ensino de literatura brasileira i

64
5/9/2018 EnsinodeLiteraturaBrasileiraI-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 1/64  SUMÁRIO Texto 1: Introdução (Formação da Literatura Brasileira).......................................... 1 Texto 2: A condição colonial (História Concisa da Literatura Brasileira)................ 12 Texto 3: A Carta de Pero Vaz de Caminha.................................................................. 15 Texto 4: Ecos do Barroco (História Concisa da Literatura Brasileira)...................... 28 Texto 5: Sermão da Sexagésima do Padre Antônio Vieira......................................... 34 Texto 6: Seleção de obras poéticas de Gregório de Matos........................................ 43 Texto 7: Arcádia e Ilustração (História Concisa da Literatura Brasileira)................ 50 Texto 8: Poemas de Cláudio Manuel da Costa........................................................... 55 Texto 9: Liras de Tomás Antônio Gonzaga................................................................ 59

Upload: cacacosta

Post on 08-Jul-2015

400 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 1/64

 

SUMÁRIO

Texto 1: Introdução (Formação da Literatura Brasileira).......................................... 1

Texto 2:  A condição colonial (História Concisa da Literatura Brasileira)................ 12

Texto 3: A Carta de Pero Vaz de Caminha.................................................................. 15

Texto 4: Ecos do Barroco (História Concisa da Literatura Brasileira)...................... 28

Texto 5: Sermão da Sexagésima do Padre Antônio Vieira......................................... 34

Texto 6: Seleção de obras poéticas de Gregório de Matos........................................ 43

Texto 7: Arcádia e Ilustração (História Concisa da Literatura Brasileira)................ 50

Texto 8: Poemas de Cláudio Manuel da Costa........................................................... 55

Texto 9: Liras de Tomás Antônio Gonzaga................................................................ 59

Page 2: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 2/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

1

Texto 1CANDIDO, Antonio. Introdução. In: ______. Formação da Literatura Brasileira. BeloHorizonte: Editora Itatiaia, 1981, pp. 23-39. (Primeira edição: 1959)

INTRODUÇÃO

1. LITERATURA COMO SISTEMA Este livro procura estudar a formação da literatura brasileira como síntese de

tendências universalistas e particularistas. Embora elas não ocorram isoladas, mas secombinem de modo vário a cada passo desde as primeiras manifestações, aquelasparecem dominar nas concepções neoclássicas, estas nas românticas, - o que convida,além de motivos expostos abaixo, a dar realce aos respectivos períodos.

Muitos leitores acharão que o processo formativo, assim considerado, acaba

tarde demais, em desacordo com o que ensinam os livros de história literária. Semquerer contestá-los, - pois nessa matéria, tudo depende do ponto de vista, - esperomostrar a viabilidade do meu.

Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque sequalificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindomanifestações literárias,de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistemade obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notasdominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas,(língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, emboraliterariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura

aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjuntode produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto dereceptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; ummecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), queliga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicaçãointer-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, pormeio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementosde contacto entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade.

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em talsistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie

de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimentoconjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no sentido completodo termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementostransmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento,e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradiçãonão há literatura, como fenômeno de civilização.

Em um livro de crítica, mas escrito do ponto de vista histórico, como este, asobras não podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstraímos ascircunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrandoem dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras,

formando, no tempo, uma tradição.Em fases iniciais, é freqüente não encontrarmos esta organização, dada aimaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração de uma

Page 3: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 3/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

2

linguagem própria e o interesse pelas obras. Isto não impede que surjam obras de valor, - seja por força da inspiração individual, seja pela influência de outras literaturas.Mas elas não são representativas de um sistema, significando quando muito o seuesboço. São manifestações literárias, como as que encontramos, no Brasil, em graus

 variáveis de isolamento e articulação, no período formativo inicial que vai das origens,no século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, às Academias do século XVIII.

Período importante e do maior interesse, onde se prendem as raízes da nossa vida literária e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de Antônio Vieira eGregório de Matos, - que poderá, aliás, servir de exemplo do que pretendo dizer. Comefeito, embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele não existiuliterariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo, quando foi redescoberto,sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde serdevidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para formar o nossosistema literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus manuscritos, que Barbosa

Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-ocompletamente, embora registre quanto João de Brito e Lima pôde alcançar.

Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formação de umsistema, é preferível nos limitarmos aos seus artífices imediatos, mais os que se vãoenquadrando como herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo.

Trata-se, então, (para dar realce às linhas), de averiguar quando e como sedefiniu uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre deintegrarem um processo de formação literária. Salvo melhor juízo, sempre provável emtais casos, isto ocorre a partir dos meados do século XVIII, adquirindo plena nitidez naprimeira metade do século XIX. Sem desconhecer grupos ou linhas temáticas

anteriores, nem influências como as de Rocha Pita e Itaparica, é com os chamadosárcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgemhomens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a

  vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadorespelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradição contínua deestilos, temas, formas ou preocupações. Já que é preciso um começo, tomei comoponto de partida as Academias dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhosde Cláudio Manuel da Costa, arredondando, para facilitar, a data de 1750, na verdadepuramente convencional.

O leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos

primeiros românticos e dos críticos estrangeiros, que, antes deles, localizaram na fasearcádica o início da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas,notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista. Esses críticosconceberam a literatura do Brasil como expressão da realidade local e, ao mesmotempo, elemento positivo na construção nacional. Achei interessante estudar o sentidoe a validade histórica dessa velha concepção cheia de equívocos, que forma o ponto departida de toda a nossa crítica, revendo-a na perspectiva atual. Sob este aspecto, poder-se-ia dizer que o presente livro constitui (adaptando o título do conhecido estudo deBenda) uma "história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura". É um critério

 válido para quem adota orientação histórica, sensível às articulações e à dinâmica das

obras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que só assimé possível estudá-las.

Page 4: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 4/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

3

2. UMA LITERATURA EMPENHADA  Este ponto de vista, aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura,

sobretudo nos momentos estudados; se atentarmos bem, veremos que poucas têm sidotão conscientes da sua função histórica, em sentido amplo. Os escritores neoclássicos

são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que osbrasileiros eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procuram exprimiruma realidade puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento,estão visando este aspecto. É expressivo o fato de que mesmo os residentes emPortugal, incorporados à sua vida, timbravam em qualificar-se como brasileiros, sendoque os mais voltados para temas e sentimentos nossos foram, justamente, os que mais

 viveram lá, como Durão, Basílio ou Caldas Barbosa.Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a

atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimentoa um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização

dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuída, neste livro, à"tomada de consciência" dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menosdeclarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam. É este um dosfios condutores escolhidos, no pressuposto que, sob tal aspecto, os refinados madrigaisde Silva Alvarenga, ou os sonetos camonianos de Cláudio, eram tão nativistas quanto oCaramuru.

Esta disposição de espírito, historicamente do maior proveito, exprime certaencarnação literária do espírito nacional, redundando muitas vezes nos escritores emprejuízo e desnorteio, sob o aspecto estético. Ela continha realmente um elementoambíguo de pragmatismo, que se foi acentuando até alcançar o máximo em certos

momentos, como a fase joanina e os primeiros tempos da Independência, a ponto desermos por vezes obrigados, para acompanhar até o limite as suas manifestações, aabandonar o terreno específico das belas-letras.

Como não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pelaimaginação, os escritores se sentiram freqüentemente tolhidos no vôo, prejudicados noexercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigaçãotácita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos dealcance geral. Este nacionalismo infuso contribuiu para certa renúncia à imaginação oucerta incapacidade de aplicá-la devidamente à representação do real, resolvendo-se por

  vezes na coexistência de realismo e fantasia, documento e devaneio, na obra de um

mesmo autor, como José de Alencar. Por outro lado favoreceu a expressão de umconteúdo humano, bem significativo dos estados de espírito duma sociedade que seestruturava em bases modernas.

  Aliás, o nacionalismo artístico não pode ser condenado ou louvado emabstrato, pois é fruto de condições históricas, - quase imposição nos momentos em queo Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ouunidade. Aparece no mundo contemporâneo como elemento de autoconsciência, nospovos velhos ou novos que adquirem ambas, ou nos que penetram de repente no cicloda civilização ocidental, esposando as suas formas de organização política. Esteprocesso leva a requerer em todos os setores da vida mental e artística um esforço de

glorificação dos valores locais, que revitaliza a expressão, dando lastro e significado aformas polidas, mas incaracterísticas. Ao mesmo tempo, compromete a universalidadeda obra, fixando-a no pitoresco e no material bruto da experiência, além de querê-la,

Page 5: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 5/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

4

como vimos, empenhada, capaz de servir aos padrões do grupo. Para nós, foiauspicioso que o processo de sistematização literária se acentuasse na fase neoclássica,beneficiando da concepção universal, rigor de forma, contensão emocional que acaracterizam. Graças a isto, persistiu mais consciência estética do que seria de esperar

do atraso do meio e da indisciplina romântica. Doutro lado, a fase neoclássica estáindissoluvelmente ligada à Ilustração, ao  filosofismo do século XVIII; e isto contribuiupara incutir a acentuar a vocação aplicada dos nossos escritores, por vezes verdadeirosdelegados da realidade junto à literatura. Se não decorreu daí realismo no alto sentido,decorreu certo imediatismo, que não raro confunde as letras com o padrão jornalístico;uma bateria de fogo rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginação.Não espanta que os autores brasileiros tenham pouco da gratuidade que dá asas à obrade arte; e, ao contrário, muito da fidelidade documentária ou sentimental, que vinculaà experiência bruta. Aliás, a coragem ou espontaneidade do gratuito é prova deamadurecimento, no indivíduo e na civilização; aos povos jovens e aos moços, parece

traição e fraqueza.  Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à literatura

sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-a língua geral dumasociedade à busca de autoconhecimento. Sempre que se particularizou, comomanifestação afetiva e descrição local, adquiriu, para nós, a expressividade queestabelece comunicação entre autores e leitores, sem a qual a arte não passa deexperimentação dos recursos técnicos. Neste livro, tentar-se-á mostrar o jogo dessasforças, universal e nacional, técnica e emocional, que a plasmaram como permanentemistura da tradição européia e das descobertas do Brasil. Mistura do artesãoneoclássico ao bardo romântico; duma arte de clareza e discernimento a uma

"metafísica da confusão", para dizer como um filósofo francês. A idéia de que a literatura brasileira deve ser interessada (no sentido exposto)

foi expressa por toda a nossa crítica tradicional, desde Ferdinand Denis e AlmeidaGarrett, a partir dos quais tomou-se a brasilidade, isto é, a presença de elementosdescritivos locais, como traço diferencial e critério de valor. Para os românticos, aliteratura brasileira começava propriamente, em virtude do tema indianista, comDurão e Basílio, reputados, por este motivo, superiores a Cláudio e Gonzaga.

O problema da autonomia, a definição do momento e motivos que adistinguem da portuguesa, é algo superado, que não interessou especialmente aqui.

  Justificava-se no século passado, quando se tratou de reforçar por todos os modos o

perfil da jovem pátria e, portanto, nós agíamos, em relação a Portugal, como essesadolescentes mal seguros, que negam a dívida aos pais e chegam a mudar desobrenome. A nossa literatura é ramo da portuguesa; pode-se considerá-laindependente desde Gregório de Matos ou só após Gonçalves Dias e José de Alencar,segundo a perspectiva adotada. No presente livro, a atenção se volta para o início deuma literatura propriamente dita, como fenômeno de civilização, não algonecessariamente diverso da portuguesa. Elas se unem tão intimamente, em todo ocaso, até meados do século XIX, que utilizo em mais de um passo, para indicar estefato, a expressão "literatura comum" (brasileira e portuguesa). Acho por isso legítimoque os historiadores e críticos da mãe-pátria incorporem Cláudio ou Sousa Caldas, e

acho legítimo incluí-los aqui; acho que o portuense Gonzaga é de ambos os lados,porém mais daqui do que de lá; e acho que o paulista Matias Aires é só de lá. Tudodepende do papel dos escritores na formação do sistema.

Page 6: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 6/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

5

Mas o nacionalismo crítico, herdado dos românticos, pressupunha também,como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu caráter representativo. Dumponto de vista histórico, é evidente que o conteúdo brasileiro foi algo positivo, mesmocomo fator de eficácia estética, dando pontos de apoio à imaginação e músculos à

forma. Deve-se, pois, considerá-lo subsídio de avaliação, nos momentos estudados,lembrando que, após ter sido recurso ideológico, numa fase de construção eautodefinição, é atualmente inviável como critério, constituindo neste sentido umcalamitoso erro de visão.

O presente livro tentou evitá-lo, evitando, ao mesmo tempo, estudar nas obrasapenas o aspecto empenhado. Elas só podem ser compreendidas e explicadas na suaintegridade artística, em função da qual é permitido ressaltar este ou aquele aspecto.

 3. PRESSUPOSTOSO fato de ser este um livro de história literária implica a convicção de que o

ponto de vista histórico é um dos modos legítimos de estudar literatura, pressupondoque as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certadeterminação na maneira por que são produzidas e incorporadas ao patrimônio deuma civilização.

Um esteticismo mal compreendido procurou, nos últimos decênios, negar validade a esta proposição, - o que em parte se explica como réplica aos exageros do  velho método histórico, que reduziu a literatura a episódio da investigação sobre asociedade, ao tomar indevidamente as obras como meros documentos, sintomas darealidade social. Por outro lado, deve-se à confusão entre formalismo e estética;enquanto aquele se fecha na visão dos elementos de fatura como universo autônomo e

suficiente, esta não prescinde o conhecimento da realidade humana, psíquica e social,que anima as obras e recebe do escritor a forma adequada. Nem um ponto de vistahistórico desejaria, em nossos dias, reduzir a obra aos fatores elementares.

Deste modo, sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, esteprocura apreender o fenômeno literário da maneira mais significativa e completapossível, não só averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurandoestudar cada autor na sua integridade estética. É o que fazem, aliás, os críticos maisconscientes, num tempo, como o nosso, em que a coexistência e rápida emergência dosmais variados critérios de valor e experimentos técnicos; em que o desejo decompreender todos os produtos do espírito, em todos os tempos e lugares, leva,

fatalmente, a considerar o papel da obra no contexto histórico, utilizando esteconhecimento como elemento de interpretação e, em certos casos, avaliação. A tentativa de focalizar simultaneamente a obra como realidade própria, e o

contexto como sistema de obras, parecerá ambiciosa a alguns, dada a força com que searraigou o preconceito do divórcio entre história e estética, forma e conteúdo, erudiçãoe gosto, objetividade e apreciação. Uma crítica equilibrada não pode, todavia, aceitarestas falsas incompatibilidades, procurando, ao contrário, mostrar que são partes deuma explicação tanto quanto possível total, que é o ideal do crítico, embora nuncaatingido em virtude das limitações individuais e metodológicas.

