições sonoras que são a base para os discursos elaborados pelo/a MC. O MC

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ou a MC, por sua vez, é responsável pelo discurso rimado, pela poesia a ser cantada, isto é,

pelo rap. Ainda há um quinto elemento, o Conhecimento, que “agrega os demais elementos

artísticos, imprimindo um caráter de comprometimento pedagógico e histórico”, afirma

Miranda (2018, p. 13). Sobre as razões para incorporar o Conhecimento enquanto quinto

elemento do Hip Hop, o autor assevera que:

[...] A partir da década de 1980, nos Estados Unidos, a indústria musical e a mídia

passaram a tratar o Hip-Hop como sinônimo de Rap, deixando os outros elementos

de fora. Resultado: Hip-Hop passou a ser difundido como um estilo musical,

chegando a ser considerado por uns como apenas sinônimo para Rap e, por outros,

como estilo diferente. Essa ideia espalhou-se de modo equivocado, preocupando

seriamente a Zulu Nation que, buscando superação do problema, promoveu o

Conhecimento como o 5° elemento. Esse passou a ser enfatizado enquanto

necessidade de se conhecer a história do Hip-Hop, bem como seus princípios

filosóficos (MIRANDA, 2018, p. 13-14).

Assim, a união dos cinco elementos do Hip Hop constitui o movimento que se

caracteriza por seu caráter sociopolítico e de reivindicação de direitos. Vale salientar que o

Hip Hop é heterogêneo, ele tem particularidades. Não dá para afirmar, por exemplo, que o

Hip Hop nacional é uno. Outra questão interessante é no que diz respeito às diferenças entre

Cultura Hip Hop e Movimento Hip Hop. A partir do que consegui colher das leituras que

realizei, construí a compreensão de que a Cultura Hip Hop é a prática de cada elemento

artístico, seja o DJ, o rap, o grafite, a dança. Por outro lado, o Movimento Hip Hop se

configura na união dos cinco elementos, assumindo a responsabilidade de se organizar, de

discutir sobre questões diversas, criar projetos de transformação social, etc. Contudo, ambos,

a Cultura e o Movimento são interdependentes.

A partir de seu surgimento nos Estados Unidos o Hip Hop ganhou o mundo. Vale

destacar que o movimento em cada lugar se desenvolveu de forma dinâmica. No livro Bahia

com “H” de Hip-Hop, o autor Miranda (2018), já citado aqui, trata da história do Hip Hop na

Bahia. O autor mostra como que o movimento foi adentrando cada espaço e como que o

cinema e a TV tiveram uma influência inegável nesse processo. O autor dá exemplos de

diversos filmes que representaram uma forma de os sujeitos conhecerem a Cultura Hip Hop,

novidade até então. Assim, foi na década de 1980 que surgiram as primeiras manifestações da

Cultura Hip Hop na capital baiana.

De acordo com Souza (2011), o rap, que foi o pontapé inicial para o desenvolvimento

do que hoje conhecemos como Hip Hop, está associado “a práticas culturais da África

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tradicional — recriadas na atualidade —, nas quais a linguagem oral assume papel central”. O

rap é fundado a partir de narrativas orais que falam das experiências do cotidiano e é

justamente esta prática da oralidade que se constitui como herança dos africanos. A oralidade

foi ressignificada pelos rappers e é a principal arma de resistência negra e combate às

desigualdades sociais e raciais.

Como afirma Souza (2011), a inserção dos negros na escola passou por um grande

processo de rejeição e humilhação. O acesso à escola sempre foi visto como possibilidade de

ascensão social por uma parcela dos negros, embora este mesmo espaço seja o local por

excelência das práticas de exclusão e cerceamento dos sujeitos. Um dos mecanismos

utilizados para excluir os indivíduos negros do espaço de escolarização é o desprezo pela

linguagem destes e imposição da língua hegemônica como a única forma de expressão do

modo de ser e ver o mundo. É nesse sentido que Souza (2011, p. 37) confere ao Hip Hop o

caráter de agência de letramentos de reexistência.

Letramentos de reexistência aqui será a reinvenção de práticas que os ativistas

realizam, reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco

contada, nos quais os usos da linguagem comportam uma história de disputa pela

educação escolarizada ou não. Para os rappers, a educação e a posse da palavra são

marcadas pelo esforço de reconhecimento de si, desafiando, de diferentes maneiras e

em diferentes formatos, a sujeição oficialmente imposta, ainda materializada no

racismo, nos preconceitos e discriminações.

A Cultura e o Movimento Hip Hop são via para o acesso ao mundo letrado, de modo

que a linguagem dos sujeitos é utilizada como forma de legitimação de si e das experiências,

bem como um modo de resistência da identidade negra.

Os letramentos de reexistência mostram-se singulares, pois, ao capturarem a

complexidade social e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da

linguagem, contribuem para a desestabilização do que pode ser considerado como

discursos já cristalizados em que as práticas validadas sociais de uso da língua são

apenas as ensinadas e aprendidas na escola formal (SOUZA, 2011, p. 36).

O letramento pode ocorrer de forma autônoma, na maioria das vezes, uma vez que o

Movimento Hip Hop conduz os sujeitos na busca de conhecimentos variados, sobre a própria

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história do movimento, sobre questões sociais, políticas, raciais, entre outros. Miranda (2018)

enfatiza justamente esse aspecto formador do Hip Hop:

Escola é um local de aprendizado e diz-se que uma universidade é um tipo de escola

onde o saber é superior. Se assim o é, o Hip-Hop desde a sua origem é um

verdadeiro campo acadêmico para os seus adeptos. É onde também se desenvolve

conceitos e teorias a fim de se analisar e compreender fenômenos diversos (p. 204).

O Hip Hop possibilita, dessa forma, a apropriação de conhecimentos pelos sujeitos,

bem como o desenvolvimento da capacidade de ler e interpretar o mundo, a própria história e

criar estratégias de intervenção na realidade que os cerca. Em seu livro Miranda (2018)

esclarece como que o Hip Hop se organiza no estado da Bahia e, especificamente, em

Salvador. O autor aborda o desenvolvimento e articulação da Rede Aiyê Hip-Hop,

“Organização do Hip-Hop que congregava artistas e ativistas dos municípios de Salvador e

Lauro de Freitas” (p. 11), bem como da Posse Orí. Posse se refere ao “núcleo de Hip-Hop

organizado em um bairro específico” (p. 123). Nesse contexto, aconteciam reuniões para se

discutir questões e elaboração de projetos. Sendo assim, essas organizações são essenciais

para o Letramento de Reexistência abordado por Souza (2011), uma vez que esses espaços e

momentos criados pelo Hip Hop oportunizam aos sujeitos a aquisição de conhecimentos

diversos, bem como o aprimoramento da prática da leitura e escrita e de seus usos para

planejar ações.

Assim, frente ao racismo e aos estereótipos depreciativos que a população negra e,

sobretudo, das periferias é alvo, o Hip Hop surgiu nas ruas como um movimento

reivindicatório, de protesto e revalorização das pessoas de cor. É a tomada da palavra por

sujeitos donos de sua história, que, ao assumirem sua identidade, a sua negritude, desconstrói

as imagens negativas em torno do ser negro e as transformam em símbolo de resistência

dentro da periferia.

Como já sabemos, a presença do negro é amputada em todos os espaços de poder e

não existe uma representação de si, pelo menos positiva, isenta de estereótipos. A sua

presença continua sendo ausência, visto que esta presença sempre está nos termos do grupo

hegemônico de poder.

Nesse sentido, o Movimento Hip Hop se configura como um espaço de representação

e ressignificação do negro e de sua cultura. É um ato de resistência negra contra as agressões,

humilhações, violências e o ódio propagado pelo racismo. Através das ações do hip hop

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derrubam-se aos poucos as barreiras que impedem a periferia “negra” de se expressar e

mostrar o seu potencial de produção artística e cultural.

O rap é um dos gêneros no qual podemos observar a brincadeira com a linguagem

que sustenta um dizer que é autônomo, contestador, contra-hegemônico e promotor

de um conhecimento mobilizador. Mesmo quando um rap é lido, a sonoridade está

presente de forma tão fundamental que é possível “ouvi-lo”. A subversão da escrita

por meio da oralização confere ao rap uma originalidade e autonomia perante a

escrita escolarizada que mostra a inventividade e a agência de sujeitos que querem

expressar as peculiaridades da vida marginalizada por meio de uma escrita também

“marginal” (SOUZA, 2011, p. 118- 119).

O rap, um dos elementos que compõem o Hip Hop, através do uso singular da

linguagem aciona conhecimentos históricos no que diz respeito à população negra e à da

periferia, trazendo à cena as experiências de um povo que é vítima de um ódio implacável, do

abandono. Nas letras de rap há a construção de novos sentidos, de uma nova subjetividade em

relação à questão racial. Há um empoderamento do negro através da sua autoafirmação, do

orgulho de sua cor e da negação e enfrentamento ao preconceito e discriminação.

Dessa forma, o Movimento Hip Hop se constitui como movimento cultural e político

de grande potência no debate em torno da questão racial. Trata-se de uma voz, um grito negro,

que emana da periferia e tem sede e fome de transformação. É um grito consciente, engajado,

empoderado, cuja arma é a linguagem.

Os discursos no Hip Hop são produzidos de acordo com a posição socioideológica dos

sujeitos. Portanto, ao produzir seus discursos e, consequentemente, sentidos, os sujeitos o

fazem de acordo com o seu lugar de fala. E é esse lugar e o posicionamento desses sujeitos

frente à realidade que irá conferir potência ao Movimento Hip Hop, uma vez que são eles, os

próprios negros da periferia, que vão soltar a voz de protesto, que vão recontar a história do

negro sobre outra ótica, diferente da versão contada pela cultura dominante.

A cultura marginal está ligada à produção artística e cultural de grupos marginalizados

que através da arte se posicionam como porta-vozes da realidade da periferia. Nesse sentido,

segundo Nascimento (2009, p. 93), “[...] o hip hop brasileiro é abordado como um modo

singular de apropriação do espaço urbano e do agir coletivo dos moradores das periferias

urbanas e está associado às experiências dos jovens afrodescendentes”.

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Desse modo, tal expressão cultural se desenvolveu sob fortes influências de grandes

movimentos que lutaram e lutam por direitos da população negra. Nesse sentido, a Cultura

Hip Hop tem contribuído para o fortalecimento dos debates e lutas contra o racismo e

visibilidade da cultura e identidade negra. Nele a negritude é colocada em ação, é vivenciada

enquanto símbolo de resistência por negros da periferia.

Face ao racismo científico, conceito discutido neste capítulo, temos o culturalismo.

Para tratar deste conceito recorro aqui às discussões do sociólogo Jessé Souza presentes em

seu livro A elite do atraso2. De acordo com Jessé Souza (2017), o culturalismo, na verdade,

não representa a superação do racismo científico, uma vez que ele funciona nos termos deste.

Em outras palavras, o culturalismo, assim como o racismo científico, separa os indivíduos em

classes superiores e inferiores.

Ao analisar a sociedade brasileira Jessé Souza (2017) aponta a escravidão como um

ponto de origem das desigualdades sociais que caracterizam o Brasil até os dias atuais.

Segundo ele, é da escravidão que advém o ódio e o abandono aos pobres, os quais passam

pelo processo de animalização e humilhação, assim como ocorria com os negros escravizados

no período escravocrata. De acordo com o autor, se o racismo científico era praticado de

forma explícita, o culturalismo racista age de forma camuflada, embora seus efeitos sejam

sentidos com tamanha força. Nesse sentido, Souza (2017) mostra com suas análises que o que

está em jogo refletindo seus efeitos não são unicamente as questões raciais, mas também as

questões sociais e de classes.

Assim, as classes sociais desfavorecidas foram relegadas ao abandono e desprezo,

destinadas a ocupar trabalhos braçais, que exigem o uso do esforço corporal de forma

semelhante ao que ocorria com os negros no período da escravidão. Cabe dizer que a classe

pobre é composta por indivíduos de cor de pele negra e branca, sendo que os primeiros estão

em maioria. Essa situação, também explicada por Souza (2017), se deve ao fato de que as

classes excluídas são continuidade da escravidão, praticada de outras formas. A partir disso, o

autor explica como ocorreu a formação de uma classe que ele chama de “ralé de novos

escravos”:

[...] entre as classes sociais que formaram o Brasil moderno, foi a “ralé de novos

escravos”, que soma ainda hoje em dia mais de um terço da população, agora de

todas as cores de pele, mas, herdando o desprezo social de todos que era devotado

2 Leitura indicada pela professora Dra. Maria Neuma Mascarenhas Paes na banca de qualificação.

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ao escravo negro, o elemento mais importante para singularizar o Brasil (SOUZA,

2017, p. 102).

Nesse sentido, a classe social abandonada passa pelo processo de opressão herdada do

período escravocrata em que a cor da pele negra se constitui como motivação para uma

maldade adicional.

O que está por trás da desigualdade social é exatamente a manutenção dos privilégios

e a divulgação deste enquanto atributo inato aos indivíduos. A manutenção dos privilégios se

dá através do processo de socialização familiar, que ocorre de forma diferente nas classes

privilegiadas e nas classes desprivilegiadas. Souza (2017) exemplifica tal situação mostrando

que, na classe média, os pais compram o tempo dos filhos para que eles se dediquem

exclusivamente aos estudos, enquanto na classe pobre muitos têm que dividir o tempo entre

escola e o trabalho. Além disso, em uma família de classe média as crianças são incentivadas

a adquirir o hábito da leitura, a se dedicar aos estudos e a planejar o futuro. Os filhos seguem

o exemplo dos pais. Na classe desfavorecida ocorre o contrário. Geralmente no contexto

familiar a criança não possui estímulos no que diz respeito à leitura e a dedicação aos estudos.

Sendo assim, a criança tende a imitar os pais, que também tiveram uma socialização familiar

parecida com essa. Em outras palavras, o que ocorre é a transmissão de classes de geração a

geração.

É preciso partir, portanto, literalmente do “berço”, ou seja, da socialização familiar

primária, para que se compreenda as classes e sua formação e como elas irão definir

todas as chances relativas de cada um de nós na luta social por recursos escassos. As

classes são reproduzidas no tempo pela família e pela transmissão afetiva de uma

dada “economia emocional” pelos pais aos filhos. O sucesso escolar dependerá, por

exemplo, se disciplina, pensamento prospectivo - ou seja, a capacidade de renúncia

no presente em nome do futuro – e capacidade de concentração são efetivamente

transmitidas aos filhos. Sem isso, os filhos se tornam no máximo analfabetos

funcionais. É esse “patrimônio de disposições” para o comportamento prático, que é

um privilégio de classe entre nós, que vai esclarecer tanto a ocupação quanto a renda

diferencial mais tarde, como cada classe social tem um tipo de socialização familiar

específica, é nela que as diferenças entre as classes têm que ser encontradas e

refletidas (SOUZA, 2017, p. 88).

Isso advém também de uma herança da escravidão, uma vez que nesse período os

negros escravizados não tinham o direito à socialização familiar, à construção da autoestima e

ao desenvolvimento da capacidade de planejar o futuro.

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Cabe ressaltar que tal realidade não existe sem que haja resistências que busquem a

transformação. As margens resistem através da arte e cultura e das intervenções realizadas

com essas ferramentas, além da ocupação de espaços dominantes. Se o capital cultural, o

acesso à universidade é um privilégio que uma classe dominante tenta proteger barrando a

entrada das minorias, os sujeitos da classe desfavorecida “arrombam” os portões e ocupam os

espaços transformados em privilégio de classe ao longo dos séculos. O termo “arrombar” é

empregado para destacar que elementos que eram para ser direito de todos, são transformados

em privilégios de poucos, o que deixa claro os lugares ocupados pela classe dominante e pela

classe desfavorecida socialmente como sendo fruto da construção e manutenção dos

privilégios na sociedade brasileira. “Arrombar” os portões, então, significa tomada de direitos

secularmente negados à classe desfavorecida.

1.2 A fabricação das formas de vida

Na raiz de todo dispositivo, está, deste modo, um desejo

demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a

subjetivação deste desejo, numa esfera separada,

constituem a potência específica do dispositivo

(AGAMBEN, 2009, p. 44).

Nossa sociedade é composta por relações de poder no interior das quais estão as

hierarquias, as forças dominantes que estão sempre em choque com as instâncias menos

favorecidas na sociedade. Posto isso, o pensamento de Agamben (2009) supracitado nos

servirá como guia para tentar entender as forças de controle social responsáveis pela

manutenção do sistema capitalista. O dispositivo, de acordo com o autor, é tudo aquilo capaz

de estabelecer controle, fabricar e moldar comportamentos dentro de uma sociedade. Assim,

apoiando-se em Foucault, Agamben (2009, p. 40) define dispositivo:

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a

capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e

assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.

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O autor ainda enfatiza:

Não seria provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento

capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de

dispositivos. Certamente, desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos,

mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não

seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo (2009, p. 42).

Entramos agora na questão chave para esta breve discussão. O capitalismo ganhou

proporções gigantescas em nossa sociedade de modo que tudo é mediado por ele. Com esta

lógica a produção de desigualdades sociais tem crescido muito, uma vez que a camada da

população que não consegue se encaixar na lógica capitalista é lançada à margem.

Por outro lado, o sistema capitalístico penetra a vida dos indivíduos em suas mais

diversas esferas deixando seus efeitos tão bem enraizados que em certa medida olhamos tudo

com naturalidade, esta também fabricada pelo sistema. O modo de ver e entender o mundo, de

agir, de pensar, de ser é essencialmente moldado e controlado sem que as pessoas percebam.

A subjetividade é fabricada e modelada. Pensemos no sistema capitalista como um dispositivo

de dominação dos indivíduos. Primeiro esse dispositivo injeta desejos e necessidades nas

pessoas para em seguida capturar tais desejos e produzir os processos de subjetivação que irão

controlar os indivíduos a cada segundo de sua vida, levando-os a pensar dessa forma e não

daquela, a tomar uma decisão e não outra, a comportar-se de um modo e não de outro. Em

outras palavras, os indivíduos terão a ilusão de uma liberdade que se traduz, na verdade, em

verdadeira prisão.

Esta fabricação de subjetividades nas camadas desfavorecidas da sociedade tende a

produzir, em certa medida, efeitos cruéis na maioria dos casos. Pensemos como tais efeitos

podem se configurar dentro das margens. Como vimos, a favela desde a sua criação foi

colocada no plano de representações negativas, associada à proliferação de doenças e

criminalidade. Se compararmos tais representações com as de hoje veremos que não mudou

muita coisa, tendo em vista que a periferia ainda é associada à violência, pobreza e ao tráfico

de drogas pelo discurso midiático. Contudo, se o discurso da mídia tenta impor aos sujeitos

da periferia uma subjetividade que os caracteriza enquanto indivíduos propensos ao crime, tal

medida não acontece sem que haja a produção de respostas por esses sujeitos.

Cabe ressaltar que frente aos processos de subjetivação há os processos de

singularização, meio pelo qual é possível romper com a subjetividade dominante e com o

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controle que ela exerce sobre os indivíduos. Considerando o potencial da poesia no que diz

respeito ao enfrentamento político e a transformação social, o Sarau da Onça se configura

como espaço de produção de novas subjetividades que se caracteriza pelo processo de

singularização, conceito proposto por Félix Guattari e Suely Rolnik assim definido por eles:

A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a idéia de que é possível

desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de

“processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de

encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de

telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade,

modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que

produzam uma subjetividade singular (GUATTARI, ROLNIK, 1996, p. 17).

