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JUVENTUDE(S): REABRINDO QUESTÕES
Daniela Medeiros de Azevedo Prates
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ NECCSO
Elisabete Maria Garbin
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Departamento de Ensino e
Currículo/NECCSO
RESUMO
O presente estudo é desdobramento de recorte da Tese de Doutorado e assume como
objetivo, no momento, colocar em questão a emergência da juventude, compreendendo
que se trata de uma categorização de sujeito constituída a partir de determinadas
contingências históricas, econômicas, sociais e culturais, vindo a diferir-se de jovens, uma
categoria empírica presente em todas as formações sociais. Tal empreendimento tem
como referência a articulação entre produções teóricas debatidas e desenvolvidas junto
ao grupo de estudos sobre juventudes e as análises pós-estruturalistas, entre as quais se
destacam as discussões foucaultianas sobre governamento. Infere que a crescente
racionalização dos modos de governar tomando como instrumento a educação produz
condições para separação das noções de infância e juventude, sobretudo a partir da
paulatina separação de classes de alunos presentes na construção da escola moderna.
Imbricado as novas formas de pensar da época, a busca de constituição dos sujeitos
juvenis também passava pelo fórum religioso, o qual lançou mão de uma série de
estratégias para este fim, e que excetuando especificidades, também estava articulado às
concepções que se formavam junto ao Estado Moderno. Apesar do papel fundamental da
escola na educação dos sujeitos a nova ordem, seu desenvolvimento esteve atrelado ao
trabalho de crianças e jovens durante a industrialização. As profundas transformações
ocorridas nos diferentes âmbitos, com maior ênfase a partir do pós-guerra permitiram a
emergência da juventude como um tempo de espera, embora distintas condições e
experiências perpassem o cotidiano dos jovens, desafiando a pensar diferentes modos de
viver este tempo de espera, em diferentes juventudes que se produzem, sobretudo em
tempos de rearticulação da racionalidade liberal ao neoliberalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Juventudes. Educação. Governamento
A EMERGÊNCIA DA JUVENTUDE
A juventude não é apenas uma palavra que distingue determinados sujeitos dos
velhos, das crianças e dos adultos. Não se restringe a uma definição marcada pelo
desenvolvimento biológico ou pela maturação psicológica, pode ser pensada como uma
idealização de sujeito construído na modernidade, como argumenta Ariès (2011). Não é
apenas uma palavra como considera Bourdieu (1990) ao se referir ao caráter simbólico
da juventude. Corroboramos com Margulis e Urresti (1996) ao afirmar que a juventude é
mais que uma palavra, é uma condição, relacionada à construção histórica, econômica,
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social e cultural em que se imbricam uma série de aspectos como idade, geração, classes
sociais, instituições, gênero.
Ariès (2011), ao analisar a história social da infância, argumenta que crianças e
jovens eram muitas vezes indissociáveis numa noção ambígua de infância que abrangia
o período de dependência até a vida adulta durante a Idade Média. O período amplo e de
limites imprecisos começa a se diferenciar no século XVIII com a separação da primeira
infância e adolescência, conforme as concepções da época e sendo restrito a determinados
grupos sociais.
Embora houvesse concepções acerca das idades da vida durante os séculos XIV
ao XVIII relacionadas aos ciclos da vida ou a organização social, a duração da infância
provinha da indiferença aos fenômenos propriamente biológicos, numa época em que
imperava a forte relação de dependência ao próprio sistema feudal, permitindo que as
palavras ligadas à infância fossem comumente empregadas para caracterizar a condição
de submissão dos homens nas funções sociais. Somente nas famílias nobres do século
XVII, tornou-se mais frequente o uso de vocábulos para designar a infância, porém ainda
não consistia numa necessidade de separar crianças de jovens, mesmo que já estivesse se
formando o sentimento de infância que viria a inspirar a educação no século XX, através
da preocupação de eclesiásticos, homens da lei e moralistas no ensino da disciplina e
costumes da época (ARIÈS, 2011).
A preocupação dos educadores em proteger os estudantes das tentações da vida,
buscou inspiração nas fundações monásticas do século XIII e XIV, que procuravam
educar os jovens (embora não os dissociassem totalmente dos adultos) ao modo de vida
particular de suas comunidades, primeiramente dispondo-se somente aos clérigos e,
posteriormente, estendendo-se aos leigos.
