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ENSAIOS FILOSÓFICOS ROSA MENDONÇA DE BRITO Manaus 2014

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ENSAIOS FILOSÓFICOS

ROSA MENDONÇA DE BRITO

Manaus – 2014

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 3

NOTA INTRODUTÓRIA- Antonio Paim.......................................................................... 4

1 O PENSAMENTO FISOSÓFICO BRASILEIRO ............................................................ 6

2 KANTISMO E NEOKANTISMO NA MEDITAÇÃO BRASILEIRA .......................... 18

3 A TRAJETÓRIA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NA ESCOLA

POLITÉCNICA DO RIO DE JANEIRO ......................................................................... 28

4 FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SUA POSIÇÃO

ENTRE OS SABERES DA MODERNIDADE: UMA PERSPECTIVA

EM FOUCAULT ............................................................................................................ 41

5 HERMENÊUTICA: DE CÂNONE DE INTERPRETAÇÃO À

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA .................................................................................. 57

6 ÉTICA E QUALIDADE DE ENSINO ........................................................................... 68

7 UMA PERSPECTIVA DO PROBLEMA EPISMOLÓGICO DA

COMPLEXIDADE EM EDGAR MORIN ........................................................................ 75

8 A INFLUÊNCIA DA FENOMENOLOGIA NA DIALÉTICA DAS

CONSCIÊNCIAS DE VICENTE FERREIRA DA SILVA ............................................ 85

9 O SISTEMA PANTITEISTA DE CUNHA SEIXAS ................................................... 109

10 REALIZAÇÃO DA LIBERDADE .............................................................................. 121

11 O REPUBLICANISMO DEMOCRÁTICO .................................................................. 133

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 149

BIOGRAFIA DA AUTORA .................................................................................................. 151

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne onze temas escritos a partir da década de 1980 e publicados nas

Revistas: Ciências Humanas, da Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro; Presença

Filosófica, editada pela Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, no Rio de Janeiro;

Convivium, publicada pela Editora Convivium, em São Paulo; Amazônida, do Programa de

Pós-Graduação em Educação da UFAM.

Os temas são produtos de pesquisas e estudos desenvolvidos quando do meu

doutoramento em Filosofia, com ênfase na Filosofia Luso-Brasileira, na Universidade Gama

Filho do Rio de Janeiro e como professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da

UFAM. Interdependentes, tratam de diferentes temas e autores ligados ao pensamento

português e brasileiro, voltados para a ciência, filosofia, política e educação.

O seu conteúdo enfeixa além da história do pensamento filosófico brasileiro e o

kantismo e neokantismo na meditação brasileira, questões de filosofia da ciência, ética,

hermenêutica, fenomenologia, dialética, pantiteísmo, consciência, complexidade, liberdade,

república e democracia.

Agradeço a Academia Amazonense de Letras, na pessoa de seu Presidente,

confrade Arlindo Porto, e ao Secretário de Cultura do Estado, historiador Robério Braga, a

possibilidade de publicar e difundir esses estudos que espero, possam contribuir para a

discussão dos temas versados, especialmente nas salas de aula de Filosofia e das

Universidades.

Rosa Mendonça de Brito

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Nota introdutória

Nesta década e meia do novo milênio, capitaneada sobretudo por autores franceses, tem

florescido o que Vargas Llosa, em livro publicado recentemente (2012) --A civilização do espetáculo--

designou como a linhagem que preconiza a substituição dos valores tradicionais por algo que chega a

reconhecer-se como contra-cultura. A paternidade desse fenômeno vem de ser reconhecida pelo

pensador francês Guillaume le Blanc no livro La philosophie comme contre-culture (Paris, PUF, 2014).

Trata-se do abandono pelo pensamento filosófico do seu tradicional papel formativo por algo

destinado a nutrir os meios de comunicação --é ainda Vargas Llosa que o diz-- com os elementos

requeridos pela postura que coloca em lugar do que erigimos no passado por algo que se reduz,

progressivamente, a alimentar as paixões baixas dos comuns dos mortais. Tratar-se-ia de valorizar

exclusivamente aquilo a que corresponderiam as formas de entretenimento.

O aludido fenômeno emergente no Ocidente tem encontrado, em nosso meio, terreno fértil para

prosperar devido ao principal resultado indesejado da ascensão do positivismo, ocorrida durante o

período republicano da história brasileira.

O registro precedente tem o propósito de enaltecer o significado da iniciativa de Rosa Mendonça

de Brito ao reunir os textos dispersos nos quais recupera aspectos relevantes da trajetória da

filosofia brasileira. Talvez a principal dificuldade para reconhecê-las advenha do cacoete de

identificar filosofia com sistema filosófico, quando, na verdade, o enriquecimento do patrimônio

filosófico acumulado pelo Ocidente advém do significado de que chegam a revestir-se, nos seus

diversos ciclos, alguns problemas teóricos. Valendo-se desta ótica, formulada e desenvolvida por

Miguel Reale (1910/2006), Rosa Mendonça de Brito destaca a importância das contribuições de

determinados pensadores do mundo luso-brasileiro.

O lugar dos problemas no curso da filosofia é apresentado magistralmente no primeiro ensaio

dessa coletânea. Escreve a esse propósito a autora: “a descoberta da importância dos problemas na

História da Filosofia pode ser atribuída a Hegel. Hartman proclama mais tarde que o mais

característico da etapa contemporânea da filosofia consiste na primazia do problema que é assumida

em detrimento do sistema”. Lembra que um dos mais importantes historiadores da filosofia de nosso

tempo, Rodolfo Mondolfo (1877/1976), adverte para o fato de que “os sistemas com efeito passam e

caem; mas sempre ficam os problemas colocados como conquistas da consciência filosófica,

conquistas imorredouras apesar da variedade das soluções que se intentam e das próprias formas

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em que são colocadas, porque esta variação representa o aprofundamento progressivo da

consciência filosófica.”

Coube justamente a Rosa Mendonça de Brito a tarefa de destacar a importância desta descoberta

para o adequado ordenamento do saber, no livro O neokantismo no Brasil (Manaus, 1997). Amostra

expressiva dessa contribuição encontra-se no ensaio “Kantismo e neokantismo na meditação

brasileira”. Afirma ali: “Tratando do problema do conhecimento nos termos em que fora colocado

por Kant, o neokantismo abandona as descrições do processo do conhecimento em favor da

investigação dos pressupostos da ciência. Absorvendo a idéia neokantiana de Filosofia, segundo o

qual esta seria “uma meditação sobre as ciências, que não aumenta o saber, e como crítica ou teoria

do conhecimento: disciplina mental sobre a qual se apóiam todas as ciências constituídas e por

constituir-se", Tobias Barreto circularia no âmbito da legitimação de fronteiras entre o conhecimento

científico e o filosófico.”

O adequado entendimento dessa fronteira é essencial para a formação acadêmica. Em que

consiste esta senão na sistematização do processo segundo o qual se estruturaram os conceitos

fundamentais que tipificam determinada área do saber? A familiaridade com as linhas gerais da

filosofia facilitaria enormemente a compreensão do que é comum a todos os processos de

elaboração conceitual. Os intermináveis debates entre formas de entendimento do que seria objeto

da sociologia e em que consistem os limites desse conhecimento somente encontrariam um termo

graças à percepção de que, no âmbito da realidade, existem diferentes esferas de objeto, exigentes

de formas diversificadas de investigação.

Acredito que o conhecimento dos ensaios contidos nessa coletânea pode despertar os

educadores, de um modo geral, para o papel que a filosofia é capaz de desempenhar no

desempenho de sua função na formação profissional que vem se tornando a missão exclusiva de que

se ocupa nosso ensino superior.

São Paulo, junho de 2014.

Antonio Paim

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O PENSAMENTO FILOSÓFICO BRASILEIRO

INTRODUÇÃO

Seja a filosofia o que for, está presente em nosso mundo e a ele

necessariamente se refere. (JASPERS, 2011, p. 138)

É grega, a palavra filosofia. Formada por duas outras: philo e sophia significa

amizade, amor e respeito pelo saber, pela sabedoria. Filósofo é, então, aquele que ama a

sabedoria, que deseja saber. Nesta perspectiva, filosofia indica um estado de espírito, o da

pessoa que ama, que estima, que deseja, que procura o conhecimento.

Como nos ensina Japers, movida pelo desejo de verdade a filosofia rompe os

quadros do mundo para lançar-se ao infinito e refletir sobre a problemática em questão para,

em seguida, retornar ao finito, ao real e aí encontrar o seu fundamento histórico porque, “nem

mesmo a mais profunda meditação terá sentido se não estiver relacionada com a existência do

homem, aqui e agora” (idem, p.139).

A filosofia não é, para mim, como para vários pensadores, um conjunto de

conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. Ela é antes de tudo, um

modo ver e refletir sobre a realidade, uma postura diante do mundo, ou seja, uma prática de

vida que procura pensar os problemas, os acontecimentos além da sua pura aparência

buscando descobrir seus significados mais profundos. A partir do que existe, critica, coloca

em dúvida, faz perguntas, abre a porta das possibilidades, fazendo-nos entrever outros

mundos e outros modos de compreender a vida.

Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa

o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus

concidadãos, do destino comum da humanidade (idem, p. 140).

O desenvolvimento da filosofia envolve segundo Antonio Paim (1997, p. 24), os

planos das perspectivas, dos sistemas e dos problemas. Os sistemas são transitórios e

marcados pelas civilizações e pelas circunstâncias históricas, enquanto as perspectivas que a

eles antecedem e a eles sobrevivem são inelutáveis, perenes e irrefutáveis, por isso mesmo o

sustentáculo da universalidade da Filosofia. Mas, o elemento animador da filosofia em todos

os tempos, são os problemas

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A ideia de sistema como a organização do saber em sua totalidade, tem sua

origem em Aristóteles e chega por alguns pensadores até o século XX. A partir de então, a

ênfase nos grandes sistemas é substituída pela ênfase nos problemas. Deste momento em

diante afirma Paim, onde a filosofia permaneceu fiel a si mesma, desenvolveu-se em torno de

problemas.

A descoberta da importância dos problemas na História da Filosofia pode ser

atribuída a Hegel. Hartmann proclama mais tarde que: “o mais característico da etapa

contemporânea da filosofia consiste na primazia do problema que é assumida em detrimento

do sistema”. Nesta mesma linha de pensamento diz Mondolfo

A autêntica compreensão do curso histórico da filosofia somente será

alcançada quando deixarmos de lado a sucessão dos sistemas e nos voltarmos

preferencialmente para os problemas. A filosofia desenvolve-se sempre com caráter

de continuidade, porque ainda quando um sistema anterior seja demolido pela crítica

de outros filósofos sucessivos, não desaparece a consciência dos problemas que aquele havia apresentado e tratado de solucionar. [...] Os sistemas, com efeito,

passam e caem; mas sempre ficam os problemas colocados, como conquistas da

consciência filosófica, conquistas imorredouras apesar da variedade das soluções

que se intentam e das próprias formas em que são colocados, porque esta variação

representa o aprofundamento progressivo da consciência filosófica (MONDOLFO,

1969, p. 32).

1 A QUESTÃO DAS FILOSOFIAS NACIONAIS

A questão da Filosofia Brasileira ou Pensamento Brasileiro insere-se numa

questão maior, a das Filosofias Nacionais que surge com a Filosofia Moderna. Para os

estudiosos brasileiros, em especial Antonio Paim, o problema que angustiou, por exemplo, a

Filosofia Alemã parece ter sido a questão do sistema como algo de imperativo e forma

adequada de expressão da filosofia; na Filosofia Inglesa a preocupação recai sobre a

experiência; na Francesa, o foco é o conceito de razão; na Portuguesa, a conceituação da

divindade e da ideia de Deus; na Brasileira a questão do homem.

Universal no seu anseio e destino, como busca plural e convergente da

verdade, sempre e a cada momento recomeçada e posta em causa, interrogação cuja

resposta não esgota nem capta de uma vez por todas o perene sentido do existente e

suas razões, a filosofia, enquanto tal, isto é, enquanto pensar no homem e do

homem, participa da sua própria condição de ser situado no mundo, numa pátria,

numa língua, numa cultura, num culto. Individual e nacional no seu ponto de partida

e em sua raiz, múltiplo na venturosa variedade dos caminhos especulativos que se

lhe abrem, o filosofar é também e simultaneamente, universal no sentido último da sua indagação e finalidade (TEIXEIRA, apud (PAIM, 1997, p. 45).

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No curso da filosofia é, segundo Paim (1997), o reconhecimento da magnitude

dos problemas que permite solucionar satisfatoriamente a questão das filosofias nacionais.

Estas irão distinguir-se umas das outras pela preferência que atribuem a determinados

problemas. No caso brasileiro a singularidade e a originalidade do caminho que trilhamos,

consiste em privilegiar o tema da pessoa humana como liberdade e, posteriormente, como

consciência; em buscar fundamentar uma filosofia política e; em estabelecer as relações entre

filosofia e ciência. Estas, as questões essenciais com que se deparou o pensamento filosófico

brasileiro levando-o a defrontar-se com as questões magnas resultantes do aprofundamento da

consciência filosófica ocidental por uma via de acesso muito peculiar.

Do que nos foi possível observar, de um modo geral os diversos estudiosos estão

convencidos de que as filosofias nacionais nascem da quebra da unidade linguística resultante

da Época Moderna e da formação das nações. Estando no desenvolvimento das línguas

nacionais e na tradição cultural que é própria de cada nação a origem do aparecimento das

filosofias nacionais. Em todo lugar e também em nossa pátria a filosofia é impensável sem o

diálogo e a diversidade de pontos de vista. Só pode florescer onde vigorar o respeito mútuo,

por mais distanciadas que sejam as respectivas posições filosóficas. Por conta disso, a relação

entre as filosofias nacionais não pode ser, no entendimento de Antônio Braz Teixeira, apud

(PAIM, 1997, p. 29) “a do estabelecimento de subordinações hierárquicas, mas da busca de

um diálogo verdadeiro”.

Quando vivermos realmente inseridos na problemática de nossas

circunstâncias, natural e espontaneamente, sem sentirmos mais a necessidade de

proclamá-lo a todo instante, quando houver essa atitude nova, saberemos conversar

sobre nós mesmos e entre nós mesmos, recebendo ideias estrangeiras como

acolhemos uma visita que nos enriquece, mas não chega a privar-nos da intimidade

do nosso lar (REALE, 1976, p. 125).

No curso da História da Filosofia formaram-se, a rigor, duas perspectivas: a

transcendente e a transcendental. A perspectiva transcendente remonta a Platão. A perspectiva

transcendental a Kant. A Filosofia Brasileira parece afeiçoar-se à perspectiva transcendental e

a ideia de vincular a filosofia a determinados problemas.

2 CONCEITO E SIGNIFICADO

A expressão Filosofia Brasileira ou Pensamento Filosófico Brasileiro designa

o processo e o produto da atividade filosófica desenvolvida no contexto cultural da

sociedade brasileira, por pensadores que desempenharam seu trabalho teórico nessa

sociedade e que assim contribuíram para marcar a expressão filosófica dessa cultura,

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qualquer que tenha sido sua ligação com formas de expressão filosófica não geradas

nas fronteiras geográficas e culturais do país (SEVERINO, 1999, p. 27).

De início, o pensar filosófico no Brasil foi guiado por algum modelo filosófico já

constituído. Nossos pensadores estavam sempre dialogando com algum autor, ou seja,

buscavam filosofar a partir de outros pensadores. Nas últimas décadas, no entanto, não se

pode caracterizar como mera retomada mecânica o relacionamento do pensador brasileiro

com seus modelos inspiradores.

Uma vez superada a necessária dependência pedagógica frente ao processo

de aprendizagem, o relacionamento com os modelos-guias vem se tornando mais

crítico e criativo, testemunhando assim maior amadurecimento e autonomia do

trabalho filosófico entre nós (ibidem).

3 PRESSUPOSTOS

A teoria hilemórfica e a explicação da natureza mediante o concurso de quatro

causas (material, formal, eficiente e final) herdadas de Aristóteles, foram erigidas em Portugal

sobre os pilares das concepções escolásticas. Em decorrência disso, em nome de princípios

religiosos, as concepções da nova física, seja cartesiana ou newtoniana, eram combatidas pelo

pensamento oficial português. Segundo Antonio Paim (1996), as novas ideias chegariam a

Portugal por homens de espírito arejado, em especial por Luiz Antonio Verney (1713/1729)

que tendo vivido na Itália desde os 23 anos de idade, influi sobremaneira na evolução do

pensamento de sua pátria ao criticar, em suas famosas cartas, todo o sistema pedagógico dos

jesuítas levando, com isso, a intelectualidade portuguesa a um debate prolongado que

culminaria com a reforma pombalina da Universidade.

Tendo vivido na Inglaterra, na condição de Embaixador de Portugal, o poderoso

ministro do novo rei de Portugal D. José I, o Marquês de Pombal, acreditava que a riqueza da

Inglaterra provinha não apenas das Companhias de Comércio, mas, sobretudo, da nova

ciência. Com tal convicção, decidiu introduzi-la à força na velha Universidade de Coimbra.

No embate com os jesuítas que tinham o controle da instituição através do domínio exercido

sobre o Colégio das Artes, o poderoso ministro de D. José acabou por expulsá-los do país. A

Reforma da Universidade consumou-se em 1772 e, com ela os institutos mais influentes

passaram a dedicar-se à formação de naturalistas que, de posse do conhecimento da nova

ciência, iriam desbravar o caminho para a exploração de suas riquezas naturais a fim de

restaurar a antiga riqueza do país.

Contudo, não se contentou Pombal na sua reforma da Universidade, apenas em

introduzir o conhecimento da nova física e seus desdobramentos. Também cuidou de proibir

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toda e qualquer forma de aristotelismo (base da Escolástica) e impôs a adoção do filósofo

italiano, Antonio Genovesi (1713/1769), para substituí-lo.

Com a morte de D. José I, em 1777, Pombal caiu em desgraça e D. Maria I, que

ascendeu ao trono, se propôs trazer de volta ao Paço os jesuítas e apagar da história de

Portugal a figura do Marquês. Este fato que passou para a história com o nome de Viradeira

de D. Maria I fracassou completamente porque Pombal havia conseguido mudança na

mentalidade portuguesa. Com o enloquecimento da rainha e o estabelecido da Regência do

futuro D. João VI, ascendeu ao poder D. Rodrigo de Souza Coutinho (1755/1812), fiel

seguidor das ideias pombalinas e figura marcante da nossa história, como chefe do primeiro

governo de D. João no Brasil, quando da mudança da Corte para o Rio de Janeiro. Sua

atuação dirigiu-se, especialmente, para o desenvolvimento de uma nova mentalidade através

de instituições de ensino e de pesquisa.

4 NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA BRASILEIRA

Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, novas condições foram criadas

para o desenvolvimento da cultura nacional. Além da abertura dos portos que se constituiu

num passo gigantesco no sentido de estabelecer vínculos com outros possíveis focos de

influência, foram criadas algumas instituições tais como: a Imprensa Régia, a Biblioteca, as

escolas superiores destinadas à formação de cirurgiões e engenheiros militares, etc. que

possibilitaram ampliar e dá maior consistência à intelectualidade patrícia. As décadas

posteriores prepararam e deram forma à elite intelectual que guiaria os destinos da Nação

Brasileira.

Do ponto de vista da consciência filosófica, o fenômeno mais característico é a

adesão quase universal do professorado, tanto nas aulas régias como nas instituições

religiosas, à espécie de empirismo que a posteridade denominaria de mitigado.

Escrevendo em 1836, Gonçalves de Magalhães diria que ‘a filosofia ensinada nas

escolas à mocidade é a das sensações [...] geralmente abraçada como um dogma,

como uma verdade incontestável, enfim, como a última expressão da filosofia

(PAIM, 1996, p. 223).

Em tal contexto, destaca-se a figura de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846) -

professor substituto da cadeira de Filosofia Racional e Moral do Colégio das Artes de

Coimbra que viveu durante sete anos na Alemanha (1802/1809) acompanhando de perto a

evolução do kantismo e assistido às conferências de Fichte e Schelling. Chegando ao Brasil

com a Corte Portuguesa, aqui permaneceu por doze anos, de 1809 a 1821. Nesse tempo

preparou várias inteligências para a adoção do “ec1etismo esclarecido”, sob cuja inspiração

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seriam concebidas as instituições políticas e todo um projeto existencial do Brasil

Independente. Em nome da própria coerência, Silvestre Pinheiro Ferreira será o primeiro

pensador a atacar frontalmente o empirismo mitigado. Graças ao magistério de filosofia que

exerceu no Rio de Janeiro, lançou as bases para o debate dos temas modernos que iriam

empolgar parte da intelectualidade nas décadas de trinta e quarenta daquele século.

Entendendo que a filosofia é uma espécie de arquitetônica do saber, cujo

conhecimento seria imprescindível a todo homem de letras, em que pese à enorme diversidade

de temas abordados no seu curso de filosofia, é possível apreender os aspectos essenciais das

concepções filosóficas de Silvestre Pinheiro a partir das seguintes teses, implícitas ou

explicitadas nas Preleções Filosóficas:

1) Os fundamentos últimos de todas as ciências repousam na experiência sensível;

2) Embora extremamente complexo, lento e perfectível, o processo de elaboração

e sistematização dos conhecimentos empíricos tem sua unidade assegurada:

a) pela identidade da razão humana; e,

b) pela correspondência existente entre linguagem e realidade;

3) A filosofia é a disciplina que comanda e assegura o êxito do aludido processo.

A grande ambição de Silvestre Pinheiro Ferreira consistia

não apenas em estruturar um sistema de base empirista, mas, sobretudo, em permitir

que o liberalismo político (o direito constitucional, como preferia denominar)

encontrasse seu lugar num todo coerente. Para tanto, não podia ocorrer que a ideia

de liberdade se reduzisse a um simples postulado. [...] No ambiente cultural luso-

brasileiro, o liberalismo não podia simplesmente sobrepor-se e ignorar os moralistas

do século XVIII, cuja pregação tornar-se-ia parte integrante da ideologia criada pela

Segunda Escolástica, calcada na ideia de que “o homem é um vil bicho da terra”

(Nuno Marques Pereira). Era necessário assegurar que o homem podia constituir, através da representação, o necessário contraponto ao poder do Monarca (idem, p.

269).

Ao fazer isso, encaminhou muitos de seus discípulos na linha de buscar a

coerência do empirismo, o que os colocaria diretamente em contato com a problemática

filosófica que lhe era contemporânea. Por conta disso, pode-se dizer que sua obra representa a

ante-sala da primeira corrente de filosofia estruturada no ciclo posterior à Independência.

5 MOMENTOS DO PENSAR FILOSÓFICO NACIONAL

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O primeiro momento do pensar nacional, vigente no momento dos jesuítas, foi

denominado de Segunda Escolástica Portuguesa, caracterizado pelo saber de salvação. Este

período foi orientado pelos ensinamentos dogmáticos da Escolástica e consistia,

fundamentalmente, numa meditação de cunho ético-religioso. Com a Reforma Pombalina de

1772, que introduziu na Universidade as novas Faculdades de Matemática e Filosofia,

incumbidas de formar naturalistas, botânicos, mineralogistas, metalurgistas, ou seja, homens

familiarizados com a ciência de seu tempo, tem início o segundo momento do pensar nacional

caracterizada pelo Empirismo Mitigado e o Radicalismo Político que irá efetivar uma ruptura

radical com o pensamento escolástico, abrir as portas para a Universidade, a meditação ético-

política e para a ciência, até então proibida em Portugal por motivos religiosos.

Com Silvestre Pinheiro Ferreira a cultura luso-brasileira integra-se à Época

Moderna. Na prática, como chefe do último governo de D. João VI no Brasil, faz o trânsito da

monarquia absoluta para a constitucional e, na teoria, apresenta um caminho para a superação

do Empirismo Mitigado levando o pensamento brasileiro fazer a transição para o Ecletismo.

Nesse mesmo período, o pensamento brasileiro passa a conhecer e adotar algumas

ideias de Kant (1804-1810) através, principalmente de Martim Francisco e Diogo Antonio

Feijó. Tal período, denominado de Primórdios do Kantismo, envolve as duas primeiras fazes

da influência alemã no Brasil, identificadas por Miguel Reale. “Na primeira fase Kant é

recebido mais como filósofo da Ilustração, aberto aos problemas do liberalismo e, sobretudo,

por sua posição intermediária, visto o criticismo como uma terceira posição entre a atitude

dogmática, de um lado, e a atitude cética, de outro”. A segunda fase da influência da filosofia

kantiana é representada pelo krausismo.

Na corrente Eclética, ou Ecletismo Espiritualista, primeira corrente filosófica

rigorosamente estruturada no país, a partir de 1833, que logrou a adesão da maioria da

intelectualidade é possível distinguir três ciclos bem distintos: formação, apogeu e declínio.

No ciclo de apogeu, que abrange as décadas de cinquenta a oitenta, o Ecletismo como

filosofia oficial torna-se obrigatória no colégio Pedro II e nos liceus estaduais, passa a

desfrutar de incontestável prestígio no seio da intelectualidade e da elite política. Das

atividades desenvolvidas pelos seus componentes é possível perceber

que o culto da filosofia em nosso país, fora das instituições religiosas, começa

valorizando a contribuição nacional e dispondo-se a participar do debate que se

travava na Europa. Acreditavam que o espírito humano jamais chegaria a uma situação de plenitude e, simultaneamente, apostavam na possibilidade infinita de seu

aprimoramento. Entendiam ainda que a filosofia estava vinculada a um determinado

tempo histórico, achando-se, portanto as convicções que nutriam condenadas à

inevitável superação (PAIM, 1999, p. 8).

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A fase final do Ecletismo confunde-se com o período de emergência das correntes

cientificistas, a partir do movimento que Silvio Romero batizou de “surto de ideias novas”,

iniciado na década de setenta do século XIX, que aponta para a formação da Escola de Recife

e da Corrente Positivista.

O movimento intelectual denominado por Sílvio Romero de Escola de Recife teve

início com a meditação filosófica de Tobias Barreto, do desejo de renovação no campo da

filosofia, do rompimento com o Ecletismo Espiritualista de Victor Cousin e da diferenciação

do chamado “surto de ideias novas”. Caracterizou-se, em seu ciclo inicial, pelo combate aos

suportes teóricos da monarquia e ao Ecletismo visando a uma reforma da ideologia

dominante. Buscou apoio inicialmente no positivismo, embora o abandone mais tarde e até

mesmo a ele se oponha. Seu período de apogeu, do ponto de vista filosófico, acontece quando

as novas Faculdades de Direito adotam os Estudos de Direito, de Tobias Barreto, e com o

combate ao Positivismo.

Notabilizou-se pela reforma na compreensão do direito, pela elaboração

sistemática da história da cultura brasileira, pela modernização de instituições, como é o caso

do Código Civil. A elaboração teórica que iria impulsionar inicia-se em 1875 quando Sílvio

Romero proclama a morte da Metafísica num concurso na Faculdade de Direito do Recife.

Desenvolvido no seio da Escola de Recife, o neokantismo irá fundamentar o

pensamento filosófico, apontando caminhos para a superação do positivismo e dando

nascedouro à fenomenologia, ao existencialismo e ao culturalismo. Nascida da meditação de

Tobias Barreto a Corrente Culturalista tornou-se uma das mais fecundas da meditação

brasileira contemporânea. No empenho em retirar a sociedade da subordinação aos esquemas

positivistas de análise, Tobias Barreto é levado a considerar as ideias de liberdade e de

finalidade. Ao fazê-lo, circunscreve uma esfera de investigação, a cultura, entendida como

“um sistema de forças erigidas para humanizar a luta pela vida”.

Mas, na medida em que a República se consolida e o Positivismo ascende e se

afirma, inicia-se o seu declínio e vários de seus membros abandonam virtualmente a Filosofia

e refugiam-se no Direito, na Sociologia e na Crítica Literária.

A ascensão do Positivismo corresponde, ainda segundo Paim, ao fenômeno mais

significativo durante a República, tanto assim que as instituições republicanas seriam

plasmadas segundo a vontade de seus partidários. O grande sucesso alcançado pelo

positivismo decorre do fato de inserir-se numa das tradições da cultura brasileira, o

cientificismo, difundido no Brasil pelo Seminário de Olinda e pela Real Academia Militar que

manteve o espírito da Reforma de 1772, elaborada sob a égide do entendimento de que o

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“núcleo do saber encontra-se nas ciências experimentais”. É na Real Academia Militar e,

posteriormente, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que os intelectuais brasileiros entram

em contato com a obra de Comte.

O cientificismo preservado na Real Academia Militar irá adquirir forma acabada

com Benjamin Constant, professor da escola a partir de 1873 e chefe militar do movimento

republicano. Nesse momento, reforma-se o ensino para adequá-lo à hipótese comteana de que

o real se esgotaria na série hierárquica das ciências. Seu predomínio estende-se durante toda a

República Velha, caracterizando-se pelo surgimento do autoritarismo republicano, que

repudia e abandona a tradição liberal do Império; pelas sucessivas reformas do ensino

primário e secundário; aceitação pela elite dirigente da interdição positivista à Universidade a

fim de conservar o ensino superior adstrito à formação profissional; adesão do professorado

de ciência ao entendimento comteano da ciência como algo de concluso; transferência do

magistério moral, tradicionalmente exercido pela Igreja Católica, para a Igreja Positivista.

O declínio do comtismo, como nos ensina Paim, não erradicou o cientificismo de

nossa cultura. Paulatinamente esse lugar passa a ser ocupado pelos marxistas, a partir dos

concursos de Leônidas de Rezende e Hermes Lima no início dos anos trinta para as cátedras

da Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro. “Pela primeira vez em nossa história

estrutura-se um grupo marxista, num estabelecimento de ensino de incontestável prestígio”.

No novo ciclo cientificista podem ser destacadas duas vertentes: o marxismo acadêmico e o

marxismo político.

Como sabemos, o critério geral que distingue a Filosofia Moderna da

Contemporânea é o surgimento de tomada de posição frente à tese do positivismo de que,

diante dos progressos da ciência, a filosofia é impossível procurando encontrar os caminhos

para a restauração da metafísica.

Por mais distanciados que se encontrem entre, os diversos fundadores de escolas, como Bergson, Cohen, Husserls e Heidegger, tratam à sua maneira, de

enfrentar aquele desafio. O espiritualismo, o neokantismo, a fenomenologia e o

existencialismo reconstroem, em nosso século, o saber filosófico e logram superar a

interdição positivista (PAIM, 1999, p. 44).

Na contemporânea meditação brasileira, a superação do positivismo tem início

após a Revolução de 30, mas só irá desenvolver-se plenamente no pós-guerra quando o

culturalismo assume plena configuração; o neotomismo torna-se uma simples corrente

filosófica, sem intenções hegemônicas ou políticas; o existencialismo encontra temática

própria; a fenomenologia segue determinado rumo e a filosofia da ciência floresce.

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No livro Problemática do Culturalismo,entre outros, Antonio Paim (1995) afirma

que o arcabouço fundamental do culturalismo brasileiro foi delineado, sobretudo, por Miguel

Reale e Djacir Menezes. Na Filosofia do Direito, conseguiu reunir grupo dos mais

expressivos onde sobressaem Paulo Dourado de Gusmão, Luiz Luisi, Luíz Washington Vita;

Roque Spencer Maciel de Barros, Paulo Mercadante; Evaristo de Moraes Filho, Ricardo

Vélez Rodrigues e Nelson Saldanha.

No que se refere ao Tomismo, a publicação de duas obras de Leonardo Van

Acker: A Filosofia Contemporânea e O Tomismo e o Pensamento Contemporâneo, nos

possibilita uma melhor compreensão da natureza do diálogo que deseja manter. Para ele, o

tomismo deve aspirar à condição de uma filosofia como tantas outras, viva e atuante. O livro

Rumos da Filosofia atual no Brasil, publicado em 1976 por Urbano Zilles, demonstra a

superação da fase em que o tomismo expressava uma verdade acabada e o momento em que

passa entendê-lo como fonte inspiradora, aberta à compreensão da obra dos modernos. Alguns

dos seus representantes procuram conciliar tomismo com existencialismo (Alvino Moser),

com o Personalismo de Mounier (Antônio Joaquim Severino), com a Fenomenologia (d. Beda

Krause ou com o kantismo (Evaldo Pauli). Há também os mais ortodoxos (Yulu Brandão, d.

Odilão Moura e, também, os fiéis ao maritanismo (d. Irineu Penna e Gerardo Dantas Barreto).

O segundo grande seguimento do pensamento católico busca fora do tomismo,

outras inspirações. Entre estes os partidários de Maurice Blondel (Alcântara Silveira e João

Scantimburgo); os orteguianos (Ubiratan Macedo e Gilberto de Melo Kujawski); os

heideggerianos (Mac. D Owell, Arcangelo Buzzi e Maria do Carmo Tavares de Miranda); os

que se inspiram em Hegel (Henrique Lima Vaz e outros). A questão do neopositivismo

brasileiro, no presente, consiste em adquirir consciência da problematicidade do tema e

participar de seu aprofundamento. O magistério de filosofia das ciências, muito disseminado

na Universidade, segue essa orientação.

Mas, a questão nuclear no pensamento contemporâneo brasileiro, é a noção de

mundo da vida husserliana, isto não apenas para os fenomenólogos como também para os

existencialistas e culturalistas. Creuza Capalbo (1971), nos aponta a enorme repercussão da

fenomenologia entre os médicos e psicólogos (Nilton Campos, Antonio Gomes Pena, Isaias

Paim).

O Existencialismo heideggeriano tem como principais adeptos (Emmanuel

Carneiro Leão, Gerd Bornheim, Ernildo Stein). Também possui inspiração heideggeriana, a

obra de (Farias de Brito, Vicente Ferreira da Silva, Otávio Mello Alvarenga, Emanuel

Carneiro Leão, Beneval de Oliveira, Gerd Bornheim, Wilson Chagas, Eduardo Portela).

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Tão amplo pluralismo filosófico na meditação contemporânea brasileira, não

significa que as vertentes herdadas da cultura portuguesa (cientificismo e tradicionalismo)

tenham desaparecido.

6 A REFLEXÃO SISTEMATIZADA NO PENSAMENTO BRASILEIRO

A prática da filosofia no Brasil, enquanto esforço de reflexão sistematizada,

revela-se, segundo Severino (1999), mediante linhagens de pensamento vinculadas a quatro

grandes tradições: a metafísica, a positivista, a hermenêutica e a dialética.

A tradição metafísica ainda marca profundamente a nossa cultura atual

impregnando a vida cultural brasileira, sobretudo no plano ético, em decorrência da formação

cristã da coletividade nacional. E, mesmo na elaboração teórica sistemática, ela ainda se faz

presente através do pensamento neotomista e na teologia católica. Entre os seus representantes

mais significativos podemos citar: Alceu Amoroso Lima, Leonardo Van Acker, Alexandre

Correa, Geraldo Pinheiro Machado, Francisco Leme, Leonel Franca, Carlos Lopes de Mattos,

Ubiratan Borges de Macedo, Dom Beda Kruse, Fernando de Arruda Campos.

A tradição positivista se impõe, ainda hoje, como presença marcante na filosofia

brasileira. Forjada no seio do projeto iluminista da época moderna, se caracteriza pelo radical

empirismo, no que se refere a sua concepção da realidade. Chegando ao Brasil ainda no

Império, se transforma, com a República, em ideal nacional. Instala-se em todos os recantos

do pensar e do fazer nacional: na Bandeira (Ordem e Progresso), na Educação (Reforma

Benjamin Constant), na Política, no Governo. Impregna a nossa cultura de tal forma, que

ainda hoje, mesmo inconscientemente, agimos quase sempre guiados por ela. Atualmente,

constitui-se de tendências, vertentes e subvertentes cientificistas, neopositivistas e mesmo

transpositivistas. Além dos pensadores consagrados pela História do passado tais como:

Benjamin Constant, Miguel Lemos, Oliveira Guimarães, Álvaro de Oliveira, Raimundo

Teixeira Mendes, Luiz Pereira Barreto, Quintino Bocaiúva, podemos, na atualidade colocar

em destaque os neopositivistas e transpositivistas: Hilton Japiassu, Constância Marcondes

César, Marly Bulcão, Elyana Barbosa, Milton Vargas, Porchat, Leônidas Hegenberg,

Lafayette de Moraes, Ayda Arruda.

A tradição hermenêutica, representando o conjunto das tendências que valorizam

a subjetividade, a atividade simbolizadora do sujeito, destacando-se como seu elemento

básico o subjetivismo. Esta tradição é herdeira de Descartes, Kant e Hegel e se manifesta nas

tendências: fenomenológica, culturalista, existencialista, antipositivista e arqueogenealogia.

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Nesta tradição podemos destacar na tendência culturalista os nomes de: Tobias Barreto, Sílvio

Romero, Arthur Orlando, Clóvis Beviláqua como introdutores desta problemática. Miguel

Reale, Antonio Paim, Tércio Sampaio Ferraz, Nelson Saldanha e Irineu Strenger como

continuadores. No existencialismo fenomenológico, o destaque vai para Vicente Ferreira da

Silva, Maria do Carmo Tavares de Miranda, Gerd Bornheim e Gilberto de Mello Kujawski.

Na tendência fenomenológica-hermenêutica podemos falar entre outros de: Creusa Capalbo,

Salma Muchail, João Carlos Nogueira, Antonio Muniz de Rezende, Newton Aquiles Von

Zuben e José de Anchieta Correa.

A tradição dialética, caracterizada pelo esforço de entender a realidade humana a

partir de sua construção histórico-social e de sua atividade prática, tem como elemento

essencial o praxismo. Nela o homem é visto como sendo produzido pela sua história da qual é

também o agente construtor. Três grandes tendências podem ser identificadas nesta tradição:

aquela que dá continuidade à dialética hegeliana; a que se desenvolve na linha da dialética

marxista e; a dialética negativa que está diretamente associada à Teoria Crítica da Escola de

Frankfurt. Nesta tradição sobressai as figuras de Cruz Costa, Leôncio Basbaum, Leandro

Konder, Caio da Silva Prado Junior, Marilena Chauí e Moacir Gadotti.

Esta classificação, segundo Severino, visa tão somente construir uma organização

mais sistemática das várias manifestações de nossa cultura filosófica visto que, na realidade,

as várias tendências e orientações se entrecruzam, se entrecortam, se influenciam

mutuamente. Diante disso, parece acertado afirmar com Paim que

A cultura brasileira ainda vive sob o efeito do impacto do positivismo, que a marcou profundamente, obrigando assim todo pensamento a se posicionar frente a

ele. O positivismo impregnou a própria mentalidade das pessoas, passando a

incorporar o seu senso comum, moldando assim a cosmovisão cultural como um

todo. Assim, a própria tradição aristotélico-tomista e platônico-agostiniana, matriz

originária de nossa amoldagem cultural, se vê forçada a rever sua direção intelectual,

dada essa interferência histórica do positivismo. Mas, por outro lado, não se pode

negar a existência de tendências que procurarão delinear seus caminhos e construir

seus próprios universos temáticos (PAIM, 1996, p. 589).

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KANTISMO E NEOKANTISMO NA MEDITAÇÃO BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

Nos passos de Miguel Reale, podemos afirmar a existência de três momentos

distintos da repercussão do pensamento de Kant (1724/1804) no Brasil, nos meados do século

XIX. Chega a São Paulo através de Martin Francisco Ribeiro de Andrade (1775/1844), antes

mesmo da nossa independência quando, entre os anos de 1804 e 1810, Martin Francisco

desenvolveu um curso de filosofia, cuja figura central era o pensador de Köenigsberg. Do

material didático utilizado, os registros históricos confirmam a existência de oito cadernos

manuscritos, o primeiro dos quais intitulava-se “Exposição da Filosofia de Kant”. Segundo

Reale,

a época não era propícia a uma compreensão profunda dos valores evolucionários e

fundantes do transcendentalismo kantiano. Kant é recebido mais como filósofo da

Ilustração, aberto aos problemas do liberalismo e, sobretudo, por sua posição

intermédia, visto o criticismo como uma terceira posição entre a atitude dogmática,

de um lado, e a atitude cética, de outro (1974, p.14).

Além de Martin Francisco, destaca-se, nessa primeira fase, a figura do padre

Diogo Antônio Feijó (1784/1843), o adepto mais entusiasta das ideias de Kant desse período.

Segundo Reale, no pensamento kantiano, o interesse maior de Feijó, figura exponencial da

história pátria, recai sobre a posição crítica, posição de meio-termo entre a atitude dogmática

e a atitude cética adotada por Kant, que segundo pensava, lhe possibilitaria conciliar, até certo

ponto, a tradição escolástica com os novos valores que emergiam sob o influxo da Revolução

Francesa. Mas a influência de Kant não ficou restrita a duas pessoas, lembrados ainda os

nomes de Antonio Ildefonso Ferreira e do padre Francisco de Paula e Oliveira, além da obra

“Filosofia de Kant ou Princípios Fundamentais da Filosofia Transcendental” de Charles

Villers, aparecida em 1801, popularizada em Portugal e no Brasil por Francisco Bento Maria

Targini, Visconde de São Lourenço (1756/1827), que acompanhou a Família Real em sua

vinda para o Brasil.

A segunda fase da filosofia de Kant no Brasil, como assinala Reale, está ligada ao

jornalista e publicista alemão Julius Frank e ao krausismo. Após instalar-se em São Paulo, por

volta e 1835/38, Julius Frank tornou-se professor do Curso Preparatório, sua presença

possibilitaria o aprendizado da língua alemã e, com isso, o contato direto de nossos juristas

com o pensamento alemão. Krause (1781/1832), um dos discípulos de Kant que maior

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influência logrou, na área do Direito, no mundo latino-americano chega à Faculdade de

Direito de São Paulo pelas mãos de uma personalidade marcante do liberalismo português,

Vicente Ferrer Neto Paiva (1798/1886), autor de Elementos de Direito Natural ou de

Filosofia do Direito (1844) e Princípios Gerais de Filosofia do Direito (1850). Ali, no

desenvolvimento do krausismo merecem destaque especial: Galvão Bueno (1834/1888), autor

de Noções de Filosofia acomodadas ao sistema de Krause (1877), e João Teodoro Xavier de

Matos (1828/1878), autor de Teoria Transcendental do Direito (1876).

No terceiro momento, representado pela Escola do Recife (1862/63), nascida da

inquietação da meditação filosófica de Tobias Barreto, do desejo de renovação no campo da

filosofia, do combate aos suportes teóricos da monarquia, do rompimento com o ecletismo

espiritualista de Victor Cousin e da diferenciação do chamado surto de ideias novas dos anos

setenta do século XIX, o criticismo kantiano aparece de forma mais madura, talvez por conta

de um conhecimento mais direto das fontes germânicas.

Assim, a tradição kantiana iniciada com Martin Francisco e Antonio Feijó amplia-

se com o krausismo, ganha maior expressão com a Escola do Recife, em especial, com Tobias

Barreto e ressurge na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, ganhando amadurecimento com o

culturalismo de Djacir Menezes e Miguel Reale. Assim, ousamos afirmar que a Escola

Culturalista, que reúne na atualidade brasileira expressivo grupo de pensadores tendo à frente

Miguel Reale, Djacir Menezes, Antonio Paim, Luís Washington Vita, Paulo Mercadante,

Paulo Dourado de Gusmão, Nelson Saldanha e tantos outros, é representante legítima do

quarto momento da Filosofia de Kant em nossa terra.

1 O NEOKANTISMO BRASILEIRO

No Brasil, assim como na Alemanha, o neokantismo teve como principal objetivo

combater o positivismo e fundar o pensamento filosófico nacional. Chega-nos através da

Escola do Recife que do ponto de vista filosófico, formou-se ao longo dos anos 70, atingindo

o seu apogeu quando as novas Faculdades de Direito adotam como texto básico oficial os

Estudos de Direito, de Tobias Barreto, e com o combate de seus integrantes ao positivismo.

Na medida em que a República é consolidada e o positivismo ascende e se afirma, inicia-se o

declínio da Escola.

Tratando do problema do conhecimento nos termos em que fora colocado por

Kant, o neokantismo abandona as descrições do processo do conhecimento em favor da

investigação dos pressupostos da ciência. Absorvendo a ideia neokantiana de Filosofia,

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segundo o qual esta seria “uma meditação sobre as ciências, que não aumenta o saber, e como

crítica ou teoria do conhecimento: disciplina mental sobre a qual se apoiam todas as ciências

constituídas e por constituir-se", Tobias Barreto circularia no âmbito da legitimação de

fronteiras entre o conhecimento científico e o filosófico.

Segundo entende, a utilidade da Crítica da Razão Pura é de caráter negativo. Ela

não serve de órgão para aumentar o saber, mas de disciplina para determinar seus limites. Em

lugar de descobrir verdades, tem apenas o merecimento de prevenir erros. A nova metafísica

não é constituída de um programa completo, uma espécie de tábua, que não se pode aumentar

nem diminuir de verdades feitas e acabadas, como a têm os materialistas e positivistas, mas

um processo em constituição, tendo como núcleo a crítica do conhecimento, objeto que

nenhuma outra esfera do saber poderá arrebatar-lhe. Por intermédio de Kant a filosofia

dogmática torna-se filosofia crítica.

Em Recordações de Kant (1887), Tobias Barreto procura mostrar que o mestre

alemão realiza a grande descoberta de que a razão funde todas as matérias da sensibilidade

externa nas formas puras e originais que são o espaço e o tempo, os quais nos permitem

ordenar o mundo. Que a atividade ordenadora da inteligência que eleva ao grau de efetivo

conhecimento o material fornecido pela sensibilidade, se exerce por meio de categorias.

