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1 ENSINO DE HISTÓRIA, CURRÍCULO E NARRATIVAS IDENTITÁRIAS MOZART LINHARES DA SILVA Doutor em História pela PUCRS e professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e do Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa Cruz do Sul. [email protected] CAROLINA DE FREITAS CORRÊA SIQUEIRA Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação PPGEdu da Universidade de Santa Cruz do Sul e Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares - PROSUP da CAPES. [email protected] 1. Introdução: Neste artigo, problematizamos o material pedagógico produzido pelo Ministério da Educação (MEC), como um dos desdobramentos da Lei 10.639 de 2003 (BRASIL, 2003), que institui uma reforma curricular com obrigatoriedade de História e Cultura Afro Brasileira e Africana na educação básica. A partir das leituras de Michel Foucault, analisamos a determinação legal supracitada, bem como o material publicado e indicado pelo MEC, enquanto dispositivos políticos que incidem nos processos de subjetivação e, portanto, na produção de sujeitos sociais, no caso, sujeitos étnicos, e implicam numa releitura da ideia de população no Brasil, estratégica na construção de biopolíticas. Consideramos, nesse sentido, o currículo como um dispositivo a partir do qual se articulam ações de governamento biopolíticos, implicadas na construção de “verdades” produtoras de sentido no que se refere a população e, por desdobramento, das narrativas identitárias nacionais. No material analisado o currículo é estruturado de forma estratégica para a produção de narrativas identitárias de cunho étnico/racial dos sujeitos negros no Brasil a partir de uma nova proposição do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Ao nos determos no currículo do ensino da História, estamos também inquirindo como a educação e a narrativa histórica se constituem como instrumentos de governamento. Nessa mesma direção é relevante apontar para a campo da História como estratégico na produção dos regimes de verdade, o que significa pensa-la a partir das condições externas a sua própria produção, ou seja, a partir das condições de possibilidade de suas

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ENSINO DE HISTÓRIA, CURRÍCULO E NARRATIVAS IDENTITÁRIAS

MOZART LINHARES DA SILVA Doutor em História pela PUCRS e professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em

Educação (PPGEDU) e do Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa

Cruz do Sul.

[email protected]

CAROLINA DE FREITAS CORRÊA SIQUEIRA

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação – PPGEdu da Universidade de Santa

Cruz do Sul e Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares - PROSUP da CAPES.

[email protected]

1. Introdução:

Neste artigo, problematizamos o material pedagógico produzido pelo Ministério da

Educação (MEC), como um dos desdobramentos da Lei 10.639 de 2003 (BRASIL,

2003), que institui uma reforma curricular com obrigatoriedade de História e Cultura

Afro Brasileira e Africana na educação básica. A partir das leituras de Michel Foucault,

analisamos a determinação legal supracitada, bem como o material publicado e indicado

pelo MEC, enquanto dispositivos políticos que incidem nos processos de subjetivação e,

portanto, na produção de sujeitos sociais, no caso, sujeitos étnicos, e implicam numa

releitura da ideia de população no Brasil, estratégica na construção de biopolíticas.

Consideramos, nesse sentido, o currículo como um dispositivo a partir do qual se

articulam ações de governamento biopolíticos, implicadas na construção de “verdades”

produtoras de sentido no que se refere a população e, por desdobramento, das narrativas

identitárias nacionais.

No material analisado o currículo é estruturado de forma estratégica para a produção

de narrativas identitárias de cunho étnico/racial dos sujeitos negros no Brasil a partir de

uma nova proposição do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Ao nos

determos no currículo do ensino da História, estamos também inquirindo como a

educação e a narrativa histórica se constituem como instrumentos de governamento.

Nessa mesma direção é relevante apontar para a campo da História como estratégico na

produção dos regimes de verdade, o que significa pensa-la a partir das condições

externas a sua própria produção, ou seja, a partir das condições de possibilidade de suas

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narrativas, o que nos obriga a considerar a epismete de sua produção, com seus filtros e

intencionalidades.

