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ENTRE O BAIÃO E O BALANCEIO: OS CANTARES CEARENSES
E AS MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES DO NORDESTE
BRASILEIRO NAS OBRAS DE HUMBERTO TEIXEIRA E LAURO
MAIA. (1940-1960).
Ana Luiza Rios Martins
(Doutoranda em História –UFPE/CNPq).
RESUMO
Objetiva-se em linhas gerais analisar como seu deu o processo de construção dos cantares
cearense. Um canto com sotaque que tinha como pretensão refletir e digerir todas as
influências e expressar um jeito singular de ver/sentir/falar do mundo, que foi projetado
para o resto do Brasil por meio do rádio, que vivia uma “era de ouro” na década de 1940
a 1960. No entanto, dois nomes que surgem desse cenário que Ricardo Cravo Albin
descreve como o primeiro boom da música nordestina, chamam a atenção; o de Humberto
Teixeira, que foi imortalizado junto ao Luiz Gonzaga como os responsáveis pela inserção
dos ritmos nordestinos no mapa musical do Brasil, entre eles o baião; e o de Lauro Maia,
um artista que nacionalmente foi esquecido, apesar de sua contribuição musical,
sobretudo com o balanceio. O caminho escolhido para discutir a história da nascente
música urbana de Fortaleza está no horizonte de uma história cultural da música e das
sonoridades. As leituras sobre mediações culturais, permite que o pesquisador examine
como se constituiu a tradição cultural no campo da música urbana cearense.
Palavras Chave: Música; Mediação Cultural; Nordeste.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa trata de um trabalho interdisciplinar entre os campos da
História e Música, tendo como objeto de estudo os registros de Lauro Maia e Humberto
Teixeira em partituras grafadas por copistas e editadas nas principais casas de música e
os discos de 78 rpm produzidos nas gravadoras brasileiras entre os anos de 1940 a 1960.
Como fontes históricas, esses registros do passado musical encontrados nos espaços que
guardam a memória sonora ajudam a recontar a história da música urbana da capital do
Ceará quando cruzadas com a crítica musical especializada e amadora presente em
jornais, revistas, livros de memória, correspondências e almanaques.
A escolha de Fortaleza e do Rio de Janeiro como o recorte espacial foi feita pelo
fato desse artista transitar entre essas duas capitais. Eles produziram em gravadoras do
Rio de Janeiro uma música urbana heterogênea, fruto da experiência musical de
compositores, intérpretes e instrumentistas com as mais diferentes formações.
Nesse período as fronteiras entre os gêneros eram muito fluídas, as classificações
e tipologias rígidas eram costumeiramente desmentidas pelas práticas e escutas musicais,
criando as indefinições e mudanças. Dessa forma, objetiva-se em linhas gerais analisar os
cantares cearenses a partir das composições de Lauro Maia e Humberto Teixeira. Cantos
com sotaque que buscavam refletir e digerir todas as influências e expressar um jeito
singular de ver/sentir/falar do mundo, que foi projetado para o resto do Brasil por meio
das nascentes gravadoras.
O recorte temporal compreende os anos de 1940 até 1960, justificando-se tal
intervalo por ter sido os anos de 1940 até os anos de 1960, um período repleto de
indefinições pela busca de um projeto cultural no governo Vargas que fortalecesse o
projeto de nação brasileira realçando as peculiaridades das diferentes regiões brasileiras
através da música.
Dessa forma, a música Nordestina ganhou espaço, sobretudo no Rio de Janeiro,
tendo Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga como o seu principal representante. O caminho
escolhido para recompor a história da nascente música urbana de Fortaleza está no
horizonte de uma história cultural e dos cantares Humberto Teixeira e de outros
compositores cearenses que migraram para o Rio de Janeiro como, por exemplo, Lauro
Maia, Gilberto Milfont, Zé Menezes, Hélio Sindô, Xerém; e dos grupos: Vocalistas
Tropicais, Trio Nagô e Quatro Azes e um Coringa.
Com a expansão e concorrência da cultura urbana surge a preocupação de proteger
e divulgar a cultura rural. Dessa forma, a música produzida no “norte", sobretudo a
produzida na capital cearense, vai ganhando espaço nas gravadoras e no rádio por
apresentar diversas intermediações e fusões entre o mundo tradicional com fragmentos
do universo moderno.
