entre fios, redes e outras tessituras: mulheres ... · do sexo feminino, ... essas palavras soaram...
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Entre fios, redes e outras tessituras:
Mulheres escalpeladas, sentidos e reconstruções
Camila BRAGA1
Daniely CABRAL 2
Elen SILVA3
Enderson OLIVEIRA4
Faculdade Paraense de Ensino (Fapen), Belém, PA
Resumo
Na região amazônica milhares de famílias utilizam os barcos como o seu principal meio de
transporte, fazendo do rio amazonas a sua avenida, seu tráfego diário de idas e vindas.
Durante esse vai e vem, apesar do costume pode ocorrer uma fatalidade já bastante conhecida
por moradores desta região, o escalpelamento, um acidente provocado pelo escalpe do barco.
Vítimas deste acidente buscam inúmeras maneiras de superar o ocorrido, recuperando a
autoestima usando perucas e voltando se socializar.
Palavras-chave
Escalpelamento, ORVAM, Fotografia, Redes Sociais e Autoestima.
Considerações iniciais
Longe da vida mais acelerada de centros urbanos, em especial da capital Belém,
mora uma parcela significativa da população paraense. São pessoas que buscam garantir sua
sobrevivência e de suas famílias a partir da comercialização de produtos e outros tipos de
serviços mais relacionados à pesca e à agricultura. Por sua vez, se relacionam ainda ao uso
constante de embarcações, assim como outras atividades que envolvem o transporte feito
pelas águas, para resolverem assuntos de ordem jurídica, consultas médicas, lazer e de outras
ordens. Assim, os barcos tornaram-se o principal meio de transporte nessas regiões.
Neste panorama, algumas pessoas, quase prioritariamente mulheres, não raramente
são vítimas de problemas causados pela imprudência e mesmo pela falta de responsabilidade
de donos de embarcações e órgãos que deveriam protegê-las. Falamos do risco de
1 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da
Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da
Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected] 3 Estudante de Graduação 5º. semestre do Curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) da
Faculdade Paraense de Ensino (Fapen). E-mail: [email protected]. 4 Orientador do trabalho. Jornalista; Mestre em Ciências Sociais (Antropologia); professor do Curso de
Comunicação Social na Faculdade Paraense de Ensino (Fapen) e na Faculdade Pan Amazônica (Fapan). Repórter
no Diário On Line (DOL) e coordenador na Agência Experimental de Comunicação Efe2. E-mail:
escalpelamentos, momento em que parte do couro cabeludo é arrancado violentamente ao
entrar em contato com o motor da embarcação.
Discutir essa problemática, no entanto, não é o objetivo central do ensaio. Queremos,
na verdade, mostrar com base nas entrevistas realizadas e fotos feitas com integrantes da
Organização Não Governamental dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor, a ONG
Orvam, o modo como as acidentadas enfrentam sua nova realidade, como as experiências de
vidas as fortalecem e as motiva a seguir em frente mesmo com as limitações impostas após o
acidente, dando ênfase ao papel desempenhado pela ONG na reconstrução da autoestima das
vítimas.
Em tal discussão, as fotografias se apresentam com papel ambíguo: ao mesmo tempo
que podem desvelar os problemas, dificuldades e fragilidades vividos pelas vítimas, ajudam a
revelar e fortalecer a ideia de melhorias e manutenção da autoestima das mulheres. Assim, a
luz, um dos principais elementos da construção da imagem, tece narrativas poéticas entre
contrastes, nuances e ambientes, que formam espaços de afeto no interior do quadro
imagético recortado e estimulam a imaginação e a felicidade. “A fotografia é, ao mesmo
tempo, uma forma de expressão e um meio de informação e comunicação a partir do real e,
portanto, um documento histórico”, afirma fotógrafo, teórico e historiador da fotografia Boris
Kossoy (2009), no livro Fotografia e História, em que o escritor basicamente faz uma
interpretação da história através da fotografia.