2. Currículo como dispositivo

Visando instrumentalizar intelectual e didaticamente os profissionais da educação

básica frente as alterações curriculares expressas na lei 10.639 de 2003, o MEC, através

da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),

desenvolveu e publicou um material de suporte pedagógico vinculado à Coleção

Educação para Todos, intitulado Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei

Federal nª 10.639/2003 (BRASIL, 2005). Este material, publicado na forma de livro,

reúne artigos de pesquisas referentes à:

histórica orientação eurocêntrica da educação brasileira; à ausência da

história do continente africano e dos africanos no Brasil e/ou da produção

historiográfica sobre esse continente produzida por brilhantes intelectuais

africanos; à aspectos fundamentais da geografia africana; e à concepção de

mundo africana (BRASIL, 2005, p. 8).

A partir de algumas das “categorias” foucaultianas, como dispositivo, saber-

poder, biopolítica e governamentalidade, consideramos que os documentos analisados

neste estudo se constituem como estratégias de governamento a partir da reforma

curricular. Por meio da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e

Africana instituído pela Lei 10.639/2003(BRASIL, 2003), das determinações para as

reformas curriculares das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2004 (BRASIL, 2004),

bem como da produção intelectual sugerida pelo MEC (BRASIL, 2005),

compreendemos que o currículo se apresenta aqui como um instrumento que possibilita

uma releitura histórica e social da sociedade brasileira, o que sugere a construção de

novos regimes de verdade sobre as relações étnico-raciais do Brasil que estão, vale

notar, na “base” da construção das narrativas identitárias da nação. Ou seja, a estratégia

de governamento está justamente na possibilidade de incitar novos processos de

subjetivação, ou seja, produzir novos sujeitos (negros) a partir das reformas curriculares

que se propõem “redentoras” de uma História negada, em detrimento de uma “falsa”

História eurocêntrica. Como lembra Berino: “Nas escolas, um caminho para alcançar a

governamentabilidade é o currículo” (2008, p. 71). É preciso notar que ao propor novas

narrativas históricas sobre as relações étnico-raciais e, assim promover a produção de

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novos sujeitos sociais/raciais constituídos a partir da produção de novas narrativas

identitárias, o material pedagógico do MEC aponta para a legitimação do saber

histórico.

Não pensamos o currículo como uma ferramenta organizacional de conteúdos

tão somente, mas sim, como instrumento que constitui e regula, assim como delineia as

concepções dos sujeitos acerca dos outros e de si, sempre propensas a naturalização.

Nessa direção destacamos a compreensão de Popkewitz, que diz que o currículo

constitui “formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de

raciocínio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação – a

organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e

‘ver’ o mundo e o ‘eu’ ” (2010, p. 174). A guisa de problematizações futuras, pode-se

afirmar que o currículo não é uma forma de representação, e sim uma forma de

produção, constituição de sujeitos e da própria “realidade”. Um instrumento articulador

de práticas discursivas que constrói e não apenas revela ou traz ao presente uma

ausência.

Na medida em que as alterações curriculares propostas para análise pressupõem

a redefinição (ou reconstrução) de quem é o sujeito negro brasileiro por meio da

reescrita histórica da identidade étnica, percebemos que a narrativa histórica ocupa

espaço tático na constituição do currículo enquanto um dispositivo de governamento

social.

A narrativa histórica pode funcionar como produtora de uma historicidade

legitimadora dos jogos de poder, como é o caso da (re)escrita histórico-identitária que

visa o desenvolvimento de orgulho étnico e o redimensionamento do papel do negro na

História do Brasil. A partir das leituras de Michel Foucault acerca do saber histórico

como um campo de tensões políticas, destacamos que as narrativas históricas são

constituídas como dispositivos estratégicos de distanciamento ou de pertencimento no

campo das ações políticas.

