entre fios, redes e outras tessituras: mulheres ... · do sexo feminino, ... essas palavras soaram...

17
Entre fios, redes e outras tessituras: Mulheres escalpeladas, sentidos e reconstruções Camila BRAGA 1 Daniely CABRAL 2 Elen SILVA 3 Enderson OLIVEIRA 4 Faculdade Paraense de Ensino (Fapen), Belém, PA Resumo Na região amazônica milhares de famílias utilizam os barcos como o seu principal meio de transporte, fazendo do rio amazonas a sua avenida, seu tráfego diário de idas e vindas. Durante esse vai e vem, apesar do costume pode ocorrer uma fatalidade já bastante conhecida por moradores desta região, o escalpelamento, um acidente provocado pelo escalpe do barco. Vítimas deste acidente buscam inúmeras maneiras de superar o ocorrido, recuperando a autoestima usando perucas e voltando se socializar. Palavras-chave Escalpelamento, ORVAM, Fotografia, Redes Sociais e Autoestima. Considerações iniciais Longe da vida mais acelerada de centros urbanos, em especial da capital Belém, mora uma parcela significativa da população paraense. São pessoas que buscam garantir sua sobrevivência e de suas famílias a partir da comercialização de produtos e outros tipos de serviços mais relacionados à pesca e à agricultura. Por sua vez, se relacionam ainda ao uso constante de embarcações, assim como outras atividades que envolvem o transporte feito pelas águas, para resolverem assuntos de ordem jurídica, consultas médicas, lazer e de outras ordens. Assim, os barcos tornaram-se o principal meio de transporte nessas regiões. Neste panorama, algumas pessoas, quase prioritariamente mulheres, não raramente são vítimas de problemas causados pela imprudência e mesmo pela falta de responsabilidade de donos de embarcações e órgãos que deveriam protegê-las. Falamos do risco de 1 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected] 3 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 4 Orientador do trabalho. Jornalista; Mestre em Ciências Sociais (Antropologia); professor do Curso de Comunicação Social na Faculdade Paraense de Ensino (Fapen) e na Faculdade Pan Amazônica (Fapan). Repórter no Diário On Line (DOL) e coordenador na Agência Experimental de Comunicação Efe2. E-mail: [email protected].

Upload: buitruc

Post on 28-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Entre fios, redes e outras tessituras:

Mulheres escalpeladas, sentidos e reconstruções

Camila BRAGA1

Daniely CABRAL 2

Elen SILVA3

Enderson OLIVEIRA4

Faculdade Paraense de Ensino (Fapen), Belém, PA

Resumo

Na região amazônica milhares de famílias utilizam os barcos como o seu principal meio de

transporte, fazendo do rio amazonas a sua avenida, seu tráfego diário de idas e vindas.

Durante esse vai e vem, apesar do costume pode ocorrer uma fatalidade já bastante conhecida

por moradores desta região, o escalpelamento, um acidente provocado pelo escalpe do barco.

Vítimas deste acidente buscam inúmeras maneiras de superar o ocorrido, recuperando a

autoestima usando perucas e voltando se socializar.

Palavras-chave

Escalpelamento, ORVAM, Fotografia, Redes Sociais e Autoestima.

Considerações iniciais

Longe da vida mais acelerada de centros urbanos, em especial da capital Belém,

mora uma parcela significativa da população paraense. São pessoas que buscam garantir sua

sobrevivência e de suas famílias a partir da comercialização de produtos e outros tipos de

serviços mais relacionados à pesca e à agricultura. Por sua vez, se relacionam ainda ao uso

constante de embarcações, assim como outras atividades que envolvem o transporte feito

pelas águas, para resolverem assuntos de ordem jurídica, consultas médicas, lazer e de outras

ordens. Assim, os barcos tornaram-se o principal meio de transporte nessas regiões.

Neste panorama, algumas pessoas, quase prioritariamente mulheres, não raramente

são vítimas de problemas causados pela imprudência e mesmo pela falta de responsabilidade

de donos de embarcações e órgãos que deveriam protegê-las. Falamos do risco de

1 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da

Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da

Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected] 3 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da

Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 4 Orientador do trabalho. Jornalista; Mestre em Ciências Sociais (Antropologia); professor do Curso de

Comunicação Social na Faculdade Paraense de Ensino (Fapen) e na Faculdade Pan Amazônica (Fapan). Repórter

no Diário On Line (DOL) e coordenador na Agência Experimental de Comunicação Efe2. E-mail:

[email protected].

escalpelamentos, momento em que parte do couro cabeludo é arrancado violentamente ao

entrar em contato com o motor da embarcação.

