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Enc Enc Enc Enc Encant ant ant ant antament ament ament ament amento e T o e T o e T o e T o e Ter er er er ernur nur nur nur nura O Amor de Deus O Amor de Deus O Amor de Deus O Amor de Deus O Amor de Deus Brasil, 2004 Subsídio de Formação nº 8 Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo - ANALAM

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O Amor de DeusO Amor de DeusO Amor de DeusO Amor de DeusO Amor de Deus

Brasil, 2004

Subsídio de Formação nº 8

Associação Nacional dos Leigos Amigosde Murialdo - ANALAM

Apresentação .......................................................................................... 69

Introdução ............................................................................................... 71

1. DESDE O VENTRE MATERNO ........................................................... 72

2. DEUS ME AMA! QUE ALEGRIA, QUE CONSOLAÇÃO! ........................ 77

3. SEU AMOR É INFINITO, MISERICORDIOSO ..................................... 803.1. Seu Amor é Infinito ................................................................... 81

3.2. Seu Amor é Pessoal ................................................................. 83

3.3. Seu Amor é Atual ..................................................................... 84

3.4. Seu Amor é Terno ..................................................................... 86

3.5. Seu Amor é Misericordioso ........................................................ 88

4. SEM A FÉ NÃO SE CHEGA A DEUS E SEM TERNURA ........................ 90

5. PARA QUE NENHUM DELES SE PERCA Responsabilidade Social e Religiosa ............................................. 93

6. Estamos nas mãos .......................................................................... 96

Conclusão .............................................................................................. 100

ANEXO I - Cântico das Criaturas de Murialdo ......................................... 103

Sumário

Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

Apresentação

É com satisfação que apresentamos mais umsubsídio da Analam. Com este, completamos o oitavoexemplar que chega às mãos dos(as) nossos(as)associados(as).

Todo o material produzido pelo Conselho Formativotem sido de excelente qualidade e tem proporcionadoelementos para o crescimento individual e coletivo daAnalam. Tenho a certeza, este é um dos mais profundos, se não for o de maiorprofundidade. Portanto, é um subsídio que deve ser lido, relido, discutido e refletidoem diversas ocasiões. Não pode ser lido e guardado em nosso kit, mas, nosdeve acompanhar no dia a dia para que dele possamos desfrutar toda sua riqueza.

Neste mundo, onde as teorias materialistas acreditam que o nascimentodo ser humano é um mergulho na escuridão e no vazio, este material demonstraque, mesmo não percebendo, Deus está nos amando. Seu amor é atual. Isto é,Ele nos ama no momento presente. Sim! Agora no momento em que você estálendo, Ele está lhe amando. Assim, nossa vida não é um salto no vazio, mas,um mergulho para nos encharcar do Amor de Deus.

Ao tomar conhecimento do conteúdo deste subsídio, você se sentirádiferente. Perceberá que a vida é diferente do que imaginamos. Que não estamossozinhos, que Alguém nos ama profundamente e seu amor é encanto e ternura.

Portanto, não perca tempo e comece logo a descobrir as maravilhas queSão Leonardo Murialdo, há mais de um século, descobriu. Faça a experiênciado amor de Deus e sinta-se como Murialdo: amado tão profundamente que, porcausa deste amor, não conseguiu deixar, por nenhum momento, de irradiar epropagar este amor.

Leonel dos ReisPresidente

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Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

Introdução

“Deus nos ama com amor que éinfinito, pessoal, terno, atual emisericordioso.” Murialdo afirmou issodurante boa parte de sua vida. Nós estamosouvindo a presente frase a cada encontro, acada liturgia, em rodas de nossas conversasnos vários núcleos. Falamos disto para osoutros, em nossas famílias, aos nossosmeninos e jovens.

O que significa mesmo afirmar estamáxima da espiritualidade de Murialdo? Qualo seu conteúdo? Como Murialdo chegou atal conclusão? E como é possível viver hojeessa certeza de fé?

No encontro com a natureza serevelam descobertas incríveis para a ciência.É um caminho possível também para a fé.Os mistérios do Absoluto, da divindade podem ser comparados aos temores deuma montanha que esconde desfiladeiros, lugares sombrios ou altos eameaçadores penhascos. Costuma-se dizer que é nelas que moram os mistérios.Porém, e é bem verdade, a montanha é o lugar das águias, do descortino daamplidão dos horizontes, das possibilidades maiores de alçar longos vôos. Essesmistérios do Absoluto podem ser comparados com as águas turvas e sempretemerosas de um rio que desenha matas e campos. Naquelas águas moramalguns monstros lendários, mas também carrega-se a verdadeira possibilidadeda vida. Cheias da chance do germinar, do crescer, grávidas de toda a forma devida, as águas parecem correr faceiras para a grande aventura de saciar e irrigar.

O encontro com o amor de Deus parece ser assim. Exige que a gentearrisque e vá em busca de quebrar as barreiras do medo, da auto-suficiência oudas justificativas materialistas. É um caminho que começa na direção de simesmo e que, por isso mesmo, pode parecer de desespero, de lágrimas edecepções. Mas, que sem essa travessia é impossível fazer descortinar paraíso.

É por aí que vamos...

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1. Desde o ventre materno ...

“O Senhor me dirigiu a palavra: Antes de te formar no ventreeu te escolhi; antes de saíres do ventre materno eu te consagreie te nomeei profeta dos pagãos.” (Jr 1,4) “Deus me cumuloucom seus benefícios, desde meu nascimento.” (São LeonardoMurialdo – Testamento Espiritual)

Costuma-se dizer que o coração do carisma de São Leonardo Murialdo éo amor de Deus. Porém, não apenas seu amor, mas esse amor acrescido deadjetivos que lhe dão qualidade e, ao mesmo tempo, convicção vital: amor infinito,amor terno, amor pessoal, amor atual e amor misericordioso.

Tornou-se bastante comum ouvirmos demembros da Família de Murialdo, conhecedoresdessa mística, que foi com esse mesmo amorque Murialdo se viu na iminência de amar aDeus. E não só a Deus. Como decorrência doamor a Deus, a necessidade de amar aosirmãos.

Pois bem, este primeiro capítulo dopresente subsídio tem como intenção voltar-separa a origem desta descoberta do grande santo.Ou seja, quais os fatores, quais causas foramdeterminantes em sua vida para que elechegasse a conclusões de fé tão profundas ecomprometedoras? E a primeira impressão quetemos, quando ouvimos falar de sua vida, parecerecair sobre sua família e sobre a educação

recebida em casa. Pois nos parece evidente que só pode conhecer bem o amore falar com convicção dele quem faz ou fez a experiência de se sentir amado ede amar de verdade. Também não é menos verdadeira a idéia de que é no períododa gestação, infância e adolescência que se moldam os principais traçoscaracterísticos da identidade de uma pessoa. Então, é para lá que queremosnos dirigir: para a família e a infância de Murialdo.

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Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

Enfim, queremos dizer que para fazer uma imagem tão maravilhosa deDeus a partir de seu amor para com seus filhos, Murialdo só pode ter tido umainfância com uma família que, religiosa, lhe dera muito amor.

Conforme estudos recentes sobre a infância, um dos altos preços damodernidade para crianças e adolescentes tem sido o aumento dos casos dedepressão. Dizem que houve uma tremenda erosão da família nuclear: o dobroda taxa de divórcios, a redução do tempo que os pais têm para os filhos e oaumento da migração. Perde-se a relação com outros membros da família, alémdo pai e da mãe. Diz-se ainda que a disseminação da industrialização após aSegunda Guerra Mundial determinou que as pessoas, num certo sentido, nãotenham mais um lar. Num número cada vez maior de famílias vem aumentandoa indiferença dos pais pelas necessidades dos filhos enquanto crescem. Essaperda das referências para a auto-identidade e auto-estima acarreta tambémmaior vulnerabilidade à depressão. Como resultado vamos encontrar criançasmais inseguras, com baixa-estima, agressivas e de difícil convivência. (Cfr.Goleman, Daniel. Inteligência Emocional. Ed. Objetiva, pp 224ss)

Em Turim, na Itália, no dia 26 de outubro de 1828, nasce São LeonardoMurialdo. Apelidado carinhosamente de Nadino, encontra desde sua infância,em sua família, o ambiente estimulador para a educação do seu coração. Oamor passa a ser uma das marcas da sua vida. Seu pai, Franchino, rico agentede câmbio, um dos poucos que existiam em Turim, é descrito por A. Castellanicomo um homem organizado e preciso, prático, tenaz, grande administrador econhecedor da política. Casou-se aos 40 anos não só por estar envolvido com aatividade financeira, mas, especialmente, porque decidira casar-se somentequando sua pátria estivesse livre da dominação estrangeira. (Cfr. Il Beato LeonardoMurialdo. Vol 1. Tipografia S. Pio X, Roma, 1966, pp 14ss)

Franchino era apontado como honesto, largo e generoso com os pobrese infelizes e A. Castellani afirma que ele costumava destinar doações financeirasàs obras de caridade, aos hospitais e aos presídios. E sobre estas qualidadesde seu pai, Murialdo mesmo escrevia:

“Meu pai era um agente de câmbio, de uma profissão entãomuito delicada. Mas possuía um profundo sentido de justiça, euma consciência assim correta e quase escrupulosa, que nahora da morte quis fazer um acréscimo ao testamento,destinando uma soma muito elevada, ao Hospital de São Luize à Congregação de Caridade da sua Paróquia de São Dalmazzo,para compensar, como ele deixou expressamente escrito, osdanos acontecidos, involuntariamente, às pessoas, no exercícioda sua profissão.” (Op. cit.p. 17)

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O pai morre quando Murialdo está com 5 anos de idade; na família são 8irmãos (6 mulheres e 2 homens) e Nadino é o mais novo deles.