A narrativa histórica possui um amplo poder de produzir e/ou legitimar os jogos

de verdade e os espaços de poder. Uma narrativa histórica consagrada como História-

Verdade, ou seja, aquela que denuncia outra(s) História(s) distorcida(s), delimita as

ancestralidades, assim como age taticamente na naturalização dos discursos

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(FOUCAULT, 2010). Uma vez consolidada, uma narrativa verdadeira assume um

caráter fundamental na politização do campo do saber histórico: a capacidade de ela

mesma não ser mais historicizada, pois é naturalizada. Dessa forma, os discursos

histórico-identitários oriundos do dispositivo do saber histórico, possuem o “atestado” e

a solidez de verdades sobre determinado campo, o que possibilita-nos compreender a

produção da História como um espaço importante para as disputas políticas de naturezas

discursivas distintas. Segundo Rago: “Foucault defendia, na introdução de A

arqueologia do saber, uma postura historiográfica preocupada não mais em revelar e

explicar o real, mas em desconstruí-lo enquanto discurso” (1995, p. 71), o que nos

permite tratar a História para além dos pressupostos do cientificismo moderno e sim

como um campo a mais das relações de força da ordem discursiva.

Nossos apontamentos fundamentam-se justamente na perspectiva de uma

produção histórica não salvacionista, mas sim, antiessencialista e descontínua. O saber

histórico “não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa ‘reencontrar-nos’. A

História será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso

próprio ser”. (FOUCAULT, 1979, p. 27).

As novas bases para essa reescrita histórica da identidade negra expressas nos

documentos, apontam para uma espécie de “denúncia” da hegemonia da História

eurocêntrica em detrimento de uma História Afro-brasileira e Africana que seria a

verdadeira e não privilegiada nas narrativas históricas sobre o Brasil. A questão que se

coloca aqui é que o uso do dispositivo do saber histórico pode agir na legtimação ou

descredibilização de um mesmo discurso, e a nova produção das identidades étnico-

históricas dos sujeitos negros no Brasil está sendo pensada exatamente nas mesmas

bases normalizadoras e de filtragens de qualquer outro discurso histórico. O que

queremos dizer, é que o fato de se tratar de uma História “redentora” (que se apresenta

como verdadeira) por dar conta da reconstrução histórica da identidade negra, não a

torna menos estratégica ou menos política, intencional e, no limite, menos verdadeira. O

que também não implica em dizê-la ruim, mas sim, que perceber esse processo, permite-

nos ver o dispositivo histórico enquanto uma estratégia importante na (re)produção de

narrativas sobre o negro no Brasil, e forçosamente dizer, da “identidade nacional”.

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Em diferentes momentos da trajetória histórica brasileira, a chamada identidade

nacional foi sendo constituída a partir da compreensão da miscigenação enquanto um

elemento importante (por vezes problemático) na configuração populacional. O

fenômeno da miscigenação apresentou-se como balizador das discussões acerca da

composição da sociedade brasileira enquanto uma unidade, o que era fundamental

segundo o paradigma nacional oriundo do século XIX. Ora como problema e

“explicação” para o anunciado fracasso brasileiro, ora como “cimento” da unificação

nacional, o caráter híbrido da população atravessou os discursos sobre a brasilidade em

diferentes momentos da trajetória histórica brasileira. Preocupações com a composição

da população nacional já apareciam formuladas desde a Constituinte de 1823, revistas

sobre o prisma evolucionista a partir dos anos de 1870, com o processo abolicionista e

republicano e, sobretudo, com a emergência do Estado Novo, nos anos 1930, quando o

discurso racialista brasileiro passou a construir a matriz da democracia racial pela via do

Estado. Segundo Silva, “os Estados-nação, nesse processo de construção de suas

narrativas identitárias, com maior ou menor intensidade, foram racializados” (2012, p.

196).

Os discursos constituintes do Estado-nação brasileiro buscaram, ao longo do

século XX, dar conta da grande massa heterogênea que é a população. As estratégias de

governamento biopolítico, doravante, passaram a incidir sobre a população a partir de

táticas homogeneizadoras atenuantes dos conflitos sociais e raciais, que possibilitaram

uma produção “unitária” do “ser” brasileiro a partir dos anos 1930.