Na tentativa de retirar a sociedade da subordinação aos esquemas positivistas de

análise, Tobias Barreto chama a atenção para a especificidade da criação humana Ao fazê-lo,

circunscreve uma esfera de investigação, a cultura, passível de consideração de ângulo

filosófico. No contexto da cultura, “sistema de forças erigidas para humanizar a luta pela

vida”, o direito figura como uma das peças de “torcer e ajeitar”, em proveito da sociedade, o

homem na natureza, sendo antes de tudo, uma disciplina que a sociedade se impõe a si mesma

na pessoa de seus membros, como meio de atingir ao fim supremo da convivência harmoniosa

de todos os associados. Por isso mesmo, afirma Tobias, ele é uma criação humana que se

desenvolve com a civilização, um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade.

Deste modo, podemos afirmar com Antonio Paim (1997) que Tobias Barreto

“não só propugnou pela abordagem da cultura de um ponto de vista filosófico, como a

considerou numa relação superadora da natureza”. Assim, é na perspectiva da evolução do

neokantismo que se destaca a significação do culturalismo de Tobias Barreto. Tomado como

ponto de referência da corrente culturalista em nosso país, antecipa em algumas décadas, a

direção empreendida na Alemanha pelos neokantianos, com os quais Tobias Barreto

contactou apenas na fase inicial. O seu pensamento representa um progresso extraordinário da

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consciência filosófica nacional que, no período posterior, se deixa envolver pelo positivismo e

pela versão positivista do marxismo.

A Teoria do Conhecimento de Kant, de Januário Lucas Gaffrée, escrito em 1909,

revela plena familiaridade com a interpretação de Kant difundida à época pela Escola de

Marburgo. Na concepção do autor, as tendências do mundo filosófico moderno derivam todas

do criticismo kantiano, quer seguindo uma orientação realista, quer procedendo em sentido

idealista, serão obrigadas a girar em torno das bases firmadas por Kant, e, aceitando-as ou

mesmo negando-as, a tomá-las como ponto de partida para as construções que houver de

realizar. Segundo entende, o verdadeiro fim da filosofia não é o decifrar enigmas, mas pôr e

tentar resolver problemas que conforme o desenvolvimento científico que houvermos

atingido, e o grau de cultura que tivermos alcançado, se nos apresentarão de modo

fundamentalmente diverso.

As comemorações do Bicentenário de Kant, em 1924, e a reação ao positivismo

na Escola Politécnica do Rio de Janeiro são exemplos de que, entre 1889 e 1930, o

neokantismo se deslocara do campo do Direito para o campo da Filosofia da Ciência. Seria

trabalho da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, capitaneada por Otto de Alencar

(1874/1912) e Amoroso Costa (1885/1928), combater e derrotar o positivismo neste campo,

fazendo fenecer o prestígio das ideias de Comte entre os cultores da física e da matemática

entre nós.

Diferentemente da vertente culturalista, vinda diretamente da Alemanha através

do contato de Tobias Barreto com Hermann Cohen (1842/1918), a vertente epistemológica

desenvolvida pela Escola de Marburgo seria introduzida no Brasil pelos neokantianos

franceses, com destaque especial para Leon Bruschvicg (1869/1944), cujo curso de Teoria do

Conhecimento seria frequentado por Amoroso Costa. Nas discussões inicialmente travadas na

Escola Politécnica, as ideias positivistas dominavam plenamente.

A reação ao positivismo foi iniciada por Otto de Alencar através do artigo Alguns

Erros da Matemática na Síntese Subjetiva de Augusto Comte (1898). Ao romper com as

ideias do filósofo francês, Otto de Alencar leva um pequeno grupo de pensadores a tomar

contato com a física contemporânea e, através dela, libertar o pensamento científico brasileiro

da influência comteana. Ao aproximar-se das ideias kantianas através Leon Brunschvig,

Amoroso Costa afirmará que o grande mérito de Kant consiste em insurgir-se contra a

estreiteza positivista e haver dado uma nova orientação à história das relações entre Filosofia

e Ciência. As concepções de Otto de Alencar e Amoroso Costa tiveram prosseguimento em

Lélio Gama, Teodoro Ramos, Roberto Marinho de Azevedo, Felipe dos Santos Reis e outros.

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2 DO NEOKANTISMO AO CULTURALISMO

No começo dos anos de 1930, a tentativa de reerguer a filosofia da ciência,

inspirando-se no neokantismo, encontraria com a própria crise dessa corrente. Nada obstante,

o kantismo não deixaria de preservar o seu lugar na filosofia brasileira. Regressaria ao campo

do Direito na meditação de Djacir Menezes e Miguel Reale, aqui para configurar o trânsito ao

culturalismo inspirado no culturalismo primordial de Windelband, Rickert, Emil Lask

(1875/1915), e Gustav Radbruch (1878/1949).

Djacir Menezes (1907/), figura marcante da contemporânea filosofia brasileira e

um dos responsáveis pela retomada dos estudos de Kant no Brasil, preocupa-se em solucionar

os problemas da filosofia culturalista não apenas como puro neokantismo, mas e

fundamentalmente, a partir da recuperação da herança hegeliana. Marcam especialmente essa

meditação o livro O Sentido Antropológico da História (1958), Textos Dialéticos de Hegel

(1968), Teses Quase Hegelianas (1972) e Premissas do Culturalismo Dialético (1979).

Na tentativa de superação do empirismo e do dogmatismo, conforme Djacir, Kant

procura traçar os limites da razão no processo de conhecimento a partir de sua legitimidade.

Para isso, “distingue no conhecimento duas espécies de elementos: os que procedem da

experiência e os que procedem da razão, separando imediatamente os puros elementos

racionais que existem a priori, dos elementos empíricos, que são adquiridos a posteriori”

(1932:5). Ao determinar a existência de princípios práticos a priori, impostos pela razão à

vontade, Kant infere a existência da razão prática pura donde decorre a moral, cujo princípio

fundamental se expressa no imperativo categórico: “age sempre de maneira que a máxima de

tua vontade possa servir de um princípio de legislação universal”. Com isso, o filósofo alemão

liberta as leis morais de todo conhecimento objetivo, dando-lhe valor absoluto a priori,

negado na esfera especulativa.

Segundo Djacir, o princípio supremo do Direito em Kant, extraído da razão,

estriba-se sobre a ideia de liberdade. Violar um direito corresponde, consequentemente violar

uma liberdade. Assim, Kant irá justificar a necessidade da força coercitiva exterior para

reprimir as violações às liberdades alheias e impor o cumprimento dos deveres de direito. A

existência de deveres decorrentes de princípios apriorísticos - Direito natural e deveres

decorrentes das fontes legislativas - Direito positivo, deveria levar os legisladores a

inspirarem-se, quando da elaboração das leis, nos princípios derivados da razão que se

superpõem às contingências naturais. Ao fim afirmará que apesar do empenho, Kant não

conseguiria libertar a ideia de direito dos embaraços metafísicos e do chamado voluntarismo

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subjetivista. Ao comprometer-se com a problemática do culturalismo, Djacir Menezes daria

notável contribuição ao pensamento brasileiro. Ao incorporar em sua meditação o legado

hegeliano, o transforma em culturalismo dialético.

Miguel Reale, figura exponencial do pensamento brasileiro, procura solucionar os

problemas da Filosofia Culturalista do ponto de vista transcendental buscando descobrir nas

teses kantianas o que elas possuem de duradouro para enriquecê-las à luz da meditação

neokantiana. A influência de Fundamentos do Direito (1940) no desenvolvimento do

pensamento brasileiro é bem mais profunda do que previra ao elaborá-la. Na verdade, o seu

desenvolvimento leva-o mais além, leva-o à fixação dos princípios fundamentais e a uma

nova visão da realidade jurídica.

Sustentado em Kant e nos neokantianos, Miguel Reale reconduz a meditação a

respeito do Homem, da Sociedade e do Mundo a pressupostos que nada tinham de comum

com aqueles que serviam de base à mentalidade corrente e mostra, através de uma crítica

vigorosa, a inconsistência das posições naturalistas e jusnaturalistas. Abala posições

consideradas como definitivamente assentadas, mostrando que o Direito é mais que um

simples Fato, mais que pura Norma e mais que um simples Valor. Tais ideias constituem o

embrião de sua teoria tridimensional do Direito.

À Escola de Baden, segundo Reale, deve-se a atenção dos filósofos sobre os

conceitos de valor e de cultura, temas capitais da Sociologia, da Política, da Filosofia e da

Filosofia do Direito, em particular. No seu entendimento, apesar de nos encontrarmos

distantes do idealismo transcendental de Windelband e de Rickert, será de suas doutrinas que

devemos partir para compreender plenamente o pensamento de juristas e filósofos como Lask,

Radbruch e tantos outros. Windelband será o primeiro a afirmar que:

Além do mundo dos fatos, da realidade dada naturalmente, além do mundo

do ser, há o mundo do dever ser, que não constitui objeto da experiência. O mundo

do dever ser é, ao contrário, um pressuposto da experiência sob todos os pontos de

vista: como conhecimento, como ação moral e como sentimento estético. Esse

conceito deve, pois, dominar na Lógica, na Ética e na Estética que formam o objeto

da reflexão filosófica. O mundo do ser é o mundo da natureza sujeito à causalidade

mecânica; o do dever ser é o mundo dos valores espirituais autônomos, o mundo da

liberdade. A filosofia não é criadora de valores, mas ela descobre no caos da

experiência os valores cujo sistema representa a ‘cultura’ humana. (1940, P. 173).

No entendimento de Miguel Reale, essas ideias são reelaboradas por Rickert, que

procura mediante as noções de valor e de cultura, superar a antítese kantiana entre ser e dever

ser. Na doutrina de Rickert, a natureza e a história não são duas realidades, mas dois pontos

de vista: o da natureza (realidade segundo as leis da causalidade física - mundo da

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necessidade) e o da história (realidade segundo os ideais ou valores - mundo da liberdade).

Assim, o mundo histórico é o mundo da concretização dos valores por ser na história onde

encontramos os valores autônomos, imediatos, humanos, e é na história que a humanidade se

coloca como centro, como valor supremo. Sua originalidade consiste, consoante Reale, em

ter desenvolvido a noção de cultura como elemento de ligação entre ser e dever ser e ensinar

que além da esfera da natureza, além da esfera ideal dos valores, é necessário colocar um

terceiro reino, o reino da cultura, o qual estabelece uma relação que serve de ponte entre

ambos.

A cultura é a ligação entre a natureza cega para o valioso, é aquilo que vale

por si, sem referência ao mundo dos fenômenos reais. (...) A cultura é, pois, o

complexo rico e multifacetado reino da criação humana, de tudo aquilo que o

homem consegue arrancar à fria seriação do natural e do mecânico, animando as

coisas com um sentido e um significado, e realizando através da História a missão

de dar valor aos fatos e de humanizar, por assim dizer, a Natureza. (Reale,1940, p.

177).

A filosofia dos valores constitui, segundo Reale, um dos pontos de partida da

filosofia jurídica contemporânea, e a influência de Windelband e de Rickert se estende a toda

a Axiologia e a toda Teoria Geral dos Valores. Todavia, apesar das suas valiosas

contribuições, Emil Lask e Frederico Munch são os verdadeiros fundadores da concepção

culturalista do Direito. Para o mestre paulista, a Filosofia do Direito de Lask não aprecia os

fenômenos sociais em sua realidade empírica, mas na abstração de seus significados, segundo

valores contidos na ideia de justiça ou do justo: ele circunscreve o objeto da epistemologia

jurídica, ao significado próprio do jurídico e aos problemas imediatamente postos pelo valor

supremo, a justiça.

Como bem observa Lask

O fenômeno jurídico é um fenômeno cultural, e todo fenômeno cultural se

caracteriza por uma curiosa bi-dimensionalidade: é um pedaço de realidade à qual

adere um significado. (...) A nossa concepção culturalista de Direito pressupõe,

entretanto, o abandono da antítese ser e dever ser, o que não era possível alcançar no campo do idealismo. O nosso culturalismo desenvolve-se no plano realista e assenta-

se sobre a consideração de que a pessoa humana é o valor fonte e que são os valores

que atribuem força normativa aos fatos. Assim sendo, o Direito é uma ordem de

fatos integrada em uma ordem de valores, sendo objeto de estudo ao mesmo tempo

da Jurisprudência e da Sociologia Jurídica. (1940, p. 182/83).

Contudo, é o sistema de Radbruch que se mostra mais coerente, revelando-se por

isso mesmo, num neokantismo de inegável vigor. Conforme ensina, o espírito, conforme pode

se manter de duas maneiras diante da matéria uniforme de nossa vivência:

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em uma atitude avalorativa e em uma atitude valorativa. A primeira atitude, cega

para os valores, constitui, quando metodicamente exercida, a essência do

pensamento científico das ciências naturais; a segunda, valorativa, constitui, quando

sistematicamente desenvolvida, a essência da chamada Filosofia dos valores nos

seus três ramos: a Lógica, a Moral e a Estética (RADBRUCH, 1979, p. 45).

Ao lado das duas atitudes do espírito, a que acabamos de referir - a não valorativa

e a valorativa – surgem ainda, segundo Reale, desempenhando entre elas uma função

intermediária, duas outras atitudes possíveis: a que refere realidades a valores e a que supera

os valores. Segundo afirma, o Direito só pode ser compreendido dentro da atitude que refere

realidades a valores, a fins: o valor do Direito é a ideia do Direito, a ideia de justo, a justiça,

não como virtude, mas como objetivação de seu conteúdo. Por conseguinte, há que se

distinguir o Direito como fenômeno cultural, objeto da Ciência Jurídica estudado como fato

referido a valores, e o Direito como valor, como ideia do Direito em si mesmo, objeto da

Filosofia do Direito.

Para o jus-filósofo brasileiro, não basta a Radbruch a superação da antítese entre

ser e deve ser ou entre realidade e valor, é preciso ir mais além. É preciso estabelecer entre a

categoria juízo de existência e a categoria juízo de valor uma categoria intermediária: a dos

juízos referidos a valores; assim como, correspondentemente, entre as categorias de ‘natureza’

e de ‘ideal’, é preciso dar lugar à categoria de cultura.

Em Reale, o mundo do dever ser é o da lei em sentido ético, ou seja, da norma

estabelecida em razão de um fim e dirigida à finalidade e à liberdade do homem, onde o

Direito só pode ser compreendido como síntese de ser e dever ser, afigurando-se-lhe

Uma realidade bi-dimensional de substrato sociológico e de forma técnico-

jurídica. Não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que

lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente,

segundo uma ordem de valores (idem, p. 301/302).

Assim, o valor por excelência, aquele que podemos chamar de valor-fonte, é a

ideia de pessoa humana, a ideia de que todo homem tem uma individualidade racional a ser

respeitada. É do valor-fonte que se deve partir para alcançar o fundamento próprio e peculiar

do Direito. O valor-fim do Direito é a Justiça, não como virtude, mas em sentido objetivo,

como justo, como ordem que a virtude justiça visa realizar. A justiça por excelência é a justiça

geral, aquela que põe o homem a serviço da coletividade porque o bem comum não se realiza

sem o bem de cada homem e o bem de cada um não se realiza sem o bem comum; é a ordem

social na proporcionalidade dos bens particulares e coletivos.

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Através de Miguel Reale fecha-se a transição do neokantismo ao culturalismo e

flui uma nova fase dessa corrente, a Escola Culturalista, que acabaria ocupando uma posição

central na filosofia brasileira.

3 ESCOLA CULTURALISTA

A Escola Culturalista, cujo principal objetivo é estimular o diálogo filosófico, o

aprofundamento da consciência dos problemas magnos da filosofia, coube animar a criação

do Instituto Brasileiro de Filosofia, que reúne pensadores de todas as tendências e realizar a

recuperação, através de um autêntico inventário, das principais tradições da filosofia

brasileira. São muitos os adeptos do Culturalismo no Brasil. Contudo, nessa reconstrução,

construção e divulgação do Pensamento Brasileiro, é de justiça ressaltar a inestimável

contribuição de Antônio Paim, cujas obras e ações, conquistaram reconhecimento e adeptos

em todo o país.

Na meditação de Antonia Paim, em especial em suas reflexões sobre o problema

da cultura, o sustentáculo está no neokantismo e no culturalismo alemães, com raízes em

Kant. Segundo o mestre, a maior exigência do nosso tempo é a compreensão em sua

profundidade e complexidade da criação cultural. Assim, o culturalismo, pelo seu

comprovado valor heurístico, corresponde à filosofia do nosso tempo e muito provavelmente,

do futuro imediato. “Além de constituir-se em uma filosofia geral que responde positivamente

às principais indagações teóricas que nos foram legadas pela meditação precedente, o

culturalismo faculta a formulação da filosofia do direito, da história, da educação, etc., aptas a

nortear, de forma criativa e não cerceadora, as investigações voltadas para aqueles domínios”

(Paim, 1995:132).

Segundo Paim, o ideal de pessoa humana desenvolvido no ocidente constitui um

ingrediente fundamental tanto para o auto-aperfeiçoamento dos indivíduos, quanto para o

aprimoramento da vida em sociedade. Embora impossível de realizar, o ideal se mantém

como uma regra de julgamento e avaliação que serve de orientação para o agir.

Ao conceber a moral como o “acordo entre a consciência e os preceitos

consagrados” e a cultura como a “esfera das intencionalidades objetivadas ao longo da

evolução histórica que tem como fundamento último a moral ou o dever ser”, Paim nos

mostra que o processo histórico é constituído de épocas que se distinguem por uma particular

hierarquia dos valores; que a alteração dos fundamentos morais ocasiona a mudança nos

rumos da cultura; que o dever ser do homem funda a historicidade do processo civilizatório,

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ao inserir nele a possibilidade de inteligibilidade; que a moralidade básica instituída pela ação

do homem dá sentido ao curso histórico, que jamais será explicado exclusivamente pelas

condicionantes econômicas ou sociológicas; que o caráter subjetivo da moral e a condição de

objetividade do código cria a tensão na qual se desenvolve a existência humana; e que é a

partir do potencial de criatividade do dever ser do homem que se tem produzido as grandes

inflexões da História.

Do exposto, é possível verificar, que as questões fundamentais da meditação

brasileira sustentada em Kant, no neokantismo e no culturalismo, estão voltadas

especialmente para a inserção dos valores e da cultura no processo de construção do

conhecimento, e do direito como criação cultural.

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A TRAJETÓRIA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NA ESCOLA

POLITÉCNICA DO RIO DE JANEIRO

A participação brasileira no movimento de revisão da ciência do século XIX e

introdução da nova física é realizada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e pela Academia

de Ciências, fundada em 1916, culminando com a vinda de Einstein ao Brasil em 1925.

Nas discussões inicialmente travadas no campo das matemáticas, na Escola

Politécnica, predominavam inteiramente as idéias positivistas, dominando a opinião de que o

saber já está feito, acabado, restando apenas alguns reparos na construção do mestre. Licínio

Cardoso (1897, P. 33), professor de Mecânica Racional, ao tratar do conceito de estática na

obra de Comte confirma esta posição: “(...) para ficar no rumo indicado pela doutrina do

sábio, rejeito proposições que não julgo emanadas dela; eis tudo”. Na mesma direção

encontramos as idéias de José Luiz Batista ao tratar das curvas derivadas do círculo. Para ele

Augusto Comte, em sua Geometria Analítica, oferece como exemplo digno de

ser cuidadosamente estudado, a dupla série de curvas que o grande geômetra

Descartes descobriu derivadas do círculo. O mestre inexcedível, com aquela

proficiência excepcional que tão bem o caracteriza, proficiência felizmente já hoje

universalmente reconhecida, em poucas palavras, no livro citado, porventura o mais belo compêndio didático que conhecemos, dá uma idéia clara e positiva do modo de

geração das referidas curvas. Tendo, porém, como acima dissemos, oferecido como

exemplo, não efetuaria estudo sobre elas (BATISTA, 1901, p. 101).

Mas, o contato com a nova física exigiria uma revisão do comtismo, tanto no que

se refere ao sentido atribuído à evolução do pensamento científico, como no âmbito da

matemática, onde Augusto Comte havia galgado enorme prestígio. A reação contra o

positivismo na esfera da matemática foi iniciada na Escola Politécnica através de Otto de

Alencar (1874/1912), com o artigo Alguns erros de matemática na Síntese Subjetiva de

Augusto Comte (1898).

Positivista como a maioria dos professores de matemática e engenheiros de seu

tempo, Otto Alencar rompe com as idéias do filósofo francês ao perceber que as interpretações

das ciências matemáticas contidas na obra de Comte vinham sendo refutadas com vigor. Ao

fazê-lo, leva um pequeno grupo de pensadores a tomar contato com a física contemporânea e,

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através dela, a libertar o pensamento científico brasileiro da influência Comteana.

Ao romper com o positivismo, Otto de Alencar não se preocupou em difundir

qualquer outra filosofia, mas tão somente acompanhar a evolução da ciência, criando

premissas para a aceitação da nova física e das geometrias não-euclidianas. As concepções de

Otto de Alencar tiveram prosseguimento em Amoroso Costa, Lélio Gama, Teodoro Ramos,

Roberto marinho de Azevedo, Felipe dos Santos Reis e outros.

Amoroso Costa tornou-se professor da Politécnica a partir de 1912, no mesmo ano

em que faleceu Otto de Alencar. Os outros discípulos ocuparam posições de destaque na

ciência brasileira. Teodoro Ramos foi um dos fundadores da USP; Roberto Marinho de

Azevedo, diretor da Escola de Ciências da Universidade Federal de Direito; Lélio Gama o

grande animador da observação astronômica e, Santos Reis, professor da Politécnica.

Do grupo que demonstra ter superado integralmente o positivismo, Amoroso

Costa (1885/1928) é quem mais longe conduz a evolução do pensamento científico nacional.

Em sua conferência sobre Otto de Alencar, realizada na Escola Politécnica a 29 de abril de

1918, diz o respeitável homem de letras que, para a superação do positivismo, contribuíram

especialmente os erros cometidos por Comte na Síntese Subjetiva, em especial os erros de

geometria, resultantes em grande parte da má aplicação da teoria dos contatos. E sentencia:

Aceitar a Síntese Subjetiva é rejeitar toda a obra matemática do século

passado, a obra de Grauss e de Abel, de Cauchy e de Riemann, de Poincaré e de

Cantor. Ao passo que o primeiro tomo da Filosofia positivista é um quadro magistral

da ciência matemática em fins do século XVIII, a Síntese, escrita quando Comte já estava seduzido pela sua construção sociológica, é uma das tentativas mais

arbitrárias, que jamais foram feitas, de submeter o pensamento a fronteiras artificiais

(COSTA, 1918, P.71).

Num primeiro momento de sua meditação, Amoroso Costa descobre que o

problema não se reduz à determinação do caráter da matemática, mas envolve uma pergunta

sobre a própria ciência, sobretudo no que diz respeito ao seu relacionamento com a realidade.

De imediato, parece inclinado a aceitar o denominado convencionalismo de Henri Poincaré

(1854/1911), conforme se pode verificar nos textos que redigiu em 1919, especialmente a

filosofia matemática de Poincaré (1919).

Supostamente, será em consequencia da inquietação suscitada por essa espécie de

problema que Amoroso Costa decidiu estudar na França; Com duas interrupções, ali esteve

durante três anos e três meses, entre fins de 1921 e começo de 1925. Um dos cursos que

freqüentou estava ligado ao seu magistério da Politécnica (Teoria do movimento da lua, com o

prof. H. Andeyer). Dois outros, entretanto, revelam o seu tipo de preocupação: o primeiro,

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Introdução à filosofia das ciências, Com Abel Rey (1873/1940) e, o segundo, com o próprio

Léon Brunschevicg, designado de Teoria do Conhecimento.

Assim, mais ou menos entre 1922 e 1925, Amoroso Costa aproxima-se de Léon

Brunschevicg e das idéias de Kant. Acredita na possibilidade de constituir-se uma teoria do

conhecimento integradora da experiência sensível e da elaboração do espírito. Esta seria para

ele a questão central da filosofia. Realçando esse entendimento, deixou-nos dois ensaios: o

primeiro, sobre Kant, quando das comemorações do bicentenário, em abril de 1924; o

segundo, sobre as idéias fundamentais da matemática.

Posteriormente, nos anos que lhe restaram de vida, ao invés de aprofundar

semelhante entendimento, parece ter-se inclinado na direção que seria seguida pelo

neopositivismo. Ao falecer de modo prematuro, num acidente de aviação, em 1928, Amoroso

Costa tinha pronto um livro que foi editado postumamente - As idéias fundamentais da

matemática - e que ficaria na história como um dos primeiros textos dedicados à

sistematização da lógica matemática. É possível que essa evolução se devesse à influência de

Pontes de Miranda (1894/1974), a quem Amoroso Costa viria a vincular-se para a publicação

de uma coletânea de textos numa linha nitidamente neopositivista.

Assim é razoável supor-se que, se vivo fosse, teria abandonado o neokantismo,

como de fato veio a ocorrer de parte dos filósofos da ciência, aqui e alhures, à época de sua

morte. No empenho de delimitar o âmbito da filosofia da ciência, começa enfatizando o papel

da matemática no desenvolvimento do espírito humano, porque sua criação corresponde, à

esfera em que se limita ao mínimo o auxílio do mundo exterior. É isto que flui,

inequivocamente, de seu pensamento:

Tudo se reduz aí a escolher, na massa dos fatos e das relações, aqueles que

podem levar a resultados gerais; os espíritos verdadeiramente matemáticos têm o

sentido da ordem em que se devem encadear os raciocínios para atingir um fim

determinado (idem, p. 95).

Segundo Amoroso Costa, a matemática, mais do que qualquer outro campo do

conhecimento humano, parece um terreno privilegiado quando se procura estabelecer o que

seja a verdade.

Na diversidade das especulações em que se inter-relacionam a reflexão

metafísica e a técnica científica, cada vez que se constitui uma das suas grandes

disciplinas, a matemática aparece como um tipo supremo de saber, capaz de sustentar uma explicação integral do universo. Ela gerou o pitagorismo que dizia: as

coisas são números, o spinozismo, promoção da geometria cartesiana, o leibnismo,

modelado sobre o cálculo infinitesimal. (...) Nenhum desses sistemas logrou atingir o

seu objeto. Toda teoria da ciência transcendente à própria ciência, parece condenada

a inevitável fracasso, e ao mesmo destino não escapam as doutrinas situadas

exatamente ao nível da ciência se pretenderem como o kantismo, submetê-la a

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formas e categorias rígidas, ou como o positivismo de Comte, encerrá-la em moldes

imutáveis (idem, p. 132).

Em decorrência disso, segundo Amoroso Costa, o problema deve ser abordado

diretamente sobre o terreno da ciência, que continuará ela própria uma solução independente

de qualquer esquema preconcebido ou qualquer dialética estranha ao seu domínio. A filosofia

matemática renuncia a um ideal quimérico; em vez de edificar mais um sistema ela procura

surpreender, no contato da inteligência com as coisas, a verdade em estado nascente.

Mas, paralelamente a essa desencontrada sucessão de doutrinas instáveis, a

história nos mostra a infinita capacidade criadora do espírito, a plasticidade maravilhosa com

que ele se transforma e se adapta a uma realidade cada vez mais complexa.

Analisando a gênese das noções matemáticas, seja nas meditações

sistemáticas dos sábios, seja na atividade dos povos não-civilizados, nós vemos que a

cada instante há um esforço de adaptação recíproca da razão e da experiência. [...] O

espírito tira do contato com a realidade exterior um impulso que lhe permite transpor

as fronteiras da experiência imediata (ibdem).

Conforme Amoroso Costa, toda vez que uma nova teoria é levada a rever ou a

modificar as propriedades atribuídas ao espaço e ao tempo, a reflexão filosófica realiza um

movimento paralelo de reajustamento. O espaço do filósofo é uma interpretação do espaço do

geômetra. Daí a repercussão da teoria da relatividade onde Einstein não hesitou em admitir

premissas que o senso comum qualificava de paradoxais ou revolucionárias.

Na história do pensamento, recorda Amoroso Costa, o espaço tem sido um mestre

de harmonia. Ele nos ensinou a harmonia entre o espírito e a realidade. Na autora da ciência

grega, a escola pitagórica fundou toda uma concepção do mundo sobre a idéia do número,

onde existe uma harmonia profunda entre as propriedades dos números e as das figuras. Mas,

a descoberta do incomensurável destrói a identificação estabelecida entre o número e a

grandeza, gerando com isso a grande crise do pensamento grego. A prova de que existe no

espaço alguma coisa que não é inteiramente redutível à análise intelectual parece aos antigos

ultrapassar a inteligibilidade. Tal situação faz entrar em cena o infinito matemático e a

continuidade.

A solução moderna segundo o pensador, consistiu em ampliar a noção de número,

de modo a restabelecer a concordância. O número irracional, criação irredutível à experiência,

só foi rigorosamente definido em 1872 por Debekind, como corte no conjunto dos números

racionais. A intuição do espaço geométrico precedeu aqui o processo metódico da inteligência

e tornou-o possível.

No resultado da observação do chamado paradoxo dos objetos simétricos, Kant

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viu uma prova de que o espaço é apenas parcialmente racional. A essa observação se prende a

teoria do espaço, desenvolvida na Estética Transcendental. Para o filósofo alemão

O espaço e o tempo não têm existência nas coisas externas, mas não são

conceitos derivados da experiência; são moldes por meio dos quais o espírito, que é

essencialmente ativo, ordena as sensações, e por isso ele os chama, as ‘formas da

sensibilidade’. O processo do conhecimento, entretanto, não para aí, sua segunda

fase é uma síntese mais elevada, que se realiza por meio das formas do

entendimento, os conceitos puros ou categorias. Em suma, o tempo e o espaço são

representações a priori que precedem necessariamente a nossa percepção dos

fenômenos, mas que não se reduzem aos conceitos puros. [...] Da sua necessidade resulta que as propriedades do espaço e do tempo nos são impostas como certezas

incontestáveis, os princípios da Geometria são superiores à experiência e o mesmo se

pode dizer dos axiomas do tempo, daí a possibilidade e o caráter imperativo das

ciências matemáticas. Se observarmos que para Kant, a geometria é a geometria

euclidiana, e a mecânica é a mecânica de Newton, essas disciplinas nos parecerão

assim estabelecidas sobre fundamentos inabaláveis (idem, p. 105).

Onde Kant viu uma restrição à racionalidade do espaço, nós vemos hoje, segundo

Amoroso Costa, um modo de dizer que o espaço possui três dimensões, onde a questão do

número de dimensões é essencialmente uma questão de ordem que não respeita a

continuidade. Assim, o paradoxo dos objetos simétricos se dissolve em uma questão de

ordem, que não é exterior à razão, contanto que esta não se paralise em categorias definidas de

uma vez por todas. Ela é um exemplo da fecundidade do contato entre a especulação lógica e

a intuição espacial.

O objetivo de Amoroso Costa, segundo se deduz, é mostrar, é pôr em evidência o

dinamismo criador que caracteriza as ações mútuas do espírito e da realidade. Diz ele:

Euclides sistematizou e reduziu à forma dedutiva os conhecimentos

geométricos da sua época. Ora, uma ciência dedutiva se apóia necessariamente sobre

um certo número de noções primeiras e de postulados, dos quais o mecanismo lógico

extrai os teoremas. É claro que os postulados devem ser compatíveis entre si, de

modo a que não apareçam contradições, e além disso convém que sejam

independentes uns dos outros, isto é, reduzidos ao menor número possível. Euclides

apresentou os teoremas da geometria, como resultados de uma coleção de postulados

sobre a qual se pode construir um sistema dedutivo que não será mais a geometria de

Euclides mas no interior da qual não existirá contradição alguma; seus teoremas nos

parecerão estranhos ou mesmo paradoxais, mas o novo corpo de doutrinas será tão

coerente como o antigo (idem, p. 50).

O primeiro exemplo de uma geometria não-euclidiana foi dado por Lobatchewski

e Bolyai. Posteriormente, a questão foi ampliada por Riemann considerando-a de um ponto de

vista mais abrangente e mostrando como se pode construir uma infinidade de sistemas desse

gênero. Os trabalhos modernos na mesma ordem de idéias se caracterizam por uma abstração

crescente e tendem para uma geometria cada vez mais geral que abrange todas as outras como

casos particulares.

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Assim, para a filosofia, a questão de importância capital suscitada pelas novas

geometrias é saber se uma geometria não-euclidiana, logicamente possível, corresponde as

alguma realidade, ou se a geometria euclidiana é a única que convém à representação do

espaço da experiência. Num primeiro momento, Amoroso Costa inclina-se abertamente pelo

convencionalismo, segundo se pode ver dos textos adiante comentados.

Segundo Amoroso Costa, uma penetrante análise do problema, apesar de sua

resposta não o resolver inteiramente nos é dada por Poincaré. Para ele

Os princípios da geometria não são derivados da experiência, nem são juízos

cuja verdade se imponha irrestritamente ao espírito, como os juízos lógicos; são

convenções em cuja escolha a experiência nos guia, são definições dissimuladas.

Nenhuma geometria é mais verdadeira que outra, mas a experiência nos indicou que

a de Euclides é a mais cômoda, a que nos permite exprimir de modo mais simples as

propriedades dos sólidos naturais, que são os nossos instrumentos de medida. O

espaço seria assim qualquer coisa de amorfo, podendo servir de substratum, a uma

geometria qualquer. Para usar da linguagem kantiana, a intuição pura seria esse

contínuo pré-euclidiano, se assim o podemos chamar [...] é incontestável que todas

as geometrias, consideradas como sistemas dedutivos puramente lógicos são

igualmente verdadeiras. Por se fundarem em símbolos vazios sem qualquer conteúdo intuitivo, elas nada nos podem dizer sobre a realidade concreta, a menos que a

indução da experiência não nos forneça um vínculo. Neste caso ter-se-ia o que se

pode chamar geometria prática, e o problema de saber se a geometria prática é ou

não é euclidiana, teria um sentido perfeitamente definido. A maneira de ser dos

objetos reais será então definida por um conjunto de proposições geométricas e

físicas; a experiência dirá se uma geometria representa melhor que outra uma dada

categoria de fatos. A noção de espaço pode assim adquirir uma extensão prodigiosa

como nos mostrará a concepção einsteiniana (idem, p. 107).

Segundo Amoroso Costa, apesar de o tempo não ter sido objeto de uma ciência

especial, foi tratado por vários pensadores. Hamilton definiu a álgebra como a ciência do

tempo puro; Schopenhauer, desenvolvendo a tese kantiana, afirmou que a aritmética se apóia

sobre a intuição do tempo.A teoria da relatividade de Einstein dissociou a noção de tempo

universal e a substituiu pela de um tempo que não é o mesmo para todos os observadores e,

pela primeira vez na história do pensamento, segundo Amoroso Costa, a unidade objetiva do

tempo foi sacrificada à necessidade imposta pela experiência de criar uma nova mecânica,

mais geral que a de Newton, e na qual existe uma velocidade fundamental que não pode ser

excedida. Deste modo, uma vez mais se verifica que o tempo e o espaço não podem ser

considerados como formas definitivas, anteriores à sua aplicação às coisas.

Após o aparecimento da primeira teoria de Einstein (1905), Minkowski apresenta

em 1908 a sua famosa concepção do espaço-tempo, segundo a qual o espaço em si e o tempo

em si não têm sentido e devem ser absorvidos em um único conjunto de quatro dimensões.

Jamais alguém observou um lugar, diz ele, senão em um determinado tempo, nem um tempo

senão em um lugar dado. O conceito mais simples da física, o ponto desse hiperespaço, é o

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acontecimento, ou seja, a situação de um ponto no espaço e no tempo, definida por

coordenadas.

Esta idéia permitiu dar à teoria de Einstein uma forma muito mais simples e

simétrica, mas não se reduz a um cômodo artifício do cálculo no desenvolvimento formal das

teorias físicas. Graças a estas pôde Einstein ampliar consideravelmente a sua construção

primitiva.

A teoria da relatividade generalizada de Einstein, é baseada no universo de

Minkowski em que se fundem intimamente o tempo e o espaço, mas essa teoria é um

novo passo na mesma ordem de idéias, visto que realiza uma síntese em que o

espaço, o tempo e a gravitação se combinam indissoluvelmente em uma realidade

única. É uma geometrização da física, na qual a matéria é responsável pela estrutura

curva do espaço-tempo, e que só foi possível com o auxílio das geometrias de

Reimann. [...] A distorção do espaço-tempo, que é uma noção muito abstrata, pode-

se traduzir na nossa linguagem habitual dizendo-se que o espaço se deforma a cada instante e em cada um dos seus pontos. Os fenômenos são agora referidos a sistema

flácidos que Einstein qualifica expressivamente de molúsculos de referência (idem,

p. 109).

A teoria de Einstein tem como objetivo primordial exprimir as leis dos fenômenos

naturais de um modo independente do sistema de referência dotado pelo observador. Para

atingir o que permanece invariante através das aparências que a perspectiva nos impõe,

Einstein não recuou diante do paradoxo e, apoiando-se em trabalhos que pareciam estéreis

divagações matemáticas, não hesitou em adotar uma atitude extremista para com as velhas

noções do espaço e do tempo. É uma lição que confirma as do passado. A experiência não

pode submeter-se a formas rígidas impostas de uma vez por todas pela razão. Mas esta tem

uma capacidade limitada de criar formas novas e de construir sistemas de relações cada vez

mais complexos. O conhecimento científico é uma adaptação progressiva e recíproca do

espírito e das coisas.

Assim, a introdução do conceito de intervalo, o qual é uma extensão do conceito

de distância, representa o elemento que permanece invariante para todos os observadores, mas

cada observador o decompõe de modo diferente no espaço e no tempo. Daí a afirmação de que

o tempo é universal, mas relativo ao sistema a que pertence cada observador, pois dois

observadores em movimento relativo não o medem segundo ao mesma escala. Eis aí, ressalta

Amoroso costa, como Einstein e Minkowski ampliaram a idéia da relatividade do espaço e do

tempo.

Depois de seu primeiro curso na França, Amoroso Costa parece, no entanto,

insatisfeito com o simples convencionalismo. Aceita a parcela da obra de Brunschvicg que

constitui uma filosofia da ciência, na linha preconizada por Cohen sem contudo pretender

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manifestar-se acerca daquela parcela em que o autor proclama bem alto os direitos de uma

vida espiritual superior a qualquer forma de utilitarismo.

No mencionado ensaio sobre Brunschvicg (o problema da ciência, fins de 1922)

inclina-se pela solução que formulou nestes termos:

A razão constrói livres arquiteturas de símbolos, mas esses não são criações

arbitrárias e surgem da necessidade de interpretar e unificar os dados da experiência.

O intelectualismo matemático de Brunschvicg evita assim o escôlho ou um espelho refletindo passivamente as coisas; e ao mesmo tempo não se conforma com o

racionalismo clássico, na sua concepção de uma ciência inteiramente a priori.

Sugestão empírica e atividade criadora parecem-lhe inseparáveis, em um

conhecimento cujo valor da verdade reside nesta conexão profunda (idem, p. 132).

No estudo que elaborou sobre Kant, em 1924, Amoroso Costa enfatiza desde logo

que seu grande mérito está em ter sabido insurgir-se contra a estreiteza positivista de seu

século. Kant consegue assentar a ciência

Sobre uma base incomparavelmente mais sólida do que a confiança inspirada

pelo seu sucesso prático. Resultado capital, mas que só pôde ser obtido à custa de

uma ruptura completa entre o relativismo da ciência e o absolutismo da metafísica.

Deste ponto de vista, aparece-nos a obra de Kant como o início de uma orientação

nova na história das relações entre a filosofia e a ciência. Dos antigos até os nossos

dias, os dois domínios alternativamente se confundem e se separam obedecendo a

um ritmo que talvez seja inerente à própria natureza humana (idem, p. 160).

Entende que o filósofo de Königsberg compreendeu perfeitamente o que faltava à

consciência filosófica de seu tempo, dispondo-se a submeter a ciência a uma critica

impiedosa, possibilidade que sequer era imaginada pelos entusiastas da ciência em sua época.

Em decorrência de sua crítica nasceu uma corrente de pensamento que se prolonga através do

idealismo alemão e persiste até hoje nas doutrinas várias que opõem ao intelectualismo

científico a primazia da razão prática ou da intuição. Em Kant,

A matemática pura se funda sobre princípios a priori, anteriores a qualquer

experiência, irrevogáveis porque preexistem no espírito, de cuja arquitetura fazem

parte. São axiomas fecundos, porque pertencem à categoria dos juízos sintéticos,

com o auxilio dos quais se podem construir indefinidamente novos esquemas

abstratos, novas cadeias de símbolos. Dá-nos a matemática o exemplo mais frisante

de uma ciência que nos mostra quanto podemos ir longe, independentemente de qualquer dado empírico, no conhecimento a priori. Na forte expressão do filósofo

[...] O é a razão pura que se estende por si própria. Assim, ao contrário do

empirismo, que vê na matemática uma grosseira aproximação da realidade, Kant a

considera como incorporada ao mecanismo do nosso pensamento (idem, p. 162).

Na visão de Amoroso Costa, Kant soube perceber que a geometria constitui o

campo privilegiado da transição para a realidade concreta, chegando ao conceito de formas a

priori da sensibilidade, que se distinguem das formas a priori do entendimento. A teoria

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kantiana do espaço realiza desse modo uma síntese das formas sensíveis e dos conceitos

inteligíveis, e estabelece de um só golpe o apriorismo da geometria e sua aplicabilidade ao

mundo exterior. O conhecimento depende, pois, da estrutura do sujeito tanto quanto da

natureza do objeto. E diante desta inversão das idéias tradicionais, compreende-se bem que

Kant atribuísse à sua doutrina a importância de uma revolução comparável à do sistema do

Copérnico em astronomia. De posse deste modelo, Kant pode afirmar que a física possui

certeza interna porque se funda parcialmente sobre as leis do pensamento.

Amoroso Costa discute, finalmente, as implicações do desenvolvimento recente da

ciência sobre a tese de Kant, consignando a divergência quanto à sua concordância ou não

com o espírito do kantismo. Acha, entretanto, que se Kant tivesse vivido cem anos mais tarde,

modificaria sensivelmente sua concepção da geometria. Sua apreciação geral da contribuição

de Kant é, como se vê, altamente favorável:

Ninguém mais acredita, suponho, que Kant tenha feito o milagre de descobrir

as condições universais e definitivas dentro das quais se há de mover a ciência de hoje como a de amanhã. A ciência se transforma incessantemente, no seu método

como no seu objeto, porque encontra a cada passo novos tipos de problemas,

irredutíveis aos moldes anteriores. Por mais largos que estes pareçam, chega sempre

o momento em que se reconhece a sua insuficiência. Não há, não pode haver um

cânone supremo do saber, arcabouço de uma razão imutável. Tem-se dito e repetido

que a crítica do conhecimento científico é na reflexão de Kant apenas um prefácio; e

que encerrando a ciência no campo dos fenômenos regido por inflexível

determinismo, quis o filósofo desimpedir o caminho para a restauração de um

universo em que dominam as afirmações da consciência moral. Como quer que seja,

submetendo a obra mais perfeita e mais equilibrada da razão humana a uma análise

cuja profundeza ainda não foi excedida, é a nossa confiança na ciência que Kant

justifica, é sobretudo a nossa fé na capacidade criadora do espírito (idem, p. 165).

O certo é que, após haver considerado a hipótese de construir a filosofia da ciência

com base no neokantismo e na obra de Brunschvicg, Amoroso Costa, nos últimos anos de

vida, empreende um caminho que, se tivesse sobrevivido ao desastre que o vitimou em 1928,

o aproximaria do neopositivismo. Pelo menos é a impressão que deixa a sua obra

fundamental, publicada postumamente: As idéias fundamentais da matemática.

O ciclo de apogeu do kantismo na filosofia das ciências terá início em abril de

1924, com a realização no Rio de Janeiro, na Escola Politécnica, da Festa comemorativa do

Bicentenário de Kant, ato soleníssimo de caráter cultural prestigiado pelas figuras mais

representativas da intelectualidade brasileira. Com esse título, publicaram-se os anais

contendo a descrição do festejado acontecimento e a transcrição das diversas conferências

(Rio de Janeiro, Canton & Beyer, 1924, 86p.). Posteriormente, essa publicação tornou-se

raridade bibliográfica, perdendo-se a memória do evento que registrou.

Procurando rememorar aquele acontecimento, com a finalidade de mostrar o

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prestígio e a sedução que exercia a personalidade de Immanuel Kant, nos meados da década

de vinte, entre os homens de ciência do país, especialmente no seio daqueles que se

preocupavam com os destinos da filosofia. Um evento como esse não se improvisa nem tem

ressonância se não corresponde a um trabalho prévio de sedimentação. E isto, precisamente,

parece ter havido em relação às idéias difundidas pelo neokantismo entre os cultores da

ciência, não obstante o fato que o expresse coincida com o declínio da corrente em toda parte,

e o seu virtual desaparecimento nos anos subseqüentes, sem embargo de se haver procurado

preservar o núcleo mesmo da grande obra do filósofo de Königsberg.

As comemorações programadas em Königsberg para os dias 19 a 23 de abril,

mobilizando toda a universidade e as diversas camadas representativas da população,

inspiraram os festejos realizados no Rio de Janeiro com a participação das principais escolas

superiores, da Sociedade Brasileira de Amigos da Cultura Germânica e o apoio das

autoridades, consistindo o evento central, na sessão solene realizada a 22 de abril, na Escola

Politécnica.

A solenidade coincidiu com as homenagens prestadas em vários centros

intelectuais do mundo à memória de Kant, austera e digna manifestação em honra da ciência,

como proclama o Conde de Afonso Celso ao abrir a sessão comemorativa no Rio de Janeiro.