O conceito de singularização da forma como foi explicitado por Guattari e Rolnik

(1996), propõe que os sujeitos se libertem da dependência com relação ao poder global e

adquiram a capacidade de ler e interpretar a própria história, sua realidade, criando, assim,

suas próprias referências. Nesse sentido, o Sarau da Onça é um espaço que produz a

singularização na medida em que os sujeitos que escrevem e recitam suas poesias estão

captando elementos da realidade, lendo, conhecendo e (re) interpretando a própria história,

transmitindo experiências através da arte, da voz e performance. Como dizem Guattari e

Rolnik (1996, p. 46): “Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de

criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante”. Além

disso, através do Sarau a poesia é desconstruída enquanto arte inatingível e produzida por uma

elite para ser reconhecida e recriada como parte da experiência dos sujeitos marginalizados,

bem como utilizada como arma para o enfrentamento político e a transformação social. O

Sarau da Onça possibilita aos sujeitos a reflexão e desconstrução de padrões e preconceitos

arraigados na sociedade brasileira. Assim, a poesia que o Sarau faz ecoar aborda e provoca

reflexões sobre diversos temas, como o racismo, a intolerância religiosa, machismo,

homofobia, empoderamento negro e feminino, entre outros. Convido a leitura da poesia “A

vida sob letras” de Sandro Sussuarana (2017, p. 10-11) para nos ajudar a pensar o que vem

sendo dito.

Quando que eles acreditaram em nós?

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Que escreveríamos a nossa história?

Nos tornaríamos nossos próprios heróis?

Que deixaríamos de acreditar

Em tudo que nos era imposto

E passaríamos a acreditar

Nas verdades estampadas

Em nossos rostos?

É, eu sei que eles não queriam

A gente escrevendo, falando

Deve ser mais foda ainda

Eles vendo os pretos tudo se formando!!

Indo no caminho inverso da alienação;

quebrando correntes, derrubando muros

E cada vez mais carregado de informação.

Que é pra eles entenderem

Que nem a Choque, muito menos o Bope

vão impedir a nossa transformação

Porque já fomos mortos, caçados, jogados ao mar

Agora eles vão ter que engolir

“Nós” tudo equipado com conhecimento suficiente pra nossa história protagonizar.

Já tamo cansado de todas essas apropriações

De branco querendo ser preto

Falando em nome dos preto

Mas só serve ser preto em algumas ocasiões

Não serve por exemplo na entrevista de emprego

Quando eles não são desclassificados por conta de seus cabelos

Ou na hora de ir comprar e o vendedor simplesmente não te enxergar

Mas já tamo vacinado contra esse tipo de opressão

Que quer nos fazer pensar que no Brasil não existe discriminação

É com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento

E se escrever tiver incomodando: eu só lamento

E como nunca tivemos apoio

Vamos continuar assim, sabendo que é verdadeiro olho no olho

Que é pra gente tá sempre fortalecido

E saber que esse sistema racista que sempre foi nosso inimigo

Muito antes de Zumbi

Quando Akotirene era Rainha

E eles já tentavam nos extinguir

Firmes, resistimos a todas essas truculências

Pra mostrar que além de Pretos, empoderados

Somos RESISTÊNCIA!

As palavras da poesia colocam em questão o processo de singularização que Guattari e

Rolnik explicam. Em vários trechos da poesia supracitada fica clara a construção de

subjetividades que contrapõem a subjetividade imposta aos sujeitos negros e da periferia,

como:

É, eu sei que eles não queriam

A gente escrevendo, falando

Deve ser mais foda ainda

Eles vendo os pretos tudo se formando!!

Indo no caminho inverso da alienação;

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quebrando correntes, derrubando muros

E cada vez mais carregado de informação.

quebrando correntes, derrubando muros

E cada vez mais carregado de informação.

Que é pra eles entenderem

Que nem a Choque, muito menos o Bope

vão impedir a nossa transformação

O trecho acima nos conduz à reflexão do lugar criado para o negro dentro da

sociedade. Lugar ligado à criminalidade e aos vícios. Ser negro, pobre e da periferia se

constitui um padrão para a perseguição policial. O trecho supracitado nos faz refletir sobre o

olhar negativo e carregado de estereótipos de uma minoria branca e rica em relação ao negro

e, ainda, como não faz parte do desejo dessa parcela da sociedade ver a população negra

ocupando espaços privilegiados. Além disso, a poesia em questão denuncia a mão armada do

Estado, referência feita na frase Que nem a Choque, muito menos o Bope, que diz respeito a

uma política camuflada para caçar negro, pobre e morador da periferia. Assim, ao mesmo

tempo em que denuncia, mostra uma resposta para o problema, a saber, a resistência, o

enfrentamento através da arte.

A resistência se constitui como resposta a imposição de uma subjetividade dominante

na medida em que os sujeitos estão destruindo as barreiras secularmente construídas para

impedir o povo negro de protagonizar a própria história. Cada palavra da poesia consegue

explicitar os modos de saída e enfrentamento contra o jogo de injustiça criado pela cultura

dominante:

Que quer nos fazer pensar que no Brasil não existe discriminação

É com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento

E se escrever tiver incomodando: eu só lamento

A primeira frase do trecho acima nos faz refletir sobre o tema do mito da democracia

racial, que propõe pensar a sociedade brasileira sob o ponto de vista da igualdade racial. Logo

na linha seguinte a voz de um sujeito que fala de uma realidade coletiva revela uma

contraposição ao discurso dominante quando deixa claro que os pretos e periféricos estão

prontos para o enfrentamento, cuja munição é o conhecimento, a arte, a literatura. Ao dizer: É

com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento, se está fazendo referência aos sujeitos

do Sarau da Onça e de outros espaços, que produzem suas poesias e fazem destas verdadeiras

armas para a resistência e transformação social.

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Assim, é possível constatar que o processo de singularização é operado na medida em

que o sujeito ou os sujeitos que falam na poesia criam novas formas de vida, produzem

reflexões sobre a própria realidade ao mesmo tempo em que constroem modos de resistir e

promover a transformação por meio de uma arma que não é física, a saber, a palavra.

O conceito de biopoder pensado por Foucault se configura como uma forma de poder

sobre a vida desenvolvido a partir do poder disciplinar, sendo que este visava disciplinar os

corpos individuais e aquele exerce o controle da população, da massa.

Diferente da sociedade disciplinar, em que os indivíduos eram controlados pelo

método da vigilância, da disciplinarização e docilização dos corpos, o biopoder, também

pensado por Foucault, é responsável por administrar a vida nas mais diversas esferas. Em seu

texto intitulado Biopolítica, Pelbart (2007) descreve como essa forma de poder penetra a

nossa vida:

[...] o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da

existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o

corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade.

Tudo isso foi violado, invadido,colonizado; quando não diretamente expropriado

pelos poderes (p. 57).

Nesse sentido, o poder não investe sobre os corpos por meio da repressão e sim pela

sua capacidade de gerir a vida fornecendo ao indivíduo a ilusão de que suas escolhas são

livres. Retomando Agamben, Pelbart (2007, p.59) descreve o biopoder contemporâneo da

seguinte forma:

[...] segundo Giorgio Agamben, o poder contemporâneo já não se incumbe nem de

fazer viver, como postulava Foucault, nem de fazer morrer, como antigamente era a

incumbência do regime de soberania. Mas o biopoder contemporâneo, o poder sobre

a vida, faz sobreviventes, cria sobreviventes e produz sobrevida – é a produção da

sobrevida. O biopoder contemporâneo teria essa incumbência, de produzir um

espaço de sobrevida biológica, reduzir o homem a essa dimensão residual, não

humana, vida vegetativa, [...]

Face ao conceito de biopolítica elaborado por Foucault, Achille Mbembe formulou o

conceito de Necropolítica, bastante interessante para analisarmos o contexto atual. Tal

conceito se refere à política da morte, isto é, o poder de decidir quem deve morrer. A partir

dessa noção, podemos pensar o contexto social brasileiro contemporâneo. Assim, refletir

sobre o poder de decidir sobre a morte nos coloca diante de uma realidade facilmente

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constatável, que é o genocídio da população negra e periférica. Diante do crescente número de

jovens negros assassinados é possível constatar que o Estado já determinou há muito tempo o

alvo para a imposição da morte. Isso está ligado às características do segmento negro no que

diz respeito a seus processos históricos. A vida do negro foi destituída de seu valor,

desumanizada e objetificada. Sobre esse processo Mbembe (2016) afirma:

De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda

de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda tripla equivale a

dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de

modo geral) (p. 131).

Essa tripla perda de que o autor fala se constitui como uma marca herdada pela

população negra da experiência colonial, que ainda é alvo de perseguição, uma vez que foi

associada à criminalidade pelo projeto racista. No que tange ao projeto de violência e

extermínio destinado a esse segmento da população, Flauzina (2006) analisa o sistema penal

brasileiro e sua íntima relação com o racismo.

[...] Fruto de uma colonização portuguesa de números exponenciais, responsável

pelo extermínio massivo da população indígena e da mais impressionante empresa

de tráfico e escravização dos povos africanos, o sistema penal brasileiro está

vinculado ao racismo desde seu nascedouro (p. 33).

A autora ainda enfatiza:

[...] A forma como nosso sistema penal incide sobre os corpos está condicionada

pela corporalidade negra, na negação de sua humanidade. Esse é o fator central de

sua dinâmica. Disciplinado na violência do extermínio de uma massa subumana é

esse o trato que o aparato policial está preparado a dar a quem for direcionado. Em

outras palavras, o racismo deu o tom e os limites à violência empreendida pelo

sistema penal e este a carrega consigo na direção de toda a clientela a que se dirige

(FLAUZINA, 2006, p. 81-82).

Isto explica o gritante número de mortes de jovens negros registradas cotidianamente.

Essa política de aniquilamento de uma parcela escolhida da sociedade se realiza ancorada na

estrutura racista e se esconde por trás do mito da democracia racial.

Nesse sentido, o conceito de necropolítica nos ajuda a entender as razões da guerra

criada contra o segmento negro dentro da sociedade brasileira. A escolha pelo abandono, pela

morte simbólica e física dessa população é um projeto político sustentado por uma estrutura

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racista, que tende a descartar e aniquilar o povo negro de forma naturalizada, uma vez que se

apoia na justificativa da inferioridade do negro. É desse modo que a morte de negros,

principalmente dentro das periferias, não provoca choque, não comove, justamente porque

essas vidas são destituídas de sua humanidade, elas não interessam ao sistema político. A

mídia desempenha o papel de reforçar essa ideologia racista na medida em que banaliza o

terror nas periferias, promove a naturalização do corpo negro morto. O negro é associado ao

que não presta, à vagabundagem, à criminalidade. Sendo assim, quando um negro é morto é

como se um bem fosse feito à sociedade. Basta pensar na intervenção militar nas favelas,

justificadas pelo objetivo de estabelecer a “paz”. A “paz” que se procura estabelecer à custa

do sangue negro derramado.

Podemos pensar, ainda, no conceito de sociedade de controle já previsto por Foucault

e ampliado por Deleuze. A sociedade de controle surge justamente da forma de exercício do

poder disciplinar e do biopoder. Assim escreve Deleuze (1992):

É certo que entramos em sociedades de “controle”, que já não são exatamente

disciplinares. Foucault é com freqüência considerado como o pensador das

sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o

hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos

primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando

para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que

funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação

instantânea (DELEUZE, 1992, p. 215-216).

[...] Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma

modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a

cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro

(DELEUZE, 1992, p. 221).

Desse modo, na sociedade de controle o poder age em toda parte, ele não é fixo, não

requer o confinamento dos corpos. O poder é exercido ao ar livre, em todo âmbito da vida

sem que seja percebido e, por isso, é tão eficaz. O controle exercido sobre os corpos traduz

sua força na sutileza com que penetra e gere a vida dos sujeitos de tal modo que esses sejam

cúmplices do exercício do poder sobre suas vidas sem que percebam isso.

Nesse sentido, mesmo tendo a vida manipulada pelas instâncias de poder, ainda existe

uma escapatória que só será possível pelo processo de singularização operado pelos

indivíduos. Isto não quer dizer que tal processo é fácil de ser criado e desenvolvido, tendo em

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vista que o contexto pós-moderno é caracterizado por uma onda gigante de transformações,

em que o sistema capitalista tem mostrado sua força e poder incontestáveis.

Dentro dessa máquina de transformações constantes as identidades também assumem

um caráter múltiplo e provisório. Assim, os indivíduos têm a sua frente uma multiplicidade de

significações e identidades com as quais poderão se identificar. É por este motivo que o

processo de singularização faz-se necessário, embora encontre forças externas que tentam o

tempo todo suprimi-la. Nesse contexto, “singularizar” é a capacidade e liberdade de

autonomia, de criar as próprias referências para interpretar uma situação, bem como

desenvolver a autoafirmação.

Como afirma Hall (2003), a marginalidade se constitui como um espaço produtivo,

dentro da cultura, capaz de fazer aberturas para se lutar por espaços na sociedade. Dessa

forma, as margens se configuram como lugar de criação de novas subjetividades e modos de

resistência pelos sujeitos que, através da arte e da cultura se posicionam, assumem sua

condição e lugar de fala para produzir respostas às ações da cultura dominante.

No movimento Hip Hop, bem como na poesia produzida na periferia, o termo

“marginal” é ressignificado a partir da apropriação do discurso pelos sujeitos. Discurso que

foi sempre negado aos sujeitos negros e da periferia que, agora, entram na disputa pelo direito

de dizer, de significar. Como afirma Foucault (1996), a produção do discurso na sociedade é

controlada por um número de procedimentos responsáveis por dominar, regulando o que pode

ser dito, como deve ser dito e quais sujeitos podem dizer3. Aí se configura o procedimento da

exclusão, que permeia a produção de todo discurso.

Sendo assim, o discurso está no plano das lutas por espaços de dizer e de poder.

Segundo Foucault (1996, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou

os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar”.

Retomando a oposição entre razão e loucura abordada por Foucault (1996), podemos

pensar que, assim como o discurso do louco não tem a livre circulação, pode não ser aceito,

ser anulado por não possuir um estatuto de verdade, o discurso dos sujeitos subalternizados

também passa pelo mesmo processo de separação e rejeição dentro da sociedade.

3 Podemos pensar no conceito de Formação Discursiva e Acontecimento Discursivo proposto por Michel

Pêcheux. O primeiro se refere aquilo que pode e deve ser dito em um determinado momento. O segundo diz

respeito ao lugar de ressignificação e ruptura de uma memória, ou seja, de sentidos já construídos.

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Isto porque, como já mencionado, a produção dos discursos, mesmo que de forma

implícita, é controlada, organizada e selecionada pela classe dominante. Assim, os discursos

produzidos pelos sujeitos marginalizados são submetidos ao processo de deslegitimação

operado pela mídia. Cabe dizer que as margens sempre tiveram voz, o que ocorreu ao longo

da história foi a tentativa de silenciamento dos discursos oriundos de espaços subalternizados.

Dessa forma, o processo de singularização que podemos observar tanto no Sarau da

Onça quanto no Programa de Rádio Evolução Hip Hop se caracteriza por provocar a

desconstrução tão necessária das verdades fixadas, da história única construída, disseminada e

estrategicamente repetida sempre contra as classes menos favorecidas.

Vale ressaltar que a educação mesmo sendo também o meio de controlar os discursos

é a principal via de acesso e apropriação desses. No entanto, é sabido que a educação

oferecida não é de qualidade e se torna uma ferramenta para a manutenção da exclusão das

camadas menos favorecidas da sociedade.

Pensando na democratização do acesso a bens culturais, sabemos que essa é uma

questão problemática em uma sociedade elitista e hierarquizada, em que a preocupação está

centrada na preservação de um patrimônio cultural, de uma produção e circulação cultural

restrita à classe dominante.

A circulação do livro, nesse sentido, passa longe das minorias, bem longe de espaços

subalternizados como a periferia. Segundo Lindoso (2004), embora a diversidade da oferta

seja notável na indústria editorial, essa oferta não é acessível para a maioria da população. De

acordo com o autor, as políticas culturais não são voltadas “para a abertura de possibilidades

de acesso aos bens culturais pela maioria da população” (LINDOSO, 2004, p. 38).

Basta pensar nas bibliotecas escolares e em bibliotecas públicas para se ter uma noção

de como o acesso a bens culturais é fechado, restrito. As primeiras, quando existem, possuem

um acervo totalmente precário, desatualizado e insuficiente e, ainda, há casos em que estas

permanecem fechadas e os estudantes são impedidos de terem acesso __

isso é no mínimo

assustador. As segundas, bibliotecas públicas, pode-se considerar que são raras. Como afirma

Lindoso (2004), grande parte dos municípios brasileiros não possui nenhuma biblioteca

pública e a parcela de municípios que tem constituem-se em bibliotecas desatualizadas, com

acervo reduzido, além de não existir nenhuma ação para atrair a comunidade. Isso demonstra

a incoerência das políticas públicas que são colocadas em prática, uma vez que a construção

de bibliotecas públicas deveria ocorrer em ampla escala e oferecer um acervo significativo em

quantidade e qualidade, além de ter programas que aproximem bibliotecas e comunidade,

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convidando-a para adentrar o universo da leitura, além de outros eventos artísticos

promovidos pela própria biblioteca.

Políticas culturais que investem em bibliotecas públicas traduzem-se em uma política

de inclusão. Com essa ação a população desfavorecida será também beneficiada, incluída,

pelo menos em termos de acesso ao livro. Entretanto, para que isto ocorra faz-se necessário

que a importância de bibliotecas públicas seja notada e compreendida. Há uma demanda por

saúde, segurança, educação enquanto a implementação de bibliotecas não é vista como

necessária. Por parte das autoridades esta falta de percepção pode ser estratégica, na medida

em que o que interessa à elite está longe de ser uma população que tenha acesso ao

conhecimento e à informação, uma vez que um povo letrado e que pensa pode oferecer perigo

à ordem estabelecida. Por outro lado, a população ainda não consegue perceber a importância

de bibliotecas públicas, a sua ligação com uma educação de qualidade. Faltam projetos que

visem informar e conscientizar a população para a importância da biblioteca, levando esta a

reivindicar a existência dessa instituição como de extrema necessidade, assim como a

existência e funcionamento de postos de saúde, escola e outras instituições e serviços.

Os sujeitos pertencentes a espaços marginalizados como a periferia têm o acesso aos

bens culturais barrado. Dessa forma, surge aí a emergência de meios que possibilitem a

abertura para que esses sujeitos tenham acesso ao mundo letrado, mesmo que seja fora de

ambientes que não permitem sua entrada.

Os ativistas do movimento Hip Hop, nesse sentido, são sujeitos que dentro da periferia

criam situações de inserção dos jovens no mundo letrado, fazendo das práticas artísticas

formas de engajamento político e social. Desse modo, como afirma Souza (2011), o Hip Hop

pode ser considerado como uma agência de letramentos4, uma vez que este proporciona aos

sujeitos a inserção em práticas sociais de uso da escrita, fazendo da linguagem a principal

ferramenta de protesto e transformação da realidade.

A produção cultural da periferia, como no caso do hip hop e dos saraus, foge a padrões

estéticos e formais da cultura dominante, assumindo uma nova postura, novo posicionamento

diante da realidade. Além disso, tanto o Sarau quanto a cultura Hip Hop não conta com apoio

financeiro para realizar suas atividades. Diante disso, cabe dizer que essas ações promovidas

na periferia conseguem fazer o que o poder público não faz, que é a valorização da juventude

negra e da cultura das ruas, produzida na periferia. Desse modo, a juventude negra através de

4 Letramento, de acordo com Kleiman (2005), diz respeito às práticas sociais de uso da escrita para além da

escola.

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organização de saraus, oficinas de arte e rodas de conversa, constroem contra-narrativas e

promove o fortalecimento e autoestima da comunidade negra e periférica.

Nesse sentido, as tecnologias tem sido uma importante ferramenta para o

fortalecimento da cultura marginal, uma vez que através delas é possível que os sujeitos

divulguem suas produções culturais, fazendo com que estas circulem para além da

comunidade criadora.

