ensino mÉdio integrado À educaÇÃo ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ensino mÉdio...os...

12
ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: EXPANSÃO E DESAFIO PARA OS INSTITUTOS FEDERAIS Francisco das Chagas Silva Souza i Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN) RESUMO Desde princípios deste século, o governo federal brasileiro vem investindo numa política de expansão da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), cujo fortalecimento se deu com a Lei nº 11.892/08, que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). De acordo com essa Lei, os IFs podem ofertar a EPT, em todos os seus níveis e modalidades, destinando no mínimo 50% de suas vagas para cursos técnicos de nível médio, prioritariamente na forma integrada. A integração é bem vista pelos IFs haja vista que ela possibilita a superação da dualidade histórica da educação brasileira: para uns, a elite dirigente, uma formação propedêutica com o objetivo de preparar para o nível superior; para os demais, a maioria da sociedade, uma educação voltada para a formação de mão-de-obra destinada a atender as necessidades do mercado capitalista. A intensão é não apenas preparar adolescentes, jovens e adultos para o mundo do trabalho, mas também proporcionar a estes uma formação humana, tendo o trabalho como princípio educativo. Entretanto, apesar das expectativas positivas que a política de expansão dos IFs tem gerado, os avanços na EPT são acompanhados por um conjunto de desafios como: 1- a ausência de uma política de formação docente para atuar nessa modalidade educativa; 2- as dificuldades de se trabalhar na perspectiva da integração e da totalidade quando o que ainda predomina na formação acadêmica é a fragmentação e a hierarquização dos conhecimentos. Este artigo é um ensaio no qual discutimos a proposta da formação integrada e problematizamos os limites para a sua implantação de forma coerente com as finalidades e objetivos dos IFs presentes na Lei nº 11.892/08. Palavras-chave: Educação Profissional e Tecnológica, Ensino Médio Integrado, Currículo. INTRODUÇÃO Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel relevante na formação de cidadãos-profissionais. Embora sua atual denominação seja recente (criada em 2008), a história dessa instituição coincide com a história do ensino profissional público no Brasil, que teve o seu início em 1909, quando o então presidente da República Nilo Peçanha criou dezenove Escolas de Aprendizes Artífices marcando oficialmente a implantação do ensino técnico no nosso país. Durante a maior parte de sua existência, esse conjunto de instituições federais de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) sofreu várias alterações em sua denominação e esteve concentrado principalmente nas capitais dos estados e em cidades de grande porte. Contudo, na década em que essas instituições completariam um século de história, Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 01942

Upload: others

Post on 03-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: EXPANSÃO

E DESAFIO PARA OS INSTITUTOS FEDERAIS

Francisco das Chagas Silva Souzai

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN)

RESUMO

Desde princípios deste século, o governo federal brasileiro vem investindo numa política

de expansão da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), cujo fortalecimento se deu

com a Lei nº 11.892/08, que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e

Tecnologia (IFs). De acordo com essa Lei, os IFs podem ofertar a EPT, em todos os seus

níveis e modalidades, destinando no mínimo 50% de suas vagas para cursos técnicos de

nível médio, prioritariamente na forma integrada. A integração é bem vista pelos IFs haja

vista que ela possibilita a superação da dualidade histórica da educação brasileira: para

uns, a elite dirigente, uma formação propedêutica com o objetivo de preparar para o nível

superior; para os demais, a maioria da sociedade, uma educação voltada para a formação

de mão-de-obra destinada a atender as necessidades do mercado capitalista. A intensão é

não apenas preparar adolescentes, jovens e adultos para o mundo do trabalho, mas

também proporcionar a estes uma formação humana, tendo o trabalho como princípio

educativo. Entretanto, apesar das expectativas positivas que a política de expansão dos

IFs tem gerado, os avanços na EPT são acompanhados por um conjunto de desafios como:

1- a ausência de uma política de formação docente para atuar nessa modalidade educativa;

2- as dificuldades de se trabalhar na perspectiva da integração e da totalidade quando o

que ainda predomina na formação acadêmica é a fragmentação e a hierarquização dos

conhecimentos. Este artigo é um ensaio no qual discutimos a proposta da formação

integrada e problematizamos os limites para a sua implantação de forma coerente com as

finalidades e objetivos dos IFs presentes na Lei nº 11.892/08.