Na monografia sobre a doutrina de Kant, enviada a Königsberg pela Faculdade de

Direito da Universidade do Rio de Janeiro, intitulada Festa Comemorativa do Bicentenário de

Kant, Clóvis Beviláqua afirma:

Firmando e sustentando que a lei do dever é uma lei absoluta, que a liberdade é condição do dever, que o princípio da causalidade se impõe ao entendimento; que

os postulados da moral são a possibilidade do soberano bem, a imortalidade da alma

e a existência de deus; que cumpre respeitar todos os homens; que ninguém se deve

humilhar, pois para quem rasteja como um verme não é de estranhar seja esmagado;

que cada um de nós deve proceder de modo que a razão de seu ato possa ser erigida

em regra universal; Kant fez jus aos aplausos das consciências retas, resgatou erros

que se lhe atribuem, bem serviu à verdade, à justiça e ao ideal. [...] Contemporâneo

da Revolução Francesa, saudou-a como advento do direito e de justiça, mas

condenou-lhe, com rigor, os excessos sanguinários. [...] Imaginou um direito

cosmopolítico, garantidor, em qualquer país ou circunstâncias, das prerrogativas e

legítimos interesses de qualquer homem e pregou que o ideal dos governos e dos

povos deve ser a paz perpétua e universal. [...] Na profundeza do desconhecido revelou claridades novas. É e ficará sendo um dos pontos culminantes do

pensamento humano (1924, p. 8/15).

Da solenidade constaram, ainda, as seguintes conferências: Kant e as ciências

exatas, de Amoroso Costa; Kant e o direito, de Abelardo Lobo; A filosofia de Kant, de Nuno

Pinheiro, e Kant em face da cultura geral, de Pontes de Miranda. A eloqüência dos

conferencistas diz da magnitude do pensamento de Kant, das suas faculdades e o valor

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inestimável das suas obras, demonstrando que, se o idealismo transcendente do exímio

pensador não pode ser nomeado entre as correntes filosóficas que mais influíram na marcha

do pensamento brasileiro, como o ecletismo de Cousin, o tomismo refundido pelas idéias

modernas, o espiritualismo em suas diversas feições, o naturalismo, o monismo, o positivismo

de Comte e o de Littré, que tiveram todos entre nós ilustres representantes, as idéias kantianas,

longe de nos deixar indiferentes, foram expostas nas aulas de Filosofia, de Lógica, de

Filosofia do Direito e de Direito Natural, delas se ocupando espíritos como Tobias Barreto,

Farias Brito, Pedro Lessa, assimilando-as, discutindo-as, combatendo-as, mas sempre

tributando ao seu autor o mais elevado acatamento.

A última conferência aponta a direção que irão trilhar figuras representativas da

ciência, em especial as que revelam interesse pela problemática filosófica: o neopositivismo.

Pontes de Miranda viria a ser um de seus maiores expoentes. Embora o neopositivismo ainda

não tivesse assumido configuração plena na Europa, a insatisfação revelada pelo kantismo, em

face dos desenvolvimentos científicos do século, já se expressava de forma clara na alocução

de Pontes de Miranda, razão pela qual a referimos brevemente.

Pontes de Miranda inicia a sua conferência mostrando que a filosofia kantiana

enfrentou desde cedo, no domínio epistemológico, duas profundas críticas: a de Reinhold e a

de Fichte. Não as explica, diz apenas que era a luta entre pensadores, e o seu objetivo naquele

momento é mostrar batalha que se feriu e os acordos que se firmaram entre o pensamento

kantiano e a ciência. Para ele, foi do combate de Kant à dialética que o edifício de velhas

doutrinas começou a ruir. Segundo o pensador, as páginas do prefácio da 2ª edição da Crítica

da Razão Pura é um dos grandes marcos do pensamento humano onde Kant nos afirma que “a

razão não é este aluno, que tenha de sentir tudo que o ensine o mestre; é o juiz, que obriga as

testemunhas a depor sobre o que se lhes pergunta. Poucas palavras; é uma revolução! É então

que se caracterizam os julgamentos sintéticos a priori” (idem, p. 64).

No entendimento de Pontes de Miranda, a diferença entre as leis da natureza a que

a vontade se submete e as de uma natureza submetida à vontade, está em que, naquela os

objetos devem ser a causa das representações, ao passo que, nesta, a vontade deve ser a causa

dos objetos, e afirma que ainda neste recanto da metafísica, a centelha do gênio porá a

semente do espírito científico:

Qualquer que seja a nossa opinião sobre a liberdade individual, é preciso

reconhecer que as ações humanas, como os outros fenômenos, são submetidas a leis

naturais [...] Reconhecendo que apesar de todos os feitos kantianos, não podemos

esquecer os pontos negativos de sua obra. Assim: “creio que foi lastimável, como

pretende Venn, a influência direta de Kant nos domínios da lógica; porém foram

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indiretamente úteis e fecundas as suas idéias epistemológicas – e é quanto basta

(ibdem).

Conforme, ainda, Pontes de Miranda, a posição de Kant no campo da geometria

Criou entre os racionalistas, em vez do dilema verdades racionais ou verdades

empíricas, a tripla alternativa, com os julgamentos sintéticos a priori. [...] Não foge

ao racionalismo, apenas o liberta do dilema, para prendê-lo no trilema: não apaga o

domínio a que chamou Analítica transcendental, o que lembra Aristóteles. É o

grande e genial conciliador do século: nele logo se percebe o encontro das duas

linhas do pensamento de então, uma de Locke, quanto à irredutibilidade dos princípios e julgamentos analíticos de identidade, e outra, a que mostrava o caráter

de necessidade que a experiência não podia conferir. É singular a solução: a razão

aparece perante a natureza tendo numa das mãos os princípios (e só eles podem dar

aos fenômenos concordantes autoridade de lei) e noutra a experiência que se criou

segundo os princípios para serem regidos por ele. [...] Se o empirismo fecundara o

gênio de Kant, não se esquecia ele da invariância dos objetos no pensamento lógico

(idem, p. 66)

Procurando mostrar a diferença entre a concepção de Kant e a de Poincaré a

respeito da geometria, diz Pontes de Miranda

Os julgamentos sintéticos a priori seriam em Kant relativos à geometria

euclidiana, enquanto que em Poincaré ela se refere a grupos fundamentais de

transformação, a geometrias possíveis. Assim, na mão da razão, a que alude Kant,

não estariam só os axiomas da geometria euclidiana, e na outra a experiência; nesta

estariam os diferentes tipos de experiências e naquela os diferentes princípios

relativos aos grupos de transformações. Assim Poincaré foi o pluralismo kantiano,

que o filósofo de Königsberg ignorou, pois permaneceu no monismo geométrico. Através de todas as evoluções do pensamento filosófico dos geômetras do século

passado e deste, permaneceu o trilema, e não é certo que Poincaré o afastasse: a sua

ascendência intelectual vai alcançar, no passado, o filósofo alemão (idem, p. 67).

E conclui: “o certo é que não continua intacto o edifício kantiano; mas qual o que

poderia pretender resistir a este século XX, que não é o das luzes, como o outro, mas o da

substituição das velas pelos focos elétricos?” (idem, p. 68).

No campo do direito, no entendimento de Pontes de Miranda, Kant pretendeu

explicar o fenômeno como determinação das condições segundo as quais a liberdade de cada

um pode coexistir com a liberdade de todos. Ora, questiona Pontes de Miranda, o direito é

realmente um fenômeno de adaptação, não porém entre liberdades, mas entre homens ou do

homem à vida social. No Direito, Kant é um apriorista; não se lhe deve nenhum princípio

rigorosamente científico, induzido, verificável. Apesar da crítica, não se escusa, contudo de

proclamar:

Foi grande, foi profundo, foi formidável o gênio de Kant! [...] Parar em

Comte é tão perigoso como parar em Hegel, Kant, Aristóteles. [...] As verdadeiras

homenagens a tais espíritos são aquelas que prestamos ao pensamento, a que todos

eles serviram. No ritual da ciência o melhor venerador é o que excede o venerado;

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Kant prescindiria de todo culto estéril. Criemos, para que mereçamos participar da

glória de todos eles (idem, p 73).

Em seguida, Pontes de Miranda lançaria a Biblioteca Científica Brasileira, que iria

entroncar com o programa do Círculo de Viena, constante do manifesto que divulga em 1929.

Nessa coleção, Pontes de Miranda publica Introdução à sociologia geral (1926), que marca

em nosso país a superação do conceito oitocentista de ciência, adotado pelos positivistas, no

âmbito da ciência social. Essa coleção revelará o livro póstumo de Amoroso Costa, As Idéias

fundamentais da matemática.

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FORMAÇÃO E EVOLUÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SUA POSIÇÃO ENTRE

OS SABERES DA MODERNIDADE: UMA PERSPECTIVA EM FOUCAULT A

PARTIR DE SUA OBRA A PALAVRA E AS COISAS

INTRODUÇÃO

Conforme entendimento de Eduardo Lourenço, no prefácio de As Palavras e as

Coisas (1966, p. III), a obra de Michel Foucault “oferece não só uma leitura original da

História das Idéias na Europa, desde o século XVI ao século XIX, como uma nova

metodologia designada pelo seu autor de arqueologia”, cujo objetivo fundamental é construir,

abandonando a referência do quadro temporal clássico da continuidade (o antes e depois, a

situação no tempo), uma “arqueologia” ou metodologia das Ciências Humanas apoiada na

descontinuidade, na significação e na diferença dos fenômenos culturais.

Segundo Lourenço, a metodologia de Foucault se liga à recusa do continuum

cultural e da imagem da razão que nele se projeta, mas também à atitude positiva que permite

outra leitura da História das Ideias, o que significa:

Em aceitar um período cultural ou um subperíodo sem nenhuma espécie de

pré-conceito, renunciando ao uso de categorias através das quais o fenômeno

cultural é considerado [...] e, em descobrir e descrever – pois não é nunca um dado

de observação empírica – as ‘estruturas históricas’ e sobretudo em utilizar essa

descrição para por em relevo a condição a partir da qual um campo inteiro de

conhecimentos e teorias se organizou (idem, p. VII).

Sua metodologia sem dialética que apontando para a descontinuidade contra a

continuidade “é, em primeiro lugar, a percepção fundada da diferença entre estruturas

culturais e, em segundo lugar, a tentativa de explicar em que consiste e como se opera a

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passagem de um estado A ao estado B [...] sem recorrer à eficácia causal nem transcendental

da epistemologia clássica” (idem, p. VIII).

Em As Palavras e as Coisas vamos encontrar a construção e a explicitação de um

caminho para o entendimento da realidade cultural do Ocidente desde o Renascimento até o

século XX. Nesse caminhar nos mostrará, além de tantas outras questões, que na virada do

século quem irá sofrer uma profunda alteração será o próprio saber como o modo de ser

prévio e indiviso entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. A partir deste momento

se constitui uma disposição do saber onde figuram ao mesmo tempo a historicidade da

economia, a finitude da existência humana e a marcação de um fim da História, quer seja por

afrouxamento indefinido, quer por reviravolta radical.

Deste momento em diante não se tratará apenas “das identidades, dos caracteres

distintos, das tábuas permanentes com todos os seus caminhos e percursos possíveis, mas das

grandes forças ocultas desenvolvidas a partir do seu núcleo primitivo e inacessível, isto é, da

origem, da causalidade e da história” (idem, p. 329).

1 ANÁLISE DAS CIÊNCIAS EMPÍRICAS

Em “As Palavras e as Coisas”, as ciências empíricas englobam a economia, a

biologia e a filosofia que têm suas posições definidas a parti do século XVIII quando o saber

na sua positividade muda de natureza e de forma, alterando o seu modo de ser prévio e

indiviso entre o sujeito “cognoscente” e objeto “cognoscitível”; quando é inaugurado um

saber inteiramente novo obrigando o desaparecimento da positividade do saber clássico como

análise das riquezas, dos seres vivos e das palavras.

No entendimento, a partir dos idos de 1775 a 1795, com Smith, Jussieu e Wilkins,

os conceitos de trabalho, de organismo e de sistema gramatical foram introduzidos ou

reintroduzidos na análise das representações e no espaço tabular onde se desenrolavam

autorizando e permitindo o estabelecimento das identidades e das diferenças e fornecer o

instrumento de uma ordenação. Mas, segundo Foucault, nem o trabalho, nem o sistema

gramatical, nem a organização viva podiam ser definidas ou asseguradas pelo simples jogo da

representação.

Se se começou a estudar o custo da produção e se já não se utiliza a situação

ideal e primitiva da troca para analisar a formação do valor, é porque ao nível

arqueológico a produção, como figura fundamental no espaço do saber, é substituída

pela troca, fazendo surgir por um lado novos objetos cognoscíveis (como o capital) e

prescrevendo, por outro lado, novos conceitos e novos métodos (como a análise das

formas de produção). Da mesma maneira, se se estuda, a partir de Couvier, a

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organização interna dos seres vivos, e se para tal se utilizam os métodos da anatomia

comparada, é porque a Vida como forma fundamental do saber, fez aparecer novos

objetos e novos métodos. Enfim, se Grimm e Bopp tentam definir as leis da

alternância vocálica ou da mutação das consoantes, é porque o Discurso, como

modo do saber, foi substituído pela Linguagem que define objetos até aí inaparentes

e prescreve métodos que ainda não haviam sido empregados (idem, p. 330).

Na época clássica, a produção não existia no domínio do saber, e por isso mesmo

não existia a economia, existia apenas a riqueza. A partir de Ricardo, o trabalho como

atividade de produção é fonte de valor, deixa sua condição de signo, transforma-se num

produto. Assim, para Ricardo, a quantidade de trabalho permite fixar o valor de uma coisa,

não apenas porque esta era representável em unidades de trabalho, mas, acima de tudo e,

fundamentalmente, porque o trabalho como atividade de produção é a fonte de todo o valor.

Já não pode ser definido como na idade clássica, a partir do sistema total das

equivalências e da capacidade que podem ser as mercadorias para se representarem

umas às outras. O valor deixou de ser sinal, tornou-se produto. Se as coisas valem

tanto quanto o trabalho que se lhes consagrou, ou se, pelo menos, o valor delas está

em proporção com o trabalho é porque qualquer que seja o valor ele se origina

sempre no trabalho (idem, p. 332).

Se no pensamento clássico o comércio e a troca servem de fundo insuperável à

análise das riquezas, a partir de Ricardo a possibilidade da troca é fundada no trabalho; e a

teoria da circulação e da distribuição deverá ser precedida pela teoria da produção. Partindo

daí, Foucault formula três consequências:

1. Instauração de uma série causal na economia – No século XVIII não se

ignorava o jogo das determinações econômicas: oferta e procura, estes movimentos, no

entanto eram definidos num espaço em forma de quadro onde os valores podiam representar-

se uns aos outros, era sempre uma causalidade circular e de superfície, visto só dizerem

respeito aos poderes recíprocos do analisante e do analisado. A partir de Ricardo, o trabalho

liberta-se da representação, organiza-se segundo uma causalidade que lhe é própria As

“riquezas, em vez de se distribuírem num quadro e de constituírem um sistema de

equivalência, organizam-se e acumulam-se numa cadeia temporal: todo valor se determina

segundo as condições de produção que lhe dão origem, e as condições são determinadas por

quantidades de trabalho aplicadas na produção deles”. (idem, p. 334).

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2. Torna a economia possível e necessária – Não é mais através do jogo da

representação que a economia encontra o seu princípio, mas na natureza, região perigosa onde

a vida se defronta com a morte. Assim, a possibilidade da economia insere-se na antropologia.

E o ‘’homem econômico’’ não é o homem consciente das suas necessidades e dos objetos

capazes de as satisfazerem, é, isto sim, aquele que tenta escapar pelo trabalho à iminência da

morte. ‘’A economia do século XVIII era relacionada a uma mathesis como ciência geral de

todas as ordens possíveis; a do século XIX terá por referência uma antropologia como

discurso sobre a finitude natural do homem’’. (idem, p. 336).

3. Evocação da economia – O pensamento clássico concebia para a economia um

futuro aberto e mutável. No século XIX, no entanto, a história ininterrupta da raridade permite

pensar o empobrecimento da História e a sua inércia progressiva até a finitude. Para Ricardo,

A História preenche o vazio aberto pela finitude antropológica e manifestado

por uma perpétua carência, até o momento em que é atingido o ponto de uma

estabilidade definitiva. Enquanto que, para Marx, a História, despojando o homem

do seu trabalho, põe em relevo a forma positiva da sua finitude. O essencial no

entanto é que no início do século XIX se haja constituído uma disposição do saber

onde figuram ao mesmo tempo a historicidade da economia, a finitude da existência humana e a marcação de um fim da História (idem, p. 342).

No particular da biologia, é a partir de Couvier que se estudará a organização

interna dos seres vivos utilizando-se para isso, os métodos da anatomia comparada. Com ele

fica liberta da sua função taxionômica a subordinação dos caracteres para fazê-lo entrar nos

diversos planos de organização dos seres vivos. Com isso, o liame interno que faz depender as

estruturas umas das outras já não se situa só ao nível das frequências, torna-se o próprio

fundamento das correlações.

Na análise dos clássicos, os órgãos eram definidos pela sua estrutura e pela sua

função; a estrutura enunciava utilizável e a função o identificável. Couvier altera a disposição,

dando primazia à função. Ao considerar o órgão em sua relação com a função que ele

desempenha faz surgir as semelhanças, mas o que importa não é a semelhança, mas a função

que o órgão desempenha. O que para o saber clássico não passava de

pura e simples diferença justaposta à identidade, deve agora ordenar-se a partir de

uma homogeneidade funcional que o suporta em segredo. Quando o Mesmo e o

Outro pertencem a único espaço, temos a História Natural, e quando surgem as

diferenças no fundo da identidade, torna-se possível alguma coisa como a biologia.

(idem, p.362).

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Na disjunção do plano das identidades e das diferenças, surgem novas relações: de

coexistência, de hierarquia interna, de dependência a respeito do plano de organização.

Havendo escalonamento hierárquico das importâncias, desaparecendo o projeto de uma

taxionomia geral e a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da

Natureza, desaparece a Natureza, que durante toda a idade clássica não existiu como tema,

como ideia, como fonte indefinida do saber, mas apenas como espaço homogêneo das

identidades e das diferenças susceptíveis de ordenação. Assim, a passagem da noção

taxionômica à noção sintética da vida assinalada na cronologia das ideias e das ciências é

condição de possibilidade de uma biologia.

Durante toda a idade clássica, a vida estava sob a alçada de uma ontologia

que dizia respeito por igual a todos os saberes materiais sujeito à extensão, ao peso,

ao movimento; e era nesse sentido que todas as ciências da Natureza, e em particular

a do vivo, tinham uma profunda vocação mecanicista. A partir de Couvier o vivo

escapa, pelo menos em primeira instancia, às leis gerais do ser extenso; o ser

biológico regionaliza-se e autonomiza-se; a vida é, nos confins do ser o que lhe é

exterior e o que, no entanto, se manifesta nele (idem, p. 358).

Na experiência clássica o “ser vivo” é visto como uma casa num quadrilátero ou

como uma série de casas na taxionomia universal do ser. A partir de Couvier, o “ser vivo”

envolve-se sobre si, rompe com as suas afinidades taxionômicas, sai do plano das

continuidades e constitui um novo espaço: interior, relativamente às coerências anatômicas e

compatibilidade fisiológica; e exterior, no tocante aos elementos onde reside para os converter

no seu corpo próprio. Ambos os espaços, no entanto, têm uma direção unitária que é a das

condições de vida.

O espaço clássico não excluía a possibilidade de um devir, mas este devir apenas

assegurava um percurso na tábua prévia das variações possíveis. A ruptura desse espaço

permitiu o aparecimento de uma historicidade própria à vida, a da sua manutenção nas suas

condições de existência, introduzindo-se daí em diante a historicidade no “ser vivo”.

No pensamento do século XVIII, as sucessões cronológicas são apenas uma

propriedade e uma manifestação mais ou menos trabalhada da ordem dos seres; a partir do

século XIX elas exprimem de uma maneira mais ou menos direta, e até na sua interrupção, o

modo de ser profundamente histórico das coisas e dos homens.

A natureza clássica privilegiava os valores vegetais. O século XIX, onde os

caracteres e as estruturas se escalonam em profundidade na direção da vida, é o animal que se

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torna figura privilegiada, porque se o vivo é manifestação da vida, o animal deixa melhor

perceber o que é seu enigma.

No século XIX a vida tem um valor radical. É ao mesmo tempo o núcleo do

ser e do não ser: se há ser é porque há vida, se há vida haverá a morte. A experiência

da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o trazer à luz essa força

primitiva a partir da qual eles são; ela funciona como uma ontologia selvagem que

procurasse dizer o ser e o não ser são indissociáveis de todos os seres. Enquanto um

prevê o fim, o outro anuncia o infinito da vida; enquanto um afirma como limites do individuo as existências da sua vida, o outro extingui-as no murmúrio da morte.

Assim, a partir do século XIX o campo do saber não pode dar lugar a reflexão

homogênea e uniforme. É necessário admitir que a partir de então, cada forma de

positividade tem a ‘’filosofia’’ que lhe cabe por direito (idem, p.363).

Segundo Foucault, a gramática comparada desempenhará papel fundamental na

formação da Filologia apresentando soluções inteiramente novas sobre a genealogia das

línguas. Segundo entende, durante a idade clássica, as palavras que compunham as línguas e

os caracteres pelos quais se tentavam constituir uma ordem natural só existiam pelo valor

representativo que possuíam e pelo poder de analise, de composição e de ordenação que se

lhes reconhecia sobre as coisas representadas. No século XIX, a palavra sofre uma

transformação análoga, se ela figura num discurso ou significa alguma coisa é porque obedece

a um certo número de leis estritas que regem de forma semelhante todos os outros elementos

da mesma língua; a palavra já não está ligada a uma representação, senão na medida em que

define e assegura a sua coerência própria através da organização gramatical. Para que a

palavra possa dizer o que diz, é necessário que pertença a uma totalidade gramatical.

O nascimento da Filologia no domínio do conhecimento ocidental permaneceu

muito mais discreto do que o da biologia e da economia. Apesar disso, as suas consequências

estenderam-se muito mais além da nossa cultura, e a formação de sua positividade no inicio

do século XIX verifica-se através de quatro seguimentos teóricos:

1. Refere-se à maneira como uma língua se pode caracterizar em si mesma e

distinguir-se das outras. Na época clássica, a individualidade de uma língua poderia ser

definida a partir de vários critérios: proporção entre os diferentes sons utilizados para formar

palavras, maneira de representar as relações, disposição escolhida para ordenar as palavras,

etc. Mas tais distinções entre as línguas só diziam respeito a maneira de analisar a

representação e compor os seis elementos.

A partir de Schlegel, a línguas definem-se pela maneira como ligam uns aos

outros os elementos verbais que a compõem, e se a nova filologia tem agora para caracterizar

as línguas os critérios de organização interior, deve abandonar, e o faz, as classificações

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hierárquicas praticadas no decorrer do século XVIII onde admitia-se haver, dependendo da

análise da representação, línguas mais importantes do que outras. Daí por diante, todas as

línguas se valem: possuem apenas organizações internas diferentes.

2. Constituído pelo estudo das variações internas. A gramática geral estudava, nas

suas pesquisas etnológicas, as transformações das palavras e das silabas do tempo, mas este

estudo era limitado, pois: incidia mais sobre a maneira como os sons pronunciados podiam ser

modificados; as transformações eram consideradas como efeito de uma certa afinidade das

letras entre si; as vogais eram tratadas como elemento mais fluído e o mais instável da

linguagem, enquanto que as consoantes formavam a sua arquitetura sólida.

Somente com Rask, Grimm e Bopp, a linguagem é tratada como um conjunto de

elementos fonéticos. Enquanto na gramática geral a linguagem nasce quando o ruído da boca

ou dos lábios se tornam letra, admite-se doravante que existe linguagem quando esses ruídos

se articulam e se dividem numa série de sons distintos. Todo ser da linguagem é agora sonoro

e na sua sonoridade de passageira e profunda a palavra torna-se soberana.

Assim, o século XIX inicia uma análise da linguagem como conjunto de sons

libertos das letras que os transcrevem. Esta análise foi feita em três direções: 1) a tipologia das

diversas sonoridades que são utilizadas numa língua; 2) incide sobre as condições que podem

determinar uma mudança numa sonoridade: o seu lugar na palavra é, em si mesmo um fator

importante: as letras do radical possuem uma vida longa, as sonoridades da desinência tem

vida mais curta; 3) incide sobre a constância das relações através da história. Grimm

estabeleceu uma tábua de correspondência para as labiais, as dentais e as guturais entre o

grego e o alto alemão.

Apesar desse conjunto de relações, “os caminhos da história encontram-se

prescritos; em vez de as línguas serem submetidas a uma medida externa, às coisas da história

humana que deviam, para o pensamento clássico, explicar as suas mudanças, elas possuem em

si mesmas um principio de evolução” (idem, p. 316).

3. Trata de estabelecer uma teoria nova do radical. Na época clássica, as raízes

tinham por referência um duplo sistema de constantes: as constantes alfabéticas que incidiam

sobre um número arbitrário de letras e as constantes significativas que reagrupavam sob um

tema geral uma quantidade indefinidamente extensível de sentidos convizinhos; no

cruzamento das duas constantes está a raiz. Daí por diante, a etimologia vai cessar de ser uma

busca indefinidamente regressiva de uma língua primitiva; torna-se um método de análise

definido e seguro para reencontram numa palavra o radical a partir do qual ela foi formada.

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A linguagem já não é um sistema de representações que tem o poder de delimitar

e decompor outras representações; nas suas raízes mais profundas e constantes, designa ações,

estados, vontades; mas o que ela designa especificamente é o que se faz ou o que se sofre. Ela

se enraíza do lado do sujeito na sua atividade. Como ação, a linguagem exprime uma vontade

profunda, daí surgirem duas consequências: a) no momento em que a filologia se constitui

pela descoberta de uma dimensão da gramática pura, se volta a atribuir à linguagem profundos

poderes de expressão, ao passo que na época clássica a função expressiva só era requerida no

ponto de origem e para explicar que um som passa representar coisa; b) a linguagem não mais

se liga às civilizações pelo nível de conhecimento que elas atingem, mas através do espírito

do povo que as fez nascer. A linguagem já não se liga ao conhecimento das coisas, mas à

liberdade dos homens. ‘’A linguagem é humana’’, ‘’é a nossa história, a nossa herança.

4. Caracteriza o aparecimento da filologia mostrando que a análise das raízes

tornou possível uma nova definição dos sistemas de parentescos entre as línguas. A gramática

geral excluía a comparação na medida em que admitia em todas as línguas duas ordens de

continuidade: uma vertical (acervo das raízes mais primitivas); horizontal (comunicação das

línguas na universidade da representação). A partir de Grimm e Bopp torna-se possível a

comparação direta e lateral de duas ou varias línguas, visto que não é mais necessário passar

pelas representações puras ou pela raiz primitiva, basta estudar as modificações do radical, o

sistema das reflexões e a série das desinências.

Quando duas línguas se assemelham na idade clássica é necessário, ou ligá-las à

língua absolutamente primitiva, ou admitir que procede da outra, ou ainda, admitir permutas.

Agora, quando as línguas apresentam sistemas análogos, deve-se poder decidir se uma é

derivada da outra, ou se origina de uma terceira, a partir da qual cada uma desenvolveu um

sistema diferente e também análogo.

Assim, a historicidade introduz-se no domínio das línguas, como nos dos seres

vivos. E para que a história das línguas pudesse ser pensamento, foi necessário que se

desprendesse da cronologia que as religava sem ruptura até a origem, que se libertasse das

representações a que estavam presas. A partir dessas rupturas, a heterogeneidade dos sistemas

gramaticais aparecem com os seus recortes próprios, as leis que cada um prescrevem as

mudanças e os caminhos que fixa as possibilidades da evolução.

Apesar de na biologia a historicidade ter necessitado de uma história suplementar

que devia enunciar as relações do individuo com o meio, a historicidade da linguagem

descobre sem intermediário a sua história. A filologia anulará as relações que o gramático

estabeleceu entre a linguagem e a historia externa para definir uma historia interna.

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Assim, o surgimento das ciências empíricas na modernidade significa um

deslocamento da representação que constituem os seres vivos, as riquezas e as palavras, para

o campo do conhecimento empírico: da vida, do trabalho e da linguagem, modos

fundamentais de positividade das ciências empíricas: Biologia, Economia e Filologia. Desta

forma, a produção, a vida e a linguagem são os elementos através dos quais o homem se torna

objeto do saber, estabelecendo assim, uma dependência do homem em relação aos objetos

empíricos.

Quando a história natural se transforma em biologia, quando a análise das

riquezas se volve em economia, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se

converte em filologia e se extingue o discurso clássico em que o ser e a

representação encontravam o seu espaço comum, então, no movimento profundo de

uma tal mutação arqueológica, surge o homem com a sua posição ambígua de objeto

para um saber e de um sujeito que conhece [...] O motivo desta presença nova, a

modalidade que lhe é própria, a disposição singular da episteme que a autoriza, a

relação nova que através dela se estabelece entre as palavras, as coisas e a sua

ordem – tudo isto pode ser agora posto a claro (idem, 407).

2 A QUESTÃO DA FILOSOFIA

Segundo Foucault, a finitude do homem, descoberta pelas ciências empíricas não

é radical, é, isto sim, uma finitude que ainda não se definiu. É através das empiricidades que o

homem se descobre como ser finito. No entanto, o homem como ser natural e histórico, não

pode deixar de aparecer como objeto, ou seja, como condição de possibilidade, como

fundamento a partir do qual é possível ser ele empiricamente finito. Daí a correlação entre o

homem como objeto e sujeito de conhecimento, mostrando a dupla função do modo de ser

que o homem desempenha no saber da modernidade constituindo assim, o a priori histórico

que explica o aparecimento das ciências humanas.

Assim é que para Foucault, o limiar da modernidade está no momento em que se

constituiu um par empírico – transcendental a que se chamou o homem. Viu-se nascer então,

duas espécies de análises: as que se alojaram no espesso do corpo e funcionam como uma

espécie de estética transcendental, descobrindo-se a partir daí que havia uma natureza do

conhecimento humano que lhe determinava as formas e que podia ao mesmo tempo ser-lhe

manifestada nos seus próprios conteúdos empíricos; e as que funcionaram como uma espécie

de dialética transcendental, onde se mostrava que o conhecimento tinha condições históricas,

sociais e econômicas que se formava no interior das relações; que havia uma história do

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conhecimento humano que podia ser dada simultaneamente ao saber empírico e prescrever-

lhe as suas formas.

Desta forma, a nova filosofia é inaugurada a partir do momento em que a

condição de possibilidade do conhecimento, centrada antes no objeto, passa agora para o

sujeito. Ao retirar o saber e o pensamento do espaço da representação, Kant inaugura uma

teoria do conhecimento independente de uma metafísica. A partir de então não se procura

mais uma correspondência entre sujeito e objeto, já que o objeto é por ele constituído. Do

mesmo modo que os seres vivos, as riquezas e as palavras abandonando o espaço da

representação possibilitam o aparecimento das positividades: vida, trabalho e linguagem,

assim também, a contestação da teoria geral da representação deu lugar a uma filosofia

transcendental, onde a condição de possibilidade de conhecimento está no sujeito e não no

objeto.

Para Foucault, o pensamento filosófico moderno é constituído por uma

antropologia que se faz necessária a partir do momento em que a representação perde o poder

de determinar, por si só, e de um só lance, o jogo das suas sínteses e das suas análises. Esta

constituição tem sua origem em Kant, onde a diferença entre o empírico e o transcendental é

mostrada por ele com muita clareza, o que acontece com os pensadores pós-Kantianos, que

confundem os dois níveis.

A preocupação que a filosofia moderna dispensa ao homem, o cuidado com que

tenta defini-lo como “ser vivo”, indivíduo que trabalha, ou sujeito falante, tem a finalidade de

colocar o homem como fundamento de sua própria finitude. Assim, todo conhecimento

empírico, desde que se refira ao homem, vale como campo filosófico possível, onde deve

descobrir-se o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites, e finalmente a

verdade de toda verdade. A configuração antropológica da filosofia moderna consiste em

desdobrar o dogmatismo em dois níveis diferentes que se apoiam um no outro e se limitem

um ao outro: a análise pré - crítica do que é o homem na sua essência converte-se na análise

de tudo o que se pode oferecer em geral à experiência do homem.

Daí a filosofia moderna, ou seja, a antropologia filosófica ser para Foucault, uma

analítica da finitude. Analítica porque o caráter fundamental com que ela marcará o modo de

ser do homem é a repetição (da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental).

De um estremo a outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é na figura do

Mesmo a identidade e a diferença das positividades e do seu fundamento.

É neste espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no

fundamental que a analítica da finitude vai se desenvolver, é aí que se vai observar o

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transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno da origem

repetir o distanciamento; é aí que se vai afirmar a partir de se mesmo um

pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica (idem, p. 411).

Enquanto os conteúdos empíricos da vida, trabalho e linguagem estavam alojados

no espaço da representação, era exigida uma metafísica do infinito, mas no momento em que

os conteúdos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de

sua existência, a partir daí a metafísica do infinito torna-se inútil; a finitude passa a remeter a

si mesma, e todo pensamento ocidental sofre uma inversão. Daí por diante

o pensamento moderno contestar-se-á nos seus próprios progressos metafísicos e

mostrará que as reflexões sobre a vida, o trabalho e a linguagem, na medida em que valem como analítica da finitude, manifestam o fim da metafísica; a filosofia da vida

denuncia a metafísica como o véu da ilusão; a do trabalho como pensamento

alienado e ideologia, a da linguagem como episodio cultural (idem, p. 413).

Desta forma, o homem – este duplo empírico – transcendental, a priori histórico

constitutivo das ciências humanas não é possível senão a título de figura da finitude.

3 FORMAÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS

Para Foucault o homem como sujeito da cultura é uma invenção recente, antes do

fim do século XVIII, o homem não existia como não existia a potência da vida, a fecundidade

do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. As ciências naturais trataram do homem

como uma espécie ou um genro. A gramática e a economia, por outro lado, utilizavam noções

como as de necessidade, de desejo, ou de memória e de imaginação, contudo, sem a

consciência epistemológica do homem como tal, ou seja, fora de um domínio próprio e

específico do homem.

Importante notar que na episteme clássica, as funções da natureza e da natureza

humana são opostas, pois a natureza, pelo jogo de uma justaposição real e desordenada, faz

surgir a diferença no contínuo ordenado dos seres; ao contrário disso, a natureza humana faz

surgir o idêntico na cadeia desordenada das representações mediante o jogo de exposição das

imagens. Uma implica a interferência de uma história para a constituição das paisagens atuais,

a outra implica a comparação de elementos inatuais que desfazem a trama de uma sucessão

cronológica. Mas, apesar desta oposição, ou ainda através dela, vê-se delinear a relação

positiva da natureza para com a natureza humana. A natureza e a natureza humana e as suas

relações na episteme clássica “são momentos funcionais, definidos e previstos, e o homem,

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como realidade densa e primeira, como objeto difícil e sujeito soberano de todo conhecimento

possível não tem nela nenhum lugar”. (idem, p. 404).

Os temas modernos de um indivíduo vivo, falando e trabalhando segundo as leis

de uma economia, de uma filologia e de uma biologia, ligados à existência das Ciências

Humanas não existem no pensamento clássico porque àquela época, não era possível a

existência de um ser cuja natureza seria conhecer a Natureza e, por consequência, conhecer-se

a si mesmo, como ser natural.

O que o pensamento clássico faz surgir, no ponto de encontro entre a

representação e o ser, aí onde se entrecruzam natureza e natureza humana, é o poder do

discurso, isto é, o poder da linguagem enquanto representação. Daí a afirmação de Foucault:

“a vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de formar um quadro que fosse como

discurso natural, descrição das coisas ou corpo de conhecimentos exatos ou dicionário

enciclopédico. Ela só existe para ser transparente, perde a consistência secreta que, no século

XVI, lhe dava espessura de uma palavra a decifrar e a mistura às coisas do mundo’’. (idem, p.

405).

Para Foucault, as palavras na época clássica não são marcas a decifrar (como na

Renascença) nem instrumentos mais ou menos fiéis e domináveis (como no positivismo),

formam antes a rede incolor em que os seres se manifestam e as representações se ordenam.

Assim, a reflexão clássica sobre a linguagem exerce em relação à análise das

riquezas e da história natural um papel diretivo. Daí, a linguagem clássica como discurso

comum da representação e das coisas, como lugar onde se entrecruzam natureza e natureza

humana, excluir totalmente a “ciência do homem”’. Desta forma, enquanto na cultura

ocidental falou-se essa linguagem, não foi possível que a existência humana fosse colocada

em causa por si mesma, visto que a ela interessava apenas a representação e o ser.

O discurso que no século XVII ligou o “Eu penso” e o “Eu sou” permaneceu na

essência da linguagem clássica. A passagem do “Eu penso” para “Eu existo” foi feita à luz da

evidência, no interior de um discurso que articulava o que se representa e o que é. A partir daí,

cessou o valor da representação para os vivos, para as necessidades e para as palavras. Agora,

ela nada mais é que um efeito, um fenômeno de uma ordem que pertence às próprias coisas e

à lei interior delas. Os seres já não manifestam, na representação, a sua identidade mas a

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relação exterior que estabelecem com o ser humano, que passa ser agora o principio e meio de

toda produção.

O domínio da “episteme” moderna deve ser representado, segundo Foucault,

como um espaço de três dimensões. Numa delas estariam situadas as ciências matemática e

física; numa outra, as ciências empíricas: da linguagem, da vida e da produção e distribuição

de riquezas; na terceira dimensão estaria a reflexão filosófica que se desenvolveu como o

pensamento do Mesmo. Desta “tríade” epistemológica são excluídas as ciências humanas, no

sentido, pelo menos, de que não se pode encontrá-las em nenhuma das dimensões nem à

superfície de nenhum dos planos assim desempenhados, mas pode dizer-se igualmente que

elas são incluídas por ela, pois é no exercício destes saberes, isto é, no volume definido pelas

suas três dimensões, que elas encontram o seu lugar, colocando-as em relação com todas as

outras formas do saber. Assim,

o modo de ser do homem como se constitui no pensamento moderno, permite-lhe

desempenhar dois papéis: situa-se no fundamento de todas as possibilidades e está presente no elemento das coisas empíricas. Daí, no entender de Foucault, a

constituição das ciências humanas a partir da descrição das possibilidades das

ciências empíricas e da filosofia (a priori histórico) ou seja, no momento em que o

homem se constitui como o que é necessário pensar e o que há de saber (idem. p.

448).

Esse a priori histórico, não é uma condição de validade de conhecimentos, mas

condição de existência de discursos. Estudá-lo, será as possibilidades das ciências empíricas e

da filosofia e a partir daí descrever a possibilidade das ciências humanas.

4 POSIÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS ENTRE OS SABERES DA MODERNIDADE

O tratamento de qual questão tem início em Foucault na reflexão sobre o objeto

das ciências humanas. Para ele, se o homem é estudado como um ser empírico pelas ciências

da vida (biologia), do trabalho (economia) e da linguagem (filologia) e estudado também,

como ser transcendental pela filosofia, que lugar ocupam as ciências humanas entre estes

saberes da modernidade?

As ciências humanas analisadas por Foucault em “As Palavras e as Coisas” são

respectivamente: a sociologia, a psicologia e a análise da literatura e dos mitos, saberes estes

que não se confundem com as ciências empíricas, nem com a filosofia. Assim, a originalidade

das ciências humanas, o que as distingue dos outros saberes não é o fato de terem o homem

como objeto, já que o estudo do homem não é exclusividade das ciências humanas.

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Para Foucault, o lugar das ciências humanas pode ser fixado nas fronteiras

imediatas e em toda a extensão das ciências que estudam a vida, o trabalho e a linguagem. No

entanto,

As ciências humanas não são a análise do que é o homem por natureza, mas

uma análise que se estende entre o que o homem é na sua positividade e o que

permite a esse mesmo ser, saber o que é a vida, em que consiste a essência do

trabalho e as suas leis e de que maneira ele pode falar. As ciências humanas não

estão no interior destas ciências, nem tão pouco, as interiorizam. Elas as retomam na

dimensão da representação, isto é, naquilo que elas cessam de ser quando se abre o

espaço da representação; a partir daí as ciências humanas mostram como pode nascer e desenvolver-se uma representação de tais mecanismos e funcionamentos

(idem, p. 459/60).

As ciências humanas não tratam a vida, o trabalho e a linguagem do homem onde

se oferecem transparentes, mas nas camadas das condutas, dos comportamentos, das

atividades, dos gestos, das frases já pronunciadas ou escritas no interior do qual eles foram

dados anteriormente aos que agem, se comportam, trocam, trabalham e falam.

Para maior compreensão do problema, Foucault procura mostrar a evolução do

estudo da representação dizendo que a representação é estudada primeiramente em as

“Palavras e as Coisas”, como noção fundamental que explica a episteme clássica, onde a

característica fundamental do signo é a representação. Para ele, no século dezoito, onde a

vida, a riqueza e as palavras são transformadas em biologia, economia e filologia, tais

conhecimentos deixam de ser análises e passam a ser sínteses e nesse momento a

representação é retirada do corpo destas ciências, isto é, deixa de ser o lugar da origem da

vida, do trabalho e da linguagem, é agora, simples efeito; nela os seres não mais manifestam

sua identidade, apenas a relação exterior que eles estabelecem com o ser humano. É neste

vazio preparado pelos seres vivos, os objetos da troca e as palavras, quando abandonam a

representação e se retiram para a profundidade das coisas e se envolvem sobre si mesmos,

segundo a lei da vida, da produção e da linguagem, que o homem surge. Surge construindo

representações sobre a vida, o trabalho e a linguagem, já que tais representações são o objeto

as ciências humanas.

No seu entender, o domínio das ciências humanas é ocupado por três regiões

epistemológicas que são definidas pela tripla relação das ciências humanas com a biologia, a

economia e a filologia e a reduplicação como característica das ciências humanas será

possível a partir de três modelos constitutivos capazes de organizar todo o espaço da

representação. Através deles, o fenômeno da representação se apresenta na modernidade

como objeto de saber. Não é simplesmente um objeto para as ciências humanas, mas o próprio

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campo delas; é o impulso geral dessa forma de saber, aquilo que as torna possível. Daí o

surgimento de duas consequências:

A primeira é que as consciências humanas, diferentemente do que acontecia

às ciências empíricas desde o século XIX e diferente do que sucedeu com

pensamento moderno, não puderam evitar o primado da representação; como todo

saber clássico, incluem-se nelas, mas não são, de modo algum, as herdeiras ou a continuação das ciências empíricas porque toda configuração do saber se modificou

na medida em que aparece, com o homem, um ser que não existia antes no campo da

episteme [...] A segunda é que as ciências humanas ao tratarem do que é a

representação (sob uma forma consciente ou inconsciente), estão tratando como seu

objeto o que é condição da própria possibilidade delas, animadas portanto, de uma

espécie de mobilidade transcendental; não cessam de exercer para consigo próprias

uma posição critica; vão do que é dado à representação ao que torna possível a

representação, mas que é ainda uma representação (idem, p. 472/73).

Desta forma, no horizonte de toda a ciência humana existe o projeto de reconduzir

a consciência do homem às suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e às formas que

a fizeram nascer e que nela se esquivam; é por isso mesmo que o problema do inconsciente

não é simplesmente um problema interior às ciências humanas, mas antes um problema que é,

afinal, coextensivo à sua própria existência. Uma “sobreelevação transcendental convertida

num desvelamento do não consciente é constitutiva de todas as ciências humanas do homem”.

(idem, p. 473). Os modelos constitutivos das ciências humanas são os pares conceituais da

função e da norma, do conflito e da regra, da significação e do sistema, e a escolha de um

deles como fundamental definirá arqueologicamente a psicologia, a sociologia e o estudo da

literatura e dos mitos.

Enquanto no plano de projeção da biologia o homem surge como um ser dotado

de funções, recebendo estímulos, respondendo-lhes, adaptando-se, evoluindo, submetendo-se

às exigências do meio e tendo condições de existência e a possibilidade de encontrar normas

de ajustamento que lhe permita exercer suas funções, no plano da economia ele aparece numa

irredutível situação de conflito que, para apaziguá-los, instaura um conjunto de regras que são

ao mesmo tempo limitação e reacender do conflito. No plano da linguagem, as condutas do

homem aparecem significando algo, ou seja, possuem um sentido ou significação e tudo que

ele coloca em torno de si em matéria de objetos, de ritos, de hábito, de discursos, etc. constitui

um conjunto coerente e um sistema de signos.

Desta forma, os três pares da função e da norma, do conflito e da regra, da

significação e do sistema abarcam o domínio do conhecimento humano. A psicologia é

fundamentalmente um estudo do homem em termos de função e norma. Através do conceito

de função ela se articula com a biologia a através do conceito de norma que é a condição de

possibilidade da função, ela se articula com a filosofia.

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A sociologia tem como modelo fundamental os conceitos de conflitos e de regra,

representam o conflito, os conceitos empíricos da economia, enquanto a regra, que limita e

torna possível o conflito, representa o outro de uma filosofia do Mesmo.

A análise da literatura e dos mitos se articula com a linguagem enquanto objeto da

filologia através da significação e com a tema filosófico do recuo da origem através do

conceito de sistema.

Assim, os problemas da norma, da regra e do sistema nos aproximam do problema

da representação nas ciências humanas, as categorias da norma, regra e sistema permitem a

dissociação, característica de todo o saber contemporâneo que tem por objeto o homem, entre

a consciência e a representação. De tal modo que as ciências humanas não falam senão dentro

do elemento do representável, mas segundo uma dimensão consciente – inconsciente, tanto

mais profunda quanto se tente esclarecer a ordem dos sistemas, das regras e das normas.