No próximo capítulo nos concentraremos no estudo da produção do Sarau da Onça e

do programa Evolução Hip Hop, ampliando as discussões que foram traçadas até aqui e

trazendo poesias no sentido de se fazer ouvir essas produções.

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2. UMA CONSPIRAÇÃO: PENSAR, FALAR E AGIR

Retomando algumas ideias do capítulo anterior, vale ressaltar que a deslegitimação

através da cor dos sujeitos que constituem a margem, bem como a negação da capacidade de

pensar desses sujeitos são, entre outras formas, as mais eficazes.

A margem aqui referida, – a periferia – é escura. Tal característica carrega consigo,

acima de tudo, a resistência. Resistência às mais variadas formas de opressão e violência, que

não cessam em tentar negar, deslegitimar a vida na periferia.

Para continuar a linha de pensamento aqui inserida propomos o empréstimo do

conceito de “abismo” utilizado por Seidel (2007) em seu livro Embates simbólicos. De acordo

com o autor, o termo abismo vem do grego ábyssos e tem várias acepções sempre no plano

negativo. Tomando por base o conceito de abismo como aquilo que separa, distancia que pode

provocar medo ou espanto, passamos então, a ensaiar um gesto interpretativo das margens.

Iniciemos, pois, com o questionamento: Que abismo (ou abismos) construiu as margens? A

questão pode parecer insana ou óbvia demais, porém o propósito não é instituir nenhum tipo

de sensatez ou verdade intocável e absoluta e sim provocar o deslocamento do próprio ato de

pensar para conseguir construir um caminho para se chegar à interpretação.

As margens consideradas aqui neste trabalho são constituídas por pessoas que são

afetadas por todo tipo de desigualdade percebida no meio social – as periferias são as margens

da sociedade – e os que vivem nela, os marginalizados. Voltando à questão inicial, quem

produziu isso? Quem fabricou essa realidade?

Somos guiados pela ilusão de que somos mestres e donos do nosso pensar, do nosso

sentir, do nosso agir e perceber o mundo e as pessoas, a fantasia de que controlamos nossa

existência e nossas atitudes na sociedade. Tudo vai bem até despertarmos do sonho! Depois

disso o cenário vai se desnudando e aos poucos, dia após dia, percebemos nós e os objetos

sendo marionetes do sistema de poder.

Nesse sentido, o que percebemos hoje como divisão social das classes em que uma

minoria detém a riqueza e o poder enquanto a maioria – a que produz toda riqueza – é

deserdada é uma realidade fabricada sempre a favor de quem fabrica.

O preconceito, o racismo, a pobreza, as desigualdades sociais e raciais foram

fabricadas sempre para e contra uma camada específica da sociedade. Tal parcela da

população foi deserdada não apenas dos bens materiais, mas também dos bens imateriais, a

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saber, o direito à Educação de qualidade, assistência à saúde, acesso a bens culturais, como o

livro, cinema, teatro, além de espaços e incentivo para expressar formas artísticas e culturais.

Eis o abismo que constrói e mantém as margens. Como todo abismo este provoca medo,

estranhamento e, sobretudo, vontade de superação. Entretanto, sem querer dar lugar ao

pessimismo, faz-se necessário refletir sobre o processo de naturalização de realidades trágicas,

ao qual somos submetidos.

Nesse aspecto, podemos pensar nas relações construídas com o outro. Trata-se de uma

análise crítica do ato de olhar, de enxergar o outro, aquele que se distingue de nós. Para isso,

recorremos a outro conceito também proposto por Seidel (2007), denominado de

alogeneidade. Segundo o autor, na cultura grega clássica a denominação de estrangeiro, do

outro era dada de acordo com as especificidades desse outro. Assim, “allos seria o outro de

qualidade diferente, em oposição a héteros o outro de mesma qualidade”. Desse modo, o

termo alogeneidade serve para descrever a experiência de ver o “outro como sendo de

qualidade diferente”, em oposição ao outro da mesma qualidade.

O conceito acima descrito nos ajuda a entender a relação com o outro construída

socialmente, sobretudo no sentido vertical da estrutura hegemônica da nossa sociedade.

Dessa forma, as camadas desfavorecidas submetidas a toda sorte de violência simbólica,

aqueles que vivem nas margens são os desconhecidos, os bárbaros, o outro com qualidade

diferente. Percebidos com esse olhar ocorreu o que antes foi mencionado aqui como o

processo de desumanização.

Ver o outro como sendo de qualidade diferente também é uma estratégia letal utilizada

pelo sistema capitalista para produzir subjetividades que estejam alinhadas a padrões

estabelecidos pelo consumo. Assim, o efeito que se produz é a culpabilização das margens.

Em outras palavras, isso quer dizer que a margem, ou os marginalizados são colocados entre o

abismo já descrito aqui e ao ter a subjetividade modelada pelo sistema tentam se alinhar a ele,

mas não conseguem pelas próprias condições em que são submetidos. Daí advém o

sentimento de culpa, de impotência.

O cenário urbano é violentamente dividido. De um lado o luxo de casas e edifícios em

que habitam os detentores do poder, de outro lado casas humildes localizadas no entorno da

cidade, habitadas por sujeitos que lutam pela sobrevivência cotidianamente ameaçada pelo

sistema capitalista.

É desse lugar que compõe o cenário urbano, a periferia, que emergem as lutas contra

as desigualdades sociais e raciais, contra a discriminação racial e opressão policial. É na

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periferia que surgem práticas e movimentos de resistência e reivindicação por direitos a bens

materiais, sociais e culturais. Nesse contexto práticas culturais como o sarau e ações do hip

hop se desenvolvem e tornam-se o meio para lutar por direitos, bem como resistir às

violências físicas e simbólicas praticadas contra a periferia.

2.1 Sarau da Onça

O Sarau da Onça se caracteriza por ser uma atividade cultural desenvolvida em

Sussuarana, bairro de Salvador. Para melhor situar tal produção cultural acredito ser

pertinente trazer à tona um resumo da história do bairro onde o Sarau da Onça acontece.

A origem do nome Sussuarana está relacionada à onça Suçuarana que podia ser

encontrada na região, onde havia uma densa mata. Além disso, havia nesse território uma

fazenda, que através de uma invasão deu origem ao bairro que conhecemos hoje como

Sussuarana. Nesse sentido, podemos entender o bairro de Sussuarana como espaço de lutas e

resistências do povo negro até os dias atuais.

Como sendo um bairro periférico e negro de Salvador, Sussuarana carrega marcas do

racismo e estereótipos que colocam o bairro como lugar perigoso devido aos índices de

Figura 1: Foto retirada da página do Sarau no Facebook.

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violência. Desse modo, a mídia se encarrega de veicular uma visão estereotipada acerca do

bairro, apagando, pois, a imagem de uma Sussuarana produtora de arte e cultura e que é

espaço de resistências diárias.

Para contrapor o discurso dominante e lutar contra o racismo e toda sorte de violência

e estigmatização, o Sarau da Onça surgiu através da ação de jovens inconformados com tal

realidade. O referido sarau é produzido pelo Grupo Ágape, que conta com sete integrantes

moradores de Sussuarana. Todos os integrantes são formados, sendo que dois possuem nível

superior e um está com o curso em andamento. Na entrevista realizada com Sandro

Sussuarana, um dos produtores do Sarau da Onça, ele fala do surgimento do Sarau e de sua

importância para o bairro:

a partir de jovens que descontentes com as noticias veiculadas a cerca do bairro de

Sussuarana, resolveram então contrapor o que estava sendo veiculado, para mostrar

que a periferia é um berço de cultura, com muitos talentos e que precisa ser

visibilizada com as qualidades que tem e os milhares de grupos culturais que atuam

diariamente no resgate das crianças, dos jovens, idosos, de todos que necessitam de

um cuidado... no entanto esses grupos não são visibilizados, ao contrário, vivem no

anonimato sem os devidos reconhecimentos pelos seus lindos trabalhos. O Sarau da

Onça acontece desde o dia 7 de maio de 2011. Começou com 4 produtores, hoje

conta com 7. (Sandro Sussuarana)

Verifica-se que a criação do Sarau da Onça se constitui com tomada de posição por

parte dos sujeitos no sentido de contrapor as verdades construídas sempre contra o bairro de

Sussuarana. O poeta continua dizendo:

acredito que o Sarau da Onça, assim como outros saraus na cidade, tem uma

importância, por tratar de questões como: Racismo, descriminação, empoderamento,

amor, autoestima, etc. Com muita propriedade. Vê em cada sábado jovens, crianças,

idosos reunidos para ouvir e declamar poesia, feitas por eles, os próprios

frequentadores, é de fato uma grande transformação, ainda mais por conta de os

bairros periféricos estarem em muitos casos distantes dos grandes centros. Criando

assim um circuito cultural de periferia. (Sandro Sussuarana)

O Sarau da Onça, nesse sentido, é um espaço de resistência, autoafirmação da

população negra de Sussuarana, bem como de ação revolucionária, uma vez que é um lugar de

onde as vozes que emanam são as que foram historicamente silenciadas e que agora operam

um movimento coletivo de destruição das mordaças. Não é à toa que nas palavras do poeta,

Sandro Sussuarana, a poesia representa para o bairro de Sussuarana “um Grito de Liberdade”.

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O Sarau da Onça completou sete anos e já publicou duas antologias poéticas. A

primeira O diferencial da favela: poesias quebradas de quebrada em 2014 e a segunda

Poesias e contos de quebrada em 2017, com a participação de diversos poetas. O Sarau já

esteve em diversos espaços do Brasil, já saiu em jornais impressos e matérias de televisão e

teve sua primeira antologia exportada para outros países.

Além das antologias, Sandro Sussuarana também publicou um livro individual de

poesias e contos intitulado Verso (s) sob (re) mim em 2017. Recentemente, em julho deste

ano, foi lançado no Sarau da Onça o livro Poéticas periféricas: novas vozes da poesia

soteropolitana, que conta com textos de inúmeros poetas e poetisas da periferia de Salvador-

BA.

Figura 2: Primeira antologia do Sarau da Onça

(disponível na página do Facebook)

Figura 3: Segunda antologia (por Lis Pedreira)

Figura 4: Livro de poesias e contos de

Sandro Sussuarana (Fonte: Galinha

Pulando)

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O Sarau da Onça é um espaço de produção de conhecimento e afirmação da identidade

negra. É lá que um grande número de jovens negros se reúne quinzenalmente, aos sábados,

para ouvir e declamar poesias, bem como participar de rodas de conversa com temáticas de

relevância para a comunidade negra. Há outras atividades desenvolvidas pelo Sarau, como o

oficinas de poesia e o Slam da Onça, que se configura como uma competição de poesias

autorais valendo prêmios para os ganhadores. O Slam é uma ação potencializadora, uma vez

que incentiva a apropriação da poesia e da arte pelos jovens da periferia. Além disso, as

intervenções culturais e artísticas do Sarau têm chegado a diversos espaços, como em escolas,

faculdades, outros espaços dentro da capital baiana, bem como em outras cidades e estados.

Para pensar o Sarau da Onça enquanto lugar de resistência vale ressaltar as formas de

lutas e de sobrevivências que os povos negros construíram no período da escravização, sendo

a oralidade um dos instrumentos de resistência recriados na atualidade.

Nesse sentido, o Sarau da Onça se configura como um espaço de encontro de jovens

negros e negras onde estes podem se expressar através da poesia, ouvir e serem ouvidos,

afirmar as identidades e, sobretudo, escrever e contar a própria história. O Sarau da Onça é

grito de liberdade, quebra de silêncio que o grupo dominante impôs à minoria. É o

desmascaramento da realidade de injustiças, desigualdades e violência fabricada para a

periferia, levando em consideração aqui não apenas o bairro de Sussuarana, mas as periferias

que compõem o cenário de Salvador.

Falar do Sarau da Onça nos leva a pensar no conceito de Literatura Marginal tão

discutido e carregado de complexidades. Para tratar inicialmente dessa questão quero trazer

como referência o estudo que Érica Peçanha do Nascimento faz em seu livro: Vozes

marginais na literatura. A autora, para conduzir a reflexão em torno do conceito de Literatura

marginal, faz uma breve descrição das duas palavras Literatura e Marginal

separadamente. Retomando Antonio Candido (1969), Nascimento (2009, p. 36) considera a

Literatura:

[...] como a produção escrita de toque poético, épico ou dramático da qual se origina

um sistema simbólico de obras ligadas por denominadores comuns, tais como:

características internas (língua, temas, imagens), um conjunto de escritores mais ou

menos conscientes do seu papel, um conjunto de receptores e um mecanismo

transmissor.

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Considerando a definição supracitada, a produção considerada Literatura parece se

restringir a certos padrões preestabelecidos, de modo que todo um conjunto de produções não

reconhecidas fica fora de tal designação. Em relação ao termo marginal a autora faz a seguinte

retomada:

Já marginal adjetiva aqueles que estão em condição de marginalidade em relação à

lei ou à sociedade e possui, portanto, sentido ambivalente: assim como se refere,

juridicamente, ao indivíduo delinquente, indolente ou perigoso, ligado ao mundo do

crime e da violência; aplica-se, sociologicamente, aos sujeitos vitimados por

processos de marginalização social, como pobres, desempregados, migrantes ou

membros de minorias étnicas e raciais, e tem como sinônimo o adjetivo

marginalizado (PERLMAN, 1977 apud NASCIMENTO, 2009. p. 36).

A junção dos dois termos formando um único, Literatura marginal, adquire, dessa

forma, diferentes sentidos. De acordo com Nascimento (2009), o significado da expressão

mais difundido está associado ao contexto da ditadura militar na década de 1970, em que

houve “a criação de circuitos de produção e divulgação alternativos ou marginais no teatro, na

música, no cinema e na literatura”. O termo marginal era utilizado para designar uma

produção que privilegiava um tipo de linguagem, temas e uma forma gráfica dos livros. Os

poetas eram “estudantes de classe média e alta ligados as atividades do cinema, teatro,

música” (p. 41).

A Literatura marginal produzida no período da ditadura militar é bastante divergente

da Literatura marginal produzida por outro grupo de escritores da contemporaneidade. A

partir de um projeto de Literatura na revista Caros Amigos intitulado “Literatura Marginal: a

cultura da periferia” o escritor Férrez se apropriou da expressão ressignificando o termo

“marginal” para trazer à tona escritores da periferia que até então não haviam publicado. Para

falar da origem do projeto o escritor declara o seguinte:

Eu sempre fui chamado de marginal pela polícia e quis fazer como o pessoal do hip

hop que se apropriou de termos que ninguém queria usar. Já que eu ia fazer a minha

revista maloqueira, quis me autodenominar marginal. Eu fiz como os rappers, que

para se defenderem da sociedade, aceitam e usam os termos ‘preto’ e ‘favelado’

como motivos de orgulho. Depois surgiu a revista, porque eu já colaborava com a

Caros Amigos e fiz a proposta de trazer outros escritores em um número especial,

mas tinha que ser da periferia, disso eu não abri mão. [...] (Ferréz em fala na “Mostra

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Artística do Fórum Cultural Mundial”, realizada em 30 de junho de 2004 no SESC

Consolação/ SP apud NASCIMENTO, 2009, p. 43-44).

Na fala do escritor já fica claro que o emprego da expressão “marginal” é diferente

daquele feito pelo grupo de escritores da década de 1970. Os escritores marginais da nova

geração estão ligados ao termo mencionado não apenas pelas características de suas

produções, mas também por fazer parte de minorias que estão em situação de marginalidade

social. Nesse sentido, a Literatura marginal da nova geração, mesmo que não assuma um

compromisso social, está sendo espaço de luta e resistência, bem como de transformação por

meio da palavra.

Desse modo, quando um sarau é organizado dentro de um bairro periférico isso se

configura como ato transgressor e por que não dizer revolucionário? A periferia, sabemos nós,

tem seus direitos furtados, para ficar no raso, cito a privação do acesso ao conhecimento e à

cultura, que objetiva anular a capacidade de pensar dos sujeitos. Sendo assim, uma

organização cultural como o Sarau da Onça se constitui como frente armada contra as

intempéries vivenciadas na periferia. É lugar onde é dada a oportunidade de sujeitos

silenciados falarem de suas vivências e formas de resistência. No sarau a poesia declamada é

um convite à reflexão e à tomada de consciência em torno da realidade de violências e

injustiças tão naturalizada quando se trata da periferia. “A Poesia é uma Bala”, título de uma

das poesias de Sandro Sussuarana presente em seu livro Verso (s) sob (re) mim nos faz pensar

a respeito da importância da poesia em um contexto que o direito de dizer e de pensar é

anulado a todo instante, discretamente sem que os indivíduos percebam.

O silêncio é uma prece,

a Poesia uma bala,

pela boca dispara,

na mente dos inconscientes.

Escute-a.

Ela veio para te falar,

mostrar a realidade,

das mulheres que são mães de verdade,

que buscam no dia-a-dia da periferia,

a sua felicidade.

Mulheres mães que trabalham e estudam

e com suor árduo os seus filhos educam.

Não a despreze.

Sinta-a.

Pare um só momento e reflita.

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Eu vim para denunciar

falar das falcatruas e mentiras

que eles afirmam vim das ruas.

Bocas sujas.

Eu vim para exaltar quem comigo trabalha,

nos becos e vielas, nos morro das favelas,

Para sua mente mudar e o seu mundo transformar.

Eu vim para que todos tenham o dom

dom da palavra falada, da música cantada

da realidade cruel mudada e as vossas almas lavadas.

Não me despreze.

Sinta-me.

Eu sou a vida em busca de cura,

a cura de todos os dias.

Pare.

Reflita.

Sou a POESIA!

Nas palavras supracitadas fica evidente o papel que a poesia assume. Ela irrompe o

silêncio para denunciar as injustiças e a opressão contra as minorias, ela dispara feito bala na

mente dos inconscientes, isto é, ela faz pensar, refletir sobre a realidade que nos cerca:

Pare um só momento e reflita.

Eu vim para denunciar

falar das falcatruas e mentiras

que eles afirmam vim das ruas.

Bocas sujas.

Eu vim para exaltar quem comigo trabalha,

nos becos e vielas, nos morro das favelas,

Para sua mente mudar e o seu mundo transformar.

A poesia, como sinalizada acima, pode se configurar como lugar de singularização dos

sujeitos ao passo que por meio dela as situações são (re) interpretadas havendo a

desconstrução de verdades pré-construídas.

Nesse sentido, as poesias produzidas no/pelo Sarau da Onça são de caráter provocativo

no que diz respeito aos temas e questões abordadas, uma vez que são temáticas que sinalizam

feridas em aberto de uma parcela da sociedade que passa por processos de desumanização e

injustiças. “Jovem Negro Vivo”, poesia de Sandro Sussuarana, aborda um dos temas mais

discutidos nas produções do Sarau da Onça. Vejamos:

O perigo é constante

nas periferias do Brasil

diariamente vejo mães

procurando os seus filhos

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e sei que é mais um que sumiu.

no país mais negro fora da África

quem mata os preto

recebe honraria e medalha

Legitimam o extermínio em massa,

enquanto, a esperança do nosso futuro

estão por aí, nas ruas, vivendo de catar lata

Sem ideia do que significa a tal vida digna que prega a constituição

Tá foda viver nessa situação

falam que nos dão oportunidade

mas a todo o momento

nos tiram a liberdade

nos exploram

e ainda nos escravizam

querem a todo o custo

tirar as nossas vidas

apagaram nossos reis da história

para não termos boas referências

em nossas memórias.

sofremos em todos os momentos

Tentando alcançar a vitória

A pergunta que fica é:

quando um jovem Negro morre

Você se importa?