O interesse pelo tema ocorreu ainda no processo de escrita da dissertação
intitulada: Entre o piano e o violão: a modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-
1920),1 defendida no Mestrado Acadêmico em História da UECE. Observou-se que os
historiadores de ofício pouco se interessaram pela história da música de Fortaleza início
do século XX.
Os poucos trabalhos que encontramos sobre essa época são de intelectuais
preocupados com a preservação e a difusão de música no Ceará. No entanto, pesquisas
como de Eduardo Campos, apresenta um tom caracteristicamente memorialista. Dessa
forma, percebe-se a importância de recontar a história da música urbana de Fortaleza,
tentando localizar até que ponto o “cantar cearense” é uma construção dos mercados
radiofônico e fonográfico.
Os acervos indicam a presença de músicas que incorporam em seu repertório os
novos ritmos e timbres presentes na época com as manifestações de cantares do aboio, do
repente e do coco. É evidente que os compositores não só dialogavam com o produto de
fora do país, mas das principais capitais brasileiras, sobretudo o Rio de Janeiro. Eles não
desprezavam as múltiplas influências dos elementos das bandas jazzísticas, do repertório
sinfônico ou do folclore. Em busca de uma identidade própria a nascente música urbana
produzida em Fortaleza passou por muitos dilemas em torno da tentativa de definições:
moderna ou típica, popularesca ou folclórica, entretenimento ou arte, comercial ou
nacional.
DENSENVOLVIMENTO
1 MARTINS, Ana Luiza Rios. Entre o piano e o violão: a modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-1920). 2012. 245p. Dissertação (Mestrado). Área de concentração em História e Culturas, Universidade Estadual do Ceará. UECE: Fortaleza, 2012.
Lauro Maia e Humberto Teixeira foram dois compositores que ganharam o espaço
nas principais rádios e gravadoras do país. No entanto, apenas Humberto Teixeira é
reconhecido atualmente como um dos artistas que mais contribuiu para a projeção do que
veio a ser chamado pela crítica de “música nordestina”. Dessa forma, questiona-se o
motivo pelo qual Lauro Maia ficou no anonimato, enquanto Humberto Teixeira
permaneceu na memória musical do país.
Não é possível falar da produção musical dos artistas cearenses que alcançaram
as gravadoras brasileiras entre os anos de 1940 e 1960 sem considerar a herança dos
compositores que viveram entre o fim do século XIX e início do século XX, da crônica
musicada da cidade de Fortaleza de Ramos Cotôco, da descendência boêmia de Carlos
Severo, das mulheres de Teixeirinha, das praias, jangadas e faróis de Alberto
Nepomuceno e Branca Rangel.
Nesse artigo, a produção musical de Lauro Maia, Humberto Teixeira foi
selecionada para exemplificar a influência dos cantares cearense nas gravadoras
brasileiras, que entre os anos de 1940 e 1950 alavancou a música produzida no “norte”
de Luiz Gonzaga, como uma das bases do projeto de nação do governo Vargas.
Nascido em Fortaleza no ano de 1912, Lauro Maia participou intensamente da
vida cultural da cidade. No piano da mãe, instrumento indispensável nas casas de classe
média daquele tempo, o garoto ensaiou seus primeiros passos como músico e compositor.
Foi a sua própria genitora que o ensinou as primeiras aulas de teoria musical. Aos 13 anos
começou a apresentar-se no Cine Majestic.
O pesquisador e colecionar Miguel Ângelo de Azevedo,2 que foi um dos biógrafos
de Lauro Maia, aponta que, além de pianista, ele foi arranjador, compositor e pesquisador
da música folclórica do Ceará. Nirez comenta que Lauro Maia também foi o responsável
2 AZEVEDO, Miguel Ângelo. O balanceio de Lauro Maia. Fortaleza: Edição do Autor, 1991.
por criar o balanceio e o miudinho, tendo sua obra registrada em disco de 78rpm pelos
grupos Quatro Ases e Um Coringa3 e Vocalistas Tropicais.4
Entre os anos de 1935 a 1941, Lauro Maia trabalhou na Ceará Rádio Clube
dirigindo o programa Lauro Maia e seu ritmo. Na mesma época, criou juntamente com
Paulo Pamplona, Ubiraci de Carvalho, Roberto Fiúza e Antônio Fiúza, o Quinteto Lúpar.
