memória sagrado encantamento. 2

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5/26/2018 MemriaSagradoEncantamento.2-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/memoria-sagrado-encantamento-2 1/9 i  l- i - i L i .  / C APíTULO  Memória sagrado encantamento: o tríptico da legitimação na República Popular Democrática da Coreia D aniel o urm a ud  T ra du çã o d e Vera Gertel Professo r de Ciência Política da Universidade de Bordeau x (Monresquieu Bordeaux IV e d ir et or d o CM RP ( C e nrre Montesquieu de Recherch es Politiques). Autor de:  Aux Sources de l auroritarisme en A frique: des idéologi es er des h ommes, Re u ue l nt er na ti on al e d e P ol it iq u e Comparée, 20 07, v . 13, n? 4; e Co n ce pr m au , ideolog ie dur e: . la gouvernance conrre Ia dérnoc rarie repr ésentarive? . In: Slodoban Mi l a ci c ( di r.). La de m oc ra ti e r ep r é s en ta ti ue f ac e à un d é fi h istorique. Bruxelas: Bruylant , 2006 .

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    CAPTULO 5 Memria, sagrado, encantamento:o trptico da legitimao na RepblicaPopular Democrtica da Coreia

    Daniel Bourmaud*Traduo de Vera Gertel

    'Professor de Cincia Poltica da Universidade de Bordeaux (Monresquieu Bordeaux IV) ediretor do CMRP (Cenrre Montesquieu de Recherches Politiques). Autor de: "Aux Sourcesde l'auroritarisme en Afrique: des idologies er des hommes, Reuue lnternationale de PolitiqueCompare, 2007, v. 13, n? 4; e "Concepr mau, ideologie dure: .la gouvernance conrre Iadrnocrarie reprsentarive?". In: Slodoban Milacic (dir.). La democratie reprsentatiue face un dfi historique. Bruxelas: Bruylant, 2006.

  • ltimo regime stalinista segundo a frmula consagrada pelas mdias, a Coreiado Norte muitas vezes apresentada como a ltima sobrevivente de ummundo ultrapassado. A frmula pode parecer tranquilizadora na medidaem que d a entender j primeira vista uma sociedade poltica na qual,alis, tudo contribui para envolver em mistrio: a distncia, a lngua, o starusde "pequeno", portanto de pouco interesse em uma regio onde predomi-nam os "grandes" necessariamente mais complexos, o fechamento de umsistema ao qual se pode aceder apenas por derrogao ... Enfim, por umestranho paradoxo, quanto mais espesso o mistrio, mais esse parece inci-tar a simplificao. Tornou-se ento banal julgar a Coreia do Norte a partirde categorias preestabelecidas, de imagens muitas vezes estereotipadas nasquais predomina uma viso ao mesmo tempo patolgica" dramtica, mastambm condescendente do pas. Um giro pela literatura disponvel em ln-gua francesa se revela instrutivo quanto a essa questo. Os ttulos, todosmuito sugestivos, convergem para a ideia de uma Coreia pouco atraente."No pas da grande mentira" para um;' "Viagem dinastia totalitria" parao outro," "Os aqurios de Pyongyang" para um terceiro;' sem esquecer "Osevadidos'" ou ainda o inevitvel "Estado delinquente".' No se trata de negara pertinncia desses textos e de erigir a Coreia do Norte como modelo dedemocracia. Ela mesma, alis, no tem essa pretenso ou, no mnimo, tra-ta-se de uma democracia que tem muito pouco a ver comas princpios doliberalismo poltico. Na tipologia clssica dos regimes polticos, costuma-seincluir a Coreia do Norte no gnero autoritrio ou mesmo totalitrio. Acoero parte integrante do regime instalado por Kim Il-sung em 1948,depois seguido por Kim jong-il quando sucede seu pai em 1994. Mas, umavez lembrado o que evidente, muito pouco foi dito e o risco de "reduo"