Varela e Alvarez-Uria (1992) consideram que moralistas e religiosos do
Renascimento criaram táticas para conservar sua autoridade e influência abaladas pelo
Estado Absolutista Monárquico e pelas dissidências no seu próprio seio. Destacam o
desenvolvimento de variadas práticas educativas que tinham os jovens como objeto de
moralização e apropriação da fé num momento em que a Europa se dividia entre católicos
e protestantes. Os reformadores católicos desenvolveram práticas educativas que
reformaram o próprio clero a fim de regular a vida e os costumes. Os moralistas
elaboraram programas educativos destinados à instrução dos jovens que tomavam a
educação como elemento chave para a tentativa de naturalização de uma sociedade de
classes e estamentos, criando a concepção de diferentes infâncias, conforme o
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pertencimento social. Os protestantes, por sua vez, defendiam que se iniciasse desde cedo
a aprendizagem da fé e dos bons costumes.
Varela e Alvarez-Uria (1992) consideram que, a partir do século XVI, emergiram
instituições fechadas como colégios, seminários, albergues, prisões, hospícios, hospitais,
destinadas ao recolhimento e instrução dos jovens. As instituições tinham em comum a
função de ordenar e regulamentar os espaços, diferindo seus métodos e conteúdos
conforme a classe social a que se destinavam. A adoção de programas voltados ao
recolhimento dos pobres, sobretudo em países católicos, tinha como pilares a adequação
aos ofícios, a moralização e fabricação de súditos virtuosos, vindo a substituir
paulatinamente a concepção de caridade a uma nova gestão das populações (VARELA E
ALVAREZ-URIA, 1992).
Os jesuítas, influenciados pelas teorias pedagógicas dos humanistas, substituíram
os métodos de intimidação por intervenções mais sutis e individualizadoras. O aluno
passou por um processo de aprisionamento, vigilância e separação, seguindo
comportamentos e princípios correspondentes à relação de tutelamento ao mestre,
autoridade moral. Conforme Varela e Alvarez-Uria (1992), a partir do governo dos jovens,
desenvolveram-se práticas que possibilitaram consolidar saberes de caráter pedagógico,
relacionados à manutenção da ordem e da disciplina, estabelecendo níveis de conteúdo e
inventando métodos de ensino.
Instaurou-se um modo específico de educação que rompeu com as práticas
habituais de formação da nobreza e de aprendizagem dos ofícios das classes populares,
que até então se desenvolviam através dos laços com a comunidade. Os colégios passaram
a ser separados do poder político e seus colegiais foram separados das suas comunidades,
sendo individualizados, afastando-se do controle, do acesso ao saber e a seus instrumentos
que passaram a ser domínio do professor (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992).
Assim, os colégios dos jesuítas, dos doutrinários ou dos oratorianos presentes nos
século XV ao XVII substituíram as comunidades e conduziram a sala de aula da escola
medieval à noção de instituição. A partir do século XV os estudantes passaram a ser
divididos em grupos dirigidos por um mesmo mestre e num mesmo local; no decorrer do
século, passou a ser designado um mestre para cada grupo específico, porém ainda no
mesmo local. O processo de separação dos grupos por mestres e, finalmente, por classes
em espaços distintos foi oriundo da necessidade de adaptar o ensino do mestre ao nível
do aluno; uma distinção que dava mais atenção ao grau de instrução do que a idade, mas
que de certa forma criava separações etárias (ARIÈS, 2011).
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Conforme Ariès (2011), o processo de separação por classes, relacionado à
adaptação do ensino foi fundamental para a emergência do sentimento de infância e
juventude, indiferente na formação dos pedagogos medievais, conservadores e
humanistas. Foram os reformadores escolásticos do século XV e, sobretudo, os jesuítas,
oratorianos e jansenistas do século XVII que passaram a diferenciar seus métodos dos
métodos medievais de simultaneidade ou repetição, presente na pedagogia humanista, e
a se preocupar com o método adequado ao conhecimento da particularidade infantil.
Apesar da persistência da indiferença à noção de idade, a partir do século XV e,
sobretudo, nos séculos XVI e XVII, o colégio passou a dedicar-se à formação de jovens,
inspirando-se nos modelos jesuítas e na literatura pedagógica de Port-Royal, passando a
utilizar a disciplina oriunda do modelo eclesiástico ou religioso como instrumento de
aperfeiçoamento moral e espiritual como valor intrínseco da edificação e ascese, adaptada
a um sistema de vigilância nos colégios. Embora o colégio possibilitasse prolongar a
noção de infância, no século XVII poucos tinham acesso aos estudos já que a duração dos
ciclos escolares estava relacionada às classes de pertencimento e ao permanecimento de
uma infância curta, a qual era rompida pela precocidade do ingresso no exército e pelo
casamento.