A poesia acima traz à cena a questão da situação do negro na sociedade brasileira no

que diz respeito à negação de seus direitos, inclusive o direito à vida, uma vez que o padrão

criado para perseguição policial é negro periférico. Podemos pensar também no conceito de

necropolítica de Achille Mbembe, uma vez que essa forma de poder decide quem deve

morrer. Assim, a partir do questionamento que a poesia acima elabora é possível constatar que

o jovem negro da periferia é o alvo de tal política de morte. Além disso, mostra como os

sujeitos são controlados, explorados por um sistema opressor que fabrica sobreviventes:

falam que nos dão oportunidade

mas a todo o momento

nos tiram a liberdade

nos exploram

e ainda nos escravizam

Sobreviventes porque são fruto de uma estrutura social que produz desigualdades em

diversos níveis. Podemos pensar no biopoder contemporâneo, sobre o qual fala Pelbart

(2007), que ao gerir a vida produz sobreviventes.

É possível observar também que a voz que fala na poesia conhece a realidade que está

sendo narrada e se insere nela, isso fica claro no uso da primeira pessoa. Dessa maneira, a

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realidade descrita é uma experiência vivida por uma coletividade, traduzida por uma voz que

ecoa na poesia.

Uma série de outros temas são colocados como ponto de reflexão nas poesias

produzidas no/pelo Sarau da Onça como forma de chamar para o debate, para o ato

revolucionário de pensar sobre questões que são alvos de tentativas de silenciamento.

Além de temas como racismo e violência, na segunda antologia de poesias do Sarau da

Onça há uma grande quantidade de poesias que abordam questões de gênero e de opressão

contra a mulher. A produção do Sarau é vasta, é impossível trazer todas as poesias em um

único trabalho, por esse motivo tive que selecionar alguns textos, tarefa muito difícil, por

sinal.

Desse modo, como já trouxe aqui produções com temas voltados para o racismo e suas

consequências para o povo negro, bem como a violência na periferia, prossigo trazendo agora

poesias sobre questões de gênero, a opressão criada pelo machismo e empoderamento

feminino e negro. Comecemos com a poesia “Mulher de verdade”, da poetisa Gleise Sousa

(Sarau da Onça, 2017, p. 65).

Pra se mulher de verdade

A gente só precisa existir.

O resto é invenção

Pra nos limitar e nos dividir.

Numa sociedade que espanca Luanas,

Que arrasta Cláudias,

13 mulheres são assassinadas por dia,

E a cada 11 minutos uma é estuprada.

números crescentes de violência,

Onde por falta de assistência tantas mulheres morrem

Deveria ser óbvio que entre o estado e a igreja

A dona do corpo é quem escolhe.

Uma das causas

Da situação parecer imutável

É que do outro lado

Tudo parece estar confortável.

A manutenção dos seus privilégios

Consiste em nos diminuir

Desde a imposição das obrigações domésticas

Até o assédio nojento que temos que ouvir.

O respeito, assim como a dignidade

Não é negociável.

A porta do machismo separa os gêneros

E o nome da chave é equidade.

Se a dor é nossa,

Pode deixar que a gente grita

Mas se pergunte até onde você coopera

Pra que essa violência exista.

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O título da poesia já nos conduz para a construção de alguns sentidos. Mulher de

verdade nos leva a pensar se existem parâmetros para definir o que é e o que não é mulher em

nossa sociedade e quais representações são utilizadas para fazer referência ao ser mulher. Nas

primeiras linhas a poesia nos dá pistas sobre essa questão:

Pra se mulher de verdade

A gente só precisa existir.

O resto é invenção

Pra nos limitar e nos dividir.

No trecho podemos perceber que há uma atitude de contraposição às ideias

dominantes construídas acerca da mulher. Podemos pensar na construção do que é ser mulher

em uma sociedade machista, em que o padrão de beleza é etnocêntrico. Nesses termos, mulher

tem que ser delicada, recatada, dedicada ao lar e a família, subserviente e dona de uma beleza

física, tendo em vista a objetificação do corpo feminino. A desconstrução provocada pela

poesia mostra, também, que tudo o que foi construído enquanto padrão feminino tem o

objetivo de impor limites a nós mulheres e causar a nossa divisão. Sendo assim, se na lógica

as mulheres deveriam se unir contra toda opressão, o que acontece, na maioria das vezes, é

uma rivalidade. Assim, a voz feminina constrói a autoafirmação do ser feminino livre de todas

as imposições e representações de uma cultura machista.

No desenrolar da poesia vai se evidenciando a denúncia e a crítica direcionada a

estrutura machista e patriarcal em nossa sociedade, como no trecho:

Numa sociedade que espanca Luanas,

Que arrasta Cláudias,

13 mulheres são assassinadas por dia,

E a cada 11 minutos uma é estuprada.

números crescentes de violência,

Onde por falta de assistência tantas mulheres morrem

Deveria ser óbvio que entre o estado e a igreja

A dona do corpo é quem escolhe.

Há uma referência clara no que diz respeito à dominação e opressão da mulher na

sociedade quando é destacada a quantidade de mulheres que sofrem violência cotidianamente,

bem como o número de assassinatos de mulheres, que só cresce em nosso país. É possível

refletir também sobre a fragilidade da justiça quando se trata da violência contra mulher. Tal

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violência, assim como as imposições direcionadas a mulher são frutos de uma sociedade

patriarcal, sexista e machista, na qual a mulher é coisificada e seus direitos de ser, de ir e vir

são podados ou limitados. As duas últimas frases do trecho supracitado nos instigam à

reflexão sobre isso. O final da poesia deixa uma provocação para que possamos refletir

seriamente:

[...] se pergunte até onde você coopera

Pra que essa violência exista.

Entendo que esse “você” colocado no primeiro verso pode está se direcionando tanto

para homens, quanto para mulheres. Esse chamado é para que reflitamos sobre até que ponto

contribuímos para que essa situação se perpetue. Podemos aqui imaginar uma série de

situações, como por exemplo, um contexto familiar em que tanto o pai quanto a mãe acaba

passando imagens distorcidas a respeito da mulher para o filho, ao invés de ensiná-lo a

respeitar, entendendo que elas têm os mesmos direitos que os homens e que elas não são

propriedade destes. Pensemos aqui na masculinidade, o quanto que ela reforça a cultura

machista na medida em que homens não refletem sobre atitudes tão naturalizadas em nossa

sociedade. Outro exemplo é em relação a nós, mulheres. Cabe se perguntar até que ponto

contribuímos com a legitimação de tal estrutura. Posto isso, continuemos a reflexão.

Tendo em vista a dupla opressão que a mulher negra sofre, cabe destacar a

importância do feminismo negro, visto que este promove reflexões acerca das várias

opressões que estão na base da estrutura social.

As questões da mulher negra acabam ficando de fora das pautas de luta do feminismo,

uma vez que o movimento se volta para a discussão de gênero sem levar em consideração a

realidade diversa da mulher negra. Esta tende a ocupar o lugar mais inferior na hierarquia

homem branco, homem negro e mulher branca. Se as questões da mulher negra são

desconsideradas isso implica na deslegitimação da natureza feminina negra. Dessa forma,

lembrando uma fala de Djamila Ribeiro, deve-se ter cuidado quando reivindicamos e

debatemos sobre os direitos de um determinado grupo social para não tentar combater uma

estrutura opressora alimentando outras. Como exemplo, o feminismo ao desconsiderar a luta

das mulheres negras, está, pois, sustentando o racismo, que faz parte da mesma estrutura

opressora que se encontra o machismo. Sendo assim, dizia a autora “ser feminista

necessariamente precisa ser antirracista porque existem mulheres negras”. É nesse sentido que

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o feminismo negro, como afirma Ribeiro (2016), é importante, visto que propõe a reflexão

sobre as diversas opressões.

Pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma

opressão sobre as outras e que, sendo estas estruturantes, é preciso romper com a

estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de

forma isolada, mas sim de modo indissociável (RIBEIRO, 2016, p. 101).

As reflexões levantadas pela autora são pertinentes para pensarmos sobre as

identidades e não uma identidade, tendo em vista que somos seres plurais, múltiplos, daí a

importância de se pensar e se combater, como diz a autora, as opressões, já que elas se cruzam

o tempo todo.

Prosseguindo com a discussão leiamos agora a poesia “Desabafos” de Joyce Melo

(Sarau da Onça, 2017, p. 58).

Eu compartilho do sonho de King,

Suplico que um dia a cor da pele, os traços faciais, o meu cabelo,

não seja determinante.

Mas enquanto for o afrontamento será constante.

Vocês não terão sono.

E eu vou avisar desde aqui

Querida gente branca,

Vocês vão ter que me engolir.

Eu sou o meu corpo violentado,

O corpo negro que eu neguei,

O que não passa uma rua sem ser abusado

Aquele mesmo que é coisificado.

Com 17 anos, símbolo de força.

A resistência dormiu e acordou no corpo de uma moça.

A criança tímida, hoje é a voz de tantas outras.

O ABC que a gente aprende

Vem com doses de inferior.

Não permita ser mais uma vítima

Sou o que sou

Pra mostrar que a incompetência não é genética

E que ter meu cabelo e minha cor não me faz ser menor

E não me faz te perceber como superior.

Na poesia acima, como algumas que vimos aqui, traz um discurso engajado em torno

das questões raciais, mas também aborda o tema da opressão feminina. Nos primeiros versos

há uma referência a Martin Luther King, ativista norte-americano que lutou contra a

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discriminação racial e defendeu os direitos dos negros5 para falar do sonho de um dia os

traços fenotípicos não serem o fator para inferiorizar o povo negro. A poesia, de forma

simples, expõe o racismo científico e suas consequências sentidas até hoje por quem é negra e

negro. A voz que fala na poesia revela a construção do empoderamento feminino e negro,

bem como a resistência enquanto arma de enfrentamento político. No tocante à reconstrução

de uma referência que não se ampare no padrão branco, Neusa Santos Souza em seu livro

Tornar-se negro nos ajuda a entender esse processo:

A possibilidade de construir uma identidade negra‒ tarefa eminentemente política ‒

exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras

primeiras ‒ pais ou substitutos ‒ que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco.

Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições de possibilidade que lhe

permitirão ter um rosto próprio (SOUZA, 1983, p. 77).

A experiência do povo negro é marcada, dentre outras coisas, pela tentativa de

aproximação do branco, de suas características físicas, de seu comportamento, para, assim,

conquistar o sentimento de dignidade e humanidade, tendo em vista que fora desse padrão o

negro não era considerado nem mesmo uma pessoa. Dessa forma, como afirma Souza (1983),

o negro que conseguia uma ascensão social tornava-se uma exceção à regra para o

pensamento racista e, para manter tal condição, era necessário agir de acordo com o padrão

branco, isto é, usar as máscaras brancas de que Fanon fala para ser aceito, o que implica a

negação de si. Nesse sentido, como propõe Souza (1983), para se construir uma identidade

negra faz-se necessária a contestação e o rompimento com o modelo branco, promovendo,

pois, a afirmação de si.

A poesia propõe a reflexão também sobre a opressão feminina, nesse caso, uma dupla

opressão: uma por ser mulher, outra por ser negra. A mulher negra ao longo da história sofreu

todo tipo de humilhação e violência, tendo seu corpo comumente coisificado e explorado.

Levando isso em consideração, a mulher negra sente os efeitos tanto da opressão racial quanto

da opressão feminina. bell hooks (2014, p. 40) escreve:

A desvalorização da natureza feminina negra ocorreu como resultado da exploração

sexual das mulheres negras durante a escravatura que não foi alterado no decurso de

centenas de anos. Já previamente mencionei que enquanto muitos cidadãos

interessados simpatizaram com a exploração das mulheres negras quer durante a

5 https://www.ebiografia.com/martin_luther_king/

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escravatura quer após, como todas as vítimas de violação da sociedade patriarcal

elas eram vistas como tendo perdido valor e dignidade como resultado da

humilhação que elas suportaram.

Como afirma a autora, a desvalorização da mulher negra se estendeu para além do

período da escravatura. Os efeitos disso podem ser sentidos ainda hoje, contudo, as

resistências têm ganhado força no sentido de que as mulheres negras estão ocupando espaços

antes restritos.

O racismo conseguiu fazer com que as características de uma pessoa negra fossem

associadas ao que é feio e ruim. Isso é sentido tanto pelo homem negro quanto pela mulher

negra. O cabelo é um dos pontos mais afetados pelo discurso racista e a mulher negra tende a

sentir isso com maior impacto. Sigamos com mais uma poesia, intitulada “Símbolo de

Resistência”, de Maiara Silva (Sarau da Onça, 2017, p. 94).

Preta desde que nasci,

Mas, só descobrir o valor da minha pele quando cresci

Me negaram o direito de ser quem eu sou

Me ensinaram que meu cabelo é ruim

Até me faziam achar que era um castigo ser assim

O tempo passou e informação virou minha arma contra toda opressão

E hoje minha palavra reflete minha cor, minha vivência,

minhas dores, minha essência

E me irritam quando dizem que meu cabelo é moda

O fato é que fugimos do padrão e que o crespo incomoda

E turbante não é fantasia moça, só para usar quando está em evidência

Porque não é moda e nem tendência, é o nosso símbolo de resistência

E ver meu povo preto no poder é o que quero

Poesia que recito, corpo que grita, alma que expresso

e peço nada além disso, representatividade e sucesso.

A voz que “grita” na poesia coloca em evidência o processo de negação de si,

colocado em funcionamento através dos discursos de inferiorização das singularidades da

pessoa negra. Nesse sentido, a transformação do cabelo crespo em algo ruim é uma das coisas

que mais afeta a autoestima de uma criança negra, uma vez que o crespo foge ao padrão

europeu instituído enquanto belo. Nilma Lino Gomes ao abordar sobre o cabelo crespo

enquanto símbolo da identidade negra afirma que:

O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele

comunica e informa sobre as relações raciais. Dessa forma, ele também pode ser

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pensado como um signo, pois representa algo mais, algo distinto de si mesmo

(GOMES, s/d, p. 8).

Assim, o cabelo crespo em uma sociedade racista como a nossa revela uma série de

tensões e conflitos que envolvem a construção da identidade negra. A designação do cabelo

crespo como “ruim” carrega o processo de imposição da inferioridade do ser negro, uma

ideologia que ditou o que seria bom e o que seria ruim e a quem essas denominações estariam

direcionadas. Desse modo, o sentido que o sujeito atribui ao cabelo pode caminhar em duas

direções:

Assim como a democracia racial encobre os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o

tipo de penteado, de manipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os

adota podem ser usados para camuflar o pertencimento étnico/racial, na tentativa de

encobrir dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra. Mas tal

comportamento pode também representar um processo de reconhecimento das raízes

africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o racismo [...]

(GOMES, s/d, p. 8).

Dessa forma, o cabelo crespo é ressignificado na poesia supracitada enquanto símbolo

de resistência do povo negro. Representa, pois, como a autora diz, um processo de

reconhecimento e afirmação das raízes africanas.

Nesse sentido, a voz poética, ao trazer à tona sua identidade negra e sua experiência,

mostra que conseguiu desconstruir o que havia aprendido de negativo acerca de sua origem e

reconstruir sua história através da informação. Trata-se de um processo que Neusa Santos

Souza define da seguinte forma: “[...] ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a

ser. Ser negro é tornar-se negro” (1983, p. 77). A identidade negra, portanto, para se construir

passa por todos os conflitos e tensões que as relações raciais podem originar.

Posto isso, a partir das poesias aqui dispostas, é possível constatar que o Sarau da

Onça oportuniza o exercício do pensamento crítico em que os sujeitos realizam o

autoconhecimento, a autoafirmação e a releitura da própria história. Dessa forma, temas que

representam opressões que estão na base de nossa estrutura social são discutidos, de modo que

todo tipo de opressão que as minorias sofrem não seja banalizada, mas combatida

diariamente. É importante sinalizar que as opressões atravessam umas às outras. Em vista

disso, o Sarau pode ser percebido como uma insurgência, na medida em que se questiona toda

uma estrutura opressora. Assim, a luta não é apenas contra a opressão racial, mas também de

gênero e de classe.

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No tópico seguinte veremos como que o programa de rádio, o Evolução Hip-Hop,

também pode ser percebido enquanto uma “máquina” contra-hegemônica, em que uma

pluralidade de vozes entra em cena.

2.3 Programa Evolução Hip-Hop

Figura 5: Imagem retirada da página do Evolução Hip Hop.

O Evolução Hip Hop é um programa que vai ao ar na Rádio Educadora FM 107.5 e

tem com produtor e apresentador Hamilton Oliveira, o DJ Branco. O programa foi ao ar pela

primeira vez em 24 de novembro de 2007, ocupando o primeiro lugar na audiência entre os

programas de rádio do Estado da Bahia. Devido ao seu sucesso foi indicado ao Prêmio

Nacional Dinamite de Música Independente. Cabe destacar que o Evolução Hip Hop foi o

único programa de rádio baiano a disputar no referido evento e, além disso, é o único

programa de rádio do gênero no Brasil. Também recebeu da prefeitura de Salvador o

Certificado de Excelência por colaborar no Observatório da Discriminação Racial, violência

contra a Mulher e LGBT além de ser Selo Prêmio Cultura Viva do Ministério da Cultura.

Essas e outras informações podem ser encontradas no site: www.irdeb.ba.gov.br, uma das

fontes da presente pesquisa, além da entrevista realizada com DJ Branco, produtor e

apresentador do programa Evolução Hip Hop.

O programa de rádio mencionado também se constitui como fonte de estudo da

presente pesquisa. O objetivo foi realizar um estudo da produção do programa Evolução Hip-

Hop enquanto agente que contribui para o fortalecimento da cultura das ruas, bem como para

o debate de questões sociais em diálogo com a população. Para entender mais um pouco sobre

o programa a fala de seu produtor e apresentador, DJ Branco, nos esclarece muitas coisas:

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O programa Evolução Hip Hop, né, ele é um programa de rádio que trabalha com

comunicação e cultura. A gente começou no ano de 2003 na Rádio Comunitária

Popular FM, lá em Mussurunga. A rádio fechou por conta de perseguição da Anatel,

que a rádio não era legalizada e em 2007 a gente apresenta um projeto em um evento

que a rádio Educadora FM fez, chamado o Primeiro Encontro da Educadora FM

com a produção musical baiana, né, e esse projeto ele é aprovado. É... o Programa

Evolução Hip Hop é produzido pela CMA HIP HOP, que é uma organização que

trabalha com comunicação, mobilização social e produção cultural, né, é um

programa independente, a gente não tem nenhum tipo de vínculo empregatício com

a rádio Educadora nem com instituições e instituto de rádio e difusão educativa da

Bahia, nem com a TVE, né. A gente entra com o conteúdo, né, com a produção e

eles entram com equipamento técnico e com o sinal. E é um programa que para além

do hip hop é um programa que dialoga com a cidade, um programa que dialoga com

o Estado, né, para além de dialogar com os adeptos, simpatizantes da cultura hip

hop. É um programa que vai além porque ele trata também de questões sociais

dentro do programa, tem matérias diversas, né, então é um espaço aberto, né,

também, claro, pra cultura hip hop, mas também pra o movimento social em geral ir

lá falar sobre suas pautas. Ele é dividido em três partes, né. Ele tem entrevista, né,

ele tem música e tem um quadro de notícias que é o quadro de agenda cultural CMA

hip hop informa. Eventualmente a gente cria algum quadro novo no Evolução Hip

Hop, a exemplo de 2012 que a gente criou um quadro chamado Trabalho infantil em

foco, né, pra discutir as problemáticas que tem referente ao trabalho infantil durante

o Carnaval de Salvador. A gente fez uma parceria na época com a SINCOP,

comunicação interativa e a gente produziu o conteúdo em conjunto e rodou na

Educadora FM. (DJ Branco)

Como foi proferido pelo produtor cultural, o programa Evolução Hip-Hop trabalha

com comunicação, cultura e mobilização social, sendo que a programação não é

exclusivamente voltada para a Cultura Hip Hop, mas direciona-se para o diálogo em torno de

múltiplas questões sociais e políticas, criando espaço para que segmentos da população

discutam suas pautas. Vale salientar que o referido programa de rádio é mais uma conquista

do Movimento Hip Hop no contexto baiano. Isso mostra que o Hip Hop enquanto movimento

organizado possui um potencial político que conduz os sujeitos para a reivindicação de

direitos e transformação social de forma planejada.