Palavras-chave: Educação Profissional e Tecnológica, Ensino Médio Integrado,

Currículo.

INTRODUÇÃO

Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um

papel relevante na formação de cidadãos-profissionais. Embora sua atual denominação

seja recente (criada em 2008), a história dessa instituição coincide com a história do

ensino profissional público no Brasil, que teve o seu início em 1909, quando o então

presidente da República Nilo Peçanha criou dezenove Escolas de Aprendizes Artífices

marcando oficialmente a implantação do ensino técnico no nosso país.

Durante a maior parte de sua existência, esse conjunto de instituições federais de

Educação Profissional e Tecnológica (EPT) sofreu várias alterações em sua denominação

e esteve concentrado principalmente nas capitais dos estados e em cidades de grande

porte. Contudo, na década em que essas instituições completariam um século de história,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301942

Page 2: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

verificamos uma expansão destas pelo interior dos estados como uma política pública do

governo federal brasileiro.

A política de expansão da EPT é vista com bons olhos pela sociedade,

principalmente porque representa uma oportunidade de desenvolvimento social e humano

para áreas conhecidas como os rincões dos estados brasileiros. Agora, essas populações

veem ampliadas as oportunidades de realizar um curso técnico de nível médio e/ou de

tecnologia em nível superior.

Para os cursos técnicos de nível médio são destinadas, no mínimo, 50% das vagas

abertas pela instituição. Esses cursos devem ocorrer prioritariamente na forma integrada

(BRASIL, 2008). Com isso, os IFs visam não só preparar adolescentes, jovens e adultos

para o mundo do trabalho, mas também proporcionar a estes uma formação humana,

tendo o trabalho como princípio educativo.

Neste artigo, objetivamos discutir o que vem a ser a proposta da integração e

levantar questões acerca das limitações que acompanham essa ideia de

complementaridade entre o ensino médio e a educação profissional. Destacamos duas

delas: 1- a ausência de uma política de formação docente para atuar nessa modalidade

educativa; 2- as dificuldades de se trabalhar na perspectiva da integração e da totalidade

quando o que ainda predomina na formação acadêmica é a fragmentação e a

hierarquização dos conhecimentos.

A expansão da Rede de Educação Profissional e Tecnológica no Brasil

A história da EPT no Brasil é marcada por datas e legislações que se tornaram

verdadeiros divisores de água no que diz respeito ao debate sobre educação e trabalho no

nosso país. A última grande mudança ocorreu em fins de 2008, quando o então presidente

Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, instituiu

a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os Institutos

Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.

Os Institutos Federais (IFs), de acordo com o artigo 2º da referida lei, são vistos

como:

[...] instituições de educação superior, básica e profissional,

pluricurriculares e multicampi, especializados na oferta de

educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades

de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e

tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, nos termos desta

Lei. (BRASIL, 2008).

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301943

Page 3: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

A criação dos Institutos Federais insere-se numa política voltada para a EPT

iniciada pelo governo Lula e que se caracterizou pela expansão de unidades dos CEFETs.

Aliás, é importante destacar que até a posse desse presidente, em 2003, havia apenas 140

unidades dessas escolas em todo Brasil. Durante os seus dois mandatos, entre 2003 e

2010, o Ministério da Educação criou 214 unidades previstas no plano de expansão da

Rede Federal de EPT. Além disso, algumas escolas técnicas foram federalizadas.