A partir do final do século XVIII, a escolaridade passou a preocupar-se com o
ciclo integral de crianças e jovens, que tinham em média quatro a cinco anos no mínimo
de estudos. No entanto, essa prolongação da infância durante o ciclo escolar permanecia
restrita às condições sociais, abrangendo as famílias de burgueses, juristas e eclesiásticos.
Conforme Ariès (2011), as classes de idade se organizaram em torno das
instituições. Assim, a adolescência passa a ser distinguida a partir do final do século XVIII
e, sobretudo, entre os séculos XIX e XX, através da conscrição do serviço militar; da
mesma forma que a infância longa passa a ser constituída paulatinamente entre os séculos
XVI e XVIII através da noção escolar.
Varela e Alvarez-Uria (1992) argumentam que a escola obrigatória, assim como a
concepção da família conjugal, surgiu como instrumento de intervenção de um conjunto
de especialistas para educar as classes populares de acordo com a ordem social burguesa;
sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX e início do século XX. Até então, o
trabalho infantil inviabilizou que se expandisse a escolarização.
Conforme Saintout (2007), a juventude começou a ser pensada como um momento
de espera, como moratória, no momento em que a concepção de progresso tornou-se o
marco de um projeto unificador da vida com o desenvolvimento da sociedade de classe
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industrial. Como ressalta Valenzuela (1998), a ampliação no tempo de preparação para a
inserção no trabalho e a constituição de família era restrita as condições sociais entre os
séculos XVIII e XIX, somente através dos processos de urbanização, crescimento
econômico e desenvolvimento dos meios de comunicação tornou-se possível ampliar as
expectativas sobre os jovens de classe média, sobretudo, no contexto pós-guerra.
Reguillo (2003) destaca três aspectos que permitiram a invenção da juventude.
Em primeira análise, a relação do crescimento populacional com a necessidade de
restabelecer o equilíbrio entre emprego e produção, criando um período de espera para o
ingresso ao mundo do trabalho, através da escola, como uma etapa de instrução. O
segundo aspecto analisado se refere à universalização dos direitos humanos para evitar
que se repetissem os eventos da Segunda Guerra, implicando a legitimação dos direitos
dos jovens que passam a ser amparados pelo Estado. Em última análise, considera que a
emergência da juventude no período pós-guerra ocorre concomitantemente ao advento da
indústria cultural que passa a interpelar os jovens como sujeitos de consumo.
Entre a I e a II Guerra Mundial, houve a participação de parcelas de jovens em
grupos como a organização juvenil soviética komsolnol desde 1920 e as Juventudes
Hitleristas na Alemanha, os Barrila Fascistas na Itália, a Mocidade Portuguesa na
ditadura de Salazar e os Plinianos, jovens participantes da Ação Integralista Brasileira na
década de 30 (FEIXA, 2004). Ao final da Segunda Guerra Mundial, parece ter havido o
desencantamento da juventude europeia, abreviando a passagem à vida adulta.
A situação passa a se modificar com o crescimento econômico no período pós-
guerra a partir do aumento da capacidade aquisitiva dos jovens, com a escolarização em
massa, com a difusão dos meios de comunicação, da sociedade de consumo e com o
nascimento de um mercado juvenil, o que possibilitou emergir a noção de cultura juvenil
como categoria, segundo define Feixa (2004). Conforme o autor, foi fundamental, neste
processo, a ampliação da permanência dos jovens em instituições educativas: “A escola
– high school [ensino médio] – se converteu no centro da vida social de uma nova
categoria de idade (tipicamente americana): os teenager” (FEIXA, 2004, p. 308).
Canevacci (2005) argumenta que sociologicamente a faixa etária nomeada como
jovem é recente, o jovem teenager afirma-se a partir da visibilidade musical e fílmica das
metrópoles da década de 50. Constitui-se no após a Segunda Guerra, momento em que há
a ascensão de culturas juvenis. Até então, os jovens não existiam como faixa etária, pois
transitavam diretamente da adolescência, entendida de forma ampla, para o trabalho.
Inclusive, eram poucos aqueles que ficavam isentos do trabalho na adolescência para
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serem educados para o mesmo mais tarde. A posterior introdução da escola de massa tem
grande relevância para que emerja, de forma socialmente abrangente, essa parcela da
população isenta do trabalho. Como sustenta o autor, escola, mídia e metrópole
constituem os três eixos que associados constituíram o jovem como categoria social.