No centro dos debates desse contexto, sobre a constituição da chamada

“identidade nacional”, estão as discussões sobre o negro e o seu papel na composição

antropológica e ontológica da sociedade brasileira. O papel do negro, constituído a

partir das narrativas histórico-identitárias da nação, sustentou e sustenta uma série de

regimes de verdade constituintes dos sujeitos sociais. Nessa direção, destacamos que

uma reestruturação curricular que produz, revisa e reescreve a História Afro-brasileira,

produz também novos sujeitos negros a partir da produção do orgulho étnico-identitário.

Assim, redimensionar a História do Brasil para narrativas históricas afrocêntricas

implica, sem dúvida, em uma reconfiguração das matrizes identitárias da nação.

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As análises do material publicado pelo MEC permitem-nos dizer que a História

do Brasil traçada nas produções indicadas aos docentes da Educação Básica para o

Ensino das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2005) propõem uma reescrita histórica

“revisionista”, que visa romper com o padrão “hegemônico” de escrita e ensino de

História tradicionalmente aceitos. O que problematizamos não diz respeito

necessariamente a atestar legitimidade ou não-legitimidade de uma História

Antirracista. A questão que colocamos aqui é uma possibilidade analítica que tensiona o

funcionamento do dispositivo do saber histórico e os jogos de verdades produzidos pela

historiografia que vem se moldando nesse cenário. Problematizamos a “denúncia” da

História tradicional que permeia os dispositivos legais analisados, enquanto que a nova

História que se pretende, desagua em estruturas de narrativas tão normalizadoras e

homogeneizantes quanto às repudiadas. Ou seja: seria menos estratégica, uma História

que desloca a narrativa eurocêntrica para narrativas histórico-identitárias afrocêntricas?

Evidentemente, os jogos de saber-poder que gravitam em torno dessas questões

também evidentemente fundacionais, já não centram-se na consolidação dos Estados-

nação unificados, mas dizem respeito à politização do campo histórico, e à

ressignificação dos espaços sociais e recriação das identidades (não mais nacionais, e

sim dos grupos multiculturais). Embora a emergência desses processos de

criação/reescrita das novas identidades se dê a partir das reivindicações e lutas,

destacamos Bauman (2003), quando atenta para os riscos de assumir um caráter

conservador por parte do “nós” em relação à “eles”, que ocasiona a criação de uma

espécie de “comunidade identitária” essencializada, homogênea e exclusivista.

Considerando as análises acima, discutiremos a revisão curricular calcada nas

produções indicadas pelo Ministério da Educação, chamando a atenção para o papel da

História como propositora de narrativas histórico-identitárias negadas em uma História

oficial.

3. Narrativa histórica brasileira: novas filtragens

Entendemos os materiais didáticos desdobrados da a Lei 10.639/03, sugeridos pelo

MEC, como corpus discursivo a partir do qual procuraremos apontar para os enunciados

que passam a organizar as novas narrativas da nação, ou melhor, as narrativas que visam

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redimensionar o “papel” do negro na construção social e histórica na nação.

Destaquemos o volume dois da coleção “Educação para Todos”, intitulado “Educação

anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nª 10.639/2003” (BRASIL, 2005).

O material organiza a narrativa histórica visando a construção da identidade negra,

ou ainda, afro-brasileira, tendo como ponto de partida a História da África. É através da

“África”, como espaço fundante, que se institui o lastro genealógico que aponta para o

pertencimento étnico-racial do negro brasileiro. Sobre o continente africano enquanto

único berço genitor de toda a espécie humana, “essa situação deve ser celebrada”

(BRASIL, 2005, p.137). Com isso em destaque, passa-se a apontar como esse

continente por vezes desconhecido ou ignorado em suas virtudes primeiras, se

caracteriza. O material do MEC organiza os conteúdos de ensino de História da África

sugerindo o seguinte:

A porta de entrada para o ensino de História da África passa pelo

reconhecimento das singularidades desse continente, tais como:

- berço da humanidade em todas as configurações tanto antiga (Homo Hablis,

Homo Erectus e Homo Neanderthalensis) como moderna (Homo Sapiens

Sapiens);

-lugar a partir do qual se efetuou todo o povoamento do planeta, a partir de

100 a 80 mil anos;

- berço das primeiras civilizações agro-sedentárias e agro-burocráticas do

mundo ao longo do Nilo (Egito, Kerma, Maroé) (BRASIL, 2005, p. 137).