Para chegar o mais perto possível do desígnio exposto, é necessário um

movimento amplo e constante entre o geral e o particular, a síntese e a análise, aerudição e o gosto. É necessário um pendor para integrar contradições, inevitáveisquando se atenta, ao mesmo tempo, para o significado histórico do conjunto e o

Page 7: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 7/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

6

caráter singular dos autores. É preciso sentir, por vezes, que um autor e uma obrapodem ser e não ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas simultaneamente, -porque as obras vivas constituem uma tensão incessante entre os contrastes do espíritoe da sensibilidade. A forma, através da qual se manifesta o conteúdo, perfazendo com

ele a expressão, é uma tentativa mais ou menos feliz e duradoura de equilíbrio entreestes contrastes. Mas, mesmo quando relativamente perfeita, deixa vislumbrar acontradição e revela a fragilidade do equilíbrio. Por isso, quem quiser ver emprofundidade, tem de aceitar o contraditório, nos períodos e nos autores, porque,segundo uma frase justa, ele "é o próprio nervo da vida".

Por outro lado, se aceitarmos a realidade na minúcia completa das suasdiscordâncias e singularidades, sem querer mutilar a impressão vigorosa que deixa,temos de renunciar à ordem, indispensável em toda investigação intelectual. Esta só seefetua por meio de simplificações, reduções ao elementar, à dominante, em prejuízo dariqueza infinita dos pormenores. É preciso, então, ver simples onde é complexo,

tentando demonstrar que o contraditório é harmônico. O espírito de esquemaintervém, como forma, para traduzir a multiplicidade do real; seja a forma da arteaplicada às inspirações da vida, seja a da ciência, aos dados da realidade, seja a dacrítica, à diversidade das obras. E se quisermos reter o máximo de vida com o máximode ordem mental, só resta a visão acima referida, vendo na realidade um universo defatos que se propõem e logo se contradizem, resolvendo-se na coerência transitória deuma unidade, que sublima as duas etapas, em equilíbrio instável.

Procurando sobretudo interpretar, este não é um livro de erudição, e o aspectoinformativo apenas serve de plataforma às operações do gosto. Acho valiosos enecessários os trabalhos de pura investigação, sem qualquer propósito estético; a eles

se abre no Brasil um campo vasto. Acho igualmente valiosas as elucubrações gratuitas,de base intuitiva, que manifestam essa paixão de leitor, sem a qual não vive umaliteratura. Aqui, todavia, não se visa um pólo nem outro, mas um lugar eqüidistante e,a meu ver, mais favorável, no presente momento, à interpretação do nosso passadoliterário.

4. O TERRENO E AS ATITUDES CRÍTICASToda crítica viva - isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém

na sensibilidade do leitor - parte de uma impressão para chegar a um juízo, e a histórianão foge a esta contingência. Isto não significa, porém, impressionismo nem

dogmatismo, pois entre as duas pontas se interpõe algo que constitui a seara própriado crítico, dando validade ao seu esforço e seriedade ao seu propósito: o trabalhoconstrutivo de pesquisa, informação, exegese.

Em face do texto, surgem no nosso espírito certos estados de prazer, tristeza,constatação, serenidade, reprovação, simples interesse. Estas impressões sãopreliminares importantes; o crítico tem de experimentá-las e deve manifestá-las, poiselas representam a dose necessária de arbítrio, que define a sua visão pessoal. O leitorserá tanto mais crítico, sob este aspecto, quanto mais for capaz de ver, num escritor, oseu escritor, que vê como ninguém mais e opõe, com mais ou menos discrepância, aoque os outros vêem. Por isso, a crítica viva usa largamente a intuição, aceitando e

procurando exprimir as sugestões trazidas pela leitura. Delas sairá afinal o juízo, quenão é julgamento puro e simples, mas avaliação, - reconhecimento e definição de valor.

Page 8: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 8/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

7

Entre impressão e juízo, o trabalho paciente da elaboração, como uma espéciede moinho, tritura a impressão, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fimde que o arbítrio se reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte aceitávelpelos leitores. A impressão, como timbre individual, permanece essencialmente,

transferindo-se ao leitor pela elaboração que lhe deu generalidade; e o orgulho inicialdo crítico, como leitor insubstituível, termina pela humildade de uma verificaçãoobjetiva, a que outros poderiam ter chegado, e o irmana aos lugares-comuns do seutempo.

  A crítica propriamente dita consiste nesse trabalho analítico intermediário,pois os dois outros momentos são de natureza estética e ocorrem necessariamente,embora nem sempre conscientemente, em qualquer leitura. O crítico é feito peloesforço de compreender, para interpretar e explicar; mas aquelas etapas se integram noseu roteiro, que pressupõe, quando completo, um elemento perceptivo inicial, umelemento intelectual médio, um elemento voluntário final. Perceber, compreender,

  julgar. Nesse livro, o aparelho analítico da investigação é posto em movimento aserviço da receptividade individual, que busca na obra uma fonte de emoção e terminaavaliando o seu significado.

 As teorias e atitudes críticas se distinguem segundo a natureza deste trabalhoanalítico; dos recursos e pontos de vista utilizados. Não há, porém, uma crítica única,mas vários caminhos, conforme o objeto em foco; ora com maior recurso à análiseformal, ora com atenção mais aturada aos fatores. Querer reduzi-la ao estudo de umadestas componentes, ou qualquer outra, é erro que compromete a sua autonomia etende, no limite, a destruí-la em benefício de disciplinas afins.

Nos nossos dias, parece transposto o perigo de submissão ao estudo dos

fatores básicos, sociais e psíquicos. Houve tempo, com efeito, em que o crítico cedeulugar ao sociólogo, o político, o médico, o psicanalista. Hoje, o perigo vem do ladooposto; das pretensões excessivas do formalismo, que importam, nos casos extremos,em reduzir a obra a problemas de linguagem, seja no sentido amplo da comunicaçãosimbólica, seja no estrito sentido da língua.

 As orientações formalistas não passam, todavia, do ponto de vista duma críticacompreensiva, de técnicas parciais de investigação; constituí-las em método explicativoé perigoso e desvirtua os serviços que prestam, quando limitadas ao seu âmbito. Nadamelhor que o aprofundamento, que presenciamos, do estudo da metáfora, dasconstantes estilísticas, do significado profundo da forma. Mas erigi-lo em critério

básico é sintoma da incapacidade de ver o homem e as suas obras de maneira una etotal. A crítica dos séculos XIX e XX constitui uma grande aventura do espírito, e

isto foi possível graças à intervenção da filosofia e da história, que a libertaram dosgramáticos e retores. Se esta operação de salvamento teve aspectos excessivos e acaboupor lhe comprometer a autonomia, foi ela que a erigiu em disciplina viva. Oimperialismo formalista significaria, em perspectiva ampla, perigo de regressoacorrentando-a de novo a preocupações superadas, que a tornariam especialidaderestrita, desligada dos interesses fundamentais do homem.

Page 9: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 9/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

8

5. OS ELEMENTOS DE COMPREENSÃOQuando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos

 vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Emprimeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na

designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homemque a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, otexto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem enão se deixam reduzir a eles.

Se resistirmos ao fascínio da moda e adotarmos uma posição de bom senso,  veremos que, num livro de história literária que não quiser ser parcial nemfragmentário, o crítico precisa referir-se a estas três ordens de realidade, ao mesmotempo. É lícito estudar apenas as condições sociais, ou as biografias, ou a estruturainterna, separadamente; nestes casos, porém, arriscamos fazer tarefa menos de crítico,do que de sociólogo, psicólogo, biógrafo, esteta, lingüista.

 A crítica se interessa atualmente pela carga extra-literária, ou pelo idioma, namedida em que contribuem para o seu escopo, que é o estudo da formação,desenvolvimento e atuação dos processos literários. Uma obra é uma realidadeautônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, idéias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-primado ato criador. A sua importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir umaspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz. No limite, oelemento decisivo é o que permite compreendê-la e apreciá-la, mesmo que nãosoubéssemos onde, quando, por quem foi escrita. Esta autonomia depende, antes detudo, da eloqüência do sentimento, penetração analítica, força de observação,

disposição das palavras, seleção e invenção das imagens; do jogo de elementosexpressivos, cuja síntese constitui a sua fisionomia, deixando longe os pontos departida não-literários.

Tomemos o exemplo de três pais que, lacerados pela morte dum filhopequeno, recorrem ao verso para exprimir a sua dor: Borges de Barros, Vicente deCarvalho, Fagundes Varela. Pelo que sabemos, o sofrimento do primeiro foi o maisduradouro; admitamos que fossem iguais os três. Se lermos todavia os poemasresultantes, ficaremos insensíveis e mesmo aborrecidos com "Os Túmulos",medianamente comovidos com o "Pequenino morto", enquanto o "Cântico doCalvário" nos faz estremecer a cada leitura, arrastados pela sua força mágica. É que,

sendo obras literárias, não documentos biográficos, a emoção, neles, é elementoessencial apenas como ponto de partida; o ponto de chegada é a reação do leitor, eesta, tratando-se de leitor culto, só é movida pela eficácia da expressão. Os três pais sãoigualmente dignos de piedade, do ponto de vista afetivo; literariamente, o poema doprimeiro é nulo; o do segundo, mediano no seu patético algo declamatório; o doterceiro, admirável pela solução formal.

Este exemplo serve para esclarecer o critério adotado no presente livro, isto é:a literatura é um conjunto de obras, não de fatores nem de autores. Como, porém, otexto é integração de elementos sociais e psíquicos, estes devem ser levados em contapara interpretá-lo, o que apenas na aparência contesta o que acaba de ser dito.

Com efeito, ao contrário do que pressupõem os formalistas, a compreensão daobra não prescinde a consideração dos elementos inicialmente não-literários. O textonão os anula, ao transfigurá-los, e sendo um resultado, só pode ganhar pelo

Page 10: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 10/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

9

conhecimento da realidade que serviu de base à sua realidade própria. Por isso, se oentendimento dos fatores é desnecessário para a emoção estética, sem o seu estudo nãohá crítica, operação, segundo vimos, essencialmente de análise, sempre quepretendemos superar o impressionismo.

Entende-se agora porque, embora concentrando o trabalho na leitura do texto,e utilizando tudo mais como auxílio de interpretação, não penso que esta se limite aindicar a ordenação das partes, o ritmo da composição, as constantes do estilo, asimagens, fontes, influências. Consiste nisso e mais em analisar a visão que a obraexprime do homem, a posição em face dos temas, através dos quais se manifestam oespírito ou a sociedade. Um poema revela sentimentos, idéias, experiências; umromance revela isto mesmo, com mais amplitude e menos concentração. Um e outro

  valem, todavia, não por copiar a vida, como pensaria, no limite, um crítico não-literário; nem por criar uma expressão sem conteúdo, como pensaria, também nolimite, um formalista radical. Valem porque inventam uma vida nova, segundo a

organização formal, tanto quanto possível nova, que a imaginação imprime ao seuobjeto.

Se quisermos ver na obra o reflexo dos fatores iniciais, achando que ela vale namedida em que os representa, estaremos errados. O que interessa é averiguar até queponto interferiram na elaboração do conteúdo humano da obra, dotado da realidadeprópria que acabamos de apontar. Na tarefa crítica há, portanto, uma delicadaoperação, consistente em distinguir o elemento humano anterior à obra e o que,transfigurado pela técnica, representa nela o conteúdo, propriamente dito.

Dada esta complexidade de tipo especial, é ridículo despojar o vocabuláriocrítico das expressões indicativas da vida emocional ou social, contanto que, ao utilizá-

las, não pensemos na matéria-prima, mas em sentimentos, idéias, objetos de naturezadiferente, que podem ser mais ou menos parecidos com os da vida, mas em todo casoforam redefinidos a partir deles, ao se integrarem na atmosfera própria do texto.Quando falamos na ternura de Casimiro de Abreu, ou no naturismo de BernardoGuimarães, não queremos, em princípio, dizer que o homem Casimiro foi terno, ouamante da natureza o homem Bernardo, pois isso importa secundariamente.Queremos dizer que na obra deles há uma ternura e um naturismo construídos a partirda experiência e da imaginação, comunicados pelos meios expressivos, e que poderãoou não corresponder a sentimentos individuais. Para o crítico, desde que existamliterariamente, são  forjados, ao mesmo título que a coragem de Peri ou as astúcias do

Sargento de Milícias.Interessando definir, na obra, os elementos humanos formalmente elaborados,não importam a veracidade e a sinceridade, no sentido comum, ao contrário do quepensa o leitor desprevenido, que se desilude muitas vezes ao descobrir que um escritoravarento celebrou a caridade, que certo poema exaltadamente erótico provém dumhomem casto, que determinado poeta, delicado e suave, espancava a mãe. Como disseProust, o problema ético se coloca melhor nas naturezas depravadas, que avaliam nodrama da sua consciência a terrível realidade do bem e do mal.

Em suma, importa no estudo da literatura o que o texto exprime. A pesquisada vida e do momento vale menos para estabelecer uma verdade documentária,

freqüentemente inútil, do que para ver se nas condições do meio e na biografia háelementos que esclareçam a realidade superior do texto, por vezes uma gloriosamentira, segundo os padrões usuais.

Page 11: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 11/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

10

 Já se vê que, ao lado das considerações formais, são usadas aqui livremente astécnicas de interpretação social e psicológica, quando julgadas necessárias aoentendimento da obra; este é o alvo, e todos os caminhos são bons para alcançá-lo,revelando-se a capacidade do crítico na maneira por que os utiliza, no momento exato

e na medida suficiente. Há casos, por exemplo, em que a informação biográfica ajuda acompreender o texto; por que rejeitá-la, estribado em preconceito metodológico oufalsa pudicícia formalista? Há casos em que ela nada auxilia; por que recorrerobrigatoriamente a ela?

6. CONCEITOSNo arsenal da história literária, dispomos, para o nosso caso, de conceitos

como: período, fase, momento; geração, grupo, corrente; escola, teoria, tema; fonte,influência.

Embora reconheça a importância da noção de período, utilizei-a aqui

incidentemente e atendendo à evidência estética e histórica, sem preocupar-me comdistinções rigorosas. Isso, porque o intuito foi sugerir, tanto quanto possível, a idéia demovimento, passagem, comunicação, - entre fases, grupos e obras; sugerir uma certalabilidade que permitisse ao leitor sentir, por exemplo, que a separação evidente, doponto de vista estético, entre as fases neoclássicas e romântica, é contrabalançada, doponto de vista histórico, pela sua unidade profunda. À diferença entre estas fases,procuro somar a idéia da sua continuidade, no sentido da tomada de consciêncialiterária e tentativa de construir uma literatura.

Do mesmo modo, embora os escritores se disponham quase naturalmente porgerações, não interessou aqui utilizar este conceito com rigor nem exclusividade.

  Apesar de fecundo, pode facilmente levar a uma visão mecânica, impondo cortestransversais numa realidade que se quer apreender em sentido sobretudo longitudinal.Por isso, sobrepus ao conceito de geração o de tema, procurando apontar não apenas asua ocorrência, num dado momento, mas a sua retomada pelas gerações sucessivas,através do tempo.