(BRASIL, 2009)

O plano de expansão da EPT se deu em três fases. A primeira, lançada em 2005,

após a publicação da Lei nº 11.195/05, anunciou a criação de 64 unidades de ensino. Entre

2007 e 2010 ocorreu a segunda fase da expansão, a qual teve como slogan “Uma escola

técnica em cada cidade-polo do país”. Nesta etapa, foram instaladas 150 novas unidades,

que somadas às 64 da Fase I, atingiu o total de 214 anunciado pelo Presidente Lula no

início do seu mandato. Ou seja, em 2010, quando terminou o governo Lula, o Brasil

possuía um número de 354 unidades de ensino de EPT, haja vista que às 214 criadas

durante esse governo, devemos somar as 140 escolas já existentes.

Em agosto de 2011, a Presidenta Dilma Rousseff anunciou a Fase III da expansão.

Na época, planejou-se que até 2014 o Brasil viria a ter mais 208 unidades dos IFs,

chegando a um total de 562 escolas em 512 municípios. (CONSELHO..., 2011).

Como não poderia ser diferente, a criação dos Institutos Federais e a política de

expansão da EPT pelos governos Lula e Dilma Roussef abriram uma série de debates.

Nestes se destacam aqueles que veem essas instituições como uma “revolução” na EPT

brasileira (PACHECO, 2011) e outros intelectuais que os percebem apenas como uma

imposição de um mercado capitalista sedento de mão-de-obra qualificada.

A discussão é polêmica e está longe de ser vista de forma simplista e reducionista.

Se é inegável que a política de expansão da EPT no Brasil nas suas variadas formas

atendem aos interesses do sistema capitalista no seu atual contexto em escala global,

também não podemos negar a capacidade de inclusão social e de desenvolvimento

regional que os Campi dos IFs trazem para as áreas mais remotas do nosso país. Da

mesma forma, não podemos desconsiderar a elevação do número de jovens de baixo

poder aquisitivo que conseguem se matricular num curso técnico ou tecnológico nos IFs

por meio da política de cotas, um número, aliás, ainda baixo se tomarmos como referência

a realidade nacional.

Os limites desse texto e a complexidade do tema nos impedem de adentrar mais

densamente nesse debate. Assim, iremos restringir a nossa discussão a um aspecto que

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301944

Page 4: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

não pode ser esquecido neste espaço: a integração entre a “formação geral” e a “formação

profissional” nos cursos técnicos de nível médio. Perguntamos: o que é esse ensino médio

integrado? O que é necessário para que ele aconteça satisfatoriamente nas instituições de

EPT?

Ensino Médio Integrado à Educação Profissional e Tecnológica: histórico e

princípios

Como observa Ciavatta (2012, p. 83), continuamente são criados novos termos

para expressar novas realidades ou para projetar ideologicamente novas ideias que

esperamos se tornar realidade. Formação integrada é um exemplo disso. Com relação à

EPT, o referido termo está presente no Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004, que

regulamenta o parágrafo 2º do artigo 36 e os artigos 39 a 41 da Lei nº 9.394/96, que

estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Conforme o artigo 4º do Decreto nº 5.154/04, “a educação profissional técnica de

nível médio (...) será desenvolvida de forma articulada com o ensino médio”. O parágrafo

1º desse Artigo define as formas pelas quais se dará essa articulação: “integrada,

oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental (...)” ou

“concomitante, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental ou

esteja cursando o ensino médio (...)” (BRASIL, 2004, grifo nosso).

Mas o que significa integrar? Nos dicionários da língua portuguesa, o verbo

integrar é considerado como o mesmo que completar, inteirar, incorporar, unir-se

formando um todo harmonioso, fazer entrar num conjunto ou num grupo.

No âmbito da educação, o termo é comumente usado quando nos referimos às

múltiplas mediações históricas que concretizam os processos educativos. Para Ciavatta:

No caso da formação integrada ou do ensino médio integrado ao

ensino técnico, queremos que a educação se torne geral se torne

parte inseparável da educação profissional em todos os campos

onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos

produtivos, seja nos processos educativos como a formação

inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior (2012, p.

84).