A teoria dos três modelos permite mostrar o tipo de relação que elas mantêm com

os três saberes empíricos e com a filosofia. Através deles é possível explicar outros problemas

das ciências humanas, como as discussões epistemológicas sobre seu método e traçar,

também, a história arqueológica das ciências humanas pelo sucessivo privilégio das funções,

do conflito e da significação como categorias de análise. A teoria dos três modelos permite

ainda estabelecer uma distinção entre consciência e representação. Nela a representação

consciente se dá quando o estudo privilegia os primeiros termos dos modelos (função, conflito

e significação), tornando-se inconsciente, quando o estudo se desloca para os conceitos mais

fundamentais de norma, regra e sistema, o que acontece a partir de Freud.

Daí, afirmação de Foucault de que existe ciência humana não onde quer que o

homem esteja em causa, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente,

normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições das suas

formas e dos seus conteúdos. Falar de “ciências do homem’’ em qualquer outro caso é puro e

simples abuso de linguagem”.

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HERMENÊUTICA: DE CANON DE INTERPRETAÇÃO

À HERMENEUTICA FILOSÓFICA

INTRODUÇÃO

Na sua origem, o fenômeno hermenêutico, não era apenas um problema da

doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito, estava ligado, em especial, ao

fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu. Do ponto

de vista histórico, a hermenêutica (hermèneutik) perpassa o domínio da filosofia deste a

antiguidade clássica até os nossos dias.

A palavra deriva do grego hermènêus, hermèneutik e hermènêia. Para Filón de

Alexandria “hermènêia é logos expresso em palavras, manifestação do pensamento pela

palavra” (GRONDIN (1999, p. 56). Está associada a Hermes, deus mediador, patrono da

comunicação e do entendimento humano cuja função era tornar inteligível aos homens, a

mensagem divina. A ele os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita.

Desde o surgimento da palavra no século XVII, entende-se por hermenêutica, a

ciência e, respectivamente, a arte da interpretação. Até o final do século passado, ela assumia

normalmente a forma de uma doutrina que prometia apresentar as regras de uma interpretação

competente. Sua intenção era de natureza predominantemente tecno/normativa e se “restringia

à tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algumas indicações

metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da

interpretação de textos ou de sinais. Por isso formou-se, desde a Renascença, uma

hermenêutica teológica (sacra), uma hermenêutica filosófica (profana), como também uma

hermenêutica jurídica” (idem, p. 9).

Como arte, de âmbito universal de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos

textos, dos signos, da cultura e de outras formas de interação humana, a Hermenêutica pode

ser considerada como um ramo da filosofia que tem como principal finalidade à compreensão

humana.

Numa perspectiva da hermenêutica filosófica - que tem sua origem em Heidegger

e o seu desenvolvimento especialmente em Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur - a

hermenêutica possui uma tarefa crítica e não se restringe, como ocorria em outras épocas, a

uma teoria ou metodologia de compreensão e interpretação da fala e do texto. Cabendo-lhe

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determinar o verdadeiro sentido das ciências do espírito e a verdadeira amplitude e significado

da linguagem humana.

1 DE CANON DE INTERPRETAÇÃO À HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

A hermenêutica como doutrina da arte da compreensão e da interpretação tem seu

desenvolvimento em dois caminhos diversos: o teológico e o filológico. Em ambos os

terrenos a hermenêutica procurava pôr a descoberto o sentido original dos textos. Como

doutrina da arte de interpretação a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo, será substituída

na modernidade pelo modelo das ciências da natureza que tem no método indutivo a base de

toda ciência experimental. Ao afirmar que a hermenêutica só chega à sua verdadeira essência

na posição de um organon histórico, Dilthey a coloca, juntamente com outros pensadores,

como fundamento da concepção histórica do mundo, o que leva à concepção de uma

hermenêutica universal cuja tarefa é superar a estranheza ligada à individualidade do tu, em

busca do “diálogo significativo”, onde compreensão é, de princípio, entendimento.

A partir da modernidade a hermenêutica teve de desvencilhar-se dos

enquadramentos dogmáticos e libertar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal

de um organon histórico. Com essa “liberação da interpretação do dogma” a reunião das

Escrituras Sagradas assume o papel de fontes históricas que, na qualidade de obras escritas,

têm de se submeter a uma interpretação não somente gramatical, mas também histórica. Neste

momento, o velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não

podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à

abrangência conjuntural da realidade histórica, cuja totalidade pertence cada documento

individual. Desse momento em diante, já não existe nenhuma diferença entre a interpretação

de escritos sagrados e profanos e, portanto, apenas uma hermenêutica que tem não apenas

uma função propedêutica de toda a historiografia, mas ainda toda a atividade da historiografia,

fazendo nascer aí, a concepção de uma hermenêutica universal.

Será Platão (427 a.c), o primeiro a utilizá-la. Filón e Clemente de Alexandria vão

entendê-la como a manifestação do pensamento pela linguagem. Agostinho (354-430), que

desenvolveu na sua “Doctrina christiana” a teoria hermenêutica reconhecidamente mais eficaz

do “mundo antigo”, irá utilizá-la como doutrina da interpretação, em especial, das passagens

obscuras da Sagrada Escritura, em busca da “verdade viva” porque, segundo afirma, a busca

do seu entendimento “não é nenhum processo indiferente, meramente epistêmico, que se

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passa entre um sujeito e um objeto, ele atesta a inquietação e maneira de ser de um ente que

aspira por sentido.

Na Antiguidade e na Idade Média (Patrística) houveram apenas regras

hermenêuticas esparsas. Com Lutero, que entende a hermenêutica como arte da interpretação,

ela será revitalizada como exegese das Escrituras, sendo com Mathias Flacius (1520-1575),

através da sua “Clavis scripture sacre” de 1567, cujo peso da interpretação recai sobre os

conhecimentos gramaticais e linguísticos, que é possível falar, pela primeira vez, de uma

teoria hermenêutica, ou hermenêutica sistemática no protestantismo. Como afirma Grondin, a

universalidade da hermenêutica até então existente, estava limitada ao domínio do discurso

religioso, o que para a Idade Média, não apresentava qualquer limitação porque o

entendimento vigente era de que as Escrituras detinham todos os conhecimentos que homem

deveria possuir.

Com a modernidade, todavia, o círculo do que tinha valor de leitura, de

interpretação, amplia-se através da valorização do estudo dos clássicos gregos e latinos e pela

necessidade de interpretação dos juristas e dos médicos. Em decorrência disso, a partir do

século XVII, surge a necessidade de um novo Órganon do saber, ou seja, de uma nova

doutrina metodológica para as ciências. É nesta época, precisamente em 1620, que Francis

Bacon nos lega o “Novum Organum” e Descartes, o Discours de la Méthode, em 1637, ambos

recomendados como novas propedêuticas das ciências e da filosofia. Entendendo a

hermenêutica como a arte de compreender, interpretar e traduzir de maneira clara os signos

inicialmente obscuros, Spinosa irá utilizá-la como forma correta e objetiva de interpretação da

Bíblia.

Com Dannhauer, Meyer e Chladenius, segundo Grandin, a hermenêutica adquire

status como teoria geral da interpretação rompendo o quadro das hermenêuticas especiais

(teológica, jurídica, ETC.) para delinear a universalidade do processo hermenêutico de

compreensão e interpretação. A hermenêutica de Dannhauer foi desenvolvida no curso de

uma busca por uma nova metodologia das ciências desvinculadas da escolástica. Será ele o

primeiro a utilizar, em 1654, a palavra hermenêutica no título de um livro: Hermenêutica

sacra sive methodus exponendarum sacrum litterarum. Nele, ao afirmar que “no vestíbulo de

todas as ciências, na propedêutica, portanto, deveria existir uma ciência universal do

interpretar” é possível vislumbrar o germe de uma hermenêutica universal.

A Introdução para a correta interpretação de discursos e escritos racionais

(1742), de Johan Martin Chladenius (1710-1759), abre novos horizontes para a hermenêutica

filosófica ao desvincular da lógica, a hermenêutica geral ou doutrina da interpretação e

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colocá-la como um outro grande ramo do saber humano. A partir de então, a hermenêutica

passa a ser dividida em: Geral - que se aplica à interpretação de qualquer obra escrita;

Específica - que se aplica à leis, histórias, profecias, poesias, etc.

A hermenêutica como arte universal da interpretação tem em Méier (1718-1777),

um novo impulso de universalização que consiste em que o âmbito de aplicação da arte

universal da interpretação se estenda muito além do horizonte do escriturístico, para incluir o

todo global dos sinais. Na elaboração de sua hermenêutica semiótica Méier afirma que

A arte da interpretação, em sua compreensão mais ampla, é a ciência das

regras, através de cuja observância os significados podem ser reconhecidos por seus

sinais; a arte da interpretação, em sua compreensão mais restrita, é a ciência das

regras que se deve observar, quando se quer conhecer o sentido a partir do discurso e

expô-lo aos outros” (MÉIR apud GRODIN, p. 108).

Diante disso, é possível dizer que interpretar para Méier é reconhecer o sentido

pelo sinal, mais exatamente, poder ordená-lo segundo a característica universal de todas as

coisas. Para desenvolver esta perspectiva hermenêutica trazemos ao texto, seguindo a

Gadamer, as ideias de Schleiermacher, Dilthey e Heidegger.

A hermenêutica como arte da compreensão de Schleiermacher tem em Ast e

Schlegel o seu ponto de partida. Em sua obra intitulada Linhas básicas da Gramática,

Hermenêutica e Crítica de 1808, Ast afirma a necessidade da reconquista da unidade do

espírito expressa na Antiguidade e ao longo da História. Sua hermenêutica pressupõe a

compreensão da Antiguidade em todos os seus elementos externos e internos, baseando sobre

isso a explicação das obras escritas da época. Para ele, “a lei básica de toda a compreensão e

conhecimento é a de encontrar, no particular, o espírito do todo e entender o particular através

do todo” (AST apud GRONDIN, p. 120). Nesta mesma perspectiva, Schlegel irá defender

uma função universal para a teoria hermenêutica como nova teoria metodológica da filologia

cujo desenvolvimento teria por base o clássico modelo comprovado da Antiguidade. Mas a

hermenêutica como doutrina da arte do entendimento, da compreensão só irá desenvolver-se

plenamente com Schleiermacher.

Friedrich Schleiermacher (1768-1834), teólogo, protestante, estudioso da Bíblia e

de clássicos, realizou uma virada na história da hermenêutica ao firmar que compreender

significa, de princípio, entender-se uns com os outros e que a compreensão é, de princípio,

entendimento. A sua preocupação não recai sobre a situação pedagógica da interpretação que

procura ajudar a compreensão do outro (Spinoza e Chladenius). Ao contrário, nele “a

interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e

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interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão”

(GADAMER, 2008, p. 288).

A hermenêutica da compreensão, ou seja, a hermenêutica como arte de evitar o

mal-entendido de Schleiermacher, se eleva à autonomia de um método, de um cânon de regras

gramaticais e psicológicas de interpretação que se afastam de qualquer liame dogmático de

conteúdo. O seu diferencial está, justamente, em ter introduzido a função psicológica no

processo de interpretação, onde o que é visado não é apenas a linguagem a partir da totalidade

de seu uso, mas e fundamentalmente, a compreensão de um espírito. O que deve ser

compreendido não é apenas a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas também a

individualidade de quem fala e, consequentemente, a do autor. Ler um texto é dialogar com o

autor, esforçando-se para apreender a sua real intenção e compreender o seu espírito por

intermédio da decifração de suas obras com vista à compreensão, conceito básico e principal

finalidade de toda questão hermenêutica. A interpretação psicológica de Schleiermacher

tornar-se-á determinante para a formação das teorias do século XIX, especialmente para

Dilthey.

Partindo do fenômeno da compreensão, onde “compreender é compreender uma

expressão”, Wilhelm Dilthey (1833-1911) procura diferenciar as relações do mundo espiritual

das relações causais no nexo da natureza. A âncora utilizada para fundamentar

filosoficamente as ciências do espírito será a experiência interior, ou “fatos da consciência”.

Segundo entende, é natural encontrar na experiência interior as condições objetivas de

validade das ciências do espírito. Nas suas investigações metodológicas, apoiando-se em

Husserl, parte do universal “princípio da fenomenalidade”, segundo o qual toda realidade se

encontra sob os condicionamentos da consciência. Colocando o mundo histórico como um

texto que deve ser decifrado, Dilthey acredita ter justificado epistemologicamente as ciências

do espírito.

Enquanto Dilthey irá ampliá-la na direção de uma Metodologia universal das

ciências do espírito, Heidegger a direcionará para o terreno da faticidade humana e Gadamer a

configurará, a partir da consciência da descrição fenomenológica e da abrangência do

horizonte histórico, como linguagem capaz de articular o sentido e a compreensão da verdade

na perspectiva de uma hermenêutica filosófica que ultrapasse o campo do controle da

metodologia científica.

Segundo Gadamer a hermenêutica representava para Dilthey mais do que um

instrumento. “É o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum

outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão a vida”.

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Cada expressão ou enunciado, brota de um aconselhar-se a si mesmo que procura reviver a

compreensão que consiste nas ciências do espírito, num retorno do manifestado para o

interior, ou seja, para a auto-reflexão que se dá a conhecer na expressão.

Para Grondin,

A investigação do processo da palavra interior, que se encontra por detrás da

expressão torna-se, agora, tarefa central de todas as ciências do espírito que

pretendem compreender [...] Da hermenêutica espera Dilthey, agora, a solução da

pergunta pelo ‘conhecimento científico’ do individual, portanto regras universalmente válidas, para defender a segurança da compreensão em face ao

ceticismo histórico e da arbitrariedade subjetiva, mantendo assim, uma compreensão

clássica e normativa da hermenêutica (1999, 152/154).

No século XIX, apesar das intuições básicas amplamente estabelecidas, os

clássicos da hermenêutica não chegaram a desenvolver uma concepção unitária ou sistemática

da mesma. No século XX, a filosofia hermenêutica estimulada por Dilthey, vai reconhecer

como sua tarefa realizar uma despedida da metodologia direcionada e caminhar em busca de

uma metodologia com respaldo de validade universal. Sinalizando nessa direção, atuou

primeiramente a ontologia da vida real de Heidegger, que transformou a hermenêutica na base

universal da filosofia.

Martin Heidegger (1889-1976), na busca de superação das aporias do

historicismo e de uma renovação geral da questão do espírito fez com que a hermenêutica

avançasse para o centro da reflexão filosófica. Com ele, a compreensão humana se orienta a

partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial que demarca o

enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação. Pré-

estrutura, em sua “hermenêutica existencial da faticidade”, significa que o “Dasein”, o ser-aí

humano, se caracteriza por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes de

qualquer locução ou enunciado. Em seu conceito de compreensão sustentado na fórmula:

“entender-se sobre algo”, Heidegger afirma que entender teoricamente de um contexto, fato

ou coisa, significa estar em condições de enfrentá-los, levá-los a cabo, poder começar algo

com eles. Essa compreensão é concebida por ele como compreensão “existencial”, ou seja,

como modo de ser por força do qual nós conseguimos e procuramos situar-nos neste.

Na hermenêutica tradicional, a interpretação funcionava como meio para a

compreensão, ou seja, em primeiro lugar vinha a interpretação, depois e a partir dela, a

compreensão. Na verdade, a interpretação quer ajudar a pré-compreensão a ser transparente a

fim de evitar o equívoco pessoal, ou seja, que os nossos preconceitos não esclarecidos

exerçam aí sua despercebida dominação e assim escondam o específico do texto. Na sua

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hermenêutica existencial, Heidegger inverterá essa relação teleológica. O primário será dado à

compreensão, e a interpretação irá consistir exclusivamente na configuração ou elaboração da

compreensão. No desenvolvimento de suas ideias sobre a interpretação compreensiva,

Heidegger dirá que:

Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da

ocorrência de ‘felizes ideias’ e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do

pensar, e orientar sua vista ‘às coisas elas mesmas’ [...] Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente

submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorrem. Quem quiser

compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro

sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o

sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas

expectativas e não perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que

está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que,

obviamente tem ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme

se avança na penetração do sentido. Deixar-se determinar pela própria coisa é a

tarefa primeira, constante e última do interprete (HEIDEGGER apud GADAMER,

2008, p. 402).

No percurso histórico da hermenêutica, Hans-Georg Gadamer em sua obra

Verdade e Método de 1960, questiona e analisa a metodologia das ciências do espírito a partir

da ideia de que o fenômeno da compreensão e da correta interpretação, muito além de

restringir-se ao âmbito das ciências, pertence já à experiência do homem no mundo. A análise

dessa experiência é desenvolvida por ele em três momentos: a experiência da arte, a

compreensão dentro das ciências históricas do espírito e o desenvolvimento do fenômeno da

linguagem como a experiência humana no mundo.

Segundo afirma, na sua origem o fenômeno hermenêutico não é, de forma

alguma, um problema de método porque, o que importa a ele, em primeiro lugar, não é a

estruturação de um conhecimento seguro que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência.

Contra a reivindicação universal da metodologia científica, o propósito de Gadamer é

“rastrear por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo de controle da

metodologia científica, e indagar por sua própria legitimação onde quer que se encontre [a sua

hermenêitica] não é uma doutrina de métodos das ciências do espírito, mas a tentativa de um

acordo sobre o que são na verdade as ciências do espírito, para além de sua autoconsciência

metódica, e o que as liga ao conjunto de nossa experiência de mundo (2008, p. 30).

Para estabelecer os traços fundamentais de uma teoria hermenêutica, Gadamer

inicia pela estrutura ontológica (universal) do circulo hermenêutico. Segundo firma

Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de

suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais

obstinada e conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e

derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto

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deve estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência

formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva á

alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma ‘neutralidade’

com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma

destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais (idem, p. 358).

Do mesmo modo, diz Gadamer, no âmbito da compreensão histórica, não é a

partir de padrões e preconceitos contemporâneos que iremos compreendê-la, mas a partir do

horizonte do qual fala a tradição, sob pena de estar sujeito a mal-entendidos com respeito ao

significado de seus conteúdos. Neste sentido parece ser uma exigência hermenêutica o fato de

termos de nos colocar no lugar do outro, ou seja, tomar consciência de sua alteridade para

poder entendê-lo. Tal entendimento, no entanto, só nos é possível através de uma mensagem

transmitida por uma linguagem que desperta um escutar. Assim, a hermenêutica entendida

como busca de compreensão do sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos

leva Gadamer a afirmar o homem histórico como ser finito que se completa com a

comunicação. Por conta disso, a linguagem passa a ser entendida como o núcleo central da

comunicação.

Tratando do problema fundamental da hermenêutica, Gadamer nos dirá que no

processo hermenêutico deve ser considerado não somente a compreensão e interpretação,

mas, também, a aplicação. Isto porque, segundo entende

A interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complementar à

compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a

interpretação é a forma explicita da compreensão. [...] Mas a íntima fusão entre compreensão e interpretação acabou expulsando totalmente do contexto da

hermenêutica o terceiro momento da problemática hermenêutica, a aplicação. [...]

Ora nossas reflexões nos levaram a admitir que, na compreensão, sempre ocorre

algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete.

[Diante disso] Pensamos que a aplicação é um momento tão essencial e integrante

do processo hermenêutico como a compreensão e a interpretação (idem, p. 407).

A partir de tal entendimento é possível dizer que

O trabalho do interprete não envolve simplesmente a reprodução do que diz o

interlocutor que ele interpreta, mas deve fazer valer a opinião daquele como lhe

parece necessário a partir da real situação da conversação na qual somente ele se

encontra como conhecedor das duas línguas que estão em comércio (ibdem).

Como a compreensão deve ser uma experiência autêntica, ou seja, um encontro

com algo que se impõe como verdade, não se satisfaz no virtuosismo técnico de um

compreender tudo o que é escrito. Isto porque, “compreender o que alguém diz não é produto

de empatia, que adivinha a vida psíquica do falante” (idem, p. 630). A melhor maneira de

determinar o que significa a verdade será entender que aquele que compreende já está sempre

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incluído num acontecimento, em virtude do qual aquilo que possui sentido acaba se impondo.

Por isso, na medida em que compreendemos, nos incluímos num acontecer da verdade.

Embora a vontade do nosso conhecimento sempre deva buscar escapar de todos os

nossos preconceitos não existe, segundo Gadamer, nenhuma compreensão totalmente livre de

preconceitos. O fato de pertencermos a determinado grupo social, a determinado tempo

histórico, de possuirmos determinada formação, faz com que a compreensão hermenêutica

seja inevitavelmente condicionada pelo contexto de quem analisa.

A corrente de pensamento inspirada por Gadamer considera que a práxis não está

subordinada à teoria como simples técnica resultante da dedução de um saber teórico, sendo a

prática co-natural à teoria. Esta corrente tem como virtude fundamental a phronesis, que é a

ligação entre a razão (logos) e a experiência moral (ethos), entre a subjetividade (consciência)

e a objetividade (ser). Gadamer, salienta assim, que a verdade é superior ao método, visando

não o saber teórico, mas sim, o uso prático do conhecimento.

Para concluir nosso estudoO último autor a ser destacado é Karl-Otto Apel, que,

em sua obra Transformação da filosofia (1973), reavalia os projetos de Heidegger e de

Gadamer, propondo um novo olhar sobre a hermenêutica que seria estendido até as

Investigações filosóficas de Wittgenstein. Segundo Apel, a pergunta sobre a possibilidade da

compreensão - que se fazem tanto Heidegger como Gadamer - não pode deixar de lado a

pergunta sobre sua validade. Apel considera que a hermenêutica tem de ser normativa e

metodológica, não sendo possível chegar ao extremo de reduzir a verdade à vontade daquele

que quer compreender, isto é, de considerar viáveis quaisquer interpretações. Para

desenvolver o seu pensamento, começa por estabelecer uma distinção importante entre a

hermenêutica e a filosofia da linguagem.

Segundo ensina, de Lutero a Dilthey, a compreensão foi colocada cada vez mais

radicalmente em questão, enquanto o sentido do texto e sua pretensão à verdade

(Wahrheitsanspruch) nunca foram questionados em profundidade. Mas isto mudou

radicalmente com Wittgenstein que, já no Tractatus Logico-Philosophicus, faz a distinção

entre sentido e verdade. Compreender uma frase, diz Wittgenstein no Tractatus, "é saber

quando ela é verdade". Isto porque ela pode ter sentido, mas não expressar a verdade. Para ter

sentido, é preciso que seja formada por elementos que se compreendam. Para ser verdadeira,

deve ser possível a) transformá-la em frases elementares e b) comparar as frases elementares

com os fatos (APEL apud GADAMER, 2008, p. 339).

Apel é defensor de uma hermenêutica no sentido - por ele atribuído a Wittgenstein

- em que toda compreensão de sentido pressupõe a participação no jogo de linguagem. Assim,

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o próprio Apel considera que a hermenêutica está ausente da teoria de Wittgenstein porque

Wittgenstein não teria abandonado de todo o esquema dualístico do Tractatus (o esquema da

forma lógica, de um lado, e do conteúdo, de outro, se aplicaria agora não a um sentido, mas a

vários sentidos diferenciados) e, por essa razão, não teria conseguido dar conta da mediação

entre diferentes jogos de linguagem, especialmente da mediação histórica. Isso não impede

que o próprio Apel - e este é seu projeto - procure nos jogos de linguagem e nas formas de

vida o fundamento da hermenêutica, mantendo-a, portanto, a seu ver, pertinente após aquilo

que chamou de "transformação da filosofia", isto é, a modificação radical da ideia de

linguagem operada pelo próprio Wittgenstein. O mérito de Apel está em resgatar para o

campo da hermenêutica, uma reflexão mais sistemática sobre o processo de compreensão e da

validade da interpretação.

2 O MÉTODO HERMENÊUTICO E SUA RELAÇÃO COM OUTROS MÉTODOS

A hermenêutica, seja como método de compreensão e interpretação, seja como

filosofia que visa a compreensão da experiência humana no mundo, mantêm estreita relação

com outros métodos já que envolve a compreensão, a interpretação e o entendimento da

linguagem. Como interpretar um texto significa entregar-se a um colóquio com ele, dirigir-lhe

perguntas e deixar-se questionar por ele, qualquer que seja o ponto de partida da

compreensão, ela deverá repousar sobre um solo dialógico assim como sobre uma apreensão

fenomenológica prévia, sem os quais não é possível saltar para o círculo hermenêutico – área

de ação partilhada por quem fala e por quem ouve - indispensável a todo ato de compreensão.

Segundo MINAYO (2004, p. ), o método hermenêutico se relaciona com o

fenomenológico e o dialético, trazendo para o primeiro plano a compreensão do tratamento

dos dados e das condições cotidianas da vida, possibilitando o esclarecimento sobre as

estruturas mais profundas desse mundo cotidiano. Segundo afirma, a compreensão do sentido

se orienta por um possível consenso entre o sujeito agente e aquele que busca compreender.

Assim, a hermenêutica se introduz no tempo presente, na cultura de um determinado grupo

para buscar o sentido que vem do passado ou mesmo do presente, de uma visão de mundo

própria, envolvendo num só movimento o ser que compreende e aquilo que é compreendido.

A hermenêutica interage também com o método fenomenológico porque, sem

uma apreensão dos fatos, dos fenômenos tais quais eles acontecem, afastada dos pré-

conceitos, dos pré-juízos, não há como interpretá-los, não há como compreendê-los

verdadeiramente, como elaborar ideias, como construir conhecimentos. Interage com o

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método dialético porque enquanto a hermenêutica busca a compreensão, destaca a mediação,

o acordo e a unidade de sentido, a dialética enfatiza a diferença, o contraste, o dissenso e a

ruptura de sentido.

A sua interação com o dialógico, acontece porque a interpretação envolve troca de

impressões, de compartilhamento de ideias ou significados que vão surgindo à medida que o

diálogo flui e as posições diferentes devem ser aceitas como instrumentos de interpretação e

compreensão das diferenças e da diversidade de visões de mundo. Interage, ainda, com o

método experimental (científico) porque no processo de conhecimento, inclusive no

experimental, não é possível a aproximação da verdade sem a interpretação dos dados

experimentados, das ideias que compõem o corpo de uma teoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do estudo nos foi possível verificar que a hermenêutica como arte de

interpretação tem sua origem na antiguidade clássica estando presente na Idade Média,

fundamentalmente como exegese das Sagradas Escrituras. Com a Modernidade ela passa a

ser compreendida como método que, através da interpretação nos leva à compreensão. Que

este entendimento perpassa toda a Modernidade destacadamente com Schleiermacher,

Dilthey , Heidegger e, posteriormente, com Betti, Apel, etc.

Em Gadamer, a hermenêutica assume uma tarefa crítica e não se restringe, como

ocorria em outras épocas, a uma teoria ou metodologia de compreensão e interpretação da

fala e do texto. Cabe-lhe determinar o verdadeiro sentido das ciências do espírito e a

verdadeira amplitude e significado da linguagem humana. A universalidade da linguagem ou

da compreensão passa a constituir, a partir de Verdade e Método, o centro da discussão

hermenêutica.

Verificar, também, que o fenômeno da compreensão perpassa não somente

tudo que diz respeito ao mundo do ser humano, mas também o terreno da ciência, da

filosofia, da arte, da história, seja como exegese, seja como método de interpretação e

compreensão, seja como um aspecto universal da filosofia.

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ÉTICA E QUALIDADE DE ENSINO

Ética e Educação são, para mim, o maior patrimônio individual e social da humanidade. Resultado da consciência viva que rege as comunidades

humanas, elas criam, pelo conhecimento do mundo interior e exterior,

formas melhores de vida (Brito, Rosa)

Ética e qualidade na educação são, na atualidade, temas recorrentes. As falas e

discussões estão indicando que tomamos consciência da importância dessas questões como

condição primeira no trato da dignidade da pessoa humana. Contudo, não basta ter

consciência dessa problemática, é necessário transformar a consciência, em conscientização,

ou seja, é preciso encontrar ou traçar caminhos que nos leve a colocar em prática as teorias,

as idéias que entendem a ética como qualidade da ação fundada nos valores morais de que

tanto falamos mas, quase sempre, não praticamos.

Os homens nascem imersos num mundo não só de outros homens e das coisas ao

redor, mas também de conhecimentos e relações com que se tecem as tramas e a lógica de

uma cultura expressa em linguagem determinada. Nascem eles lançados na vida cotidiana,

marcados pela simultaneidade de seres particulares e seres genéricos. Interpenetrando-se,

assim, a consciência do "EU" e a consciência do "NÓS", numa espontânea e muda unidade

vital.

Em decorrência disso, apreender e compreender o mundo, o Eu e o Outro, ou seja,

apreender e compreender a realidade depende dos juízos de fato e de valor que elaborarmos a

respeito desta mesma realidade. Contudo, o valor por excelência, aquele que podemos chamar

de valor-fonte, não pode deixar de ser a pessoa humana, e é dele que devemos partir para

alcançar o fundamento próprio e peculiar da Educação.

A Educação constitui-se e desenvolve-se porque os homens são livres e desiguais

e aspiram à igualdade e à justiça; são diversos e sentem nas profundezas de seu ser uma

inclinação igual para a felicidade, querendo ser cada vez mais eles mesmos, e ao mesmo

tempo aspirando a uma certa tábua igual de valores. O valor Educação tem sede na pessoa

humana e é pressuposto de sua dignidade e condição de sua realização material e espiritual. É

no diálogo dos educadores/educandos que se constrói o processo educativo. Vemos a

Educação como fenômeno primordial e básico da vida humana, congênere e contemporâneo

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da própria vida em todas as suas fases e situações porque é ela que possibilita ao homem,

como um ser inacabado, construir-se ao construir seu mundo com inteligência e liberdade.

Tarefa intransferível no sentido de que ninguém educa ninguém, mas tarefa solidária no

sentido de que os homens em sociedade se educam e organizam as condições e situações da

própria educação.

Como toda prática envolvendo a atuação individual dos agentes, a prática

educativa coloca questões morais, interpelando a sensibilidade valorativa da consciência e sua

implicação para o trabalho profissional do educador e a natureza histórico-social da sua

postura ética, porque o profissional da educação não pode perder de vista tal dimensão sob

pena de compromoter a eficácia de seu trabalho. A educação entendida como processo que

visa promover o desenvolvimento do indivíduo através do desencadeamento de todas as suas

potencialidades, só pode cumprir o seu papel se for auxiliada diretamente pela ética porque,

em última análise, a ação moral é a revelação das intencionalidades das práticas educativas e

das práticas sociais dos educadores e dos educandos.

É na educação como processo dialogal onde os homens devem constituir-se em

reciprocidade como alteridades distintas, para, no consenso, construírem a sua visão de

mundo. Porque continuamos encontrando dificuldades para resolver os problemas de nosso

agir, a ética ocupa, na Filosofia Contemporânea, lugar de destaque. Como um ser

eminentemente prático, o homem na filosofia contemporãnea define a sua existência com a

contínua construção de seu modo de ser, mediante sua prática que o coloca em relacão com a

natureza, com os seus semelhantes e consigo mesmo, mas a sua prática não se dá como

prática mecânica, ela é sempre uma prática intencional, marcada por uma referência a

objetivos e fins.

É pela mediação de sua consciência subjetiva que o homem pode intencionalizar

a sua prática, pois essa consciência é sensível a valores. Assim, ao agir, o homem está sempre

se referenciando a valores, de tal modo que todos os aspectos de sua realidade, todos os

objetos de suas experiências, todas as situações que vive e todas as relações que estabelece

são atravessadas por um coeficiente de valoração.

Isso quer dizer que, em todas as nossas experiências, as coisas não são apenas

representadas simbolicamente por conceitos mas, também, apreciadas por valores e julgadas

portadoras de um índice de valoração. Desse modo, as coisas e situações relacionam-se com

nossos interesses e necessidades através da experiência dessa subjetividade valorativa,

atendendo, de uma maneira ou de outra, a uma sensibilidade que temos, tão arraigada quanto

aquela que nos permite representar as coisas e conhecê-las mediante os conceitos.

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Quando agimos, somos levados não apenas a saber e a conhecer os dados

envolvidos em nossa ação mas, também, a avaliar validade e legitimidade. Em outras

palavras, somos instados a tomar uma posição quanto à legitimidade dessa ação, indagados

pela consciência sobre sua adequação aos valores que ela vivencia. Esta sensibilidade aos

valores, no que concerne ao agir, é o que chamamos de consciência moral ou sensibilidade

aos valores éticos.

A questão ética é, portanto, questão fundamental da Educação porque deve

fundamentar os nossos juízos de fato e os nossos juízos de valor moral a fim de legitimar as

nossas opções de ação uma vez que nosso agir não se dá mecanicamente, como ocorre com

atividades realizadas de maneira puramente instintiva. Sabemos que os valores que movem a

nossa prática são herdados de nossa própria cultura; nós os recebemos e os incorporamos, na

maioria das vezes, sem saber justificá-los. Mas essa sua imersão na cultura não evita que

continuemos enfrentando o desafio de fundamentá-los, buscando esclarecer como eles se

legitimam e legitimam o nosso agir individual e coletivo.

Os valores éticos a que somos sensíveis, como tudo o mais que é humano,

expressam-se concretamente sob formas culturais. Nem poderia ser diferente, pois a

existência humana necessita de mediações para se efetivar. Entretanto, essa encarnação dos

valores morais não elimina seu caráter normativo e prescritivo, dizendo-nos o que deve ser

feito, mesmo que decidamos não seguir essa orientação. Podemos não seguir a prescricão de

nossa consciência valorativa mas, com isso, estaremos experimentando concretamente que

nossa ação não é mecânica, que temos uma flexibilidade no direcionamento de nosso agir. Ao

mesmo tempo, experimentamos que estamos agindo contra a nossa própria consciência,

sentindo-nos inteiramente responsáveis pela nossa decisão, podendo, inclusive, avaliar suas

eventuais conseqüências.

A vivência valorativa abrange a nossa consciência subjetiva com a mesma

amplitude de nossa vivência conceitual. Podem variar os conteúdos dos sistemas éticos, mas

todas as comunidades humanas vivenciam, sob formas particularizadas, a sua sensibilidade

ética. Assim, variam os sistemas morais, mas não variam a exigência da moralidade e a

sensibilidlade dos homens aos valores morais porque, em primeiro lugar, a questào da

moralidade de nosso agir é de caráter universal, ou seja, interessa diretamente a todos os

homens, quaisquer que sejam as circunstâncias concretas que constituem suas mediacões

históricas e sociais. Ora, se o valor central que a ética filosófica encontra para fundamentar

suas prescricões é o da própria dignidade da pessoa humana, é em funçao da qualidade

própria desse existir, delineada pelas características específicas de seu modo de ser, que se

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pode tentar elaborar um quadro de referência valorativa para se definir o sentido do agir

humano, individual ou coletivo.

A ética que se está tentando construir e que interessa de modo particular aos

educadores poderia ser designada como uma “ética praxista”. Isto porque, como vimos, o que

podemos falar sobre a natureza, sobre a essência ou sobre a condição humana é apenas aquilo

que é desenhado pela sua prática histórico-social. Embora o homem continue sendo entendido

como ser natural, dotado de uma personalidade subjetiva, não é mais visto nem como um ser

totalmente determinado, como queria a antropologia naturalista, nem como um ser totalmente

livre e autônomo, como queria a antropologia essencialista. Ele não é mais nem um sujeito

substancial, soberano e absolutamente livre, nem um sujeito empírico, puramente natural. É

uma entidade natural histórica, determinada pelas condições objetivas de sua existência, ao

mesmo tempo em que atua sobre elas, mediante sua práxis, ou seja, prática impregnada por

intenções subjetivadas, envolvendo, assim, coeficiente de exercício de uma vontade livre. O

homem é, pois, um sujeito histórico-social.

Portanto, para o homem contemporâneo, os valores não estão predefinidos,

inscritos há séculos em um único lugar. Eles vão sendo descobertos construídos no decorrer e

na trama complexa da história de um sujeito eminentemente coletivo. A ética só pode então

ser estabelecida através de um processo permanente de decifração do sentido da existência

humana, tal qual ela vai se desdobrando no tecido social e no tempo histórico, não mais

partindo de um quadro atemporal de valores, abstratamente concebidos e idealizados. Impõe-

se, portanto, à indagação ética desenvolvida pela Filosofia, perscrutar com rigor e lucidez

todas as articulações sobre as quais se assenta o agir humano em suas relações com a

natureza, com os seus semelhantes e com os produtos de sua prática simbólica. A ética

contemporânea não pode perder de vista as mediações concretas que desenham, a cada

momento e em cada lugar, a existência dos homens.

É por essa razão que a esfera da ética se relaciona intimamente com a esfera da

educação, do trabalho, da sociabilidade e da cultura simbólica, pois só se legitima como valor

eticamente bom aquele princípio, aquele critério que estiver consolidando a dignidade do

homem, consolidando as mediações concretas pelas quais essa dignidade se expressa

objetivamente. Por conta disso, a ética, hoje, tem a ver não só com referências puramente

conceituais, mas também com referências econômicas, políticas e sociais. Enquanto prática

especificamente voltada para os sujeitos humanos em construção, o compromisso

fundamental da educação é com o respeito radical à dignidade humana. Esse compromisso

ético da educaçào é mais acirrado no momento em que nos encontramos porque as forças de

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dominacão, degradação, opressão e alienação consolidaram-se nas estruturas sociais,

econômicas e culturais. Em outras palavras, as condições atuais de existência da humanidade,

traduzidas pela efetivação de suas mediações objetivas, são extremamente injustas e

desumanizadoras. Assim, por exigência ética, a educação deve conceber-se, planejar-se e

realizar-se como investimento intencional sistematizado para a consolidação das forcas

constitutivas das mediacões existenciais dos homens.

Dificuldades constantes põem em risco a conduta ética do professor. A primeira e

a mais fundamental destas dificuldades é a perda do espaço ético, a perda do juízo prudencial.

De certo modo, as funcões do professor, especialmente aquelas que exigem decisões pessoais,

foram deslocadas para a área burocrática da escola. O dito sistema que não é ninguém em

concreto e, sim, pura abstração, algo impessoal que usurpou a possibilidade de o professor

decidir sobre a conduta do aluno. Assim, quando um aluno tem um problema, ele é enviado à

direção, depois ao serviço pedagógico, ao serviço de orientação educacional e, deste modo, a

burocracia transforma o professor num mero instrumento de um aparente ordenamento neutro.

Deve-se obedecer ao que foi racionalmente estabelecido, mas isto jamais poderá significar

omissão frente aos compromissos pessoais do professor, jamais poderá tornar-se desculpa

para uma espécie de abdicação da consciência moral.

O problema moral não é um problema simples, nem como cega aceitação de

regras de conduta que nos são fornecidas já prontas do exterior, nem corno a afirmação de

uma liberdade radical para estabelecermos, nós mesmos, sozinhos, os nossos valores e os

nossos fins. O problema moral, na vida de um homem, é feito de contradições vividas, sempre

renovadas, entre as exigências da disciplina necessária à eficácia da nossa luta e o sentido de

responsabilidade pessoal de cada um de nós tanto na elaboração quanto na aplicação das

próprias leis da nossa combatividade. O problema moral não pode ser evitado não pode ser

substituído pelo problema científico e técnico da verdade, da procura e da descoberta de uma

ordem verdadeira das coisas e da natureza que daria à conduta moral um fundamento externo

ao homem.

O estudo das leis do desenvolvimento social, a própria possibilidade de delinear,

ao menos nos seus traços essenciais, a trajetória de um próximo ou longínquo porvir mais ou

menos provável, nunca nos dispensa da tomada de consciência da nossa responsabilidade

como sujeítos agentes e criadores da nossa história e não corno objetos de urna história

segundo uma concepçào que nos reduziria a ser uma mera resultante ou a soma das condições

de nossa existência.

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A moral surge, em primeiro lugar, como um conjunto de leis que regulam a nossa

conduta. Cada homem tem uma moral que lhe veio de fora, com a educação, isto é, com o fato

de que o indivíduo pertence a urna sociedade, a uma comunidade histórica e social. É a nossa

experiência de criança a quem o que é proibido e o que é permitido vem imposto do exterior

como um fato. O bem e o mal têm, em primeiro lugar, o caráter convencional e inexorável do

semáforo vermelho e verde. O conjunto destas regras constitui uma espécie de cenário dentro

do qual nos foi destinado um ‘emprego` preciso: só nos resta enfiar os trajes e recitar nossa

parte. Assim, desde a infância, faço parte de urna religião, de uma pátria, de uma classe, de

urna família, de uma tradição, etc., cujos fins e meios que me permitem alcançá-los se me

afiguram como “valores intangíveis” e o problema do fundamento não é levantado. Nem

tampouco, aliás, o da transgressão.

O entendimento de que a pessoa humana é o valor-fonte da educação, nos coloca

alguns desafios, entre eles:

ter presente as várias visões de mundo e os princípios que as informam porque

os homens nascem imersos num mundo não só de outros homens e das coisas ao redor, mas

também de conhecimentos e relações com que se tecem as tramas e a lógica de uma cultura

expressa em linguagem determinada;

que a vida cotidiana é marcada pela simultaneidade de seres particulares e seres

genéricos, interpenetrando-se, assim, a consciência do "EU" e a consciência do "NÓS", numa

espontânea e muda unidade vital;

apreender, interpretar e compreender o mundo, o Eu e o Outro, ou seja, que

apreender e compreender a realidade depende dos juízos de fato e de valor que elaborarmos a

respeito desta mesma realidade.

Nos dias de hoje, apesar de se falar e escrever bastante sobre novas formas de

fazer educação, o que podemos verificar é que no "processo educativo brasileiro", digo, no

"processo informativo brasileiro" a educação está fundada numa Pedagogia da desautorização.

Seu eixo central, segundo Barbosa (1998), tem sido a negação, desde as primeiras séries

escolares, daquilo que é produzido pelo aluno no que se refere ao pensar, ao sentir, ao

imaginar, ao decidir, ao agir, em síntese, negação do processo de produção do aluno e,

consequentemente, negação de sua dignidade humana. Desenvolvendo um longo e sofisticado

processo de anulação da pessoa do aluno, transforma-o em objeto. Nesta perspectiva, a pessoa

humana é a grande vítima deste século; a falência da ética nas relações entre as pessoas leva a

desconsiderar a existência do outro como sujeito, como pessoa humana. Na relação educativa,

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ambos os agentes, educador e educando, se fazem sujeitos continuamente porque ser sujeito

não é um dado, é uma construção.

Educado é o sujeito que se percebe "não pronto", no sentido de acabado, mas

"pronto", no sentido de aberto, de ter capacidade de, por si, elaborar uma leitura de mundo e

de expressar-se nele em respostas aos desafios das mais diferentes ordens. Ninguém pode

substituir-nos em nossa necessária experiência porque é a experiência vivida, mesmo

perigosamente, que torna os homens capazes de trabalhar e de viver como homens e não

como componente de um rebanho, dobrado pela obediência, domesticado a ponto de perder a

sua dignidade.

O papel primordial da educação é ajudar o indivíduo a tornar-se pessoa humana.

Para isso, é preciso algumas vezes segurá-lo pela mão nas passagens mais difíceis, baixar para

ele os galhos que não consegue alcançar, responder aos seus inquietos apelos e dificuldades e

levá-lo por caminhos que não devem ser de calvários, mas caminhos de construção porque a

educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida. Por conta disso, o

educador deve ter consciência de que a educação constitui-se e desenvolve-se porque os

homens são livres, inteligentes, conscientes e responsáveis e desejam viver bem, em paz e ser

feliz; que a educação tem sede na pessoa humana e é pressuposto de sua dignidade e condição

de sua realização material e espiritual; deve desenvolver não apenas um processo informativo,

mas um processo educativo que envolva: aquisição, construção e transmissão de

conhecimentos, tendo em vista os problemas que a realidade nos coloca para resolver.

Qualquer ação que provoque a degradação do homem em suas relações com a

natureza, que reforce sua opressão nas relações sociais ou que consolide a alienação subjetiva,

não pode ser considerada uma ação moralmente boa, válida e legítima porque a educação

enquanto prática especifica, voltada para os sujeitos humanos em construção, só se legitima se

for ética. Acreditar que é possível realizar, fazer diferente quando as mãos se entrelaçam e as

mentes se unem em busca de um mesmo ideal.

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UMA PERCEPÇÃO DO PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO

DA COMPLEXIDADE EM EDGAR MORIN

Ao tratar do problema epistemológico da complexidade, Edgar Morin nos diz que

apesar de ser um problema com o qual a filosofia tem se encontrado por diversas vezes ao

longo de sua história, a questão reaparece na atualidade de forma marginal, a partir da

cibernética e da teoria da informação. Sua emergência deve-se, no seu entendimento, às

enormes transformações que estão acontecendo nas diferentes ciências da natureza e do

homem, e da crise dos fundamentos do conhecimento científico, um aspecto da crise dos

fundamentos que afeta todo o pensamento contemporâneo.

A complexidade não se reduz à complicação, ressalta Morin. É algo bem mais

profundo que diz respeito "ao problema da dificuldade de pensar, porque o pensamento é um

combate com e contra a lógica, com e contra as palavras, com e contra o conceito" (MORIN,

1996:14). Pensadores como Heráclito, Leibniz, Hegel, Wittgenstein, Bachelard colocaram e

trabalharam a complexidade ao enfrentarem o problema da contradição, da dificuldade da

palavra, da relação da parte com o todo e do todo com a parte (monadologia, holograma).