A consagração veio em 1937, através de um concurso de música carnavalesca, onde
obteve primeiro lugar as categorias marcha e samba com as músicas Eu sei o que é e Eis
o meu samba.
Os cantares cearenses são o reflexo de um período marcado pela
internacionalização das gravadoras, do rádio e do cinema. Os artistas locais sofriam a
influência de gêneros musicais norte-americanos como o jazz, o ragtime e o foxtrote.
Esses gêneros chegavam pelo porto da capital cearense por comerciantes estrangeiros e
eram consumidos pelo público através dos mercados de partitura, radiofônico e
fonográfico.
A música singular de Lauro Maia é fruto das múltiplas experiências sonoras que
o compositor adquire no seu processo de escuta. Suas marchinhas carnavalescas são o
produto de diversas intermediações e fusões de gêneros citadinos. O foxtrote foi um dos
gêneros que mais influenciou o compositor no seu início de carreira.
O foxtrote é originalmente uma dança de salão de origem norte-americana, surgida
por volta de 1912. Ela é caracterizada por movimentos longos e contínuos, cuja direção
segue o sentido anti-horário, em andamento suave e progressivo. Ela era normalmente
3 Os Quatro Ases e Um Curinga foram um conjunto vocal e instrumental brasileiro, formado no Rio de Janeiro. Ao lado dos Anjos do Inferno, foram o conjunto de maior sucesso na dita "era de ouro" do rádio brasileiro, principalmente nos anos 1940. No começo, todos os seus integrantes eram de Fortaleza, Ceará: Evenor Pontes de Medeiros (1915 – 25 de novembro de 2002), violonista e compositor; José Pontes de Medeiros (1921 – 29 de novembro de 2005), violonista e cantor; Permínio Pontes de Medeiros (*1919), gaitista e cantor; André Batista Vieira (*1920), o Curinga, pandeirista, cantor e compositor; e Esdras Falcão Guimarães, o Pijuca (*1921). André Batista foi substituído por Jorge José da Silva, o Jorginho do Pandeiro (depois integrante do Época de Ouro). Este posteriormente foi substituído por Nilo Falcão e Miltinho (ex-Anjo do Inferno). 4 Os Vocalistas Tropicais foram um conjunto vocal e instrumental brasileiro formado em Fortaleza, Ceará, em 1941. O grupo teve várias formações até se definir, em 1946, com os seguintes componentes: os fortalezenses Nilo Xavier da Mota (*1922), líder, violão e arranjos; Raimundo Evandro Jataí de Sousa (*1926), vocal, viola americana e arranjos; Artur Oliveira (*1922), vocal e percussão; Danúbio Barbosa Lima (*1921), percussão; e o recifense Arlindo Borges (*1921), vocal e violão solo.
executada pelas grandes bandas de jazz, as big bands. Visualmente a dança assemelha-se
à valsa, embora o ritmo seja quaternário. Desenvolvido logo após a Primeira Guerra
Mundial, o foxtrote atingiu o auge de popularidade na década de 1930.
Em 1938, Lauro Maia assumiu a direção artística da Ceará Rádio Clube e passou
a dirigir a Orquestra Jazz PRE-9. Em 1943, o grupo Quatro Ases e Um Coringa gravou o
xote Fa-Ran-Fun-Fan! e a marcha Trem de Ferro, maior sucesso da sua carreira e que
seria regravada em 1961, dois anos após sua morte, também com grande sucesso, por
João Gilberto.