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  • A CONSTRUO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITRIOS - FRICA E SIA

    em que tudo se assemelha constitui, certamente, o primeiro perigo que ron-da o observador. O debate polmico, entre os prprios autores, que se seguiu publicao da obra coletiva O livro negro do comunismo revelador quan-to questo." De tanto querer aproximar os regimes entre si, perdem-se devista as especificidades e os modos especficos de funcionamento, em provei-to de uma homogeneidade de superfcie na qual o critrio da coero apare-ce em primeiro plano. A partir da, a comparao tende invariavelmente adescambar para um balano quantitativo que contabiliza as vtimas. Seria, semdvida, muito arrogante e cnico considerar tais fatos secundrios. Mas, comos projetores voltados para essa dimenso, elimina-se a questo de uma even-tual aprovao. Como em outros lugares, o medo e a coero fsica esto nocentro do processo autoritrio na Coreia, mas no esgotam a anlise. Naverdade, fazer da coero a substncia do autoritarismo conduz a um impasseque podemos resumir da seguinte maneira: se o autoritarisrno coreano sebaseia unicamente na fora nas mos de uma elite dirigente, como explicarque se perenize h 60 anos?* Diante da brutalidade, da arbitrariedade que osanalistas geralmente lhe atribuem, principalmente quando assumem formasextremas, diante das penrias e dos perodos de fome, a revolta deveria ne-cessariamente eclodir em funo do princpio segundo o qual o indivduonada mais teria a perder. H muitos exemplos de regimes autoritrios nosquais, o temor no sendo mais suficiente para obter a obedincia, a derroca-da se impe de maneira inelutvel. Muitos, a comear pelos Estados Unidos,apostaram na suposta fragilidade do regime e na ruptura iminente, mesmo seno acertam o golpe fatal, asfixiando-o, por exemplo, por meio de sanesadaptadas. Ora, at hoje nada disso aconteceu. que h um ponto cego naabordagem unicamente pela coero. Parece que difcil conceber, esponta-neamente, um regime autoritrio/totalitrio baseado em algo diferente domedo. Como observa jacques Lagroye, o consentimento dos subjugados pelototalitarismo um escndalo para o esprito, o sinal aparente de uma totalruptura com o julgamento "normal" [...]. Ser preciso lembrar, no entanto,que a aceitao dos regimes totalitrios no se reduz submisso passiva eresignada que o medo engendra?"

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    MEMRIA. SAGRADO. ENCANTAMENTO

    Na Coreia existe um poderoso sistema de.crenas que consolida o corposocial e participa da solidez do sistema. Certamente, no fcil avaliar aque ponto tal crena coletiva pode preservar o regime contra si mesmo. Oconhecimento do interior da Coreia, oficialmente designada como RepblicaPopular Democrtica da Corei a a partir de 18 de setembro de 1948, limi-tado por obstculos erigidos pelas prprias autoridades. As cincias sociaisengatinham diante desse pas que tem profundo zelo por escrever a prpriahistria. O discurso oficial o nico de fato disponvel. As pesquisas uni-versitrias so rarssimas, em todo o campo de pesquisa acadmica conside-rado." O visitante no consegue escapar do estatuto que lhe reservadooficialmente, limitando assim sua liberdade de ir e vir, vigiado em todos osdeslocamentos. O controle se revela de tal maneira onipresente que as fon-tes de informao devem ser utilizadas com precauo redobrada. Mas oprprio acesso realidade de uma sociedade que cultiva o hermetismo comconstante aplicao esclarece sobre a sua realidade. No medo que o po-der norte-coreano quer inspirar no observador. a angstia quase patticade ser incompreendido que guia o regime estabelecido. O trabalho ideol-gico ocupa lugar central no processo de Iegitimao, tanto com relao aointerior quanto ao exterior. Trata-se de exerccio de propaganda, com cer-teza, mas tambm de busca de uma legitimidade sem a qual o regime nopoderia garantir a prpria sobrevivncia. Para tal, a Coreia do Norte se apoiaem um discurso no qual se combinam trs elementos constitutivos dalegitimao autoritria: a memria, o sagrado, o encantamento.

    A MEMRIA

    No centro do regime coreano est a nao. Nada haveria de original nessesentido se a Coreia no tivesse a Histria a seu favor. So.de fato raras asnaes contemporneas dotadas de uma profundidade histrica to enrai-zada no passado. sabido que as jovens naes oriundas da descolonizao,sobretudo as africanas, so permanentemente confrontadas com o desafiodo sentimento de pertencimento, por no dispor de razes comuns no pas-sado. Na Coreia no assim. A nao existe de fato e habita as memrias.