Isso conduz ao problema das influências, que vinculam os escritores uns dosoutros, contribuindo para formar a continuidade no tempo e definir a fisionomiaprópria de cada momento. Embora a tenha utilizado largamente e sem dogmatismo,como técnica auxiliar, é preciso reconhecer que talvez seja o instrumento maisdelicado, falível e perigoso de toda a crítica, pela dificuldade em distinguir

coincidência, influência e plágio, bem como a impossibilidade de averiguar a parte dadeliberação e do inconsciente. Além disso, nunca se sabe se as influências apontadassão significativas ou principais, pois há sempre as que não se manifestam visivelmente,sem contar as possíveis fontes ignoradas (autores desconhecidos, sugestões fugazes),que por vezes sobrelevam as mais evidentes.

  Ainda mais sério é o caso da influência poder assumir sentidos variáveis,requerendo tratamento igualmente diverso. Pode, por exemplo, aparecer comotransposição direta mal assimilada, permanecendo na obra ao modo de um corpoestranho de interesse crítico secundário. Pode, doutro lado, ser de tal modoincorporada à estrutura, que adquire um significado orgânico e perde o caráter de

empréstimo; tomá-la, então, como influência, importa em prejuízo do seu caráteratual, e mais verdadeiro, de elemento próprio de um conjunto orgânico.

Page 12: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 12/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

11

Estas considerações exprimem um escrúpulo e uma atitude, conduzindo a umdos conceitos básicos do presente livro: que o eixo do trabalho interpretativo édescobrir a coerência das produções literárias, seja a interna, das obras, seja a externa,de uma fase, corrente ou grupo.

Por coerência, entende-se aqui a integração orgânica dos diferentes elementose fatores, (meio, vida, idéias, temas, imagens, etc.), formando uma diretriz, um tom,um conjunto, cuja descoberta explica a obra como  fórmula, obtida pela elaboração doescritor. É a adesão recíproca dos elementos e fatores, dando lugar a uma unidadesuperior; mas não se confunde com a simplicidade, pois uma obra pode sercontraditória sem ser incoerente, se as suas condições forem superadas pelaorganização formal.

No nível do autor, ela se manifesta através da personalidade literária, que nãoé necessariamente o perfil psicológico, mas o sistema de traços afetivos, intelectuais emorais que decorrem da análise da obra, e correspondem ou não à vida, - como se viu

há pouco ao mencionar a ternura de Casimiro. No nível do momento, ou fase, ela semanifesta pela afinidade, ou caráter complementar entre as obras, conseqüência darelativa articulação entre elas, originando o estilo do tempo, que permite asgeneralizações críticas. Por isso, não interessou aqui determinar rigorosamente ascondições históricas, - sociais, econômicas, políticas, - mas apenas sugerir o quepoderíamos chamar de situação temporal, ou seja, a síntese das condições deinterdependência, que estabelecem a fisionomia comum das obras, e são realidades deordem literária, nas quais se absorvem e sublimam os fatores do meio.

  A coerência é em parte descoberta pelos processos analíticos, mas em parteinventada pelo crítico, ao lograr, com base na intuição e na investigação, um traçado

explicativo. Um, não o traçado, pois pode haver vários, se a obra é rica. Todos sabemque cada geração descobre e inventa o seu Gongora, o seu Stendhal, o seu Dostoievski.Por isso, há forçosamente na busca da coerência um elemento de escolha e risco,quando o crítico decide adotar os traços que isolou, embora sabendo que pode haveroutros. Num período, começa por escolher os autores que lhe parecem representativos;nos autores, as obras que melhor se ajustam ao seu modo de ver; nas obras, os temas,imagens, traços fugidios que o justificam. Neste processo vai muito da sua coerência, adespeito do esforço de objetividade.

Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser criadora, nãoapenas registradora. Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbítrio;

sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, é definir o que se escolheu,entre outros. A este arbítrio o crítico junta a sua linguagem própria, as idéias e imagensque exprimem a sua visão, recobrindo com elas o esqueleto do conhecimentoobjetivamente estabelecido.

Page 13: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 13/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

12

Texto 2BOSI, Alfredo. A condição colonial. In: ______. História concisa da literatura brasileira.43ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006, pp. 9-25. (Primeira edição: 1994)

 A CONDIÇÃO COLONIAL

Literatura e situaçãoO problema das origens da nossa literatura não pode formular-se em termos

de Europa, onde foi a maturação das grandes nações modernas que condicionou toda ahistória cultural, mas nos mesmos termos das outras literaturas americanas, isto é, apartir da afirmação de um complexo colonial de vida e de pensamento.

  A Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o “outro” em relação àmetrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada, o pau-brasil a ser explorado, a

cana-de-açúcar a ser cultivada, o ouro a ser extraído; numa palavra, a matéria-prima aser carreada para o mercado externo1. A colônia só deixa de o ser quando passa asujeito de sua história. Mas essa passagem fez-se no Brasil por um lento processo deaculturação do português e do negro à terra e às raças nativas; e fez-se com naturaiscrises e desequilíbrios. Acompanhar este processo na esfera de nossa consciênciahistórica é pontilhar o direito e o avesso do fenômeno nativista, complementonecessário de todo complexo colonial2.

Importa conhecer alguns dados desse complexo, pois foram ricos deconseqüências econômicas e culturais que transcenderam os limites cronológicos dafase colonial.

Nos primeiros séculos, os ciclos de ocupação e de exploração formaram ilhassociais (Bahia, Pernambuco, Minas, Rio de Janeiro, São Paulo), que deram à Colônia afisionomia de um arquipélago cultural. E não só no facies geográfico: as ilhas devem ser

  vistas também na dimensão temporal, momentos sucessivos que foram do nossopassado desde o século XVI até a Independência.

  Assim, de um lado houve a dispersão do país em subsistemas regionais, atéhoje relevantes para a história literária3; de outro, a seqüência de influxos da Europa,responsável pelo paralelo que se estabeleceu entre os momentos de além-Atlântico e asesparsas manifestações literárias e artísticas do Brasil-Colônia: Barroco, Arcádia,Ilustração, Pré-Romantismo...

 Acresce que o paralelismo não podia ser rigoroso pela óbvia razão de estaremfora os centros primeiros de irradiação mental. De onde, certos descompassos quecausariam espécie a um estudioso habituado às constelações da cultura européia:

1 Para a análise em profundidade do fenômeno colonial, recomendo a leitura dos ensaios de J. P. Sartre(“Le colonialisme est un système”, in Les Temps Modernes, nº 123) e de Georges Balandier (“Sociologie dela dépendance”, in Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. XII, 1952). V. a Bibliografia final deste  volume onde são arrolados alguns estudos brasileiros já “clássicos”, merecendo destaque os de CaioPrado Jr., Fernando Novais e Jacob Gorender.2 V. Afrânio Coutinho, A Tradição Afortunada, José Olympio Ed., 1968, onde o crítico estuda o fator“nacionalidade” em vários momentos da crítica brasileira.3

No ensaio Uma Interpretação da Literatura Brasileira, Vianna Moog dá ênfase ao ilhamento cultural das  várias regiões brasileiras, descontados certos exageros, a tese é plenamente sustentável (V. o estudo,datado de 1942, agora incluído em Temas Brasileiros de diversos autores, Rio, Casa do Estudante doBrasil, 1968).

Page 14: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 14/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

13

coexistem, por exemplo, com o barroco do ouro das igrejas mineiras e baianas a poesiaarcádica e a ideologia dos ilustrados que dá cor doutrinária às revoltas nativistas doséculo XVIII. Códigos literários europeus mais mensagens ou conteúdos já coloniaisconferem aos três primeiros séculos de nossa vida espiritual um caráter híbrido, de tal

sorte que parece uma solução aceitável de compromisso chamá-lo luso-brasileiro,como o fez Antônio Soares Amora na História da Literatura Brasileira4.

Convém lembrar, por outro lado, que Portugal, perdendo a autonomia políticaentre 1580 e 1640, e decaindo verticalmente nos séculos XVII e XVIII, também passoupara a categoria de nação periférica no contexto europeu; e a sua literatura, depois doclímax da épica quinhentista, entrou a girar em torno de outras culturas: a Espanha doBarroco, A Itália da Arcádia, a França do Iluminismo. A situação afetou em cheio asincipientes letras coloniais que, já no limiar do século XVII, refletiriam correntes degosto recebidas “de segunda mão”. O Brasil reduzia-se à condição de subcolônia...

 A rigor, só laivos de nativismo, pitoresco no século XVII e já reivindicatório no

século seguinte, podem considerar-se o divisor de águas entre um gongórico portuguêse o Baiano Botelho de Oliveira, ou entre um árcade coimbrão e um lírico mineiro. E ésempre necessário distinguir um nativismo estático, que se exaure na menção dapaisagem, de um nativismo dinâmico, que integra o ambiente e o homem na fantasiapoética (Basílio da Gama, Silva Alvarenga, Sousa Caldas).

O limite da consciência nativista é a ideologia dos inconfidentes de Minas, doRio de Janeiro, da Bahia e do Recife. Mas, ainda nessas pontas-de-lança da dialéticaentre Metrópole e Colônia, a última pediu de empréstimo à França as formas de pensarburguesas e liberais para interpretar a sua própria realidade. De qualquer modo, abusca de fontes ideológicas não-portuguesas ou não-ibéricas, em geral, já era uma

ruptura consciente com o passado e um caminho para modos de assimilação maisdinâmicos, e propriamente brasileiros, da cultura européia, como se deu no períodoromântico.

Resta, porém, o dado preliminar de um  processo colonial , que se desenvolveunos três primeiros séculos da vida brasileira e condicionou, como nenhum outro, atotalidade de nossas reações de ordem intelectual: e se se prescindir da sua análise,creio que não poderá ser compreendido na sua inteira dinâmica nem o própriofenômeno da mestiçagem, núcleo do nosso mais fecundo ensaísmo social de SílvioRomero a Euclides, de Oliveira Viana a Gilberto Freyre5.

Textos de informaçãoOs primeiros escritos da nossa vida documentam precisamente a instauraçãodo processo: são informações que viajantes e missionários europeus colheram sobre anatureza e o homem brasileiro. Enquanto informação, não pertencem à categoria doliterário, mas à pura crônica histórica e, por isso, há quem as omita por escrúpuloestético (José Veríssimo, por exemplo, na sua História da Literatura Brasileira). Noentanto, a pré-história das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e dalinguagem que nos legaram os primeiros observadores do país. É graças a essastomadas diretas da paisagem, do índio, e dos grupos sociais nascentes, que captamos

4 S. Paulo, Ed. Saraiva, 1955.5 Procurei rever alguns aspectos desse processo em Dialética da Colonização, S. Paulo, Cia. das Letras,1992.

Page 15: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 15/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

14

as condições primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com ofenômeno da palavra-arte.

E não é só como testemunhos do tempo que valem tais documentos: tambémcomo sugestões temáticas e formais. Em mais de um momento a inteligência brasileira,

reagindo contra certos processos agudos de europeização, procurou nas raízes da terrae do nativo imagens para se afirmar em face do estrangeiro: então, os cronistas

 voltaram a ser lidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico e saudosista comopor um Mário ou um Oswald de Andrade modernistas. Daí o interesse obliquamenteestético da “literatura” de informação.

Dos textos de origem portuguesa merecem destaque:a)   A  Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, referindo o

descobrimento de uma nova terra e as primeiras impressões da natureza edo aborígene;

b)  O Diário de Navegação de Pero Lopes e Sousa, escrivão do primeiro grupo

colonizador, o de Martim Afonso de Sousa (1530);c)  O Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que

Vulgarmente Chamamos Brasil de Pero Magalhães Gândavo (1576);d)  A  Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil do jesuíta

Fernão Cardim (a primeira certamente de 1583);e)  O Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa (1587);f)  Os Diálogos das Grandezas do Brasil  de Ambrósio Fernandes Brandão

(1618);g)   As Cartas dos missionários jesuítas escritas nos dois primeiros séculos de

catequese6;

h)  O Diálogo sobre a Conversão dos Gentios do Pe. Manuel da Nóbrega;i)   A História do Brasil de Fr. Vicente do Salvador (1627).

6 Há volumes antológicos preparados pelo Pe. Serafim Leite S. J.: Cartas Jesuíticas, vols., Rio, 1933; NovasCartas Jesuíticas, S. Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1940. V. também: Nóbrega – Cartas do Brasil e Maisescritos, ed. org. por Serafim Leite, Coimbra, 1953.

Page 16: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 16/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

15

Texto 3CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel . Dominus : São Paulo, 1963. Textoproveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro:http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Permitido o uso apenas para fins educacionais.

 A CARTA 

Senhor,Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães

escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agoranesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza,assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba piorque todos fazer!

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bemcerto creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquiloque vi e me pareceu.

Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza — porque o não saberei fazer — e os pilotos devem ter este cuidado.

E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:E digo quê:

 A partida de Belém foi — como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. Esábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais pertoda Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três

a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de PeroEscolar, piloto.

Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser!

Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... nãoapareceu mais !

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feiradas Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra,estando da dita Ilha — segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas — os

quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamamBotelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feiraseguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! a saber,primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras maisbaixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitãopôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umasseis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Alificamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em

direitura à terra, indo os navios pequenos diante — por dezessete, dezesseis, quinze,catorze, doze, nove braças — até meia légua da terra, onde todos lançamos ancoras,

Page 17: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 17/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

16

em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco maisou menos.

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundodisseram os navios pequenos que chegaram primeiro.

Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães dasnaus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a NicolauCoelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praiahomens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já láestavam dezoito ou vinte.

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcosnas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelholhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haverfala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somentearremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e

um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave,compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. Eoutro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer dealjôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveuàs naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

 À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. Eespecialmente a Capitania. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos,por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos delongo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para verse achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e

lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos velaestariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que sehaviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos naviospequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus,que amainassem.

E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamoslevantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro,muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro eamainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de solpôstoamainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.

E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi,por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo noesquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavamnuma almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou setesetas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo,

 já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons

narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso deencobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca dissosão de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um

osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso dealgodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço;e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E

Page 18: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 18/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

17

trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar,nem no comer e beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes doque sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles

trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira,de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e muicerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena porpena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era muiredonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés umaalcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. ESancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outrosque aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas.E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a

alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com amão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que haviaouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava paraa terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-nologo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr

a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos

passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo alançavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaramdele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho,mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.

  Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, efolgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em voltado braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão,como se dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queriadizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lhonão havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-sede costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas,as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.

O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o dacabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; econsentindo, aconchegaram-se e adormeceram.

Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, aqual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro,

e ancoraram em cinco ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso dedentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto queas naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-

Page 19: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 19/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

18

mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem emterra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quaismandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário decontas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma

campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom  João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver emaneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frechadireitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos esetas nas mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem edepusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinhampousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado comeles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam aquem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água quelhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do

rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilotinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levouaté lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, osquais vinham já nus e sem carapuças.

E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para osbatéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barrisque nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles detodo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nóstomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.

Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a

outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar amão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, ede qualquer coisa que a gente lhes queria dar.

Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.Dos que ali andavam, muitos — quase a maior parte — traziam aqueles bicos

de osso nos beiços.E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos

traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns delestraziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.

E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria

cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.  Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, comcabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tãocerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não seenvergonhavam.

 Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbanadeles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que sefossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatrohomens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nóslevávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que

 voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lácom eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para láas dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes

Page 20: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 20/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

19

mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhedesse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeiraagasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas,

pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziamcarapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E umadaquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra,

 vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum delesera fanado, mas todos assim como nós.

E com isto nos tornamos, e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das

naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, poro Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu — ele com todos

nós — em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio.Com tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, anão ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. Epescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixemiúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.

 Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa esermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis efossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentrolevantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qualdisse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos

outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer,foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

 Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qualesteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.

 Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todoslançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da históriaevangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se àCruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.

Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente,pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E

olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamosa pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram asaltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três quelá tinham — as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas

 juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quasenada da terra, só até onde podiam tomar pé.

 Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis,com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra parapassarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão,Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara,

para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.

Page 21: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 21/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

20

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água,metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos emuitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.

 Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a

mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andavaafastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costase pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eramde sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia.

  Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife deBartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muitomenos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; eacenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias aoCapitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os maisconstranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobremuita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco enão no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinhaum muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Tambémacharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peçainteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordemdo Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todosse nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo naviodos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nóspodíamos saber, por irmos na nossa viagem.

E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maiorparte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada,perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para osmandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.

E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porquecostume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudoquanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam doishomens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassempor ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberemtão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza

mandar.E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazerescândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aquios dois degredados quando daqui partíssemos.

E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.  Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia

bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles

andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos,pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos.

Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além dorio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos,alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam;

Page 22: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 22/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

21

e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavammisturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças delinho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos eandaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam

alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colodois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria maisque aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns sechegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, jápassava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas jáditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dalipara as naus muitos arcos, e setas e contas.

E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos àbeira dele.

 Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos

corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entreeles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elasandava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquelatintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com ascurvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tantainocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.

Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atadocom um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas naspernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.

Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali

esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto oCapitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele anós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porquedesejávamos saber se o havia na terra.

Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedopolegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava porfora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com elapara a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaçassobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pelapedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois

houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza. Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longodele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos ecomemos muitos deles.

Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamosdesembarcado.

E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante osoutros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outrabanda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso ede prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com

eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem aosom da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, esalto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo

Page 23: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 23/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

22

os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, eforam-se para cima.

E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, aopasso que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce

que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai aágua por muitos lugares.

E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre osmarinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que BartolomeuDias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.

Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem,logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém nãolhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem— para os bem amansarmos!

 Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E

com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que sedespediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do riopara aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito,nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de poucosaber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muitolimpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimáriasmontezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porqueos seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E istome faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em quese criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa

que se pareça com elas.Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez

com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nadado seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levavae fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram etornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senãoumas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de EntreDouro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.

Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali

 vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucosarcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Alidavam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquercoisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas seforam com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. Etrouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos,dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.

E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados:

uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feiçãocomo em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, ebastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor

Page 24: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 24/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

23

queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavamcheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, sedesfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais semolhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhase pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que pareceuma fita preta da largura de dois dedos.

E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros doisdegredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por serhomem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá estanoite.

Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bemuma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam

que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e dasilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço,sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma redeatada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para seaquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numaextremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ouquarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dosalimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, queeles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram quelá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por

cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muitograndes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um panode penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todasestas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto

 vieram; e nós tornamo-nos às naus.Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa.

Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada.Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudirammuitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tantoconosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com

os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam doiscarpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles  vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem aferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não temcoisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas,metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andamfortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nosestorvavam no que havíamos de fazer.

E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia eque de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E

assim se foram.Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam algunspapagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que

Page 25: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 25/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

24

me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que noveou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que

 viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes,

e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus

arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delassão canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Elahá de enviar.

Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no naviodos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Elesacudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundoSancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o

Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já denoite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras avespretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. Equando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele nãoadmitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar ecurá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E nãohouve mais este dia que para escrever seja.

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomosem terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou

Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhetoalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em suacadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozidofrio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

  Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu umgrumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que atomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca decera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, emeteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se tivesseuma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a

aparecer lá.  Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a poucocomeçaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ouquatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em trocade carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhesdávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Masquer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavamtodos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam.

  Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aosbatéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.

Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeirogrande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em quenós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele,

Page 26: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 26/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

25

entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade defolhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos ebons palmitos.

 Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz

que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem oacatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam,acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles anossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundoas aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem asua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza,se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que ostraga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á

facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhesdeu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creioque não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fécatólica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho sejaassim!

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha,ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comemsenão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e asárvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somosnós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos,ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Selhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modotal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite àsnaus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que

 já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia,era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aquichegamos — o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; eforam esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões elençóis, para os mais amansar.

E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terracom nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceuque seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítioonde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todosnós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotesque cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aíquantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns seforam meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomoscolocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-seali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a

divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Alidisse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Aliestiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de

Page 27: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 27/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

26

  joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos empé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estandoassim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quandolevantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós

estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão,comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. Ealguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, eoutros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos,se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntavaaqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles,falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu,como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!

 Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim sesubiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstoloscujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e

 virtuoso, que nos causou mais devoção.Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para

ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho comcrucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem acada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé dacruz; e ali lançava a sua a todos — um a um — ao pescoço, atada em um fio, fazendo-

lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas,que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado — era já bem uma horadepois do meio dia — viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquelemesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão comele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisadestoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outracoisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo quenos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatrianem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles

mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza.E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já entãoterão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam,os quais hoje também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qualesteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em

 volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior — comrespeito ao pudor.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se convertera, ou não, se lhe

ensinarem o que pertence à sua salvação.  Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomoscomer.

Page 28: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 28/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

27

Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão maisdois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, osquais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deusfazemos nossa partida daqui.

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até àoutra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, serátamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo domar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terrade cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia...muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande;porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos — terra que nosparecia muito extensa.

  Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa demetal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e

temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim osachávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que,querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar estagente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E quenão houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação deCalicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa

 Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se

a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo

fez pôr assim pelo miúdo.E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra

qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bemservida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a

 Jorge de Osório, meu genro — o que d'ela receberei em muita mercê.Beijo as mãos de Vossa Alteza.Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia

de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha. 

FIM 

Page 29: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 29/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

28

Texto 4BOSI, Alfredo. Ecos do Barroco. In: ______. História concisa da literatura brasileira. 43ªed. São Paulo: Cultrix, 2006, pp. 27-52. (Primeira edição: 1994)

ECOS DO BARROCO

O Barroco: espírito e estiloSeja qual for a interpretação que se dê ao Barroco7, é sempre útil refletir sobre

a sua situação de estilo pós-renascentista e, nos países germânicos, pós-reformista.  A Renascença, fruto maduro da cultura urbana em alguns centros italianos

desde o princípio do século XV, foi assumindo configurações especiais à medida quepenetrava em nações ainda marcadas por uma poderosa presença do espírito medieval.No caso português e espanhol, os descobrimentos marítimos levaram ao ápice uma

concepção triunfalista e messiânica da Coroa e da nobreza (rural e mercantil),concepção mais próxima de certos ideais césaro-papistas da alta Idade Média que dadoutrina do príncipe burguês de Maquiavel. E durante todo o século XVI vincaram acultura ibérica fortes traços arcaizantes, que a Contra-Reforma, a Companhia de Jesuse o malogro de Alcácer-Quibir viriam carregar ainda mais8.

Ora, o estilo barroco se enraizou com mais vigor e resistiu mais tempo nasesferas da Europa neolatina que sofreram o impacto vitorioso dos novos estadosmercantis. É na estufa da nobreza e do clero espanhol, português e romano que seincuba a maneira barroco-jesuítica: trata-se de um mundo já em defensiva,organicamente preso à Contra-Reforma e ao Império filipino, e em luta com as áreas

liberais do Protestantismo e do racionalismo crescente na Inglaterra, na Holanda e naFrança.

É instrutivo observar que o barroco-jesuítico não tem nítidas fronteirasespaciais, mas ideológicas. Floresce tanto na Áustria como na Espanha, no Brasil comono México, mas já não se reconhece nas sóbrias estruturas da arte coetânea da Suécia eda Alemanha cujo “barroco” luterano (que enforma a música de Bach) é infenso aextremos gongóricos da imagem e do som. Há, portanto, um nexo entre o barrocohispânico-romano e toda uma realidade social e cultural que se inflecte sobre si mesmaante a agressão da modernidade burguesa, científica e leiga.

Tal inflexão não poderia ser, e não foi, um mero retorno ao medieval, ao

gótico, à mente feudal da Europa pré-humanística. A atmosfera do Barroco estásaturada pela experiência do Renascimento e herda as suas formas de elocuçãomaduras e crepusculares: o classicismo e o maneirismo. No entanto, a vida social éoutra; outra a retórica em que se traduzem as relações quotidianas. Decaída a virtù renascimental em discrición astuta quando não hipócrita, mortificados os anseioshumanísticos, de que eram alto e belo exemplo a filosofia de Pico della Mirandola, apintura de Leonardo, o riso sem pregas de Ariosto e Rabelais, ensombra-se demelancolia o contato entre o artista e o mundo: Tasso e Camões, Cervantes e o últimoShakespeare já são mestres do desengaño.

7

V. Bibliografia, in fine.8 O século XVI foi o período áureo da Escolástica em Coimbra e em Salamanca. Na literatura, a “medida velha”, o teatro vicentino com sua descendência espanhola, a novela de cavalaria, a crônica de viagens ea prosa ascética e devota ilustram a permanência das formas medievais.

Page 30: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 30/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

29

Mas o esfriamento da antiga euforia não destrói os andaimes de umalinguagem construída desde Giotto e Petrarca; ao contrário, são os puros esquemas querestam e sustentam, não raro solitariamente, a vontade-de-estilo dos artistas. O códigosobreleva a mensagem: triunfa o maneirismo.

 A apreciação do Barroco tem oscilado entre a seca recusa, comum aos críticosda mensagem (De Sanctis, Taine, Croce) e a quente apologia, peculiar aos anatomistasdo estilo (Woelfflin, Balet, Spitzer, Dámaso Alonso). As lacunas de ambas asperspectivas não são difíceis de apontar: a negação da arte barroca pela sua “carênciade conteúdo” é cega, pois é claro que o alheamento da realidade, a fuga ao sensocomum, enfim o descompromisso histórico é também conteúdo. Quanto à atitudeformalista, resume-se em atribuir a priori um valor ao que se tomará por objetopreferencial, os esquemas, herdados pela tradição clássica e apenas transfigurados porforça de um complexo ideológico. Em suma, desvalorizar um poema barroco porque“vazio” ou mitizá-lo porque rebuscadamente estilizado é, ainda e sempre, cometer o

pecado de isolar espírito e forma, e não atingir o plano da síntese estética que devenortear, em última instância, o julgamento de uma obra. A tentação, de resto, parecefatal, e não sei de homem culto, por equilibrado que se professe, que não tenha alguma

 vez caído nela; mas o importante é vigiar-se para que o dogmatismo de uma opção nãonos faça mergulhar na ininteligência de uma das poucas atividades que resgatam aestupidez: a arte.

Suposto no artista barroco um distanciamento da práxis (e do saber positivo),entende-se que a natureza e o homem se constelassem na sua fantasia como quadrosfenomênicos instáveis. Imagens e sons se mutuavam de vários modos sem que pudessedeterminar com rigor o peso do idêntico, do ipse idem.

 A paisagem e os objetos afetam-no pela multiplicidade dos seus aspectos maisaparentes, logo cambiantes, com os quais a imaginação estética vai compondo a obraem função de analogias sensoriais. O orvalho e a pele clara podem valer pelo cristal; osangue pelo cravo ou pelo rubi; o espelho pela água pura e pelo metal polido. Nomundo dos afetos, a “semelhança” envolve os contrastes, de modo a camuflar toda apercepção nítida das diferenças objetivas:

Incêndio em mares d’água disfarçado,Rio de neve em fogo convertido.

(Gregório de Matos)

Igual processo de identificação (ilusória, sensorial não-racional) opera nos  jogos de palavras, nos trocadilhos e nos enigmas, fundados na similitude da imagemsonora de termos semanticamente díspares:

 Jaz a ilha chamada Itaparica A qual no nome tem também ser rica.

(Fr. Manuel Itaparica) 

O labirinto dos significantes remete quase sempre a conceitos comuns queinteressam ao poeta não pelo seu peso conteudístico, mas pelo fato de estarem ocultos.

É o princípio mesmo do conceptismo usar “de palavra peregrina que velozmenteindique um objeto por meio de outro” (Gracián,  Arte de Ingenio). O que importa, pois,

Page 31: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 31/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

30

é não nomear plebeiamente o objeto, mas envolvê-lo em agudezas e torneios deengenho, critérios básicos de valor na arte seiscentista. Os teóricos da época são, nesseponto, concordes:

Esta é a Argúcia, grande mãe de todo conceito engenhoso, claríssimo lumeda Oratória e Poética Elocução, espírito vital das mortas páginas; prazerosíssimocondimento da Civil Conversação; último esforço do Intelecto, vestígio da Divindadena Alma Humana. O falar dos Homens Engenhosos tanto se diferencia dos Plebeus,quanto o falar dos Anjos do dos homens (Emmanuele Tesauro)9.

Baltasar Gracián define a agudeza como “esplêndida concordância, correlaçãoharmoniosa entre dois ou três extremos expressos em um único ato deentendimento”10.

 A obsessão do novo a qualquer preço é contraponto de uma retórica já repetida

à saciedade. Valoriza-se naturalmente o que não se tem: é mister “procurar coisasnovas para que o mundo resulte mais rico e nós mais gloriosos”, diz o maior estilistabarroco italiano, Daniele Bartoli11.

 A poética da novidade tanto no plano das idéias (conceptismo) como no daspalavras (cultismo) deságua no efeito retórico-psicológico e na exploração do bizarro:

E del poeta il fin la maraviglia,chi non sa far stupir vada Allá striglia.

(Giambattista Marino) 

O limite inferior dessa arte é o cerebrino. Como diz Octávio Paz: “Góngora nãoé obscuro: é complicado”12. E foi esse o limite dos imitadores de Góngora e de Marino,como um certo Claudio Achillini que, apostrofando o fogo no trabalho da forja,clamava:

Sudate o fochi a preparar metalli.

O rebuscamento em abstrato é sem dúvida o lado estéril do Barroco e o seuestiolar-se em barroquismo. Contra essa deterioração do espírito criador iriam reagirem Portugal e Espanha, nos meados do século XVIII (e meio século antes, na Itália) ospoetas árcades, já imbuídos de neoquinhentismo e do “bom gosto” francês. E o Rococó 

do século XVIII pode-se explicar como um Barroco menor, mais adelgaçado e polidopelo consenso de uma sociedade que já se liberou do absolutismo por direito divino ecomeça a praticar um misto de Ilustração e galante libertinagem.

E na acepção estrita de “retórica pela retórica” Benedetto Croce esconjurou oBarroco definindo-o “forma prática e não-estética do espírito” (isto é, da vontade e nãoda intuição) e, como tal, “varietà del brutto”13.