A mãe, Tereza Rho, conforme o autor acima, casara-se com 20 anos epossuía o “encanto de um coração puro como um raio de sol”. (p.15) Ela era detemperamento sensível, franco e espontâneo. Crescera num ambiente religiosoe culto; possuía um profundo espírito de piedade, força de alma e riqueza efetivade bondade. Se a profissão mantinha Franchino meio afastado de casa, Terezase dedicava com um apaixonado cuidado à educação dos filhos. No governo dafamília e na educação dos filhos inspirava-se nos ideais da ordem, do serviço, dapiedade e caridade, da sensibilidade vigilante. A. Castellani busca defini-la comomulher forte nas adversidades e nas lidas domésticas, mãe educadora ternaque usava a pedagogia do evangelho e do coração. É por isso que Leonardo eseus irmãos a queriam com um afeto cheio de veneração, como a sua maravilhosae incomparável “maman”. (pp.19 e 20)

Sobre sua mãe, Murialdo afirma: “Minha mãe era afeiçoadíssima aos seusfilhos e a mim sobretudo.” Com oito anos de idade, a mãe Tereza o encaminhapara ser interno num colégio religioso, onde já estava seu irmão Ernesto: “Naminha infância a saúde era débil e frágil”, escreve Murialdo em suas Memórias,“e quem sabe por isto minhamãe decidiu enviar-me aoColégio das Escolas Pias, emSavona, cidade muito longe deTurim. Para chegar lá eramnecessários ao menos doisdias”.

Em 16 de março de 1837,cinco meses após o início dasaulas, Murialdo escreveu à suamãe. É o primeiro escrito que seconserva de Murialdo criança:

“Minha querida mamãe, eis que mantenho a promessa que tefiz na carta de Ernesto. O teu Nadino é sempre o mesmo paracom sua querida mamãe: ele te ama mais que tudo, e não vêchegar aquela hora que você marcou para vir nos abraçar parafazer-te ver de fato aquilo que te digo nestas poucas linhas.Adeus, querida mamãe, dá muitos beijos para a Delfina, e atodas as outras irmãs.Ernesto te diz o mesmo de sua parte. Te abraço e me façochamar o teu Nadino.” (Escritos)

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Em Savona, até os 14 anos, Murialdo se distinguia pela sua bondade,como também pelo brilhante sucesso nos estudos. Mas isso de distinguir-sepode se tornar um perigo, não só nos colégios. A massificação não suportaquem se destaca. Ele dirá:

“Por medo de ser acusado de espião decidi fazer como osoutros... e tive a fraqueza e a covardia de abandonar o bomDeus, e que abandono, ó grande Deus! O respeito humano, eisa grande besta que me abateu.” (Testamento Espiritual)

Neste período, em dezembro de 1842, o Reitor do Colégio, preocupado,escrevia à sua mãe: “Leonardo está mudando de comportamento, não toleraobservações, é fechado com os superiores”. (A. Castellani, p.110)

No final do ano de 1843, Leonardo escreve uma carta muito triste à suamãe na qual manifesta abertamente sua antipatia pela vida colegial, a saudadeda família e o desejo de retornar a Turim. Retorna a Turim em novembro, quandotinha 15 anos; lhe faltava apenas um ano para concluir o Curso de Retórica.Aquele tempo de colégio que ele havia identificado como ano “sciagurato”,“maldito”, “infeliz”, será chamado depois de “feliz ano da minha conversão”.

Em Turim dedica-se ao estudo da Filosofia. Sua mãe o acompanhava deperto, até mesmo porque Leonardo costumava ser-lhe muito próximo e tinhapara com ela uma fé filial de abertura e confiança. Ela sabia acolher suasangústias, ansiedades e dúvidas.

Certa vez, enquanto Leonardo estudava, sua mãe aproximou-se e lhesussurrou: “Nadino, te amo tanto que tenho medo de pecar”. E, segundoA.Castellani, beijou-o na fronte, abraçando-o docemente, como se querendoprotegê-lo, como se quisesse prender todas as suas ansiedades, suas aspiraçõese guardá-lo no seu coração.

É essa doce acolhida e a certeza desse amor afetuoso que leva Leonardoa concluir:

“Deus me ama! Mais do que minha mãe! Se o meu paraísofosse nas mãos de minha mãe, quanto feliz eu seria! Mas eleestá nas mãos de Deus. Não devo temer.” (Escritos)

Leonardo dedica-se a acompanhar a liturgia quaresmal de 1844 junto àIgreja Paroquial de São Dalmazzo, onde fora batizado. Ali, numa tarde ouve umapregação sobre a eternidade e o inferno, sem perder uma palavra, uma expressão,um gesto do pregador. Ficou muito impressionado e sentiu estar correndo sério

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perigo de vir a perder sua alma, de cair no inferno, de perder Deus, e com Deus,tudo, e para sempre. Sentiu a voz de Deus, clara e decisiva, que o chamava adoar-se totalmente a Ele, numa vida de santidade fervorosa e atuante.

Interessante observar que esta experiência poderia ter marcado sua fé deforma repressiva e tê-lo conduzido à construção de uma imagem dura, rigorosae amedrontadora de Deus. Mas não. Talvez a experiência do amor familiar, doperdão, do respeito, do cuidado terno e pessoal tenha feito com que eletransportasse para o Deus-Pai a experiência da maternidade do amor. EntãoDeus me ama “demais e não quer que eu me perca”, poderia ter pensado. Ecomo resposta: “nada mais me resta que amá-lo”.

Passa a questionar-se sobre sua vocação. Aparece o desejo de ser padree em 1844 matricula-se na Faculdade de Teologia da Universidade. Em 1850obtém o doutorado em Teologia e nesta mesma época inicia os trabalhos comos meninos de rua. Em 20 de setembro de 1851 é ordenado sacerdote. Mascontinua com suas atividades de catequista e de oratório com crianças,adolescentes e jovens da periferia. Sua mãe tinha morrido em 9 de julho de1849; Leonardo tinha então 20 anos. No dia 19 de março de 1873, com o apoiode alguns colaboradores (como Pe. Eugênio Reffo), fundou a Congregação deSão José. A ela seria confiado o cuidado das crianças, adolescentes e jovensempobrecidos e em situação de risco.

Leonardo Murialdo morre em Turim, no dia 30 de março de 1900. E no dia3 de maio de 1970, através do papa Paulo VI, é proclamado santo. Sua festapassou a ser celebrada no dia 18 de maio.

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2. Deus me ama! Que alegria,que consolação!

“Ah! Tempo deplorável, no qual abandonei-me ao vício, em queme gloriava de minha infâmia e me orgulhava de minhasmisérias! E vós sempre me suportastes – esperastes –chamastes! E ainda agora, me considerais com bondade. Vósme perdoais com misericórdia. Vós me socorreis com amor!”(São Leonardo Murialdo – Testamento Espiritual)

“Quem é Deus?”

É esta uma pergunta muito intrigante. Havia um catecismo, original dosinícios dos anos 1900, que era a base de preparação para a Primeira Eucaristia,que assim definia: “Deus é um espíritoperfeitíssimo, criador do céu e da terra”.Depois vinha uma segunda pergunta:

“Onde está Deus?”

E a resposta era: “Deus está no céu,na terra, e em todo lugar.”

Eram respostas que a gente deviasaber de cor como porta de entrada paraa primeira comunhão. E as crianças seesmeravam nesse intento. E conseguiam,desta forma, colocar Deus lá dentro dainteligência, naquela parte que, segundoos cientistas, é responsável pelamemorização. Mas nem sempre sentiamestímulos para colocar a divindade no coração.

A teologia tem mil repostas para essas perguntas. Mas não é isto quenos interessa neste momento. Bem antes do aparecimento daquele catecismo,São Leonardo Murialdo fazia a experiência de trazer aquele Deus, que estava láem cima, para o centro do coração humano. Entendia, desta forma, que já nãoé a pessoa que deve chegar até Deus, que habita os céus. Mas Deus está aqui,e nós temos apenas que nos abrir a Ele.