Dessa maneira, a concepção de formação integrada possibilita a superação da

dualidade histórica da educação brasileira: para uns, a elite dirigente, uma formação

propedêutica preparatória para o nível superior; para os demais, a maioria da sociedade,

uma educação voltada para a formação de mão-de-obra destinada a atender as

necessidades do mercado capitalista. Temos, assim, uma divisão social do trabalho que

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301945

Page 5: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

separa a ação de executar (o trabalho manual) das de pensar, dirigir ou pensar (o trabalho

intelectual).

A integração entre o ensino médio e a EPT sugere um rompimento com o dualismo

estrutural da educação brasileira e fundamenta-se na concepção de trabalho como

princípio educativo no sentido de que este forma trabalhadores capazes de atuar como

dirigentes e cidadãos. Pode-se afirmar que a ideia de ensino médio integrado tem como

alicerce uma literatura cujos expoentes são Marx, Gramsci, Lukács dentre outros.

Portanto, é na educação socialista que encontramos a origem remota da formação

integrada como destaca Ciavatta (2012, p. 86).

No Brasil, o fortalecimento da ideia de integração entre a formação geral e a EPT

se dá no cenário político dos anos 1980, marcado pelas críticas ao tradicional dualismo

da sociedade e da educação brasileira e pelas lutas em prol da democracia e em defesa da

escola pública. É nesse quadro que ocorre a elaboração da Constituição de 1988 e, alguns

anos após, a criação da nova LDB que respalda a possibilidade de integração.

Os anos 1990 foram marcados por uma política educacional que estabeleceu o

divórcio entre o ensino médio e a educação profissional (MOURA, 2013, p. 152), porém,

o novo século se inicia com mudanças políticas trazidas pela eleição do Presidente Lula

que, em 2004, através do Decreto nº 5.154/04, não apenas tornou possível a integração,

mas também revogou o Decreto nº 2.208/97, que impedia essa prática.

Após esse breve histórico sobre a ideia de formação integrada na educação

brasileira, torna-se necessário apresentarmos as concepções e princípios dessa integração

que, segundo Ramos (2007; 2010) seriam: 1- a formação omnilateral; 2- a

indissociabilidade entre educação profissional e educação básica; 3- a integração de

conhecimentos gerais e específicos como totalidade. São pressupostos que se

“diferenciam significativamente do que se vem configurando como uma natureza

profissionalizante dessa etapa da educação básica”. (RAMOS, 2010, p. 54)

O primeiro sentido expressa uma concepção de formação humana, com base na

integração de todas as dimensões da vida no processo formativo, quais sejam: o trabalho,

a ciência e a cultura:

A integração, no primeiro sentido, possibilita formação

omnilateral dos sujeitos, pois implica a integração das dimensões

fundamentais da vida que estruturam a prática social. Essas

dimensões são o trabalho, a ciência e a cultura. O trabalho

compreendido como realização humana inerente ao ser (sentido

ontológico) e como prática econômica (sentido histórico

associado ao respectivo modo de produção); a ciência

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301946

Page 6: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

compreendida como os conhecimentos produzidos pela

humanidade que possibilita o contraditório avanço produtivo; e a

cultura, que corresponde aos valores éticos e estéticos que

orientam as normas de conduta de uma sociedade. (RAMOS,

2007, p. 04)

O trabalho é percebido como parte do processo de formação e de realização

humana e não apenas como uma prática econômica que se vende, tal qual ocorre na

sociedade capitalista. Ele é a ação humana de interação com a realidade para a satisfação

de necessidades e produção de liberdade. Nesse sentido, trabalho não é emprego, mas

produção, criação, realização humanas. Compreender o trabalho nessa perspectiva é

compreender a história da humanidade, as suas lutas e conquistas mediadas pelo

conhecimento humano. (RAMOS, 2007; 2010)

Ao agir sobre o meio material o homem se diferencia dos animais pois, ao

contrário destes últimos, ele “faz da sua atividade vital um objeto de sua vontade e

consciência. (...) reproduz a natureza, o que lhe confere liberdade e universalidade”. Ao

assim proceder, o homem produz conhecimento que “sistematizado sob o crivo social e

por um processo histórico, constitui a ciência”. (RAMOS, 2010, p. 48-49)

Essa concepção de formação omnilateral vê a cultura num sentido ampliado,

como a articulação entre o conjunto de representações e comportamentos e o processo

dinâmico de socialização, constituindo o modo de vida de uma população determinada.