Discutir essa problemática, no entanto, não é o objetivo central do ensaio. Queremos,

na verdade, mostrar com base nas entrevistas realizadas e fotos feitas com integrantes da

Organização Não Governamental dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor, a ONG

Orvam, o modo como as acidentadas enfrentam sua nova realidade, como as experiências de

vidas as fortalecem e as motiva a seguir em frente mesmo com as limitações impostas após o

acidente, dando ênfase ao papel desempenhado pela ONG na reconstrução da autoestima das

vítimas.

Em tal discussão, as fotografias se apresentam com papel ambíguo: ao mesmo tempo

que podem desvelar os problemas, dificuldades e fragilidades vividos pelas vítimas, ajudam a

revelar e fortalecer a ideia de melhorias e manutenção da autoestima das mulheres. Assim, a

luz, um dos principais elementos da construção da imagem, tece narrativas poéticas entre

contrastes, nuances e ambientes, que formam espaços de afeto no interior do quadro

imagético recortado e estimulam a imaginação e a felicidade. “A fotografia é, ao mesmo

tempo, uma forma de expressão e um meio de informação e comunicação a partir do real e,

portanto, um documento histórico”, afirma fotógrafo, teórico e historiador da fotografia Boris

Kossoy (2009), no livro Fotografia e História, em que o escritor basicamente faz uma

interpretação da história através da fotografia.

Indo além, observamos através das (Cf. GEERTZ, 1989, p. 18) imagens as inter-

relações entre memória dos sujeitos, experiências bem como atribuições de sentidos e

significados na Orvam. São temas e “recortes” que foram sugeridos justamente a partir da

“expressão”, como sugere Victor Turner (DAWSEY, 2005) das experiências dos sujeitos

entrevistados e das imagens produzidas.

Neste trajeto, acompanhamos Luiza, 43 anos, que sofreu o acidente aos 17 anos

mudando completamente o curso da sua vida. A mesma foi abandonada pela família,

passando a enfrentar situações de preconceito da sociedade na qual estava inserida. Esse

comportamento da sociedade com as vítimas ocorre por não estarem segundo o padrão de

beleza cultuado, sofrendo desse modo o preconceito, o que leva muitas delas a se trancarem

dentro de suas casas, exilando-se do convívio social.

Navegando nas ondas dos fios

Os casos de escalpelamento começaram a surgir na região Norte no final dos anos

sessenta, quando as comunidades ribeirinhas tiveram acesso ao progresso e a tecnologia que

chegaram sob a forma de motores.

Modernamente as embarcações apresentam marcas do desenvolvimento tecnológico

[...], pois os recursos que antes eram utilizados como instrumento de aceleração dos

barcos, a exemplo dos remos e das velas, atualmente vêm sendo parcialmente ou

totalmente substituídos por sistemas de propulsão que informalmente chama-se de

motor a óleo diesel (FURTADO, 1992, p.31).

Junto com este avanço, no entanto, veio o perigo em forma de um eixo de rotação

localizado atrás do motor que na maioria das embarcações fica exposto sem nenhuma

proteção, colocando em risco aqueles que utilizam esse meio de transporte para se locomover.

É daí que podem surgir os casos de escalpelamento, lesão grave sintetizada na retirada do

coro cabeludo através de um escalpe, causando para as vítimas diversas sequelas físicas,

psicológicas e sociais. Isso acontece quando a pessoa que está com os cabelos soltos ou de

forma presa inadequada abaixa-se para retirar a água acumulada dentro da embarcação ou

para pegar algum objeto no assoalho do barco localizado perto do eixo do motor.

Esse acidente traz uma nova rotina à vítima. Quem antes tinha o cabelo como

complemento de sua beleza, após o acidente e com a perda desse “acessório”, fica refém de

uma sociedade que julga cotidianamente todos pela aparência. Ter “novos” cabelos se torna

então essencial para que se sintam melhores e sejam novamente “inseridas” na sociedade. Isto

é possível através de um novo acessório, a peruca, que não irá esconder apenas o couro

cabeludo exposto e sim as cicatrizes, vergonha e o medo que ficou com as sequelas de um

descuido que as impedem de sorrir.