9  Apud Anceschi, Del Barocco e altre prove, Florença, Vallecchi, 1953, p. 10.10

  Apud R. Wellek, História da Crítica Moderna, São Paulo, Herder, vol. I, p. 3.11  Apud Anceschi, op. cit., p. 15.12 Em Corriente Alterna, México, Siglo XXI, 1965, p. 6.13 Em Storia dell’età barocca in Italia, Bari, Laterza, 1929.

Page 32: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 32/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

31

Seja como for, a rejeição de uma certa poética do Barroco não dispensa ocrítico de esmiuçar os traços de estilo dos poemas da época nem de sondar-lhes agênese cultural e afetiva.

O primeiro passo para o deslinde da morfologia barroca foi dado pelo

historiador de arte Heinrich Woelfflin, cujo texto Renaissance und Barock (1888) abriuuma nova problemática que ainda hoje preocupa os estudiosos da forma. Mas só nosConceitos Fundamentais de História da Arte (Kunstgeschichtliche Gründbegriffe)definiria a passagem ideal do clássico ao barroco em termos de uma passagem

do linear ao pictórico,da visão de superfície à visão de profundidade,da forma fechada à forma aberta,da multiplicidade à unidade,da clareza absoluta dos objetos à clareza relativa. 

Pictórico inclui “pitoresco” e “colorido”;  profundo implica desdobramento deplanos e de massas; aberto denota perspectivas múltiplas do observador; uno subordina, por sua vez, os vários aspectos a um sentido; clareza relativa sugere apossibilidade de formas de expressão esfumadas, ambíguas, não-finitas.

Na mesma esteira de análise interna, e contrapondo Classicismo e Barroco, deforma supratemporal, como duas categorias eternas da arte, Eugenio D’Ors (BuBaroque, 1913) inclui na primeira “as formas que pesam” e na segunda “as formas que

 voam”.Todos esses caracteres quadram bem a um estilo voltado para a alusão (e não

para a cópia) e para a ilusão enquanto fuga da realidade convencional.Pela riqueza de pormenores que encerra, transcrevo abaixo uma descrição daarquitetura barroca feita pelo crítico de arte Leo Balet, que acentua a volúpia domovimento:

Na arquitetura o movimento já aparece nas plantas baixas que em plenaexpansão rompem com as formas geométricas fundamentais e por meio de curvas edobras caprichosas, saliências e reentrâncias abrandam toda a rigidez. As fachadas deigrejas, divididas muitas vezes em cinco partes, os muros que se torcem comoserpentes, os tetos que se arqueiam e as torres que se alargam e se afinam, saltam e seprecipitam para cima sempre com novos arremessos e, quando pensamos que a sua

indocilidade vai finalmente acalmar-se, atiram ainda, atrevidamente, por cima dasmassas arquitetônicas algumas pontas semelhantes a foguetes em direção àimensidade do céu. Nas igrejas e castelos, onde estes eram de certo modo acessíveis,antepunham-se um sistema de escadarias que, como cascatas de pedra, pareciamirromper do interior e larga e pesadamente precipitar-se sobre o terreno. Até mesmo acoluna de suporte, o mais estático dos elementos construtivos, foi animada. Torciam-se em espirais pelos altares acima. Tudo o que era áspero se abrandava. Frisas bojudassaíam das superfícies planas, encurvavam-se os ângulos, as volutas volteavam-se sobresi mesmas e rolavam como vagas. O interior dos edifícios era atapetado deornamentos em forma de folhas e ramos e, depois, de rocalhas, que se esgueiravampelas molduras. Nenhum móvel permanecia, afinal, estável. Tudo oscilava e dançava

sobre pernas recurvadas, através das salas que palpitavam de uma vida misteriosa, eque, com as paredes de espelhos, eram inatingíveis, ilimitadas e infinitas. Tudo era

Page 33: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 33/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

32

construído sobre luz e sombras para assim completar a ilusão dos edifícios que semoviam e respiravam em todas as suas partes14.

É de esperar que os recursos dessa visão de mundo sejam, na poesia, as figuras:

sonoras (aliteração, assonância, eco, onomatopéia...), sintática (elipse, inversão,anacoluto, silepse...) e sobretudo semânticas (metáfora, metonímia, sinédoque,antítese, clímax...), enfim todos os processos que reorganizam a linguagem comum emfunção de uma nova realidade: a obra, o texto, a composição.

Se partirmos da exegese do estilo barroco em termos de crise defensiva daEuropa pré-industrial, aristocrática e jesuítica, perante o avanço do racionalismoburguês, então entenderemos o quanto de angústia, de desejo de fuga e de ilimitadosubjetivismo havia nessas formas. Aos espíritos racionalistas do século XVIII pareceramde desvairado mau gosto, como já pareciam perversões do Classicismo a um Galileo,última voz da inteligência florentina, e aos cartesianos da Corte de Luís XVI15. E

entenderemos também a imagem barroca da vida como um sonho (La vida es sueño, deCalderón), como uma comédia (El gran teatro del mundo), como um labirinto, um jogode espelhos, uma festa, na lírica de Góngora, de Marino, de Lope. Em suma,entenderemos o triunfo da ilusão que um desenganado moralista napolitano, Torquato

  Accetto, louvou sob o nome de “dissimulazione onesta” e o seu contemporâneoGracián estimava como o “dom de parecer”.

O Barroco no BrasilNo Brasil houve ecos do Barroco europeu durante os séculos XVII e XVIII:

Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Frei Itaparica e as primeiras academias

repetiram motivos e formas do barroquismo ibérico e italiano.Na segunda metade do século XVIII, porém, o ciclo do ouro já daria umsubstrato material à arquitetura, à escultura e à vida musical, de sorte que parece lícitofalar de um “Barroco brasileiro” e, até mesmo, “mineiro”, cujos exemplos maissignificativos foram alguns trabalhos do Aleijadinho, de Manuel da Costa Ataíde ecomposições sacras de Lobo de Mesquita, Marcos Coelho e outros ainda malidentificados16. Sem entrar no mérito destas obras, pois só a análise interna poderiainformar sobre o seu grau de originalidade, importa lembrar que a poesia coetâneadelas já não é, senão residualmente, barroca, mas rococó, arcádica e neoclássica,havendo portanto uma discronia entre as formas expressivas, fenômeno que pode ser

  variamente explicado. Acho razoável a hipótese de que o nível de consciência dosprodutores da literatura arcádica se achava muito mais próximo da Ilustração burguesaeuropéia do que o dos mestres-de-obra e compositores religiosos de Minas e Bahia(cujos modelos remontam ao Barroco seis-setecentista). Assim, o Aleijadinho, queesculpe e constrói nos fins do século XVIII, ignora o Neoclassicismo; e a música de

14  Apud  Hannah Levy,   A Propósito de Três Teorias sobre o Barroco, Publ. do Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Univ. de São Paulo, 1955, p. 18.15 Galileo rejeita o cultismo e declara preferir a clareza de Ariosto às sombras de um Tasso pré-barroco(Considerazioni intorno alla Gerusalemme Liberata). Na França cai logo em ridículo a “préciosité” e, no

plano ético, um Pascal jansenista satiriza o laxismo dos jesuítas tão grato à nobreza (Les Provinciales; cf.a bela análise de L. Goldmann, Le Dieu caché , Gallimard, 1956).16 Cf. Fernando Correia Dias, “Para uma sociologia do Barroco mineiro”, in Barroco, Revista de Ensaio ePesquisa, ano 1, nº 1, 1969, pp. 63-74.

Page 34: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 34/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

33

Lobo de Mesquita e de Marcos Coelho Neto lembra Vivaldi e Pergolese e quando nossugere cadências de Haydn, trata-se antes do Haydn sacro, melódico e italianizante(logo, ainda barroco) do que do mestre da sinfonia clássica17.

De qualquer modo, é possível distinguir: a) ecos da poesia barroca na vida

colonial (Gregório, Botelho, as academias) e b) um estilo colonial-barroco nas artesplásticas e na música, que só se tornou uma realidade cultural quando a exploração dasminas permitiu o florescimento de núcleos como Vila Rica, Sabará, Mariana, São Joãod’El Rei, Diamantina, ou deu vida nova a velhas cidades quinhentistas como Salvador,Recife, Olinda e Rio de Janeiro.

17 Cf. Curt Lange, “La música en Minas Gerais durante El siglo XVIII”, in Revista S.O.D.R.E, Montevidéu,1957. Idem – “A organização musical durante o período colonial brasileiro”, nas  Actas do V ColóquioInternacional de Estudos Luso-Brasileiros, Universidade de Coimbra, 1966, vol. IV.

Page 35: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 35/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

34

Texto 5:   VIEIRA, Antônio. Sermão da sexagésima. Ministério da Cultura. Fundação BibliotecaNacional. Departamento Nacional do Livro.

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA PREGADO NA CAPELA REAL DE LISBOA, EM 1655

Este sermão pregou o Autor no ano de 1655, vindo da Missão do Maranhão,onde acho1u as dificuldades que nele se apontam, as quais vencidas, com novas ordensreais voltou logo para a mesma Missão.

Semen est Verbum Dei 

§I

O pregador evangélico será pago não só pelo que semeia como pelas distânciasque percorre, e não volta nem mesmo diante das dificuldades que a natureza lheapresenta: as pedras, os espinhos, as aves, o homem. Cristo ordenou que se pregasse atodas as criaturas porque há homens-brutos, homens-pedras, e homens-homens. O queaconteceu com a semente do Evangelho aconteceu com os missionários do Maranhão. Não age mal o pregador que volta à busca de melhores instrumentos. Este sermão servirá

de prólogo aos outros sermões quaresmais.

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso ouditório saísse hoje tãodesenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o  Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe. 

Ecce exiit qui seminat, seminare: Diz Cristo que saiu o pregador evangélico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção18 do semear, mas faz também caso de sair: Exiit, porque no dia da messe,  hão-nos demedir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que  lavrais com ele,nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para

quem lavra com Deus, até o sair é semear, porque também  das passadas colhe fruto.Entre os semeadores do Evangelho, há uns que saem a semear, há outros que semeiamsem sair. Os que saem a semear, são os que vão  pregar à Índia, à China, ao Japão; osque semeiam sem sair são os que se contentam com pregar na pátria. Todos terão suarazão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a  seara em casa, pagar-lhes-ão asemeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hãolhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah! dia do juízo! Ah! pregadores! Os de cá, achar-vos-eis commais paço, os de lá, com mais passos: Exiit seminare. 

Mas daqui mesmo vejo que notais, e me notais, que diz Cristo que o semeadordo Evangelho saiu, porém não diz que tornou, porque os pregadores do Evangelho, os

homens que professam pregar e propagar a fé, é bem que saiam, mas não é bem que

18 A semente é a palavra de Deus (Lc. 8, 11).

Page 36: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 36/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

35

tornem. Aqueles animais de Ezequiel, que tiravam pelo carro triunfal da glória deDeus, e significavam os pregadores do Evangelho, que propriedades tinham?  Nec revertebantur cum ambularent: uma vez que iam, não tornavam (Ez. 1,12). As rédeas porque se governavam, era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse

espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer, porque sairpara tornar, melhor é não sair. Assim argúis com muita razão, e eu também assim odigo. Mas pergunto: e se esse semeador Evangélico, quando saiu, achasse o campotomado, se se armassem contra ele os espinhos, se se levantassem contra ele as pedras,e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer? Todos estes contrários que digo, etodas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele asemear, diz Cristo, mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre espinhos, eafogaram-no os espinhos:   Aliud cecidit inter  spinas, et sim ul exortae spinaesuffocaverunt iílud. Outra parte caiu sobre as pedras, e secou-se nas pedras por falta deumidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruil, quia non habebat humorem. Outra

parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens, e comeram-no as aves:  Aliud ceciditsecus viam, ei concuícatum esi, ei volucres coeli comederuni illud. Ora, vede como todasas criaturas do mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas, quantashá no mundo, se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens;criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturasinsensíveis, como as pedras, e não há mais. Faltou alguma destas que se não armassecontra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras; a

  vegetativa, nos espinhos; a sensitiva, nas aves; a racional, nos homens. E notai adesgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedrassecaramno, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no, e os homens? Pisaram-no:

Concuícatum est ab hominibus, diz a glosa. Quando Cristo mandou pregar os apóstolospelo mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum,  praedicate omnicreaturae: 

Ide, e pregai a toda a criatura (Mc. 16,15). Como assim, Senhor? Os animais nãosão criaturas? As árvores não são criaturas? As pedras não são criaturas? Pois hão osapóstolos de pregar às pedras? Hão de pregar aos troncos? Hão de pregar aos animais?Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho; porque, como os apóstolos iam pregara todas as nações do mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar oshomens degenerados em todas as espécies de criaturas; haviam de achar homens-homens, haviam de achar homens-brutos, haviam de achar homens-troncos, haviam

de achar homens-pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar a toda acriatura, que se armem contra eles todas as criaturas? Grande desgraça!Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que

se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aquipadeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigomirrado, trigo afogado, trigo comido, e trigo pisado. Trigo mirrado:  Natum aruil, quianon habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suifocaveruni iííud; trigo comido:Volucres coeli comederuni iílud; trigo pisado: Concuícatum est. Tudo isto padeceram ossemeadores evangélicos da Missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houvemissionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio Amazonas;

houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na Ilha dos Aroás;houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins,mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido

Page 37: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 37/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

36

nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhequadra bem o  Natum aruit quja non habebat humorem? E que sobre mirrados, sobreafogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens:Concuícatum est? Não me queixo, nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara

o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores isto são glórias: mirrados sim, mas poramor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, maspor amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidose pisados.

  Agora torna a minha pergunta. E que faria neste caso, ou que devia fazer osemeador evangélico vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria alavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido?Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a casa a buscar alguns instrumentoscom que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornaratrás? Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel, com quem argílistes, temos a prova.

 Já vimos, como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, quando iam, nãotornavam:   Nec revertebantur cum ambuíarent (Ez. 1,12). Lede agora dois versos maisabaixo e vereis que diz o mesmo texto que aqueles animais tornavam à semelhança deum raio ou corisco: Ibant et  revertebantur in simil itud inem fuíguris coruscantis (Ez.1,14). Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto quequando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e

  voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nossoEvangelho. Não o desanimau nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira perda;continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade que nesta quarta e últimaparte do trigo se restouraram com vantagem as perdas dos demais; nasceu, cresceu,

espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicaracento. Etfecitfructum centuplum. 

Oh! que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh! que grande exemplome dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira, porque, ainda que seperderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos; dá-me grande exemplo osemeador, porque depois de perder a primeira, a segunda, e a terceira parte do trigo,aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as trêspartes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte alevaram as pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, estaquarta e última parte, este último quartel da vida, por que se perderá também? Por que

não dará fruto? Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempopara as flores e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu outono a vida? Asflores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucasque se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essassão as discretas, só essas são as que duram, só essas são as que aproveitam, só essas sãoas que sustentam o mundo, Será bem que o mundo morra à fome? Será bem que osúltimos dias se passem em flores? Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há deser. Eis aqui por que eu dizia ao princípio que vindes enganados como pregador. Maspara que possais ir desenganados como sermão, tratarei nele uma matéria de grandepeso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei de pregar, e aos

mais que ouvirdes esta quaresma.