Murialdo parece querer desmistificar a idéia de um Deus inacessível, que

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só poderia ser desvendado pelo conhecimento. Descobre e afirmaconstantemente a imagem de um Deus amoroso. E se sentir próximo desteDeus é uma grande alegria, um consolo nas adversidades, nos desafios que avida vai apresentando. E então o sagrado mora na profundidade de cada pessoahumana e a religião é algo que Murialdo busca passar aos meninos ajudando-osa descobrir Deus dentro de cada um, na instituição, na comunidade, no cursoda criação e das criaturas. Busca apresentar-lhes a mesma não apenas paraocupá-los com o exercício de ir à missa, fazer orações, manter vivas algumasdevoções...

Ele diz, em seus escritos:

“Pois quando se tem Deus no coração, tudo fala d’Ele, tudo seama n’Ele. Ama-se a Deus nas suas obras e nas suas criaturastodas com simpatia sobrenatural com que contemplava a Deuse o amava São Francisco de Assis.” (Vol 37,5)

As pessoas que se deixaram envolver pela mística cristã são pessoastambém que conseguiram manter encontros marcantes com a divindade. Edesses encontros conseguiram sair relativizando algumas situações paraconservarem o entusiasmo e se abastecerem de energias para suas lutasquotidianas. A fé passa a ser a expressão de um encontro com Deus que envolvea totalidade da existência, o sentimento, o coração, a inteligência, a vontade.

Guiados pelos escritos de São Leonardo Murialdo, poderíamos afirmarque o mesmo sabia que mais do que ouvir falar de Deus, seus meninos precisavamsentir Deus. Bem como, ele sabia que os meninos queriam-no como alguémque falava de Deus a partir de seus sentimentos, mais do que seus conhecimentos.Segundo Pe. E. Reffo, um antigo aluno do Colégio Artigianelli, assim testemunhou:“Uma das coisas que ficou mais marcado em mim é a grande devoção com querezava a santa missa. Por ocasião do Cinqüentenário do Colégio tive a graça deassistir sua missa na capela do Colégio. Meio profano, disperso e irrequieto quesou, me impressionou muito o modo, a piedade, a devoção em suas palavrascheias de alegria e disse comigo mesmo: É mesmo um santo!” (Vita Del Servodi Dio Leonardo Murialdo. Tipografia Pio X, Roma, 1956, p.237)

Cabem-nos algumas perguntas: Se Deus nos ama tanto e estamosconvencidos desse seu amor, por que rezar? Por que Murialdo gastava tantotempo em oração e insistia nesta necessidade? Será que Deus necessita deminha oração? E se o amor de Deus é iniciativa da divindade, para que serve aminha oração? A espiritualidade de Murialdo afirma que mesmo que eu nãoperceba seu amor, Deus está me amando. Então ainda existe a necessidade deoração nesta relação com o divino?

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Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

No catecismo de outrora se aprendia também que Deus nos amava maisenquanto éramos mais “puros”. Na espiritualidade de Jesus, vivenciada porMurialdo, aparece o inverso. Deus nos ama mais porque precisamos mais doamor Dele. E quanto estamos mais carregados de problemas, mais afastadosdo bem, é que devemos nos sentir mais acolhidos por ele. É também nestesentido que resta dizer: “Deus me ama: que alegria, que consolação!”

É bem verdade que Deus tem todo respeito à liberdade que temos derecusá-lo. Mas isso não significa que deixe de nos amar. O amor Dele éincondicional; é da própria essência divina. Mas por que rezamos tão pouco? Épreciso lembrar que a oração não se coloca na esfera da necessidade, comocomer, dormir, trabalhar... muito menos na esfera da eficiência do uso do tempo.Ela é pura gratuidade.

É claro que existem muitas formas para colocarmo-nos em atitude deoração. A graça supõe a natureza. Ou seja, se a gente não abrir os ouvidos, nãoescuta a Palavra de Deus. Se não abrir o coração, não acolhe sua graça.

Murialdo foi um místico. Os místicos nos ensinam que o tempo semprelhes é insuficiente. “O místico entra numa dinâmica de paixão amorosa tão fértil,tão vibrante, que pode passar a noite inteira em oração e lamenta ter que parar,lamenta ter que retornar à cotidianidade.” (Frei Betto in: Mística e Espiritualidade.L. Boff e Frei Betto. Ed. Rocco, 2a Edição, Rio de Janeiro, 1994, p.126)

Tudo isso nos lembra ainda que a oração não nos eleva a nenhum graumaior ou menor de santidade. Nós não rezamos para deixar de pecar, ou paranos sentirmos mais e melhores que os outros. Mas isto sim: rezamos para nossentirmos mais pertos de Deus e tão amados por Ele que fica difícil sermosinfiéis ao projeto Dele.

O que faz com que São Leonardo Murialdo passe a dedicar toda sua vidaà causa das crianças, adolescentes e jovens que viviam em situação deempobrecimento e risco? Qual o motivo último, escondido, mas impulsionadordesse desejo? Para Leonardo Boff “não há militância sem paixão e mística”.Mais do que ter idéias, trata-se de ter convicções. A expressão de São LeonardoMurialdo: “Deus me ama! Que alegria, que consolação!” é um convencimentomobilizador para o apostolado. Convencido dessa mística do amor de Deus elese dá conta que por trás das estruturas do real, não há o absurdo do abismo quenos mete medo. Mas que lá existem também sinais carregados da ternura, daacolhida, do mistério amoroso que se comunica com alegria, dos sonhos edesejos escondidos, das coisas e pessoas de convivência solidária e fraternaporque Deus está enraizado naqueles corações... Ele é Pai, é Mãe, cheio demisericórdia, de amor... Ver o mundo assim traz alegria, traz consolação.

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3. Seu amor é infinito, misericordioso...

“Deus para mim: Amei-te com amor eterno. Assim te atraí,miserável! Desde toda a eternidade pensei em ti. Chamei-tepelo teu nome e decidi salvar-te, santificar-te, glorificar-teeternamente, por causa do amor infinito com que te amei desdeos séculos eternos. E quando devias vir a este mundo, eu olheisobre a face da terra. Havia uma população de mais de um1.200.000.000 habitantes. Os cinco sextos eram infiéis ouhereges, sendo um sexto católicos, Eu decidi que nascessesentre a sexta parte feliz, e entrasses na população católica eque, chegando à idade da razão, fosses educado na religiãocristã. Por isso te fiz nascer de uma mãe muito piedosa e deum pai praticante.” (São Leonardo Murialdo – TestamentoEspiritual)

Através dos escritos deSão Leonardo Murialdo pode-seperceber que o amor de Deusrecebe muitos adjetivos que oqualificam de acordo com aexperiência pessoal que elemesmo vivenciava. Por exemplo,o Pe. Roberto Salvati buscaidentificar a santidade de Murialdoatravés de uma chave

interpretativa fundamental de sua espiritualidade: a do amor infinito, pessoal eatual de Deus (Espiritualidade de Murialdo. Congregação de São José. ProvínciaBrasileira, Caxias do Sul, Tradução, 2001, p1). Por sua vez, Giuseppe Fossatiidentifica as características do amor de Deus, na espiritualidade de Murialdo,como sendo: Amor eterno e infinito, gratuito, pessoal, terno, paciente, generoso,e atual (O Carisma Josefino. Congregação de São José. Província Brasileira,Caxias do Sul, Tradução, 1999, pp13-18).

Tem sido comum também, especialmente na Província Brasileira daCongregação de São José, ouvir-se definir o amor de Deus, de acordo com amística de Murialdo, em cinco características bem expressivas: amor que éinfinito, pessoal, atual, terno e misericordioso. Inclusive o “Projeto Educativo”

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da Escola Murialdo, que busca unificar a prática pedagógica na “rede Murialdode educação”, atribui essas cinco características ao amor de Deus naespiritualidade murialdina (Cfr. pp15,22). Dessa forma, iremos desenvolver nossaanálise tendo por detalhamento do amor de Deus estas cinco características.

3.1 Seu amor é infinito

“Deus é tudo, nós o nada... todavia Ele nos ama com amorimenso.” (Escritos, Vol IV, p.21)

Uma certeza absoluta que nasce da espiritualidade de São LeonardoMurialdo é esta: o amor de Deus por nós não tem limites. Isto é, Deus se doaTodo a mim, por amor. Murialdo mesmo afirma em seu Testamento Espiritual,lembrando o Evangelho de São João, que

“Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho Unigênito. (...)Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida por seusamigos.”

Sem nenhum receio Deus oferece a cada pessoa humana o bem maisprecioso que tem seu Filho Único. Então, não é somente Cristo que estácomprometido com as pessoas, mas cada uma das pessoas da Trindade está,pelo mesmo ímpeto de amor, disposta a assumir a dor vivida pelo Filho. Emseus escritos Murialdo afirmava: “Na Trindade Divina não se encontra nemperfeição, nem pessoa que não te ame infinitamente”. Ou ainda: “Deus nos amacom todo o seu ser e com o mesmo amor que une entre si as três pessoasdivinas.” (p 392 e 994).