Segundo dados da Capitanias dos Portos5, 80% dos casos de escalpelamentos

envolvem mulheres, devido o uso de cabelos compridos ou por costumes ou por causa da

religião evangélica. Chama atenção também o índice de casos que ocorre em crianças com

uma porcentagem de 65%, seguida de adultos com 30% e idosos com 5%.

“O acidente ocorre pela não utilização de proteção adequada, em pacientes

do sexo feminino, pela presença mais comum de cabelos longos, mas as

lesões não se limitam somente ao couro cabeludo, mais atinge também,

outras regiões, como a fronte, sobrancelhas, orelhas e regiões inferiores à

face, dificultando ainda mais o procedimento de reconstrução”

(MALCHISKA, 2003, p.52)

Destarte, pergunta-se como é possível a vida de alguém mudar em questão de

segundos? Infelizmente, isso acontece com as vítimas de escalpelamento que em um

momento de distração tem a sua história reescrita por um eixo de motor. Uma tragédia que

deforma, desfigura e mutila homens e mulheres de diferente faixa etária transformando a vida

5 Capitania dos Portos é o órgão de autoridade marítima relacionada a determinado(s) porto(s), em geral

exercendo jurisdição na área do mesmo.

das vítimas, mas não somente delas diretamente atingidas, como também dos familiares e

amigos.

A dor de uma lágrima e um sorriso: A Orvam

Dia 28 de agosto é intitulado o Dia Nacional de Combate e Prevenção aos Acidentes

de Escalpelamento. Em 2010 houve uma ação na praça Dom Pedro, em Belém, com o

objetivo de conscientizar barqueiros e ribeirinhos sobre os riscos de acidentes causados

devido a navegação de barcos com eixo exposto.

Aproveitando o evento, Maria Cristina Santos6, graduada em Serviço Social e que

trabalhava na filial da empresa Funda Centro, um órgão que visa à segurança do trabalhador

em seu ambiente de trabalho, foi ao local aplicar um questionário às vítimas, auxiliando

alunos do curso de Publicidade e Propaganda de uma instituição de São Paulo no

desenvolvimento de um trabalho sobre o escalpelamento.

Em meio às entrevistadas, Cristina conheceu Yolanda, uma das vítimas deste tipo de

acidente. “Esse acidente é tão cruel que não consigo nem chorar e nem sorrir por muito tempo

que minha cabeça dói muito e eu dependo de medicamentos pro resto da minha vida”,

declarou à Cristina. Segundo ela, essas palavras soaram tão fortes que a fizeram deixar o

questionário de lado vindo a indagá-la sobre suas limitações para coisas tão simples como

demonstrar seus sentimentos.

Cristina passou a ouvir não apenas relatos, mas memórias de pessoas que passaram

por momentos marcantes e que transmitem sua experiência a outros por meio de suas

lembranças. Isso é o que essas mulheres estão fazendo ao estarem narrando suas histórias,

pois estão abordando o campo da experiência pessoal relacionando a eventos do cotidiano.

Nesse período, Maria Cristina estava afastada da sua profissão e afirmava que não

queria mais trabalhar o social. Contudo, a frase de Yolanda falou mais alto. “Nós somos seres

humanos e não fazemos ideia do que é uma pessoa ter que se controlar pra chorar e pra sorrir.

São sentimentos espontâneos e não precisamos de limitações, já basta o que temos na vida”,

afirmou Cristina em entrevista.

Cristina não estava preocupa quanto à veracidade dos fatos que estava ouvindo, mas

sim com aquelas vítimas e suas memórias, notando como aquele acidente rápido havia

transformado suas vidas para sempre, e que agora eram obrigadas a viver com limitações e

6 Maria Cristina Santos é formada em Serviço Social e é coordenadora da ONG ORVAM, cedeu uma

entrevista oral para alunas de Comunicação Social da Faculdade Paraense de Ensino (FAPEN), em outubro de

2014, no prédio da ONG localizada na avenida João Paulo II, Belém/PA.

lembranças que aos poucos vão se modificando e tomando outros rumos. Sobre isto, Ecléa diz

que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as

lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-la, vai paulatinamente individualizando a memória

comunitária, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que mais significa. Isto

porque

O papel da memória ganha importância e necessidade como um permanente

“exercício de reconhecimento”, exigido nas sociedades contemporâneas. A

memória em sua potencialidade permite reacender utopias, reconstituir

outros tempos, representar diferentes ideias e ideais, reativar emoções,

rememorar convivências ou conflitos, defender posturas políticas, visões de

mundo, expressar mentalidades, enfim, denunciar imaginários (CAPRINO e

PERAZZO, 2008, p. 17).