Dessa forma, como sendo mais um espaço conquistado, o programa de rádio também

tem sido lugar de resistência, uma vez que é responsável por divulgar e valorizar a cultura das

ruas, a cultura negra e o Hip Hop, além de abordar questões de interesse público, como

discriminação racial, desigualdade social, violência contra mulher, direitos humanos,

promovendo também um diálogo com o Estado. Nesse sentido, o Evolução Hip-Hop se

configura como um programa de rádio diferenciado, já que é um espaço em que vozes

marginais e suas produções são visibilizadas e valorizadas. É o único programa de rádio em

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que a cultura Hip Hop é divulgada e valorizada, tendo em vista que o rap é criminalizado e

alvo de preconceitos que no fim está resumido ao preconceito baseado na origem social e

racial dos sujeitos que produzem tal gênero musical.

Levando em consideração o caráter do programa Evolução Hip-Hop não precisamos

de muito esforço para imaginar o impacto de um programa como esse em uma rádio

conceituada como a Educadora FM. O DJ Branco deixa claro que houve resistência na

implementação do Evolução Hip-Hop na programação da Educadora FM.

[...] vários ouvintes da rádio, conservadores, né, porque a rádio sempre teve um

perfil de um público de acima de 30 anos e com nível superior completo, tal, pessoas

críticas na área de música, na área de cultura, na área de política e criticaram,

falaram que a rádio não podia ter, uma rádio conceituada, educativa como a

Educadora, um programa de Hip Hop. É... “ah não porque é música de bandido,

música de ladrão, que fala de drogas, que fala de violência, não pode. Ah, os

Tambores da Liberdade não pode, música do Ilê Aiyê, música de macumba, de

candomblé e tal”. E aí ficou nessa, né, só que na época o diretor da rádio que foi o

cara que assinou em baixo, falou: “não, acho que tem que rolar, se a rádio é pública

ela tem que atender a diversidade cultural do estado da Bahia, tem que beneficiar

mesmo esses segmentos que tem um propósito social”. E aí a grande resposta teve

muita resistência até por parte interna, mesmo de alguns funcionários da rádio, da

instituição, pra o programa ir ao ar, mas a resposta foi que entrou no ar em 24 de

novembro de 2007 e em janeiro de 2008 chegou a pesquisa do Ibope e a gente tava

em primeiro lugar em audiência, né, o Evolução Hip Hop ficou três anos em

primeiro lugar em audiência [...] (DJ Branco).

Uma informação presente na fala acima vale ser destacada, a saber, a colocação em

primeiro lugar em audiência do programa Evolução Hip-Hop. Não é porque isso configura

uma novidade e sim porque é um dado revelador para a discussão que vem sendo

desenvolvida aqui.

As margens, a periferia, habitada por sujeitos excluídos e violentados por uma

estrutura social extremamente desigual e preconceituosa também produz arte e cultura. O que

sempre faltou e ainda se faz ausente é a garantia de direitos a essa parcela da sociedade. Dessa

forma, um programa como o Evolução Hip-Hop representa muito mais que um simples

programa de rádio. Se constitui, pois, como espaço de ação contra-hegemônica, de resistência

e valorização do movimento hip hop, uma vez que através do programa, criado e apresentado

por pessoas que representam o movimento, tal iniciativa permite estabelecer o diálogo com a

população fornecendo informações e saberes sobre o próprio movimento e outros temas

ligados direta ou indiretamente. Sobre a importância do programa de rádio e da cultura hip

hop o produtor e apresentador do programa afirma:

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O Evolução Hip Hop representa evolução, representa a quebra de paradigmas, né, o

rompimento de fronteiras e dizer que o Hip Hop ele não é uma tribo, o hip hop é o

mundo e tem que estar em qualquer espaço. O Hip Hop hoje nas periferias de

Salvador, né, ele representa a maior forma de organização popular de jovens na

periferia do Brasil. Né... a linguagem cultural que dialoga diretamente com aqueles e

com aquelas que estão, é... propositalmente, ignorados e criminalizados, né, que

sofrem injustiças sociais por parte do poder público, por parte do estado brasileiro,

né. O Hip Hop ele representa a voz dos excluídos, o Hip Hop representa mudança,

como é que fala um discurso crítico engajado politizado, né, então o Hip Hop nas

comunidades ele é muito importante pra contribuir pro resgate da autoestima da

juventude, né, e da elevação da consciência (DJ Branco).

Sendo assim, o Hip Hop representa para a periferia de Salvador organização política

de jovens no sentido de que esses se apropriam de um discurso crítico e contra-hegemônico,

sendo, pois, a transformação e agente dela dentro da periferia.

O programa caminha no sentido da evolução, como o próprio nome diz. Se trata de

uma iniciativa que dá visibilidade à cultura negra baiana através de apoio, de sua divulgação e

fortalecimento. É um grito de resistência contra as tentativas de silenciamento das vozes da

cultura negra e da periferia. O Evolução Hip Hop traz à tona uma pluralidade de vozes que

vem resistindo à opressão e estratégias de silenciamento.

Com relação à valorização da cultura Hip Hop, um programa de rádio como o

Evolução Hip Hop consegue divulgar o conhecimento a respeito de tal cultura, mostrando seu

compromisso social, seu caráter reivindicatório, sua resistência. Assim, o programa é um

contraponto a uma mídia a serviço do capital que pretende transformar o movimento Hip Hop

em simples estilo de vida, vazio de sentido, resumindo-se na maneira de se vestir, de se

comportar, de falar, de agir, assumida por sujeitos da periferia.

O grande problema é que o mercado da cultura no Brasil sabe disso, sabe do poder

que essa cultura tem, né, de chamar atenção das pessoas de envolver as pessoas, de

chamar, de fazer com que as pessoas reflitam sobre seu papel na sociedade, né,

como pode contribuir ou não, que bloqueiam. Bloqueiam porque é a cultura Hip

Hop? Não. Não é porque é a cultura Hip Hop, é porque é uma cultura de periferia.

Tudo que é cultura de periferia, né, de alguma forma eles tentam, como é que fala?

É... limitar, limitar pra que essa cultura não chegue a muitas pessoas, né, porque é a

cultura, é arte, ela é uma arma na mão dessa juventude, né, então se chegar muito

longe vai impactar, vai mexer com interesses de quem domina o poder econômico

no país (DJ Branco).

Que acontece, como eu falei, que a gente trabalha com ciências políticas, sempre

participando de espaços de controle social que são os conselhos de direitos. A gente

tem prova hoje suficiente, eu tenho até palestra que fala sobre isso, que a cultura Hip

Hop contribui significativamente pro processo educativo de adolescentes e jovens da

escola pública, né, por conta da linguagem. É uma linguagem fácil, é uma

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linguagem que se identifica, é a linguagem deles, né, contribui no processo

educativo (DJ Branco).

Dessa forma, a tentativa de impedir que a cultura produzida na periferia seja

reconhecida se configura como estratégia para manter a ordem das coisas como estão, isto é, a

garantia dos privilégios de poucos, já que se sabe da potência da margem para a luta e a

transformação. É justamente essa transformação que é alvo de anulação dos poderes políticos

e econômicos. A transformação se mostra como inimiga perigosa, tendo em vista que ela

coloca em jogo aquilo que insistem em nos fazer acreditar como sendo algo passado pelo

sangue, portanto, inato. Eis o privilégio.

Entretanto, se de um lado há investidas para impedir a transformação, por outro, há

várias redes de resistências que se conectam e ajudam a construir e fortalecer novas redes que

caminham para a luta contra as injustiças sociais e todas as barreiras construídas pelas

desigualdades que separam os sujeitos através da esfera do privilégio versus carência.

Recentemente a cultura teve mais uma conquista, que foi a assinatura do “ato de

Autorização de Uso de bem Público para a implantação da Casa do Hip-Hop Bahia, cedida

pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac)” 6. Isso representa uma

grande conquista tanto para o movimento Hip Hop quanto para a população jovem e negra da

Bahia.

2.4 Vozes da resistência

Nas tradições orais o ato de narrar é de suma importância para a manutenção da

existência e da memória de um povo, sendo as performances narrativas ou de canto

constitutivas de formas de vida. Vale dizer que tais tradições passam por um processo de

mudanças e permanências que as constituem como um “tecido vivo”. Nesse sentido, é

pertinente pensar como que essas mudanças ocorrem e, para isso, podemos tomar como

exemplo o rap, uma vez que este se configura como uma narrativa do cotidiano da periferia.

Podemos partir do pressuposto que o articulador do rap é, em certa medida, uma versão

6 https://www.irdeb.ba.gov.br/evolucaohiphop/?tag=hip-hop-em-salvador.

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atualizada dos griôs, já que é através da voz que narra as vivências e fatos do cotidiano da

periferia.

No seu livro Vozes plurais7, Adriana Cavarero (2011) tece uma complexa discussão

em torno da temática da voz, de modo que se propõe pensar a palavra a partir da pluralidade

de vozes. A autora mostra como que a voz foi desprezada pela filosofia e encarada enquanto

desprovida de significação. Escreve a autora:

Capturando a phoné no sistema da significação, a filosofia não só torna inconcebível

um primado da voz sobre a palavra como também não concede ao vocálico nenhum

valor que seja independente do semântico (CAVARERO, 2011, p. 52).

Dessa forma, ao se fechar no plano da palavra e do conceito se ignora que a palavra

encarnada na voz comunica a unicidade de cada sujeito.

[...] mais que revelar ela comunica. E comunica precisamente a unicidade

verdadeira, vital e perceptível de quem a emite. Não se trata, porém, de uma

comunicação fechada no circuito entre a própria voz e o próprio ouvido, mas de um

comunicar-se da unicidade que é, ao mesmo tempo, uma relação com outra

unicidade (CAVARERO, p. 20).

Assim, no momento em que o sujeito fala, sua voz está revelando quem ele é, sua

singularidade. A voz é viva justamente porque é encarnada em um sujeito de carne e osso e

que é atravessado por histórias e experiências. Nesse sentido, como afirma Cavarero (2011), é

necessário focalizar o dizer, tendo em vista que é através desse que “a unicidade de cada

falante se faz ouvir como uma pluralidade das vozes” (p. 232).

Daí advém a importância e potência da voz, que se revela no exercício do dizer dos

sujeitos. O rapper se apropria profundamente das experiências da vida na periferia, dos

estereótipos que as pessoas deste lugar carregam nas costas para transformar isso em arma de

combate. Há um lugar de onde se fala e do qual se fala. O discurso está inscrito neste lugar,

existe um posicionamento, um empoderamento político. Desse modo, quando o sujeito canta

um rap, de imediato, ele comunica a sua singularidade, explicitando os sentidos do seu

discurso de modo que quem ouve se conecta e sente o que está sendo dito como um discurso

autêntico, uma vez que parte de um ser único, carregado de historicidade. O rap, ao ser

dirigido por uma voz, expressa, pois, uma realidade particular com a qual uma pluralidade de

7 Contribuição teórica do professor Dr. Luciano Justino na banca de qualificação deste trabalho.

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vozes se identifica. Nesse sentido, o conceito de “fratria” de Maria Rita Kehl (1999) cabe

muito bem no rap, uma vez que nas letras de rap existe uma voz que fala de uma

coletividade, há um sentimento de irmandade para com os sujeitos da favela. Como aponta a

autora, fala-se em um “nós”, que resume a totalidade dos sujeitos da periferia.

Segundo Pucci (2006), na voz encontramos variadas expressões. Em uma performance

de canto ou conto a voz assume papel central, uma vez que ela conduz a construção e

recepção dos sentidos.

O rapper fala das mazelas de onde vive, de seu bairro, de sua periferia, dos seus

ritos diários. Ele precisa se mostrar um grande articulador de ideias através da

palavra rimada. Assim consegue reunir pessoas de sua comunidade em torno de sua

voz. É, de algum modo, um herói, pois se mostra capaz de dizer o que sua

comunidade quer ouvir como dito. A base rítmica regular é suporte para a palavra,

que vive uma expressão em relevo (PUCCI, 2006, p. 6).

Assim, a voz é responsável por estabelecer uma relação de irmandade com o público,

suscitando uma reflexão acerca da realidade e das mazelas da periferia, bem como sobre

injustiças sociais como a desigualdade racial e social pela qual passa os sujeitos negros da

favela.

Do mesmo modo, a voz exerce um papel importante nas performances da poesia.

Assim sendo, a voz do sujeito é o meio pelo qual as ideias e reflexões propostas na poesia

ocupam o espaço e a mente dos espectadores, conduzindo-os à experimentação de ouvir e

dialogar com discursos que os representam. No contexto do sarau, em que há um grande

número de espectadores, a voz da/do poeta que declama suas poesias consegue materializar

em suas palavras a unicidade de seu ser, de suas experiências. Além disso, a voz, sua

entonação, bem como o conjunto de gestos e movimentos corporais que a/o poeta utiliza tem

a potencialidade de prender a atenção do público e envolvê-lo com o discurso que está sendo

construído na manifestação poética.

Dito isto, cabe enfatizar que a voz é um elemento essencial à vida humana, ela é

responsável pela conexão de experiências e de sentidos que atribuímos ao mundo. Ela é

portadora da pluralidade dos seres e de suas potencialidades.

Assim, entendida como elemento integrador de um sistema de comunicação que dá

sentido à vida, a voz se constitui de um conjunto de técnicas e procedimentos que o

homem exerce para existir e conviver. Se considerarmos que as culturas __

“versões”

da vida __

são teias que orientam e constroem modos de ser e estar no mundo;

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veremos que a voz marca nossa presença nessas redes do viver. Afinal, a voz diz

quem somos, o que somos, o que pensamos, o que fazemos (PUCCI, 2006, p. 3).

Quando uma pessoa canta, conta uma história ou declama um poema, algo a move

para isso e, com a voz, ela atribui sentidos ao trabalho, à cura, à comunicação entre

as pessoas e com seu entorno. Essas atribuições variam conforme os povos, as

etnias, os clãs, as categorias sociais (p. 3).

Dessa forma, a voz tem grande importância nas mais diversas sociedades, seja ela

materializada nas narrativas, nas poesias ou nas músicas. Como afirma Pucci (2006), “[...] o

fato é que todas essas vocalidades exercem um poder, sejam elas localizadas, nômades,

virtuais, explícitas ou subliminares” (p. 9).

Nesse sentido, o uso da voz pela cultura negra assim como em outras culturas é de

extrema importância na constituição de identidades e na manutenção das formas de vida. No

entanto, as práticas culturais africanas que tem como suporte o uso da voz, da musicalidade,

passaram por um rígido processo de negação e construção de estereótipos. Isso faz parte do

projeto racista que buscou e ainda busca dominar a cultura negra através dos discursos de

supremacia da cultura ocidental sobre a cultura africana.

Dessa forma, a antropologia tem contribuído muito para o estudo do som, uma vez que

há uma abertura para se discutir o som para além de seus aspectos físicos.

A importância do enfoque antropológico sobre a música se dá justamente quando ele

consegue quebrar ideias estreitas do fenômeno musical, alertando, inclusive, para

posturas provincianas ___

para não dizer etnocêntricas e preconceituosas ___

em

relação a práticas musicais de outros povos, e mesmo de outros grupos sociais

dentro do próprio país (PINTO, 2001, p. 275).

As ideias etnocêntricas subjugaram a cultura negra através da sua inferiorização e

caracterização enquanto primitiva e irracional. Como consequência, as práticas musicais da

cultura negra foram colocadas à margem na educação formal enquanto práticas musicais

europeias foram prestigiadas.

[...] Se considerarmos aqueles instrumentos identificados ou relacionados no

imaginário com a cultura popular brasileira, reconhecidos como de matrizes

africanas ou associados às culturas negras, eles são representados em formas

estereotipadas e hierarquizadas. A atitude mais frequente perante esses instrumentos

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é contrastável com a atitude e tratamento prestigiosos dados aos instrumentos

europeus __

sérios, merecedores de grandes investimentos de energia e tempo na

educação musical formal (MAKL, 2011, p. 57).

Entretanto, a cultura negra resistiu às tentativas de seu apagamento da história e foi

recriada em cada espaço onde aportou. Não é à toa a presença de ritmos musicais hoje que

tem suas origens em raízes africanas. Graças à resistência dessas práticas musicais ao longo

dos anos que temos o samba, o funk, o rap, o blues, o jazz, o maracatu, o afoxé.

O estudo da música da cultura negra irá mostrar que tal prática musical é tão

complexa quanto a arte musical mais prestigiada. Para além dos aspectos físicos da música de

matriz africana faz-se necessário entender que o uso das sonoridades é de fundamental

importância no processo de resistência e afirmação de identidades na cultura negra.

Como vimos, o rap e a poesia marginal ganham vida, comunicam singularidades dos

seres através da voz. O uso da voz implica em resistência e sustentação de um discurso

autônomo, que contesta, protesta e propaga a autoafirmação de um grupo social. É um

discurso individual que fala por uma coletividade, trazendo à tona o sentimento de irmandade,

uma vez que os sujeitos da interlocução são protagonistas de uma mesma realidade.

São justamente essas vozes plurais que vemos no Sarau da Onça e no programa

Evolução Hip-Hop. Vozes que rompem o silêncio e comunicam, antes de tudo, a sua

unicidade carregada de histórias. Vozes que se empoderam e promovem o empoderamento de

uma pluralidade de vozes que passaram ou passam pela experiência do silenciamento. E é

através da atividade do pensamento enquanto uma “insurgência indomável”, como diz Pelbart

(2017), que as vozes que tomam corpo no Sarau da Onça e no programa Evolução Hip-Hop

provocam as rupturas com as opressões. Sendo assim, prossigamos com a reflexão da

capacidade de pensar e do conhecimento enquanto armas para busca de transformação.

Passemos para o próximo capítulo.

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3. QUER SER PERIGOSO? VÁ LER UM LIVRO!

3.1 O tráfico da palavra

[...] Um livro pode ser muita coisa, entre outras uma arma, um instrumento em meio

a um combate, uma ferramenta de análise, catapulta de ideias incendiárias e de

afetos vários, coléricos, mas também amorosos [...] (PELBART, 2017 [online]).

O trecho supracitado nos serve de ponto de partida para adentrarmos numa discussão

no mínimo excitante. Tomando de empréstimo as palavras do autor, “o livro pode ser muita

coisa, pode ser uma arma, um instrumento de combate, uma máquina de ideias incendiarias”.

Fica a critério do escritor ou do leitor tomá-lo em tal sentido.

A partir do pensamento de Pelbart proponho pensar o livro e o ato da leitura como

perigosos. O próprio nome atribuído a este capítulo nos conduz a esta reflexão. Quer ser

perigoso? Vá ler um livro! É uma frase presente em uma das poesias de Sandro Sussuarana,

que de antemão nos colocou a par do que o Sarau da Onça se propõe.

Numa sociedade em que se construiu abismos gigantescos entre a classe dominante e a

classe desfavorecida, em que os direitos são negados à última e tomados de assalto pela

primeira não é estranho pensar que o acesso ao conhecimento pode ser perigoso.

Uma estrutura social como a nossa baseada em dois extremos, os privilégios e as

carências, coloca a cultura como a última das coisas que se poderia colocar ao alcance das

minorias (maioria desfavorecida). Essa é uma lógica enraizada e renovada constantemente.