Page 38: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 38/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

37

§II

Semen est verbum Dei. 

O trigo do Evangelho é a palavra de Deus; os espinhos, as pedras, os caminhos ea terra boa, os diversos estados do coração do homem. Se a palavra de Deus é tão eficaz, por que vemos tão pouco fruto? 

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo, que é a palavra de  Deus.Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os  diversoscorações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com  cuidados, comriquezas, com delícias, e nestes afoga-se a palavra de Deus. As  pedras são os coraçõesduros e obstinados, e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Oscaminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas

do mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam, enestes é pisada a palavra de Deus, porque ou a  desatendem, ou a desprezam.Finalmente a terra boa são os corações bons, ou os homens de bom coração, e nestesprende e frutifica a palavra divina com tanta  fecundidade e abundância, que se colhecento por um: Et fructum fecit centuplum.

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso depois que subo ao púlpito. Se  apalavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra deDeus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentaracom que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara

um homem, já o mundo fora santo. Este argumento da fé,   fundado na autoridade deCristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando  os tempos passados com ospresentes. Lede as histórias eclesiásticas e achá-las-eis  todas cheias de admiráveisefeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudançade vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidadesdo mundo, os reis renunciando os cetros  e as coroas; as mocidades e as gentilezasmetendo-se pelos desertos e pelas covas. E hoje? Nada disto. Nunca na igreja de Deushouve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia apalavra de Deus, como é tão pouco  o fruto? Não há um homem que em um sermãoentre em si e se resolva; não há um moço que se arrependa; não há um velho que se

desengane; que é isto? Assim como  Deus não é hoje menos onipotente, assim a suapalavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tãopoderosa, se a palavra de Deus  tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hojenenhum fruto da palavra de  Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida será amatéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós:a mim, para aprender a pregar; a vós, para que aprendais a ouvir.

§III

Tal deficiência pode provir ou de Deus, com a graça, ou do pregador com adoutrina, ou do ouvinte, com entendimento. Deus porém não falta: ele é o sol e a chuva, eo Evangelho não fala das sementes que se perdem por falta das influências do céu. A

Page 39: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 39/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

38

culpa portanto é ou do pregador ou dos ouvintes. Mas mesmo os piores ouvintes, osespinhos e as pedras, hão de aceitar a palavra de Deus. Segue-se pois que a culpa é do pregador.

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três  princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus.  Parauma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos: há   deconcorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com oentendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho, e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho, e tem olhos, e se éde noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho,  e hámister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem  dentroem si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é

necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deusconcorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é oconhecimento. Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação dependedestes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte, por qual deles havemos deentender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte deDeus?

Primeiramente, por parte de Deus não falta, nem pode faltar. Esta proposição éde fé definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo, quedeitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E por que seperderam estas três? A primeira perdeu-se porque a afogaram os espinhos; a segunda,

porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens, e a comeram asaves. Isto é o que diz Cristo, mas notai o que não diz. Não diz que parte algumadaquele trigo se perdesse por cousa do sol ou da chuva. A cousa por queordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dostempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse porcousa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as influências da parte do céu, edeixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do céu, sempre épor culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira ou pelo embaraço dos espinhos, oupela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das

influências do céu, isso nunca é, nem pode ser. Sempre Deus está pronto de sua partecom o sol para aquentar, e com a chuva para regar, com o sol para alumiar, e com achuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri  facit superbonos et malos, et pluit super justos et injustos 19. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aosbons e aos maus, que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claroque não há para que nos determos em mais prova. Quid debui   facere vineae meae, etnonfeci? - disse o mesmo Deus por Isaias20.

Sendo pois certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus,segue-se que ou é por falta do pregador, ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Ospregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por falta dos

19 O qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e vir chuva sobre justos e injustos (Mt. 5, 45).20 Que coisa há que eu devesse ainda fazer à minha vinha, que lhe não tenha feito? (Is. 5, 4).

Page 40: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 40/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

39

ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto; mas não fazer nenhum frutoe nenhum efeito, não é por falta dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou são maus, ou sãobons: se são bons, faz neles grande fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que nãofaça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos,

nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu naspedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruiL O trigo que caiu na terra boa,nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum   frcitfiuctum centuplum. Demaneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na máterra não frutificou, mas nasceu, porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bonsfaz muito fruto, e é tão eficaz, que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito;lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras,não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deussão as pedras e os espinhos. E por quê? Os espinhos por agudos, as pedras por duras.Ouvintes de entendimentos agudos, e ouvintes de vontades endurecidas, são os piores

que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes porque vêm só aouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picara quem os não pica:  Aliud cecidit inter spinas. O trigo não picou os espinhos, antes osespinhos o picaram a ele; o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, enão é assim: vós sois o que picais o sermão. Por isso são maus ouvintes os deentendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque umentendimento agudo pode-se ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza comoutra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza,antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente sedespontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores

que as pedras. A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontadeendurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratumest cor Phamonis 21. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de

  vontades endurecidas seremos mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra que,apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.Pudéramos argüir ao lavrador do Evangelho, de não cortar os espinhos e de nãoarrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e osespinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra,que sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. E tanta a força dadivina palavra, que sem arrancar, nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações

embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra deDeus, e tende confiança; tomai exemplo nestas mesmas pedras e nestes espinhos. Essesespinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu, mas virá tempo em queessas mesmas pedras o aclamem, e esses mesmos espinhos o coroem. Quando osemeador do céu deixou o campo, saindo deste mundo, as pedras se quebraram paralhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa5.E se apalavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa, se a palavra de Deus até naspedras, até nos espinhos nasce, não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nemnascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

21

Ferindo duas vezes com a vara a pederneira, saíram dela águas copiosíssimas (Núm. 20,11).E endureceu-se o coração de Faraó (Ex. 7,13).E partiram-se as pedras (Mt. 27,51).E tecendo uma coroa de espinhos, ha puseram sobre a cabeça (Mt. 27,29).

Page 41: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 41/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

40

Supostas estas duas demonstrações, suposto que o fruto e efeito da palavra deDeus não fica nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se porconseqüência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis cristãos por quenão faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis pregadores por que

não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

§IV 

 No pregador deve-se considerar a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa: uma coisa é o semeador, outra o que semeia; uma coisa é o pregador outra o que  prega. As ações é que dão ser ao pregador: Hoje pregam-se palavras e pensamentos,antigamente pregavam-se palavras e obras. De nada vale a funda de Davi sem as pedras. Até o Filho de Deus, enquanto Deus, não é obra de Deus, é palavra de Deus. No céu Deus

é necessariamente amado porque é Deus visto, o que não acontece na terra onde é apenas Deus ouvido. Os sermões fazem pouco efeito porque não são pregados aos olhosmas aos ouvidos. Seguir o exemplo do Batista. Os ouvintes e as ovelhas de Jacó. Contraesse argumento lá o exemplo do profeta Jonas.

Mas como em um pregador há tantas qualidades e em uma pregação há tantas  leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? Nopregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a   matéria, oestilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue,a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no  Evangelho. Vamo-las

examinando uma por uma, e buscando esta cousa. Será porventura o não fazer frutohoje a palavra de Deus, pela circunstância  da pessoa? Será porque antigamente ospregadores eram santos, eram varões  apostólicos e exemplares, e hoje os pregadoressão eu e outros como eu? Boa razão é  esta. A definição do pregador é a vida e oexemplo. Por isso Cristo no Evangelho  não o comparou ao semeador, senão ao quesemeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o quesemeia: Ecce exiit qai seminat semiitare. Entre o semeador e o que semeia há muitadiferença: uma coisa é o soldado, e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador,e outra o que governa.  Da mesma maneira, uma coisa é o semeador, e outra o quesemeia: uma coisa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome,

o que semeia e o que prega é ação, e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ternome de  pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, oexemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregadorleva ao púlpito, qual cuidais que é? E o conceito que de sua vida têm os ouvintes.

  Antigamente convertia-se o mundo; hoje por que se não converte ninguém? Porquehoje pregam-se palavras e pensamentos; antigamente pregavam-se palavras e obras.Palavras sem obras são tiro sem bala: atroam mas não ferem. A funda de Davi derrubouo gigante, mas não o derrubou com o estalo senão com a pedra: infixus est  lapis in fronte ejus 22. As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Soul,mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David 

22 E a pedra se encravou na sua testa (1 Rs. 17, 49).

Page 42: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 42/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

41

tollebat citharam, et percutiebat manu sua 23. Por isso Cristo comparou o pregador aosemeador. O pregar, que é falar, faz-se com a boca: o pregar, que é semear, faz-se coma mão. Para falar ao vento, bastam palavras: para falar ao coração, são necessáriasobras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus multiplicou cento por um. Que quer isso

dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que depoucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede, sepodem ser só palavras? Quis Deus converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundoseu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, nãoé obra de Deus: Gertitum, nonfactum. O Filho de Deus enquanto Deus e Homem, épalavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est 24 De maneira queaté de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens.Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvaçãodo mundo. Verbo divino é palavra divina, mas importa pouco que as nossas palavrassejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras

ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelosolhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No céuninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucosque o amem; todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no céucomo na terra? Pois como no céu obriga e necessita a todos ao amarem, e na terra não?

 A razão é porque Deus no céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No céu entrao conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est 25 na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex  ouditu 26  E o que entra pelosouvidos, crê-se, o que entra pelos olhos, necessita. Viram os ouvintes em nós o que nosouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.

 Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta comoa Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aosombros; ouve aquilo o ouditório muito atento. Diz que teceram uma coroa deespinhos, e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz maisque lhe ataram as mãos e lhe meteram nela uma cana por cetro; continua o mesmosilêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste passo uma cortina, aparecea imagem do Ecce homo: eis todos prostrados por terra, eis todos a bater nos peitos, eisas lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu denovo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina tinha já dito o pregador. Játinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha

dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como fazagora tanto? Porque então era Ecce homo ouvido, e agora é Ecce homo visto; a relaçãodo pregador entrava pelos ouvidos, a representação daquela figura entra pelos olhos.Sabem, padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque nãopregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Batista tantospecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplopregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência:   Agite poenitentiam:Homens fazei penitência (Mt. 3,2) e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está ohomem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Batista pregavam

23

Davi tomava a harpa, e a tocava com a sua mão(1 Rs 16, 23).24 E o Verbo se fez carne (Jo. 1, 14).25 Nós outros o veremos bem como ele é (1 Jo 3, 2).26 A fé é pelo ouvido (Rom. 10, 17).

Page 43: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 43/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

42

 jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula, e o exemplo clamava: Ecce homo:eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras doBatista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade dasgalas, e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem vestido de peles de

camelo, com as cerdas e cilicio à raiz da carne. As palavras do Batista pregavamdespegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens, e o exemplo clamava:Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto enuma cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão de converter?

  Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daquiiprocedia que os cordeiros nasciam manchados11.Se quando os ouvintes percebem osnossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber

 virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e outra o que semeia,como se há de fazer fruto?

Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus,mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas (Jon. 1,2-4). Jonas, fugitivo de Deus,desobediente, contumaz, e ainda depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente,pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimaçãoque da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver sovertida a Nínive, e de a

 ver soverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes. Contudo, este mesmohomem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior, reino domundo, e não de homens fiéis, senão de gentes idólatras. Outra é logo a cousa quebuscamos. Qual será?

Page 44: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 44/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

43

Texto 6:Seleção de obras poéticas, de Gregório de Matos. Texto proveniente de: Projecto Vercial- Literatura Portuguesa < http://www.ipn.pt/opsis/litera/> Copyright © 1996, 1997,1998, OPSIS Multimédia http://www.ipn.pt/opsis/index.html com o apoio do Projecto

Geira <http://www.geira.pt/>.

INCONSTANCIA DOS BENS DO MUNDO

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,Depois da Luz se segue a noite escura,Em tristes sombras morre a formosura,Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?

Se é tão formosa a Luz, por que não dura?Como a beleza assim se transfigura?Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,Na formosura não se dê constancia,E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,E tem qualquer dos bens por natureza

 A firmeza somente na inconstância.

DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA  

 A cada canto um grande conselheiro,Que nos quer governar cabana, e vinha,Não sabem governar sua cozinha,E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,Que a vida do vizinho, e da vizinhaPesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,Trazidos pelos pés os homens nobres,Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,Todos, os que não furtam, muito pobres,E eis aqui a cidade da Bahia.

Page 45: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 45/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

44

 AOS CARAMURUS DA BAHIA 

Um calção de pindoba à meia zorraCamisa de urucu, mantéu de arara,

Em lugar de cotó arco e taquaraPenacho de guarás em vez de gorra.Furado o beiço, e sem temor que morraO pai, que lho envasou cuma titaraPorém a Mãe a pedra lhe aplicaraPor reprimir-lhe o sangue que não corra.

 Alarve sem razão, bruto sem fé,Sem mais leis que a do gosto, quando erraDe Paiaiá tornou-se em abaité.Não sei onde acabou, ou em que guerra:

Só sei que deste Adão de MassapéProcedem os fidalgos desta terra.

TRISTE BAHIA 

Triste Bahia! oh quão dessemelhanteEstás, e estou do nosso antigo estado!Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

 A ti trocou-te a máquina mercante,Que em tua larga barra tem entrado,

 A mim foi-me trocando, e tem trocadoTanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelentePelas drogas inúteis, que abelhudaSimples aceitas do sagaz Brichote.'

Oh se quisera Deus, que de repenteUm dia amanheceras tão sisudaQue fora de algodão o teu capote!

Page 46: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 46/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

45

1º SONETO A MARIA DOS POVOS

Discreta e formosíssima Maria,Enquanto estamos vendo a qualquer hora

Em tuas faces a rosada Aurora,Em teus olhos e boca o Sol e o dia,

Enquanto com gentil descortesiaO ar, que fresco Adônis te namora,Te espalha a rica trança voadoraQuando vem passear-te pela fria,

Goza, goza da flor da mocidade,Que o tempo trata a toda ligeireza,

E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade,Te converta essa flor, essa beleza,Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

 JUÍZO ANATÔMICO DA BAHIA 

Que falta nesta cidade?-Verdade.

Que mais por sua desonra? -Honra.Falta mais que se lhe ponha? -Vergonha.demo a viver se exponha,Por mais que a fama a exalta,Numa cidade onde faltaVerdade, honra, vergonha.Quem a pôs neste socrócio? -Negócio.Quem causa tal perdição? -Ambição.E o maior desta loucura? -Usura.Notável desaventura

De um povo néscio e sandeu,Que não sabe que o perdeu Negócio, ambição, usura.Quais são seus doces objetos? -Pretos.Tem outros bens mais maciços? -Mestiços.Quais destes lhe são mais gratos? -Mulatos.Dou ao demo os insensatos,Dou ao demo a gente asnal,Que estima por cabedalPretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos? -Meirinhos.Quem faz as farinhas tardas? -Guardas.Quem as tem nos aposentos? -Sargentos.

Page 47: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 47/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

46

Os círios lá vêm aos centos,E a terra fica esfaimando,Porque os vão atravessando Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda? -Bastarda.É grátis distribuída?- Vendida.Que tem, que a todos assusta? - Injusta.