Por não possuir um conhecimento maior sobre o assunto, ao ouvir os relatos isso lhe

tocou muito então decidiu fazer alguma coisa por aquelas meninas. Nesse momento, uma das

que estavam sendo entrevistada, identificada apenas como “Ilda”, em um dado momento a

chamou e pediu para que escrevesse uma carta para o “Programa do Gugu” pedindo uma

peruca de silicone. Sem acreditar em uma resposta a carta, Cristina concordou.

Foto 1

Fotografia: Luana Paola

“Eu via a autoestima das meninas muito baixa e já queria trabalhar com elas”,

afirmou ao lembrar-se deste período. Isso levou Cristina, depois de algum tempo a escrever

pedindo computador que Val havia lhe pedido. Ao escrever, Cristina pede para que a

enfermeira Dilza Flexa, que hoje é uma das voluntárias na ORVAM, lesse o pedido. Ela ficou

muito surpresa e tocada com a história e resolveu ajudar doando o computador de seu filho

para Val.

Essa atitude fez com que Cristina percebesse que conseguia sensibilizar as pessoas

para que pudessem ajudar. “Quando eu vi que conseguia sensibilizar as pessoas me sentir

motivada a querer fazer mais pelas meninas” relata. Foi o momento em que decidiu ir ao

encontro de conhecidos para pedir ajuda.

No dia 31 de outubro enviou a carta, e contrariando as suas expectativas no dia 9 de

dezembro recebeu uma ligação da produtora do “programa do Gugu” pedindo para gravar

uma fala no dia seguinte. No combinando, Maria Cristina foi até o Beira Rio para gravar, e eis

que veio a grande surpresa, a produtora afirma que quem iria gravar seria o Gugu e que eles

haviam decidido fazer uma matéria com elas, pois acharam a história muito interessante.

Nesse dia, Gugu disse que não só daria a peruca de silicone solicitada, mas que ajudaria na

construção de uma ONG.

O sonho passava a se tornar realidade, e no dia 27 de Janeiro de 2011 às 11h da

manhã, a nova ONG é entregue. Tendo como presidente Maria Cristina Santos, a Organização

dos Ribeirinhos Vitimas de Acidentes de Motor (ORVAM) passa a funcionar com 5 meninas.

A repercussão foi tão grande que o cabeleireiro Luiz Crispim veio de São Paulo para ensinar

as meninas a fazer suas próprias perucas. Mas como não conseguiu ensinar a todas, decidiu

levar por sua própria conta Balbina, uma das meninas para que pudesse ter um curso de graça.

Segundo dados da Orvam, após três anos, o quadro de meninas que tem idade entre 7

até 56 anos que estão cadastradas, teve aumento de integrante para 95, sendo que todas tem a

possibilidade de trocar de perucas assim que necessário. Dos 144 municípios que tem no Pará,

35 tem registros na ONG com destaque para Cametá de onde vem à maioria dos casos.

Cercadas de carinho, as vítimas de escalpelamento tem atividades de confecção de

perucas e camisas pirogravadas. De onde tiram um dinheiro que vai desde a manutenção da

ONG até a divisão entre elas. “Elas não são doentes, apenas sofreram um acidente” diz Maria

Cristina.

Foto 2: Regina vítima de Escalpelamento

Mais Luz, mais Luíza

“Agora estou de peruca, parece que nem aconteceu o acidente”.

Foto 3: Luiza vítima do Escalpelamento

Luíza da Silva Miranda, na época em que foi entrevistada tinha 43 anos. Casada com

Valter da Silva Paraense, era mãe de dois filhos e avó de um neto. Sofreu o acidente aos 17

anos na Baía do Sol, na Ilha de Mosqueiro, região metropolitana de Belém, onde foi comprar

peixe para revenda. Ela relata que tudo foi muito rápido, na volta por insistência foi secar a

água que estava acumulada na embarcação: “o acidente ocorreu em fração de segundos, meu

cabelo estava preso o vento bateu e ele caiu em cima do eixo do motor, a partir desse

momento não lembro mais de nada, pois a dor é tão intensa que ficamos desorientadas”.