Indo além, observamos através das (Cf. GEERTZ, 1989, p. 18) imagens as inter-
relações entre memória dos sujeitos, experiências bem como atribuições de sentidos e
significados na Orvam. São temas e “recortes” que foram sugeridos justamente a partir da
“expressão”, como sugere Victor Turner (DAWSEY, 2005) das experiências dos sujeitos
entrevistados e das imagens produzidas.
Neste trajeto, acompanhamos Luiza, 43 anos, que sofreu o acidente aos 17 anos
mudando completamente o curso da sua vida. A mesma foi abandonada pela família,
passando a enfrentar situações de preconceito da sociedade na qual estava inserida. Esse
comportamento da sociedade com as vítimas ocorre por não estarem segundo o padrão de
beleza cultuado, sofrendo desse modo o preconceito, o que leva muitas delas a se trancarem
dentro de suas casas, exilando-se do convívio social.
Navegando nas ondas dos fios
Os casos de escalpelamento começaram a surgir na região Norte no final dos anos
sessenta, quando as comunidades ribeirinhas tiveram acesso ao progresso e a tecnologia que
chegaram sob a forma de motores.
Modernamente as embarcações apresentam marcas do desenvolvimento tecnológico
[...], pois os recursos que antes eram utilizados como instrumento de aceleração dos
barcos, a exemplo dos remos e das velas, atualmente vêm sendo parcialmente ou
totalmente substituídos por sistemas de propulsão que informalmente chama-se de
motor a óleo diesel (FURTADO, 1992, p.31).
Junto com este avanço, no entanto, veio o perigo em forma de um eixo de rotação
localizado atrás do motor que na maioria das embarcações fica exposto sem nenhuma
proteção, colocando em risco aqueles que utilizam esse meio de transporte para se locomover.
É daí que podem surgir os casos de escalpelamento, lesão grave sintetizada na retirada do
coro cabeludo através de um escalpe, causando para as vítimas diversas sequelas físicas,
psicológicas e sociais. Isso acontece quando a pessoa que está com os cabelos soltos ou de
forma presa inadequada abaixa-se para retirar a água acumulada dentro da embarcação ou
para pegar algum objeto no assoalho do barco localizado perto do eixo do motor.
Esse acidente traz uma nova rotina à vítima. Quem antes tinha o cabelo como
complemento de sua beleza, após o acidente e com a perda desse “acessório”, fica refém de
uma sociedade que julga cotidianamente todos pela aparência. Ter “novos” cabelos se torna
então essencial para que se sintam melhores e sejam novamente “inseridas” na sociedade. Isto
é possível através de um novo acessório, a peruca, que não irá esconder apenas o couro
cabeludo exposto e sim as cicatrizes, vergonha e o medo que ficou com as sequelas de um
descuido que as impedem de sorrir.
Segundo dados da Capitanias dos Portos5, 80% dos casos de escalpelamentos
envolvem mulheres, devido o uso de cabelos compridos ou por costumes ou por causa da
religião evangélica. Chama atenção também o índice de casos que ocorre em crianças com
uma porcentagem de 65%, seguida de adultos com 30% e idosos com 5%.
“O acidente ocorre pela não utilização de proteção adequada, em pacientes
do sexo feminino, pela presença mais comum de cabelos longos, mas as
lesões não se limitam somente ao couro cabeludo, mais atinge também,
outras regiões, como a fronte, sobrancelhas, orelhas e regiões inferiores à
face, dificultando ainda mais o procedimento de reconstrução”
(MALCHISKA, 2003, p.52)
Destarte, pergunta-se como é possível a vida de alguém mudar em questão de
segundos? Infelizmente, isso acontece com as vítimas de escalpelamento que em um
momento de distração tem a sua história reescrita por um eixo de motor. Uma tragédia que
deforma, desfigura e mutila homens e mulheres de diferente faixa etária transformando a vida
5 Capitania dos Portos é o órgão de autoridade marítima relacionada a determinado(s) porto(s), em geral
exercendo jurisdição na área do mesmo.
das vítimas, mas não somente delas diretamente atingidas, como também dos familiares e
amigos.