(RAMOS, 2010, p. 49)

O segundo princípio da integração, a indissociabilidade entre educação

profissional e educação básica, aponta para a necessidade de profissionalizar jovens e

adultos para o mundo do trabalho.

Simões (2007) destaca que diante do cenário brasileiro do trabalho informal e do

subemprego, a formação técnica, mesmo subordinada aos interesses do capital, tem

assumido uma importância para a emancipação e o desenvolvimento pessoal e coletivo

de jovens trabalhadores. Na sua pesquisa sobre jovens de camadas populares que

realizaram cursos técnicos, esse autor conclui que:

O Ensino Técnico articulado com o Ensino Médio,

preferencialmente Integrado, representa para a juventude uma

possibilidade que não só colabora na sua questão da

sobrevivência econômica e inserção social, como também uma

proposta educacional, que na integração de campos do saber,

torna-se fundamental para os jovens na perspectiva de seu

desenvolvimento pessoal e na transformação da realidade social

que está inserido. A relação e integração da teoria e prática, do

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301947

Page 7: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

trabalho manual e intelectual, da cultura técnica e a cultura geral,

interiorização e objetivação vão representar um avanço conceitual

e a materialização de uma proposta pedagógica avançada em

direção à politecnia como configuração da educação média de

uma sociedade pós-capitalista. (SIMÕES, 2007, p. 84)

Para Ramos (2007, p. 10-11), enquanto o Brasil for um país marcado pela

exploração capitalista da mão-de-obra dos trabalhadores, estes não podem aguardar a

conclusão dos seus estudos para só depois ingressar em uma atividade econômica. Para

ela, “a forma integrada do ensino médio à educação profissional na sociedade atual

apresenta-se como condição necessária para a travessia em direção ao ensino médio

politécnico e à superação da dualidade educacional, em busca da efetiva transformação

da estrutura social”. Ademais, afirma Ramos (ibidem, p. 11):

O ensino técnico é uma experiência na qual os jovens, ao se

relacionarem com a técnica e a tecnologia – ciência materializada

em força produtiva – apreendem o significado formativo do

trabalho, não no sentido moralizante que sustentou as políticas

educacionais no início no século XX, mas sob o princípio

ontológico de que a plena formação humana só pode ser

alcançada à medida que o ser desenvolve suas capacidades de

decisão e ação sustentadas pela unidade entre trabalho intelectual

e manual.

O terceiro sentido da formação integrada, a integração de conhecimentos gerais e

específicos como totalidade, rompe com a fragmentação do conhecimento e a

hierarquização deste impostas pelo paradigma positivista.

Uma visão cartesiana da ciência leva-nos a compreender que disciplinas como

história, geografia, física, química, biologia, dentre outras, fornecem-nos as teorias,

enquanto que as disciplinas especificamente técnicas as aplicam na prática. Assim, teoria

e prática tornam-se campos separados e até oponentes.