 Valha-nos Deus, o que custaque El-Rei nos dá de graça,Que anda a justiça na praçaBastarda, vendida, injusta.Que vai pela cleresia? -Simonia.E pelos membros da Igreja? -Inveja.Cuidei que mais se lhe punha? -Unha.

Sazonada caramunhaEnfim, que na Santa Séque mais se pratica éSimonia, inveja, unha.E nos Frades há manqueiras? - Freiras.Em que ocupam os serões? -Sermões.Não se ocupam em disputas? - Putas.Com palavras dissolutasMe concluís, na verdade,Que as lidas todas de um Frade

São freiras, sermões, e putas.O acúcar já se acabou? -Baixou.E o dinheiro se extinguiu? -Subiu.Logo já convalesceu? -Morreu.

 A Bahia aconteceuO que a um doente acontece,Cai na cama, o mal lhe cresce,Baixou, subiu, e morreu.

 A Câmara não acode? -Não pode.Pois não tem todo o poder? -Não quer.

que o governo a convence? -Não vence.Quem haverá que tal pense,Que uma Câmara tão nobre,Por ver-se mísera e pobre,Não pode, não quer, não vence.

Page 48: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 48/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

47

 AOS VÍCIOS

Eu sou aquele que os passados anos

Cantei na minha lira maldizenteTorpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,Canto segunda vez na mesma liraO mesmo assunto em plectro diferente.

 Já sinto que me inflama e que me inspiraTalia, que anjo é da minha guardaDês que Apolo mandou que me assistira.

 Arda Baiona e todo o mundo ardaQue a quem de profissão falta à verdadeNunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade Ao pobre pegureiro do ParnasoPara falar em sua liherdade.

 A narração há de igualar ao caso

E se talvez acaso o não igualaNão tenho por poeta o que é Pegaso.

De que pode servir calar quem cala?Nunca se há de falar o que se senteSempre se há de sentir o que se fa1a.

Qual homem pode haver tão paciente,Que, vendo o triste estado da BahiaNão chore, não suspire e não lamente?

Isto faz a discreta fantasia:Discorre em um e outro desconcertoCondena o roubo, increpa a hipocrisia.

O néscio, o ignorante, o inexpertoQue não elege o bom, nem mau reprovaPor tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce trova

Louvado o bem e o mal vituperado A tudo faz focinho, e nada aprova.

Page 49: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 49/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

48

Diz logo prudentaço e repousado:-Fulano é um satírico, é um louco,De língua má, de coração danado.

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,Como mofas com riso e algazarasMusas, que estimo ter, quando as invoco.

Se souberas falar, também falarasTambém satirizaras, se souberasE se foras poeta, poetizaras.

 A ignorancia dos homens destas erasSisudos faz ser uns, outros prudentes,

Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,Outros há comedidos de medrosos,Não mordem outros não ---por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,E deixam de atirar sua pedrada,De sua mesma telha receosos?

Uma só natureza nos foi dadaNão criou Deus os naturais diversos;Um só Adão criou e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,Só nos distingue o vício e a virtude,De que uns são comensais, outros adversos

Quem maior a tiver do que eu ter pude,Esse só me censure, esse me note,

Calem-se os mais chitom, e haja saúde.

Page 50: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 50/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

49

 A UMAS SAUDADES

Parti, coração, parti,navegai sem vos deter,

ide-vos, minhas saudadesa meu amor socorrer.

Em o mar do meu tormentoem que padecer me vejo

 já que amante me desejonavegue o meu pensamento:meus suspiros, formai vento,com que me façais ir teronde me apeteço ver;

e diga minha alma assi:Parti, coração, parti,navegai sem vos deter.

Ide donde meu amorapesar desta distâncianão há perdido constâncianem demitido o rigor:antes é tão superior

que a si se quer exceder,e se não desfalecerem tantas adversidades,Ide-vos minhas saudadesa meu amor socorrer. 

Page 51: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 51/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

50

Texto 7:BOSI, Alfredo. Arcádia e Ilustração. In: ______. História concisa da literatura brasileira.43ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006, pp. 53-87.

 ARCÁDIA E ILUSTRAÇÃO

Dois momentos: o poético e o ideológico A passagem do Barroco ao “barocchetto” e ao rococó foi um processo estilístico

interno na história da arte do século XVIII e consistiu em uma atenuação dos aspectospesados e maciços dos Seiscentos. Nessa viragem prefiguram-se as tendências estéticasdo Arcadismo como a busca do natural e do simples e a adoção de esquemas rítmicosmais graciosos, entendendo-se por graça uma forma específica e menor de beleza.

  A Arcádia enquanto estilo melífluo, musicalmente fácil e ajustado a temas

bucólicos, não foi criação do século de Metastasio: retomou o exemplo quatrocentistade Sannazaro, a lira pastoril de Guirini (II Pastor Fido) e, menos remotamente, atradição anticultista da Itália que se opôs à poética de Marino e as vozes que naEspanha se haviam levantado contra a idolatria de Góngora27. Mas o que já sepostulava no período áureo do Barroco em nome do equilíbrio e do bom gosto entra,no século XVIII, a integrar todo um estilo de pensamento voltado para o racional, oclaro, o regular, o verossímil; e o que antes fora modo privado de sentir assume forosde teoria poética. E a Arcádia se arrogará o direito de ser, ela também, “philosophique”e digna versão literária do Iluminismo vitorioso.

Importa, porém, distinguir dois momentos ideais na literatura dos Setecentos

para não se incorrer no equívoco de apontar contrastes onde houve apenas justaposição: a) o momento poético que nasce de um encontro, embora aindaamaneirado, com a natureza e os afetos comuns do homem, refletidos através datradição clássica e de formas bem definidas, julgadas dignas de imitação ( Arcádia); b) omomento ideológico, que se impõe no meio do século, e traduz a crítica da burguesiaculta aos abusos da nobreza e do clero (Ilustração). À medida que se prossegue notempo, vai-se passando de um Arcadismo tout court (os sonetos de Cláudio Manuel daCosta, por exemplo) ao engajamento pombalino da Épica de Basílio da Gama, parachegarmos enfim à sátira política, velada no Gonzaga das Cartas Chilenas, mas abertano Desertor de Silva Alvarenga. E a literatura do século XIX anterior ao Romantismo

ainda juntará resíduos arcádicos e filosofemas tomados a Voltaire e a Rousseau: falepor todos o verso prosaico de José Bonifácio de Andrada e Silva.Denominador comum das tendências arcádicas é a procura do verossímil . O

conceito, herdado da poética renascentista, tem por fundamentos a noção de artecomo cópia da natureza e a idéia de que tal mimese se pode fazer por graus: de onde, omatiz idealizante que esbate qualquer pretensão de um realismo absoluto. Já osprimeiros teóricos da Arcádia propunham mediações entre o natural e o ideal nas suasfórmulas áureas de bom gosto. Para Gian Vincenzo Gravina, cujo tratado Della RagionPoética data de 1708, a fantasia deve joeirar os dados da experiência a fim de apreender

27

A primeira Arcádia foi fundada em Roma, em 1690, por alguns poetas e críticos antimarinistas que jáantes costumavam reunir-se nos salões da ex-rainha Cristina da Suécia. O programa comum era“exterminar o mau gosto onde quer que se aninhasse”; o emblema, a flauta de Pã coroada de louros e depinheiros. Os sócios tomavam nomes de pastores gregos ou romanos.

Page 52: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 52/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

51

a natureza última das coisas (a Idéia platônica), que coincidirá com a sua beleza.Segundo essa linha de pensamento, os mitos gregos, que os árcades cultivarão àsaciedade, valem como belas aparências do real, do mesmo real que a filosofiacartesiana atinge com os seus conceitos: “A fábula é o ser das coisas transformado em

gênios humanos, e é a verdade transvestida em aparência popular: o poeta dá corpo aosconceitos, e por animar o insensível e envolver de corpo o espírito, converte emimagens visíveis as contemplações suscitadas pela fantasia: ele é transformador eprodutor” (Livro I). Por isso as imagens, os sons, enfim a matéria significante do poemanão vale por si própria como na arte barroca, em que o arbítrio do criador ignorava oslimites da natureza e podia comprazer-se ad libitum no jogo dos signos, aproximando-se (como diria Nietzsche) muito mais da música do que de qualquer outra formaexpressiva.

Em Ludovico Antonio Muratori (Della Perfetta Poesia Italiana, 1706), faz-senítida a servidão da poesia aos valores conceptuais e éticos. A arte deve exercer um

papel pedagógico e, como no conselho de Horácio, unir o útil ao agradável. Quanto aobom gosto, será o deleite que se prova ao perceber a graça que acompanha toda justamimese do Bem e do Verdadeiro. Quem se agrada de falsos ouropéis já estáontologicamente corrompido: o mau gosto e a depravação se juntam como a cara e acoroa da moeda. Muratori concilia o hedonismo literário do árcade com a própriarígida ética de meios e fins. E não foi por acaso que Pietro Metastasio, árcade porexcelência e discípulo amado de Gravina, buscou memorizar nas suas árias o cantábile fácil do melodrama e a moral heróica da tragédia clássica.

Insisto nas fontes italianas da Arcádia, porque são elas que ressalvam o papelda fantasia e do prazer no tecido da obra poética. A outra exigência, a da razão,

 vincula-se ao enciclopedismo francês e impõe-se à medida que a Ilustração exerce oseu magistério sobre a cultura luso-brasileira.

O pioneiro no esforço de reformar a mente barroco-jesuítica em Portugal foiLuís Antônio Verney, cujo Verdadeiro Método de Estudar expunha todo um sistemapedagógico construído sobre modelos racionalistas franceses e escudado na práticaescolar dos Padres Oratorianos, de tendência cartesiana e jansenista. Sob o patrocíniodo Marquês de Pombal opera-se, em parte, a reforma do ensino que teve por mentor oilustrado Antônio Nunes Ribeiro Sanches, redator das Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760).

No campo das poéticas, o modelo da nova corrente não poderia deixar de ser a

  Art Poétique de Boileau, aceita por Voltaire como a exposição mais razoável dasnormas clássicas. Traduzida já em 1697 pelo quarto Conde de Ericeira, influiudiretamente nos dois teóricos ibéricos da Arcádia, o espanhol Ignacio de Luzán e oportuguês Francisco José Freire (Cândido Lusitano) cuja Arte Poética (1748) valeucomo texto de base para os nossos poetas neoclássicos.

Para Verney, “um conceito que não é justo, nem fundado sobre a natureza dascoisas, não pode ser belo, porque o fundamento de todo conceito engenhoso é a

 verdade”28.E para Cândido Lusitano, mais próximo das fontes lusitanas: “Para chegarmos,

pois, com a matéria a causar maravilha e deleite, é preciso representar os objetos dos

28 Verd. Mét. De Estudar, Lisboa, Sá da Costa, v.II, p. 209.

Page 53: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 53/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

52

três mundos, não como eles ordinariamente são, mas como verossimilmente podem, oudeveriam ser na sua completa forma (Arte Poét., I, 66).

Se Gravina e Muratori e Metastasio deram a Cândido Lusitano exemplos depoesia em ato e de uma reflexão idealista em torno da arte, Boileau e Voltaire

contribuíram para fixar cânones que precisaram as distinções dos gêneros clássicos e asnormas tradicionais de linguagem e de métrica. E os árcades zelaram pelo ajustamentoda sua poesia àqueles cânones, tanto que matéria freqüente das sessões da ArcádiaLusitana (1756-1774) e dos encontros entre os líricos mineiros era a leitura e a críticamútua a que submetiam os seus versos.

Se verossimilhança e simplicidade foram as notas formais especialmenteprezadas pelos árcades, que mensagens veiculou de preferência a nova poética? Ésabido que ambientes e figuras bucólicas povoaram os versos dos autores setecentistas.

  A gênese burguesa dessa temática, ao menos como ela se apresentou na Arcádia,parece hoje a hipótese sociológica mais justa. Nas palavras de um crítico penetrante,

 Antônio Cândido, ela é assim formulada:“A poesia pastoral, como tema, talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da

cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural,transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos defrustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vidainterior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia. A sua evocaçãoequilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aosmitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina oshomens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convençãoda naturalidade como forma ideal de relação humana”29.

E de fato, se dermos uma vista d’olhos na história da poesia bucólica, verificamos que ela tem vingado sempre em ambientes de requintada cultura urbana,desde Teócrito em Siracusa e Virgílio na Roma de Augusto, Poliziano na Florençamedicéia e Sannazaro na corte napolitana de Alfonso Aragonês, até Guarini e Tasso naFerrara do último Renascimento. O bucolismo foi para todos o ameno artifício quepermitiu ao poeta fechado na corte abrir janelas para um cenário idílico onde pudessecantar, liberto das constricções da etiqueta, os seus sentimentos de amor e deabandono ao fluxo da existência. Mas não se pode esquecer que a evasão se faz dentrode um determinado sistema cultural, em que é muito reduzida a margem deespontaneidade: o que explica a diferença entre o idílio de um Lorenzo de’ Médici,

  vibrante de imagens primaveris e tingido de realismo popular, ainda possível naFlorença quatrocentista; a pastoral pré-barroca de Guarini, que mal dissimula a licençada corte renascentista em declínio e já macerada pela censura da Contra-Reforma; eenfim a lira do nosso Gonzaga, rococó pelo jogo das imagens galantes, alheias aqualquer toque de angústia e bem próprias do magistrado de extração burguesa emtempos de moderação e antibarroco.

E há um ponto nodal para compreender o artifício da vida rústica na poesiaarcádica: o mito do homem natural cuja forma extrema é a figura do bom selvagem. A luta do burguês culto contra a aristocracia do sangue fez-se em termos de Razão e deNatureza. O Iluminismo que enformou essa luta exibe duas faces: ora a secura

geométrica de Voltaire, vitoriosa nos salões libertinos, ora a afetividade pré-romântica

29 Formação da Literatura Brasileira, S. Paulo, Martins, 1959, vol. I, p. 54.

Page 54: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 54/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

53

de Rousseau, porta-voz de tendências passionais, mais populares. Voltaire é ponta-de-lança dos meios urbanos contra os preconceitos da nobreza e do clero; mas é Rousseauquem abre as estradas largas do pensamento democrático, da pedagogia intuitiva, dareligiosidade natural. De qualquer modo, ambos renegam o universo hierárquico do

absolutismo instaurado pela nobreza e pelo alto clero desde os fins do século XVI; efazem-no recorrendo à liberdade que a natureza e a razão teriam dado ao homem. A 

 volta à natureza, fonte de todo bem, é o lema de Émile de Rousseau; e nessa atitudereconhecemos a paixão do escritor que não encontrou na antiga sociedade aristocráticaum modo de realizar-se como homem livre e sensível. A partir do século XVIII, obinômio campo-cidade carrega-se de conotações ideológicas e afetivas que se vãoconstelando em torno das posições de vários grupos sociais. Antes da RevoluçãoIndustrial e da Revolução Francesa, o burguês, ainda sob a tutela da nobreza, via ocampo com olhos de quem cobiça o Paraíso proibido idealizando-o como reino daespontaneidade: é a substância do idílio e da écloga arcádica. Com o triunfo de ambas

as revoluções, a burguesia mais próspera tomará de vez o poder citadino, e será a vezdo nobre ressentido cantar a paz do mundo não maculado pela indústria e pela

 vulgaridade do comércio: o saudosismo de Chateaubriand, de Scott e do nosso Alencartraduz bem a nostalgia romântica da natureza que os novos tempos ignoram cominsolência30. Mas tanto no contexto árcade-ilustrado como no romântico nostálgico háum apelo à natureza como valor supremo que em última instância é defesa do homeminfeliz. As diferenças residem no grau de intensidade com que o eu do homemmoderno procura afirmar-se; e nesse sentido o poeta romântico, mais isolado eimpotente em face do mundo que o cerca do que o poeta árcade, irá muito mais longena exaltação dos valores que atribui à natureza: a emotividade que o pressiona é

projetada na paisagem que se torna, segundo a palavra intimista de Amiel, um verdadeiro “état d’âme”.