A dor de uma lágrima e um sorriso: A Orvam
Dia 28 de agosto é intitulado o Dia Nacional de Combate e Prevenção aos Acidentes
de Escalpelamento. Em 2010 houve uma ação na praça Dom Pedro, em Belém, com o
objetivo de conscientizar barqueiros e ribeirinhos sobre os riscos de acidentes causados
devido a navegação de barcos com eixo exposto.
Aproveitando o evento, Maria Cristina Santos6, graduada em Serviço Social e que
trabalhava na filial da empresa Funda Centro, um órgão que visa à segurança do trabalhador
em seu ambiente de trabalho, foi ao local aplicar um questionário às vítimas, auxiliando
alunos do curso de Publicidade e Propaganda de uma instituição de São Paulo no
desenvolvimento de um trabalho sobre o escalpelamento.
Em meio às entrevistadas, Cristina conheceu Yolanda, uma das vítimas deste tipo de
acidente. “Esse acidente é tão cruel que não consigo nem chorar e nem sorrir por muito tempo
que minha cabeça dói muito e eu dependo de medicamentos pro resto da minha vida”,
declarou à Cristina. Segundo ela, essas palavras soaram tão fortes que a fizeram deixar o
questionário de lado vindo a indagá-la sobre suas limitações para coisas tão simples como
demonstrar seus sentimentos.
Cristina passou a ouvir não apenas relatos, mas memórias de pessoas que passaram
por momentos marcantes e que transmitem sua experiência a outros por meio de suas
lembranças. Isso é o que essas mulheres estão fazendo ao estarem narrando suas histórias,
pois estão abordando o campo da experiência pessoal relacionando a eventos do cotidiano.
Nesse período, Maria Cristina estava afastada da sua profissão e afirmava que não
queria mais trabalhar o social. Contudo, a frase de Yolanda falou mais alto. “Nós somos seres
humanos e não fazemos ideia do que é uma pessoa ter que se controlar pra chorar e pra sorrir.
São sentimentos espontâneos e não precisamos de limitações, já basta o que temos na vida”,
afirmou Cristina em entrevista.
Cristina não estava preocupa quanto à veracidade dos fatos que estava ouvindo, mas
sim com aquelas vítimas e suas memórias, notando como aquele acidente rápido havia
transformado suas vidas para sempre, e que agora eram obrigadas a viver com limitações e
6 Maria Cristina Santos é formada em Serviço Social e é coordenadora da ONG ORVAM, cedeu uma
entrevista oral para alunas de Comunicação Social da Faculdade Paraense de Ensino (FAPEN), em outubro de
2014, no prédio da ONG localizada na avenida João Paulo II, Belém/PA.
lembranças que aos poucos vão se modificando e tomando outros rumos. Sobre isto, Ecléa diz
que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as
lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-la, vai paulatinamente individualizando a memória
comunitária, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que mais significa. Isto
porque
O papel da memória ganha importância e necessidade como um permanente
“exercício de reconhecimento”, exigido nas sociedades contemporâneas. A
memória em sua potencialidade permite reacender utopias, reconstituir
outros tempos, representar diferentes ideias e ideais, reativar emoções,
rememorar convivências ou conflitos, defender posturas políticas, visões de
mundo, expressar mentalidades, enfim, denunciar imaginários (CAPRINO e
PERAZZO, 2008, p. 17).
Por não possuir um conhecimento maior sobre o assunto, ao ouvir os relatos isso lhe
tocou muito então decidiu fazer alguma coisa por aquelas meninas. Nesse momento, uma das
que estavam sendo entrevistada, identificada apenas como “Ilda”, em um dado momento a
chamou e pediu para que escrevesse uma carta para o “Programa do Gugu” pedindo uma
peruca de silicone. Sem acreditar em uma resposta a carta, Cristina concordou.