Dizer que algo é infinito é dizer que aquilo jamais termina, não tem fim,sempre vai existir... Pensar nas relações humanas que giram ao redor do amor,que são permeadas de promessas de amor eterno, faz a gente constatar afragilidade das mesmas. O amor deixou de ser uma atitude mágica mobilizadorade corações em favor de um bem, para se tornar “mercadoria” ou produto debarganha no comércio das relações. Quando se desfaz uma relação, como amatrimonial, é comum ouvirmos expressões tais como: “Acabou o amor”, “nossavida está virada num tédio”, “nós não somos felizes no amor”... Deixou de existiro princípio cristão do “serviço” ao outro. Aliás, o amor é a única possibilidade defazer as pessoas felizes. Pessoas que se descobriram no exercício da caridadefraterna foram pessoas que tiveram suas existências cobertas de alegria e desentido de viver. Matrimônios em que os parceiros foram capazes dessacumplicidade prazerosa de ser motivo de alegria para outro foram casamentos

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“até que a morte os separou”. Fora isto o que temos assistido são espetáculosde ciúmes, de invejas, de cobranças fúteis e vinganças mesquinhas.

Por outro lado, também é preciso lembrar que o amor humano,experienciado nos atuais tempos do pleno desenvolvimento da globalização daeconomia, passou pela máxima de que eu amo a alguém se também for amadopor ele. A troca parece ser uma segurança exigida para não ser trapaceado peloamor. O sentido da gratuidade desaparece para dar lugar à simples troca.

Ainda vale dizer que ninguém é amado por Deus porque tenha talmerecimento. Muito menos, que Ele ame mais um ou outro por merecimento domesmo. Importa acentuar que Deus nos ama com um amor eterno não porquenós sejamos bons, mas porque Ele é a bondade suprema. Talvez até sejammais amados aqueles que são menos santos, e que por isso mesmo precisammais do amor Dele. Foi também essa a experiência vivenciada por Murialdonaquele momento crítico de sua vida, conforme descreve no Testamento.

Em seu Testamento Espiritual escrevia Murialdo:

“Amei-te com amor eterno. Assim te atraí, miserável!Desde toda a eternidade pensei em ti. Chamei-te pelo teu nomee decidi salvar-te, santificar-te, glorificar-te eternamente, porcausa do amor infinito com que te amei desde os séculoseternos.” (...) E Ele me ama com amor tão grande, tão perfeito,que é amor igual a Ele, infinito, eterno; pois não há desigualdadeem Deus. Não existe mais ou menos. Tudo o que está em Deusé Deus: grande, eterno, infinito como Deus. Deus me ama, pois,no amor infinito.”

Sentir-se amado por Deus com este amor infinito, que não coloca exigênciasde retribuição, traz imensa segurança aos passos da pessoa. Faz perceber quebasta deixar-se conduzir por Deus. Entregar-se em suas mãos. Acreditar defato, leva também a amar de fato: o próprio Deus e as pessoas com quem se faza convivência. Com certeza Deus, em sua infinitude de amor não precisa que apessoa o ame; mas, com certeza, no rosto, no corpo e no coração de tantaspessoas Ele pede socorro. Aí podem nascer respostas humanas ao amor dadivindade. Então, como dizia o próprio Murialdo, é preciso deixar-se guiar pelasmãos de Deus e estar atentos aos sinais que acontecem ao nosso redor:“Estamos nas mãos de Deus e estamos em boas mãos”.

Pensar no amor infinito de Deus não é transportar-se ao mundo das coisasabstratas. Murialdo chega a esta conclusão através de experiências bemconcretas de vida. Se a adolescência lhe foi uma fase difícil da vida e carregada

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Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

de desvios, a experiência da amorosidade de Deus é a descoberta que lhe dáfundamentação para uma vida que será marcada por gestos de altruísmo, debondade e ternura para com os pequenos da sociedade.

3.2 Seu amor é pessoal

“Deus é amável pelo amor especial que tem para cada um denós.” (Escritos, p 353)

Em seu Testamento Espiritual,Murialdo manifesta com clareza estacerteza da fé. Basta lembrar o texto ondeafirma o amor que Deus tem por ele: “Desdetoda a eternidade eu pensei em ti; techamei pelo teu nome”. Ao se sentir amadopor Deus, Murialdo se sente uma criaturaúnica, especial e percebe que toda a suavida vem sendo conduzida pessoalmentepor Deus. Deus, que ele define tambémcomo “bom Pai” (Testamento Espiritual)pensa nele a cada instante, o guia, osustenta e o cumula de muitas graças.

Também naquele momento em quese afastou da graça divina, ele continuousendo amado e procurado pessoalmentepor Deus. Ele mesmo se sente tal qualAdão que, após o pecado, continua sendoprocurado por Deus no paraíso terrestre: “Leonardo, Leonardo, onde estás?”(Testamento Espiritual).

Aqui é preciso reconsiderar a idéia tão difundida de que “Deus ama atodos”. E isso é verdade. Mas não ama a todos enquanto alguém que ama umgrupo, a humanidade... numa idéia de impessoalidade. Deus ama a cada umem particular e por isso ama a todos. O amor é vivido numa relação pessoal, nãode massa. Ama a cada um como se fosse único na face da terra. (Cfr. Escritos,Vol. III, p 490). Ou mesmo, conforme afirma: “Deus nos ama como uma mãeama seu filho único” (Escritos, Vol. IV, p 793).

Talvez a experiência do perdão, de se sentir perdoado por alguém que éinfinitamente bom, tenha reforçado ainda mais a idéia de sentir-se querido porDeus. Então ele podia afirmar com toda a convicção: “Deus me ama. É verdade!

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Deus me ama. Que alegria! Que consolação!” (Testamento Espiritual) E foi porisso que deixou um desejo especial de crença e difusão: “o conhecimento doamor... individual que Deus tem para com todos os homens... do amor pessoalque tem para cada um em particular” (Testamento Espiritual).

A relação pessoal com a divindade, própria da espiritualidade de Murialdo,traz uma resposta muito concreta ao indiferentismo que, nos tempos atuais, sevive dentro das relações pessoais. O árido formalismo das relações maisinteresseiras que amorosas, o prazer no mau gosto em desmontar a auto-estimados outros esvaziam o desejo de conviver e fazer comunidade. As exigências decuidados para não se ferir, para não sair marcado, para não se comprometercom a vida do outro faz das atuais relações pessoais algo muito fruitivo, quefoge com a mesma rapidez com que apareceu.

A religiosidade que parte dessa certeza absoluta do amor pessoal de Deusparece querer lançar a pessoa humana para uma outra dimensão de convivência.Amar alguém é ao mesmo tempo estar comprometido com o seu bem e a suarealização. É desejar sua salvação; querer que não se perca e estender-lhepessoalmente a mão. Isso ensina aos pais a importância do amor pessoalesposo-esposa, do amor pessoal para com os filhos. Faz com que os paispercebam seus filhos como seres únicos, que é a cada instante que precisamse sentir amados. E que cada um deles é tão importante como se fosse único.Que eles valem mais do que qualquer outra coisa que possam buscar ou possuir.Que aquele filho que está com mais problema é o alvo da sua maior atenção eamor. Essa mesma experiência passa a ser significativa também para oseducadores. Relacionar-se de forma pessoal com seus alunos e buscá-los comoseres únicos. Entender que essa arte de ensinar e aprender é uma açãodirecionada primeiro para o coração; que a primeira exigência para o prazer deaprender passa pela dimensão da relação educador-educando. Bem como, queé no coração que está a maior preciosidade do outro.

3.3 Seu amor é atual

“Deus me ama com amor atual.” (Escritos, Vol.I, p 73)

Uma característica, não menos importante da descoberta espiritual deMurialdo sobre o amor de Deus é essa de que seu amor por nós é algo que seexprime em cada instante. Deus me ama agora, neste momento. Então, mesmoque eu esteja vivendo um momento de erro, de desvio dos valores evangélicos,Deus continua me amando e querendo-me bem. É a cada momento que temosnecessidade de sermos perdoados, porque nossa resposta ao seu imenso amor

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nunca é total e radical na medida em que é seuamor por nós.

Essa convicção de Murialdo faz a genteperceber que o amor de Deus nos acompanhaconstantemente, passo a passo, minuto a minuto.Em seu Testamento Espiritual, quando apresentao título “Meus dois Desejos” ele apresenta ascaracterísticas do amor de Deus e sublinha duasvezes o adjetivo “atual” que explica depois, assim:“... é no presente, agora, neste momento que Deusnos ama verdadeira e infinitamente”.

Desta forma não se pode mais entender quealguns momentos de nossa vida são mais preciososdo que outros. Ou que alguns são privilegiadossobre outros no nosso contato com a divindade.Mas compreender que todo momento é preciosoporque é rico do amor de Deus. Talvez algunsmomentos possam ser mais significativos na nossa relação com o transcendenteporque nos empenhamos mais em determinados instantes para vivenciar nossoamor por Ele. É preciso, porém lembrar que as contingências do momentopresente, suas agruras ou percalços sempre contem a grandeza e infinitude doamor divino. Essa verdade extraordinária pode tornar uma vida extraordinária.