A década de 60 foi marcada pelos movimentos políticos e sociais, mas também
pelas novas formas de sentir. O contexto europeu vive a emergência do Estado de Bem-
Estar Social, um período de plena ocupação, de crescente capacidade aquisitiva, da
difusão da sociedade de consumo, dos meios de comunicação de massas, da escolarização
e da ampliação do tempo de permanência nas instituições. Fatores esses que
possibilitaram o surgimento do conceito de cultura juvenil, conforme mencionado
anteriormente, e propiciaram a conversão da juventude como idade da moda, conforme o
entendimento de autores como Hall e Jefferson do Centre of Contemporany Cultural
Studies da Universidade de Birmingham (HALL & JEFFERSON, 1983 apud FEIXA,
2004).
Para tais pesquisadores a cultura juvenil estava distante de ser homogênea. Ao
contrário, diversos grupos organizados estavam presentes no pós-guerra. Na Grã-
Bretanha os teddy boys, rockers, mods, skinheads, que seriam entendidos como
expressões de resistência dos jovens das classes trabalhadoras ante a hegemonia cultural
das classes dominantes. Ainda estavam presentes diversas formas de dissidência dos
jovens de classe média, como o protesto estudantil que se difundiu nas universidades
convertendo-se num movimento de direitos civis, bem como sua posterior convergência
da chamada beat generation que veio a configurar movimento hippie e os protestos
estudantis que culminaram em maio de 1968.
Os movimentos juvenis atuaram como metáfora da mudança social que se
constituía: novas formas de consumo, uso do tempo livre, vestimentas, (novas) relações
entre gêneros e idades num contexto de crise da sociedade industrial clássica (FEIXA,
2004).
No caso latino americano, acrescenta-se ainda um período marcado pelas
ditaduras militares, em que houve a participação de uma parcela de jovens em
movimentos sociais. Conforme a arguição de Abramo (2007), particularmente neste
momento no Brasil a questão da juventude passa a ter maior visibilidade pela oposição
dos jovens secundaristas e universitários de classe média ao regime autoritário, com o
engajamento dos partidos de esquerda, bem como pela emergência dos movimentos
culturais que questionavam padrões e costumes, possibilitando significativas alterações
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nas relações de gênero e nos comportamentos da época (VELHO, 2006).
Na mesma medida em que a juventude teve visibilidade pelo suposto
protagonismo social, também foi alvo de perseguição dos aparelhos repressivos. Essa
repressão não se restringia à acusação de associação aos movimentos sociais. Também se
consideravam desordeiras determinadas formas de expressão juvenil, modos de vestir,
uso de drogas, etc. Mesmo que uma minoria de jovens tenha participado efetivamente da
luta pela democracia, havia um repertório sociocultural em que as referências políticas
eram recorrentes: música popular, teatro, cinema, imprensa – todos “traziam a baila direta
ou indiretamente à problemática da política nacional e internacional, como a Guerra do
Vietnã” (VELHO, 2006, p. 197).
As gerações de jovens dos anos 80 ingressaram na vida pública interpeladas a
serem protagonistas de uma transformação possível, de conquista de liberdade e
pluralidade com o advento da democracia (SAINTOUT, 2007, p. 43- 44). O que pareceu
uma preocupação desde o início da década, com a publicação pela Unesco do informe A
juventude na década de 80, a qual indagou o que se poderia pensar da juventude quando
a linguagem de um mundo melhor – anteriormente inscrita nos movimentos de protesto
e contracultura – parecia ceder a experimentação de jovens à “paralisação, angústia,
atitude defensiva, pragmatismo” (UNESCO, 1983, p. 11 apud FEIXA, 2004, p. 314) Em
seguida, no ano de 1985, a Unesco declarou o Ano Internacional da Juventude, o que para
Feixa (2004) teria como significado a forte preocupação com os jovens, num período em
que há um retorno à dependência familiar e crescente desocupação juvenil, gerando
discursos preocupados com sua inserção social.