Foto 1
Fotografia: Luana Paola
“Eu via a autoestima das meninas muito baixa e já queria trabalhar com elas”,
afirmou ao lembrar-se deste período. Isso levou Cristina, depois de algum tempo a escrever
pedindo computador que Val havia lhe pedido. Ao escrever, Cristina pede para que a
enfermeira Dilza Flexa, que hoje é uma das voluntárias na ORVAM, lesse o pedido. Ela ficou
muito surpresa e tocada com a história e resolveu ajudar doando o computador de seu filho
para Val.
Essa atitude fez com que Cristina percebesse que conseguia sensibilizar as pessoas
para que pudessem ajudar. “Quando eu vi que conseguia sensibilizar as pessoas me sentir
motivada a querer fazer mais pelas meninas” relata. Foi o momento em que decidiu ir ao
encontro de conhecidos para pedir ajuda.
No dia 31 de outubro enviou a carta, e contrariando as suas expectativas no dia 9 de
dezembro recebeu uma ligação da produtora do “programa do Gugu” pedindo para gravar
uma fala no dia seguinte. No combinando, Maria Cristina foi até o Beira Rio para gravar, e eis
que veio a grande surpresa, a produtora afirma que quem iria gravar seria o Gugu e que eles
haviam decidido fazer uma matéria com elas, pois acharam a história muito interessante.
Nesse dia, Gugu disse que não só daria a peruca de silicone solicitada, mas que ajudaria na
construção de uma ONG.
O sonho passava a se tornar realidade, e no dia 27 de Janeiro de 2011 às 11h da
manhã, a nova ONG é entregue. Tendo como presidente Maria Cristina Santos, a Organização
dos Ribeirinhos Vitimas de Acidentes de Motor (ORVAM) passa a funcionar com 5 meninas.
A repercussão foi tão grande que o cabeleireiro Luiz Crispim veio de São Paulo para ensinar
as meninas a fazer suas próprias perucas. Mas como não conseguiu ensinar a todas, decidiu
levar por sua própria conta Balbina, uma das meninas para que pudesse ter um curso de graça.
Segundo dados da Orvam, após três anos, o quadro de meninas que tem idade entre 7
até 56 anos que estão cadastradas, teve aumento de integrante para 95, sendo que todas tem a
possibilidade de trocar de perucas assim que necessário. Dos 144 municípios que tem no Pará,
35 tem registros na ONG com destaque para Cametá de onde vem à maioria dos casos.
Cercadas de carinho, as vítimas de escalpelamento tem atividades de confecção de
perucas e camisas pirogravadas. De onde tiram um dinheiro que vai desde a manutenção da
ONG até a divisão entre elas. “Elas não são doentes, apenas sofreram um acidente” diz Maria
Cristina.
Foto 2: Regina vítima de Escalpelamento
Mais Luz, mais Luíza
“Agora estou de peruca, parece que nem aconteceu o acidente”.
Foto 3: Luiza vítima do Escalpelamento
Luíza da Silva Miranda, na época em que foi entrevistada tinha 43 anos. Casada com
Valter da Silva Paraense, era mãe de dois filhos e avó de um neto. Sofreu o acidente aos 17
anos na Baía do Sol, na Ilha de Mosqueiro, região metropolitana de Belém, onde foi comprar
peixe para revenda. Ela relata que tudo foi muito rápido, na volta por insistência foi secar a
água que estava acumulada na embarcação: “o acidente ocorreu em fração de segundos, meu
cabelo estava preso o vento bateu e ele caiu em cima do eixo do motor, a partir desse
momento não lembro mais de nada, pois a dor é tão intensa que ficamos desorientadas”.
Luíza recebeu os primeiros socorros ainda em Mosqueiro, depois foi transferida para
o Hospital Ordem Terceira em seguida para o Hospital São José de Queluz, onde fez as
primeiras cirurgias. Ao todo ela fez dez cirurgias e passou dois meses e oito dias internada.