Creio que o aprofundamento deste último ponto levará a reconhecer nochamado  pré-romantismo não tanto um estilo autônomo quanto uma corrente desensibilidade que afeta todo o século XVIII e responde às inquietudes de grupos epessoas do   Ancien Régime corroídas por um agudo mal-estar em relação a certospadrões morais e estéticos dominantes. É na obra de alguns poetas fortementepassionais do fim do século, como Foscolo, Chatterton e Blake, que vai aflorandoaquele humor melancólico, prenúncio do mal do século e do spleen românticos e clarosigno do homem refratário à engrenagem da vida social; e é nesses poetas que a

natureza se turva e passa da bucólica fonte serena a mar revoltoso e céu ensombrado.Renasce o gosto da poesia de Dante profeta, do Shakespeare selvagem, do brumosocelta Ossian, fingido pelo pré-romântico Macpherson; e pretere-se com impaciênciatudo o que, por excessivamente regular, parece o contrário do “gênio”, como a lírica dePetrarca e a tragédia de Racine31.

No Arcadismo brasileiro, os traços pré-românticos são poucos, espaçados,embora às vezes expressivos, como em uma ou outra lira de Gonzaga, em um ou outrorondó de Silva Alvarenga. Em nenhum caso, porém, rompem o quadro geral de umNeoclassisismo mitigado, onde prevalecem temas árcades e cadências rococós. E sem

30

É a tese de Karl Mannheim segundo a qual o Romantismo de tipo medievista, sentimental e voltadopara uma natureza de refúgio, reage contra os esquemas culturais da burguesia ascendente (cf. Essays onSociology and Social Psychology, Londres, Routledge-Kegan, 2ª ed., 1959.31 V. o ensaio analítico de Van Tieghem, Le préromantisme, Paris, 1948.

Page 55: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 55/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

54

dúvida foram as teses ilustradas, que clandestinamente entraram a formar a bagagemideológica dos nossos árcades32 e lhes deram mais de um traço constante: o gosto daclareza e da simplicidade graças ao qual puderam superar a pesada maquinaria cultista;os mitos do homem natural, do bom selvagem, do herói pacífico; enfim, certo

mordente satírico em relação aos abusos dos tiranetes, dos juízes venais, do clerofanático, mordente a que se limitou, de resto, a consciência libertária dos intelectuaisda Conjuração Mineira.

  A análise a que a historiografia mais recente tem submetido o conteúdoideológico da Inconfidência é, nesse ponto, inequívoca: zelosos de manter ofundamento jurídico da propriedade (que a Revolução Francesa, na sua linha central,iria ratificar), os dissidentes de Vila Rica apenas se propunham evitar a sangria que nasfinanças mineiras, já em crise, operaria a cobrança de impostos sobre o ouro (aderrama). Na medida em que impedir a execução desta importava em alterar o estatutopolítico, os Inconfidentes eram “revolucionários”, ou, do ponto de vista colonial,

“sediciosos”. Cláudio Manuel da Costa, por exemplo, falava em “interesses daCapitania”, lesados pela administração lusa; para Alvarenga Peixoto, senhor de lavrasno sul de Minas, os europeus estavam “chupando toda a substância da Colônia”; as“pessoas grandes” ou “alentadas” viam com apreensão a derrama, sentindo-se como oCoronel José Ayres, “poderoso com o senhorio que tem em mais de quarenta e tantassesmarias,... acérrimo inimigo dos filhos de Portugal”. Em Tomás Antônio Gonzaga,colhe-se boa messe de profissões de fé proprietista, como o famoso “é bom ser dono”da Lira I ...; do próprio Tiradentes sabe-se que não pretendia abolir a escravatura caso

 vingasse o levante, opinião partilhada pelos outros inconfidentes, salvo o mais radicaldentre todos, o Padre Carlos Correia de Toledo e Melo33.

 Vinham, pois, repercutir no contexto colonial as vozes da inteligência francesado século, que na sua bíblia, a Encyclopédie, ainda se aferrava aos princípios de “classe”e “propriedade”, mais resistentes, pelo que se constatou depois, do que a bandeiraLiberté-Égalité-Fraternité .

32 V. o curioso livro de Eduardo Frieiro, O Diabo na Livraria do Cônego (Belo Horizonte, Itatiaia, 1957),onde estão elencados os livros de estofo iluminista que se encontraram na biblioteca do Padre Luís Vieira da Silva, inconfidente mineiro.33

Para um contato direto com a ideologia dos Inconfidentes, são fontes obrigatórias os Autos de Devassada Inconfidência Mineira, Biblioteca Nacional, Rio, 1936-1938. Para o conhecimento preciso da situaçãona Bahia, o melhor testemunho vem de um “colono ilustrado”, Luís dos Santos Vilhena, que deixou umaRecopilação de Notíciais Soteropolitanas e Brasílicas (ano de 1802), Salvador, 1921.

Page 56: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 56/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

55

Texto 8: COSTA, Cláudio Manoel da. Poemas. São Paulo: Cultrix, 1966. (Seleção de poemas)

IPara cantar de amor tenros cuidados,Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;Ouvi pois o meu fúnebre lamento;Se é, que de compaixão sois animados:

 Já vós vistes, que aos ecos magoadosDo trácio Orfeu parava o mesmo vento;Da lira de Anfião ao doce acentoSe viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,Para cingir de Apolo a verde rama,Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,Porque ao menos o entoa um peregrino,Se faz digno entre vós também de fama.

IV Sou pastor; não te nego; os meus montadosSão esses, que aí vês; vivo contente

 Ao trazer entre a relva florescente A doce companhia dos meus gados;

 Ali me ouvem os troncos namorados,Em que se transformou a antiga gente;

Qualquer deles o seu estrago sente;Como eu sinto também os meus cuidados.

 Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum diaFirmes vos contemplastes, e segurosNos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;Que eu alegre algum tempo assim me via;E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

Page 57: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 57/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

56

 VIIOnde estou? Este sítio desconheço:Quem fez tão diferente aquele prado?Tudo outra natureza tem tomado;

E em contemplá-lo tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueçoDe estar a ela um dia reclinado:

 Ali em vale um monte está mudado:Quanto pode dos anos o progresso!

 Árvores aqui vi tão florescentes,Que faziam perpétua a primavera:Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:Mas que venho a estranhar, se estão presentesMeus males, com que tudo degenera!

 VIIIEste é o rio, a montanha é esta,

Estes os troncos, estes os rochedos;São estes inda os mesmos arvoredos;Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,Rio, montanha, troncos, e penedos;Que de amor nos suavíssimos enredosFoi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido

 Aquele monte, e as vezes, que baixandoDeixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;Que da mesma saudade o infame ruído

 Vem as mortas espécies despertando.

Page 58: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 58/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

57

IX Pouco importa, formosa Daliana,Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;Se quanto mais me afliges, e consomes,

Tanto te adoro mais, bela serrana.

Ou já fujas do abrigo da cabana,Ou sobre os altos montes mais te assomes,Faremos imortais os nossos nomes,Eu por ser firme, tu por ser tirana.

Um obséquio, que foi de amor rendido,Bem pode ser, pastora, desprezado;Mas nunca se verá desvanecido:

Sim, que para lisonja do cuidado,Testemunhas serão de meu gemidoEste monte, este vale, aquele prado.

 XV Formoso, e manso gado, que pascendo

 A relva andais por entre o verde prado, Venturoso rebanho, feliz gado,Que à bela Antandra estais obedecendo;

 Já de Corino os ecos percebendo A frente levantais, ouvis parado;Ou já de Alcino ao canto levantado,Pouco e pouco vos ides recolhendo;

Eu, o mísero Alfeu, que em meu destino

Lamento as sem razões da desventura, A seguir vos também hoje me inclino:

Medi meu rosto: ouvi minha ternura;Porque o aspecto, e voz de um peregrinoSempre faz novidade na espessura.

Page 59: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 59/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

58

 XXVIIIFaz a imaginação de um bem amado,Que nele se transforme o peito amante;Daqui vem, que a minha alma delirante

Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado Anarda cuido ver, bem que distante;Mas ao passo, que a busco neste instanteMe vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,E por força da idéia me convertoNa bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto, Ao querer contrastar seu gênio esquivo,Tão longe dela estou, e estou tão perto.

Page 60: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 60/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

59

Texto 9:GONZAGA, Tomaz Antonio.  Marília de Dirceu. 1. ed., São Paulo: Ediouro. (Prestígio)Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileirohttp://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Lira I

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,Que viva de guardar alheio gado;De tosco trato, d’ expressões grosseiro,Dos frios gelos, e dos sóis queimado.Tenho próprio casal, e nele assisto;Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;Das brancas ovelhinhas tiro o leite,E mais as finas lãs, de que me visto.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,Dos anos inda não está cortado:Os pastores, que habitam este monte,Com tal destreza toco a sanfoninha,Que inveja até me tem o próprio Alceste:

 Ao som dela concerto a voz celeste;Nem canto letra, que não seja minha,

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,Só apreço lhes dou, gentil Pastora,Depois que teu afeto me segura,Que queres do que tenho ser senhora.É bom, minha Marília, é bom ser donoDe um rebanho, que cubra monte, e prado;Porém, gentil Pastora, o teu agrado

 Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Page 61: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 61/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

60

Os teus olhos espalham luz divina, A quem a luz do Sol em vão se atreve:Papoula, ou rosa delicada, e fina,Te cobre as faces, que são cor de neve.

Os teus cabelos são uns fios d’ouro;Teu lindo corpo bálsamos vapora.

 Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,Para glória de Amor igual tesouro.

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Leve-me a sementeira muito emboraO rio sobre os campos levantado:

 Acabe, acabe a peste matadora,

Sem deixar uma rês, o nédio gado. Já destes bens, Marília, não preciso:Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;Para viver feliz, Marília, bastaQue os olhos movas, e me dês um riso.

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Irás a divertir-te na floresta,Sustentada, Marília, no meu braço;

 Ali descansarei a quente sesta,Dormindo um leve sono em teu regaço:Enquanto a luta jogam os Pastores,E emparelhados correm nas campinas,Toucarei teus cabelos de boninas,Nos troncos gravarei os teus louvores.

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Depois de nos ferir a mão da morte,

Ou seja neste monte, ou noutra serra,Nossos corpos terão, terão a sorteDe consumir os dois a mesma terra.Na campa, rodeada de ciprestes,Lerão estas palavras os Pastores:“Quem quiser ser feliz nos seus amores,Siga os exemplos, que nos deram estes.”

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Page 62: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 62/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

61

Lira XV 

Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,Fui honrado Pastor da tua aldeia;

 Vestia finas lãs, e tinha sempre A minha choça do preciso cheia.Tiraram-me o casal, e o manso gado,Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queriaDe mor rebanho ainda ser o dono;

Prezava o teu semblante, os teus cabelos Ainda muito mais que um grande Trono. Agora que te oferte já não vejo Além de um puro amor, de um são desejo.

Se o rio levantado me causava,Levando a sementeira, prejuízo,Eu alegre ficava apenas viaNa tua breve boca um ar de riso.Tudo agora perdi; nem tenho o gosto

De ver-te aos menos compassivo o rosto.

Propunha-me dormir no teu regaço As quentes horas da comprida sesta,Escrever teus louvores nos olmeiros,Toucar-te de papoulas na floresta.

 Julgou o justo Céu, que não convinhaQue a tanto grau subisse a glória minha.

 Ah! minha Bela, se a Fortuna volta,

Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;Por essas brancas mãos, por essas facesTe juro renascer um homem novo;Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,

 Amar no Céu a Jove, e a ti na terra.

Fiadas comprarei as ovelhinhas,Que pagarei dos poucos do meu ganho;E dentro em pouco tempo nos veremosSenhores outra vez de um bom rebanho.

Para o contágio lhe não dar, sobejaQue as afague Marília, ou só que as veja.

Page 63: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 63/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

62

Senão tivermos lãs, e peles finas,Podem mui bem cobrir as carnes nossas

 As peles dos cordeiros mal curtidas,E os panos feitos com as lãs mais grossas.

Mas ao menos será o teu vestidoPor mãos de amor, por minhas mão cosido.

Nós iremos pescar na quente sestaCom canas, e com cestos os peixinhos:Nós iremos caçar nas manhãs friasCom a vara envisgada os passarinhos.Para nos divertir faremos quantoReputa o varão sábio, honesto e santo.

Nas noites de serão nos sentaremosC’os filhos, se os tivermos, à fogueira;Entre as falsas histórias, que contares,Lhes contarás a minha verdadeira.Pasmados te ouvirão; eu entretanto

 Ainda o rosto banharei de pranto.

Quando passarmos juntos pela rua,Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;Dizendo uns para os outros: “Olha os nosso

“Exemplos da desgraça, e são amores”.Contentes viveremos desta sorte,

 Até que chegue a um dos dois a morte.

Page 64: Ensino de Literatura Brasileira I

5/9/2018 Ensino de Literatura Brasileira I - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/ensino-de-literatura-brasileira-i 64/64

Ensino de Literatura Brasileira I ___________________________________________________________________________

63

Lira III

Tu não verás, Marília, cem cativosTirarem o cascalho, e a rica, terra,Ou dos cercos dos rios caudalosos,

Ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negroDo pesado esmeril a grossa areia,E já brilharem os granetes de ouro

No fundo da bateia.

Não verás derrubar os virgens matos;Queimar as capoeiras ainda novas;Servir de adubo à terra a fértil cinza;

Lançar os grãos nas covas.

Não verás enrolar negros pacotesDas secas folhas do cheiroso fumo;Nem espremer entre as dentadas rodas

Da doce cana o sumo.

 Verás em cima da espaçosa mesa Altos volumes de enredados feitos; Ver-me-ás folhear os grande livros,

E decidir os pleitos.

Enquanto revolver os meus consultos.Tu me farás gostosa companhia,Lendo os fatos da sábia mestra história,

E os cantos da poesia.

Lerás em alta voz a imagem bela,Eu vendo que lhe dás o justo apreço,Gostoso tornarei a ler de novo

O cansado processo.

Se encontrares louvada uma beleza,Marília, não lhe invejes a ventura,Que tens quem leve à mais remota idade

 A tua formosura.