Conforme Novaes (2007), foram crescentes as iniciativas governamentais e não-
governamentais voltadas à inclusão econômica, societária e cultural de segmentos juvenis
em diferentes países do mundo a partir da década de 80, ganhando força no Brasil nos
anos 90. Desde então, vem se registrando um processo de conhecimento da juventude
brasileira, através de diferentes iniciativas como centros de pesquisa, partidos políticos,
UNESCO, sociedade civil, ONGs. Conforme Abramo (2005; 2007), devido aos fortes
traços de individualismo, fragmentação e desregramento, houve a retomada das
discussões sobre as situações que levam ao desvio no processo de integração social dos
jovens num contexto de crise econômica e social que tinha como decorrência falta de
perspectivas e oportunidades para a construção de projetos de vida. Tratou-se de um
período em que vigoravam preocupações sobre comportamentos de risco e transgressão
da ordem social ou do incentivo do protagonismo juvenil, cujo foco era a participação
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dos jovens na transformação social (ABRAMO, 2005). É pertinente destacar que, a partir
de então, surgem políticas públicas voltadas para a juventude. Num primeiro momento,
vigora a concepção de jovens em situação de risco ou protagonismo juvenil, o que resulta
em medidas de combate à pobreza, prevenção de situações de violência e reforço da
concepção de protagonismo do jovem na sociedade, e remete às ideias de voluntariado e
desenvolvimento local, como analisam Spósito e Carrano (2003).
O aparecimento de diversos grupos juvenis, sobretudo dos setores populares,
passou a colocar em visibilidade questões referentes à condição juvenil vindo, inclusive,
a se articular aos movimentos sociais da época (ABRAMO, 2005). A autora explica que
a crescente ação dos grupos juvenis vem criando espaços de interlocução com o poder
público, as ONGs e a sociedade civil, possibilitando surgir políticas multisetoriais e
diversificadas que não se restringem à preocupação com segurança e educação,
permitindo o deslocamento do que considera ser uma concepção negativa de juventude
para a noção de cidadania. Concomitantemente, as entidades estudantis e juventudes
partidárias logram como demanda a formulação e execução de políticas específicas para
a juventude com a sua participação no processo, exigindo de seus partidos o tema como
parte integrante de seus programas e culminando ainda na criação e expansão de
conselhos municipais e estaduais da juventude, apoiados por iniciativas federais.
Assim, após a virada do milênio, as políticas públicas passam a reafirmar os
direitos do jovem brasileiro de acesso à saúde, à educação de qualidade, à moradia, ao
lazer, à segurança, atendendo ao que Novaes (2007) denomina “demandas específicas da
geração” e referindo-se à forma em que as pautas passariam a considerar desigualdades e
diversidades que abrangem os jovens (NOVAES, 2007, p. 255). Isso pode ser visibilizado
na aprovação nesse ano do Estatuto da Juventude que vinha sendo produzido no percurso
dessas discussões.
Esta profusão discursiva em torno da juventude, remetendo-me a Andrade (2008),
nos faz questionar a forma como a mesma vem sendo crescentemente foco de discussões
em diferentes âmbitos sociais, como acadêmicos, políticos e midiáticos, os quais passam
a colocar em circulação uma série de discursos sobre a juventude, produzindo uma série
de saberes.
Diante das profundas mudanças ocorridas na contemporaneidade, se produz uma
série de deslocamentos e alterações no que denominamos juventude. Trata-se de um
conceito complexo e cambiante que emerge no processo de constituição da modernidade
– como inferimos anteriormente – cujo projeto procurou solidificar determinadas formas
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de constituição de sujeitos, inclusive juvenis e que agora nos desafia a pensar de outra
maneira.
Em sua arguição sobre juventude na contemporaneidade, Schmidt (2007)
desenvolve a noção de juventude líquida a partir da metáfora de liquidez baumaniana,
tendo como fundamento para tal compreensão não somente o caráter ambivalente
conferido a juventude, mas pela sua constituição no que denomina “efeito-superfície da
modernidade líquida”. Entende que, por estar intrinsecamente relacionada à modernidade
líquida como parte de sua “superfície de atuação”, a juventude vem rompendo,
dissolvendo, derretendo sólidos, colocando em xeque modos de ser e vindo a se constituir
a partir de outros padrões e, com isso, acaba criando novos “sólidos” para si. (SCHMIDT,
2007). A autora argumenta que pelo caráter ambivalente atribuído aos jovens, estes
acabam assumindo atributos que não são exclusivamente seus – a exemplo, a vinculação
da concepção de ter atitude, pensada de outra maneira, a crescente responsabilização de
cada um pelas suas escolhas:
“Ter atitude” parece uma espécie de inclinação, uma questão de “aptidão” que
o indivíduo possui, mas que, mesmo nessa condição, precisa ser aprimorada e
desenvolvida; caso ele não a possua, o exercício e a insistência devem ser
redobrados – embora em cada um dos casos se saiba que o encargo da falha ou
da insuficiência é de sua responsabilidade (SCHMIDT, 2007, p. 15).