Luíza recebeu os primeiros socorros ainda em Mosqueiro, depois foi transferida para

o Hospital Ordem Terceira em seguida para o Hospital São José de Queluz, onde fez as

primeiras cirurgias. Ao todo ela fez dez cirurgias e passou dois meses e oito dias internada.

Durante nossa conversar lembrou que ao acordar após o acidente meteu a mão na atadura e

pensou não saiu todo o cabelo, Luíza sofreu escalpelamento parcial, mas o maior choque foi

ao fazer o primeiro curativo, “me olhei e vir um bicho,” relatou.

Um dos momentos mais tocantes da entrevista foi quando perguntamos do apoio que

recebeu, ela pensou um pouco e disse “tenho uma mágoa com minha família, porque me

abandonaram na hora que eu mais precisei deles”, desabafou. Depois falou que recebeu desde

o começo o apoio total de seu marido que até hoje está ao seu lado “ele foi marido, foi um pai

um tudo para mim”. Por fim, com um enorme sorriso no rosto, falou que atualmente uma de

suas maiores incentivadoras e sua filha Merisiana, que no período da entrevista tinha 16 anos,

“ela cuida de mim, lava minha peruca faz escova, falando mãe vamos ficar bonita”. Notamos

que o apoio dessas duas pessoas foi e é fundamental para Luíza superar a cada dia o acidente,

pois como afirmou a gente perde completamente a autoestima.

Destarte, Luíza superou sua nova situação, por mais que tenha passado por

momentos de constrangimento que lhe magoaram, mas serviram para lhe fortalecer e

amadurecer a cada dia. Entre muitas situações que passou por causa de sua condição física ela

falou que nunca esquece a vergonha que passou dentro de duas igrejas “fui expulsa de duas

igrejas ( uma católica e outra protestante) porque estava de boné, fiquei constrangida, a moça

chegou na maior ignorância, falando você está bagunçando com a casa de Deus, respondi para

ela, você não sabe pois não me conhece, aí eu não conseguir falar mais porque quando falava

eu chorava, meu esposo vendo a situação falou que eu havia sofrido um acidente de

escalpelamento e estava de boné porque ele no tinha condições de comprar uma peruca”.

Foto 4: Não Mascare

Sem máscaras. Fotografia: Luana Paola

Podemos perceber que a sociedade impõe os valores e comportamentos que devem

ser seguidos, tudo que fugir dos padrões estabelecidos é visto com desprezo. Dessa forma, o

preconceito acaba surgindo e excluindo muitas pessoas do convívio social. A realidade vivida

pelas vítimas de escalpelamento não é diferente. Devido suas cicatrizes, essas pessoas passam

a ser vistas com tanta indiferença e exclusão que muitas até chegam a pensar em suicídio por

não suportarem a sua nova condição.

Os especialistas dos meios de comunicação de massa transmitem os valores

requeridos; oferecem o treino perfeito em eficiência, dureza, personalidade,

sonho e romance. Com essa educação, a família deixou de estar em condições de

competir... A sua autoridade (do pai) como transmissor de riqueza, aptidões e

experiências está grandemente reduzida; tem menos a oferecer e, portanto,

menos a proibir (MARCUSE, 1981, p.97).

Devido ao escalpelamento, a rotina da pessoa acidentada é completamente

modificada. Com o longo tratamento e diversas dores que os pacientes relatam nunca

deixarem de sentir, os mesmos tentam voltar sua vida normal. No caso dos jovens, eles tentam

retornar sua vida escolar, afinal precisam concluir os estudos para tentar uma vida melhor.

Contudo, sua volta ao ambiente escolar trás diversos transtornos, pois agora estão diferentes

dos seus colegas e essa mudança física é evidenciada a cada dia.

A escola sempre foi considerada uma instituição de seleção e diferenciação

social. Com isso, estamos sempre em situações de fragilidades, de “está pisando

em ovos” na prática escolar, sem podermos romper com isso. É fato que não se

pode negar a seletividade que está presente na prática institucional da escola e,

por vezes, de caráter elitista. A vivência do preconceito pode ser notada pela

prática da diferença, que é muito presente no cotidiano Brasileiro (ITANI, p.120-

121 apud. AQUINO, 1988).