Nos anos 50-60, a segurança do conhecimento científico nos dois pilares em que

estava assentada: "a objetividade dos enunciados científicos estabelecida pelas verificações

empíricas, e a coerência lógica das teorias que se fundamentavam neste dados objetivos"

(idem, p. 17) foi abalada pela epistemologia anglo-saxônica que, através de Popper, (re)

descobriu que nenhuma teoria científica pode pretender a certeza absoluta. A partir de então,

assevera Morin, o próprio conceito de ciência deixou de ser sinônimo de certeza para se tornar

sinônimo de incerteza, de falibilidade. A objetividade deixa de ser o dado que a consciência-

reflexo dos observadores se limita a gravar e o consenso confirmar, e passa a ser o produto de

um processo em anel que só pode ser produzido se a objetividade nele intervier de

uma forma produtora. Isto quer dizer que a objetividade não exclui, e sim mobiliza o

espírito humano, o sujeito individual, a cultura, a sociedade, [...] necessita tanto do

consenso como do antagonismo e da conflitualidade entre concepções e teorias

(ibdem).

Um grande passo da epistemologia contemporânea (Popper, Lakatos, Holton,

Thomas Kuhn, Habermas, Peirce, Hanson) está, seguindo Morin, no reconhecimento da

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existência da não-cientificidade no cerne das teorias científicas, ou seja, no reconhecimento

de que "a cientificidade é a parte emersa de um icebergue profundo de não-cientificidade". Aí

está o ponto de partida do desenvolvimento da Epistemologia da Complexidade.

No entendimento de Morin, como a teoria não é um reflexo do real, mas um

sistema de ideias, uma construção do espírito que levanta problemas, o conhecimento do

mundo dos fenômenos, mesmo pelo conhecimento científico, é feito através das teorias. Mas

como os sistemas de ideias obedecem não apenas a princípios lógicos (reunião), mas também

a princípios ocultos (paradigmas), para conhecer o conhecimento científico e, em princípio,

todo o conhecimento, é necessário conhecer o universo da noosfera, com a sua noologia, ou

seja, é preciso conhecer o modo de existência de organização das ideias. Como esta ciência

noológica não existe, talvez seja desejável inventá-la.

1 O CONHECIMENTO E SUA COMPLEXIDADE

Mas, de onde emanam as teorias e os sistemas de ideias?

Para Morin, pode-se dizer que os sistemas de ideias, as teorias provêm

evidentemente do espírito-cérebro humano. Mas que é possível também dizer que eles são

produzidos por uma dada cultura, em função da linguagem de que ela dispõe e do saber que

ela adquiriu. Isto nos remete à sociologia do conhecimento e, consequentemente, ao primeiro

problema, o estilhaçamento, à fragmentação do conhecimento do conhecimento porque "a

divisão do conhecimento em disciplinas, que permite o desenvolvimento dos conhecimentos,

é uma organização que torna impossível o conhecimento do conhecimento" (idem, p. 20) em

virtude da não comunicação entre si, dos diversos campos do conhecimento.

A sociologia da ciência não comunica com a história das ideias, que não

comunica com a teoria do conhecimento, ou muito mal. A própria epistemologia

pertence a outro domínio e, finalmente, há o continente desconhecido da noologia.

Entre todos estes fragmentos separados há uma zona enorme de desconhecimento o

que nos leva a perceber que o progresso dos conhecimentos constitui ao mesmo

tempo um grande progresso do desconhecimento (ibdem).

Um segundo problema diz respeito à introdução, na epistemologia, de uma visão

diferente da epistemologia clássica no que se refere ao julgamento da validade dos

conhecimentos científicos através de critérios de coerência lógica. Na epistemologia

complexa o controlador precisa ser controlado pelos seus controladores, o que significa a

postulação de uma nova articulação do saber, assim como um esforço de circulação e um

esforço de reflexão fundamental. Apesar da empreitada ser grandiosa e quase impossível, é

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indispensável iniciá-la tendo consciência dos nossos limites e de nossas carências. Nesta

caminhada é indispensável, segundo Morin, trabalhar pelo menos quatro questões

fundamentais: as condições bio-antropológicas do conhecimento, socioculturais do

conhecimento, a noosfera e noologia, e o anel epistemológico.

2 CONDIÇÕES BIO-ANTROPOLÓGICAS DO CONHECIMENTO

Nas condições bio-antropológicas do conhecimento são tratadas as questões das

condições, das possibilidades e dos limites dos nossos conhecimentos tendo por base o

conhecimento do cognoscente, ou seja, do conhecimento do espírito-cérebro. O

desenvolvimento de tal questão em Morin é realizado através de três momentos ou níveis: o

nível da biologia fundamental, o nível da animalidade e o nível da humanidade do

conhecimento.

No nível da biologia fundamental o autor parte do computo celular para

desenvolver a ideia de que "o ser vivo é um ser auto-eco-organizador, isto é, que se organiza

por si mesmo, tendo ao mesmo tempo necessidade de extrair do meio exterior materiais,

informações, organização" (idem, p.21) e que esta organização é informacional e

computacional, ou seja, ela cuida de tratar informações, formas, signos; efetuar operações que

separam, associam, incluem, excluem. Isto quer dizer que a dimensão cognitiva é inseparável,

é indiferenciada, na organização do ser vivo. Ela faz parte da dimensão organizacional da vida

e está ligada à auto-eco-organização. Contudo, é importante entender que esta organização

computacional possui um caráter particular em relação à computação das máquinas artificiais

porque ela computa por si, para si e em função de si mesma; coloca-se no centro do seu

mundo e exclui qualquer outro deste lugar porque eu só posso ser eu para mim, enquanto o

outro sempre será eu para si mesmo.

No que se refere ao nível da animalidade do conhecimento, Morin trabalha a

questão da relação mundo interior/exterior na construção do conhecimento. Segundo ele,

nosso cérebro não conhece nunca diretamente o mundo exterior: os estímulos que

chegam aos seus terminais sensoriais são traduzidos em código e é esta tradução

codificada que é recebida pelo cérebro, que recomputa todas as mensagens e as

transformam em imagens perceptivas (idem, p.22).

Deste modo, o nosso conhecimento, cujo vínculo primeiro e fundamental é o da

ação, está indissoluvelmente ligado à nossa relação ativa com o mundo exterior. O aparelho

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neurocerebral permite o desenvolvimento correlativo de estratégias de ação e de estratégias

cognitivas. Sua originalidade está em ser um "aparelho computante que computa

computações". Isto quer dizer que o cérebro não computa diretamente os dados exteriores,

mas computações e intercomputações (idem, p.23).

No nível da humanidade do conhecimento são tratadas as questões do elo

inseparável entre computo e o cogito, espírito e o cérebro, ou a alma e o corpo. Neste

momento Morin nos mostra que a especificidade da atividade cognitiva humana está na

cogitação da computação das computações, onde o espírito e o cérebro são dois aspectos sob

os quais nos aparece o fenômeno da inteligência, pelo qual pensamos e conhecemos. Neste

caminhar, deparamo-nos com uma realidade que comporta uma face organizacional

(neurocerebral), uma face de órgão biológico e uma face psíquica (conjunto de atividades que

incluem ideias, linguagem e até consciência, articuladas entre si). Deparamo-nos, também,

com um processo computante que comporta operações de separação: distinção, disjunção,

seleção, rejeição e operações de associação: relacionação e, eventualmente, de identificação.

Deste modo, diz Morin,

O nosso cérebro tem um caráter ao mesmo tempo fundamentalmente aberto e

fundamentalmente fechado (...) O cérebro está aberto para o mundo exterior e o

homem tem uma abertura infinita sobre o infinito do mundo (...) o cérebro é um

órgão encerrado numa caixa negra: a mensagem que lhe chega dos sentidos não é

nunca direta, é sempre codificada, traduzida, e o cérebro interpreta estas mensagens

traduzidas para reconstituir, à sua maneira, a imagem do original. Não há nenhum

critério intrínseco que permita diferenciar uma alucinação de uma percepção, o que

prova bem que nada nos diz, de uma forma infalível e certa, que o que cremos ver é

verdadeiramente visto, é verdadeiramente real (idem, p.25).

Decorre daí o princípio de incerteza. Contudo, a verificação da percepção para

estabelecer a objetividade parece ser possível através da comunicação entre espíritos, da

comunicação intersubjetiva do que é percepcionado. É por isso que a especificidade da

atividade cognitiva humana está na cogitação da computação das computações.

Do que ficou dito é possível verificar que "o problema da objetividade do

conhecimento não é simples, necessita da comunicação entre espíritos, mas não é menos certo

que esta comunicação não consegue nunca anular e apagar totalmente um princípio de

incerteza inscrito na própria natureza do nosso conhecimento" (idem, p. 26).

3 CONDIÇÕES SOCIOCULTURAIS DO CONHECIMENTO

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Nas condições socioculturais do conhecimento, Morin procura demonstrar -

contrariando a epistemologia clássica anglo-saxônica, a qual, na maioria das vezes, apagou,

ignorou ou desprezou a inscrição sociocultural do conhecimento, e a tendência da sociologia

do conhecimento científico que reduz o conhecimento às suas determinações socioculturais -

as contribuições da sociologia do conhecimento para a epistemologia do saber. No seu

entendimento, como todo e qualquer conhecimento se forma numa cultura dada, a partir de

um estoque de noções, de crenças, de ideias, de uma língua, de um vocabulário etc., podemos

afirmar que há, em todo conhecimento, uma inscrição histórica e sociocultural. Por isso

mesmo, nos diz Morin, "é muito importante enraizar qualquer teoria na cultura, na sociedade

de onde ela brota. É necessário igualmente enraizar o conhecimento científico nas suas

condições socioculturais de formação" (idem, p.27).

Contudo, ao lado desse enraizamento, desse determinismo cultural socio-histórico

imposto pelo imprinting (marca sem retorno) e normalização que obedecem aos princípios,

normas, paradigmas, existem também

inovações, invenções, evoluções, revoluções no conhecimento. Existe, pois, zonas

fracas do imprinting, da normalização, da determinação, onde o desvio pode

aparecer, eventualmente desenvolver-se e tornar-se tendência. Por isso é necessário

ver não só o tecido determinista mas também as falhas, os buracos, as zonas de

turbulências, os cachões da cultura onde, efetivamente, brota o novo (idem, p.25).

4 NOOSFERA E NOOLOGIA

No campo da Noosfera e da Noologia, Morin destaca a importância e a

necessidade da elaboração de "uma ciência nova, indispensável ao conhecimento do

conhecimento: a noologia, ciência das coisas do espírito, das entidades mitológicas e dos

sistemas de ideias concebidos na sua organização e no seu modo de ser específico". (ibdem, p.

30). No seu entendimento, qualquer teoria cognitiva, incluindo a científica, é co-produzida

não apenas pelo espírito humano e por uma realidade sociocultural, mas também pelo mundo

das ideias. Para ele, é indispensável ver o mundo das ideias não somente como um produto da

sociedade ou um produto do espírito, mas como um produto que possui uma autonomia

relativa em decorrência de que os produtos, quando se tem em mente a recursividade, são

necessários à produção do processo.

Quando da explicação sobre a autonomia das ideias, Morin nos diz que os

sistemas de ideias podem ser considerados como seres logomorfos que têm estruturas lógicas

e são entidades abstratas, desprovidas das aparências da vida biológica, embora haja uma vida

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dos sistemas de ideias. Que entre os sistemas há, grosso modo, o tipo de vida doutrinária

(regenera-se na sua fonte fundadora) e o tipo de vida teórica (regenera-se na sua relação com

o mundo exterior). Que as ideologias possuem uma existência forte, não são apenas um

instrumento que mascara interesses particulares sob ideias universais (marxismo), mas que

elas nos instrumentaliza, nos possui a tal ponto que somos capazes de agir por elas.

Mostra-nos também que a lógica, como instrumento conceptual de todo o

conhecimento que deve controlar a coerência dos discursos e sistemas de ideias, coloca, hoje,

problemas no próprio seio do conhecimento científico ao levar-lhe incertezas exatamente

onde, antes, fornecia a certeza. Diferente de Marx, que nos diz ter colocado a dialética sobre

os pés, subordinando o papel das ideias, Morin afirma que a dialética não tem cabeça nem

pés. Ela é rotativa. Isto nos indica que o conhecimento pode chegar a certas realidades

profundas onde a lógica já não é auxílio, onde, pelo contrário, é necessário enfrentar a

contradição e compreender que o conhecimento é, ao mesmo tempo, prometido em novos

desenvolvimentos e condenado ao inacabamento.

No seu entendimento, a insuficiência da lógica clássica não pode ser ultrapassada

porque somos sempre levados a utilizar a lógica clássica como trincheira discursiva, como

verificação retrospectiva e segmentária dos enunciados. Todavia, no momento em que há

invenção, criação no pensamento, há também transgressão em relação à lógica. Como a lógica

é um instrumento de verificação, é ela que está a serviço do pensamento e não o pensamento a

serviço dela.

Estas questões levam Morin a colocar o problema da paradigmatologia e, no seio

desta, desenvolver a noção de paradigma como sendo "um tipo de relação muito forte, que

pode ser de conjunção ou de disjunção, logo, aparentemente de natureza lógica, entre alguns

conceitos-mestres" (ibdem, p. 31). Esta relação dominadora do paradigma determina o curso

de todas as teorias, de todos os discursos que o paradigma controla. Apesar de "invisível para

quem sofre os seus efeitos, é o que há de mais poderoso sobre as suas ideias". Sua noção é

uma noção nuclear, envolve uma dimensão linguística, lógica e ideológica.

Para o autor, o paradigma de simplificação que guiou a ciência clássica se assenta

no primado da disjunção e da redução e que

Ele determina um tipo de pensamento que separa o objeto do seu meio,

separa o físico do biológico, separa o biológico do humano, separa as categorias, as

disciplinas, etc. [...] as operações comandadas por este paradigma são

principalmente disjuntivas, principalmente redutoras e fundamentalmente unidimensionais [...] o paradigma da simplificação não permite pensar a unidade na

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diversidade ou a diversidade na unidade, a unitas multiplex, só permite ver unidades

abstratas ou diversidades também abstratas, porque não coordenadas (ibdem).

No seu entendimento, ainda vivemos numa época de barbárie das ideias, de

barbárie do espírito. Estamos ainda, na pré-história do espírito humano. Sofremos de

assustadoras doenças do espírito, cuja grande doença incorpora a doença do idealismo que

esquece que as ideias são mediadoras e tradutoras; a doença da reificação das ideias em que a

ideia se toma pelo real; a doença da racionalização que encerra o real num sistema lógico

coerente; a doença da ideologia como doutrinação que fecha o sistema de ideias ao diálogo

com o real e com os outros sistemas de ideias.

Em decorrência de tais dificuldades faz-se necessário uma noologia que considere

não só a organização e a vida das ideias em sistemas, teorias e doutrinas, não só a lógica, mas

também a paradigmatologia que tem por finalidade a compreensão e a comunicação entre as

ideias, as teorias, as visões do mundo, isto é, que nos leve à compreensão e comunicação entre

indivíduos e entre culturas.

O que é necessário é compreender o modo de estruturação dos outros tipos de

pensamento diferentes do nosso, e isto não só de cultura para cultura mas também

no interior de uma mesma civilização [...] pois o que deve ser comunicado são as

estruturas de pensamento e não apenas a informação (idem, p.33).

ANEL EPISTEMOLÓGICO

No Anel Epistemológico, Morin trabalha a questão da função e da utilidade de

uma epistemologia complexa e diz que

Esta epistemologia não deverá ser encarada como uma espécie de catálogo

onde se acumulariam, por justaposição, todos os conhecimentos cerebrais,

biológicos, psicológicos psicanalíticos, lógicos, etc. Não, deverá ser considerada

como um princípio de complexificação da nossa consciência, que introduz, em toda

consciência, a consciência das condições bio-antropológicas, socioculturais e

noológicas do conhecimento (ibdem).

No seu entender, ela poderá desempenhar uma função de conscientização dos

limites do conhecimento como um progresso de conhecimento; uma função de concepção dos

limites biológicos, cerebrais, antropológicos, sociológicos, culturais de todo conhecimento, o

que nos permitirá ao mesmo tempo conhecer o nosso conhecimento, fazê-lo progredir em

novos territórios e confrontar-nos com a indivisibilidade e indecidibilidade do real; uma

função de detectação das doenças, ou seja, dos fenômenos de esclerose ou de degenerescência

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que afetam os processos dos nossos pensamentos; uma função de compreensão de que

conhecer é uma aventura incerta, frágil, difícil, trágica e, fundamentalmente, uma função de

fazer comunicar as instâncias separadas, isto é, fazer o circuito.

Para isso, é necessário que nos apercebamos de que esta tarefa é muito difícil, não

é individual, mas coletiva.

É uma tarefa que necessita do encontro, da troca entre todos os investigadores e universitários que trabalham nestes domínios disjuntos e se fecham como ostras

quando são solicitados. Ao mesmo tempo devemos saber que já não existe mais

privilégios, mais tronos, mais soberanias epistemológicas [...] O problema não está

em que cada um perca a sua competência. Está em que desenvolva o suficiente para

a articular com outras competências que, ligadas em cadeia, formariam o anel

complexo e dinâmico, o anel do conhecimento do conhecimento (ibdem).

É possível verificar que o grande problema da epistemologia complexa está em

perceber a existência de ciências em todas as sociedades, incluindo as sociedades arcaicas; em

perceber em todas elas a existência de um conhecimento racional-empírico; em perceber que

nas sociedades arcaicas esta ciência, estes conhecimentos racional-empíricos não se

decantaram, disjuntos, da esfera simbólico-mítico-mágica, não se transformaram numa esfera

separada como nas nossas sociedades ocidentais modernas que, apesar disso, não se purgaram

da mitologia, muito ao contrário, a mitologia instalou-se no cerne mesmo da Ciência, da

Razão, do Progresso. Por isso mesmo, pode-se dizer que não há corte epistemológico, não há

uma ciência pura, não há uma lógica pura. Que a vida alimenta-se das impurezas, ou melhor,

que a realização e o desenvolvimento da ciência, da lógica, do pensamento têm necessidade

destas impurezas.

O problema da complexidade envolve assim, a dificuldade de permanecermos no

interior de conceitos claros, distintos, fáceis, para concebermos a ciência, para concebermos o

conhecimento, para concebermos o mundo em que estamos, para nos concebermos a nós na

relação com este mundo, para nos concebermos a nós na nossa relação com os outros e para

nos concebermos a nós na nossa relação com nós mesmos que é, afinal, a mais difícil de

todas, sentencia Morin.

Assim, partindo da crise dos fundamentos do conhecimento científico para

postular uma reforma do pensamento, Morin nos mostra em sua epistemologia que a

objetividade como o

elemento primeiro e fundador da verdade e da validade das teorias científicas, pode ser considerado ao mesmo tempo como o último produto de um consenso

sociocultural e histórico da comunidade/sociedade científica. Como diz Popper, a

objetividade dos enunciados científicos reside no fato de poderem ser

intersubjetivamente submetidos a testes (idem, p. 16).

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O elo, a união fundamental e indestrutível entre intersubjetividade e objetividade

está em que a "objetividade é o produto de um processo em anel que só pode ser produzido se

a objetividade nele intervier de uma forma produtora" (idem, p.17).

Isto significa que a objetividade não exclui o espírito humano, o sujeito

individual, a cultura, a sociedade, mas mobiliza-os porque necessita tanto do consenso como

do antagonismo e da conflituosidade entre concepções e teorias. É por isso que a objetividade

dos dados não pode ser colocada como um produto, um dado gravado pela consciência-

reflexo dos observadores, confirmado pelo consenso.

O reconhecimento da complexidade do problema da objetividade postula a

participação de múltiplos intervenientes e atores e a constituição deste processo

autoprodutor do conhecimento científico (...). O mundo que a ciência quer conhecer

tem de ser o mundo objetivo, independente do seu observador, mas este mundo não

pode nunca ser percepcionado e concebido sem a presença e a atividade deste

observador-conceptor (ibdem).

REFLEXÕES FINAIS

Do que ficou dito, parece claro que o desenvolvimento da epistemologia da

complexidade em Edgar Morin, parte do problema da crise dos fundamentos do conhecimento

cientifico e do conhecimento filosófico que convergem para a crise Ontológica do real que

nos leva à crise dos fundamentos do Pensamento, onde o Ser tornou-se silêncio ou

perplexidade; a Lógica tornou-se esgarçada; a Razão tornou-se interrogativa e inquieta, e as

Certezas locais tornaram-se incertezas fundamentais, o que exige, no entendimento do

pensador, a formulação e utilização de um pensamento ao mesmo tempo dialógico, reflexivo e

hologramático.

Parte, ainda, da compreensão da complexidade da organização da vida, da

organização cerebral e da organização socioantropológica que o leva a perceber que o

conhecimento é um fenômeno multidimensional, de maneira inseparável, simultaneamente

físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural e social; da compreensão da

diversidade e multiplicidade do mesmo; da compreensão de que não há nenhum fundamento

seguro para o conhecimento e de que este comporta sombras, zonas cegas, buracos negros e

que, por isso mesmo, é necessário acionar e desenvolver um diálogo trinário entre o

conhecimento reflexivo (dimensão filosófica), o conhecimento empírico (dimensão científica)

e o conhecimento do valor do conhecimento (dimensão epistemológica) para construir o

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circuito, sempre realimentado com reflexões e conhecimentos do conhecimento do

conhecimento, conhecimento complexo.

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A INFLUÊNCIA DA FENOMENOLOGIA NA DIALÉTICA DAS

CONSCIÊNCIAS DE VICENTE FERREIRA DA SILVA

INTRODUÇÃO

Dialética das Consciências, de Vicente Ferreira da Silva, foi publicada

em São Paulo, em 1950 e reeditada nas Obras Completas do autor, sob o patrocínio do

Instituto Brasileiro de Filosofia, em 1964. conforme salienta Miguel Reale, Vicente Ferreira

da Silva foi sempre

Um pensador verdadeiramente original, sempre fiel a si próprio, com uma

seriedade rara e rigorosa, quer se dedicasse às formulações da Lógica Matemática, quer debatesse os temas mais atuais da problemática existencial ou da Filosofia da

Religião, sempre com um profundo desejo de participação e de diálogo (REALE

apudn SILVA, 1964, p.7)

Conforme o nosso entendimento, a obra de Vicente Ferreira da Silva pode ser

estudada e analisada a partir de três momentos fundamentais:

1º - As elaborações da Lógica Matemática;

2º - Humanismo Existencial;

3º - Poético-Religioso, Histórico e Cosmológico.

Apesar de colocar-se claramente em oposição à ideia hegeliana da

inexorabilidade do desenvolvimento atribuído ao curso do espírito no regresso a si mesmo,

Vicente irá adotar na Dialética das Consciências, a dialética hegeliana como ponto inicial e

de confrontação de suas investigações.

Vicente inicia a colocação da problemática da consciência interrogando a respeito

da esfera própria onde está "implantado" o nosso ser, ou seja, qual a realidade que nos

envolve de maneira mais próxima e imediata? Na busca de respostas para as suas indagações

afirma:

A interação das consciências, em seu esforço de afirmação e de

reconhecimento é o momento morfogenético essencial do nosso ser. O homem forma-se, educa-se e desenvolve-se num certame de "eus" que constitui a

substância original do mundo (SILVA, 1947, p. 146)

Seu pensamento, a partir da primeira obra fundamental, Elementos de Lógica

Matemática, 1940, assinala uma crescente preocupação com as raízes do homem, com as

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forças escondidas na infra-estrutura da personalidade. O privilégio dado ao homem leva-o ao

entendimento de que este surge da história enquanto interação de consciências e não mais da

natureza. Assim, em vez de o homem estar interpelado num mundo independente do seu

modo de ser, é o mundo que recebe do homem o seu ser.

Na Dialética das Consciências seu objetivo é estudar a relação das consciências,

ou seja, a dialética do eu e do tu que se apresenta para ele, não apenas como uma estrutura do

ser humano, mas, também, como um elemento criador da sua própria realidade; recolher o já

feito e indicar uma possível ampliação da problemática proposta, encarando o movimento da

subjetividade de forma a determinar um conceito que concilie as diversas dialéticas até então

propostas, as quais, no seu entender, se mostram parciais e abstratas.

O desenvolvimento da Dialética das Consciências é constituído pelos seguintes

momentos: a) introdução à problemática das consciências; b) o outro como problema teórico

e como problema prático; c) o processo de reconhecimento ou da verdade existencial; d)

formas do reconhecimento ou da verdade existencial; e) a dialética da solidão e do encontro;

f) o sentido da dialética intersubjetiva; g) considerações finais. No nosso estudo a exposição

das ideias de Vicente Ferreira da Silva, contidas na Dialética das Consciências, seguirá a

mesma sequência de abordagem estabelecida pelo autor.

1 INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DA CONSCIÊNCIA

Para Vicente Ferreira da Silva, no naturalismo de todos os tempos, a dimensão

natural ultrapassa a dimensão propriamente humana, e a experiência exterior, conferindo-nos

informação acerca da realidade existente dar-nos-á de forma independente, consciência das

coisas naturais e humanas.

Segundo Vicente, João Batista Vico foi, no decurso do pensamento filosófico, o

primeiro a vislumbrar a diferença fundamental entre o pensamento da realidade social

humana e o pensamento intelectualístico-naturalista. Para Vico, é a linguagem imediata da

ação e do drama humano, isto é, toda série episódica de lutas, grandezas e fragilidades que

compõem nossa circunstância existencial o termo que fica mais próximo do homem. E a

verdade como forma de "autognosis" da possibilidade do comportamento humano se

identifica com a ação. Tal entendimento prefigura a revolução do pensamento que irá eclodir

no historicismo.

A antevisão de Vico foi configurada definitivamente com a Hermenêutica

Histórica de Dilthey ao afirmar que os conceitos das ciências naturais são conceitos

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derivados, construídos e hipotéticos, em contraposição à verdade da vida e do vivido. A

partir de então, o natural fica subordinado ao histórico. A busca da origem do homem será

feita na história e não na natureza, e a relação mundo/homem passa a ser vista não mais a

partir do mundo, mas a partir do homem. A primazia passa a ser dada à conexão da realidade

social-humana e não mais à sistemática naturalista.

As figuras principais que desenvolveram este tema são, Segundo Vicente, Fichte

e Hegel e, em nossos dias, Husserl, Scheler, Heidegger, Gabried Marcel e Jaspers. Apesar de

fazer referência ao notável pensador no transcurso da sua obra, Sartre é excluído deste rol.

No seu entendimento os pensadores referidos tiveram consciência de que a nossa conexão

com os outros homens e o vínculo do eu e do tu transcende o fato da justaposição espacial,

da mera interação externa ou mesmo social e ergue-se ao nível de conexão ontológica do

nosso eu.

A presença do outro em nossa consciência e nossa presença na consciência do

outro não é algo de incidental ou periférico, mas uma dimensão essencial da condição

humana. Esta relação das consciências, esta movimentada dialética do eu e do tu não é apenas

uma estrutura do ser humano, mas também um elemento criador da sua própria realidade.

A interação das consciências, em seu esforço de afirmação e de

reconhecimento é o momento morfogenétíco essencial do nosso ser. O homem

forma-se, educa-se e desenvolve-se num certame de "eus" que constitui a substância

original do mundo. Podemos dizer que a luta do homem com os elementos externos e com os obstáculos da natureza, considerada por alguns pensadores como a tarefa

humanizadora por excelência, nada mais é do que o elemento transitivo neste

diálogo de homem a homem, auto-formador da consciência (ibidem).

A nova cogitação coloca em primeiro plano a realidade propriamente humana

(realidade como obra espiritual e criadora da história), e o centro de interesse passa do

simples objeto para as objetivações humanas, exigindo da inteligência a colocação do

problema da conexão e intercurso das consciências. Como as coisas humanas não podem ser

captadas pelos mesmos processos cognitivos com que são captados os entes naturais, uma

alteração de ordem lógico-gnoseológica irá ocorrer. A partir de então é elaborado um novo

sistema de categorias visando traduzir este campo de ocorrências que escapavam à grosseira

ótica do pensamento científico-natural.

Segundo o pensador, o anseio por uma nova tábua categorial está expresso em

Dilthey quando tenta fundamentar as ciências do espírito através da substituição das "formas

explicativas" da investigação naturalista pelo "sentido compreensivo e hermenêutico" dos

estudos humanos. A tábua categorial diltheyana apela para os conceitos de índole musical,

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temporal e agônica, que aderem admiravelmente à dimensão do histórico.

Mas, a primazia atribuída ao mundo móvel e aberto da ação humana impõe uma

análise dos pressupostos do seu exercício visto que esta ação não se desenvolve no vácuo,

nem é um atuar imanente em si e por si, mas pressupõe uma larga série de meditações. Por

isso, a temática principal da meditação filosófica passa a ser a estrutura do comportamento

humano não como problema psicológico, mas como problema metafísico.

Nesta perspectiva o ser se manteria como contínua reiteração de um mesmo

ato, e a coisa produzida continuaria perpetuamente ligada ao produzir-se fundador. Desta

forma, é óbvio que todos os momentos objetivos se diluiriam na caudal morfogenética que os

pré-formou. A forma nada mais seria do que um "formar-se", e este impulso de dar forma, de

instituir um contorno e um cenário de vida, substitui a pura contemplação do já formado. Por

isso, o naturalismo e o realismo, e todas as correntes que privilegiavam o conhecimento das

coisas e esqueciam as atividades cognoscentes que as havia projetado numa conexão

exterior, perderam seu prestígio no campo filosófico.

Assim, "no lugar do homem estar interpelado num mundo independente do seu

modo de ser, seria o mundo que receberia do homem o seu ser. Por isso, é de extraordinária

importância tudo que se refere à estrutura própria do homem, em especial, o que diz respeito

à dialética formadora do eu” (ibdem)

Desvencilhado do preconceito substancialista, o pensamento filosófico evitou,

desde Fichte e Hegel, a reintrodução da ideia de substância na estrutura da vida espiritual. Esta

precaução foi de grande importância, pois o complexo das relações intersubjetivas foi assim

reconhecido em seu puro dinamismo criador e os interlocutores do diálogo ilimitado das

consciências tomam corpo e realidade no processo desse diálogo.

Holderlin dissera “nós somos o diálogo”. Hegel por sua vez afirmara que “somos

a luta do mútuo reconhecimento, o afirmar-se e o desenvolver-se desse processo de

reconhecer no outro a subjetividade que somos''. O "por si" de Sartre é conceituado como

contínua superação do “ser-para-o-outro”, como superação de nossa queda na esfera das

objetividades mundanais. Assim, o esquema de nossa estrutura ontológica é o de uma

relação, de uma referência a outro eu que, segundo as várias direções do pensamento

existencialista moderno, pode ser encarado como ameaça, limite ou confortante proximidade.

Esta referência a qualquer coisa que ultrapasse os limites do eu no encontrar-se com o outro

eu é a condição formal de nossa estrutura, e a consciência é esta relação. Não como relação

dada, mas como contínuo relacionar-se. Como expressa Vedaldi, "o homem não tem relações

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com os outros homens, mas é esta relação" (idem, p. 149). Muito diferente é o ser absoluto de

Aristóteles que viveria só e a sós consigo mesmo, numa existência fechada sem resistências a

vencer ou obstáculos a transpor e sem qualquer possibilidade de atualização.

Se o homem tivesse plena consciência de suas possibilidades, recursos e maneiras

de ser, independente de sua relação com o outro, esta relação não acrescentaria nenhum

elemento essencial à sua presença solitária e o encontro e cooperação inter-humanos seria o

mero choque de coisas exteriores e não uma polaridade indissolúvel e constitutiva. A

afirmação da pessoa como auto-execução e pura atividade, implica o vínculo da comunicação

que atinge de forma bilateral a consciência que temos de nós mesmos. O discurso

constitutivo do existir é um expressar-se que envolve um meio espiritual transcendente e que

se resume neste puro expressar-se. O “ser-com-o-outro” não é uma vicissitude contingente da

vida, mas como queria Hegel, uma transição necessária para a formação da consciência de si.

Cada extremo é para o outro o termo médio através do qual entra em relação

consigo mesmo e se une consigo mesmo, e cada um é para si mesmo e para o outro uma

essência imediata que é por si, mas ao mesmo tempo é por si somente através dessa

mediação. É no existir em comum que o outro surge como condição de nossa consciência

particular e como um elemento permanente de nossa conduta. Só depois surgirá na

interioridade.

A antropologia nos mostra que a vida psíquica dos primitivos é um mero reflexo

dos processos mentais coletivos e que, neste sentido, o homem só pensa, sente e age de

acordo com o seu clã, não tendo ainda uma vida psíquica própria fora ou acima da

coletividade, não encontrando espaço para o complexo de comportamentos possíveis em

relação ao outro. Para nós, em nosso estado histórico, a realidade é outra porque uma

convivência nunca será aceita como um ditado inelutável visto que não estamos atados

socialmente a um outro determinado e particular, havendo sempre um caminho para o outro,

caminho este não mais necessário e natural.

Na concepção hegeliana, a luta de prestígio entre senhor e escravo chega

fatalmente no estádio da consciência pensante, no qual o homem reconhece no outro o que é

em si mesmo. Vicente irá negar não a existência dessa relação de domínio e servidão, mas o

automatismo de seu desenvolvimento e sua vigência histórico-universal. Para ele, Sartre

percebeu muito bem o problema da defrontação das consciências individuais, pois a colocou

no âmbito do impulso de auto-afirmação.

Com Sartre entende Vicente que ao surgirmos diante dos outros, somos escravos

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do seu olhar que nos projeta, numa nua transparência, entre as coisas do mundo. A expressão

mais imediata de nossa conexão com o outro é esse “ser-fora-de-nós”, essa alienação do

imediato “ser-para-o-outro". O sentido ético da existência para Sartre, é a recuperação da

iniciativa existencial e a emancipação do jugo da objetividade. Tal movimento é dirigido pelo

sentimento de superioridade de que somos mais do que somos, de que não parecemos com o

que os outros nos atribuem. Assim, a diferença entre o externo e o interno, entre o que somos

e o que nos propomos ser é a força que determina a interação do reconhecimento mútuo. Se o

nosso ser se esgotasse no “ser-para-o-outro”, nosso estatuto fundamental seria o do puro

objeto, visto que o outro vê em nós unicamente o ser dado.

As apreensões e imagens que os outros formam de nós, afirma Sartre, não são

representações gratuitas que não nos interessam, pelo contrário, sentimo-nos responsáveis

pela vida que levamos na alma dos outros e procuramos desmentir aquilo com o qual não

concordamos, fazendo com que nossa índole e valor próprios sejam reconhecidos, exigindo

que nossa liberdade seja livre na consciência dos outros. Queremos que nossa vontade seja a

vontade de outra vontade, que o nosso espírito afeiçoe a si os outros espíritos.

Para Vicente,

no reino da determinação ôntica, o reflexo das coisas entre si não é de molde a sair da identidade do já dado. Ao contrário, no reino da subjetividade fática, o não dado,

o inédito, o possível é que sugerem a pauta do existir. Se o homem, em oposição às

outras consciências, mantivesse um ser fixo e estável, se fosse algo de determinado

para si e para os outros, a realidade humana confundir-se-ia com a realidade ôntica.

Uma consciência refletir-se-ia na outra num jogo estático de reflexos imóveis (idem,

p. 152).

Mas não é este o verdadeiro jogo das consciências, pois o eu se coloca diante do

tu, não como um ser objetivo diante de outro ser objetivo, mas como impulso de

negatividade, como ação livre diante de outra realidade móvel e instável, sendo esta dupla

operação das consciências que configura o modo de ser do comportamento espiritual do

homem. Como o inventário objetivo do que somos não pode ser realizado, procuramos

transcrever e negar o nosso ser determinado, endereçando a vontade para a identificação da

interioridade e a exterioridade de nossa consciência. Assim, o eu é visto como meta infinita

de todo empenho humano, agilidade perfeita que permitiria a plena expansão de seu

fundamento ontológico.

Mas, o drama da vontade de poder e da consciência de dominação reside em que,

em sua plenitude, imperam sobre coisas inertes e dependentes. Em vez de juntar-se ao outro

clamando para a comunicação existencial, o impulso de dominação reduz o outro a

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instrumento de seus desejos, negando a própria realidade que desejava conquistar. A

autêntica convivência dos espíritos não pode ser conciliada com a unilateralidade do poder

consciente. Quem não sente disponibilidade para as outras consciências, quem só vê nos

outros meios para a realização de si mesmo, destrói a possibilidade de comunicação

existencial.

Apesar da vida e as relações sociais oferecerem enorme risco à nossa realização

pessoal, são indispensáveis para que possamos ser nós mesmos. Como nos ensina Jaspers,

para sermos nós mesmos devemos dar acesso ao outro, devemos “ser-com-o-outro”, pois o

“ser-si-mesmo” e o” ser-com-o-outro” formam a polaridade que permite o exercício mais

amplo de nossos poderes pessoais. O homem nada é sem o outro, não apenas no sentido

empírico, mas também no sentido subjetivo e espiritual. A liberdade requer o testemunho de

uma presença, ou seja, a ratificação numa outra consciência. Por isso, a presença do outro

não é uma realidade de consequências fixas e determinadas, mas a possibilidade de um

engrandecimento pessoal.

2 O OUTRO COMO PROBLEMA TEÓRICO/PRÁTICO

Com a cogitação do problema do outro, a especulação filosófica, segundo Vicente

Ferreira da Silva, preocupa-se em demonstrar como, no conhecimento de nós mesmos, está

implicado o conhecimento do outro e que as vias possíveis para tal conhecimento são a

teórica e a prática.

Como a presença do outro no campo cognitivo é uma experiência particular no

conjunto global de nossa experiência, o acesso teórico à sua existência encontra

intransponíveis obstáculos. Por isso, como realidade transcendente a essa experiência, o outro

teria, no máximo, o valor de uma hipótese. A ideia do outro serviria para coordenar e

sistematizar certo setor do nosso campo perceptivo, relegando sua realidade transcendente ao

papel de mera ficção. De modo geral, não podemos transcender o círculo da consciência

pessoal, alcançando o conhecimento de outra subjetividade, através da representação e do

conhecimento.

Por isso, o outro como representação de nosso eu, como conteúdo de

pensamento, pode ser arrastado na dúvida e na suspensão fenomenológica. O outro não pode

revelar-se imediatamente a nós, no próprio dar-se a nós mesmos de nossa própria consciência

e nem o cogito revelador da realidade pessoal implicar a imediata intuição da existência do

outro. Por conta disso, a experiência capaz de nos dar notícia e certeza a respeito da presença

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do outro, não pode ser um puro juízo intelectual.

Desde Fichte, o problema das relações intersubjetivas passou a ser considerado

mais como fenômeno prático do que teórico. Seguindo esta linha, Vicente diz que é na

interação recíproca do agir que se manifesta como resistência, oposição ou apelo à realidade e

à colaboração, o outro. A nossa ação não é igual ao conhecimento (que pode ser obra de um

espectador solitário), ela envolve em sua ideia a ação dos outros "eus", ou seja, que cada um

saiba acerca da própria ação na medida em que sabe da ação dos outros, pois o caráter de sua

ação particular determina a totalidade.

O problema da inteligência e da apreensão dos fatos culturais em Dilthey

relaciona-se intimamente com a capacidade de compreender o que está fora de nós onde o

nosso eu encontra-se com o outro e, neste encontro, constata sua realidade não apenas pela

ação, mas também pelos produtos criados pelos outros. Assim, na realização de nosso

impulso existencial, manifesta-se uma referência, um saber dos demais que não tem o caráter

de mera verificação intelectual.

A percepção da realidade da pessoa do outro se encontra na ordem de um querer e

de um saber, derivado deste querer.

O aparecimento de um tu ou um ele diante de um eu significa que minha

vontade experimenta algo de independente dela. Estando presente aí duas

autonomias, duas unidades volitivas de onde surgirá a experiência que se expressará

em: unidade, divergência e multiplicidade de vontade ou de objetos. [...] A

consolidação do fluir das nossas representações na solidez de obrigações e conexões

fixas seria realizada pelo índice volitivo, e a demonstração da realidade e da

exterioridade das coisas dar-se-ia, seguindo esta ordem de ideia, segundo princípios

morais e não segundo formas racionais (idem, p. 155).

A mesma orientação prática da elaboração da Dialética das Consciências

encontra-se na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Nela, o eu defronta-se com o tu como

uma vontade diante de outra vontade e não como espectador teórico diante de outro

espectador teórico. A consciência de si atinge sua satisfação somente numa outra consciência

de si. A conexão das consciências no pensamento hegeliano aparece em termos de luta,

oposição e ação criadora de contrastes e não como movimento puramente noético.

A grandeza da tese de Hegel, segundo Vicente, está justamente em ter colocado o

problema não num plano contemplativo, mas num plano de desenvolvimento e atitudes

volitivas.

O problema do outro é que faz possível o cogito como momento abstrato em que o eu se apreende como objeto. Para Hegel, o homem é uma "falta de ser", isto é, nada

de fixo e determinado, mas a pura transcendência de todas as formas. Através da

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ação o homem chega ao conhecimento de "si mesmo" e do outro, ao cogito

ampliado que revela o seu "ser-com-o-outro” (idem, p. 159).

No mundo contemporâneo, Heidegger, com a tese que liga o conhecimento

possível de nós mesmos, de nossa inclusão na dimensão do “ser-para-o-outro”, desvendou

um campo extraordinário para o conhecimento existencial. Ele subordina totalmente a

apreensão teorética do outro a um modo de revelação fenomenológica descritível onde o

modo original do encontrar-se com o outro é a atitude do cuidado e da solicitude. Porque

somos “seres-arrojados-no-mundo-com-o-outro”, o nosso encontro com o outro é sempre

imediato. Como o outro não é distância, mas proximidade, da qual não me destaco, o "estar

com" não é um termo categorial, mas uma significação existencial que esclarece o primitivo

estar implicado na conexão mundana. Se o mundo da existência é um mundo compartilhado,

o “estar-no-mundo-com-o-outro” é um modo de ser constitutivo da própria existência porque

a existência é essencialmente coexistência.

O “ser-com-o-outro” não designa, no pensamento de Heidegger, qualquer

constatação fática; determina existencialmente a existência, mesmo que não esteja perceptível

ou presente, pois o “estar só” do "Dasein" é também um estar “com-o-outro-no-mundo” já

que o afastamento espacial do grupo social, o viver fora do horizonte humano, em nada

diminui a nossa radical abertura para os outros.

É no encontro com nós mesmos e com os outros, no decurso das ocupações

quotidianas que se manifestam as nossas possibilidades do “ser-com-o-outro”, pois é o

mundo de ocupações e de solicitudes que determina, pelo tipo de significação que nele se

manifesta e predomina, as interpretações que atribuímos a nós mesmos e aos outros. Portanto,

a compreensão (conhecimento nascido do modo de ser original da existência) que temos de

nós mesmos e dos outros, depende primordialmente do modo de ser do nosso “ser-com-o-

outro”.

Para Jaspers, o nosso “ser-com-o-outro” não é uma construção racional, mas uma

condição do próprio desenvolvimento do “ser-para-si-mesmo". Na sua meditação, a relação

do eu e do tu não decorre de uma visão filosófica teorética do outro, mas em termos de uma

razão prática. Na mesma linha de pensamento vamos encontrar, também, segundo Vicente, a

posição de Martin Buber para quem as bases da linguagem não são nomes de coisas, mas

relações. Em lugar de revelar o ser das coisas, formando um sistema de notação objetiva, a

linguagem é o apelo e a convocação para a comunicação possível dos espíritos. As

considerações semânticas de Buber levam à superação do "coisismo" geral do ser, da relação

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teorética sujeito-objeto, numa consciência pulsional que nos descobre a realidade do outro.

No desenvolvimento histórico realizado, foi assinalada uma singular concordância

na colocação do problema: Fichte admitiu que só como seres práticos, rompendo o

solipsismo da intuição podemos ter acesso à existência do outro. Idêntica acentuação do

papel da consciência volitiva na determinação do nosso “ser-para-o-outro” é encontrada na

Dialética de Hegel. No pensamento existencialista hodierno temos uma formulação que admite

que em todos os misteres, ocupações e propósitos, encontramos co-implicada a presença e a

atividade do outro numa comunidade de relações que precede o nosso “ser-para-nós-

mesmos”.

O ideal especulativo máximo da filosofia, no tratamento desta questão seria,

segundo Vicente, a demonstração "a priori" dessa pluralidade de sujeitos e não o da simples

mostração fenomenológica de sua conexão existencial. No entanto, esse ideal de

compreensão exaustiva e radical do porque da multiplicidade dos "eus" é uma ficção da

esperança racional. A mesma capacidade que encontramos na necessidade própria do eu de

estar sempre envolto numa circunstância, numa particular e determinada situação,

encontramo-la também no referente a esta estrutura plural das consciências.

Trazer à luz, como tentou Heidegger, a estrutura do nosso “ser-com-o-outro”

através da descrição fenomenológica de uma situação de fato, não é de forma nenhuma

compreender a sua razão última e sua teleologia imanente. Uma hermenêutica da existência

não poderá proporcionar uma nova inteligência da multiplicidade da subjetividade, pois seu

fim é o de analisar a existência como existência em seu movimento interno - que se manifesta

desde logo como pluralidade existencial - e não o de procurar uma explicação extra-

existencial da própria estrutura da existência. Ora, se o conhecimento deve como afirmou

Dilthey, procurar na própria vida o sentido da vida, a vida manifestando-se na consciência

mais ampla de suas possibilidades como vida plural, é o fato último, irredutível a toda

penetração racional.

3 O PROCESSO DE RECONHECIMENTO

O reconhecimento para Vicente é a exposição da subjetividade que assimila a sua

forma alienada de ser. O “não-ser-si-mesmo” é, neste caso, a não-verdade, a alienação das

formas degradas do existir e, segundo pensa o autor, a meditação filosófica atual detém-se

longamente no campo da não-verdade, da vida esquecida de si mesma e de seu mais estranho

destino.