Durante nossa conversar lembrou que ao acordar após o acidente meteu a mão na atadura e
pensou não saiu todo o cabelo, Luíza sofreu escalpelamento parcial, mas o maior choque foi
ao fazer o primeiro curativo, “me olhei e vir um bicho,” relatou.
Um dos momentos mais tocantes da entrevista foi quando perguntamos do apoio que
recebeu, ela pensou um pouco e disse “tenho uma mágoa com minha família, porque me
abandonaram na hora que eu mais precisei deles”, desabafou. Depois falou que recebeu desde
o começo o apoio total de seu marido que até hoje está ao seu lado “ele foi marido, foi um pai
um tudo para mim”. Por fim, com um enorme sorriso no rosto, falou que atualmente uma de
suas maiores incentivadoras e sua filha Merisiana, que no período da entrevista tinha 16 anos,
“ela cuida de mim, lava minha peruca faz escova, falando mãe vamos ficar bonita”. Notamos
que o apoio dessas duas pessoas foi e é fundamental para Luíza superar a cada dia o acidente,
pois como afirmou a gente perde completamente a autoestima.
Destarte, Luíza superou sua nova situação, por mais que tenha passado por
momentos de constrangimento que lhe magoaram, mas serviram para lhe fortalecer e
amadurecer a cada dia. Entre muitas situações que passou por causa de sua condição física ela
falou que nunca esquece a vergonha que passou dentro de duas igrejas “fui expulsa de duas
igrejas ( uma católica e outra protestante) porque estava de boné, fiquei constrangida, a moça
chegou na maior ignorância, falando você está bagunçando com a casa de Deus, respondi para
ela, você não sabe pois não me conhece, aí eu não conseguir falar mais porque quando falava
eu chorava, meu esposo vendo a situação falou que eu havia sofrido um acidente de
escalpelamento e estava de boné porque ele no tinha condições de comprar uma peruca”.
Foto 4: Não Mascare
Sem máscaras. Fotografia: Luana Paola
Podemos perceber que a sociedade impõe os valores e comportamentos que devem
ser seguidos, tudo que fugir dos padrões estabelecidos é visto com desprezo. Dessa forma, o
preconceito acaba surgindo e excluindo muitas pessoas do convívio social. A realidade vivida
pelas vítimas de escalpelamento não é diferente. Devido suas cicatrizes, essas pessoas passam
a ser vistas com tanta indiferença e exclusão que muitas até chegam a pensar em suicídio por
não suportarem a sua nova condição.
Os especialistas dos meios de comunicação de massa transmitem os valores
requeridos; oferecem o treino perfeito em eficiência, dureza, personalidade,
sonho e romance. Com essa educação, a família deixou de estar em condições de
competir... A sua autoridade (do pai) como transmissor de riqueza, aptidões e
experiências está grandemente reduzida; tem menos a oferecer e, portanto,
menos a proibir (MARCUSE, 1981, p.97).
Devido ao escalpelamento, a rotina da pessoa acidentada é completamente
modificada. Com o longo tratamento e diversas dores que os pacientes relatam nunca
deixarem de sentir, os mesmos tentam voltar sua vida normal. No caso dos jovens, eles tentam
retornar sua vida escolar, afinal precisam concluir os estudos para tentar uma vida melhor.
Contudo, sua volta ao ambiente escolar trás diversos transtornos, pois agora estão diferentes
dos seus colegas e essa mudança física é evidenciada a cada dia.
A escola sempre foi considerada uma instituição de seleção e diferenciação
social. Com isso, estamos sempre em situações de fragilidades, de “está pisando
em ovos” na prática escolar, sem podermos romper com isso. É fato que não se
pode negar a seletividade que está presente na prática institucional da escola e,
por vezes, de caráter elitista. A vivência do preconceito pode ser notada pela
prática da diferença, que é muito presente no cotidiano Brasileiro (ITANI, p.120-
121 apud. AQUINO, 1988).