Fa-Ran-Fun-Fan! O xote a capim puba
Só se dança figurado
Dança dez e dança vinte Mas, é tudo impariado
Dança direito
Não lhe pise na chinela Cuidado com a menina
Que senão fica sem ela
Dança, dança
Dança comadre que é bom Dança, dança
Dança compadre que é bom
Dança Maricota Filha do Coroné
Dança Zé Potoca
Com a comadre Izabé
Dança, dança Dança meu povo que é bom
Dança, dança
Dança meu povo que é bom.5
É evidente no xote Fa-Ran-Fun-Fan!, que o compositor não só dialoga com o
produto de fora do país, como o ressignifica com harmonias, melodias e gêneros
singulares que dariam origem ao forró. De origem alemã, "xote" é corruptela de
schottisch, uma palavra alemã que significa "escocesa", em referência à polca escocesa,
tal como conhecida pelos alemães. Conhecido atualmente em Portugal como "chotiça", o
Schottisch foi levado para o Brasil por José Maria Toussaint, tornando-se apreciado como
dança da elite no período do Segundo Reinado. Daí, quando os escravos negros
5 MAIA, Lauro. Fa-Ran-Fun-Fan! Xote. Fortaleza: Editora A Melodia, 1943.
aprenderam alguns passos da dança e acrescentaram sua maneira peculiar de bailado, o
Schottisch caiu no gosto popular com o nome de "xótis" ou simplesmente "xote".
Lauro Maia também compôs muitos sambas famosos, como Febre de Amor,
gravado por Orlando Silva no ano de 1943. O artista optou pela carreira musical nesse
mesmo período, largando a faculdade de Direito e fixando-se em definitivo no Rio de
Janeiro. Nas gravadoras brasileiras, Lauro Maia buscava lançar uma música que agregava
as forças da resistência popular de sua terra à invasão estrangeira. Foi tentando urbanizar
ritmos locais que Lauro Maia finalmente cria o gênero balanceio.
No Rio de Janeiro, Lauro Maia fez parceria com o seu cunhado, o compositor
Humberto Teixeira. Lauro Maia passou a se apresentar em várias casas noturnas para
ganhar o seu sustento cotidiano, apesar de já ser um compositor consagrado. Humberto
Teixeira ficou completamente apaixonado pela singularidade musical do marido de sua
irmã e logo percebeu que o balanceio seria um grande sucesso por trazer na bagagem os
ritmos típicos do Nordeste somados às marchinhas cariocas.
Seu biógrafo aponta que no carnaval carioca de 1946, Lauro Maia fez uma
adaptação do balanceio Eu vou até de manhã, para ritmo carnavalesco, colocando a
parceria de Humberto Teixeira. No entanto, Humberto Teixeira contava sempre que
nunca compôs essa música, sendo adicionado apenas por uma gentileza do cunhado. Um
dos maiores sucessos da dupla foi A Marcha do Balanceio, gravada por Joel Gaúcho.
A marcha do balanceio Oi balancê, balançá;
Balança pra lá e pra cá;
Eu vou até de manhã. bis
Só nesse balanceá;
O balanceio é muito bom;
O balanceio é de amargar; Quem cair no balanceio;
Dança até o sapato furar.6
6 MAIA, Lauro; TEIXEIRA, Humberto. A Marcha do Balanceio. Intérprete: Joel Gaúcho, Rio de Janeiro: Gravadora Odeon, 1946.
Nirez aponta que Luiz Gonzaga foi rapidamente atraído pelo balanceio e chegou
rapidamente a propor formar parceria com Lauro Maia, mas este não aceitou e indicou o
seu cunhado Humberto Teixeira. Foi pela influência direta de Lauro Maia que o baião da
parceria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira surgiu e ganhou fama nas gravadoras
brasileiras, sendo responsável pelo primeiro boom da música nordestina.
Mas qual seria a diferença do balanceio para o baião e por qual motivo Lauro Maia
caiu no ostracismo nacionalmente enquanto Luiz Gonzaga é lembrado até hoje como um
dos maiores artistas que o nordeste já produziu? O balanceio foi considerado de difícil
execução para os percussionistas por conta do ritmo quebrado. Quanto ao esquecimento
de Lauro Maia, muitas respostas são ensaiadas até hoje, mas não se sabe ao certo o que
ocorreu. Parte-se do pressuposto que o motivo tenha sido a sua morte prematura com
apenas 36 anos, vítima de tuberculose no ano de 1950.
Além disso, Lauro Maia e Humberto Teixeira representavam em suas
composições dois Nordestes diferentes. Lauro Maia descrevia o litoral, a vida urbana,
enquanto Humberto Teixeira ajudou a estigmatizar esse território tão diverso através de
temas como a seca, a pobreza, o machismo, e a migração para o sul.