Como o nome já diz, privilégios não engloba a maioria, o termo invoca uma restrição,

seleção, exclusão. Se o privilégio é restrito, sobram, então, as carências para abraçar a maioria

deserdada e caracterizada pela carência de natureza diversa.

[...] As carências são tão específicas e singulares, tão particulares, que não chegam a

transformar as demandas em interesses gerais de um grupo ou uma classe social nem

muito menos a universalizar-se e aparecer como direitos. Os privilégios, por seu

turno, porque o são, não podem generalizar-se em interesses comuns e menos ainda

universalizar-se como direitos (CHAUI, 2006, p. 73-74).

Quando pensamos nos privilégios inevitavelmente nos referimos à classe dominante.

O emprego do termo “inevitável” é justificado pela construção da nossa sociedade em que os

lugares e condições da classe dominante e da classe dominada foram sempre bem definidos.

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Dentre os inúmeros privilégios da classe dominante se encontra o do prestígio. Este

coloca a classe dominante como a detentora do saber e, por isso, se impõe como a melhor,

superior em relação às demais camadas sociais. Constituída como detentora do conhecimento,

a “elite” legitima o seu poder através do seu discurso competente. Dessa forma, a organização

social e política passa pelo processo de naturalização e aceitação justamente pelo efeito criado

pelo discurso competente da classe dominante.

Assim, os conflitos e as diferenças são anulados da forma mais camuflada possível,

injetando na consciência da classe subalterna o efeito ilusório de que somos todos iguais e que

privilégios não existem. É desse modo que o poder vai se alimentando e se tornando quase

intocável. O esquema foi muito bem construído e implantado de tal modo que sua perpetuação

é decorrente de um processo histórico.

Eis o esquema implantado e produzindo seus efeitos até os dias de hoje. Uma

determinada classe social se impõe como o padrão, exalta e implanta suas características

como símbolo de superioridade em oposição a uma outra classe que tem suas particularidades

eleitas como inferiores. Cabe dizer que a superioridade implantada pela classe dominante

como pertencente originalmente a ela é baseada na manutenção dos privilégios. Isso implica

em outra particularidade: a das carências e da luta pela sobrevivência da classe oposta.

A camada prestigiada, legitimada como superior e por isso denominada de elite

cai em um paradoxo apontado por Chauí (2014, p. 50): “a ideia de padrão cultural único e

melhor implica, por um lado, a imposição da mesma cultura para todos e, por outro lado,

simultaneamente, a interdição do acesso a essa cultura “melhor” por parte de pelo menos uma

das classes da sociedade”. Vale ressaltar que o autoritarismo de tal ação esclarece uma outra

ação, a saber: a de ver e tratar as camadas desfavorecidas como massa. Isto porque os sujeitos

enquadrados dentro do conceito de massa não são percebidos enquanto produtores de cultura

e sujeitos sociais participantes da sociedade, são apenas uma “multidão sem rosto e coração”,

como diz os Racionais MC’s em uma de suas letras. Portanto, os indivíduos vistos como

massa não produzem, não pensam, logo não devem ter acesso à cultura.

O autoritarismo por trás de seu caráter ameaçador esconde uma fragilidade. O

medo de o povo não ter mais medo e erguer a cabeça para se apropriar das armas. Quais

armas? O pensar, o ler, o escrever. A posse de tais armas desconstrói o projeto de apagamento

das diferenças, se constitui, pois, como tomada de posição contra a negação dos direitos e

manutenção dos privilégios.

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Em uma sociedade cuja base é a divisão de classes e consequentemente a

diferenciação de ambas através dos privilégios concedidos à classe que exerce o poder, não é

novidade que a relação entre elas sempre foi permeada por conflitos. Há uma guerra travada

contra a classe desfavorecida. Guerra de caráter sutil, escamoteada pelo discurso da

organização e da ordem, capaz de naturalizar toda e qualquer espécie de barbárie. Entretanto,

como propõe Pelbart (2017 [online]):

Não é bom, em meio a um contexto tão sinistro, deixar-se afundar no catastrofismo

melancólico e derrotista. Porque todo poder visa também a isto: nos separar de nossa

força, inculcar a tristeza, a angústia, o medo, a culpa e sobretudo a sensação de

impotência.

A partir do pensamento de Pelbart, podemos estabelecer relação com o conceito de

disciplina proposto por Foucault (1987), uma vez que a disciplina enquanto forma de exercer

o poder sobre os corpos tem a capacidade de separar os sujeitos de suas forças, injetando a

impotência no âmbito do pensar e do agir.

[...] O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o

desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma

“mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o

corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que

operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se

determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos

“dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de

utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em

uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”,

uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverter por outro lado a energia, a

potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita

(Foucault, 1987, p. 119).

O exercício do poder sobre os sujeitos cria um efeito do tipo anestésico que elimina a

capacidade dos sujeitos de perceber e pensar a realidade de forma crítica e questionada,

fazendo-os passar pelo processo de naturalização e banalização da injustiça e da barbárie. Em

contrapartida, as resistências e reexistências vêm sendo criadas. Se a todo tempo as minorias

sociais são atacadas, tal situação, como diz Pelbart (2017 [online]), tem a vantagem de fazer

pensar e pensar de outras maneiras. Nesse sentido, as armas utilizadas para encarar um

contexto sombrio e perigoso são o pensamento e a palavra. Dito de outro modo, o ato

constante e árduo de pensar e a apropriação da palavra, bem como o tráfico dela.

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Ao pensarmos a cultura como um direito do cidadão temos que inevitavelmente nos

questionar: direito de qual cidadão especificamente? Fazendo esta pergunta entramos

novamente na questão do privilégio, que faz parte da estrutura desigual de nossa sociedade.

Desse modo, a cultura entendida como direito funciona, na verdade, como mais um privilégio

das classes mais favorecidas. Corroborando o que Chauí (2006) discute a respeito do direito à

cultura, a cultura como um direito de todos os cidadãos só é possível de ser efetivada quando

os direitos deixarem de ser privilégios.

Contudo, se o direito de acesso ao conhecimento e a cultura é negado, tomado de

assalto e transformando em privilégio pela/para classe dominante, as margens reagem e criam

suas próprias vias de acesso ao conhecimento. Para sentir na prática o que vem sendo

abordado retomemos, então, como base a produção do Sarau da Onça e o programa de rádio

Evolução Hip Hop.

O Sarau da Onça é um espaço em que se ensina e convida o público de jovens negros

a pensar, não um pensar sem consciência e criticidade, mas exercer a atividade do pensamento

crítico e questionador, fazer do pensar uma reação, uma conspiração contra-hegemônica

diária. No sarau os jovens negros têm acesso à palavra, ao conhecimento e têm a liberdade de

expressão para produzir arte e poesia, falar de suas vivências e resistências, contar a própria

história. A produção, bem como a escuta de poesias por jovens, promove a afirmação da

própria identidade, o empoderamento e a autoestima. Assim, passam a levar a poesia para

além do espaço onde o Sarau da Onça acontece.

A sabedoria e a força para resistir, criar e recriar formas de vida são inerentes ao

povo negro e tal peculiaridade está marcada na história, naquela que o discurso oficial tentou

esconder. A voz e o corpo ainda são usados como arma de resistência do povo negro. O uso

de ambos é claramente percebido no Sarau quando os poetas e poetisas declamam suas

poesias. O tom da voz, a entonação, as pausas, o silêncio, a sonoridade em conjunto com a

performance do corpo que ocupa o espaço, pisa firme, dança, produz uma energia intensa

colocando o ambiente em movimento, levando o público a se deparar com um turbilhão de

emoções: o choro, a revolta, a reflexão sobre o passado, presente e futuro, a vontade de lutar e

ver a mudança, o reconhecimento de si nas palavras proferidas pelo/pela poeta.

Cabe dizer que o tráfico existe no Sarau da Onça, mas é o tráfico da palavra, da

informação. Esse dado confronta os estereótipos acerca do bairro Sussuarana divulgado na

mídia, mostrando, pois, que o referido bairro produz poesia, arte, cultura e resiste às

violências simbólicas fabricadas pelo sistema.

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A arma usada para contrapor o discurso dominante a respeito da periferia é o

conhecimento. Vejamos a poesia intitulada de “A Perifa”, de Sandro Sussuarana (2017, p. 6)

para melhor compreendermos o que vem sendo dito neste capítulo:

Onde eu moro o som de bomba

Causa a mesma reação que o som de tiro.

Tensão. Susto. Conflito.

No mesmo instante correria, choro e grito.

Gente tentando colocar seus pensamentos em ordem

E pedindo para Deus que não seja mais nenhuma morte

Mas logo o silêncio vem e leva-nos para a tranquilidade.

Por mais alguns segundos até estarmos de frente com a

realidade.

Porque segurança na quebrada meu amigo, é coisa rara.

Quem deveria nos proteger na verdade é quem nos mata.

Enquanto na cadeia só tem vaga pra mim, porque sou “rasta”.

Os maiores ladrões continuam circulando de terno e gravata

É sempre o mesmo assunto eu sei,

Mas de 5 mortos no final de semana

os pretos são ao menos três.

Vivemos diariamente uma guerra não declarada, contra

quem?

O governo ou a polícia mal preparada?

Ou melhor, alienada! Alienada como porcos em ordem de

batalha

Postura de quem não sabe se te protege ou te caça!

Não pense e não haverá conflito.

Pois, enquanto eles roubam,

nós é que levamos a fama de bandido

Mais uma vez eu digo, meu amigo:

- Quer ser perigoso?

Vá ler um livro!

A voz que se faz ouvir na poesia acima relata a realidade vivenciada na periferia em

que a violência faz parte do cotidiano dos sujeitos. O tom de revolta revela um discurso

contra-hegemônico que reconhece uma guerra contra as minorias criada e mantida pelo

sistema de poder vigente, questionando a respeito da segurança que só protege um lado da

sociedade e os lugares criados como sendo próprios para aqueles que têm a pele negra. Souza

(2017) ao tratar da construção da desigualdade de classe mostra como o negro enquanto

parcela majoritária da classe dos excluídos é colocado como alvo da repressão. Segundo o

autor:

O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e

inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de

polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da

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violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de política pública

informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que

construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão com outros meios

se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e

selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos (p. 83).

Dessa forma, estamos vivenciando uma continuidade da escravidão no sentido de

que toda opressão e perseguição à classe dos excluídos continuam sendo praticadas de novas

formas. Podemos notar a referência a esta perseguição contra os negros no trecho da poesia

que diz:

Quem deveria nos proteger na verdade é quem nos mata.

Enquanto na cadeia só tem vaga pra mim, porque sou “rasta”.

[...]

É sempre o mesmo assunto eu sei,

Mas de 5 mortos no final de semana

os pretos são ao menos três.

O trecho nos leva a pensar justamente no que Souza (2017) diz a respeito da

continuidade da opressão sobre o excluído de outros modos, isto é, antes era o capitão do

mato, hoje é a polícia, cuja missão é perseguir preto e pobre. Uma outra parte da poesia

complementa o que já foi dito:

Vivemos diariamente uma guerra não declarada, contra

quem?

O governo ou a polícia mal preparada?

Ou melhor, alienada! Alienada como porcos em ordem de

batalha

Postura de quem não sabe se te protege ou te caça!

Na primeira frase se questiona sobre o alvo de uma guerra não declarada. Esse alvo

tem um padrão bem definido que se resume em duas palavras: negro e pobre. Logo em

seguida é disparada uma crítica à polícia que a define como alienada, assumindo uma postura

controversa. Isso corrobora o que Souza (2017) afirma acerca do que ele chama de política

pública informal, que se configura como uma licença para caçar e matar preto e pobre criada

para higienizar as cidades e promover a “paz”. De acordo com o autor, tal política tem o apoio

das classes médias e altas. É justamente nesse ponto que a poesia bate ao denunciar a

alienação e a má preparação da polícia. Instruída para garantir a “paz” derramando o sangue

dos alvos da perseguição.

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Assim, no fim da poesia o conhecimento é afirmado como via de transformação da

realidade por aqueles que sempre foram oprimidos. O conhecimento é a arma para combater a

opressão da classe dominante.

A cultura Hip-Hop, assim como os saraus, também se configura como espaço de

construção do conhecimento e exercício do ato de pensar. Tendo em vista que os meios de

comunicação são controlados por uma cultura dominante e estão, em sua maioria, a serviço

dela, a existência de um programa de rádio disposto a colocar em pauta assuntos do interesse

dos sujeitos, levar informação e conhecimento, além de dar visibilidade a produções culturais

da periferia é, sem dúvida, uma ação que caminha no sentido contrário da dominação e

opressão dos sujeitos. Trata-se, pois, de uma (re) ação que transforma a comunicação em

instrumento de luta contra o silenciamento e a alienação da maioria desfavorecida, as

minorias sociais.

Nesse sentido, o programa Evolução Hip-Hop se mostra como lugar de

posicionamento e reação em que as vozes e os ritmos da cultura negra são visibilizados.

Assim, tal programa de rádio se constitui como ação contra-hegemônica que subverte os

padrões na medida em que se dispõe a tocar e divulgar música negra, principalmente o rap,

que é cercado de estereótipos.

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3.2 O que podem as margens?

As margens que sempre foram negligenciadas e oprimidas são, por outro lado, uma

ameaça para a tradição vampiresca de exercício do poder. Pensando dessa forma, passamos a

refletir na questão que dá nome a este subtítulo, a saber, “o que podem as margens?”.

Retomando Pelbart (2011), o capital penetrou nossas vidas nas mais diversas

dimensões, de modo que o que somos e fazemos sofre influências nem sempre explícitas.

Somos tomados pela ilusão de que a origem da nossa visão de mundo, dos nossos desejos está

em nós. Contudo, como nos lembra Pelbart (2011 [online]), “o que nos é vendido o tempo

todo, senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O

fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida [...]”.

Dessa maneira, é possível pensar como o poder é exercido sobre a vida, como ele

consegue investir na vida através das formas mais variadas. Pelbart (2011) retoma o conceito

de biopolítica em seu sentido inverso ao que Michel Foucault havia pensado. Dessa forma, a

ideia de biopolítica enquanto poder sobre a vida passa por uma inversão, de acordo com o

autor, inversão explicitada por Deleuze, a saber, o poder da vida, a potência política da vida.

Assim:

[...] aquilo mesmo que o poder investia a vida era precisamente o que doravante

ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta inevitável. Ao poder sobre a vida

deveria responder o poder da vida, a potência “política” da vida na medida em que

ela faz variar suas formas e reinventar suas coordenadas de enunciação (PELBART,

2011 [online]).

A partir das palavras do autor podemos dizer que a vida é uma via de mão dupla, se de

um lado ela é o objeto no qual o poder investe, de outro ela é também o lugar em que se

produzem os modos de resistir.

Se como resposta ao poder sobre a vida existe a potência dessa mesma vida, quando

falamos e pensamos sobre as margens jamais poderemos direcionar nossos sentidos

unicamente para o lado oprimido e injustiçado da periferia, como alvo do poder, mas também

para a potência de vida que emerge desse espaço como resposta a opressão. Nesse sentido,

para pensar nas formas de resistência, na potência política existente nas margens o programa

Evolução Hip-Hop (pensar também a cultura Hip Hop) e o Sarau da Onça são nossos

condutores.

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Dentro da cultura Hip Hop o rap assume um papel importante no que diz respeito ao

uso da linguagem oral e escrita como forma de resistência e construção de um novo espaço de

dizer que revelam as identidades dos sujeitos e a posição, o lugar de onde os discursos

emergem. Sobre a importância da linguagem na cultura Hip Hop, Souza (2011) faz uma

importante consideração:

No universo hip-hop, uma das questões centrais diz respeito à necessidade de

produzir novas formas de experimentar e apropriar-se de conhecimentos e saberes

socialmente construídos e, nesse sentido, os usos da linguagem ganham importância

fundamental. [...] Participar do hip-hop tem significado aprender a inserir-se no

universo letrado, alterando as imagens naturalizadas sobre as práticas de letramento

dos jovens de periferia, dos jovens negros e pobres (SOUZA, 2011, p. 80).

O rap, enquanto poesia marginal e, mais amplamente, o Hip Hop, como cultura

marginal, são de grande importância para jovens da periferia, já que estes passam por um

processo de letramentos, bem como de autoafirmação identitária, empoderamento e

desenvolvimento de um pensamento crítico sobre o mundo e a realidade na qual se vive.

Vamos tentar perceber isso na prática com trechos da letra de rap “Morro maloca” do grupo

de rap baiano A Febre, que surgiu na Boca do Rio, bairro de Salvador no ano de 2008 e conta

com cinco integrantes:

Morro, maloca, quebrada, favela

Não tem estrutura e educação para os moleque então já era

[...]

Um dia irei representar a boca do rio irmão de ponta a ponta

Através do rap, informação, humildade, responsabilidade

Alegria aqui é sem sofrimento

Jesus Cristo é o nosso escudo e o rap o meu talento

É resistência, cultura, periferia rua

Eu estou cansado de ver preto nordestino rebolando a bunda

E nada faz para mudar nosso cotidiano

Nós queremos exemplo, educação para as criança irmão

Não pornografia, enganação como a tv nos mostra

Um monte de otários rebolando e falando bosta

R-a-p veja essa sigla e mantenha respeito

Revolução não viadagem para o povo preto

Sou afro brasileiro e jamais vou negar minha origem

Sou descendente de zumbi, guerreiro forte humilde

Respeito é fundamental pra continuar ativo

A boca do rio quer informação é o nosso objetivo

Muitos moleque ali não pensam em puxar o cano

Vacilou irmão já era, sai da frente eu tou pocando

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Ei dá um tempo meu irmão, pare um pouco reflita

Com a arma que você atira é que tira sua vida

Veja como exemplo muitos irmãos que já se foram

Antes um consciente vivão, do que um bravo morto.

A letra do rap supracitada começa falando de uma situação presente na favela, isto é, a

ausência de estrutura e educação para os jovens e como que isso acaba provocando

consequências catastróficas, como a entrada dos jovens no mundo do crime, como fica claro

na frase: Não tem estrutura e educação para os moleque então já era. A partir daí, a voz

presente na letra faz uma reflexão em torno da realidade da periferia fazendo uma crítica

àqueles que caem nas ciladas da opressão e, ao mesmo tempo, chamando os sujeitos para o

exercício do pensamento crítico e da tomada de posição. Além disso, o discurso presente no

rap produz a autoafirmação do sujeito enquanto afrodescendente deixando claro que a luta é

para que a educação, a informação chegue à favela. A partir disso, o rap é apresentado

enquanto via para a transformação social na periferia, se constituindo, pois, como uma

verdadeira revolução do povo preto.

Vejamos outra letra de rap intitulada “Evolui” do grupo, também baiano, O Quadro.

Formada em Ilhéus em 1996, a banda conta com oito integrantes.

Máquinas fantasmas produzindo ilusões

Nada parece ser, nítidas impressões me levam a crer

Mundo resumido, indivíduos portando controles

Possuídos por motores

Atores, mágicos, ilusionistas

E o caos prossegue à mística

Apocalipse pré-escrito

Do fundo do poço gritos imploram por socorro

Gritos em torno, lei do retorno

Piso certo na selva de concreto

Enquanto lá atrás a babilônia cai, lucros são contados

Justos eliminados em nome do dólar, a favor de quem explora

Liberdade restrita

Há um controle remoto em sua vida

Acorde, desligue

Dentro de você há um líder

Há um líder dentro de você

A letra acima traz também uma crítica ao controle que é exercido sobre nossa vida. Na

frase: Máquinas fantasmas produzindo ilusões podemos pensar no próprio poder exercido

sobre a vida, de modo que é criada a ilusão de que está tudo bem. Essa forma de exercer o

poder sobre os corpos está entre os mecanismos mais sofisticados de controle, uma vez que é

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possível dominar e controlar os sujeitos sem que eles percebam. Isto fica evidente também na

frase: há um controle remoto em sua vida. Nas últimas palavras a voz alerta para uma tomada

de posição e de consciência mostrando, pois, que há um líder dentro de cada sujeito e que este

precisa ser acordado. Nesse sentido, quando o discurso proferido faz tal alerta é possível intuir

que existe aí o reconhecimento de que há uma potência de vida no sujeito e esta deve

responder ao “poder sobre a vida”.