O que problematizamos aqui não são os conteúdos especificamente, mas sim, as

narrativas que atravessam a forma de ensino sugerida nos documentos legais. O que

queremos pensar com isso é de que forma essa História constitui necessariamente uma

identidade africana, ou constrói uma ideia essencialmente africanizada do que é ser

negro. Não está dito, em momento algum dessa História da África, que o continente

africano e sua História constituem-se a partir de uma unidade negra, por exemplo. O que

produz essa ideia é justamente o uso do campo histórico como dispositivo de saber-

poder, neste caso, sobre o negro no Brasil. Não há uma “verdade” histórica que, se

desvendada, apontará para uma África que é sinônimo da negritude ou de uma

solidariedade negra/africana/afro-brasileira de sujeitos que identificam-se em sua

comunidade identitária imaginada.

Percebemos que os grupos étnicos considerados em uma História essencialmente

africana não são, necessariamente, todos os povos que habitaram o continente. Ou seja,

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apenas as comunidades étnicas nomeadas como “negras” são pertencentes ao berço da

africanidade, dessa forma, as demais etnias (as que não se enquadram nas bases que

fundam a identidade negra) são invasoras, estrangeiras, conquistadoras e dizem respeito

aos “misteriosos povos ‘de pele branca’, supostamente vindos do Oriente Médio”

(BRASIL, 2005, p. 139). Suspeitamos dessas narrativas, sobretudo pelo fato de que o

currículo proposto nos documentos legais, chama atenção intensamente para a

importância de celebrar e valorizar o fato de o continente africano (negro) ter sido palco

das primeiras civilizações mundiais, entre elas, a mais rica e complexa, que é a

civilização do Egito Antigo. Atentamos para o fato de que, ao falar nas parcelas

territoriais do continente africano de ocupação árabe, fala-se em “invasores” (p. 138)

porém, ao enaltecer a História do Egito Antigo como forma de positivar a História do

continente africano, é preciso restabelecer algumas “verdades negadas”. O caso, a

indicação, controversa, de que os egípcios fossem, na realidade, pertencentes ao povo

negro. A História tradicional, por exemplo, ao tratar do Egito lança mão de descrições

comparativas e racializadas como: ‘egípcios e negros’ ou ‘núbios e negros’ (como se os

egípcios e núbios da antiguidade não tivesses sido negros)” (p. 140).

Apontamos aqui novamente para a tentativa de produção de uma África única,

que implica nessa constituição de uma nova narrativa histórico-identitária do negro em

uma unidade. Ou seja, a África que deve ser destacada nas disposições do currículo

precisa ser sinônimo de povo negro em todas as suas configurações históricas, o que

implica que se considere todas as etnias não negras como invasoras e estrangeiras.

Outro ponto de grande importância na constituição das novas narrativas

históricas sobre a História da África é a forma como se propõe que seja tratada a

escravidão. A singularidade da escravidão no continente africano tem extrema

importância para a compreensão dos desdobramentos socioeconômicos e políticos,

assim como o impacto negativo cumulativo tanto nos povos africanos, como dos que

descenderam e descendem do continente.