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Para Marchel, por exemplo, o homem moderno possui a tendência de interpretar

os outros e a si mesmo como um conjunto de desempenhos; a sua realidade e unidade

existenciais desdobra-se num número imenso de funções: a do cidadão, a do consumidor, a do

profissional, etc. Outros filósofos, entre eles Berdiaeff e Jaspers procuram, conscientes da

perda de substância de nossa época, analisar a gênese desse refluxo nas formas imeritórias do

existir. Para eles, um ente natural, idêntico a si mesmo, no qual o ser possível é idêntico ao ser

atual, terá a sua não-vontade unicamente fora de si, na consciência que o contempla. Em si e

por si, o seu modo de ser é idêntico à sua verdade.

Tal afirmação não é válida para a realidade humana, pois o possível não se

identifica aqui com o simples “estar-aí” no qual convivem as possibilidades da verdade e da

não-verdade. Num tal tipo de existência, tais determinações polares podem dar-se no

próprio círculo de sua realidade e não unicamente fora dela, pois o homem pode obscurecer

para si próprio a própria índole e, na má fé de seu sentimento, renegar a confissão de sua

intimidade na reverberação de perspectivas ilusórias.

No desejo de reconhecimento o homem tenta recuperar a imagem perdida de si

mesmo, pois não é a nossa faticidade que anseia pelo reconhecimento, mas a nossa

capacidade pessoal de ser. O reconhecimento é uma operação sempre em curso e sempre

comprometida em sua plenitude comunicativa. O sentido profundo do processo do

reconhecimento se refere ao reconhecimento da presença pessoal e não da simples presença

material do homem. Por isso, a doutrina do reconhecimento supõe que a verdade da

consciência não está no objeto, mas na subjetividade.

Segundo Vicente, o primeiro movimento da consciência que lhe dá a satisfação

de sua verdade plena é o movimento de supressão do objeto.

Transcendendo o seu “em-si-para-o-outro”, isto é, seu ser confinado e fixo,

o espírito procura um espaço livre de desenvolvimento [...] Este poder interno de

superação é a medida da força espiritual do homem [...] E este caminho heroico

representa a estrutura transcendental do humano, a capacidade de desvencilhar-se das coisas em lugar de ser por elas dominado (idem, p. 32).

A negatividade própria do homem manifesta-se na dimensão do “ser-para-o-

outro como vontade de reconhecimento, pois somente a livre disponibilidade dos poderes

internos e a realização desembaraçada da substancialidade podem proporcionar a plena

satisfação existencial. Mas o que deve mostrar e esclarecer uma filosofia, no que se refere à

problemática da consciência, é o fenômeno singular da minha, da tua consciência em sua

interação formadora e não as grandes figuras abstratas da consciência geral. Embora participe

do processo histórico-mundial, o homem não se esgota em suas finalidades coletivas, pois o

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existir é sempre um existir particular.

No que diz respeito a esta questão, Vicente concorda com as posições de

Kierkegaard que condena a forma da não-verdade do existir como redução que é do homem

ao ethos geral; de Jaspers que entende ser a "força", em qualquer de suas formas física, vital

ou espiritual, que determina as relações de subordinação entre os homens, constituindo uma

realidade existencial universal e; de Sartre, que coloca a problemática no plano singular do eu

e do tu. Discorda e critica Hegel por ter projetado a sua dialética no plano do histórico

universal, referindo-se sempre aos grandes momentos da vida espiritual do mundo, e não ao

eu e ao tu particulares. Para Vicente,

todo o processo de reconhecimento baseia-se na exigência de exteriorização e de

manifestação do nosso ser, visando tornar patente para o outro e para nós mesmos a

nossa figura existencial. Sendo a liberdade que buscara, num desejo de recuperação

e de fundação ontológica, o seu ser alienado [...] Podemos ser nós mesmos reconhecendo a existência e a liberdade dos outros porque o desenvolvimento do

processo do reconhecimento da consciência do outro, identifica-se com a

manifestação de nossas possibilidades autênticas de ser. Por outro lado, o

desconhecimento das prerrogativas do outro e a ruptura da comunicação, provocam

através de uma dialética implacável, a paralisação de nossas próprias possibilidades,

já que a garantia da presença é a garantia da verdade mesma, em todas as suas

manifestações; somente poderá conceber a verdade a consciência que previamente

se tenha posto em verdade consigo mesma (idem, p. 34).

4 FORMAS DE RECONHECIMENTO

Após afirmar que Hegel inaugura o estudo da problemática das consciências,

colocando como momentos propulsores da consciência de si a luta e o trabalho, Vicente dirá

também que tal posição reduz as formas do reconhecimento intersubjetivo. Analisará

exaustivamente a posição de Hegel e o impulso lúdico como uma das formas de

reconhecimento, referindo-se aí a Huizinga, Buytendijk, Leo Frobenius, Schiller, Schlegel e

Sartre.

Segundo o autor, na atividade lúdica todos os requisitos exigidos pelo processo de

reconhecimento das consciências são aí manifestos; na atividade de jogador expressa-se um

desejo de independência, liberdade de movimento, agilidade e vigilância que conferem à sua

natureza uma dignidade ontológica superior. No desenvolvimento da atividade lúdica é

constatada a enérgica atualização das possibilidades humanas, a tentativa da redução do não-

eu ao eu. Por isso, o importante no exercício da liberdade agonal é o seu alcance

intersubjetivo, isto é, o seu “ser-diante-do-outro” e a conexão de reconhecimento que

estabelece.

Daí porque a porfia lúdica em sua tendência recíproca de superação pode ser

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considerada como um jogo de transcendências que clamam pelo reconhecimento. Como

afirma Sartre, no jogo tudo é posto pelo eu que se comporta de um modo livre e criador.

Assim, libertando a subjetividade o jogo propicia a emergência do homem verdadeiro, sendo,

pois, uma forma de transcendência do mero estar-aí.

Assim é que, para ele, os expedientes e tipos de atividades que fazem emergir a

consciência de si não obedecem a qualquer legalidade exaustiva. Somente a história

pragmática da liberdade poderá asseverar-nos quais as formas de que o processo do

reconhecimento se revestiu através da história, pois o homem afirmou sua realidade

ontológica pela linguagem variada da luta, do jogo, da imaginação criadora e de todas as

outras especificações do impulso negativista. Nesta obra histórica não interveio unicamente a

operosidade do trabalho, como quer o materialismo dialético, mas toda a energia que se

manifesta nos concursos, porfias e em todos os movimentos festivos dos grupos sociais. O

que vemos através da história é o homem conservando suas possibilidades originais e

requerendo o reconhecimento de suas prerrogativas, num exercício de múltiplas formas de

exteriorização e plasmação criadoras.

O autor acrescenta à dialética do senhor e do escravo e a da atividade lúdica e

agonal o amor como uma das formas de reconhecimento, entendendo que, de forma

simplificada, se pode afirmar que "entre os homens só podem existir dois movimentos: o do

amor e o do ódio, este reduzindo o "outro" a uma objetividade incômoda, criando distâncias e

rompendo qualquer comunicação, e o amor, inversamente, dissolvendo as concreções

objetivas numa unidade de vida, aproximando e preparando os espíritos para uma homologia

superior”. O objetivo de Vicente com o desenvolvimento dado a este tema é mostrar que as

formas de comunicação e intercurso das consciências exorbitam a determinação hegeliana da

consciência dominadora e servil.

5 A DIALÉTICA DA SOLIDÃO E DO ENCONTRO

O autor opõe-se à posição dos moralistas de que a nossa existência social pública

seja uma existência hipócrita, um contínuo afastamento de nossas possibilidades pessoais, tal

como a considera Schopenhauer, para quem a sociedade, como espaço total da ação inter-

humana, seria um baile de máscaras, uma pseudomorfose inexorável onde não se

apresentariam ocasiões para a sinceridade pessoal.

Trata-se, com efeito, de uma posição unilateralista e imanentizadora que fixa uma

determinação óntica em sua pura intransitividade já que a grande importância do

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relacionamento humano está no anseio de superação da alienação na não-verdade.

Sem negar a importância da reflexão do aspecto negativo das transações das consciências,

Vicente prefere ver nesta relação uma tendência de autenticação da convivência espiritual.

A reflexão pessimista a respeito da conduta é encontrada especialmente no

racionalismo do século XVIII, onde predominava a noção de consciência como átomos

egoísticos e fechados, visando tão somente dar prazer e satisfação individuais. O outro era,

nessa situação, o "exterior", o instrumento indiferente de um capricho momentâneo e, na

melhor das hipóteses, a possibilidade de um contrato egoístico.

Mas, a percepção da sociedade humana como mero entrechoque de vontades

exclusivas e exteriores mostra-nos, apenas, um mundo desagregado e prestes a sucumbir na

insubstancialidade do não ser. A origem do eu e do tu encontra-se nas possibilidades da

existência perdida, exteriorizada tanto quanto na dimensão da verdade e reconquista pessoais.

Por isso, se na esfera da existência coletiva o momento pessoal aparece desfigurado pelas

formas coercitivas da mentalidade impessoal, não estamos autorizados a cercear a

possibilidade de uma comunicação e afirmação subjetivas no plano da realidade ontológica.

Sentir as insuficiências de um dado intercâmbio pessoal equivale sentir o apelo de

uma compreensão e unificação subjetivas mais profundas. A constante inquietude que

percorre o circuito da comunicação é o sintoma da orientação vetorial que a anima.

A sociedade e suas estruturas não se manifestam como um estar aí heterogêneo à

nossa atividade, à maneira de um objeto que confisca a nossa liberdade, pois o homem não

pode encontrar equilíbrio e estabilidade em ordenamentos que frustram o desenvolvimento de

sua personalidade fundamental, sendo impelido sempre a denunciar e comover os sistemas de

convivência que desmereçam a sua verdade interior. Assim, o processo histórico como uma

façanha da liberdade é delineado pela dialética, pela oposição dinâmica entre a estrutura

social e a vida individual.

A vontade de fundamentação existencial impede a eternização de um sistema de relações baseado nos módulos da impessoalidade, do anonimato e da não-

verdade. A certeza interior da verdade existencial tende a implantar-se fora de nós,

estabelecendo o regime da comunicação das consciências. O mero "estar aí" das

individualidades, como contiguidade de centros egoísticos, deve ceder lugar a um

convívio reciprocamente promissor de liberdade (idem, p. 40).

Esta exigência, como impulso ideal, alimenta a dinâmica da dialética das

consciências que vê no anseio de superar o já dado do nosso “ser-com-o-outro”, a força

"dialética-construtiva" e unificadora da realidade humana.

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Por isso, o estabelecimento de um elo necessário e fixo entre os homens, que

não abrisse mais espaço para o jogo de aprofundamento das próprias relações,

equivaleria à supressão da vida intersubjetiva. O reconhecimento e a recíproca

aproximação das consciências, não pode produzir-se sob a ação de um ditado ou

imposição exterior [...] a insuficiência do elo comunicativo é uma das

manifestações de que, para () homem, a verdade só é dada como verdade em

devenir. A presença pessoal que assoma no contato dos espíritos não está a salvo da

degradação subsequente, na distância do objeto (idem, p. 41).

Supor que a revelação das consciências possa se tornar algum dia posse definitiva

do espírito, equivale a desconhecer o fundamento mesmo da vida espiritual. A diferença

entre a verdade subjetiva e a verdade como realidade objetiva veta qualquer satisfação do já

conseguido, fazendo com que o homem procure superar este estado de coisas através da

busca do silêncio, da solidão e do afastamento da praça pública, procurando um convívio

mais de acordo com a sua consciência e superando dificuldades que o levará a um encontro

decisivo.

Visto por este ângulo, a solidão é em sua essência, a escolha de um outro

convívio, a reconquista de um bem superior porque este romper com o mundo é um elo de

liberdade, uma obra do espírito e não qualquer coisa de imediato e natural. Se o nosso ser se

esgotasse na coexistência bio-social, se o dado social fosse tudo, não sentiríamos às vezes,

essa coexistência como um depauperamento do ser. Vendo o equívoco em nós e em torno de

nós, procuramos um novo direito para a existência. A solidão é, portanto, o índice do poder

de franquear e transgredir a lei do imediato e de vencer todo um conjunto de mecanismos,

hábitos e inércias bio-sociais, instituindo em nós e fora de nós um novo contorno existencial.

Por entender que o problema da solidão relaciona-se essencialmente com a

dialética das consciências, Vicente analisa o comportamento solitário destacando os vários

tipos de solidão e isolamento. Para ele, a solidão pode significar tanto o triunfo sobre o

dado e libertação, como abdicação da própria alma. Neste caso ela perde o sentido porque

não propicia qualquer nova possibilidade. A solidão humana deve ser uma preparação, uma

disposição para a verdade existencial e não a realização automática de um desejo

existencial. Isto porque, na realidade humana, a solidão é intrinsecamente dialética e

transitiva, não constituindo um fim em si mesmo.

A estrutura ontológica do homem como realidade que co-implica a

colaboração do outro em sua própria execução, faz com que todas as formas de separação se orientem intencionalmente para uma nova comunicação (idem, p.

44).

Após analisar a doença como um tipo de isolamento e enunciar alguns fatos que

podem de alguma maneira, paralisar e deter o processo do recíproco reconhecimento das

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consciências, seja desorientando-a em seu modo de ser, seja opondo resistência ao seu

comércio não devemos, segundo o autor, entender estas ocorrências que obstruem a

revelação da vontade existencial, como qualquer coisa de advento à liberdade humana

porque muitas vezes, com o objetivo de ocultar a si mesmo o peso de sua condição, o

homem se lança espontaneamente num existir anômalo e inautêntico. Mas, a verdadeira

atividade humana, que apesar de todos os obstáculos da não-verdade se dirige para uma

fidelidade ontológica, deve ser a da plena disponibilidade para si mesmo e para o outro,

visto que o estar condenado por este ou aquele motivo reflete-se na consciência como um

modo eficiente de nossas possibilidades.

Na continuidade de sua obra, o autor estabelece a distinção entre uma filosofia

entendida como um sistema cerrado de verdades e evidências dadas, e uma filosofia

elaborada como movimento de transcendência, como idioma do apelo e da liberdade. No

primeiro grupo coloca as filosofias da essência, da forma e da coisa; no segundo, as

filosofias do eu e da ação, traduzidas numa filosofia da esperança.

Segundo Vicente, o seu pensamento

supõe um horizonte sempre aberto para o novo e para o original, uma

historicidade precedente do poder criador da liberdade humana [...] não sendo

possível falar de uma visão histórica como totalidade, como objeto, pois o ser

próprio do existir histórico é ser como sistema inacabado, como ação que propõe

outras ações, como fato sempre em questão [...] O horizonte sempre aberto da

historicidade é o possível da presença espiritual, a perspectiva do determinável que se perfila diante do por-si (idem, p. 46).

Analisando as experiências que nos incapacitam para o desempenho da existência

na verdade, Vicente destaca o regime das massas, a esfera do objeto do “isso”, o fenômeno do

tédio e o fenômeno da náusea e explicita que não devemos supor que a evolução histórica seja

sempre acompanhada pelo aprofundamento constante das relações intersubjetivas, por uma

valorização cada vez mais profunda das possibilidades próprias e do outro. Se a sociedade que

começa a segregar os elementos que atuam na realização de uma vida radicada nas matrizes

ontológicas, como por exemplo, o regime das massas que predomina no quadro histórico de

nossos dias, cuja ação imediata é a de projetar a consciência fora de si mesma, revestindo-a

de uma personalidade adventícia, não teremos, jamais, o aprofundamento das relações

intersubjetivas. Em tal sistema de inautêntica convivência não existe para uma comunidade

fundada em bases ontológicas, pois não é o homem singular que quer, sente e pensa, mas o

todo através do individual.

Além do fenômeno da massa, temos o "fenômeno do contínuo crescimento da

esfera do objeto, do isso "através da história" [...]. O significado deste conceito de um simples

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"isso ou aquilo" aponta para uma entidade destituída de qualquer interioridade, de qualquer

realidade existencial, sendo em si mesma mera relação com outra coisa" (idem, pg. 47). O

homem passa a ser o que faz (médico, engenheiro, professor, zelador, etc.) num mundo em

que aquilo que não representa uma utilidade social perde toda e qualquer possibilidade de

reconhecimento. Neste contexto, o outro é para mim, não o outro, mas o que me serve no

desempenho de sua personalidade profissional. Esta tendência enfatiza o geral e não o

particular, a classe em vez do indivíduo, a ideia em vez da existência tornando impossível a

fidelidade a si mesmo e ao outro.

"O tédio é a indiferença do homem em relação ao ser, é o deslocamento no que

diz respeito a todas as coisas, a sensação de que o mundo, em seu conjunto, se funde numa

total insignificância" (idem, pg. 48). Com isso, o entediado perde o sentido do mundo e passa

a sentir a vida como um fardo pesado que não lhe deixa forças para estabelecer vínculos com

o mundo e com o outro, interrompendo assim o comércio das consciências. Com a náusea

assistimos igualmente a uma derrocada de todas as estruturas do real, de toda organização

intelectual do mundo pela sensação de repugnância e nojo, em relação ao real.

Deste modo, afirma Vicente, a solidão só é válida quando tem por objetivo a

tomada de consciência da realidade, visando à volta a si mesmo que só pode ser realizada

através do reconhecimento da autonomia existencial do outro. Só seremos

nós mesmos na medida em que nos interessarmos profundamente pela verdade existencial do

outro. Por isso, se não podemos pensar num asseguramento definitivo da verdade, também

não podemos imergir-nos no sentimento de impotência e fatalidade determinísticas visto que

não existe situação - a não ser aquelas que enquadram nossa estrutura ontológica - que não

seja suscetível de inúmeros desenvolvimentos. Assim,

A dialética do encontro significa simultaneamente um encontro do outro e de

si mesmo, inversamente, a perda de si mesmo implica a perda e o desconhecimento

do outro acarretando a alienação de todos os vínculos entre as consciências [...] A

liberdade em sentido dialético próprio não se exerce às expensas da liberdade

do outro, mantendo o outro como oposto ou como simples realidade

intramundana [...] A obra veridicamente humana é aquela que se propõe

comover os limites do que é separado, numa vida que se põe como criação de

si mesma (idem, p. 49).

6 O SENTIDO DA DIALÉTICA INTERSUBJETIVA

É partindo da própria natureza e essência do homem que Vicente procura

revelar o sentido da dialética intersubjetiva. Para ele, as relações com as outras

consciências promovem direta ou indiretamente o acesso do homem ao próprio homem.

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É o outro que nos dá consciência, que nos faz tatear os próprios limites, que nos dota de

um eu exterior. Sem o apoio no outro cairíamos no vazio dos impulsos e movimentos

subjetivos vividos, sem atingir jamais a medida do nosso próprio estado e valor. Se

faltasse à consciência o existir com o outro, ela estaria impossibilitada de determinar-se

na particularidade de sua escolha, de ser isto ou aquilo, pois lhe faltaria o princípio de

consolidação de todas as suas opções.

A nossa ação é importante porque fica consignada nas outras consciências e

o homem que não existisse na dimensão do outro não poderia ter suas ações dotadas de

qualquer irreversibilidade; todo feito poderia ser refeito; todos os seus movimentos

seriam revogáveis e destituídos de qualquer peso ou gravidade. Se o outro é integrante

de nossa finitude é justamente por que não podemos ser humanos sem a solidariedade

da operação das consciências.

O surgimento do eu e do tu é o resultado de uma operação dual e

simultânea: apareço em meu ser-para-outro devido à transcendência do outro, e o outro

aparece em seu ser-para-mim devido à minha própria transcendência. Entretanto em seu

sentido universal, este duplo movimento forma a totalidade do ser-com-o-outro da

realidade humana, constituindo o jogo que origina a presença de consciência a

consciência, que põe um eu diante de um tu no desempenho intersubjetivo onde um dos

termos surge apenas com a cooperação do outro; onde a relação eu-tu é anterior ao eu e

tu isolados.

A condição hominal está, segundo Vicente, intimamente ligada ao diálogo,

sendo mesmo esse diálogo na multiplicidade de suas possibilidades e dimensões. A

dialética que se desenvolve apesar de não servir a nada, não preparar a nada, é o

cumprimento das possibilidades humanas. Não se quer com isso afirmar que no

comércio das consciências o homem não se apure e edifique, o que se rejeita é a

possibilidade de um epílogo concludente desse processo, num estágio de reconhecimento

definitivo. Sendo o movimento a condição humana por excelência, a finitude radical de nossa

condição trabalha contra qualquer determinação, contra qualquer vitória definitiva.

A vontade de comunicação deve permanecer sempre aberta para que não caia na

rotina, na exterioridade de gestos e palavras e ausência de empenho interior. A presença está

sempre ameaçada pela ruptura, pela separação; o que se detém na permanência, já está morto.

Por isso, um comportamento interpessoal que se estabiliza numa atitude, que não procura a

sua superação para ascender a formas mais profundas, involui imediatamente para ocultação

de sua comunicação.

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Como o homem é um ser orientado para a verdade, e esta orientação o encaminha

para a sua verdade, o movimento espiritual que comanda o comércio das consciências (que

nunca se fecha num sistema cerrado e circunscrito) obedece também a certa orientação. A

verdade do homem é de natureza prática, é uma verdade do seu poder ser, do espaço de sua

transcendência; é uma verdade móvel da operação de negatividade, a verdade de que o

homem não é o ser, mas que mediante esta operação o homem ascende à verdade de si

mesmo, em si e em sua dimensão do ser-para-outro.

Ao convocar o outro para o exercício de sua realidade fundamental, realizo-

me como liberdade, e ao congratular-se o outro com a minha liberdade, cerra-se o

círculo do reconhecimento. O projeto fundamental do meu ser-com-outro não é a

ordem, a imposição, a palavra imperiosa, ou qualquer tipo de segregação do espaço

do exercício espiritual, mas o conjunto das pressões que, se dirigindo ao tu, abrem

diante dele horizontes infinitos de possibilidades. Qualquer outro projeto de

comportamento interpessoal está fadado ao fracasso e à decepção. A liberdade que

se lança na empresa de domínio e sujeição da outra consciência, bem cedo se

convence do malogro do seu projeto de reconhecimento (idem, p. 50).

Com a finalidade de aprofundar a ideia de que a transcendência para a própria

verdade é simultaneamente a vontade de por em movimento a consciência de si e do outro, o

autor afirma, baseado no pensamento de Max Scheler, que de fato

as sociedades humanas são regidas pelo dinamismo das grandes personalidades, dos

chefes e dos modelos que, através de seus atos, atitudes, opiniões e entusiasmo

orientam o movimento do ser social. Não obstante a existência do modelo como

forma intersubjetiva, ele só pode ser como transcendência em relação ao outro,

como promoção do outro. (idem, p.51).

Assim, o projeto fundamental da liberdade está justamente em criar liberdade em

torno de si. Nas ações mútuas dos "eus" nem todos se encontram no nível de veracidade e

certeza interiores; somente alguns se encontram em condições de serem portadores da

mensagem de recuperação da própria origem. Por isso, no regime intersubjetivo a situação se

organiza numa hierarquia de mestres e de discípulos, de guias e de guiados. Este desnível faz

com que a dialética propulsora na forma de um ensinamento, isto é, na forma de uma doação

generosa daquele que possui àquele que não possui.

No entanto, na relação inicial entre mestre e discípulo, não devemos supor que

este esteja irrevogavelmente imerso na não-verdade pois isto significaria estar imerso no nada,

o que seria a ruína ontológica de sua realidade, mas tão somente que ele se encontra num

estágio de impossibilidade e de alienação. O momento de integridade existencial e de

cumprimento do nosso estatuto ontológico apresenta-se como ser do nosso poder ser, e a

verdade à qual devemos referir não é a de uma realidade pretérita, mas ao reconhecimento do

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traço de nossa verdadeira natureza ontológica como um "poder fazer", como um conjunto de

possibilidades atualizáveis através da realidade corpórea.

A afirmação "Sê o que tu és" sugere, segundo Vicente, a ideia de uma

reintegração num estado de perfeição perdida; nos dá a autoconsciência dessa categoria de ser

orientado para aquilo que o ultrapassa.

A posse de si mesmo deve representar para o homem não de um bem já

existente, mas a determinação ativa de um “projeto personalíssimo". O encontro e a comunicação dos espíritos não se põe assim como experiência de arrependimento,

de nostalgia de pureza pretérita, mas como a emancipação do espírito das potências

imanentizadora de sua propulsão transcendente (idem, p. 54).

Por isso, nos diz Vicente, a eclosão de uma nova forma de viver é sempre

condicionada pela categoria do encontro, do intercâmbio espiritual do receber. Quem

recebe, recebe-se a si mesmo e quem dá proporciona unicamente a ocasião do exercício de

outra liberdade. Daí que a atuação do mestre não se caracteriza na imposição de uma forma,

mas de permitir que o discípulo se encontre.

Colocando o amor como a forma mais importante da comunicação existencial,

Vicente caracteriza tal experiência como um sair fora de si, como um viver-no-outro-

vivendo-em-si-mesmo. A incorporação do eu ao tu ou do tu ao eu confere ao que ama a

ocasião de sua realização pessoal. Como diz Jaspers, amando sou eu mesmo. Eis a origem

de minha independência, na qual recebo o dom de mim mesmo.

O amor não se subordina a qualquer imposição ou necessidade; não é dever nem

obrigação, mas a livre disposição de nós mesmos. Por isso ele é a fonte da independência da

alma e a condição do advento da verdade existencial. A consciência deve se livrar de tudo que

é externo para poder amar a partir de si mesma. Assim,

a classe de seres que amamos ou preferimos depende, em última instância, do nosso

projeto existencial [...] O que amamos denuncia o que somos e o que pretendemos

ser, vemos refletida na hierarquia das coisas belas, amáveis e apetecíveis a própria escala de nossa transcendência. O objeto amado põe-se como uma transcendência do

nosso existir, como algo a que aspiramos veementemente unir-nos para a realização

de nosso projeto original (idem, 57).

O amor como aspiração, tendência e impulso ascendente é por natureza

movimento. O amor é histórico, tendência para valores cada vez mais elevados e para

possibilidades inéditas de ser. O amor não se traduz no existente, mas naquilo que supera,

despreza e destitui o prosaico da vida e dos quadros sociais, pois na experiência amorosa as

pessoas nunca se dão como pessoas sociais. Quem ama vive além das coisas e de seus limites,

num prolongamento sui-generis da vida. Promovendo o advento da verdade pessoal, o amor é

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criador desde que essa verdade que somos nós mesmos seja criativa em si. O comportamento

afetivo dilata a relevância e o alcance do outro ser. O ser amado é uma fonte doadora de

sentido.

Amar é tomar consciência do que há de fundamental em si mesmo. O amor faz o

eu encontrar-se com o eu do outro para a realização das máximas possibilidades do homem;

ele é o tornar-se si mesmo com o outro através da comunicação. O amor é a forma eminente

do reconhecimento das consciências e o processo de anulação da objetividade. O amor é a

conduta suprema do homem como humanizador por excelência. É o entusiasmo do amor que

lança o homem além de todos os limites, no puro espaço da indeterminalidade infinita.

Enquanto o ódio impede, cerra, restringe, fixa e objetiva, o amor executa o trabalho contrário,

educando as consciências para a efusividade mútua.

Para Vicente, o zelo pelo outro é algo essencial no existir autêntico, pois somente

através da comunicação das consciências é dado ao homem ascender à mais alta forma

espiritual. Daí porque o verdadeiro contato interpessoal pode tirar as consciências de seu sono

indiferente; denunciar o compromisso consigo mesmo; lembrar ao homem sua condição; e

ampliar a consciência do seu poder ser.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao elaborar as considerações finais, Vicente afirmará que o trabalho

desenvolvido se refere a uma dialética das pessoas e não a uma teoria das relações

subjetivas; que a realidade explorada se apresenta na forma elítica e furtiva dos processos

dialéticos e que, o processo de reconhecimento, como trânsito da não-verdade para a verdade,

não deve ser compreendido como fato meramente histórico, como a sucessiva emergência da

fisionomia humana de um estádio primitivo e obscuro, já que “as atitudes assumidas pelo

homem em face dos outros e em face de si mesmo não constituem uma seriação temporal, mas

um feixe de possibilidades de comportamentos. Por isso, a dialética das consciências não

apresenta figuras que se sobrepõem temporariamente, mas formas de conexão dos “eus” que

se dispõem como figuras possíveis da vida espiritual.

Defende contra Hegel, a contemporaneidade dos comportamentos

intersubjetivos e diz que o trato escravizador do tu é uma nota constante

da relação interpessoal, e que inserir o outro como instrumento na consecução de nossas

finalidades é uma possibilidade sempre aberta do nosso ser-com-o-outro e não um estágio na

evolução da dialética temporal das consciências. A história é o cenário de contínuas

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transformações e modificações, nela nada é fixo ou estável, pois a ação humana vai alterando

continuamente as condições da própria ação de tal forma que a repetição da mesma é

impossível.

Como estrutura ontológica, a relação homem a homem permanece invariável

como âmbito de determinação no decorrer dos tempos. Cada geração humana é colocada

diante do mesmo quadro de desenvolvimento e de ocasiões de atividade para que possa

realizar seu traçado histórico de acordo com a índole e a profundidade de sua radicação

metafísica. O que foi feito por outros homens não garante aos novos homens um

desenvolvimento seguro.

Assim, em sua contextura dialética, o processo do reconhecimento está sempre

referido ao seu próprio contrário, ou seja, à alienação do homem em seus modos deficientes

de ser. O fim do homem é a conquista de sua independência em relação às coisas e através

delas. Daí porque “o homem nada mais é do que o ato vivo do reconhecimento. Contudo, a

nossa origem não é revelada por qualquer espécie de comportamento, senão através de um

existir consagrado à verdadeira comunicação existencial. A atividade que funda nossa

realidade própria não é qualquer atividade do eu isolado de sua convivência, mas o momento

em que o real se torna discurso e palavra; não apenas existindo, mas sabendo que existe na

expressão de sua própria intimidade. É a palavra (que transcende ao sumamente dado

a favor de uma nomeação) o que há de espiritual no conjunto das coisas, abrindo

espaço à todas as realizações humanas.

Assim como o existir na inautenticidade, no mero intercâmbio exterior

que nada exige está ligado às formas degradas de linguagem. Assim também, a

existência fundada na verdade da consciência de si tem o seu análogo na palavra

autêntica que impulsiona o homem para o mútuo conhecer-se, para a sinceridade,

para a expansão da alma, rompendo com tudo que existe de secreto, dissimulado e

insidioso na consciência.

Para Vicente, o amor como forma primordial de interação se une aos

demais comportamentos promotores do mútuo reconhecimento pelo caráter

discriminativo e autenticador da verdade existencial. Mesmo no amor, a verdade é

de natureza instável e dialética, devendo continuamente reafirmar-se em seu

próprio movimento, isto é, como devir.

Portanto, é na possibilidade de transcender o meramente dado que

descobrimos o humano no homem. Não somos humanos como se é pedra, céu ou

árvore, mas nos tornamos humanos, isto é, somos convocados à humanidade. E

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através da convivência do ser-com-o-outro, nos educamos para o sentido da nossa

verdade própria.

CONCLUSÃO

Após o estudo, análise e exposição sintética do pensamento de Vicente

Ferreira da Silva na obra Dialética das Consciências, é possível dizer que:

1. A influência da fenomenologia na obra do autor parece chegar através da

fenomenologia existencial, especialmente da fenomenologia de Heidegger, ou seja, de

uma filosofia científica do homem como ser-no-mundo, como cógito intencional ou

dirigido para o mundo. Ao que nos foi possível captar, Vicente se distancia de Husserl

porque, enquanto para Husserl o eu é plenitude do ser pessoal que concretamente toma

posição, pensa, quer, age, realiza, sem jamais se desligar do substrato condicionante de

sua sensibilidade intransferível, em Vicente o eu é tudo isso, mas numa linha

heideggeriana de projeção emergente do mundo original das significações

objetivamente válidas, na dimensão dos poderes projetivos desvelantes que constituem

o domínio do ser. Vários são os pontos de convergência com Heidegger:

a) O privilégio atribuído ao homem – Em Heidegger, a filosofia é a

ontologia universal e fenomenológica que parte da hermenêutica do “ser-aí”, atuando

como analítica da existência, o cabo ao fio condutor de toda questão filosófica ali onde

toda questão filosófica surge e retorna. Nesta perspectiva o “ser-aí” tem uma múltipla

preemissão sobre os demais entes porque é inerente a ele, um compreender o ser de

todos os entes de uma forma distinta da sua. Para caminhar na direção do ser, se faz

necessário descobrir a existência autêntica do homem, aquela que o faz o verdadeiro

revelador do ser.

Para Vicente, a relação homem/homem é vista a partir do homem e não do

mundo, o homem surgindo da história enquanto interação de consciências. O eu e o tu

não são apenas a estrutura do ser humano, mas também o elemento criador da sua

própria realidade. É o conjunto de “eus” que constitui a substância original do mundo.

b) A preocupação com a existência – Para Heidegger como para Vicente, a

interpretação da existência nos seus traços essenciais é o único meio de responder a

pergunta: o que é o ser? Ambos distinguem dois tipos de existência.

Heidegger fala da existência banal ou inautêntica, onde o homem se

encontra perdido em si mesmo, entre as preocupações da vida quotidiana e, na

A influência da fcnomcnología no autor, nesta obra, vem através

da fenomcnologia existencial, especialmente de Heidcgger, ou seja, de

uma filosofia científica do homem como ser-no-mundo, como cogito in-

tencional ou dirigido para o mundo,

Ao que nos foi dado captar, o autor distancia-se de Husscrl. En-

qu.uno Husserl permanece no plano de uma Icnomenotogía gnoscoló-

J',ic;! c científica, Vicente Fcrreira da Silva desenvolve seus estudos no

pl:lllo da iranscendôncía, entende que a verdadeira existência é en-

cunlr;lib justamente no nosso ser-com-o-outro, no nosso estar-no-rnun- dOCI,IIIHHlutro, onde a verdade se expressa no esforço de afirmação e

de i('conllceimcnto.

Por ou i ro lado, a do eu, em é também difcren te

da de ! Iusscrl. Para Husserl o eu é do ser pessoal que concrc- 1;lIncnlc torna posição, pensa, quer, age, realiza, sem jamais se desligar

do subxt ralo condicionante de sua sensibilidade intransfcrívcj. Para Vi-

(lIHe. \) eu é tudo mas numa linha heideggeriana de projeção cmcr

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ll!eIlS;'\íl dos dcsvelantcs que constituem o domínio do :-,,'1', O eu depois de escolher um cenário de desenvolvimento passa a

:.('1 11I1lt;:Ú) e parte desse mundo criado e a se compreender com as ,'>lIas

ohWlividades, rributário de uma instauração meta-histórica.

; lá, contudo, muitos pontos de aproximação com Hcidcggn, po

d"I,du xcr apontados. entre outros, os seguintes:

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existência autêntica através da qual o homem encontra sua própria realidade e capta o

ser autêntico seguindo vários caminhos, especialmente o da angústia que leva o homem

ao verdadeiro sentido da existência, ao encontro de sua totalidade como ser. Vicente

fala da existência não-verdadeira, vida esquecida de si mesma e de seu destino, alienada

e imersa no quotidiano sem comunicação com as outras consciências; e a existência

verdadeira, consciente de si mesma e do outro através da interação das consciências no

seu esforço de afirmação e reconhecimento. Enquanto o reconhecimento possibilita a

saída da não-verdade para a verdade, a relação com as outras consciências promove,

direta ou indiretamente, o acesso do homem ao próprio homem.

c) Polo da práxis – Tanto Heidegger como Vicente colocam a discussão do

homem, ou o conhecimento da verdadeira existência num plano prático onde a verdade

buscada se encontra no estar-no-mundo-com-o-outro.

d) Ideia de projeto – Heidegger e Vicente falam num projetar-se para além,

ou seja, num projetar-se para a autenticidade, ou num projetar-se para a verdade.

Como vimos, em Vicente a questão da consciência se desenvolve num plano

prático, através de uma dialética e de uma hermenêutica da existência que têm como

finalidade maior, mostrar que o acesso do homem ao próprio homem se dá através da

relação das consciências que possibilita a cada um, visualizar seus próprios limites e

possibilidades. Nele a existência humana, entendida como um projetar-se que tem como

meta primordial a obtenção da verdade possui dois momentos fundamentais: a não-

verdade – vida esquecida de si mesma e de seu destino, alienada nas formas degradas

do existir e; a verdade – expressa na autêntica convivência dos “eus”, isto é, no

autêntico reconhecimento de si e dos outros.

Segundo entende o autor, é na interação das consciências em seu esforço de

afirmação e reconhecimento que se encontra o trânsito da não-verdade para a verdade.

Essa interação é o momento “morfogenético” do nosso ser porque o homem forma-se,

educa-se e desenvolve-se numa relação de “eus” que constitui a substância original do

mundo humano. Apesar de apresentar várias formas de reconhecimento, Vicente afirma

que entre formas, a mais importante é o amor.

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O SISTEMA PANTITEISTA DE CUNHA SEIXAS

INTRODUÇÃO

José Maria da Cunha Seixas nasceu em Trevões, em 1836. Entrou para o

Seminário e o abandona mais tarde para dedicar-se ao estudo do Direito na

Universidade de Coimbra, colando grau em 1864. Companheiro de Antero de Quental

dirigiu com ele a publicação coimbrã "O Acadêmico" (1860). Em Lisboa, exerceu as

profissões de advogado e jornalista. Como jornalista colaborou para os jornais

Viriato (Viseu), Distrito de Beja (Beja), Acadêmico (Coimbra), Diário do Comércio,

Jornal de Lisboa, Gazeta de Portugal e Comércio de Portugal (Lisboa). Foi integrante

do Partido Histórico e professor de Filosofia no Instituto de Ensino Livre. Em 1878

concorreu para a docência do Curso Superior de Letras, sendo preterido por

Consiglieri Pedroso, discípulo de Teófilo Braga, em virtude de sua oposição ao

positivismo. Morreu em Lisboa em 1895.

Sua obra filosófica recolhida em livros, compreende: “A Fênix ou a

Imortalidade da Alma Humana” (1870); “Princípios Gerais de Filosofia da História”

(1878); “Galeria de Ciências Contemporâneas” (1878); “O Pantiteísmo na Arte”

(1883); “Ensaios de Crítica Filosófica” (1884); “Estudos de Literatura e Filosofia”

(1884); “Lucubrações Históricas” 1885); “Elementos de Moral” (1886); “Tratado de

Filosofia Elementar” (1887); “Princípios Gerais de Filosofia” (1897). Além destas,

publicou, também: “Estréias (Poemas e Ensaios” - 1864); “A Dotação do Culto e do

Clero Católico” (1866); “Fantasias de Amor” (1880); Teorias das Ações de Filiação

Ilegítima” (1883); “Elementos de Direito Público Constitucional” (1885); “Princípios

Elementares do Direito Civil Português” (1884).

O pensamento filosófico de Cunhas Seixas situa-se na primeira fase da

nova consideração da ideia de Deus e do conceito de razão a que se dedicaram os

pensadores portugueses na segunda metade do século XIX. Jus-filósofo, Cunha

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Seixas não limita a sua reflexão ao problema de Deus, à filosofia da religião e às

relações entre razão e fé, lança-se na ambiciosa empresa de construir um verdadeiro

sistema original cuja ideia central se encontra na afirmação: "Deus está em tudo".

Para Braz Teixeira, Cunha Seixas apresenta desde a sua primeira obra um

sistema filosófico perfeito e acabado, como um todo unitário e coerente que será

explicitado e desenvolvido ao longo do tempo. O objetivo primordial ou fim último

de Cunha Seixas era, no entender de Pinharanda Gomes, a estruturação do seu

sistema pantiteísta fundamentado através de uma síntese, por vezes problemática, de

idealismo platônico e de realismo aristotélico. Filósofo de linha biológica ao estilo de

Leibniz, e de algum modo oposto ao mecanismo cartesiano, Cunha Seixas opõe-se

radicalmente a todo materialismo que seja finalidade para si mesmo.

1 PENSAMENTO FILOSÓFICO DE CUNHA SEIXAS

1.1 O PANTITEÍSMO

Conforme Braz Teixeira, o pantiteísmo se apresenta como renovada

expressão do espiritualismo atento às conquistas das ciências do seu tempo e herdeiro

de toda uma linha de pensamento antigo e moderno que vem de Platão e Aristóteles a

Descartes, Malebranche, Leibniz e ao idealismo alemão. Situa-se, fundamentalmente,

por um lado, em relação ao krausismo e, por outro, em oposição ao positivismo, em

especial, ao de Teófilo Braga. É um repensamento dos primeiros princípios na

convergência e divergência do positivismo francês e do idealismo alemão. É um

espiritualismo e significa: "Deus em tudo", diferindo, por isso mesmo, do panteísmo

para quem "Tudo é Deus" e do Panenteísmo que afirma: "Tudo está em Deus".

Enquanto o panteísmo se caracteriza como um materialismo

espiritualizado identifica "Deus e matéria", e o Panenteísmo coloca Deus como

recipiente universal, como contentor da matéria, o Pantiteísmo, divergindo de ambos

e abraçando a tradição desde Aristóteles até Leibniz, pensa Deus como motor imóvel,

princípio e fim. Em tudo que existe Deus está, mas não se identifica com ele.

Segundo Pinharanda Gomes (1975, p. 16), “o sistema pantiteísta reflete as

preocupações do autor quanto às ciências e constitui um projeto metodológico e

epistemológico sem minorar a crença e a revelação como via Ontognoseológica".

Nele entende-se a filosofia como geradora das ciências, que uma vez autonomizadas,

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isolam a filosofia na situação de "ciência da unidade geral", isto é, a filosofia não é

mais o saber unificado, mas a unidade geradora das ciências.

Todo o sistema pantiteísta está fundado em três leis: a do ser, a da

manifestação e a da harmonia e encontra, segundo Seixas, defesa na psicologia, na

lógica e na ontologia. Como estas leis envolvem toda a História da Filosofia, elas fazem

parte de um novo sistema filosófico universal com aplicação a todos os ramos do saber

humano.

Para Cunha Seixas não há, na sua filosofia, elementos meramente ideais nem

a simples experiência. Há a combinação harmônica do real e do ideal, da fatalidade e da

liberdade, do corpo e do espírito. Sua filosofia não é determinista nem entende o

homem curvado ao império único das circunstâncias; ela não reconhece o progresso

retilíneo, de hora a hora, mas o progresso efetivo, real, certo e incontestável; ela é

espiritualista e honra-se de o ser, porque é sua convicção que também a humanidade o

é, nas suas feições, nas suas crenças, em seus mitos e legendas, em suas religiões, em

sua natureza moral; ela não desconhece fato algum, mas procura concatenar os

trabalhos humanitários, dando entrada a tudo que é real e verdadeiro. Não há

universalidade em leis experimentais, mas tão somente na metafísica, que abrange o

mundo, o homem e Deus.

Ao catalogar a História da Filosofia em quatro sistemas: Panteísmo,

Sensualismo, Conceptualismo e Espiritualismo, Cunha Seixas diz que o panteísmo,

embora admita a necessidade do infinito e do absoluto, confunde finito e infinito; o

sensualismo, baseando-se na finalidade, chega a um sistema irrevogável de pluralidades

inunificáveis pelo infinito; o conceptualismo que surge da confluência dos dois

anteriores, comete os mesmos erros.

O espiritualismo, no entanto, sendo um sistema sintético e postulante do

absoluto, aceita a realidade do mundo material sem renunciar ao mundo do espírito e,

por sobre ambos, a verdade divina. Por isso, cientificamente o pantiteísmo que é um

espiritualismo, é o sistema que forma a conjunção de todas as ciências exibindo as

determinações destas na permanência de seus princípios e na evolução infinita que lhes

compete, ou seja, exige uma síntese harmônica de leis universais sob a unidade do

absoluto.

No desenvolvimento de seu pantiteísmo Cunha Seixas opõe-se ao

positivismo e ao evolucionismo. Ao positivismo censura-lhe a falta de metafísica, a

falsa psicologia em que se funda; a confusão da alma com o cérebro, o materialismo

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fatal a que conduz necessariamente; a redução experimentalista, a lei dos três estados, a

concepção determinista e linear do progresso, e alguns pontos da moral e do direito, em

especial aos de Littrè, a falta de ideal humanitário, etc. Aos sistemas evolucionistas

opõe-se ao sem número de hipóteses de que partem e a falta de provas de grande parte

de suas infundadas suposições; o seu materialismo: o desconhecimento, em parte, das

leis ontológicas: o seu método meramente experimental.

No entendimento de Cunha Seixas a origem da filosofia está na Teoria do

Conhecimento que se desenvolve na metafísica pura (ontologia e teodicéia). Como a

filosofia tem por natureza abranger as leis gerais de todas as ciências e de

ser uma síntese de todos os conhecimentos humanos que tem por missão fornecer os

axiomas para todas as ciências, ela é a única que pode exercer a soberania e, por isso

mesmo, deve figurar como a primeira em tudo.

Como o pensamento e a subjetividade são o ponto de partida de todo o saber

e de toda a ciência, a matriz da filosofia é a gnoseologia e o seu núcleo essencial a

metafísica enquanto ciência das leis universais do ser (ontologia) e ciência do ser

supremo ou Deus (teodicéia).