Para entender como vem se produzindo esta lógica na contemporaneidade, remeto-
me a Bauman (1998) o qual infere que o processo de privatização das responsabilidades
oriunda da desvinculação do Estado na garantia de empregabilidade da população e de
ônus com os custos sociais em situações de infortúnios. Com o fim do Estado de Bem-
Estar Social, a tarefa de lidar com os riscos coletivamente produzidos foi privatizada. A
este respeito, Veiga-Neto (2000) argumenta que foi considerado uma prática onerosa
governar demasiadamente, colocando em crise estas formas de governo que passaram
cada vez mais a se reconfigurar sob a lógica da empresa, afinal “transformar o Estado
numa empresa é muito mais econômico – rápido, fácil e lucrativo” (VEIGA-NETO, 2000,
p. 198).
Peters (2002) explica que se trata de uma forma de governo que tem como base
uma nova forma de individualização, sobretudo a partir da concomitante ruptura das
filosofias fundacionistas iluministas e das principais ideologias seculares que emergiram
na Modernidade – o liberalismo clássico e o marxismo. Desde então, o liberalismo vem
assumindo uma nova “roupagem” ou, como argumentam Veiga-Neto e Saraiva (2009),
uma ressignificação do liberalismo clássico para a forma de neoliberalismo, cujo aspecto
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mais significativo é o deslocamento de uma compreensão de liberdade de mercado
entendida como natural para a compreensão que a liberdade deve ser exercitada e
produzida continuamente sob a forma de competição.
Conforme Peters (2002), a concepção de um projeto pós-industrialista sob o
imperativo econômico cria uma visão totalizante do futuro, baseado no triunvirato da
ciência, tecnologia e educação como setores-chave capazes de aumentar a vantagem
competitiva nacional numa economia global. Articulada ao entendimento que a liberdade
de mercado não é natural, mas produzida, os seres humanos se tornam sujeitos de mercado,
consumidores cujo papel é regular a concorrência, através da crescente individualização e
empresariamento de si (FOUCAULT, 2008).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentes instâncias estiveram articuladas ao projeto moderno de construir novos
parâmetros a sociedade que se distinguissem dos modos de pensar presentes no contexto
medieval. A educação foi indispensável para a constituição de uma nova ordem que se
instaurava, sendo imprescindível referir a importância do âmbito religioso como primeiro
movimento de educação das massas, quer seja pelo movimento reformista e suas
propostas de alfabetização e evangelização, quer seja pelas táticas de intervenção
presentes na Contrarreforma, através da escolarização especialmente dos estratos médios
da população. As instituições passaram a articular um novo modelo de educação,
responsável pelo controle do tempo, do espaço, da atividade. Articulando-se a este
processo, a separação de classes de alunos relacionada à adaptação do ensino pautou-se
pela preocupação educacional da particularidade dos sujeitos, assim as classes acabaram
por criar distinções entre as ambíguas noções de infância e juventude, levando a posterior
separação dos sujeitos por idade.
A crescente racionalização dos modos de governar tendo como objeto a população
foi fundamental para que se passasse a produzir saberes e práticas específicas para
conduzir diferentes sujeitos, possibilitando que a formação do ser humano se tornasse
uma responsabilidade administrada pelo Estado, uma forma de condução que não se
restringia as comunidades e a família. Embora a escola obrigatória fosse um instrumento
para educar as massas a uma nova ordem, as próprias condições presentes no período de
industrialização impossibilitaram seu crescimento, já que a rotina das fábricas abrangia o
trabalho de crianças e jovens. Diferentemente, os grupos socialmente favorecidos
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ofereciam um tempo de espera entre a infância e a vida adulta, voltando-se a educação
dos sujeitos jovens. Aos demais, somente no final do século XIX e, sobretudo durante o
século XX, com o pós-guerra, há melhores condições para se produzir este período de
tolerância social, permitindo a profusão de uma série de saberes sobre os jovens e a
emergência da juventude como uma categoria, embora reconheçamos que as distintas
condições e experiências que perpassam o cotidiano dos jovens nos desafiem a pensar em
diferentes modos de viver este tempo de espera, em diferentes juventudes, sobretudo ao
pautarmos a discussão a esta rearticulação da racionalidade liberal ao neoliberalismo.
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