(...) nenhum conhecimento específico é definido como tal se não

consideradas as finalidades e o contexto produtivo em que se

aplicam. Queremos dizer ainda que, se ensinado exclusivamente

como conceito específico, profissionalizante, sem sua vinculação

com as teorias gerais do campo científico em que foi formulado,

provavelmente não se conseguirá utilizá-lo em contextos distintos

daquele em que foi aprendido. Neste caso, a pessoa poderá até

executar corretamente procedimentos técnicos, mas não poderá

ser considerado um profissional bem formado. (RAMOS, 2007,

p. 14)

Como afirma Ramos (2007, p. 15-16), a historicidade dos fenômenos e do

conhecimento dá vida aos conteúdos de ensino e representa o movimento da humanidade

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301948

Page 8: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

em busca do saber. Ela expressa a capacidade humana de produzir conhecimentos e tomar

decisões quanto ao seu próprio destino, tornando-se sujeito e não objeto de uma trama

social que desconhece. Além disso, permite-nos ver a nós mesmos como intelectuais e

como potenciais dirigentes dos rumos que nossas vidas e que a sociedade pode vir a

tomar. Essas reflexões são necessárias no ensino médio porque ele é uma etapa

fundamental na formação dos sujeitos, haja vista a relação que se manifesta entre ciência

e forças produtivas. É no ensino médio que os sujeitos estão fazendo escolhas, dentre

estas, está a formação profissional.

Considerações finais e recomendações

Realizada uma síntese do histórico da formação integrada e dos princípios pelos

quais ela é pensada, faz-se necessário levantarmos algumas considerações com vistas a

fomentar o debate acerca dessa integração entre ensino médio e EPT nos Institutos

Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.

A expansão dos IFs para o interior dos estados e para as áreas periféricas dos

grandes centros urbanos tem sido acompanhada de muitos entusiasmos, o que não poderia

ser diferente graças à reconhecida importância dos seus campi para a promoção do

desenvolvimento local. Além disso, como destaca o documento base do ensino médio

integrado, elaborado pelo MEC, “a ampliação da oferta do ensino médio integrado nas

instituições públicas de educação pode contribuir para uma efetiva (re)construção de uma

identidade própria e, ao mesmo tempo, significativa, para a vida de seus grupos

destinatários” (BRASIL, 2007, p. 27).

Todavia, não são poucos os desafios que essa instituição enfrenta internamente

para manter a qualidade do seu ensino e promover um ensino médio integrado à educação

profissional, o maior dos seus objetivos, uma vez que, segundo o artigo 8º da Lei nº

11.892/08, no mínimo 50% das vagas ofertadas em cada exercício deverão ser destinadas

a essa modalidade.

Destacaremos aqui dois dentre os vários desafios que os IFs enfrentam quanto à

formação integrada: 1- a ausência de uma política de formação de professores para a

educação profissional; e 2- a dificuldade de se pôr em prática um currículo baseado na

integração entre as disciplinas ditas como de formação geral, propedêuticas, e aquelas de

formação específica, técnicas.

No que tange à formação de professores para a educação profissional esta é uma

“ilustre desconhecida” e pouco tem ocupado as atenções da academia (URBANETZ,

2012). Historicamente, essa formação tem se dado por ações pontuais e por projetos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301949

Page 9: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

pouco consistentes e descontínuos (MACHADO, 2008). Isso é preocupante, pois como

afirma Moura (2008, p. 30): “os professores, técnico-administrativos e dirigentes das

instituições de EPT, principais sujeitos envolvidos juntamente com os estudantes,

necessitam ser muito bem formados e qualificados profissionalmente”.

Se um diploma em cursos de licenciatura é o requisito mínimo para o exercício da

docência na educação básica, o mesmo não ocorre no ensino superior e na EPT. Para

Moura (2008, p. 31), esse é um problema estrutural do nosso sistema educacional, haja

vista que, se para exercer qualquer profissão liberal no Brasil é preciso uma formação

profissional, esse rigor não ocorre no magistério superior e na EPT. Para esse autor, se

essa exigência não existe para o exercício da docência da mesma maneira que ocorre nas

outras profissões, isso demonstra que a profissão docente “não tem reconhecimento social

e do mundo do trabalho compatível com sua importância para a sociedade” (ibidem, p.

31).