Humberto Cavalcanti Teixeira nasceu na cidade de Iguatu, interior do estado do
Ceará, no dia 05 de janeiro de 1915. Aos seis anos de idade o filho de João Euclides
Teixeira e Lucíola Cavalcante Teixeira, aprendeu a tocar um instrumento chamado
mussette, que é a versão francesa da gaita de foles. Em sua juventude também aprendeu
a tocar flauta e bandolim. O seu tio Lafaiete Teixeira, foi o responsável pelos seus
primeiros ensinamentos musicais, era maestro e tocava vários instrumentos.
Aos 13 anos de idade Humberto Teixeira passou a tocar flauta na orquestra que
musicava os filmes mudos no Cine Majestic7 de Fortaleza. Já aos 15 anos de idade
Humberto Teixeira radicou-se no Rio de Janeiro, sendo aos 18 anos, em 1934, premiado
com Meu Pecadinho, pela revista O Malho, num concurso de Música Carnavalesca.
Humberto Teixeira formou-se no ano de 1943, em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
7 O Cine Majestic foi inaugurado no dia 14 de julho de 1917, com a apresentação da transformista italiana Fátima Miris. O Cine Majestic foi instalado num imponente edifício de quatro andares na Rua Major Facundo, na Praça do Ferreira, pelo comerciante Plácido de Carvalho.
No entanto, Humberto Teixeira nunca abandonou a sua paixão pela música. No Rio de
Janeiro ele faz parceria com o seu cunhado Lauro Maia e se apresentou em várias casas
noturnas na tentativa de ganhar o seu sustento.
Lauro Maia percebendo que o marido de sua irmã tinha ficado completamente
apaixonado pela singularidade musical do balanceio, decidiu formar uma parceria com
Humberto Teixeira, que acreditava no sucesso do novo ritmo. Segundo o próprio
Humberto Teixeira, a grande excelência do balanceio estava no fato de reunir elementos
da tradicional música Nordestina com os novos gêneros urbanos.
Em 1944, tinha gravado a primeira música, em parceria com Lírio Panicalli, o
samba apoteótico Sinfonia do Café, cantado por Deo. Miguel Ângelo de Azevedo aponta
que no carnaval carioca de 1946, Lauro Maia fez uma adaptação do balanceio Eu vou até
de manhã, para ritmo carnavalesco, colocando a parceria de Humberto Teixeira. Um dos
maiores sucessos da dupla foi A Marcha do Balanceio, gravada por Joel Gaúcho.
A MARCHA DO BALANCEIO
Oi balancê, balançá;
Balança pra lá e pra cá;
Eu vou até de manhã. bis
Só nesse balanceá;
O balanceio é muito bom;
O balanceio é de amargar; Quem cair no balanceio;
Dança até o sapato furar.8
Miguel Ângelo de Azevedo comenta que Luiz Gonzaga foi rapidamente atraído
pelo balanceio e chegou rapidamente a propor formar parceria com Lauro Maia, mas este
não aceitou e indicou o seu cunhado Humberto Teixeira. Foi pela influência direta de
Lauro Maia que o baião da parceria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira surgiu e
ganhou fama nas gravadoras brasileiras, sendo responsável pelo primeiro boom da música
nordestina.
8 MAIA, Lauro; TEIXEIRA, Humberto. A Marcha do Balanceio. Intérprete: Joel Gaúcho, Rio de Janeiro: Gravadora Odeon, 1946.
Seu encontro com Luiz Gonzaga se deu em agosto de 1945. Em conversa animada
surgiu a intenção de valorizar o ritmo nordestino, que já vinha sido introduzido no
ambiente cultural carioca com o balancê. Assim, xote e principalmente o baião tinham
prioridades. Surgiu o primeiro sucesso da dupla, denominado No Meu Pé de Serra. Em
1947, a dupla compôs o maior sucesso, Asa Branca. A dupla tornou o Baião um sucesso
nacional e internacional, bastante executado até meados da década de 1950.