Luíza ainda nos contou sobre o preconceito que sofreu dentro da escola, “na escola
tiravam meu boné e me chamavam de careca era uma coisa muito triste eu não queria estar lá
preferia estar sozinha”. Por esse motivo abandonou os estudos, mas hoje já pensa em voltar e
concluir seu segundo grau. Há cinco anos ela faz parte da ONG Orvam, onde trabalha na
confecção de perucas, esse espaço é como se fosse a segunda casa das 95 associadas onde
conversam trocam experiência e acima de tudo apoiam uma a outra “a Orvam passa segurança
para gente”, diz Luíza que recebeu nesse espaço sua segunda peruca, pois a primeira foi doada
pela Marinha.
É incrível como o olhar de Luíza cintila ao falar de suas perucas, é notório a
importância desse objeto na vida dela, não só dela, mas para todas que sofrem com esse
terrível acidente, pois estão recebendo de volta algo que lhe foi tirado brutalmente. A peruca
traz de volta o lado mais feminino dessas mulheres, a vaidade, levando a uma maior
socialização dentro de seu espaço familiar e social, confirmamos isso nas falas de Luíza
“depois da peruca já fui em aniversário, cinema e até em igreja que falei jamais voltar”.
Foto 5:
Fotografia: Luana Paola
Foto 6: Vítimas de escalpelamento dizem não ao preconceito
Novos passos, novos desafios no espelho
Reconstruindo sua história
Foto 7: confecção de peruca
Fotografia: Luana Paola
Em Belém, além da Orvam, existe o Espaço Acolher, mantido pelo Governo do
Estado, assim como a ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (Orvam), uma
ONG especializada para esse tipo de acidente que ajuda as vítimas a voltarem interagir diante
a sociedade, estimulando-as com cursos diversificados para ingressar na área de trabalho,
além de repassar esse tipo de estímulo também doa perucas a mulheres e crianças
escalpeladas, doando junto a esse presente a autoestima perdida durante o tratamento, a
mesma também faz doações de perucas a crianças com câncer, essas perucas doadas são
fabricadas por vítimas que atualmente se tornaram voluntárias.
Essas doações são feitas a partir de atos solidários de pessoas que levam seus cabelos
até a ONG com o intuito de ajudar na causa. O tamanho ideal é a partir de 20 centímetros e o
cabelo pode ser de qualquer tipo. Já a confecção fica a cargo das voluntárias da ORVAM que
ao separar o cabelo que será utilizado, costuram em uma toca apropriada até que ganhe forma
de peruca e assim passe a ajudar na autoestima de mais uma pessoa.
O trabalho realizado nestes lugares ajudam mulheres de diferente faixa etária a
verem o outro lado dessa nova fase, percebendo que apesar do acidente e todo o tratamento de
recuperação, não se deve desistir de lutar. É nessas ONGs que muitas recebem a força que
precisam para enfrentar o preconceito interno e o externo, com união são capazes de vencer
qualquer outro obstáculo da vida.
Foto 8: União
Fotografia: Luana Paola
O primeiro passo para ajudá-las a seguir em frente é a doação de perucas, após o
ganho dos cabelos novos é notável a felicidades em seus olhos, a força que um objeto possui
em suas vidas. No caso das escalpeladas que sofrem com todas as dores e um processo longo
de tratamento, a perda dos cabelos modifica a sua beleza natural e resulta a perda da
autoestima. Essa apropriação com as perucas as fazem sentir que os olhares de indiferença
diminuem, resultando em forças para voltar à escola, trabalho e até mesmo fazer parte de uma
fotografia com a família, voltam a sorrir.
Perceber-se que em nossa sociedade a beleza visual é uma das subdivisões que
devemos nos encaixar, devido isto a peruca exerce esse poder de renovação em suas vidas e as
encoraja a seguir em frente. É justamente assim que a confiança em si volta a existir, com os
novos cabelos, pensam a melhor forma de trilhar o futuro e recuperar o tempo perdido. Por
conseguinte inicia um novo capítulo as histórias, mas dessa vez iniciando com a palavra
“superação”.