Luíza ainda nos contou sobre o preconceito que sofreu dentro da escola, “na escola

tiravam meu boné e me chamavam de careca era uma coisa muito triste eu não queria estar lá

preferia estar sozinha”. Por esse motivo abandonou os estudos, mas hoje já pensa em voltar e

concluir seu segundo grau. Há cinco anos ela faz parte da ONG Orvam, onde trabalha na

confecção de perucas, esse espaço é como se fosse a segunda casa das 95 associadas onde

conversam trocam experiência e acima de tudo apoiam uma a outra “a Orvam passa segurança

para gente”, diz Luíza que recebeu nesse espaço sua segunda peruca, pois a primeira foi doada

pela Marinha.

É incrível como o olhar de Luíza cintila ao falar de suas perucas, é notório a

importância desse objeto na vida dela, não só dela, mas para todas que sofrem com esse

terrível acidente, pois estão recebendo de volta algo que lhe foi tirado brutalmente. A peruca

traz de volta o lado mais feminino dessas mulheres, a vaidade, levando a uma maior

socialização dentro de seu espaço familiar e social, confirmamos isso nas falas de Luíza

“depois da peruca já fui em aniversário, cinema e até em igreja que falei jamais voltar”.

Foto 5:

Fotografia: Luana Paola

Foto 6: Vítimas de escalpelamento dizem não ao preconceito

Novos passos, novos desafios no espelho

Reconstruindo sua história

Foto 7: confecção de peruca

Fotografia: Luana Paola

Em Belém, além da Orvam, existe o Espaço Acolher, mantido pelo Governo do

Estado, assim como a ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (Orvam), uma

ONG especializada para esse tipo de acidente que ajuda as vítimas a voltarem interagir diante

a sociedade, estimulando-as com cursos diversificados para ingressar na área de trabalho,

além de repassar esse tipo de estímulo também doa perucas a mulheres e crianças

escalpeladas, doando junto a esse presente a autoestima perdida durante o tratamento, a

mesma também faz doações de perucas a crianças com câncer, essas perucas doadas são

fabricadas por vítimas que atualmente se tornaram voluntárias.

Essas doações são feitas a partir de atos solidários de pessoas que levam seus cabelos

até a ONG com o intuito de ajudar na causa. O tamanho ideal é a partir de 20 centímetros e o

cabelo pode ser de qualquer tipo. Já a confecção fica a cargo das voluntárias da ORVAM que

ao separar o cabelo que será utilizado, costuram em uma toca apropriada até que ganhe forma

de peruca e assim passe a ajudar na autoestima de mais uma pessoa.

O trabalho realizado nestes lugares ajudam mulheres de diferente faixa etária a

verem o outro lado dessa nova fase, percebendo que apesar do acidente e todo o tratamento de

recuperação, não se deve desistir de lutar. É nessas ONGs que muitas recebem a força que

precisam para enfrentar o preconceito interno e o externo, com união são capazes de vencer

qualquer outro obstáculo da vida.

Foto 8: União

Fotografia: Luana Paola

O primeiro passo para ajudá-las a seguir em frente é a doação de perucas, após o

ganho dos cabelos novos é notável a felicidades em seus olhos, a força que um objeto possui

em suas vidas. No caso das escalpeladas que sofrem com todas as dores e um processo longo

de tratamento, a perda dos cabelos modifica a sua beleza natural e resulta a perda da

autoestima. Essa apropriação com as perucas as fazem sentir que os olhares de indiferença

diminuem, resultando em forças para voltar à escola, trabalho e até mesmo fazer parte de uma

fotografia com a família, voltam a sorrir.

Perceber-se que em nossa sociedade a beleza visual é uma das subdivisões que

devemos nos encaixar, devido isto a peruca exerce esse poder de renovação em suas vidas e as

encoraja a seguir em frente. É justamente assim que a confiança em si volta a existir, com os

novos cabelos, pensam a melhor forma de trilhar o futuro e recuperar o tempo perdido. Por

conseguinte inicia um novo capítulo as histórias, mas dessa vez iniciando com a palavra

“superação”.

Foto 9: Espelho

Fotografia: Luana Paola

A autoestima segundo o dicionário Aurélio é a aceitação que a pessoa tem de si

mesma. Uma pessoa com autoestima gosta de se ver no espelho, sente-se mais segura para

sair de casa, tem mais facilidade para fazer amizades e acima de tudo possui autoconfiança.

Em contrapartida vem à baixa autoestima, um mal que atinge um grande número de

pessoas em especial mulheres. Isso acontece normalmente, quando estamos insatisfeitos com

algo em nosso corpo e acabamos de alguma forma fugindo dos olhares daqueles que nos

cercam. Sentimentos estes que as vítimas de escalpelamento relataram sentir após o incidente,

como afirmou uma voluntaria da ONG Orvam. Um dos maiores problemas, Tirando a dor dos

longos procedimentos como curativos e cirurgias, é o contato com o espelho.