1.2 ONTOGNOSEOLOGIA

Para Cunha Seixas, do ponto de vista subjetivo, o início do conhecimento

humano está no próprio pensamento; do ponto de vista objetivo, está na ideia de ser. Se

o conhecimento ou ciência é sempre um ato do espírito pensante, um ato subjetivo, o

seu ponto de partida deve estar não no sentimento ou na vontade (meros excitadores ou

motores do conhecimento) mas no próprio pensamento (leis da razão e axiomas). E,

como todo pensamento e todo juízo implicam a ideia de ser (pois afirmando ou negando

algo, pressupõe-se sempre o ser), tal ideia é também o necessário ponto de partida

objetivo do conhecimento humano. Por isso, não podemos avançar no caminho do

pensamento sem termos presente a ideia de ser; todos os nossos pensamentos aí

começam, todos os nossos juízos a envolvem.

Quando indagamos a respeito de algo, estamos tratando da sua existência,

por isso, a ideia metafísica de ser é o centro de todos os juízos e o nosso sinal de

verdade. Quando dizemos que uma coisa é ou não é, estamos tratando em qualquer dos

casos, da sua existência, mesmo que o juízo seja negativo. No entanto, a ideia de ser

como centro do juízo implica outra coisa cuja essência se deve procurar para que o

espírito realize a sua necessidade de unidade geral. Por isso, nos diz Seixas, sem a ideia

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de ser não se pode conceber o pensamento.

Mas o ser, sinal de verdade, implica o gerador, o fundamento, o centro dessa

verdade que deve ser independente das circunstâncias, perpétuo, eterno e imutável, pois

senão fosse, não poderia ser sinal de verdade, não sairíamos do relativo que careceria de

um centro que fosse superior. Por isso, afirma o pensador, se é certo que não há juízo

sem ser e que o ser é o sinal de verdade, que por isso mesmo deve ser absoluto, segue-

se que todos os juízos envolvem o absoluto. Assim. a ideia de ser que se apresenta

como elemento de juízo e sinal do absoluto, não envolve limitações.

Como a ideia de ser não envolve limitações e o infinito é a realidade de

todas as perfeições e importa o ser pleno, é ele (infinito) a primeira ideia e gerará a

ideia de finito.

Como lei, a ideia de infinito existe antes da de finito; como ideia, só

aparece no espírito em virtude dos seres finitos. Assim, como ideia abstrata

da razão, só aparece depois da ideia de finito, embora logicamente a ideia

de infinito governe a inteligência (mesmo inconscientemente) senão não

poderíamos formar a do finito já que é impossível pensarmos no finito sem

a presença da ideia do infinito (idem, 55).

Todas as obras humanas, no entender de Cunha Seixas, começam aos

poucos e vão se aperfeiçoando à medida que procuram a harmonia universal para

chegarem ao absoluto, ao infinito que é o mais alto pouso do nosso pensamento,

pois só nele repousa com segurança a nossa razão. No entanto, a divindade não se

revela ao homem rapidamente e em uma só intuição espontânea e imediata; o

homem só descobre as perfeições divinas através de incessantes lavores, através da

razão. O sentimento do infinito é o clarim que desperta o espírito e o faz marchar

para o combate; nessa luta constante, o belo, o justo, o bem vão sendo melhor

conhecidos e aplicados à vida social e cada vez mais o homem se

torna senhor do espaço e do tempo, progredindo sempre em sua marcha. Por isso, o

progresso é uma verdade física, filosófica e histórica; ele engrandece o homem e

dilata a liberdade; liga as gerações e os povos; é a expressão do indefinido valor do

homem e da humanidade.

As ideias como pressuposto e condição primeira do saber possível ao

homem são para Cunha Seixas, de três espécies distintas: experimentais, reflexivas

e racionais. Para ele, todo conhecimento se traduz num juízo, na afirmação,

explícita ou, implícita, de uma relação, que todo juízo é formado segundo três leis

(da substância, da manifestação e da harmonia) e desenvolve-se em três momentos:

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o primeiro corresponde à afirmação espontânea e intuitiva de um objeto, aprendido

concretamente na sua existência; no segundo, através da análise e reflexão, sobre a

noção intuitivamente recebida, inquire-se da sua natureza, dissociando-se,

classificam-se e distinguem-se os vários elementos que compõem o objeto,

enquanto no terceiro se realiza a síntese harmônica dos resultados da

abstração anterior e se integra cada ser no lugar que lhe cabe na ordem hierárquica

do real.

Assim, no primeiro momento encontramo-nos no domínio das ideias

experimentais, cuja origem se situa rios sentidos, ideias particulares e

contingentes, referidas a um objeto da natureza e dependentes das sensações,

variáveis de sujeito para sujeito e radicadas na crença intuitiva e espontânea, na

existência de algo alheio ao próprio espírito. O segundo grau do juízo processa-se

no plano das ideias reflexivas, de índole geral e abstrata, formadas a partir da

análise e da reflexão sobre os dados experimentais e intuitivos.

A síntese harmônica, terceiro momento, realiza-se ao nível das ideias

racionais ou ontológicas, inatas ao próprio espírito, universais, absolutas,

necessárias e invariáveis. Sendo justamente a natureza desta terceira ordem de

ideias que possibilita e garante o conhecimento, do mesmo modo que faz da

ontologia a ciência do ser nas suas mais gerais determinações.

Por isso, a primeira dessas ideias é a ideia de ser, na sua máxima

indeterminação, como princípio de identidade, de não contradição e do

terceiro excluído, como fundamento de todos os princípios ontológico-metafísicos

(pois que todo o juízo a envolve) como possibilidade, unidade, identidade,

existência e totalidade, critério de verdade e termo comum de todo juízo.

A primeira determinação da ideia de ser dá-se na sua consideração como

sujeito e base de qualidade, como substância. A consideração do eu, ser e

substância, como centro de atividade, conduz naturalmente à ideia de causa, a qual

leva, por sua vez, à de relação. Esta, considerada ora em termos de sucessão ou

simultaneidade, ora como contiguidade ou coexistência, abre via às ideias de tempo

e espaço, do mesmo modo que aponta ainda outro tipo de relação, a de grandeza.

Por outro lado, cada ser surge-nos dotado de certa finalidade específica,

decorrente de sua própria natureza, finalidade que se coordena com as dos outros

seres, dentro da ordem geral que preside ao mundo e em cuja realização consiste o

bem ou harmonia. Mas, assim como estas ideias são simultaneamente 'elementos

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do pensamento e da natureza, as leis que presidem ao conhecimento são de igual

modo as que comandam o domínio do ser. Assim, é também através de um

processo tríadico de ser, manifestação e harmonia, que a ordem ontológica se

desenvolve e concretiza, e a finalidade própria de cada ser se coordena

dinamicamente com a dos restantes, concorrendo para a realização dos mais altos

destinos do universo.

Cada ente configura-se, então, como algo de individualizado e dotado de

finalidade específica, como um infinito relativo, que, no seu movimento próprio, se

manifesta relacionando-se com todos os outros do seu gênero e, através dele, com a

ordem mais geral do ser.

A noção de ordem, por um lado, e a ideia dos seres como infinitos

relativos, por outro, conduzem o espírito à noção de um ser perfeito e absoluto que

tenha em si o seu próprio fim e que, na sua unidade e simplicidade, seja criador e

ordenador dos demais seres.

Como o finito não pode existir sem a sua causa geradora, e como o

infinito é a eternidade e a imensidade, segue-se que Deus está em tudo,

cedendo a todos os infinitos relativos a sua realidade e subsistência, ficando

sempre perfeitamente distinto, porque o eterno e imenso não se pode fundir

com o transitório e com o limitado. Movemo-nos, somos e vivemos em Deus,

participando da sua realidade sem confusão alguma (idem, p. 364).

Desta forma, no pensamento de Cunha Seixas, o vértice da escala dos seres

é ocupada pelo infinito absoluto, criador e ordenador do mundo; abaixo dele

encontram-se as ideias elementos, infinitos relativos, princípios constitutivos de todo

o ser, e cuja sede é o próprio absoluto, ideias que geram tudo o que existe, o qual se

agrupa, descendentemente, nas classes e subclasses que o mundo fenomenal da

natureza nos patenteia.

1.3 ANTROPOLOGIA

O exemplo mais acabado do dualismo pantiteísta ê o próprio ser do

homem, composto misterioso e admirável de duas substâncias distintas: uma, múltipla

e divisível, em perpétua transformação, domínio da extensão e da quantidade; a outra,

simples e una, imaterial e idêntica a si mesma, sede do sentimento, da reflexão e da

razão.

Na concepção teleológica própria do pantiteísmo, a natureza de cada ser

encontra-se pré-ordenada em função do seu fim específico no seio do universo,

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consistindo o destino particular de cada ente na realização da sua essência. Todos os

seres possuem uma certa natureza a que deve corresponder no pensamento criador um

certo fim. Por isso, a essência de cada ser indica o seu destino providencial, o seu

lugar no seio do universo. Cada um possui o seu alvo na sua própria ação.

Por isso, o destino ou fim do homem consiste na realização de sua própria

natureza, das suas faculdades, da sua essência em geral. Todavia, se o homem ocupa

um lugar no seio do universo e tem de viver dentro do mundo é necessário que o seu

fim esteja conforme a coexistência dos outros seres e do universo, devendo o seu

desenvolvimento ser harmônico e congruente à ordem universal.

Desta forma,

o destino do homem é o livre desenvolvimento, completo e harmônico da sua natureza, considerada em si mesma em geral ainda nas tendências

particulares de cada indivíduo e no conjunto das relações com os outros seres

em geral, com a humanidade, e com Deus em especial (idem, 43).

Realizando o seu destino e desenvolvimento harmonicamente as suas

potencialidades, o homem alcança o seu bem, contribuindo dinamicamente para a

ordem universal. O bem se torna então a lei moral do homem, de cujo fiel

cumprimento vem a depender a realização do fim próprio do ser humano, a ponto de

poder dizer-se que este é o próprio bem. Este fim que decorre da essência do homem,

realiza-o a humanidade e alcança-o cada um de seus membros no seu viver, e no seu

agir, numa multiplicidade de sentidos e de planos harmônicos e complementares.

Assim, encontramos na atividade humana três zonas capitais: a primeira,

refere-se ao indivíduo enquanto tal, à sua conservação, à satisfação das suas

necessidades e à realização dos seus desejos (utilitária e estética); a segunda, refere-se

a coexistência social (jurídica e moral); e a terceira, à síntese harmônica da

individualidade com a sociedade, no plano dos mais altos fins da religião e do saber.

Coerente com o seu pluralismo a antropologia de Cunha Seixas afirma-se,

no entender de Braz Teixeira, decididamente personalística especialmente na teoria do

amor, no conceito de razão e na doutrina da imortalidade da alma.

Opondo-se com vigor tanto às concepções materialistas que fazem do amor

uma realidade meramente física, como ao idealismo platônico que vê no bem em geral

seu único objeto, Cunha Seixas afirma o caráter pessoal do amor, impulso generoso

para fundirmos o nosso ser noutro ser concreto e individualizado, que partindo da

atração ou encanto físico, do sentimento estético, se eleva à união das vontades,

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libertando o homem do seu egoísmo e abrindo a sua alma à superior realidade do bem.

Mas não só no plano do sentimento o personalismo antropológico de Cunha

Seixas se afirma, diz Braz Teixeira. Para ele, também a razão, faculdade superior do

homem, pela qual este pode arrogar-se legitimamente o sublime títu10 de filho de

Deus, impessoal e divina, por ser dotada de verdades eternas, é igualmente pessoal,

não só porque em nós existe como ainda porque unicamente pelo exercício da reflexão

se nos patenteia os dados que nela se encontram.

No entanto, o personalismo do autor encontrará maior expressão no

tratamento do problema da imortalidade da alma. Entendendo que a alma imaterial é

simples e una, dirá que a sua vida não pode cessar após a morte do corpo, visto que a

morte é portadora da vida: correio de boa nova: condição de um futuro esplêndido,

estrela silenciosa que esconde em si mistérios inefáveis. O horror à morte denuncia

que ela é contrária à nossa natureza, por isso, nos deve inspirar a crença na

imortalidade. Ela é um trânsito, uma passagem necessária de um ponto conhecido para

outro desconhecido, e a vida imortal é necessária e inegável; é o pouso contínuo das

almas, é o desmentido solene a todas as negações e desordens do presente e do

passado.

A pessoa humana não pode morrer porque há nela uma grande força ínsita

que triunfa do nada. "E o poder que tem o espírito de descobrir as perfeições de Deus,

seria inútil sem a imortalidade. Por isso, não é a humanidade, mas a pessoa humana

que é imortal” (GOMES, 1975, p. 98).

A alma que habitou um corpo e com ele formou um ser individualizado e

distinto, não deixa este mundo despida da sua índole humana, diz Cunha Seixas, não

ascende ao seio da divindade como mero espírito abstrato, desligado em toda a sua

herança terrena: é a própria pessoa que com ela se eleva às ignotas regiões etéreas,

transportando consigo toda a sua história terrestre, a responsabilidade e a memória do

passado para sofrer ou gozar os efeitos do vício ou da virtude.

O homem, participando tanto da unidade e imaterialidade - divindade -

como da multiplicidade e divisibilidade - materialidade - encontra sua salvação no

desenvolvimento pantiteísta de quanto existe na multiplicidade. Por isso, só no ciclo da

história o homem se realiza como homem e alarga as esferas da vida e da civilização.

A realidade humana, diz o autor, é verdadeiramente independente do viver

em sociedade e/ou humanidade, pois a pessoa é o finito que tem consciência do

infinito. O homem salva-se com os outros, mas o princípio da salvação é ele mesmo.

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No conhecimento de si mesmo, aprendendo o ser dos outros, o homem vislumbra os

segredos da alteridade, e procurando relacionar-se com Deus, através dos outros,

através da tríade que, trina mas uma, corporiza a justiça (verdade, bondade e beleza).

Ao homem cabe realizar a sua parte no conhecimento e na comunicação do

que é verdadeiro, do que é belo e do que é bom, para que no exercício histórico consiga

a catarse filosófica e, em cada finita medida, logre vislumbrar a infinita inefabilidade,

que é justiça porque é verdade, e é verdade por ser justiça.

1.4 TEODICÉIA

Para Cunha Seixas, o problema da prova da existência de Deus se apresenta

vão e sem sentido. Deus revela-se constantemente ao homem através das leis da razão,

que estando em nós e manifestando-se na vida e na ordem universal tem a sua origem

no próprio espírito divino. Como Deus se revela a todo instante, é indispensável pedir

provas da sua existência; tal revelação é a prova inequívoca da sua existência.

Não sendo uma criação do espírito, mas exigência necessária da própria

realidade, sua essência só pode ser alcançada pelos dados da existência, por isso, o

instrumento mais correto para se chegar a ideia de Deus é a razão e não a crença.

Contudo, o conhecimento que o homem tem da natureza divina e seus atributos

infinitos é limitado e só os atingirá usando precários meios lógicos e partindo da

manifestação do infinito na realidade física.

Para Cunha Seixas nós vemos em Deus o gerador dos mundos, a unidade de

onde surge a existência de todos os seres; nós vemos nele a lei que está escrita no

universo.

Os céus revelam a glória de Deus porque obedecem a uma sabedoria

que se manifesta e que nos dá o sentimento de religiosidade que nos transporta

ao divino. Deus é para nós, por um lado, um ser que a todo momento

afirmamos, por outro, é um ser de natureza inteiramente impenetrável, cuja

essência nos está oculta. Todo ser que se deixa explicar, todo ser que se sujeita

à nossa análise é um ser limitado e, portanto, não é o ser supremo. Na natureza

de Deus nós não penetramos, apenas percebemos de alguns seus atributos que servem de guia e luz para a ciência humana. Por isso, a incompreensibilidade

de Deus não é absoluta, mas é real! (idem, p. l03).

Assim, da natureza de Deus, que sempre nos queda oculta, sabemos tão

somente ser ele absoluto, onipotente e perfeito, imutável e uno. Se considerarmos a sua

manifestação na criação e nas leis do universo, alcançaremos saber que o seu atributo

fundamental é o ser infinito, da qual deduzimos a eternidade e a imensidade, a

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onisciência e a onipresença, a liberdade e a providência. Por fim, diz Cunha Seixas, se

atentarmos em que nele está a fonte da harmonia, que a conservação do universo e a

sua ordem espiritual nos tornam patentes, poderemos saber que os seus atributos

supremos são a verdade, a bondade e a beleza.

Mas se ideias são em Deus e estão em nós (pantiteísmo), o homem tem

realidade e avista outra realidade suprema que é Deus. Por isso, as provas da existência

de Deus, para Cunha Seixas, são trabalhos filosóficos para o sistema científico e não

uma demonstração, visto que a existência de Deus como princípio é de evidência

indemonstrável; a evidência impõe-se, não se demonstra.

No plano da Filosofia da Religião o pantiteísmo vai ainda mais longe. Além

de recusar o conteúdo sobrenatural ao cristianismo e negar a divindade de Jesus; de

considerar infundado do dogma da trindade, e falsas e figuradas as ideias de queda e de

pecado original, Cunha Seixas afirma a inferioridade da fé e da crença face ao

pensamento filosófico, ao mesmo tempo em que repele a noção de milagre em nome da

fixidez e permanência da ordem universal e da imutabilidade das suas leis, nas quais se

manifesta em infinita sabedoria do seu divino autor.

Para Cunha Seixas, Deus é causa primeira de tudo o que existe, e mesmo

não sendo possível saber como se manifestou, podemos postular uma identidade entre

ele e o mundo criado, representada pela existência ou ser, através da qual estabelece

uma ligação indeterminada entre o Absoluto e o universo, relação que a passagem dos

seres da simples possibilidade à realidade da existência dota da máxima determinação.

Assim, o mundo, como resultado da manifestação divina, é como que sua

sombra, na qual se projetam as idéias-elementos, matrizes de toda a criação. Deste

modo, o ser supremo, uno na sua natureza, revela-se múltiplo na sua manifestação e,

permanecendo uno e transcendente, está em todo o universo que nele existe e se

desenvolve dinamicamente, se bem que com ele não se identifique jamais.

Desta forma, imanência e transcendência conciliam-se sem se confundirem

nem se absorverem mutuamente, antes coordenando-se por via ascendente no seio de

uma unidade superior, fonte de todo o ser, todo o movimento e toda a harmonia.

A realidade é então, radicalmente, dual: de um lado, embora intimamente

unificada pela sua origem divina, manifesta-se-nos uma substância desconhecida, sob

a multiplicidade varia do fenômeno sensível e a pluralidade de formas coexistentes no

espaço; do outro, surge-nos a unidade incindível do espírito, o reino imaterial do

pensamento, da moral e da religião.

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CONCLUSÃO

O Pantiteísmo em Cunha Seixas é um espiritualismo guiado pelo

entendimento de que "Deus está em tudo", que ele é o motor imóvel, princípio e fim.

Em tudo que existe ele está, mas este tudo não se identifica com ele. Difere, portanto,

do panteísmo para quem "tudo é Deus" e do panenteísmo que afirma "tudo está em

Deus".

Ao postular o absoluto, não deixa de aceitar a realidade do mundo material

onde Deus se revela a todo instante, não existindo por isso mesmo a necessidade de

provar a sua existência, a sua revelação é a prova indispensável e inequívoca de sua

existência. Todavia, a divindade não se revela ao homem rapidamente, mas através de

uma evolução progressiva, através da razão, até atingir o belo, o justo e o bem

supremo, Deus.

Para o pantiteísmo de Seixas, somente na metafísica existe universalidade.

Ela abrange o mundo, o homem e Deus, como verbo do próprio Deus. Como ciência

da unidade geral, a filosofia pantiteísta é geradora das ciências e todo o seu sistema se

funda em três leis: a do ser, a da manifestação e da harmonia. Estas leis podem explicar

toda a ciência humana porque envolvem toda a História da Filosofia.

No pantiteísmo, o ponto de partida de todo o conhecimento humano do

ponto de vista subjetivo, é o pensamento e, do ponto de vista objetivo, a ideia de ser. E

as ideias como pressuposto e condição primeira do saber humano são de três espécies:

experimentais, reflexivas e racionais, sendo a natureza da terceira ordem de ideias que

possibilita e garante o conhecimento. A religião depende da filosofia e da ciência

porque o excesso de religiosidade nos afogaria em Deus.

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REALIZAÇÃO DA LIBERDADE EM KANT

1 LIBERDADE TRANSCENDENTAL

Ao fundamentar o conhecimento científico, principalmente da Física e das

Matemáticas, Kant se dá conta de que como o objeto da metafísica não nos é dado nas

intuições puras de espaço e tempo, condições de possibilidade de todo conhecimento, a sua

realização se torna impossível via razão teórica, isto é, através da razão pura. A possibilidade

da ideia de um mundo inteligível vai surgir, no entanto, na terceira antinomia da Crítica a

Razão Pura, cabendo à razão prática a sua realização. Essa possibilidade de realização da

metafísica foi entrevista no terceiro conflito das ideias transcendentais exposto por Kant

através de tese e antítese. Nelas a possibilidade da metafísica está na liberdade, cuja

necessidade é encontrada através da causalidade, senão vejamos:

Tese: “a causalidade segundo leis naturais não é a única de onde podem ser

derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela

liberdade que é necessário admitir para os explicar".

Antítese: Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude

das leis da natureza (KANT, 1994, p.406/407).

Se admitirmos que tudo acontece unicamente pelas leis da natureza, haverá

sempre apenas um começo subalterno, nunca um primeiro começo. E aí estamos na esfera do

"condicionado", onde tudo que acontece é determinado pelas leis naturais, havendo sempre

um começo subalterno sem nenhuma integridade na série das causas que provenham umas

das outras. Ora, se a

Lei da natureza consiste precisamente em nada acontecer sem uma causa

suficiente determinada a priori, a proposição de que toda causalidade só é possível

segundo leis naturais se contradiz a si mesma em sua universalidade ilimitada e não

pode, pois, considerar-se que esta causalidade seja a única (ibdem).

Por isso, é preciso supor uma causalidade absoluta que comece por si mesma uma

série de fenômenos que se desenvolvem segundo leis naturais. Encontramo-nos na esfera do

incondicionado - sua causa não procede de outra. Assim, a razão exige, segundo Kant, a

"espontaneidade absoluta", ou seja, a "Liberdade Transcendental" contrária à lei de

causalidade; por conseguinte, um encadeamento de estados sucessivos de causas eficientes.

Ora, se a liberdade transcendental como causalidade absoluta, pode começar por si um estado

e, portanto, uma série de consequências do mesmo, esta série só poderia ocorrer "fora do

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mundo", pois não seria lícito atribuir ao mundo tal faculdade às substâncias, pois

desapareceria em sua maior parte o enlace dos fenômenos que se determinam uns aos outros

segundo leis universais e, com ele, o "caráter de verdade empírica" que distingue o sensível

do inteligível, ultrapassando todas as leis do conhecimento possível”.

Segundo Kant,

Só na natureza podemos, pois, procurar o encadeamento e a ordem dos

acontecimentos no mundo. A liberdade (a independência) em relação às leis da

natureza é, sem dúvida, uma libertação do coração mas é também uma libertação

do fio condutor de todas as regras. Com efeito, não pode dizer-se que as leis da

liberdade, na causalidade do curso do mundo, tomem o lugar das leis da natureza, pois se a liberdade fosse determinada por leis, não seria liberdade, seria tão-só

natureza (ibdem).

Tanto a tese quanto a antítese são verdadeiras. Por isso mesmo a Antinomia não

encerra nenhuma contradição, visto ajustar-se a tese ao plano inteligível (pensar) e a antítese

ao plano sensível (conhecer). Através da tese Kant pretende afirmar o "quod" dessa

faculdade, sem pretender conhecer o “como" desta causalidade.

Podemos pensar a existência inteligível, porém não podemos conhecê-la. Tal ato

de espontaneidade não ocorre no mundo empírico, mas deve ser demonstrado nas ações

humanas. No plano empírico a liberdade é incognoscível, ela ultrapassa o dado na intuição,

não corresponde a nenhuma categoria, por isso, não pode ser unificada pelo "Eu penso". Esta

causalidade livre é independente de toda causalidade natural, e, como tal, foge ao âmbito da

razão teórica. Por isso, a terceira antinomia não nos leva diretamente à liberdade, mas deixa o

caminho aberto para ela.

A tarefa da razão teórica não é ocupar-se da possibilidade nem da realidade da

liberdade, mas apenas referir-se às ações em qualquer situação que aconteçam à

possibilidade de uma autodeterminação espontânea, isto é, a causalidade por

liberdade. Se a crítica especulativa não deixasse campo aberto à realidade prática da

liberdade, os resultados da Crítica da Razão Prática não poderiam coincidir com a

razão teórica (HERRERO, 1975, p. 20).

A razão chega à ideia de liberdade transcendental por exigência da explicação do

incondicionado. Mas, como a esta ideia não corresponde nenhum objeto, sua exigência de

totalidade não alcança o real. Se a razão não pode determinar o real que lhe é dado, nem

encontrar a realidade correspondente à sua necessidade de determinação absoluta, surge a

possibilidade de produzi-lo. Para encontrar-se a si mesma e chegar a seu fim, a razão deve

fazer-se prática e sua tarefa será, então, encontrar os princípios determinantes da vontade que

deverá produzir os objetos correspondentes às suas representações. A razão deve ser

considerada agora, não em relação aos objetos, mas em relação à vontade e à sua causalidade

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para ver como a vontade pode produzir seu objeto total e qual é este objeto.

Segundo Kant, em seu uso prático os princípios da razão pura têm realidade

objetiva, e a união da razão especulativa com a razão prática mostrará além da comunidade do

sistema, que o "interesse" supremo da razão é prático. Assim, o interesse de cada faculdade da

razão é determinado pela "intenção", e seu uso prático se estende além do âmbito da razão

especulativa porque o homem, como sujeito livre não é só membro de um mundo sensível,

dominado pela causalidade, mas, também, de um reino de fins (mundo moral), que é

inacessível no campo teórico, mas que decide seu destino. Por isso mesmo,

O homem a partir do seu fim último poderá realizar também a unidade final

de todas as coisas. E o único pressuposto é que a razão teórica seja prática e possa

julgar sobre os princípios a priori, tanto do ponto de vista teórico como prático.

Assim, o primado da razão compete a seu use prático (idem, p, 23).

2 A LIBERDADE COMO CONDIÇÃO DA LEI MORAL

Como os princípios da razão não podem estender-se além da experiência possível,

o conceito de liberdade é em Kant, a "peça chave” para a construção de todo sistema

metafísico. Ele permite larguear a filosofia, dando a metafísica um fundamento real. Até aqui

a liberdade foi pensada mediante a categoria de causalidade que pertence à classe das

categorias dinâmicas e que não exigem a homogeneidade entre condicionado e

incondicionado, visto só tratar-se aqui de pensar como a existência do condicionado é

derivado do incondicionado. Por isso perfeitamente possível, na ordem da causalidade,

romper a continuidade da experiência sensível e admitir um incondicionado supra-sensível. A

partir daí a categoria de causalidade permite pensar sem contradição

a reunião da causalidade, como liberdade, com a causalidade enquanto mecanismo

da natureza, estabelecendo-se a primeira pela lei moral e a segunda mediante a lei

natural, num só e mesmo sujeito, o homem, é impossível, sem representar este, na

relação à primeira, como ser em si mesmo, mas relativamente à segunda como

fenômeno, aquele na consciência pura, este na consciência empírica. Sem isso é

inevitável a contradição da razão consigo mesmo (KANT, 1994, p.14)

Para que esta possibilidade se transforme em realidade basta, segundo Kant,

"poder provar num caso real, como por um fato, que certas ações pressupõem uma tal

causalidade, sejam elas reais ou unicamente prescritas, isto é, necessárias, objetivas e

praticamente" (ibdem). Este caso é encontrado na moralidade que nos conduz diretamente ao

conceito de liberdade.

Com isto, entramos na doutrina do "Faktum" da razão. O conhecimento moral

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tem uma índole toda especial; trata-se de um saber que é conhecimento, mas totalmente

diferente do saber teórico visto que a necessidade implicada no "dever" é absoluta, e a

necessidade do conhecimento sensível é condicionada, tanto assim que os

objetos poderiam ter sido outros. O dever moral, entretanto, manifesta-se numa necessidade

absoluta, pois, ainda que este dever não seja realizado, a incondicionalidade permanece com

a mesma força. O homem sabe que suas ações não só se realizam segundo leis, mas que deve

obedecer a estas. A possibilidade de ser de outra maneira é excluída.

Desta forma, podemos explicar o fato de duas maneiras: podemos dizer em

sentido negativo que a origem do fato está na impossibilidade de entender a exigência moral

a partir de uma primeira certeza do pensamento. Se teoricamente não se pode explicar a

exigência moral, devemos aceitá-la como pura fatalidade; em sentido positivo podemos

dizer: se o fato mostra uma incondicionalidade total, ele tem que estar na razão.

Para Kant, "fatos" são objetos para conceitos cuja realidade objetiva se pode

provar, seja por razão pura ou por experiência. No primeiro caso, a partir de dados teóricos

ou práticos da razão, porém em todos os casos mediante uma intuição correspondente a eles.

O fato do dever não pode conter nenhuma relação com o sensível, por isso, é um

fato diferente, nada sensível pode fundamentá-la. Assim, o lugar próprio deste fato tem que

ser a razão e o princípio da moralidade só pode estar na razão pura que é o lugar da

necessidade. Desta forma, a "Consciência Moral" é o único fato da razão pura prática.

Este fato, no entanto, não é algo dado previamente como as coisas da natureza ou

a própria existência natural, o que é dado é uma exigência absoluta do bem incondicionado.

É um evento pelo qual o homem percebe a incondicional idade de sua existência. Isto é, eu

percebo minha existência humana como devendo realizar-me absolutamente conforme minha

razão.

Daí a formulação da lei fundamental da razão pura prática ou lei moral: "Age de

tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio

de uma legislação universal" (idem, 1994, p. 42).

3 LIBERDADE COMO DEVER SER

A consciência moral, como nos diz Herrero, mostra-nos a liberdade, e o dever, o

poder. Não existe aqui dedução lógica: devo, logo posso; se assim fosse, estaríamos

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novamente no campo da razão especulativa e a conclusão seria outra ilusão, por não

corresponder a nenhum objeto da experiência. O “se devo, posso" é apenas a explicação do

mesmo dever, pois o dever como lei moral é lei da causalidade por liberdade. Desta forma, a

lei moral é a primeira que se apresenta a nós e nos conduz diretamente ao conceito de

liberdade. Neste sentido a liberdade pode chamar-se também ele "Faktum" porque este fato

está indissoluvelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, mais ainda é com ela,

uma só coisa.

Pela lei moral a ideia de liberdade recebe realidade objetiva, é lei para si mesma

e prova sua realidade através de suas ações na natureza. O dever como fundamento por si

mesmo é traduzido num querer operante no mundo da natureza que lhe dá realidade mediata,

mas não expressa uma realidade acabada, senão como algo a realizar-se. Seu sentido é

eminentemente dinâmico e, na medida em que este dever é realizado, a liberdade toma

consciência de si mesma.

O sentido do "Faktum" e de sua incondicionalidade é que: se o homem é

interpelado "em" e "com" sua espontaneidade, a liberdade não lhe é dada como realidade ou

qualidade natural, mas lhe é imposta; esta imposição não é externa, pois a obrigatoriedade

provém da razão. Ao determinar a vontade, a razão se faz prática, porque através do dever ela

verifica que tem de agir se quiser alcançar a verdade para a qual está orientada. Daí a

afirmação de Kant:

A vontade e a razão prática são a mesma coisa: só um ser razoável tem a

faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo princípios ou uma

vontade. Como para a dedução de ações por leis, se exige a razão, a vontade não é

outra coisa que razão prática (idem, p. 30).

A lei da razão impõe, à liberdade, absoluta realização. Neste sentido, o homem

não é livre, mas "deve ser livre". Esta coação moral não destrói a autonomia do homem

porque emana da razão. Assim, a autonomia é pensada por Kant como negação de toda

determinação vinda de fora, o que eliminaria a vontade como vontade. A autonomia está em

oposição à heteronomia. A vontade é autônoma quando dá a si mesma a lei; é heterônoma

quando recebe passivamente a lei de algo ou de alguém.

A autonomia mostra que o homem tem em si a possibilidade de ser livre de toda

dependência diferente de sua razão. O homem realiza sua essência em obediência à lei moral,

sendo que esta obediência só é realizada quando o homem se apropria dessa lei como lei de

sua vontade, isto porque só entendemos realmente aquilo que produzimos. Por esta autonomia

o homem é pessoa e se torna membro do reino moral. Esta autonomia, no entanto, só pode ser

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pensada como obediência: "dever e obrigação são as apelações que temos que dar à nossa

relação com a lei moral" (idem, p. 32).

Somos, assim, membros legisladores de um reino de costumes possíveis por

liberdade, mas somos ao mesmo tempo os súditos e não o soberano dele. A autonomia da

razão pura prática não é mais que a conformidade com a lei moral e não há liberdade senão

em relação à lei moral que deve ser realizada na existência do homem precisamente em

liberdade.

Ser livre é essencialmente "dever ser livre". Qualquer ato de vontade apresenta-se

à razão sob a forma de um imperativo ou mandamento, que pode ser hipotético: quando

determina as condições da causalidade do ente racional como causa eficiente só a respeito do

efeito e suficiência para ele mesmo, isto é, que sujeita o mandamento ou imperativo a uma

condição. Ex.: Se queres ser bom aluno, estuda. Como podemos verificar, o imperativo está

limitado a uma condição. É subjetivo. E categórico: quando determina a vontade, seja

suficiente ou não para o efeito, o imperativo é absolutamente incondicional.

A lei como necessidade é dada no imperativo categórico que expressa a exigência

de legislação universal. O imperativo contém além da lei a necessidade de ser conforme esta

lei. Daí a formulação do imperativo categórico: “Age de tal modo que possas querer que a

máxima que te levou a agir assim, seja uma lei universal". (KANT, 1968, p. 24).

Para que a lei se torne aplicável ao comportamento humano, se faz necessário a

utilização do entendimento como mediador. Esta dimensão do entendimento é representada

pela faculdade de julgar. A vontade não pode querer sem querer algo, este algo constitui o fim

da vontade, pois nenhuma vontade pode existir sem um fim.

4 REALIZAÇÃO DA LIBERDADE

Como a lei moral é autônoma em si mesma, é ela o único fundamento de toda

determinação da liberdade, e o homem como sujeito desta lei tem em si mesmo um valor

incondicionado. Porém, a moral deve ter em vista o homem como um todo, isto é, dotado de

razão e sensibilidade.

A lei assume na presença da sensibilidade a forma de um imperativo, e todo ato

livre para ser "bom moralmente" deve ser realizado por "dever". Assim, o mundo da razão

não é só diferente do mundo sensível, mas também lhe é superior. O mandamento moral

ordena a subordinação das inclinações humanas à razão. E o móvel da ação moral é o

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"respeito pela lei", isto é, o sentimento moral que é produzido unicamente pela lei moral.

Entretanto, a lei moral ao determinar a vontade, nega toda pretensão das

inclinações do homem de constituir-se princípio determinante da ação, suscitando, assim, um

sentimento de "dor" que é chamada por Kant de "humilhação"; este efeito da lei é negativo e

possui duas facetas: se toma a forma de "amor próprio", a lei moral lhe opõe resistência

submetendo-o à condição de concordar com ela; se toma a forma de "presunção",

simplesmente a destrói ocasionando-lhe um "dano infinito". No entanto, a lei moral é algo

positivo e como tal exerce influência positiva.

O homem ao comparar a lei moral com suas tendências naturais, sente-se

humilhado, esta humilhação provoca, segundo Kant, um efeito sobre o sentimento; como o

ato de eliminar um impedimento à lei é julgado pela razão como ação positiva da causalidade,

a lei moral é subjetivamente uma causa de respeito e se torna móvel da ação.

Com essas colocações foi fundamentada a moral em seus princípios autônomos.

Mas como a moral se basta a si mesma, a filosofia da liberdade não terminou sua tarefa. Sua

tarefa propriamente dita tem seu início na questão do “dever ser” do homem no mundo. Isto

não só porque na experiência humana o que se nos apresenta em primeiro lugar é o mundo

que nos circunda, nossa sensibilidade, mas sobretudo porque este “dever ser” da liberdade no

mundo tem que ser possível, do contrário o “dever ser” absoluto seria em si mesmo absurdo.

O “dever ser” da liberdade é um dever que se nos impõe independentemente do mundo, mas

para que tenha sentido deve harmonizar-se com ele.

5 OBJETO DA VONTADE

O homem tem que determinar fins para as suas ações apesar de ter fundamento

suficiente na lei moral. Segundo Kant, esta é uma limitação da natureza. Demais disso, o

homem, além de pertencer ao mundo inteligível, pertence também ao mundo sensível.

O homem que é fim em si mesmo porque é sujeito da lei moral, não precisa

procurar fora de si o que constitui sua incondicionalidade. Este fim em si não é um fim que a

vontade deve produzir, mas caracteriza a existência de um ser razoável e livre. Ele é

simplesmente sujeito da moralidade, pode utilizar todas as coisas como

meio mas não pode ser usado como tal. Se ele tem em si mesmo o fim da existência, esta

deve ser pensada como "fim último", desta forma, o homem como fim em si é "fim último"

de sua existência. Não esqueçamos que para Kant, fim "é o conceito de um objeto enquanto é

visto como a causa desse objeto, como fundamento real de sua possibilidade" (idem. P. 55).

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Para que o fim seja real, tem que ser primeiro intencionado; a representação

precede a realização. A experiência primeira do que significa finalidade a temos em nós

mesmos. Que de nossa ação surge um efeito é evidente por si mesmo, pois

a liberdade como causalidade intelectual de começar por si mesma uma série de fenômenos

no mundo, não pode ser determinada sem ter um fim. Se a vontade sabe como deve agir, mas

não sabe para que deve agir, não satisfaz a si mesma. Desta forma, à ação moral pertencem

fins, no entanto, nem todo fim é moral. Um fim subjetivo proposto pelo homem

arbitrariamente não pode ser moral, pois se é a incondicionalidade que caracteriza a moral, o

fim moral tem que ter um caráter incondicional, que é, por sua vez, dever prescrito pelo

imperativo categórico.

Pela doutrina dos fins, a lei moral recebe seu conteúdo positivo. A exigência

fundamental moral determina lodo querer c agir do homem com seus semelhantes c com o

mundo, surgindo daí o que Kant chama de "reinado dos fins". Todos os fins conduzem

necessariamente ao conceito de um "fim último" que contém a condição indispensável e

suficiente de todos os fins. Este fim último, objeto da vontade, poderá ser o Bem ou o Mal.

Pelo primeiro se entende um objeto necessário da faculdade apetitiva; e pelo segundo, o de

uma faculdade de repulsão, ambos possíveis no mundo pela liberdade.

Sabendo que o fim último da ação a que se propõe é o Bem ou o Mal pode agora

o arbítrio humano satisfazer-se, pois encontra no efeito de sua ação uma satisfação, e tem nele

um interesse. Como todo interesse produz uma necessidade, o interesse pelo efeito produz a

necessidade dele.

Todavia, para que um fim seja moral "tem que ser desinteressado e a

necessidade de um fim último, imposto pela razão pura e compreendendo o todo de

todos os fins debaixo de um princípio, é uma necessidade da vontade desinteressada

que se estende sobre a observância das leis formais até a produção de um objeto, o Bem ou Mal. Como a ação moral tem que ser realizada no mundo, a lei moral nos

impõe o dever de tornar esse mundo adequado aos supremos fins morais (idem, p.

59).

Em decorrência disso Kant propõe uma outra formulação para o imperativo

categórico: "cada um deve propor-se como fim último o Supremo Bem possível no mundo".

(idem, p. 60).

O dever de promover o Supremo Bem não impõe propriamente a obrigação de

realizá-lo plenamente no mundo, senão que o homem se lhe proponha como fim último de

toda sua atividade, isto porque o dever pode encontrar dificuldades que obstem a sua plena

realização.

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O dever de promover a Suprema Bem é uma proposição prática sintética a priori.

É prática porque é dever; sintética porque não se deduz analiticamente da lei, mas provém de

seu alargamento diante da necessidade natural da homem de pensar para sua ação um fim

última; e a priori porque o fim é desinteressado e recebe sua incondicionalidade só da lei.

A ideia de fim último não tem realidade objetiva, mas, um significado

prático. Enquanto é um “dever” a realizar, adquire realidade objetiva prática no

mundo. Assim, podemos dizer que o Supremo Bem surge da aplicabilidade da lei moral como fundamento de determinação à teologia de uma vontade finita e é o

supremo fim de nossa ação a projetar no mundo (idem, p. 61).

Como o Supremo Bem deve ser realizado no mundo, teremos de ver como o

mundo se presta a esta realização.

6 LIBERDADE INTERNA

A razão se basta por si mesma para a determinação da vontade, basta-se com

absoluta independência de todo condicionamento empírica e a lei moral é o fundamento único

e suficiente de determinação. A liberdade deve representar esta lei e fazer dela a única

máxima de sua ação. Esta lei caracteriza-se como já sabemos, pela universalidade, assim, "a

primeira lei que dirige sua auto-realização no mundo, na natureza, consiste em colocar esta

natureza debaixo da lei da liberdade interna, isto é, debaixo da representação de seu dever

segunda a lei formal" (idem, p. 53).

A realização da liberdade interna dá-se na "moralidade" ou "virtude" que segunda

Kant "é a força das máximas do homem no cumprimento de seu dever", isto é, o firme

propósito do homem de resistir às suas próprias inclinações naturais. Portanto, a liberdade

interna só é passível na forma de moralidade que é a condição suprema de tudo a que nos

possa parecer bom e desejável. E a "Virtude" é o "Bem Supremo".

O Supremo Bem é uma ideia em que a totalidade incondicionada dos fins morais

é pensada debaixo de um princípio; nele a razão busca o incondicionado para todo

condicionado. O homem tem por natureza, como ser sensível que é, bens que influem

inevitavelmente em seu querer. E a liberdade finita enquanto afetada por inclinações sensíveis

aspira necessariamente à "Felicidade" e o “Supremo Bem” não poderia ser objeto total da

vontade se não tivesse contido nele a felicidade do homem. No fim último está representada

além da moralidade a felicidade, não como fundamento de determinação da ação, mas como

consequência da ação moral.

Todavia, "o Supremo Bem de uma pessoa só é possível no Supremo Bem de

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todos, logo a felicidade conforme a cada um, universal e unida no todo do mundo com a

moralidade, constitui o “Supremo Bem” consumado, possível no mundo, fim último do

homem. E o objeto completo da ação da liberdade finita é a unificação da liberdade e natureza

segundo a lei da liberdade" (idem, p. 2.) Assim, através da conexão de seus dois elementos -

moralidade (virtude) e felicidade - o Supremo Bem alcança sua realização.

7 LIBERDADE EXTERNA

O homem como sujeito da lei moral é autônomo e deve realizar sua liberdade

segundo a lei interna da razão, com independência total da natureza. Não pode ser obrigado

por nenhuma outra lei senão a que a razão lhe prescreve, pois deve ser livre e tem direito

inviolável a esta liberdade, e qualquer outra interferência é um atentado à dignidade humana.

No entanto, este "dever ser" deve realizar-se em comunidade com os outros

homens. Daí o surgimento de uma relação entre os diferentes seres autônomos. Esta relação

tem em vista apenas a ação externa do homem, assim, a lei que deve regular a coexistência das

liberdades se refere só à ação efetiva e não ao móvel da ação. Se por um lado o homem só

pode e deve obedecer a sua lei interna, por outro, seu relacionamento com os demais exige

uma lei que encime as liberdades individuais, do contrário não poderia ser prescrito a

coexistência entre eles.

Referindo-se a ação externa, ao livre arbítrio, a lei que regula os livres arbítrios é a

lei da liberdade, e a condição de possibilidade de coexistência dos livres arbítrios é a

submissão à lei universal de liberdade donde procedem todos os deveres e direitos do homem.

O primeiro direito originário é, segundo Kant, a liberdade. É um direito nato enquanto

subsistente com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal.

Todo homem possui o direito de coexistir com os outros segundo uma lei

universal e, no que se refere às ações externas, todo livre arbítrio pode relacionar-se com os

outros na medida em que todos se submetem a uma lei universal da liberdade. Mas, por

outro lado, esta coexistência é passível de coação externa porque o Direito não prescreve o

móvel da ação que constitui a própria e verdadeira moralidade, a coação será dirigida contra

uma arbitrariedade que possa surgir e não contra a liberdade. Isto se confirma pela definição

de liberdade externa formulada por Kant: "faculdade de obedecer apenas às leis que eu tenha

dado assentimento".

Assim, a liberdade externa só pode realizar-se na forma de Direito que é,

segundo Kant, "a limitação da liberdade de cada um à condição de sua concordância com a

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liberdade de todos enquanto esta é possível segundo uma lei universal" (idem, p. 161). O

Direito regulando a relação dos livres arbítrios deve garantir a liberdade de cada um e a

igualdade de todos perante a lei. Essa união só pode ser conseguida numa sociedade onde se

encontre a maior liberdade possível.

Para a realização da liberdade de todos por leis externas, a sociedade deverá

reger-se por uma Constituição Civil justa que seja a expressão de uma vontade pública,

fonte de todo direito e exclusão de toda injustiça, lei chamada por Kant de "Contrato

Originário". Da ideia de contrato originário deriva, para Kant, a Constituição Republicana

que surge do Direito e é, portanto, um dever das sociedades realizá-la.

Para que a forma de governo seja conforme ao conceito do Direito deve ser

"Representativa". Por isso, a razão quer e prescreve que todos os membros livres de um

povo se unam debaixo de leis jurídicas justas e de coação numa Constituição Civil, única

que pode garantir a liberdade de cada um e a igualdade de todos.