A sugestão de novas bases para o ensino de História da África aponta para uma

narrativa histórica que divide a escravidão transoceânica e escravidão autóctone: a

escravidão transoceânica, ou seja, a escravidão extracontinental, deu origem aos

sistemas escravistas raciais que predominaram as plantations no Oriente Médio e mais

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tarde nas Américas (BRASIL, 2005). Já a escravidão autóctone, diz respeito a um dos

pontos mais complexos e de certa forma contornado nas análises historiográficas

africanistas, que é a escravidão africana intracontinental. Percebemos que a proposta de

ensino sugere que a escravidão dentro do continente africano seja abordada a partir da

ideia de um escravismo “doméstico-serviçal, com pouca extensão para a esfera da

produção econômica” (BRASIL, 2005, p. 155), ou ainda que a “condição de escravo

correspondeu a uma categoria social entre várias outras, e não foi de nenhum modo

socialmente dominante, nem demograficamente preponderante” (2005, p. 155). Dessa

forma, a escravidão praticada dentro do continente africano não seria responsável em

nenhuma escala, pelos sistemas escravistas raciais consolidados fora do continente

africano, uma vez que foi concebida em todos os episódios históricos da África, em um

âmbito social ou de formação cultural da sociedade. Como se a cultura escravista

africana fosse um dado cultural que estaria amparado pelo relativismo histórico-

antropológico. É claramente um juízo de valor que implica a comparação entre um

escravismo nocivo e um amortecido pela cultura autóctone.

A proposta de apresentar uma História Total da África, que faça eco às

demandas de orgulho étnico ancestral, necessita de uma narrativa histórica que torne

homogêneas as estruturas sociais disformes impossíveis de serem massificadas, como é

o caso da catalogação/classificação de povos/tribos/clãs africanas. O que analisamos

aqui, é a historiografia sendo constituída em instrumento de filtragem discursiva

produtora das narrativas sobre a ancestralidade africana: diante da impossibilidade de

classificar os povos africanos dentro de uma “unidade” negra, percebemos que se lança

mão de inspiração historiográfica do materialismo histórico, afinal, uma vez

comprometido com um edifício teórico que “dê conta de tudo”, de alguma forma, a

narrativa tende a “se encaixar” na teoria. Por exemplo, é através da “análise societária

no modo de produção, nas estruturas políticas e nas relações segmentadas” (BRASIL,

pág. 147) que percebemos novamente o funcionamento do dispositivo histórico que cria

única África, uma vez que as estruturas sociais africanas podem ser mapeadas e

catalogadas compondo uma totalidade que engloba inclusive as fronteiras, diferenças e

fatores históricos controversos. É enaltecido e celebrado o respeito às peculiaridades

locais de cada povo, porém, evidencia-se que há um esforço para que eles constituam

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por fim, uma teia histórica contínua e coerente. O que queremos dizer é que, traçar uma

tipologia total dos modos de produção africanos, significa, inevitavelmente, abordar as

divergências sociais e políticas intracontinentais. Neste caso, destacamos que são

narradas como políticas expansionistas de um povo em detrimento do outro (BRASIL,

2005), enquanto que as divergências políticas extracontinentais são narradas sempre

como invasivas e violentas.

Centramos aqui outro ponto que consideramos importante na nossa análise: a

conotação branda e quase positivadora dos aspectos controversos intracontinentais da

História da África, que indica uma filtragem das práticas da escravidão como regime de

servidão praticada no continente, ou das disputas políticas de conquista e invasão de um

povo africano sobre o outro. No mesmo sentido, o tráfico extracontinental e a

escravidão racial são de “responsabilidade” estrangeira, assim como o caráter invasivo e

violento dos processos de conquista estrangeiro em detrimento dos povos autóctones.

Esses invasores estrangeiros são aqueles que rompem com as tradições e distorceram a

essência dos povos africanos conquistados (negros). Destacamos aqui para o alerta de

Foucault (2010), quando atenta para a importância dos mitos e das narrativas sobre o

invasor estrangeiro e do autóctone selvagem como símbolo de uma essência de

liberdade. Para Foucault, esses elementos que constituem a História como um campo de

lutas políticas e conduzem as narrativas legitimadoras ou descredibilizadoras de uma

mesma ancestralidade construída nas bases do dispositivo do saber histórico

(FOUCALT, 2010).