Foto 10: O olhar

Fotografia: Luana Paola

A imagem delas refletidas no espelho gera um impacto imediato no estado de

espírito. Vindo a ser a primeira reação, a sua exclusão da sociedade. Passando a viver isoladas

e sentindo-se uma pessoa inferior as outras. Essa baixa autoestima pode causar transtornos

psicológicos, como depressão, transtorno de ansiedade e até fobia social. Segundo Ferat “Tão

sofrida quanto à perda dos cabelos e das sobrancelhas, é ter que cobrir com os lenços as

chagas de uma dor que corrói a autoestima, comprometendo o direito, tão feminino, a

vaidade” (VOLTOLINI 2003, p.1).

Darlene vítima do Escalpelamento

Foto 11:

Fotografia: Luana Paola

Essa reconstrução da autoestima é um processo longo que envolvem várias pessoas

entre eles, psicólogos, assistentes sociais, familiares, amigos e sociedade, porém o primeiro e

grande passo para essa recuperação é ter de volta o que se perdeu, seus cabelos, isso é

oferecido a elas na ONG, e o mais importante, elas mesmas fazem a confecção de suas

perucas, proporcionando a oportunidade delas construírem mais que sua autoestima, uma

nova história.

Foto 12: A peruca mais cobiçada da ORVAM

Fotografia: Luana Paola

Considerações finais

O escalpelamento é, na verdade, um problema que vai muito além da saúde; envolve

questões como autoestima, aceitação e a reconstrução de uma nova história e por vezes até

mesmo dentro de novas famílias. Conviver com uma nova aparência é um desafio que requer

superação dos limites impostos diariamente. Devido ao acidente, as vítimas cobrem as marcas

com lenços ou perucas, e deixam de realizar atividades que faziam parte de seu cotidiano por

vergonha ou por receio de passar por momentos constrangedores em decorrência da atual

aparência.

“Ao colocarem a peruca vemos de imediato o sorriso no rosto delas”, destacou

Cristina. Na Orvam e também em outros espaços de acolhimento, elas aprendem a lidar com

as sequelas deixadas pelo acidente, por verem que estão sendo valorizadas e tratadas como

qualquer outro ser humano, pois elas repudiam a pena das pessoas afirmando que não são

“nenhumas inválidas”, diz Cristina a presidente da instituição.

Nota-se nesse contexto a importância que a ONG dos Ribeirinhos Vítimas de

Acidente de Motor desempenha na vida das acidentadas, visto que a mesma ajuda elas a se

integrarem novamente na sociedade, ao disponibilizar cursos preparatórios, oficinas,

acompanhamento psicológico e acima de tudo fazendo-as recuperar sua autoestima e, mais

que, isso, tecendo com outros fios, novas histórias de vida.

Referências

NOTICIAS, combate da marinha ao escalpelamento beneficia cerca de 20 mil pessoas na

região amazonica Disponível em: http://www.defesa.gov.br/notícias/17364-combate-da-

marinha-ao-escalpelamento-beneficia-cerca-de-20-mil-pessoas-na-regiao-amazonica.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo. T. A. Editor, 1979.

P 18-481.

CAPRINO, Mônica. PERAZZO, Priscila. Possibilidades da comunicação e inovação em uma

dimensão regional. In: CAPRINO, Mônica. Comunicação e Inovação: Reflexões

contemporâneas. São Paulo: Paulus, 2008.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

FERAT,Erica.Ferreira,Furtado, Renan da Silva: O USO DA MIDIAS SOCIAIS COMO

RECURSO TERAPEUTICO OCUPACIONAL NA REINSERÇÃO SOCIAL DE

PACIENTES VITIMAS DE ESCALPELAMENTOS (Furtado,1992, p.31)

MILCHESKI, D. et al. Reimplante micro-cirurgico das avulsões de couro cabeludo –

Experiência de sete anos. In Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. São Paulo,

v. 18 n.3 p.47 – 54. set/dez 2003.

ITANI, Alice. Vivendo o preconceito em sala de aula. In: AQUINO, Julio Groppa. (Org.)

Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 5. ed. São Paulo, SP:

Summus, 1998.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização Rio de Janeiro: Zahar, 1981.