Entretanto, é importante destacar que a posse de um diploma de licenciatura não

significa que esse professor tenha o perfil desejado para lecionar na educação profissional

dadas as especificidades dessa modalidade educativa. Para Machado (2008, p. 18), esse

perfil profissional “engloba, além das especificidades das atividades pedagógicas

relativas ao processo de ensino-aprendizagem neste campo, as dimensões próprias do

planejamento, organização, gestão e avaliação desta modalidade educacional nas suas

íntimas relações com as esferas da educação básica e superior”.

Na verdade, a educação profissional e outras modalidades de ensino como a

educação de jovens e adultos e a educação especial não têm recebido maiores atenções

nos cursos de licenciatura. Logo, um grande número de licenciados concluem seus cursos

sem nunca terem recebido uma preparação pedagógica para atuar na educação

profissional, por exemplo.

Ora, se os professores licenciados têm essas limitações, o que podemos dizer

daqueles egressos de cursos de bacharelado e que não tiveram a formação pedagógica

mínima para o exercício da docência? A literatura sobre a formação de bacharéis ressalta

a forte presença da educação bancária a que estes são submetidos (SOUZA; OLIVEIRA,

2013). A situação torna-se mais grave quando lembramos que é comum na prática docente

a reprodução de modelos.

Diante desse problema, algumas soluções são apontadas. Uma delas é a criação

de cursos de licenciatura para a educação profissional “absolutamente essenciais por

serem o espaço privilegiado da formação docente inicial e pelo importante papel que

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301950

Page 10: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

podem ter na profissionalização docente (MACHADO, 2008, p. 15). Moura (2008)

concorda com a ideia de criação de uma licenciatura para essa modalidade e também

sugere a criação de cursos de formação continuada para os professores que já estão

atuando na EPT.

Quanto à dificuldade de colocarmos em prática um currículo integrado, composto

por disciplinas propedêuticas e técnicas, isso ocorre em função da nossa formação ainda

ser muito influenciada pelo paradigma positivista, que divide e hierarquiza o

conhecimento, dificultando-nos pensar em termos de totalidade. Sobre esse aspecto,

analisa Ramos (2007, p. 16-17):

Essa concepção não se confunde com tornar as disciplinas da

formação geral somente como instrumentais à formação

profissional, tal como era típico dos cursos profissionalizantes

organizados sob a égide da Lei n. 5.692/71 e também como

sugerem as atuais diretrizes curriculares nacionais da educação

profissional técnica. É uma outra postura epistemológica (...) que

se exige, recorrendo a princípios e pressupostos da

interdisciplinaridade e da visão totalizante da realidade. Não se

trata de somatório, superposição ou subordinação de

conhecimentos uns aos outros, mas sim de sua integração na

perspectiva da totalidade. (Grifo nosso)

Essas observações nos reportam aos sentidos da integração que mencionamos em

páginas anteriores e nos estimulam revisar nossas práticas pedagógicas enquanto

professores da EPT:

1- A fragmentação do conhecimento por meio das disciplinas de “formação geral” e

“formação especifica” limitam a proposta de formação humana omnilateral. É

necessário saímos da nossa zona de conforto que é a disciplina e nos aventurarmos

por outras áreas do conhecimento até então estranhas a nós.

2- É preciso romper com uma noção solidificada de ciência como verdade absoluta

e vê-la como um conhecimento historicamente construído.

3- Urge que pensemos o par C&T de forma mais realista e humanizante.

4- Necessitamos religar saberes considerados oponentes, a exemplo de ciência e

senso comum, verdade e mito, teoria e prática...

É óbvio que executá-las é uma tarefa difícil pois, parafraseando Morin (2008),

isso exige não só repensar a reforma, mas também reformar o pensamento. Na EPT isso

se torna um desafio ainda maior haja vista que grande parte dos seus professores são

bacharéis egressos de cursos nas áreas das ditas “ciências duras”. Muitos acreditam que

para ser professor, basta conhecer o conteúdo e ter o conhecimento prático.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301951

Page 11: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

O debate é longo e exaustivo mas não menos importante e necessário, pois os IFs

precisam se empenhar na formação humana e “garantir ao adolescente, ao jovem e ao

adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a

atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade

política”. (CIAVATTA, 2012, p. 85)

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n. 5.154/96. Brasília, Diário Oficial da União, p. 18, 26 jul. 2004.