Em suma, em ambas as letras de rap apresentadas aqui foi possível constatar que tal

expressão artística se configura como forma de resistência, potência política da periferia.

Cabe ressaltar que a cultura Hip Hop cria espaços para construção de novas subjetividades

dentro da periferia, de modo que fica evidenciado que os sujeitos cotidianamente excluídos

pelo sistema conseguem e podem fazer sua própria arte, seguindo os rastros de suas formas de

vida e vivências, e por mais que este modo de se produzir não seja considerado como arte e

cultura, tais manifestações artísticas e culturais ousam a se mostrar e ocupar o cenário social.

A periferia se apresenta sob nova ótica, diferente daquela criada pela cultura dominante.

Em relação ao Sarau da Onça, a sua potência política se traduz na construção de novas

subjetividades, de autoestima e empoderamento da identidade negra, bem como de produção

de conhecimento e exercício da atividade de pensar e de fazer reflexão sobre verdades e

padrões pré-construídos.

Dentre tantas poesias dos poetas do Sarau da Onça que podem explicitar o que vem

sendo dito, leiamos a poesia “Não nego voz” de Evanilson Alves (2017, p. 81-82):

Pratos limpos e mesa posta

Pra por o assunto na mesa

É preciso falar dessa violência que mata

Que não permite que o outro exista

E não permite que o outro seja

Dizer que estamos atirando no reflexo

Não é e não será o bastante

Quando ao mesmo tempo nos fazem pensar

Que quem vemos no espelho

Não é importante

Enquanto você bate panela

Repetindo discurso

Como se fosse um mantra

Não entende que do outro lado

Alguém dorme sem janta

Pré-vestibular para branquitude

Resta o doze pra Rafael

E função na madrugada

Falar de meritocracia é cruel

Arrepia até a alma

Passar ao lado da viatura

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Camburão que leva assassinos

E cúmplices da ditadura

País, estado ausente,

Que tortura, mata e prende,

Limitando as possibilidades

E ceifando os sonhos da gente

Não negociarei com racistas

Pão e circo não fará minha festa

Ocupar espaços de poder é o que quero

E menos que isso não me interessa

Estado que silencia

E potencializa as armas de combate

Mas é incapaz de investir na poesia

E nos sonhos de quem está atrás das grades

Sinto medo e não nego

Mesmo assim não me permito desistir

E mesmo com a garganta cheia de nós

Sou linha de frente e não nego voz.

Logo nas primeiras linhas da poesia supracitada percebemos uma chamada para um

diálogo, cujo tema é a violência que mata, que não permite que o outro exista, que não

permite que o outro seja. Quem é esse outro? Prosseguindo com a leitura conseguimos

entender através de um discurso crítico e contra-hegemônico que esse outro está fazendo

referência ao negro da favela, que é vítima da violência policial e da negação de seu direito de

existir e de ter igualdade de oportunidade, o que se pode verificar nas frases: Pré-vestibular

para branquitude/ Resta o doze pra Rafael/ Falar de meritocracia é cruel. Outro dado que

podemos notar na poesia é a menção à classe média que não pensa:

Enquanto você bate panela

Repetindo discurso

Como se fosse um mantra

Não entende que do outro lado

Alguém dorme sem janta

A referência à classe média é clara quando se menciona alguém que bate panela, isto

é, vai às ruas para protestar em prol de seus privilégios. A respeito do comportamento da

classe média Souza (2017) assevera:

É hoje inegável para qualquer pessoa que tenha ido à avenida Paulista, ou qualquer

das grandes avenidas das grandes cidades brasileiras, protestar só contra o Lula e o

PT que a corrupção era fachada para o verdadeiro objetivo das classes médias, que

era interromper o projeto de ascensão social dessas classes para que continuem

sendo ‒ exatamente como os escravos do passado ‒ odiadas, superexploradas e

desprezadas (p. 102).

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O comportamento revoltoso da classe média se justifica pelo medo da perda de

privilégios, já que tem se percebido que uma parcela da classe popular tem conquistado certo

grau de ascensão social. De acordo com o autor, a classe média é cúmplice dos golpes

operados contra as classes populares, justamente para impor barreiras para que essa classe não

consiga ter acesso ao capital cultural e econômico. Para Souza (2017), a reprodução e

manutenção dos privilégios de classe ocorrem através de estratégias que consistem em

transformar o capital econômico e o conhecimento, o bom gosto estético, isto é, o capital

cultural em algo inato, transmitido “pelo sangue”. Desse modo, a poesia consegue suscitar

uma reflexão em torno da construção de desigualdades que está ligada à reprodução dos

privilégios na sociedade.

São inúmeras poesias tão instigantes quanto as que estão presente neste trabalho. É um

conjunto de ideias incendiárias e dispostas a romper com verdades e formas de vida impostas

pela cultura dominante. Seria quase impossível trazer todas essas produções neste trabalho,

mas as que aqui se fazem presente já dão uma ideia da qualidade e da importância do Sarau da

Onça.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas singelas palavras que aqui expus tiveram o intuito de desenvolver algumas

reflexões em torno dos processos de deslegitimação, mas também e, sobretudo, de reação e

resistência dentro das margens, palavra apropriada aqui neste trabalho para designar a

periferia. Para tanto, o Sarau da Onça e o programa de rádio Evolução Hip-Hop se

constituíram como fonte para o desenrolar do que se propôs discutir aqui.

O Sarau da Onça possui uma vasta produção poética de vários autores publicada em

livro, sendo assim, a presente dissertação não pretendeu dar conta de toda essa produção, para

isso, seria necessária a realização de outros trabalhos. Contudo, houve um esforço para trazer

uma reflexão acerca do Sarau que o contemplasse como um todo, não desconsiderando, pois,

a imensa quantidade de poetas e poetisas e suas produções.

Como diz Pelbart (2017), “é preciso fazer do pensamento uma conspiração cotidiana,

uma insurgência indomável.” Eis a forma mais potente de reação e resistência, uma vez que a

capacidade de pensar é justamente o que o poder tenta aniquilar.

Nesse sentido, o Sarau da Onça, a Cultura Hip Hop e o programa de rádio Evolução

Hip-Hop tem se constituído como uma insurgência na medida em que o principal meio de (re)

ação é o pensamento. Atividade diária de pensar na contramão do sistema de poder, provocar

a desconstrução de verdades e padrões enraizados na sociedade, questionar os lugares

ocupados pelo oprimido e pelo opressor, bem como reivindicar a garantia de direitos para

aqueles que verdadeiramente produzem a riqueza do país.

O Sarau da Onça tem promovido a reconstrução da identidade negra através da tomada

de consciência, autoafirmação e empoderamento. Ele tem oportunizado a fala para aqueles

que tiveram o direito de falar negado. Nesse sentido, a denominação “o diferencial da favela”

faz todo sentido, uma vez que é um espaço em que jovens negros e negras da periferia são

protagonistas e contam a própria história.

Desse modo, se observa que a transformação pela poesia tem alcançado muitos lugares

e pessoas, provocando o despertar para a luta, para a busca de justiça e igualdade social. A

poesia se configura como a arma, a resistência contra as injustiças e opressões impostas às

minorias.

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O programa Evolução Hip-Hop também é constituído pela resistência, pela

insurgência política, uma vez que nele se faz ouvir vozes plurais, que se mostram, se afirmam,

gritam as suas singularidades. A cultura negra, a cultura das ruas, as vozes que sempre foram

alvos da tentativa de silenciamento e deslegitimação se impõem e mostram as suas forças.

As discussões que aqui se apresentam não se instituem como prontas e esgotadas.

Trata-se de considerações que buscam contribuir de alguma forma para reflexões em torno

das questões insinuadas aqui.

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ANEXOS

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ENTREVISTA A SANDRO SUSSUARANA, PRODUTOR DO SARAU DA ONÇA

PERGUNTA: Em primeiro lugar quero agradecer pela disponibilidade e pela atenção. Para

início de conversa gostaria que você falasse um pouco da história do Sarau da Onça (como e

quando surgiu, quem são os participantes e colaboradores, etc.).

R: a partir de jovens que descontentes com as noticias veiculadas a cerca do bairro de

Sussuarana, resolveram então contrapor o que estava sendo veiculado, para mostrar

que a periferia é um berço de cultura, com muitos talentos e que precisa ser

visibilizada com as qualidades eu tem e os milhares de grupos culturais que atuam

diariamente no resgate das crianças, dos jovens, idosos, de todos que necessitam de

um cuidado... no entanto esses grupos não são visibilizados, ao contrário, vivem no

anonimato sem os devidos reconhecimentos pelos seus lindos trabalhos. O Sarau da

Onça acontece desde o dia 7 de maio de 2011. Começou com 4 produtores, hoje conta

com 7.

PERGUNTA: Levando em conta que a literatura construiu seus limites em torno do que é

reconhecido como cânone, como você percebe a relação entre o que chamam de alta literatura

e a literatura produzida na periferia?

R: Eu acredito que quem define o que é ou não literatura é quem s lê/ouve... durante

muito tempo só se via um formato de literatura, que só serviu para uma parte de

leitores... hoje isto está mudado e a literatura produzida pela periferia é de qualidade

tão boa quanto a literatura tida como “verdadeira”.

PERGUNTA: E quanto a recepção da literatura produzida por vocês, como ela pode ser

definida? Ao longo da trajetória do Sarau da Onça foi percebida alguma resistência do

público?

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R: ao logo do nosso trabalho e de todos os espaço que passamos, temo tido muitos

elogios. A recepção tem sido cada vez mais frequente, porque as pessoas que nos ouve

se identificam com o que fazemos e escrevemos, cria um certo reconhecimento em

nossos textos com suas vidas, o que facilita o entendimento e aceitação.

PERGUNTA: Como que a poesia tem contribuído para o empoderamento dos sujeitos?

R: um Sarau de Poesia dentro de uma comunidade periférica tem uma importância

significativa, pois faz com que as pessoas que os frequentam passem a acreditar ainda

mais em si, a comemorar a vitória do outro e acima de tudo a lutar em conjunto, por

dias melhores, melhores condições de vida, educação, saúde, etc.

PERGUNTA: Qual a importância do Sarau da Onça para o bairro de Sussuarana e para a

cidade de Salvador em geral? Quais os impactos causados pelas intervenções do sarau?

R: acredito que o Sarau da Onça, assim como outros saraus na cidade, tem uma

importância, por tratar de questões como: Racismo, descriminação, empoderamento,

amor, autoestima, etc. Com muita propriedade. Vê em cada sábado jovens, crianças,

idosos reunidos para ouvir e declamar poesia, feitas por eles, os próprios

frequentadores, é de fato uma grande transformação, ainda mais por conta de os

bairros periféricos estarem em muitos casos distantes dos grandes centros. Criando

assim um circuito cultural de periferia.

PERGUNTA: Como você percebe essa apropriação da poesia por sujeitos aos quais foram

negados tantos direitos, inclusive o da expressão artística e do direito de fala?

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R: Eu vejo que a gente sempre produziu... Que apenas não tínhamos como mostrar

estas produções como temos hoje. Isto mostra que desde sempre criamos alternativas

para celebrarmos tanto a literatura quanto a arte em si.

PERGUNTA: De que forma você acredita que o governo deveria contribuir para a difusão e

valorização da cultura e arte produzida na periferia de Salvador?

R: Patrocinando estas ações culturais. Não só na questão financeira... mais de

comunicação, formação etc.

PERGUNTA: De quais maneiras o Sarau da Onça tem feito intervenções tanto na

comunidade de Sussuarana quanto em outros espaços?

R: Promovendo debates, participando de mesas temáticas, ajudando e potencializando

a criação de outros Saraus.

PERGUNTA: O que representa a literatura para você? O que ela representa para a

comunidade Sussuarana?

R: Para mim representa uma vida. Para a comunidade representa um Grito de

Liberdade

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ENTREVISTA A HAMILTON OLIVEIRA, PRODUTOR E APRESENTADOR DO

PROGRAMA DE RÁDIO EVOLUÇÃO HIP HOP

PERGUNTA: Quero agradecer, em primeiro lugar, pela atenção e pela disponibilidade em

conceder esta entrevista. Gostaria que falasse um pouco sobre o programa de rádio Evolução

Hip Hop (como e quando surgiu, quem mais, além de você, está por trás da produção do

programa, etc.).

R: O programa Evolução Hip Hop, né, ele é um programa de rádio que trabalha com

comunicação e cultura. A gente começou no ano de 2003 na Rádio Comunitária Popular

FM, lá em Mussurunga. A rádio fechou por conta de perseguição da Anatel, que a rádio

não era legalizada e em 2007 a gente apresenta um projeto em um evento que a rádio

Educadora FM fez, chamado o Primeiro Encontro da Educadora FM com a Produção

Musical Baiana, né, e esse projeto ele é aprovado. É... o Programa Evolução Hip Hop é

produzido pela CMA HIP HOP, que é uma organização que trabalha com Comunicação,

Mobilização Social e Produção Cultural, né, é um programa independente, a gente não

tem nenhum tipo de vínculo empregatício com a rádio Educadora nem com instituições e

instituto de rádio e difusão educativa da Bahia, nem com a TVE, né. A gente entra com o

conteúdo, né, com a produção e eles entram com equipamento técnico, né, e com o sinal.

E é um programa que para além do Hip Hop é um programa que dialoga com a cidade,

um programa que dialoga com o Estado, né, para além de dialogar com os adeptos,

simpatizantes da cultura hip hop. É um programa que vai além porque ele trata também

de questões sociais dentro do programa, tem matérias diversas, né, então é um espaço

aberto, né, também, claro, pra Cultura Hip Hop, mas também pra o movimento social em

geral ir lá falar, é, sobre suas pautas. Ele é dividido em três partes, né. Ele tem entrevista,

né, ele tem música e tem um quadro de notícias que é o quadro de Agenda Cultural CMA

Hip Hop informa. Eventualmente a gente cria algum quadro novo no Evolução Hip Hop,

a exemplo de 2012 que a gente criou um quadro chamado Trabalho infantil em foco, né,

pra discutir as problemáticas, né, é, que tem referente ao trabalho infantil durante o

Carnaval de Salvador. A gente fez uma parceria na época com a SINCOP, comunicação

interativa e a gente, é, produziu o conteúdo em conjunto e rodou na Educadora FM.

Então, assim, tem alguns quadros eventuais, a gente tem alguns novos pra lançar aí, no

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momento agora o Evolução Hip Hop, ele tá, tá sendo só gravado, né, não tá rolando ao

vivo, por conta mesmo de custo financeiro, como a gente não tem patrocínio, é difícil

conseguir patrocínio para o Evolução Hip Hop, né, e é um espaço que desde quando

estreou na Educadora FM no dia 24 de novembro de 2007, né ele contribuiu, né pra o

fortalecimento e desenvolvimento da Cultura Hip Hop, não só em Salvador, mas no

estado da Bahia. A partir do momento que o Programa Evolução Hip Hop foi pra rádio,

né, um outro público, né outras classes, outras culturas começaram a entender, né, a partir

do programa de rádio, o que é o Movimento Hip Hop, quais são suas pautas de luta, né, o

que é que produz de conhecimento, quais são seus produtos e aí começou a quebrar,

contribuiu pra quebrar estereótipos, né, que as pessoas ainda tem contra o Movimento

Hip Hop, quebrar preconceitos. Então contribuiu de forma significativa, é pra isso, né, é

assim, esse é o papel do programa Evolução Hip Hop, mas para além de fortalecer o

Movimento Hip Hop e de fomentar cultura, né, traz pautas específicas sobre questões

sociais.

O que é que acontece, querendo ou não o Movimento Hip Hop ele ainda é um movimento

muito criminalizado, né, existe ainda algum tipo de rejeição e majoritariamente esse

movimento é formado por jovens negros e negras de periferia, né, então assim, os

anunciantes, os patrocinadores, né, os anunciantes publicitários não enxerga, né que o

programa Evolução Hip Hop tem um público consumidor, não enxerga, mas a resposta

disso a gente dá na prática, né, quando anunciou na rádio, a rádio começou a fazer

propaganda que ia estrear novos programas na rádio em 2007, não só o Evolução Hip

Hop, mas os Tambores da Liberdade, programa de Ilê Ayê rádio África, vários ouvintes

da rádio conservadores, né, porque a rádio sempre teve um perfil de um público de acima

de 30 anos e com nível superior completo, tal, pessoas criticas na área de música, na área

de cultura, na área de política criticaram, falaram que a rádio não podia ter, uma rádio

conceituada, educativa como a Educadora, um programa de Hip Hop. É, “ah não porque é

música de bandido, música de ladrão, que fala de drogas, que fala de violência, não pode.

Ah, os Tambores da Liberdade não pode, música do Ilê Ayê, música de macumba, de

candomblé e tal”. E aí ficou nessa, né só que na época o diretor da rádio.... que foi o cara

que assinou em baixo é... falou, não, acho que tem que rolar, se a rádio é pública ela tem

que atender a diversidade cultural do estado da Bahia, tem que beneficiar mesmo esses

segmentos, né, que tem um propósito social. E aí a grande resposta teve muita resistência

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até por parte interna, mesmo de alguns funcionários da rádio, da instituição pra o

programa ir ao ar, mas a resposta foi que entrou no ar em 24 de novembro de 2007 e em

janeiro de 2008 chegou a pesquisa do Ibope e a gente tava em primeiro lugar em

audiência, né, o Evolução Hip Hop ficou três anos em primeiro lugar em audiência,

ganhando pras rádios, é, do porte da Educadora, que é a rádio medi, não essas rádio que

chamam de rádio popular, de... de rádio de comunicação de massa, mas a Nova Brasil, a

Globo FM, a Transamérica, a Metrópole, a gente tava ganhando pra essas rádios. Na

liderança em audiência a gente foi o único programa de rádio da Bahia a ser indicado ao

prêmio nacional de música, que foi o prêmio Dinamite, né, isso foi em 2009, né a gente

ganhou um Selo do Ministério da Cultura, um Selo Prêmio Cultura Viva do Ministério

da Cultura de reconhecimento na categoria Cultura e Comunicação e em 2015 a gente

foi o único programa de rádio que ganhou o prêmio Camélia de Liberdade na categoria

veículo de comunicação, né, o único programa da Bahia que ganhou esse prêmio também

por reconhecimento que trabalha no programa conteúdos e temáticas voltadas para o

combate ao racismo e a intolerância religiosa. Então a gente ganhou esse prêmio junto

com a novela angolana, com a novela Windeck, com o Jornal Globo, com a Rádio

Nacional de Brasília, né, então, assim, é um reconhecimento de trabalho, mas existe

barreira e existe resistência, né, porque o mercado ele vai investir, não investir em

programa que vai tocar música, música que fala sobre o preconceito, música que

denuncia a injustiças sociais, o mercado ele vai investir ne música, aquela música que é

só pra o entretenimento, aquela música que num leva as pessoas a adquirir conhecimento,

que não contribui em nada pra nossa sociedade, então um programa que tem um contexto

social, que tem um discurso engajado, politizado, as empresas elas não vão querer

investir, existe uma resistência.

PERGUNTA: O que o Evolução Hip Hop representa no contexto atual? Qual a importância

do programa para a cultura Hip Hop?

R: O Evolução Hip Hop representa evolução, representa a quebra de paradigmas, né, o

rompimento de fronteiras e dizer que o Hip Hop ele não é uma tribo, o hip hop é o mundo

e tem que estar em qualquer espaço.