Na mentalidade moderna costuma-se definir o homem como artífice deseu destino. Isto é, ele em si mesmo é o único responsável pela sua vida e seufuturo. Por um lado isso tem seu aspecto positivo enquanto condena toda apassividade fatalista do “Deus quer assim”. E, ao mesmo tempo é capaz dereconhecer as limitações insuperáveis da pessoa, medidas, inclusive, em tantosfracassos e desilusões presentes na história da humanidade.

Mas nessa mentalidade moderna parece existir espaço para o tema daprovidência de Deus, ou seja, espaço para a percepção de que Deus cuida denós sim. Nesse sentido talvez estivesse escrevendo:

“O homem não é um menino deitado no berço do qual mamãeespanta as moscas, mas antes alguém que deve ser ajudado acaminhar. Devemos fazer como se tudo dependesse de nós econtar e esperar tudo de Deus como se nós fôssemos nada.”(Escritos, p 684)

O amor atual de Deus, na concepção de Murialdo, apresenta a divindade

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encarnada na vida concreta das pessoas. Deus é apresentado com quemcontribui e ajuda a pessoa a superar, desde sua interioridade, as contradiçõesde sua liberdade, de sua justiça, de seu amor. E vai abrindo a pessoa paraprojetos pessoais que dêem significado à própria existência. Deus é providenteporque é uma fonte de ações generosas; não permite omissões mas anima avida através de um otimismo criativo e solidário.

3.4 Seu amor é terno

“Deus é nossa mãe. Oh, sim, não é verdade que as mães queremter um amor mais carinhoso, mais terno e mais afetuoso? Poisbem, Deus tem para conosco afeto de mãe (...) É um Deus todoamor para conosco. Isso não vos causa emoção? Ele vos amamais do que vossas mães; infinitamente mais!” (Escritos, p 191).

Definir o amor de Deus relacionando-o à ternura expressagrande encantamento amoroso. Essa descoberta não nasce dacapacidade mental, ela é experienciada no coração da pessoa.Reflete uma atitude interior para com o divino. Atitude essaque se desprende de qualquer medo, receio... mas se carregade confiança, de segurança, de bem-estar. Essa atitude nasceda possibilidade de poder penetrar no coração de Deus econseguir “ouvir” seus sentimentos.

É claro que para chegar àquela comparação, o amor divino e o amormaterno, Murialdo estava fortemente marcado pela experiência do amor da própriamãe. Cada mãe leva dentro de si algo do divino ao carregar uma vida em gestação.Carrega muito mais quando consegue deixar-se encher de ternura pelos filhos.Sem considerar que esta também deve ser uma atitude paterna, precisamoslembrar que Murialdo tornou-se órfão de pai quando ainda era muito pequeno, aternura é irmã da estima, do carinho, da admiração ingênua, do aplauso, dabondade e da beleza.

O amor de mãe, ou de pai, é um amor zeloso, atento, cheio de cuidadosespeciais. É uma atitude, mais que um sentimento. Atitude que se extasia emcontemplar a vida, que faz esquecer-se de si mesmo, que faz redobrar-se deatenções vigilantes. E assim, e muito mais, é o amor de Deus por cada um denós.

Se a santidade é obra-prima do Deus-amor, a mãe foi para Murialdo aimagem do amor de Deus. Ficou bem mais fácil compreender o quanto Deus lheamava quando lembrava do amor de sua mãe por ele próprio. E é no momentomais complicado de sua crise que ele vai recorrer à sua mãe. E ela o ajudará a

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descobrir o valor real de talsofrimento. A volta do colégiointerno para o colo de sua mãeindica uma fase delicada no seuamadurecimento afetivo. Poderiater gravada e se deixado marcarpor uma imagem negativa deDeus e se tornado umcontestador Dele e da própriaIgreja. Ao narrar sua volta paracasa, ele se apressa em dizerque sua mãe, Tereza,encaminhou-o ao Pe. Pullini, amigo da família e verdadeiro educador cristão.

E se as nossas mães, desse mundo moderno, conseguissem ainda estaratentas às crises de seus filhos? Então, quem sabe, nossos filhos, especialmenteos adolescentes, conseguiriam procurar primeiro suas mães como chaves derespostas para suas angústias, seus problemas, suas decepções! E se nossasmães conseguissem encaminhar seus filhos para alternativas positivas? Ah! Seas mães conseguissem amar com tal ternura seus filhos! Se estivessemempenhadas em transmitir mensagens positivas e carregadas de ternura sobreDeus e as coisas do alto! É claro: Ah! Se nossos pais fossem...!

O amor de Deus se expressa em ternura na eucaristia. Murialdo tinha umfervor especial quando se preparava para esta celebração. Costumava dizer queela era o ponto alto do dia. Certa vez escreveu:

“Ver um Deus que se reduz sob a forma de um pedacinho depão por nosso amor, ver a Deus que sofre, que morre por nossasalvação!... É grande demais, terno demais seu afeto paraconosco...” (Escritos, p 764)

A descoberta do amor terno e, mais do que isso, a vivência dessa certezacarrega a pessoa humana de grande auto-estima e de segurança para dar ospassos de sua vida. Trata-se de perceber que mesmo que ninguém nos amasse,nem a mãe ou o pai, que nos sentíssemos excluídos dos círculos de amizades,que não tivéssemos a experiência do namoro... que as pessoas não nosaceitassem assim como somos... Apesar desses percalços das relaçõeshumanas, Deus nos ama e tem muita ternura por nós. Seu cuidado é afetuoso,de quem transmite carícias, afagos. Perceber-se nessa dimensão de relaçãocom o divino que acaba construindo ou fortalecendo a auto-estima e dando maissegurança para as novas relações humanas que deverão ser desencadeadas.

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3.5 Seu amor é misericordioso

“Antes de deixar-vos, quero legar-vos uma lembrança: alembrança das misericórdias que o bom Deus quis conceder-me, sendo o mais ingrato dos pecadores. (...) Que história, meuDeus! É a história das vossas misericórdias e das minhasingratidões! Eu vejo que eu deveria ser o objeto da execraçãode Deus: mas pelo contrário me vejo o objeto do amor e dosbenefícios de Deus. Oh, como vossa misericórdia infinita setornou sensível naquela ocasião (referência à sua confissãosacramental de sua conversão).” (Testamento Espiritual)

Dizem os estudiosos de Murialdo que foi a crise existencial pela qual elepassou que o fez perceber de modo concreto a misericórdia de Deus. ParaMurialdo Deus é misericordioso porque o seu amor se faz perdão sem limites esem medir nossos merecimentos. Tanto é misericordioso que admite de novo opecador ao convívio do seu coração. Murialdo se percebe como um cristão, umsacerdote ou um religioso que não ama a Deus o suficiente como deveria amá-lo. Porém, se sente constantemente amado por Deus. Isto o faz ver sua existênciacontinuamente mergulhada na misericórdia de Deus. Misericórdia esta que nãoé um ato isolado, mas presença e aconchego permanente de Deus junto a ele.Isto porque ele continuamente está também necessitado de perdão. É por issoque nos seus escritos diz que “a misericórdia é para os míseros” (Vol. II, p 263).

Em seus Escritos Murialdo costumava citar muitas frases bíblicas. Quandofaz referência à misericórdia de Deus traz presente trechos bíblicos sobre estetema. São muito interessantes e dão uma dimensão da riqueza de suasmeditações, bem como, de sua visão sobre a divindade:

“A tua misericórdia, ó Senhor, me seguia de perto todos osdias.” (Sl 22,6)“A tua misericórdia ainda me circundará.” (Sl 31,10)“Me preveniste com a tua misericórdia.” (Sl 58,11)“É pela misericórdia de Deus que não fomos destruídos.” (Lm3,22)“Grande é a misericórdia para comigo.” (Sl 85,13)

Consegue-se entender muito bem a imagem que Murialdo fazia de Deusem seu coração.

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“Deus é bondade, ou melhor, misericórdia infinita. (...) Deus émais bondoso e misericordioso do que quanto pensamos,infinitamente mais bondoso. (...) Misericórdia de Deus, vós soisa mais amável das perfeições de Deus. (...) Deus nos ama muito,também se somos pecadores. (...) Os pecadores eram a pupilados olhos de Jesus Cristo, a pérola mais preciosa aos seus olhos,o tesouro preciosíssimo. (Escritos, Vol. II)

Através da experiência pecado-perdão, Murialdo vai percebendo demaneira viva e real a misericórdia que Deus tem por ele. Ela não é algo escrito,meditado apenas, mas experienciado concretamente em sua vida. Ele sabe queDeus trata a todos com grande bondade, também aos pecadores, de acordocom seu amor, com a grandeza de sua misericórdia e não com o grau de nossaperfeição.