______. Ministério da Educação. Educação profissional técnica de nível médio

integrada ao ensino médio: documento base. Brasília, 2007.

______. Ministério da Educação. Expansão da Rede Federal de Educação

Profissional, Científica e Tecnológica. Brasília, 2009.

CONSELHO NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES DA REDE FEDERAL DE

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA. Governo anuncia

expansão da Rede Federal de Educação. Brasília, 2011. Disponível em:

<http://www.conif.org.br/component/content/article/14-midia/ultimas-noticias/198-

governo-anuncia-expansao-da-rede-federal-de-educacao> Acesso em: 15 fev. 2014.

CIAVATTA, Maria. A formação integrada: a escola e o trabalho como lugares de

memória e identidade. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS,

Marise (Orgs.). Ensino Médio Integrado: concepções e desafios. 3. ed. São Paulo:

Cortez, 2012. p. 83-106.

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. O trabalho como

princípio educativo no projeto de Educação integral de trabalhadores – excertos.

Disponível em: <

http://www.pb.iffarroupilha.edu.br/site/midias/arquivos/201179171745208frigotto_ciav

atta_ramos_o_trabalho_como_principio_educativo.pdf> Acesso em: 16 mar. 2014.

MACHADO, Lucília R. de S. Diferenciais inovadores na formação de professores para

a educação profissional. Revista Brasileira da Educação Profissional e Tecnológica,

v. 1, n. 1. Brasília-DF: MEC/SETEC, p. 8-22, 2008.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MOURA, Dante H. A formação de docentes para a educação profissional e tecnológica.

Revista Brasileira da Educação Profissional e Tecnológica, v. 1, n. 1. Brasília-DF:

MEC/SETEC, p. 23-38, 2008.

______. Ensino Médio e Educação Profissional no Brasil nos anos 2000: movimentos

contraditórios. In: ______. Produção de conhecimento, políticas públicas e formação

docente em educação profissional. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2013. p. 141-

200.

RAMOS, Marise. Concepção do ensino médio integrado. Natal, 2007. Disponível em:

<http://www.iiep.org.br/curriculo_integrado.pdf> Acesso em: 15 mar. 2014.

______. Ensino médio integrado: ciência, trabalho e cultura na relação entre educação

profissional e educação básica. In: MOLL, Jaqueline. Educação profissional e

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301952

Page 12: ENSINO MÉDIO INTEGRADO À EDUCAÇÃO ...uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/219 ENSINO MÉDIO...Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) têm assumido um papel

tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e possibilidades. Porto

Alegre: Artmed, 2010.

PACHECO, Eliezer. Institutos Federais: uma revolução na educação profissional e

tecnológica. In: _____. Institutos Federais: uma revolução na educação profissional e

tecnológica. Brasília: Fundação Santillana; São Paulo: Moderna, 2011.

SIMÕES, Carlos A. Juventude e Educação Técnica: a experiência na formação de

jovens trabalhadores da Escola Estadual Prof. Horácio Macedo/CEFET-RJ. 2007.

138 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense,

Niterói, 2007.

SOUZA, Francisco das Chagas S.; NASCIMENTO, Viviane S. de O. Bacharéis

professores: um perfil docente em expansão na Rede Federal de Educação Profissional e

Tecnológica. In: MOURA, Dante H. (Org.). Produção de conhecimento, políticas

públicas e formação docente em educação profissional. Campinas-SP: Mercado das

Letras, 2013. p. 409-434.

URBANETZ, Sandra T. Uma ilustre desconhecida: a formação docente para a educação

profissional. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 863-883, set./dez.

2012.

i Doutor em Educação (UFRN) e professor do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional do

IFRN/Natal.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301953