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O Hip Hop hoje nas periferias de Salvador, né, ele representa a maior forma de

organização popular de jovens na periferia do Brasil. Né... a linguagem cultural que

dialoga diretamente com aqueles e com aquelas que estão, é... propositalmente, ignorados

e criminalizados, né, que sofrem injustiças sociais por parte do poder público, por parte

do estado brasileiro. Né, o Hip Hop ele representa a voz dos excluídos, o Hip Hop

representa mudança, como é que fala um discurso crítico engajado politizado, né, então o

Hip Hop nas comunidades ele é muito importante pra contribuir pro resgate da autoestima

da juventude, né, e da elevação da consciência. E também para discussão dos problemas

sociais, exatamente pra organizar o público, várias pessoas refletir a música rap,

especificamente, que é o pilar de sustentação do Hip Hop que é dividido em quatro

elementos, né, tem a dança, tem o grafite, tem o DJ, tem o MC, e tem a música rap, né, a

música rap é o pilar de sustentação, né, é ela que chega a locais que são propositalmente

ignorados e esquecidos e estão a margem da sociedade que estão criminalizados,

marginalizados.

PERGUNTA: Nesse sentido, o Hip Hop contribui para o enfrentamento político?

R: Com certeza, na verdade o Movimento Hip Hop ele contribui pra o povo se organizar,

pra fazer incidência política. E aí o que é incidência política? Incidência política é você se

organizar pra reivindicar direitos, agora reivindicar direitos de uma forma organizada, né,

reivindicar direitos em coletivo, então o Movimento Hip Hop ele ajuda as pessoas a se

organizar dessa forma.

PERGUNTA: De quais formas o Hip Hop tem feito intervenções nas periferias de Salvador?

R: Movimento Hip Hop na Bahia ( ) ele começou em 96, ( ) ele tem 21 anos, né, 21 anos

de Movimento Hip Hop organizado na Bahia. Então, antigamente era mais forte, né,

movimento organizado em comunidade enquanto movimento sócio-político-cultural.

Existe os conceitos de posse, que é o grafiteiro, b. boy, o MC, o cara que é colaborador

do Movimento Hip Hop, que não domina nenhum elemento da cultura, mas que lá é

jornalista, fotógrafo, é um produtor cultural, que é um educador, né, que fazem parte

desse conceito, dessa organização. Posse que hoje dá o nome de associação nas

comunidades e esses grupos se organizavam nas comunidades pra organizar atividades

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culturais, atividades de formação política, né, grupos de estudos nas comunidades, mas

como propósito central de organizar a comunidade pra reivindicar seus direitos de uma

forma organizada, os direitos que são violados.

É... hoje se enfraqueceu mais essa coisa de Movimento Hip Hop organizado,

especificamente em Salvador. Mas ainda é muito forte isso no interior da Bahia,

especificamente no sudoeste baiano. Recentemente teve o encontro de Hip Hop do estado

baiano, o terceiro que aconteceu na cidade de Itarantim. E a gente consegue ver isso.

Existe Cultura Hip Hop e Movimento Hip Hop. A Cultura Hip Hop depende do

movimento e o movimento depende da cultura, mas não obrigatoriamente aquele jovem

hoje que começou a grafitar ou que começou a cantar rap, ele tem que fazer parte do

Movimento Hip Hop. Ele é um elemento da Cultura Hip Hop, ele contribui com o

fomento da Cultura Hip Hop e aí vai quem estiver próximo dele pra dialogar e falar sobre

a essência, né, sobre a base ideológica e política do Hip Hop, pra isso. É... hoje nas

comunidades são ações que acontecem em Salvador, ações pontuais. São ações de

intervenções culturais, né, é o que tá muito forte hoje, que o Hip Hop querendo ou não ele

se agregou aos saraus de poesia que acontecem nas comunidades, então assim, vários

poetas, vários MC´s, ajudam, organizam e participam desses espaços, que é um espaço

para além de um espaço de lazer, entretenimento, é um espaço de formação política, é um

espaço de formação popular, né, é um espaço que tem as poesias e lá traz um discurso

todo politizado, engajado. Fala sobre os problemas sociais, fala sobre questão racial, fala

sobre questão de gênero, fala sobre violação de direitos. Então, assim, hoje

especificamente é dessa forma, fora algumas ações pontuais que acontece que são

festivais, né, acontece muito festival... é... mutirão de grafite, né, por exemplo,

Cajazeiras, Castelo Branco, Cabula, ali na Gamboa de Baixo sempre os grafiteiros se

reúnem pra pintar painéis nas comunidades. São grafiteiros de vários bairros, né, isso

para além de intervenção artística, é intervenção política também, porque aquele grafite

ele tá passando uma mensagem, né, então ele se organiza nas comunidades dessa forma,

né, agora a Cultura Hip Hop ela tá querendo ocupar os espaços também pra esses jovens

que fazem parte, que dominam os elementos da cultura seja reconhecido como artista.

Então, assim, existe uma coisa chamada permuta que alguns produtores de música rap e

os MC’s fazem com as casas de show. Chega nas casas de show, por exemplo, no Rio

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Vermelho, sabe... aí chega lá e aí faz um acordo dividindo a porcentagem de portaria com

o dono da casa pra ter uma casa de show pra tocar, que não existe um espaço físico pra

dizer assim: esse espaço é um espaço de referência do Hip Hop em Salvador, não tem, né,

por exemplo , em Teixeira de Freitas tem, né, tem casa do Hip Hop lá. A gente tá lutando

também pra ter a casa do Hip Hop aqui em Salvador, só que existe um diálogo ainda pra

ver aonde vai ser essa casa, se vai liberar concessão de espaço, se não vai, mas a gente se

organiza assim dessa forma. São essas ações que, independentemente de a ação ser no

centro da cidade ou a ação ser na periferia, são ações que contribuem para o

florescimento da cultura e do movimento.

PERGUNTA: Nos espaços que ocorrem essas ações qual é a reação da comunidade, a reação

do público?

R: Não, primeiro que assim, a cultura, os elementos da Cultura Hip Hop todos eles

chama muita atenção de quem conhece, de quem não conhece e os curiosos. Agrega as

pessoas, por exemplo, se você tiver andando pelo centro da cidade e chegar ali na praça

da Piedade, né, e parar dois meninos, dois dançarinos de Breaking e começar dançar ali,

né, todo mundo vai parar, quem tá no ponto do ônibus vai perder até o ônibus, né, que vai

parar pra vê eles dançar porque é mágico o que eles fazem, é... o movimento é mágico e

chama a atenção, mobiliza as pessoas pra vê o que é aquilo ali, pra depois procurar

pesquisar saber que cultura é essa. Então, assim, o impacto, logo, é esse. Se você passa

em uma comunidade você vai vê um muro todo abandonado cheio de mato, aí você vai

trabalhar de manhã, tá tudo lá abandonado cheio de mato. Quando você volta a noite tá

grafitado. É uma outra impressão, né, pra aquele morador, aquela moradora. Embeleza

mais a comunidade, colore a comunidade e sei lá... fazem até as pessoas passarem e vê o

grafite bonito e esquecer dos problemas. A pessoa vai trabalhar, vai estudar, sei lá, vai pra

festa mais feliz com aquela arte que viu na parede. Então, assim, é, o impacto que as

ações da Cultura Hip Hop tem, ele é imediato, quando você chega no ônibus e você vê,

sabe, um jovem recitando uma poesia isso faz as pessoas pensar, isso impacta, né, isso

faz as pessoas chegarem em casa, no trabalho, na faculdade ou o local que vá, depois

comentar: pô eu vi um menino, vi um menino no ônibus recitando, que legal. Ela vai

procurar saber o que é isso, então assim, impacta diretamente, chama atenção.

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O grande problema é que o mercado da cultura no Brasil sabe disso, sabe do poder que

essa cultura tem, né, de chamar atenção das pessoas de envolver as pessoas, de chamar,

de fazer com que as pessoas reflitam sobre seu papel na sociedade, né, como pode

contribuir ou não, que bloqueiam. Bloqueiam porque é a Cultura Hip Hop? Não. Não é

porque é a Cultura Hip Hop, é porque é uma cultura de periferia. Tudo que é cultura de

periferia, né, de alguma forma eles tentam, como é que fala? É... limitar, limitar pra que

essa cultura não chegue a muitas pessoas, né, porque é a cultura, é arte, ela é uma arma na

mão dessa juventude, né, então se chegar muito longe vai impactar, vai mexer com

interesses de quem domina o poder econômico no país.

PERGUNTA: Tendo em vista os estereótipos sobre Cultura Hip Hop, como você vê a

relação com a cultura erudita?

R: É... que acontece, muitas vezes acham muito bonito, muito interessante, mas não

chamam para ajudar a construir junto, não chama os autores pra ajudar a construir juntos

e quando convidam pra fazer esse diálogo entre a cultura de rua, a cultura de periferia que

é a cultura Hip Hop, com a cultura erudita, chamam pra abrilhantar ou pra enfeitar,

abrilhantar a festa deles ou pra enfeitar o bolo. É... chamam só pra... como é que fala? É...

entende? como espetáculo, é pra abrilhantar mesmo a festa deles, é uma coisa que não

acontece muito, né, acontece pouco mas as poucas vezes que acontece os jovens da

cultura Hip Hop tem tanto talento que consegue tomar de assalto a cena, né, a ação que

ele faz tem mais visibilidade, tem mais reação do público do que a ação da cultura

contemporânea porque é algo inovador, né.

Então, assim, hoje a gente consegue levar o Hip Hop pro teatro, né, pra participar de

festival internacional de dança contemporânea, de dança erudita. É um momento mágico

porque todo mundo para pra ver, né, porque pra eles é novo e assim, eles também, muitas

vezes se apropriam dos elementos da Cultura Hip Hop pra aperfeiçoar suas técnicas, né,

na arte.

PERGUNTA: Então você considera que essa não aceitação deles seria um medo?

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R: Não, não é não aceitação. Eles aceitam, mas eles aceitam de uma forma limitada, né, e

as vezes impõem limite, a Cultura Hip Hop, o movimento, a gente não aceita limite,

entendeu? Porque já existe tantos limites pra gente, né, pra desenvolvimento sócio-

político-cultural e econômico dessa juventude, desses artistas, né. É que as vezes fragiliza

o diálogo, mas eles abrem, mas abrem uma flechinha pequenininha, né, e quando ver que

a gente tá avançando um pouco a mais eles cortam, né, não dá espaço porque sabem que

se a gente entrar de vez a gente toma de assalto. É essa a realidade. É medo na verdade.

PERGUNTA: Eu gostaria que você falasse um pouco mais sobre os obstáculos que a cultura

Hip Hop enfrenta aqui em Salvador.

R: Os obstáculos ainda é entender esses jovens que fala em parte da Cultura Hip Hop

enquanto artistas. Reconhecer que são artistas e que são artistas de periferia. É quebrar

mais ainda o preconceito e estereótipos que ainda existe em relação a esses jovens, não,

as vezes, porque eles fazem parte da Cultura Hip Hop, mas por que são jovens negros de

periferia, né, essa é principal barreira que é a questão do racismo que é predominante. Pô,

é até bonitinho, até que é legal, mas ele é preto não vou botar ele aqui pra não misturar,

então a coisa é muito limitada. Então assim, isso é uma barreira ainda, isso é uma

dificuldade, isso é um obstáculo pra a gente conseguir vencer. Pra as pessoas conhecer a

gente enquanto artista independente da cor da pele. O mercado que não se abre, né, a

música, por exemplo, não entende a música rap como música, né, outros gêneros

musicais, os artistas de outras músicas não entende a música rap como música. A grande

verdade é essa, não entende, é preciso entender. É alguns dos obstáculos que tem que se

vencer.

PERGUNTA: A cultura Hip Hop tem apoio do Estado?

R: O que acontece, como a gente sempre trabalhou com incidência política, né, a gente

diz que sim, o estado é um Estado democrático de direito, né, se existe os editais a cultura

Hip Hop também tem que ser contemplada nesses editais. Hoje a gente tem uma

flexibilidade de alguns projetos de Hip Hop (que) passa em alguns editais. Não existe

nem um tipo de apoio direto do Estado pra Cultura Hip Hop nem aqui nem em lugar

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nenhum, mas existe uma forma mínima de reconhecimento e esse diálogo tá se

avançando. A gente está com um diálogo com o Estado agora que está se desenhando, é

um edital específico de Hip Hop provavelmente sai até final de agosto... esse ano ainda

esse edital... eu acho que quando se tem um diálogo tem um espaço na rádio Educadora

FM, que é uma rádio estatal, uma rádio pública, mas que é uma rádio ligada ao organismo

do Estado querendo ou não.

É... eu acho que esse é um tipo de apoio, é um tipo de incentivo. Existe uma

flexibilidade, mas existe outros interesses por trás das forças que não tinha interesse que a

gente consiga alcançar muito, mas a gente quer muito, quer mais e a gente tá continuando

o diálogo.

O Governo Federal abriu duas edições, já lançou no prêmio um edital específico de Hip

Hop, que foi o prêmio de cultura Hip Hop 2010, que premiou 135 iniciativas no mundo

inteiro. Em 2010 eu ganhei esse prêmio. Em 2014 relançou o prêmio e 15 iniciativas de

Hip Hop da Bahia foram premiadas, prêmio de 13 mil reais. Então assim, pra gente isso é

importante. O Estado da Bahia foi o quarto Estado que mais teve inscrições no mundo

inteiro, então, assim, isso é um avanço. Quando o Governo Federal abre edital específico

pra apoiar as ações da Cultura Hip Hop, (é) pra apoiar, não pra premiar as iniciativas que

já existem, pra gente é importante. O Governo da Bahia tá tendo diálogo, provavelmente

vai abrir um prêmio até o final do ano.

PERGUNTA: De que forma o Hip Hop contribui para o Letramento dos sujeitos da

periferia?

R: Que acontece, como eu falei, que a gente trabalha com ciências políticas, sempre

participando de espaços de controle social que são os conselhos de direitos. A gente tem

prova hoje suficiente, eu tenho até palestra que fala sobre isso, que a Cultura Hip Hop

contribui significativamente pro processo educativo de adolescentes e jovens da escola

pública, né, por conta da linguagem. É uma linguagem fácil, é uma linguagem que se

identifica, é a linguagem deles, né, contribui no processo educativo.

Hoje (tem) dois programas do Governo Federal que foi criado na época do Governo Lula

e (teve) continuidade no Governo Dilma, agora não sei como é que tá. Tanto no Mais

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Educação, que acontece nas escolas Municipais, como no Mais Cultura nas escolas, que é

do Ministério dos Esportes e do Ministério das Culturas e o Mais Educação é do

Ministério da Educação. Na grade curricular de ação interdisciplinar, de ação

extracurricular tem a categoria Hip Hop. Entendeu? Então, assim, o MEC, o Ministério

da Educação hoje já reconhece a contribuição do Hip Hop () para além de música que

fala de problema social, denuncia a violência, denuncia a (injustiça) social.

A música rap ela traz muitas músicas educativas, que contribui para o processo de

aprendizado da juventude. Tem música que fala de matemática do começo até o fim, tem

músicas que fala sobre a contribuição do povo negro pra formação desse país, que fala

sobre a história do povo africano de uma forma verídica, daquela forma que não está nos

livros, né, por exemplo, os reis, rainhas, faraós do Egito eram negros, né, não eram com

aquelas características que passavam nos desenhos animados, nas revistas, nessas coisas e

tal. Entendeu? Então é dessa forma que a Cultura Hip Hop contribui.

PERGUNTA: Como você interpreta a lei que criminaliza o Grafite? O que há por trás dessa

lei? E quais os impactos que ela pode trazer para a cultura Hip Hop?

R: Na verdade é assim, essa lei criminaliza a pichação, como vandalismo. Automaticamente o

grafite entra nisso porque se você chega em um muro num terreno baldio limpar e grafitar, né,

vai dizer que é vandalismo porque não teve autorização. É... o que acontece, pichação é

demarcação de território, a pichação nunca deixará de existir, né, já existia a pichação desde

as pirâmides. Desde os tempos das pirâmides, dos reis, rainhas, faraós do Egito... já existia a

pichação. Aquelas grafias que eles riscavam com pedra na parede pra próximas gerações

chegar e ler e entender o que se passou por ali, aquilo se chama demarcação de território, né,

aquilo ali se chama liberdade de expressão. Esse projeto de lei explicitamente ele é uma

violação a liberdade de expressão e ele criminaliza a arte de rua. Por que em época de eleição

a gente sabe que existe várias pichações poluindo a cidade de Salvador, do Estado da Bahia,

pichações com letras e nomes dos candidatos a eleição, né, e ninguém fica inelegível por isso,

ninguém perde a legenda eleitoral por conta disso, né, então isso é vandalismo também. E

depois deixa a cidade toda suja aí, eles não cobrem. Os grafiteiros não, eles deixam a cidade

mais florida, eles deixam a cidade bonita. Todos os grafiteiros, eles já foram pichadores um

dia e os que não fazem pichação, na verdade todos fazem pichação, todo mundo picha de

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alguma forma, todo mundo demarca seu território. Então, assim, esse projeto é uma violação

dos direitos humanos, uma criminalização da arte de rua e tá indo contra a liberdade de

expressão que é garantida na Constituição, Declaração Universal de Direitos Humanos.

PERGUNTA: Há quanto tempo você é adepto da cultura Hip Hop?

R: Eu me engajei no Movimento Hip Hop enquanto militante, enquanto articulador do

movimento Hip Hop no ano de 2002. Na verdade eu já fazia programa de rádio, eu

comecei fazendo programa de rádio, programa () no Bairro da Paz e já fazia programa de

Rap, mas até então não sabia o que era Movimento Hip Hop, o que era movimento social.

Mas desde 2002 que eu me engajei enquanto militante e articulador do Movimento Hip

Hop na Bahia, né, e aí, em 2005 eu vi a necessidade, né, que existe até hoje não só do

Movimento Hip Hop, mas dos movimentos sociais em geral, todas as organizações dos

movimentos sociais, que é a questão da comunicação () as pessoas não conseguem

divulgar qual é seu grupo político, falar de sua articulação, o que é que você produz de

conhecimento, o que é que você produz de conteúdo, né, o que é sua arte, sua cultura, né,

como você se organiza pra o mundo, pra o grupo fora dali. Por isso eu sempre digo: o

Hip Hop não é uma tribo, o Hip Hop é um mundo. Então, assim, a gente criou a CMA

Hip Hop em 2005, que trabalha com Comunicação, Mobilização social e Produção

cultural pra fazer a sociedade baiana entender que o Hip Hop é um movimento

sociopolítico cultural, existe cultura, existe movimento e são jovens promotores de

cultura, né, são jovens promotores de conhecimento também, que precisam ser

respeitados. Não é aquele marginalzinho que canta aquela música rebelde, como diz.

Entendeu?

PERGUNTA: Para finalizar eu gostaria que você deixasse um pensamento sobre a produção

cultural da periferia.

R: Na verdade, é uma frase que sempre carrego comigo que serve tanto para a área da

comunicação, da educação como da cultura que eu fiz o resumo, na verdade, depois que

eu li o livro Relatório da Cúpula Mundial sobre a sociedade da comunicação que

aconteceu em 2013 em Genebra. Esse livro fala sobre os direitos de todas as gerações, da

criança, da adolescente, da juventude, da maioridade, é sobre o direito à cultura,

(sobretudo à comunicação). E o que a cultura e a comunicação contribui para o processo

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de desenvolvimento sociocultural e econômico do país. Aí eu digo que: “A diversidade

cultural é um patrimônio comum da humanidade, educação pela comunicação para

democratizar as oportunidades. A estrada é muito longa,cheia de sinais, mas nunca

apague os faróis dos seus ideais”.