Finalmente, as relações entre os diversos Estados deveriam ampliar-se até o

submetimento de todos em uma "Constituição Cosmopolita" segundo a ideia de um Direito

também Cosmopolita. Esta ideia complementa o Direito Civil e o Direito das Gentes na

ideia de um Direito Público de homens livres em geral. Assim, o Direito que surge do

conceito de liberdade só é consumado na elaboração de uma Constituição Cosmopolita,

única que pode garantir a paz perpétua.

A realização da autonomia do homem na situação concreta histórica é o dever

incondicionado prescrito pela lei moral que abrange toda ação do homem. No âmbito

externo, esta tarefa significa o dever de realizar o estado de direito no qual o conflito das

liberdades encontra sua expressão e seu pleno desenvolvimento. Produzir este estado de

direito é o objeto da ação externa humana pela a liberdade se realiza como liberdade externa.

A paz universal e perdurável, meta de todo direito público, não constitui só uma parte, mas todo o fim último da doutrina do Direito nos limites da plena razão,

pois, só o estado de paz assegura o livre ser e agir comum dos homens unidos

numa Constituição... Assim, o objeto da liberdade externa pode ser designado de

"Soberano Bem Político”, por constituir como talo âmbito da ação política. (idem,

p. 165)

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A realização da liberdade em Kant tem de pressupor-se como propriedade da

vontade e implica, fundamentalmente, na autonomia da vontade entendida esta como uma

espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais. Não basta que atribuamos

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liberdade à nossa vontade, é preciso termos também razão suficiente para atribuirmos a todos

os outros seres racionais.

A Liberdade, que tem por objeto o Supremo Bem e o Soberano Bem Político, ou

comum, alcança seu fim último, respectivamente, através da realização da:

a) liberdade interna - expressa através da "moralidade" ou "virtude" como forças

das máximas do homem no cumprimento de seu dever, ou seja, como firme propósito do

homem de resistir às suas próprias inclinações naturais;

b) liberdade externa – expressa pela coexistência humana segundo uma lei

universal da liberdade de todos os outros homens. ´

A liberdade é, segundo Kant, o primeiro direito originário do homem.

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133

O REPUBLICANISMO DEMOCRÁTICO

INTRODUÇÃO

Segundo Luís Washington Vita, a história das ideias políticas no decorrer do

século XIX caracteriza-se por uma atitude combativa entre os princípios da Revolução

Liberal e os da Tradição Monárquica. Em decorrência disso, surgem da ala radical do

Liberalismo os primeiros republicanos.

Constituídas as nações, dentro delas se levantam os grupos e não mais as escolas

ideológicas, dando origem aos partidos que lutam entre si como antes ocorria entre os países.

Assim, os que sentem e meditam no século XIX, encontram-se diante de duas situações "a

consciência e a ideia de segurança e a consciência e a de crise". (VITA, 1965, p. 68). Desta

forma, não é por acaso que nos anos quarenta do mesmo século vão surgir o Curso de

Filosofia Positiva de Comte (1842) e o Manifesto Comunista de Marx (1848). Procurava-se

uma maneira de manter a ordem já que o regime se apresentava inconsistente, levando a

humanidade à contemplação de seu mundo, como incerto e crítico.

Em seu conjunto, o século XIX pode ser considerado o século de tradição

revolucionária; do debate entre a tradição e a revolução. Os contra-revolucionários apelam à

teologia em substituição a filosofia iluminista; desconfiando da razão voltam-se para o

passado, mas, afinal, o vencedor seria o positivismo: "desprezo pelo que foi, sonho pelo

porvir, famosa ilusão de uma era de progresso – dentro da ordem! - para a Humanidade"

(idem, p. 69).

O Brasil, que no entender de Luís Washington, captava na Europa as suas

categorias mentais e acompanhava de perto os problemas políticos que lá ocorriam, não

poderia ser exceção nesta atmosfera ideológica. Daí o advento do regime republicano não ser

mera consequência de uma rebeldia militar, mas o fruto amadurecido de um amplo debate e

intensa propaganda.

Contra este ponto de vista coloca-se Oliveira Vianna, tachando de grande

equívoco afirmar "que o ambiente do país anterior ao golpe de 15 de Novembro, era

universalmente republicano", porquanto, a seu ver, "não havia tal generalização de

sentimento republicano, quando se deu a queda do Império. Por essa época, o sentimento

mais generalizado não era o da crença na República, mas sim o de descrença nas instituições

monárquicas, tais como existiam na Constituição e eram praticadas no centro do Governo;

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mas o certo é que essa descrença na monarquia não importava necessariamente a existência

do sentimento contrário - de fé na República, visto que o ideal republicano precisava ainda

de prestígio sobre a população e aumentar seu campo de ação que ainda era muito reduzido

(idem, p. 70).

Para Luís Washington, Oliveira Vianna exorbita, distorcendo a realidade histórica,

pois dizer isto é o mesmo que afirmar que a República caiu do céu.

Entre os ideólogos da República, os positivistas eram os únicos para quem a

crença no ideal republicano tinha uma base filosófica sólida. Surgiram no Brasil para

preencher uma lacuna aberta em nossa cultura pela ausência de uma filosofia elaborada

racionalmente e segundo critérios seguros. "Era uma concepção do universo e dos valores,

construída sistemática e rigorosamente, e ao tempo, irrefutável" (idem, p. 71). Esta

circunstância explicará a paradoxal existência de adeptos, ao mesmo tempo da monarquia e

do positivismo.

É preciso nos diz Vita, distinguir rigorosamente o positivismo “ortodoxo" do

positivismo "heterodoxo", o primeiro representado pelos "apóstolos" - Miguel Lemos e

Teixeira Mendes - e o segundo integrado pelos liberais que procuraram conciliar Comte com

Spencer, entrando por isso mesmo, em divergências.

As razões da divergência entre positivistas e republicanos são

explicadas por Miguel Lemos em carta dirigida ao diretor da Gazeta da tarde. Diz ele: “não

aderimos nem poderíamos aderir a diretório algum (republicano) porque temos uma

organização própria, ideias próprias e métodos próprios; temos o nosso sistema político, a

nossa disciplina, e até a nossa hierarquia, tudo isto fundado em doutrinas inteiramente

diferentes das adotadas pela maioria do partido republicano. A nossa pretensão (a ligação com

o diretório político republicano do Rio de Janeiro) baseava-se somente na comunhão de

aspirações que nos liga a outros republicanos", (ibdem), Daí a oposição dos positivistas à pura

e simples substituição do parlamentarismo monárquico pelo parlamentarismo republicano.

Para que possamos ter uma ideia da profunda divergência existente entre a

posição positivista "ortodoxa" e a de Alberto Sales, no momento em que se iniciavam os

debates das ideias que culminariam com a Proclamação da República, vejamos a opinião de

Cruz Costa que afirma ser o "modo de pensar de todos os positivistas "ortodoxos" contrário

ao parlamentarismo e francamente favorável a uma política ditatorial. Assim caracterizada a

“ortodoxia” não podia coincidir com a “heterodoxia” de Alberto Sales, cujo liberalismo

político repelia qualquer ditadura, mesmo aquela referendada por Augusto Comte" (idem, p.

72).

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Para Alberto Sales interessava apenas o núcleo científico do sistema positivista,

que seria manipulado com inteira liberdade interpretativa com finalidade explicativa do

evoluir de nossas instituições políticas e nunca em termos de apostolado, onde o positivismo

era um fim em si mesmo. É neste sentido que ele entende e segue Comte, Spencer, Stuart

Mill, Littré e Tobias Barreto, na medida em que cada um deles lhe fornece categorias

mentais que coincidiam com sua percepção das coisas.

O regime republicano representava um passo à frente e uma ruptura do "status

quo" vigente abalando, consequentemente, as estruturas econômicas, políticas e sociais

vigentes.

Neste trabalho de fundação da República, cabe aos republicanos paulistas a parte

maior, senão a ação preponderante a cada instante ou a cada passo, sempre resolutória e

constantemente decisiva. A Alberto Sales cabe, no entanto, o papel principal de doutrinador,

ideólogo, pedagogo político, armado de convicções filosóficas e políticas inabaláveis,

decidido a enfrentar a realidade política brasileira com o objetivo de transformá-la através da

educação do espírito.

1 POLÍTICA REPUBLICANA

A doutrina Republicana consistia numa crítica às instituições monárquicas,

principalmente do princípio de centralização político-administrativa, e no reconhecimento de

que o regime democrático é uma imposição da própria "evolução espontânea das instituições

publicas". Sobre estes problemas, diz Luís Washington, vão deslizar toda sua doutrinação e

sua missão evangelizadora, partindo da própria história da monarquia brasileira.

Fazendo uma análise da história da monarquia brasileira, Alberto Sales afirma

que o estabelecimento da monarquia no Brasil se deve a um simples acidente histórico. Não

coube à vontade popular a escolha do regime. Isto só ocorreu porque D. Pedro se colocou à

frente do movimento de Independência. Se dependesse da vontade popular, este não seria o

regime já que pela sua vontade, o povo brasileiro seria levado espontaneamente, pelas suas

próprias tendências, ao regime político da república. Desta forma, não se poderá dizer que a

monarquia no Brasil teve sua origem na escolha franca do povo, seu estabelecimento se deve

à vontade única de um homem.

Este regime aniquilaria de tal forma a consciência pública, que se permanecesse

por mais tempo, acabaria destruindo a pouca energia que ainda restava à nação, visto que,

nele o rei era tudo e, o povo, nada.

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Ora, se cada cidadão pode habilitar-se para exercer funções ou para chegar a

compreender mais exatamente o interesse geral, influindo direta ou indiretamente na gerência

dos negócios públicos, é evidente que o governo que pode satisfazer plenamente a todas as

exigências do estado social é aquele em que participa todo o povo: a República, onde o único

responsável pela escolha do Governo é o povo.

É ilegítimo, para Alberto Sales, qualquer poder político que tenha outra origem

ou que se adquira pelo simples fato do nascimento e se transmita pela lei de sucessão, como

se fosse um patrimônio individual, não apenas por não se fundar na soberania da nação, mas

porque a autoridade suprema é uma qualidade inerente à própria ação, e da qual ela não pode

despojar-se de maneira alguma.

Observando o desenvolvimento histórico, continua Alberto Sales, podemos

verificar um contraste admirável entre a tendência evolutiva das sociedades e o espírito de

conservação do Estado: a evolução social não acompanha o Estado, e nem este obedece

àquela. Entretanto, a humanidade sempre caminhou para a eliminação de todos os privilégios

anti-sociais, na esfera da atividade civil e política dos cidadãos, e os Governos tendem todos

fatalmente para a forma científica da República Democrática em virtude de a mesma visar à

eliminação da nobreza e divisão de castas privilegiadas, por meio do governo do povo, pelo

povo e para o povo.

Na República Democrática não há uma só parcela do poder público que não seja

conferida pela nação a representantes que ela escolhe periodicamente e que são diretamente

responsáveis pela fiel execução do mandato recebido. É a República a única forma de

governo em que é possível estabelecer-se a perfeita conciliação da ordem com o progresso.

2 CONCEITO DE REPÚBLICA E USO DA PALAVRA IGUALDADE

2.1 CONCEITO DE REPÚBLICA

A República, diz Assis Brasil, "é o governo que não se separa, que não se

distingue da nação, que é a mesma nação. É a forma de governo constituída pela democracia.

É o governo do povo pelo povo. É a forma de governo que não admite poder algum

irresponsável, perpétuo, ou irrevogável e funda-se no dogma científico da Igualdade que a

República estabelece o ideal do Governo de todos por todos, do povo pelo povo. É pela

eleição que ela realiza este ideal" (BRASIL, p. 38).

Para Alberto Sales, a "República Democrática afirma-se com respeito à

igualdade, que é sua pedra angular, e a hierarquia social organiza-se aos influxos da lei

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natural da equivalência. É a igualdade na reciprocidade". (SALES, 1885, p. 6/7)

1.2 PALAVRA IGUALDADE

Quando os republicanos afirmavam que é pela "igualdade que a República

estabelece o ideal de Governo", estavam falando não do nivelamento de todos, da negação

das faculdades e aptidões de cada um, isto de igualdade apenas teria o nome: seria o

rebaixamento das aptidões até a nulidade, ou a elevação da nulidade até as legítimas aptidões;

seria romper com o modo de ser real das causas, quebrar a ordem da natureza. A igualdade

por eles afirmada se refere ao reconhecimento do direito que tem cada um a desenvolver-se e

aperfeiçoar-se e a atingir a altura que os seus méritos lhe destinam. É também, em

consequência, a negação fundamental de todos os privilégios ou direitos inatos: de castas, de

família, etc.

A igualdade absoluta entre os homens não pode subsistir, pois que em todo

universo, composto talvez de uma matéria única, o grau de temperatura, a diferente força de

atração molecular, e a disposição interna dos átomos, apresentam, em seu complexo,

combinações que formam corpos cuja variedade é infinita, e quase se pode dizer que não há

dois que sejam iguais.

A única igualdade que pode existir é a igualdade social, isto é, que todos tenham

igual direito de desenvolver todas as forças de que foram dotados pela criação; não deve

haver liberdade para uns e coação para outros.

As leis, sendo iguais para todos, se forem boas e bem executadas, criariam a

igualdade social ou perante a lei. É certo que ainda assim existiriam as desigualdades naturais,

porque nem todos foram dotados das mesmas forças. A natureza, organizando o homem, fê-

los todos desiguais: na estatura, na força física, na força de vontade, nas paixões, na

inteligência, em tudo eles diferem; mas se não o embaraçarem as leis sociais, a vontade, a

força própria do espírito, permitirão que, com o trabalho, os homens tendam a se nivelar. O

contato entre eles aperfeiçoa os mais fracos, melhora-lhes a inteligência, cultiva-lhes a moral.

Suas ideias se transformam pela influência de outras mais sãs, a verdade as

ilumina; seus costumes se abrandam pelo esforço da filosofia moral. Isto porque, o homem

melhora-se na vida em comum; aperfeiçoa-se na sociedade, quando esta é bem constituída. O

contato íntimo entre os membros da espécie humana é e será sempre utilíssimo. Do contato

entre o sábio e o ignorante, resulta sempre o aumento de instrução deste. O que tem maior

cabedal transmite instrução ao que tem menos; o homem ignorante pode subir à procura do

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sábio, pode vir a ser-lhe igual.

O governo que divide por andares a sociedade afasta-se do plano geral da

natureza, faz degraus, apresenta anomalias. Dividir um país em clero, nobreza e povo, é

produzir um monstro; é um aborto de organização social.

O aumento de força de cada indivíduo é um aumento de força social. As forças

individuais formam, por sua reunião, a força total de um país. A comunicação fraternal entre

os homens de todas as classes amplia o círculo das ideias: entre eles se estabelece a permuta

delas. Fazer com que os plebeus não aproveitem a instrução dos sábios é aniquilar a

sociedade, é destruir, ou mais corretamente, impedir que se aumentem as forças sociais.

É isto que faz a Monarquia. Estabelece privilégios oficiais, em vez de mérito real.

Fazer isto é matar o nobre esforço individual, diminuir a força social. E os reis o sabem.

Nas Repúblicas, não há esses degraus, essas categorias, todo são cidadãos. A

classificação é natural. Todas as classes vivendo em comum, sem divisões antinaturais, todas

se auxiliam mutuamente; todos procuram a realidade, porque só ela garante um privilégio

verdadeiro, um privilégio natural.

O homem cede facilmente e sem mágoa ou constrangimento o terreno àquele que

lhe é de fato superior em força física, em saber, em inteligência. Ninguém se revolta contra os

dotes verdadeiros contra a desigualdade criada pela natureza. O que dói é a desigualdade

criada pelos homens, é o domínio da estupidez sobre a inteligência, da fraqueza sobre a força;

é a diferença que os reis estabelecem nos direitos individuais.

2.2 ISTEMA DE GOVERNO REPUBLICANO

No regime republicano, o governo da nação seria entregue a três poderes

conforme consta nas Bases para a Constituição do Estado de São Paulo:

Art. 2.° - Cabe a governação do Estado a três poderes distintos: o Legislativo, o

Executivo e o Judiciário, confiado cada um a funcionários diversos, que não poderão

acumular atribuições, quer do mesmo pode quer de outro.

Difere, deste modo, do sistema monárquico, segundo a Constituição de 25 de

março de 1824:

Art. 10 - Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o poder Legislativo, o poder moderador, o poder Executivo e poder

Judiciário.

2.2.1 Poder Executivo

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Ao se oporem ao sistema político monárquico, principalmente à invasão do poder

Moderador aos demais poderes, os republicanos propunham um sistema de governo em que

o Executivo seria conferido a uma só pessoa, competindo a ela as funções puramente

administrativas, na direção geral dos negócios do Estado. Ele "representa na organização

política do Estado o elemento de força e de vida, donde dimanam a energia de seus atos e o

movimento relar de suas funções". (Sales, Alberto - Política Republicana, p. 8/9) . N a

qualidade de centro geral de todo o movimento do organismo político é encarregado de dar

vida e ação ao Estado, por isso deve ser constituído de tal forma que possa sempre ser

considerado como o principal motor do aparelho político. "O executivo nada tem que

deliberar, senão executar". A deliberação cabe aos grandes ou pequenos conselhos.

No sistema republicano, o depositário do poder executivo deverá ser eleito e a

maneira mais conveniente para realização dessa eleição será o sistema direto, apesar de

entenderem alguns publicistas que à Assembleia Nacional cabe importante atribuição;

todavia, diz Alberto Sales, as vantagens de semelhante sistema não nos parecem bastantes

claras, mesmo sendo incontestável que semelhante corporação encontra-se num grau de

inteligência e de percepção do bem público muito mais elevado do que a massa geral de

eleitores; "essa superioridade moral, contudo, desaparece, em virtude de outra série de

inconvenientes que de tal sistema pode resultar. Assim, além da subordinação do executivo ao

legislativo, que daí naturalmente decorrerá, tornar-se-á o parlamento centro de tão grande

agitação partidária, que só pessimamente poderá desenvolver suas legítimas atribuições".

(idem, p. 530) Isto contraria os princípios republicanos de completa independência entre os

diferentes departamentos do poder político.

Não aceitam, também, o sistema republicano americano, "onde a escolha do

presidente é feita indiretamente pela nação. Os cidadãos dos diversos Estados escolhem

primeiramente tantos eleitores quantos são os deputados e senadores, que ao congresso envia

o respectivo Estado, e estes procedem em dia determinado, à eleição do presidente da

república" (idem, p. 530).

Preferem, os republicanos, o sistema direto, onde a nação é que deve escolher

aquele que tem de ser o depositário fiel do poder executivo, sanando-se, deste modo, muitos

inconvenientes e respeitando-se mais a soberania popular.

Ao executivo deve competir principalmente a fiel execução das leis, a escolha e

nomeação dos ministros e secretários de estado, dos embaixadores, cônsules e membros do

Supremo Tribunal de Justiça. Deverá, ainda, influir na promulgação da lei por meio do veto

ou sanção - veto não absoluto, 2/3 da legislatura anularia qualquer veto - a fim de

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contrabalançar a autoridade do poder legislativo e estabelecer entre ambos um certo equilíbrio

e harmonia, no exercício de suas atribuições.

Mas, para que o Legislativo não perca jamais a sua autonomia e independência, é

necessário que também intervenha no executivo, e isto é feito na celebração dos tratados com

potências estrangeiras, na nomeação de ministros, embaixadores e outros funcionários

públicos que s6 deverão efetuar-se com o apoio e consentimento do Senado. As funções

executivas deverão ser consideradas incompatíveis com outras funções políticas do Estado.

Assim, a divisão harmônica dos poderes fica perfeitamente garantida.

2.2.2 Poder Legislativo

O Poder Legislativo deverá ser conferido a duas câmaras. Uma única assembleia

nunca poderia preencher devidamente as condições de ordem e de progresso que sempre se

encontram em jogo no seio do corpo político.

No entender de Alberto Sales, "estes dois elementos (ordem e progresso) devem

se harmonizar e se combinarem de tal forma que as tendências de renovação nunca sejam

prejudicadas pelas tendências de conservação. E essa harmonia só é possível pela divisão do

Legislativo: um que há de ser mais sôfrego na obra de renovação e outro que há de querê-la,

mas moderadamente”.

O Senado, sem ser retrógrado ou estacionário, será dominar mais especialmente

pelas forças de conservação, enquanto que Câmara dos Deputados, sem ser revolucionária ou

anárquica, obedecerá mais facilmente' aos estímulos das forças de renovação.

Ao Congresso Federal estão afeitas as seguintes atribuições: “a cunhagem da

moeda, o sistema de peso e medidas, a organização é serviço postal e da milícia nacional, o

comércio, a marinha, as declarações de guerra e outras questões de idêntica natureza, serão é

competência exclusiva do Congresso". (idem, p. 533).

A Câmara dos Deputados não deverá estar subordinada à de

Senadores e nem esta àquela. Só assim poderá o preceito legal exprimir legitimamente uma

necessidade de ordem pública.

2.2.3 Poder Judiciário

O Poder Judiciário seria independente dos outros ramos do governo.

Apesar de todos admitirem que o judiciário deva ser independente, não passa de

uma simples dependência de poder executivo, ou de um ramo especial da administração

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central.

No sistema apresentado pelos republicanos, o Judiciário deve, respeitando a

autonomia de cada poder, representar uma força política tão intensa e enérgica, como qualquer

dos dois poderes. É por isso que o Judiciário, em vez de constituir-se, como atualmente ainda

acontece, uma simples dependência da administração central, inteiramente subordinado às

imposições do executivo, deve, ao contrário, ser de tal forma organizado que possa sem

perigo conservar e manter sempre intactas a sua autonomia e liberdade.

Foi a Constituição Americana a primeira a consagrar e respeitar estas verdades.

Determinou que as "funções judiciárias fossem confiadas não somente a um tribunal supremo,

encarregado das decisões das questões mais gerais e coletivas, como também a tribunais

inferiores, distribuídos regularmente pela nação e incumbidos da decisão das contendas e

questões suscitadas entre particulares". (idem, p. 536).

Apesar do direito conferido ao chefe do Executivo de nomear, com a aprovação e

consentimento do Senado, os membros do Supremo Tribunal, a subordinação e dependência

do Judiciário

foram perfeitamente evitadas pela função política que se confiou àquele mesmo

poder, encarregando-se-lhe expressamente da guarda e da fiel observância dos

preceitos da Constituição. De posse disso, o Judiciário se fez sentir desde logo como

um centro poderoso de energia, no seio da organização política daquele país. Os

abusos do executivo e do legislativo tornaram-se desde então completamente

impossíveis, ao mesmo tempo em que a distribuição da justiça ficou plenamente

garantida pela lei suprema do Estado (idem, p. 536/7).

Com um sistema perfeito de Federação, em que todo cidadão de cada Estado

particular deve obediência a dois governos, o do seu próprio estado e o federal, observa Stuart

Mill que é necessário que os limites constitucionais da autoridade de cada um desses poderes

sejam claramente estabelecidos, mas também que o direito de julgar entre eles, em caso de

disputa, não pertença a nenhum dos governos, nem a algum funcionário que lhe seja

submetido, mas a um árbitro independente. É preciso que haja um Tribunal Supremo de

Justiça e um sistema de tribunais subordinados em cada Estado da União para julgar de

semelhantes questões: e o julgamento dos tribunais, em última instância, deve ser decisivo. É

preciso que cada Estado da União, o próprio governo federal e seus funcionários possam

todos ser processados por esses tribunais, no caso de excederem os limites de seus poderes ou

de não cumprirem com seus deveres federais; e em geral eles devem ser obrigados a servirem-

se desses tribunais para defender seus direitos federais.

Hoje nos Estados Unidos um tribunal de Justiça, o mais elevado Tribunal Federal,

possui o poder supremo sobre todos os governos: Estadual e Federal, pois toda lei ou todo ato

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deles emanado, que exceda os limites do poder que lhes é conferido pela Constituição

Federal, não tem valor algum legal.

O Judiciário Federal tem por competência: a) a solução de todas as questões que

resultem de tratados com potências estrangeiras; h) decidir questões entre os Estados c o

Governo Federal.

2.3 A República de 15 de Novembro

Os republicanos brasileiros, até os fins do período colonial, não

se preocupam com a Independência de um Brasil unido sob uma mesma Constituição política.

Sonhavam, apenas, com a independência de suas províncias, organizadas em repúblicas

soberanas. Admitiam quando muito, dependendo das circunstâncias, uma Confederação. A

ideia de Unidade Nacional, em oposição àquelas tendências ou àqueles princípios levou a um

sentimento de fidelidade à monarquia da coroa brasileira.

O Partido Republicano Paulista, logo ao nascer, em 1873, dividiu-se em dois

grupos em torno do problema da extinção da escravatura. De um lado, estavam os membros

do antigo Clube Radical (a abolição era o ponto principal do seu programa). Do outro,

estavam os homens da lavoura (proprietários de escravos) que aderiram ao ideal republicano

em represália à lei do Ventre Livre. Entre estes dois grupos encontrava-se um terceiro, os

radicais condescendentes ao anti-abolicionismo dos fazendeiros.

A ala dos senhores agrários, somada ainda aos radicais condescendentes, era a

mais numerosa e mais rica, por isso mesmo predominou nos postos diretores, levando o

partido ao desinteresse das causas da abolição, No entanto, a outra ala lutava bravamente pela

emancipação dos negros. Por isso mesmo, a campanha abolicionista dominava e absorvia a

vida do país.

Para evitar a dissolução do partido, que se encontrava em decadência, a ala agrária

resolveu abdicar em favor do abolicionismo, sendo eleito para a próxima legislatura

provincial e elevado à presidência da Comissão Diretora o advogado Bernardino de Campos

da ala abolicionista. Respeitado por toda ala radical e por grande número de novos recém-

chegados à vida pública, conseguiu o novo Presidente dar vida ao partido, restituindo-lhe a

respeito e o prestígio de antes.

Como já foi dito, o trabalho total de fundação e divulgação da República cabe aos

Republicanos paulistas, especialmente a Alberto Sales, mas a proclamação da República, no

seu acontecimento imediato, foi um acontecimento exclusivamente carioca, reduzido a um

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levante da guarnição do Rio de Janeiro, sem maior ação sobre as províncias, que só tomaram

conhecimento do fato através de mensagem telegráfica. Á Quintino Bocaiúva se deve a

montagem e execução do ato da proclamação de 15 de Novembro. Os paulistas são aí apenas

expectadores inquietos, apesar de interessados.

A História da fundação da República tem seu início na História das relações do

Partido Republicano Paulista com a ditadura militar. E o desenvolvimento daquela história se

desenvolve através da colaboração do marechal Deodoro da Fonseca com esse partido, iniciada no

dia seguinte à proclamação, como também na crescente e sóbria oposição aberta entre o

ditador e a agremiação política a partir das primeiras reuniões do Congresso Constituinte, em

1890, que culmina com a deposição do Marechal a 23 de novembro de 1891. Daí em diante, a

nossa vida pública se apresenta como ampliação nacional da vida íntima do PRP.

A proclamação da República através de um levante militar não era prevista nem

pelo Exército, nem pelos meios políticos envolvidos, isto porque, para eles, a Questão

Militar foi sempre um caso de disciplina e não um caso político de assalto ao poder.

Conforme assevera José Maria dos Santos, a instauração da República não

encontrou praticamente a menor oposição, já que a República era um acontecimento

previsto. O que surpreendeu foi o caráter militar do movimento, que precipitou de modo

violento os fatos.

Não se quer dizer com isso que tenha havido uma adesão geral à ditadura militar

de 15 de Novembro, pois além de alguns casos de exagero de autoridade cometidos, o povo

se mantinha à distância, na dúvida a respeito do novo regime.

Em São Paulo, pela existência do Partido Republicano que precedera à queda da

Monarquia, o sentimento da Democracia se eleva a uma consciência de dever, já que era sua

própria honra que estava em jogo, exigindo a defesa e a manutenção dos mesmos hábitos

políticos que lhe haviam permitido viver e prosperar durante 16 anos.

Apesar disso, o PRP, como agremiação independente presa a certos princípios

doutrinários, terá a sua história encerrada naquela época, com o choque da Questão Militar, a

explodir em revolução republicana, transforma-se completamente. Não é mais um partido,

uma parte da opinião pública, a luta pelo poder ou a realizar no poder certas ideias,

Converte-se numa espécie de sindicato geral de administração pública, com monopólio

permanente e universal das funções do Estado.

A partir de 15 de Novembro, é Benjamim Constant, o primeiro arauto do

Positivismo no Brasil, quem dita e conduz as últimas decisões do Marechal Deodoro na noite

daquele dia, e é investido quase automaticamente no posto-chave de Ministro da Guerra,

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convertendo-se naquele primeiro momento em centro principal do movimento. A partir daí,

os Diretores do Apostolado Positivista, que haviam cortado as relações com Benjamim

Constant, por não aceitarem a sua posição positivista, procuram imediatamente

reconciliarem-se com ele.

Assim, na noite de 17, Benjamim Constant recebia no Salão do Quartel General,

os diretores Miguel Lemos e Teixeira Mendes acompanhados de inúmeros adeptos. Miguel

Lemos entrega-lhe uma mensagem intitulada: "Ao Povo e ao Governo da República -

Indicações urgentes". Tal mensagem propunha ao Marechal a conservação em caráter

definitivo da ditadura surgida a 15 de Novembro: abolindo o sistema parlamentar e

estabelecendo a perpetuidade da função ditatorial, com acumulação dos três poderes:

Legislativo, Executivo e Judiciário e, finalmente a transmissibilidade do poder a um sucessor

livremente escolhido ou eleito pelo ditador.

Estes dispositivos deveriam ser fixados numa constituição redigida por uma

Comissão nomeada pela ditadura, para ser submetida à aprovação através de um plebiscito

nacional, o que evitaria o perigo de uma Assembleia Constituinte. Esta posição do

Apostolado teria graves consequências, visto que o Marechal inclinava-se para o lado

republicano de uma solução democrática na reorganização do país, tal como era o anseio do

povo e como ele havia prometido solenemente a 15 de Novembro.

Comungavam com o mesmo propósito do Marechal os Ministros

Aristides Lobo (Interior), Eduardo Wandenkolk (Marinha), Rui Barbosa (Fazenda) e

Campos Sales (Justiça). No entanto, os Ministros Quintino Bocaiúva (Exterior),

Benjamim Constant (Guerra) e Demétrio Ribeiro (Agricultura), pensavam de modo

diferente, estavam a favor da ditadura apregoada pelo positivismo.

Daí a mensagem do Apostolado ter criado uma verdadeira luta de princípios no

seio do Governo Provisório. Se o problema fosse resolvido nas intimidades do Itamarati, a

solução não seria difícil, pois além de o primeiro grupo ter maioria, era apoiado pelo povo o

que resultaria, provavelmente, numa República Democrática mais ou menos no estilo

daquela estabelecida nas Bases para a Constituição do Estado de São Paulo.

Entretanto, nas discussões das novas formas constitucionais a serem dadas ao

País, surge em decorrência das divergências apontadas, a divisão dos meios militares: o

grupo dos ex-alunos de Benjamin Constant que era a favor da ditadura republicana, sem

eleição e sem parlamento, e o outro, muito mais numeroso, formado sobretudo pelos oficiais

de infantaria e cavalaria, que não se interessava pelos detalhes, fazia questão apenas de

apoiar o Governo Provisório

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foi graças à dedicação e à firmeza desse segundo grupo que Deodoro conseguiu

resistir à terrível pressão do Apostolado, para entre os princípios sociocráticos de

Comte e o Liberalismo dos métodos parlamentares, ficar no meio-tempo autoritário

do Presidencialismo (SANTOS, 1970, p. 271).

Assim foi nomeada no dia 3 de dezembro a Comissão para elaborar a nova

Constituição. Compunha-se de Saldanha Marinho (Presidente), Américo Brasiliense (Vice-

Presidente), Rangel Pestana, Santo Wernek e Magalhães Castro, como vogais.

Neste mesmo dia Prudente de Morais é designado Governador individual de São

Paulo, começando a partir daí a destituição das Juntas Governativas. Apesar de Prudente de

Morais ser membro da Junta e figura tradicional do PRP, tal atitude era considerada como

lamentável acomodação por parte daqueles que deviam repelir ou repudiá-la. Mas se em São

Paulo as coisas ficaram mais ou menos pacíficas, em outros Estados isto não aconteceu e para

que a transmissão do governo fosse efetuada, foi necessária a intervenção militar em alguns

deles.

Mas se não foi possível ao Marechal e à maioria de seus ministros se manterem

fiéis aos princípios democráticos, conseguiram, no entanto, afastar a tendência ditatorial do

positivismo.

Após o estabelecimento das bases da nova Constituição, a unidade das opiniões

militares, com raras exceções, restabeleceu-se em torno do nome do Marechal para o novo

cargo de Presidente da República, tendo contribuído também para isso a morte de Benjamim

Constant, que deixava seus discípulos sem a coesão de antes.

No entanto, as divergências continuavam, agora não tanto dentro do Exército, mas

principalmente entre Deodoro e o Congresso, que culminará com a renúncia coletiva do

Ministério a 20 de janeiro. A partir daí a situação se torna cada vez mais crítica, fazendo com

que não se deseje mais a permanência do Marechal no poder. Assim, começa a disputa do

poder com a candidatura de Prudente de Morais, apoiado por Bernardino de Campos e,

consequentemente, pelo PRP. O problema se agrava e novamente os dois grupos militares

entram em ação, e é nesta atmosfera que a Constituição é promulgada a 24 de fevereiro e a 25

o Congresso se reúne para eleger o Presidente da República. O Marechal é eleito com 129

votos contra 97 para Prudente de Morais. Mas inesperadamente é eleito com 135 votos

Floriano Peixoto para a Vice-Presidência da República, graças ao trabalho da ala radical do

PRP, encabeçada por Bernardino de Campos.

A dissolução do Congresso prevista pelo Barão de Lucena, logo após a aprovação

da Constituição e a realização da eleição não aconteceu graças à astúcia e cuidado do

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Congresso que nas Disposições Transitórias havia incluído a sua indissolubilidade, Apesar

disso, a luta continua entre o Governo e o Congresso e terminará com a dissolução do

Congresso no dia 3 de novembro de 1891.

Tal acontecimento afeta terrivelmente o PRP que quase é aniquilado. Mas com a

renúncia de Deodoro a 23 de novembro e a consequente ascensão de Floriano Peixoto à

Presidência da República, o PRP encontra-se novamente fortalecido e reconduzido à função

de organizador político do regime, apoiando em tudo o Vice-Presidente e, consequentemente,

sendo apoiado por ele. Tanto assim que, a partir de abril de 1892, quando surge a questão da

sucessão presidencial, Bernardino de Campos, então Presidente do Estado de São Paulo,

coloca à sua disposição o peso de seu Estado, oferecendo assim, integral apoio.

Mas o Vice-Presidente não estava disposto a realizar as eleições porque

pretendia permanecer no cargo. Em oposição a esta atitude, treze generais de mar e terra

enviam um manifesto ao Vice-Presidente intimando-o a mandar proceder as eleições

presidenciais. A reação de Floriano foi pronta e radical, afastou os generais do serviço,

prende-os e manda-os para pontos extremos da fronteira do Amazonas, acompanhados por

numerosos civis que receberam o mesmo tratamento, após a declaração do estado de sítio.

Ao tomar esta posição, Floriano Peixoto comprometeu o PRP, em especial,

Bernardinho de Campos, já que este assessorava-lhe e dava-lhe completo apoio. Assim,

com a finalidade de evitar maiores problemas para o Partido, ficou combinado entre os seus

membros, que este delega e transfere ao Presidente do Estado de São Paulo todos os poderes

políticos e toda faculdade opinativa na escolha da posição de São Paulo perante os

acontecimentos do momento.

Com tal decisão, salva-se, segundo José Maria dos Santos, o único partido sobre

o qual a República poderia politicamente se organizar. No entanto, sem o Marechal

Floriano, o PRP estaria morto, mas o Marechal sem o PRP não teria base política sobre a

qual assentar o seu governo militar.

A partir daí, o Congresso Paulista encerra seus trabalhos a 22 de janeiro de 1983

depositando no Governo de Floriano a esperança de que tudo seria feito para consolidar a

República. Após várias lutas, inclusive, luta armada, onde o Marechal Floriano saiu

vencedor a política paulista fundada no seu prestígio militar.

Com a insistência de Floriano em não promover a eleição de 15.11.1894,

Bernardino de Campos não hesitou, - apesar de ter sido o grande coordenador político do

referido governo, tornando-se por isso mesmo fiador de sua final

subordinação aos princípios Constitucionais - em juntamente com a

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ala radical do PRP, indicar Prudente de Morais à sucessão presidencial, retirando, assim, o

seu apoio ao Marechal Deodoro, já que a posição adotada por Floriano estava contra a sua

missão de condutor do PRP na organização política do regime. Nestas circunstâncias, em

1894, Prudente de Morais é eleito Presidente da República e, dois anos mais tarde, em 1896,

Bernardino de Campos se elege Senador Federal.

Passados apenas dois anos, a situação de São Paulo e do PRP na política federal

estava novamente em perigo. Além da questão financeira e da doença do Presidente, outros

fatos concorriam para a decadência do sistema. Apesar de doente, Prudente de Morais não

ousava entregar o poder ao Vice-Presidente, Manuel Vitorino, receando um golpe que o

afastasse definitivamente do governo e para restaurar uma política de ódios como na

ditadura, contra a sábia política de pacificação da República por ele seguida até então.

Neste momento Bernardino de Campos entende que é hora de voltar à sua velha

função de escudo da política e dos interesses federais do PRP. Por conta disso propõe-se a

entrar para o Ministério da Fazenda, renunciando o cômodo posto de Senador. Tal proposta é

aceita por Prudente de Morais, que neste momento se retira para a estação de cura de

Teresópolis, por confiar plenamente nas diretrizes que Bernardino estabeleceria para a

manutenção da política republicana.

Bernardino de Campos consegue restabelecer em pouco tempo as finanças,

tornando-se, desta forma, uma peça indispensável ao Governo. Com isso, a missão de

guardar e defender os dois interesses políticos, o de São Paulo e o do PRP a que havia se

proposto, estava realizada. Apesar disso, Prudente de Morais acha indispensável a sua

continuação à frente do Ministério. Graças ao trabalho de Bernardino de Campos, Prudente

de Morais passa o governo a Campos Sales, outro paulista e membro do PRP, numa situação

orçamentária solidamente estabilizada, e com um plano financeiro plenamente elaborado.

O Governo de Campos Sales não segue a orientação financeira de Bernardino de

Campos. O novo Ministro da Fazenda entendeu resolver o problema financeiro aumentando

vertiginosamente os impostos e criando outros tantos. Mas, como o Presidente era de São

Paulo e do PRP e representava a maioria do Partido, cabia a ele toda a responsabilidade de

tais atos e por isso mesmo Bernardino de Campos não fez nenhuma crítica aos novos planos

do Presidente.

Em 1902 assume o Governo Rodrigues Alves que, após vencer a primeira

metade do período governamental 1902/1906 viu, diante do problema do câmbio monetário

e os preços do café, ameaçado o problema político da sucessão presidencial. Diante da

realidade entende que nenhuma candidatura seria mais oportuna do que a de Bernardino de

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Campos, por ser ele o mais antigo dos fundadores do PRP. Além do que, em tais

circunstâncias do agravamento da crise financeira, ninguém melhor que ele para resolvê-la.

Devido a certos interesses financeiros, a escolha recaiu em Afonso Pena,

sacrificando-se assim a candidatura de Bernardino de Campos e, com ela a grande expansão

da agricultura do país.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Do exposto é possível dizer que todo sistema político republicano partiu da

insatisfação com o sistema monárquico, que segundo eles, os republicanos, levou o país a um

atraso sem precedentes e ao aniquilamento das energias do povo.

A monarquia constitucional democrática e o republicanismo democrático são dois

tipos de governo completamente opostos, tanto na forma como na essência. A República

baseia-se no princípio do sufrágio e na soberania do povo, enquanto que a monarquia

constitucional se faz uma tentativa de união do conceito de monarquia absoluta com o de

soberania popular.

Enquanto numa República os funcionários eleitos eram responsáveis perante a

nação, na monarquia constitucional, o soberano ou não era responsável perante ninguém, ou

tinha uma responsabilidade que não podia ser posta em vigor.

A Monarquia é uma forma de governo em que a autoridade suprema chega ao

poder pela hereditariedade. Poder transmitido a outro pela lei de sucessão. A República, ao

contrário, é uma forma de governo em que não há uma única parcela do poder público que

não seja conferido pela nação a representantes que ela escolhe periodicamente e que são

diretamente responsáveis pela fiel execução do mandato recebido. Todas as funções públicas

aí se acham subordinadas ao princípio da eletividade, e a autoridade governamental em vez de

ser atribuída a um indivíduo qualquer pelo simples fato do nascimento, é, ao contrário,

investida periódica e alternativamente em diferentes indivíduos, pela própria nação, que os

elege.

No período de formação e divulgação das ideias republicanas, cabe aos

positivistas heterodoxos, especialmente a Alberto Sales, a predominância da divulgação do

ideário da República. Com o movimento de 15 de novembro assumiu a liderança dos

acontecimentos à frente do Partido Republicano, Bernardino de Campos visando manter o

prestígio e a posição do PRP como condição da própria manutenção da República de que o

Partido era o maior arauto.

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SEVERINO, Antonio Joaquim. A Filosofia Contemporânea no Brasil. Petrópolis: Vozes,

1999.

SILVA, Vicente Ferreira da. Obras Completas, Vol. I. São Paulo: IBF, 1964/1966.

TEIXEIRA, Antônio Braz. Convergências e Peculiaridades das Filosofias Portuguesa e

Brasileira. In Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia. Braga, 1982.

.................., O Pensamento Filosófico de Cunha Seixas, Revista Brasileira de Filosofia.

VITA, Luis Washington. Alberto Sales, ideólogo da República. São Paulo: Cia. Editora

Nacional, 1965.

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BIOGRAFIA DA AUTORA

osa Mendonça de Brito, filha de Nila Mendonça de Brito

e João Gomes de Brito, nasceu em Carauari, no Rio Juruá, Estado do

Amazonas, no dia 30 de agosto de 1946.

Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas, em 1973.

Mestra em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro, em 1979.

Doutora em Filosofia pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, em 1984.

Pós-Doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em

2012.

Ocupa a

Cadeira nº 6, de Adriano Jorge, na Academia Amazonense de Letra, e a

Poltrona Nº 19, de Euclides da Cunha, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA.

É membro do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia; da Associação Francofone de Pesquisa em

Educação, Secção Brasileira - AFIRSE; da Sociedade Brasileira de História da Educação - SBHE e do

Centro de Estudos Filosóficos de Londrina - CEFIL.

Detentora da Medalha Comemorativa do Sesquicentenário de Nascimento e Centenário de Morte de

Tobias Barrete, outorgada pelo Governo do Estado de Sergipe e do Prêmio Tobias Barreto, conferido

pela Academia Amazonense de Letras Jurídicas, em 1989.

Obras Publicadas:

100 ANOS UFAM. Manaus: EDUA, 2011.

Construindo Conhecimentos no Processo Educativo, Manaus: AAL, 2011.

Da Escola Universitária Livre de Manáos à Universidade Federal do Amazonas: 95 anos construindo

conhecimento. Manaus: EDUA, 2004.

A Faculdade de Educação no Contexto da Universidade Federal do Amazonas. Manaus: EDUA,

2006.

Quinze Anos Passo a Passo: trajetória do programa de pós-graduação em Educação da Universidade do

Amazonas. Manaus: EDUA, 2002.

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O Homem Amazônico em Álvaro Maia: um olhar etnográfico. Manaus: Valer, 2001.

O Neokantismo no Brasil. Manaus: EDUA, 1997.

Filosofia, Educação, Sociedade e Direito na Obra de Arthur Orlando da Silva. Recife:

Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 1980.

Tese de Pós-Doutoramento

UM Localismo Universalizado: Relação PPGE/Saber Local.

Alguns artigos publicados:

A Inexistência de Currículo nas Escolas do Ensino Fundamental do Município de Boa Vista do Ramos,

no Amazonas – Brasil.

Da Tragédia Grega à Mitopoética Amazônica: a educação e a valorização de saberes esquecidos.

Co-autoria. Revista Amazônida, Manaus, EDUA, 2003.

Da Burocracia a Interdisciplinaridade Sistêmica: a trajetória da educação na Faculdade de Estudos

Sociais da Universidade Federal do Amazonas. Co-autoria. Revista Amazônida, Manaus, EDUA,

2003.

A Cultura Cabocla e o Processo Educativo na Amazônia. Anais da AFIRSE, Brasília, 2003.

As Identidades Amazônidas e a Educação: tempo de uma pedagogia do

(re)encontro do homem com a razão sensível. Anais do EPENN, São Luiz, 2001.

A Questão Cabocla. Revista Paradigma, Londrina, UEL, 2000.

Do Neokantismo ao Culturalismo. Anais do Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo, 2000.

Contrapontos Paradigmáticos na Educação. Anais do EPENN, Salvador, 1999.

Paradigma Intersubjetivista na Educação. Revista /srnazãnida, Manaus, EDUA, 1999.

Tendências Atuais da Filosofia da Educação: contraponto entre Habermas e

Rorty Revista /smazãnida, Manaus, EDUA, 1998.

Conceito de Cultura: uma perspectiva em Antônio Paim. Anais do CEFIL,

Londrina, 1996.

A Influência da Fonomenologia na Dialética das Consciências de Vicente Ferreira da Silva.

Revista Convivium, São Paulo, 1990.

A Realização da Liberdade. Revista Convivium, São Paulo, 1984.

Republicanismo Democrático. Revista Convivium, São Paulo, 1983.

A Trajetória da Filosofia da Ciência na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Revista Ciências

Humanas, Rio de Janeiro, 1983.