A misericórdia é a dimensão indispensável do amor, é o olhar de amorque gratuitamente se inclina sobre a miséria. E perdoa. Não só perdoa, ama.Ah! Se nossa educação pudesse ser mais permeada dessa característica doamor: a misericórdia. Se os educadores conseguissem compreender que amisericórdia caminha com o erro e não com os acertos. Que ela é conseqüênciado amor pelo outro e não a sua contrapartida ou exigência de retorno emocional.

Ah! Se as nossas famílias conseguissem compreender a profundidade doamor misericordioso! Quantos casais se perdoariam sem cobranças e quantascarícias misericordiosas invadiriam os espaços físicos de suas residências!Quantos filhos passariam a admirar e não temer seus pais e fariam com elesgrandes projetos de vida; sem asilos, sem ressentimentos, sem abandonos!Quantos filhos estariam sempre com muita vontade de voltar para casa, para oaconchego, para o lugar da estima, da identidade, da segurança... porque asaudade mora no coração de quem se sente amado e perdoado!

Não estariam aqui algumas chaves de leitura para compreendermos omundo e as situações de violência que nos rodeiam. As bem-aventurançasevangélicas também afirmam: “Bem-aventurados os misericordiosos”. Existeum círculo implacável de ódio e ressentimento muito presente nos corações daspessoas do mundo em que estamos vivendo. E isto não se rompe com a violência.Ela acaba gerando ainda mais ódio. Por outro lado, devemos admitir que aaplicação da justiça também não é um dado suficiente para coibir ou apagar taissentimentos. Todos nós somos testemunhas do quanto nossa geração sofreamargamente por causa desta lógica cruel. E tem, inclusive, pagado altos preçoscomo conseqüência destas distorções existenciais.

A espiritualidade de Murialdo aponta para uma solução que se encontraem Deus. Trata-se de redimir os lobos para que se transformem em cordeiros esaboreiem os frutos suaves e saborosos da bondade mansa, da ternura emisericórdia. Ou seja, do poder de perdoar.

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4. Sem a fé não se chega a Deuse sem ternura...

“A amizade é o eco do divino sobre a terra e o testemunhomais certo de que Deus está presente em nós com a sua graça.”(Escritos. Vol. 26 - 1050)

Um dos pedidos que Murialdodeixou à sua Congregação era essede que ela se empenhasse emdifundir o amor de Deus. Em primeirolugar, deixava entender que osmembros da Congregação sãochamados a testemunhar e difundiresse amor entre eles mesmos.

Ele estava constantementepreocupado com as relações dosseus educadores para com oseducandos. Estava convencido deque a ternura, a misericórdia, abondade eram linguagens quetocavam o coração. Assim como eranecessária a fé para encontrar-secom Deus e experienciar seu amor,não se consegue chegar a outrapessoa sem a bondade. Então tal prerrogativa não valia apenas para o apostoladocom os meninos. Seu significado atinge todas as pessoas e em todas ascircunstâncias de relacionamentos, inclusive na convivência da comunidadereligiosa. Em determinada ocasião ele deixou escrito:

“Cada um encontra na vida religiosa aquilo que com ele carrega:se leva guerra, encontra guerra; se leva paz, encontra paz... Seformos dóceis como Jesus, se formos pacientes como Jesus,os outros também serão bons; se não, não...” (Escritos IV, p.468)

Murialdo cria um estilo educativo muito próprio enquanto fundamentado

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nesta convicção do amor de Deus. E aqui aparece o segundo campo detestemunho de divulgação do amor de Deus para os membros da Congregação.Tratar-se-ia de estabelecer com os educandos um relacionamento pessoal quepermitisse depois realizar algo realmente formativo e que os conduzisse àsalvação. Seus textos estão recheados destas notas. Veja-se, por exemplo:

“Quanto seria desejável se pudesse introduzir entre nós oespírito de doçura, de familiaridade, de paciência com osmeninos. Seria o segredo para fazer um pouco de bem às almasque Deus nos confia;... não há outro jeito de atrair os meninosa Deus a não ser pelo ímã da doçura. Esforcemo-nos, pois, deter sempre, quando tratarmos com eles, um rosto alegre, umtrato gentil, uma conversa agradável, afável, afetuosa; se nãoo fazemos naturalmente, façamo-lo de forma pensada, comempenho, também com esforço, por amor de Deus e das almas.”(Escritos V, p. 2156)

A acolhida das crianças, adolescentes e jovens empobrecidos nasciacomo decorrência da consciência de ter sido acolhido por Deus com misericórdiainfinita e com amor gratuito. Segundo G. Fossati, em Murialdo foi isso que “abriuseu coração e seu braços aos meninos pobres” (Ritornerò da Mio Padre –Itinerario Spirituale sui Passi di San Leonardo Murialdo. Libreria EditriceMurialdo. Roma, 1999, p.103). De fato, comenta o autor, não se pode acolherDeus sem acolher os irmãos, e acolhê-los em nome de Jesus.

Mas, mais do que envolver-se com os meninos empobrecidos, é precisodar atenção especial ao modo de relacionar-se com eles. As recomendações deMurialdo eram de que o estilo pedagógico deveria se resumir em três palavras:doçura, familiaridade e paciência. Esses termos fogem dos espaços dapedagogia, invadem aquele da teologia porque manifestam a forma com queDeus misericordioso age conosco.

Escrevia Murialdo: “Sem a fé não se chega a Deus, sem a doçuranão se chega ao próximo.” (Escritos IV, p.40)

Costumava insistir com seus confrades para que usassem de doçurapara com os meninos indisciplinados (Escritos IV, p.241) e especialmente comos jovens mais grosseiros e violentos; doçura nos sentimentos, nas palavras(Escritos II, p.164). Existem duas expressões que podem sintetizar o ensinamentode Murialdo: com os jovens precisa ter “amabilidade positiva” (Escritos V, p. 30)e se deve tratá-los com “doçura nos modos e com caridade no coração.” (EscritosV, p.57)

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Por outro lado, tendo percebido a presença de Deus em sua vida, mesmoquando esteve em situação de pecado, Murialdo apresentava a familiaridadecomo outra característica da pedagogia junto aos meninos. A familiaridade, paraele, consistia na presença serena eafável em meio aos jovens; mas comtodos os jovens, independente deseus comportamentos e de suasrespostas à ação educativa.Inspirando-se em São José lembravaque o educador é chamado a viver nomeio dos meninos como “amigo,irmão e pai”.

Afirmava Murialdo ainda:

“... o espírito de doçura, de familiaridade, de paciência com osjovens... é o segredo para fazermos um pouco de bem;... osmeninos não se entregam a Deus com outra proposta foradaquela da doçura.” (Epist. V, p.2156)

A respeito de Murialdo e seu jeito de acercar-se dos meninos, existemdepoimentos muito interessantes do Pe. E. Reffo, que com ele conviveu: Vejamosalguns:

“Ele era tudo para seus jovens, os amava sinceramente, masnão tinha preferências; era cortês e imparcial com todos e cadaum podia estar certo de ser amado por ele. Ele conhecia bemas condições de família de cada um para saber se relacionarbem com esse e com seus parentes e tinha cuidados especiaispara com aqueles que eram oriundos de famílias sem princípiose cheias de misérias morais... Antes de tomar qualquer atitudeou medida mais drástica com relação às indisciplinas, comouma expulsão, consultava os mais velhos duas a três vezes,consultava-se com Deus, colocando-se na capela frente aoSantíssimo Sacramento. Depois de tudo, cedia mais para amisericórdia que para o castigo, as lágrimas dos meninos odesarmavam, e quase sempre ficou muito feliz em ter cedido...Com estes meios ele obtinha muitos resultados positivos e osmeninos tinham cuidado para com a ordem e respeito paracom os educadores sem, porém, que a disciplina endurecesse efechasse seus corações bem como, que o Colégio parecesse maisuma prisão que uma família.” (Vita Del Servo di Dio LeonardoMurialdo. Tipografia Pio X. Roma, 1956, pp.56-57)

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5. Para que nenhum deles se percaresponsabilidade religiosa e social

Murialdo parece fazer com muita clareza a experiência da descoberta doamor a Deus e amor ao próximo como um só movimento. Isto é, que omandamento do amor é um só. E São João é quem lembra: “Se alguém disserque ama a Deus e odeia seu irmão, é mentiroso.” (1Jo 4,19-21) Entende-se,pois, que não existem dois amores: um amor a Deus e um amor ao próximo.Mas há um só movimento de quem vai ao outro, abraça-o e termina sentido-seabraçado por Deus. Neste movimento conclui que quem tem amor tem tudo.Bem como, que é por aí quepassa a salvação: a sua e a dooutro. Mais do que as palavrassão as práticas de solidariedadee de amor.

O mundo atual vive umcontexto onde, cada vez mais,se acentua o abismo entre asnações ricas e os paísespobres. As estatísticas sobre onosso país atestam que 53milhões de pessoas estãovivendo em condições de pobreza e miséria. A exclusão de pessoas, de grandesmassas ou, até mesmo, de continentes têm se manifestado como o maior dosmales da humanidade.