Controversamente, a proposta de currículo de História da África se enquadra em

todos os momentos nas mais clássicas estruturas curriculares da modernidade que

produziu a História eurocêntrica. O dispositivo da História aqui permanece, inclusive,

em suas bases normalizadoras. O que muda são os filtros, e o que eles produzem.

Colocamos sob suspeita a produção dessa História redentora, uma vez que essa

busca por um passado pressupõe que há de fato uma essência histórica do que é ser

negro. Essa matriz primeira, ou seja, a pedra fundamental da identidade negra, pode ser

resgatada sob um olhar redentor, e até romantizado, da História da África, pois é no

berço das matrizes africanas e/ou das estruturas sociais escravocratas no Brasil, que se

reconstrói e (re)funda uma (nova) identidade negra. Questionamos aqui, o fato de que

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essa História da África proposta, assim como a identidade negra que se molda daí, estão

sendo pensadas a partir de matrizes que não quebram com os paradigmas de uma

História chamada tradicional/inverídica. O que queremos dizer com isso, é que a ideia

de identidade negra que atravessa os documentos legais não considera, em nenhum

momento, a compreensão de que as identidades são, em um olhar mais acuidado,

narrativas, pois existem em uma perspectiva muito mais fragmentada e instável do que

nesse plano coerente e permanente que se pretende.

Não existem portanto, identidades acabadas, mas sim identidades imaginadas, da

mesma forma como não há nenhuma História possível de ser narrada como autêntica,

redentora ou imune aos jogos de poder aos quais as dinâmicas sociais estão,

inevitavelmente atreladas.

Considerações finais:

As análises realizadas neste artigo, não tiveram o objetivo de “propor” uma

outra História e Cultura Afro-brasileira e Africana, mas sim, de analisar a constituição

do dispositivo do saber histórico, que possibilita uma reflexão acerca da História como

um campo de disputas políticas de uso generalizado.

As demandas pelo reconhecimento das diferenças, as lutas dos movimentos

sociais antirracismo, assim como a importância de novas bases para o ensino de História

e Cultura afro-brasileira (em vista um redimensionamento do papel do negro na

sociedade brasileira) possuem um espaço amplo, legítimo e de grande importância no

Brasil contemporâneo. Todavia, o que problematizamos aqui são os dispositivos de

governamento biopolíticos que estão na base de novas configurações de saber sobre as

relações raciais no Brasil.

Os novos regimes de verdade constituídos a partir da perspectiva histórica, que

analisamos no material, ressignificam a identidade negra, agora fundamentada nas bases

de um elo africanista, de uma ancestralidade unificada e um lastro genealógico

legitimador da unidade afro-brasileira. O dispositivo histórico age como elemento

importante para essa nova estruturação da população brasileira, que “novamente passa a

ser objeto de regulação política” (SILVA, 2012, p. 207).

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Em História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, Michel Foucault questiona

“se a filosofia não consiste, ao invés de legitimar aquilo que já se sabe, num

empreendimento de saber como e até que ponto seria possível pensar de outro modo?”

(1994, p.15). A partir dos estudos foucaultianos, propusemos neste texto, um

aprofundamento nas discussões a respeito da Educação das Relações Étnico-Raciais,

não sob uma perspectiva reducionista de negação ou aceitação do material proposto para

análise. Não assumimos aqui uma posição contrária às determinações legais, nem

elaboramos “novas sugestões” de ensino. O que também não significa dizer que

percebemos este estudo enquanto um instrumento favorável ou legitimador da

celebração das diferenças, enunciado tão presente nos debates em Educação. Como

estratégia analítica, adotamos o exercício de colocar sob suspeita aquilo que já foi

pensado, afinal, mesmo nas políticas públicas mais bem intencionadas e desejantes,

algo pode ser perdido. Para Foucault: “nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não

significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a

fazer” (1995, p. 256). São exatamente esses “espaços” abertos nas políticas

educacionais antirracismo que compreendemos, neste estudo, como possibilidades

analíticas importantes no campo da produção histórica e da educação.

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