ASA BRANCA
Quando oiei a terra ardendo
Gual a fogueira de São João
Eu preguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Eu preguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse, adeu Rosinha
Guarda contigo meu coração
Entonce eu disse, adeu Rosinha
Guarda contigo meu coração
Hoje longe, muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva caí de novo
Pra mim vortar pro meu sertão
Espero a chuva caí de novo
Pra mim vortar pro meu sertão
Quando o verde dos teus oio
Se espaiar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração (Asa Branca, 1947, RCA Victor).
Durval Muniz aponta que o Nordeste foi construído como o espaço da saudade,
do passado, não apenas por aqueles filhos de famílias tradicionais e seus descendentes
que acabaram entrando em declínio com as transformações históricas, ocorridas neste
espaço, desde o final do século passado. Ele é também o espaço da saudade para milhares
homens pobres, no campo, que foram obrigados a deixar seu local de nascimento, suas
terras, para migrar em direção ao Sul, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro, para onde
iam e busca de empregos, na pujante agricultura comercial, mas, sobretudo, no parque
industrial que, a partir da Primeira Guerra Mundial, se desenvolve aceleradamente.
Estes camponeses deixam um espaço em crise econômica, cujas atividades
tradicionais não conseguem acompanhar o ritmo de desenvolvimento de produções
concorrentes, seja no exterior, seja internamente ao país, uma região com problemas
climáticos e de relações sociais e de poder que inibiam qualquer possibilidade de alteração
no status social destes camponeses.
O rádio, por ser o veículo de comunicação de massas neste
momento, será pensando como o veículo capaz de produzir não
só essa integração nacional, com o encurtamento das distâncias e
diferenças entre suas regiões, mas também como capaz de
produzir e divulgar essa cultura nacional. Embora
financeiramente liberado da tutela do Estado desde a década de
trinta, tornando-se um veículo de fato comercial, sustentado pela
propaganda, o rádio será tutelado, inclusive pela censura, para se
engajar nesta política nacionalista e populista, partida do Estado.
O rádio, ao mesmo tempo em que é estimulado a falar do país,
revela a sua diversidade cultural. Estações de rádio, como a Rádio
Nacional no Rio de Janeiro, vão se constituir em polos de atração
para manifestações artísticas e em especial musicais de várias
áreas do país. É nelas que nasce, concentra-se e se dispersa o que
se vai chamar de Música Popular Brasileira. A música que até
então se diferenciava da canção, era considerada apenas a e
caráter erudito. A música produzida pelas camadas populares, no
entanto, adquire nova importância num momento em que a
preocupação com o nacional e com o popular passa a redefinir
toda a produção musical e artística. (MUNIZ, 2011, p. 173).
A sensibilidade nacionalista, com toda a estrutura de poder que a sustenta, investe
numa mudança de gosto, não só por parte das camadas populares, mas também por parte
das elites e da classe média, num novo conceito de belo em que a produção “nacional e
popular” fosse valorizada. Se na década de trinta já ocorria uma busca de sonoridades
nacionais no campo da música erudita, com os modernistas defendendo a criação de uma
teia de significantes representativos da música brasileira em suas especificidades rítmicas,
melódicas, timbrais e formais. Uma música que remetesse à identidade nacional e ao seu
“povo”, que fosse buscar nas canções populares sua matéria-prima, já que essas são vistas
como reservas e brasilidade; como elemento de reação à produção de uma música atrelada
aos padrões estrangeiro, como discorre Durval Muniz em seu livro: A invenção do
Nordeste.
Dessa forma, é possível perceber que Humberto Teixeira se apropriou do desses
dois mundos (o erudito e o popular, o oral e o escrito). Em seu discurso lítero-musical,
ele passou a ser “a voz das massas”, aquele que reportava os problemas dos menos
favorecidos para os principais responsáveis. E a Rádio Nacional passou a ser o seu
“palanque”.
Não existe uma ingenuidade discursiva nas composições de Humberto Teixeira e
Luiz Gonzaga. A música que passou a ser denominada de Nordestina é na verdade uma
construção de atores que buscam projeção social e política, embora tratem de uma
temática real e dolorida para ambos. No ano de 1954, Humberto Teixeira candidata-se a
deputado federal, passando dois meses fazendo campanha no sertão cearense, ao lado de
Luís Gonzaga. Estiveram em Iguatu para dar uma força ao candidato a prefeito, Dr. Meton
Vieira, a quem presentearam com uma música para a campanha.