A rápida mundialização da economia, com suas funestas conseqüênciaspara a maioria da população mundial espalhou um vírus que é avassalador: oindividualismo com suas expressões de competição, consumismo... adesintegração social. A sociedade acabou colocando suas energias em funçãodas satisfações individuais; mas não de todos, só de alguns.

O projeto atual de sociedade mundial colocou a medida da felicidade noconsumo. O mercado é o advento da liberdade. Tornou-se um novo deus. Masisso não é verdadeiro. A prioridade do mercado criou uma nova forma deescravidão. Todos devem comprar e comprar sempre mais. Quem não conseguecomprar sofre a repressão dos vizinhos, dos colegas, amigos. O consumo não

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impõe limites. O dinheiro nunca basta. Suas maiores vítimas são as crianças.

Como ser cristão neste mundo? Como se deixar inebriar do amor de Deussem olhar o que acontece ao redor? De acordo com a mística de São LeonardoMurialdo é possível isolar-se desses dados sociais e vivenciar em “paz” o amorde Deus? O amor de Deus por nós não nos refugia em nosso individualismoespiritual?

Certa ocasião Murialdo escrevia:

“É Deus que faz o bem, mas exige como condição que nóstrabalhemos, semeemos, façamos, façamos o que está ao nossoalcance; e depois que rezemos, rezemos.” (Escritos, III, 432,2)

O amor cristão tem uma missão. Essa missão nasce do comprometimentocom o seguimento de Jesus Cristo. É bem verdade que a opção preferencialpelos pobres, tão presente na ação de Murialdo, foi conseqüência da descobertado amor de Deus. Sentindo-se tão amado, é impossível não amar. E para amaré preciso ir até o irmão porque Deus, em si mesmo, não precisa do nosso amor.

Mas existem filhos seus que precisamsim, e com urgência.

A mística do amor de Deusem São Leonardo Murialdo passou aser uma experiência espiritual cristãque o leva à “carne do mundo” com omesmo espírito que animava JesusCristo. A experiência do amor de Deusnão o separa do mundo para elevá-loe isolá-lo “nas alturas”. Mística emissão aparecem como dois rostosinseparáveis da experiência religiosade Murialdo. O risco passa a seraquele da tentação atual de vivermosa perversão desses dados históricos:

a mística tornar-se-ia misticismo sem controle e a missão um mero ativismosem alma nenhuma.

Murialdo soube manter unida a paixão por Deus e a missão de serviço aosúltimos. E fez também perceber que a verdadeira missão cristã só se mantémenquanto alimentada por uma mística de amor. As obras até podem ser resultadode competências profissionais esmeradas, mas sem esses dados místicos elas

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acabam perdendo suasalmas, suas paixões, seusbrilhos.

Costumava trazerpresente também que asalvação dos meninos nãose resumia às suas vidasmateriais. Que era muitoimportante apresentar-lheso caminho do reino dosCéus. Sentir-se amado porDeus, viver esta experiênciagrandiosa de fé, exigia delelevar essa mesma possibilidade ou a chance de se aconchegar de Deus tambémna eternidade. E disto as crianças, adolescentes e jovens não podiam serprivados. Assim escrevia aos seus religiosos, em carta circular:

“O amor de Deus reine... nos vossos corações. Então cuidaipara acrescentar este amor de Deus... O amor de Deus origineo zelo pela salvação dos pequenos; que não se percam, diz SãoJoão Crisóstomo; não se percam, não se desviem... masverdadeiro cuidado para salvá-los, de ensiná-los bem sobre ascoisas da religião, apresentar-lhes o amor de Deus, de JesusCristo, de Maria.” (Epist. V, p.2187)

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6. Estamos nas mãos...

“Deixemos Deus agir. Ele nos quer bem, muito mais de quantonós mesmos possamos querer. A nossa sorte está melhor nassuas mãos que nas nossas... Nós cristãos estejamos semprecontentes. Pode, por acaso, acontecer-nos algo que Deus nãoqueira?... Tudo vem de Deus, tudo será para o nosso bem.Deus é nosso Pai... Sim, meu Pai! Tudo é para o melhor!”(Escritos in Reffo, E. Vita Del Servo di Dio LeonardoMurialdo.Tipografia Pio X, Roma, 1956, p.229)

É bem verdade que a maioria dos cristãos, desde a infância, ouviu dizerque Deus nos ama; e ouvimos isso muitas vezes. Nossos ouvidos já seacostumaram com essa verdade. E ouvir novamente isso já causa poucarepercussão em nossa vida. Usar a afirmativa passou a ser algo já sem muitofundamento e verdade, uma espécie de chavão que se repete sem esforçoemocional ou mental.

Trata-se, às vezes, de se perguntar se nós cremos mesmo que somosamados tão intensamente por Deus. E, dar-se conta de que se, de fato, cremostambém o amaremos. Qual o coração que não ama quando se sente amadocom tanto intensidade? E afirmar que amamos a Deus significa também sintonizara nossa fé com nossa própria vida, isto é, traduzir em atitudes, comportamentos,em atos o sentimento que temos por Deus.

Murialdo escrevia: “no mundo reina um escândalo, um erro, e diria, umaimpiedade que causa o maisdeplorável prejuízo na Igreja deCristo, e é que não se crê noamor de Deus por nós”. Essacrença transporta a pessoa paraum outro contexto de fé: existeum Deus que tudo faz paranosso bem porque nos ama.Tudo o que nos acontece,mesmo a doença, a dor, asprivações... tudo é fruto do amorde Deus; um amor, às vezes,

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incompreensível... mas sempre dirigido para o nosso bem.

Em determinado momento de sua vida, Murialdo assim se expressara:

“Nas doenças, na pobreza, na desolação, nas contrariedadese nas fadigas que se sucedem no cotidiano, reconheçamossempre a mão paterna de nosso Deus que nos prova, mas parasalvar-nos.” (Escritos. Vol. III, p 541)

Leonardo Boff, ao analisar as experiências que a humanidade faz em contatocom o sagrado e o divino afirma que “o sagrado não está nos objetos, no altar,na eucaristia, no livro sagrado ou em pessoas consagradas. O sagrado é aprofundidade de cada pessoa humana. É a misteriosidade de cada ser daCriação.” (Mística e Espiritualidade. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1994, p 67)

Seria uma grande tristeza e decepção para uma pessoa ter sede imensade Deus e não conseguir encontrá-lo nunca. A teologia nos fala da imanência eda transcendência de Deus. Isto é, que ele está aqui dentro do nosso mundo, nocoração das criaturas criadas (imanência). E Ele é algo superior a tudo que sepossa imaginar, e está lá, no outro lado, acima deste nosso mundo, no além;Ele é o céu (transcendência). Mas que no final se conclui que Deus está aqui elá; que não existem espaços sem Ele.

O papel importantíssimo da religião é esse de ajudar as pessoas adescobrirem Deus dentro de nós, na comunidade, no caminhar da história decada um e da humanidade. Não pode se reduzir a essa coisa de exercícios,como: ir à missa, fazer orações, participar de reuniões da comunidade... ODeus que se revela na experiência de Murialdo é um Deus vivo que se comunicaatravés de muitos sinais. E se em Deus existe a imanência e a transcendência,podemos afirmar que em Jesus Cristo se dá a transparência. A sua ternura paracom os pobres e as crianças, sua abertura para Deus chamando-o de “Paizinho”faz vermos o amor divino. Aquilo que ouvíamos agora vemos. Torna-setransparente. “Quem vê a Mim vê ao Pai”. A transparência aí é a expressão quesignifica a presença do Pai em seu Filho encarnado. Jesus revela o Pai. Bemcomo, Deus não é só a luz que ilumina de fora este mundo, mas a luz que oatravessa, que torna a realidade transparente. Através de Jesus nossa realidadede mundo, de história, de cosmos, ficou tocada pela divindade, ficou transparente,sacramental. E vendo esse mundo podemos afirmar que Deus está dentro dele.E é neste mundo que acabamos captando Deus (Cfr. L. Boff. Op.cit. p 71).

Pois bem, existem também pessoas que conseguem ser a transparência.Manifestam, sem nenhum esforço, a presença de Deus nelas e nas criaturas.São pessoas muito sensíveis à natureza e nela lêem as manifestações de Deus,

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são suas transparências. Murialdo parece ter sido uma dessas pessoas. Vejamosalguns dos seus pensamentos, retirados dos seus escritos:

“É próprio dos santos dar uma alma a tudo o que existe eemprestar a própria a todas as coisas criadas, com o fim demultiplicar o número dos que adoram e amam a Deus.”

“Pois, quando se tem Deus no coração, tudo fala Dele, tudo seama Nele. Ama-se a Deus nas suas obras e nas criaturas todascom simpatia sobrenatural com que contemplava a Deus e oamava São Francisco de Assis.”