Foto 9: Espelho
Fotografia: Luana Paola
A autoestima segundo o dicionário Aurélio é a aceitação que a pessoa tem de si
mesma. Uma pessoa com autoestima gosta de se ver no espelho, sente-se mais segura para
sair de casa, tem mais facilidade para fazer amizades e acima de tudo possui autoconfiança.
Em contrapartida vem à baixa autoestima, um mal que atinge um grande número de
pessoas em especial mulheres. Isso acontece normalmente, quando estamos insatisfeitos com
algo em nosso corpo e acabamos de alguma forma fugindo dos olhares daqueles que nos
cercam. Sentimentos estes que as vítimas de escalpelamento relataram sentir após o incidente,
como afirmou uma voluntaria da ONG Orvam. Um dos maiores problemas, Tirando a dor dos
longos procedimentos como curativos e cirurgias, é o contato com o espelho.
Foto 10: O olhar
Fotografia: Luana Paola
A imagem delas refletidas no espelho gera um impacto imediato no estado de
espírito. Vindo a ser a primeira reação, a sua exclusão da sociedade. Passando a viver isoladas
e sentindo-se uma pessoa inferior as outras. Essa baixa autoestima pode causar transtornos
psicológicos, como depressão, transtorno de ansiedade e até fobia social. Segundo Ferat “Tão
sofrida quanto à perda dos cabelos e das sobrancelhas, é ter que cobrir com os lenços as
chagas de uma dor que corrói a autoestima, comprometendo o direito, tão feminino, a
vaidade” (VOLTOLINI 2003, p.1).
Darlene vítima do Escalpelamento
Foto 11:
Fotografia: Luana Paola
Essa reconstrução da autoestima é um processo longo que envolvem várias pessoas
entre eles, psicólogos, assistentes sociais, familiares, amigos e sociedade, porém o primeiro e
grande passo para essa recuperação é ter de volta o que se perdeu, seus cabelos, isso é
oferecido a elas na ONG, e o mais importante, elas mesmas fazem a confecção de suas
perucas, proporcionando a oportunidade delas construírem mais que sua autoestima, uma
nova história.
Foto 12: A peruca mais cobiçada da ORVAM
Fotografia: Luana Paola
Considerações finais
O escalpelamento é, na verdade, um problema que vai muito além da saúde; envolve
questões como autoestima, aceitação e a reconstrução de uma nova história e por vezes até
mesmo dentro de novas famílias. Conviver com uma nova aparência é um desafio que requer
superação dos limites impostos diariamente. Devido ao acidente, as vítimas cobrem as marcas
com lenços ou perucas, e deixam de realizar atividades que faziam parte de seu cotidiano por
vergonha ou por receio de passar por momentos constrangedores em decorrência da atual
aparência.
“Ao colocarem a peruca vemos de imediato o sorriso no rosto delas”, destacou
Cristina. Na Orvam e também em outros espaços de acolhimento, elas aprendem a lidar com
as sequelas deixadas pelo acidente, por verem que estão sendo valorizadas e tratadas como
qualquer outro ser humano, pois elas repudiam a pena das pessoas afirmando que não são
“nenhumas inválidas”, diz Cristina a presidente da instituição.
Nota-se nesse contexto a importância que a ONG dos Ribeirinhos Vítimas de
Acidente de Motor desempenha na vida das acidentadas, visto que a mesma ajuda elas a se
integrarem novamente na sociedade, ao disponibilizar cursos preparatórios, oficinas,
acompanhamento psicológico e acima de tudo fazendo-as recuperar sua autoestima e, mais
que, isso, tecendo com outros fios, novas histórias de vida.
Referências
NOTICIAS, combate da marinha ao escalpelamento beneficia cerca de 20 mil pessoas na
região amazonica Disponível em: http://www.defesa.gov.br/notícias/17364-combate-da-
marinha-ao-escalpelamento-beneficia-cerca-de-20-mil-pessoas-na-regiao-amazonica.
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