Humberto Teixeira elegeu-se deputado com cerca de 12 mil votos. Teve destaque
na Câmara Federal, quando do seu empenho na defesa dos direitos autorais. Conseguiu
aprovar a Lei Humberto Teixeira' que permitia maior divulgação da música brasileira no
exterior, através de caravanas musicais financiadas pelo Governo Federal. Humberto
Teixeira levou para o exterior Valdir Azevedo, Francisco Carlos, Dalton Vogeler, Leonel
do Trombone, o guitarrista Poly, a cantora Marta Kelly, o acordeonista Orlando Silveira,
o Conjunto Radamés Gnatalli, o maestro Quincas e seus Copacabanas, Vilma Valéria,
Carmélia Alves, Jimmy Lester, Léo Peracchi, Sivuca e muitos outros.
Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira se tornaram artistas capazes de atender à
necessidade do migrante de escutar coisas familiares, sons que lembravam sua terra, sua
infância, sons que o levavam até este espaço da saudade em meio a toda a polifonia do
meio urbano. Mas a atribuição dessa identidade regional à sua música segundo Durval
Muniz, foi possível por uma produção discursiva que a tomou como objeto. Como
identidade, produzir a semelhança, requer submeter a música a uma rede de comentários,
desde comentários críticos das revistas especializadas em músicas, as revistas voltadas
para fazer a cobertura do rádio, que eram, em grande número, nesse momento,
comentários do próprio artista, através de suas entrevistas, bem como de todas as atitudes
e hábitos que passam a compor sua identidade artista, completa Durval.
O sucesso de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira foi fruto de um código de gosto
que valoriza as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outro, atendia ao consumo
crescente de signos nordestinos e regionais como signos da nacionalidade. Mas seu maior
sucesso se dá entre os migrantes nordestinos, pois se conecta com a saudade do lugar de
origem, com o medo da cidade grande e, ao mesmo tempo, com o orgulho de estar
enfrentando-a, com seus valores de origem rural como a religiosidade e a importância dos
laços familiares.
Após o término da parceria com Luís Gonzaga, Humberto compôs Kalu, para a
cantora Dalva de Oliveira e Adeus, Maria Fulô, com Sivuca, para Carmélia Alves.
KALÚ
Kalú,Kalú
Tira o verde desses óios di riba d'eu
Kalú,Kalú
Não me tente se você já me esqueceu
Kalú, Kalú
Esse oiá depois do que assucedeu
Com franqueza só não tendo coração
Fazê tar judiação
Ocê tá mangando di eu
Com franqueza só não tendo coração
Fazê tar judiação
Ocê tá mangando di eu
(Repete toda a letra)
Kalú,Kalú
Esse oiá depois do que assucedeu
Com franqueza só não tendo coração
Fazê tar judiação
Ocê tá mangando di eu
Com franqueza só não tendo coração
Fazê tar judiação
Ocê tá mangando di eu
Kalúuuuuuuu... (Kalú, 1952, Odeon).
CONCLUSÃO
Os cantares cearenses são o reflexo de um período marcado pela
internacionalização das gravadoras, do rádio e do cinema. Os artistas locais sofriam a
influência de gêneros musicais norte-americanos como o jazz, o ragtime e o foxtrote.
Esses gêneros chegavam pelo porto da capital cearense por comerciantes estrangeiros e
eram consumidos pelo público através dos mercados de partitura, radiofônico e
fonográfico.
Examinar como se constituiu essa tradição cultural no campo da música urbana
cearense é entender que o processo de invenção e consagração dela não se deu sem
conflitos, contradições e mediações das mais diversas, que, em linhas gerais,
acompanham a própria formação da nossa identidade. Marcos Napolitano aponta que,
como toda identidade historicamente construída, muitos elementos foram excluídos,
muitos foram esquecidos, muitos projetos foram agregados, formando um mosaico
complexo que dispõe lado a lado diversos fatores culturais: o local, o universal, o
nacional, o estrangeiro, o oral, o letrado, a tradição e a modernidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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