“Que grande artista é Deus! Artista no olho do homem. Artistana estrela misteriosa. Artista na humilde flor do campo. Anatureza é o teatro de Deus. Os céus, a terra, os amores, cantama sua glória. As ervas, as plantas, as flores e os frutos, as fontes,as aves e os peixes representam a sua vida e a sua fecundidade.Mas milhares de mundos, juntos, não poderiam representá-lo.Sua atividade é permanente e fecunda.”

“Gosto de contemplar, nas flores, a imagem do Verbo Eternoque, brotando do seio do pai, mostra visivelmente as belezas eperfeições de Deus, escondidas no segredo de sua essência. Elese tornou a flor da nossa terra e, em Cristo, a manifestou aoshomens. Talvez por isso gostou de ser chamado a flor doscampos, o lírio dos vales.”

“O que cantais, meus queridos passarinhos? Eu vos contemplomaravilhado e vos escuto. Foi Deus que vos fez tão lindos. Evós, com vossos gorjeios festivos, cantais a Ele. O seu nomevos torna alegres e exultantes nos matos. Vós cantais a Ele.”

Claro que pode existir agora uma pergunta a nos intrigar: O que tem tudoisso acima a ver com a constatação de que “estamos nas mãos de Deus eestamos em boas mãos” de Murialdo? Pois bem, Murialdo é um místico procurasempre ver o que está por trás de cada coisa, procura descobrir o que a constituie a sustenta. É verdade que não fica preso às coisas, mas busca fazer delassímbolos, sinais, sacramentos, imagens. Para ele o mundo é uma grandemensagem.

Vivendo assim ele já não precisou fazer esforço para que a toda horativesse que pensar em Deus. Sua proximidade com a divindade o levava a nãomais pensar em Deus, pois isto deixaria Deus apenas na esfera da inteligência

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Encantamento e Ternura - O Amor de Deus

e não em seu coração, em todo o seu ser. Ele estava tão próximo de Deus quejá não precisava pensar muito. Bastava sentir. E não é assim mesmo que amaioria do povo faz sua experiência de religiosidade? Mais do que fazer reflexãosobre Deus ele vive Deus no seu cotidiano.

Segundo essa experiênciamística de Murialdo, mais do que falar deDeus, é preciso deixar que Ele fale em nós,nas criaturas. Ele está presente em nossavida sem que a gente se dê conta. AssimMurialdo pode concluir que Ele cuida bemde cada um de nós, mais do que a gentemesmo seria capaz. Esse extasiar-se frentetudo leva a concluir que além de qualqueresforço que cada pessoa humana deva fazerexiste uma certeza que é absoluta: nadapode abalar uma vida quando ela se percebeprotegida por Deus.

Trata-se de deixar Deus agir. Eleconhece melhor do que nós o que é útil para

nós. Significa viver a sintonia com a natureza, com os cosmos... as váriasmanifestações da divindade. Esse abandono à providência, que não significadesinteresse da pessoa, é sentir-se livre para permitir que Deus construa ahistória de cada um. Essa liberdade é, ao mesmo tempo, muito carregada de fé,da confiança filial de quem se vê nas mãos do Pai e que, desta forma, nada tema temer, pois está em boas mãos.

“Deus me ama com amor infinito,pessoal, atual, terno

e misericordioso.” Murialdo

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Subsídio 08

Conclusão

Mergulhar na experiência do amor de Deus parece diferente do mergulhoque os meninos costumam dar nas águas turvas do Rio Lava-pés, aquele quecorta a Fazenda Estrela, lá em Lajeado Grande, município de São Francisco dePaula, no Rio Grande do Sul.

No Rio Lava-pés os meninos já elegeram uma pedra como seu trampolimpara saltos e mergulhos. Não é qualquer pedra, pelo contrário. É uma pedragrande, não pontiaguda, que se encontra na margem esquerda, lado contrárioao da mata. Está de frente para o pequeno poço que se forma logo após ascorredeiras. O local é pequeno, mas bastante amplo para acolher um grupoirrequieto e solidário de aprendizes da arte de se locomover sobre as águas eaté debaixo delas. O leito é pedregoso, como também são suas margens.

A pedra, aquela do trampolim, serve muitas vezes para quebrar o medo dochoque térmico do corpo aquecido por tantas atividades esportivas com as águasque quase sempre são muito frias. A pedra serve também para criar novos saltos,inventar acrobacias... e o bom mesmo é quando os outros estão parados paraobservar, especialmente os monitores, referências ou autoridades maislegitimadoras dos feitos heróicos dos pequenos. Nem todos saltam. Alguns sóobservam. Têm medo. A pedra lhes surge como ameaça. Não a pedra, mas oque ela pode fazer: lançar você para algo desconhecido e ameaçador.

Aconteceu há pouco tempo que um dos meninos, que dizia com orgulhoter aprendido a nadar e a mergulhar que, ao saltar do “trampolim” para seumergulho, descuidou-se ou, quem sabe, movido pela paixão da aventura dearriscar as águas mais profundas, foi bater com a cabeça numa das pedras doleito do rio. Nada de tão grave que alguns pedaços de gelo não pudessemresolver. Mas a notícia se espalhou logo entre o grupo. E se aquela pedra já eraum símbolo de medo para alguns, passou a assustar também a outros mais.

A espiritualidade de Murialdo lança a gente para a vida. A certeza do amorde Deus não parece essa pedra do Rio Lava-pés. Talvez o período de crise queviveu antes de seu aconchego definitivo com a divindade fosse aquela pedraameaçadora de lançamento para as águas turvas de um rio bastante gelado. Aexperiência do amor de Deus é carregada de seguranças. Trazer na própria vidaessa presença amorosa de Deus afasta os medos do Absoluto. Sim, porque oamor já desmontou aquela imagem de um Deus amargo, turvo, cheio decobranças. O amor de Deus permite que a gente mergulhe em águas muito

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cristalinas, quentinhas, límpidas, seguras... Esse banho de imersão na suagraça reanima, encoraja e nos torna ainda mais ágeis para a missão de amar.

Se a fé no amor do Pai nos faz saltar para a experiência de se deixar amarpor Deus, de se deixar abraçar por ele, essa mesma fé mostra que na vidaexiste um só movimento de amor, que engloba tudo. Mostra que, no mergulhopara a vida, o mesmo abraço de Deus nos leva a abraçar o próximo. E que onosso abraço ao próximo é a solidariedade e o amor especialmente às crianças,adolescentes e jovens mais empobrecidos. E que esse abraço está abraçando,assim, o próprio Deus.

É Deus que se apresenta como a pedra para o salto, como a água cristalinae acolhedora, porque é Ele que nos ama por primeiro com amor que é infinito,pessoal, terno, atual e misericordioso.

Rio Lava-Pés, em Lajeado Grande: crianças brincando durante colônia de férias

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Família: Lugar de Construção

Senhor, nosso Deusa tua luz e a tua beleza enchem o universo.No azul do céu vemos o teu olhar,o vento torna-se mensageiro de tua luz,também a tempestade manifesta a tuapresença.

Ergo os olhos para o céu e vejo o azulmaravilhoso...Como é belo contemplar a limpidez dofirmamento, sinto vontade de cantar.Ao anoitecer, quando tudo escurecee o céu se reveste de estrelas,sinto-me pequeno, pequeno mesmo...

Tu criaste a terra e os mares, modelastemonte e vales...É lindo contemplar o mar calmo e sono-lento... aquecido e embalado pelo sol.É belo também ver o mar,com suas enormes ondas,e com suas águas espumejantes.

Gosto de escutar o gemido das ondasquando se chocam com os rochedosque lhe proíbem passar além.

Fizeste brotar as fontes e os rios,fizeste crescer os bosquese os enriquecestes com o canto dospássaros.Com o sol e a luaenches de beleza e de vidao dia e a noite...

Bendito Sejas Senhorpor este tempo de férias...Bendito sejas por todas as maravilhasque nos circundam.

Dá-nos sempre a sabedoria para te louvar.Faze que vivamos estes dias na liberdadede filhos de Deus, de filhos teus...

Que artista é Deus!Artista no olho humano,artista na estrela misteriosaartista na humilde flor do campo.

O que vocês cantam, pequenos pássaros?Eu vos observo com admiração e vosescuto...Foi Deus que vos fez assim tão lindos.Vosso canto melodioso e docelouva a Deus todos os dias.

A natureza é o palco de Deus...O esplendor dos céus, da terra e dosmares cantam a tua glória...As ervas, as árvores, os frutos, as fontese os animais representam a fecundidadeda vida...

Milhares de mundos unidosnão conseguiram representar a Deusem toda a sua beleza,sua atividade permanente e fecunda.Um dia o bom Deus, retirará o véu emostrar-se-á a nossos olhos em seuaspecto original, radiante e imortal.

O universo é o templo de Deuscujaabóbada é o céu e lâmpada é o sol...

Tudo é grande, tudo é belo e puro nacriação...Presta honra a Deus,quem honra a naturezae é capaz de ler palavras e imagensdivinas no livro da criação.

Cântico das Criaturas de Murialdo

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