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    Voltar s origens da nao coreana conduz ao Estado de Kokouryo, no s-culo III antes da nossa era. Primeiro estado centralizado em uma Coreiaainda no unificada.? Kokouryo se estende sobre a parte setentrional da atualpennsula coreana e uma pequena poro do territrio chins. Seu centro Pyong Yang, atual capital' da Repblica Popular Democrtica. Com ricopatrimnio plurissecular, a capital, com aproximadamente 1.600 anos, serinteiramente destruda pelas bombas americanas entre 1950 e 1953.10 Ofato representa bem mais do que um detalhe. Alimenta a memria de umpassado de prestgio destrudo pelo inimigo. Sabe-se que a identidade seconstri por oposio. A nao coreana ilustra isso perfeitamente e as mar-cas das aflies sofridas contribuem para unir mais ainda o povo coreanona Coreia do Norte, assim como, para alm dela, na pennsula inteira. Otema da unidade de Coreia, una e indivisvel, pode se chocar com a anlisefocada na observao de um momento estreitamente circunscrito, no qualtudo comearia com uma guerra que data de mais de meio sculo. Ora, sea diviso em duas Coreias se inscreve perfeitamente em uma histria espe-cfica das relaes internacionais, a do mundo bipolar, essa no parece menosilegtima para os core anos, e no s os do Norte. A fratura tambm feridae atentado memria de uma nao cujo destino se chocou, muitas vezes,com as veleidades imperiais vizinhas ou afastadas.. A lembrana de Kokouryo no passa de um momento no longo perodono qual a Corei a insistiu em sobreviver contra todas as adversidades. Apster conseguido a unidade sob a gide do Reino de Silla a partir do sculoVII, a Coreia conheceu entre o sculo X e o XlV, com o Estado de Koryo,de onde vem seu atual nome, um perodo brilhante. A afirmao de umaburocracia cujas regras de funcionamento so inspiradas no modelo chinscontribui para desenhar os contornos de um modelo legal-racional, princi-palmente com a instaurao do princpio do concurso para os recrutamen-tos. A dinastia Choson que lhe sucede e vai durar at 1910 prolongou odesenvolvimento da Coreia com, especialmente, a adoo, no incio do s-culo Xv, do alfabeto em vigor hoje, o hangul. Mas todas essas etapas noescapam aos sobressaltos provocados pelo exterior. Os mongis, chineses ejaponeses acompanham uma histria tumultuada na qual a Coreia aprendea lio da ameaa e da resistncia. O sculo XX se inscreve no prolonga-

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    mento de uma evoluo na qual a nao unificada tambm oprimida. Aguerra sino-japonesa de 1894-1895 e a guerra russo-japonesa de 1904-1905permitem ao Japo assentar seu domnio na regio. A Coreia a primeiravtima. Com o tratado de 1905, chamado tratado de proteo, o Japo seatribui o controle das competncias rgias do vizinho coreano (relaesexteriores, exrcito, poltica e moeda) antes de, nada mais nada menos,anex-Io em 1910. A derrota japonesa de 1945 vai dar fim ocupaohumilhante para a nao coreana. Resulta da uma hostilidade duradoura esempre viva com relao a uma potncia regional cujas ambies imperiaismarcaram quase meio sculo da Coreia.

    Ao inimigo japons sucede a ameaa americana. No perodo de trs anos,de 25 de junho de 1950 a 27 de julho de 1953, a guerra da Coreia provocauma fratura exposta que nunca sarou. A guerra liquidada por meio de umarmistcio sem que qualquer tratado de paz tenha sido assinado. A naocoreana, vista pelo lado da Repblica Popular Democrtica, buscou nessesfatos uma nova fonte que prolonga a memria anteriormente constituda.Trata-se, de fato, de uma nao "contrariada", para retomar a expresso deRobert Charvin," que, aos olhos dos coreanos, tenta assumir sua existnciae dignidade. A guerra, longe de enfraquecer, fortalece o na~ionalismo. Afronteira situada no paralelo 38 e a estreita vigilncia em uma atitudeinalterada de ambos os lados, como se o mundo, de repente, tivesse para-do, cuja permanncia encarnada principalmente por Panmunjong, com amanuteno do confronto militar, ilustra a realidade da nao. A Coreia doNorte uma nao em armas, diante da ameaa contnua lembrada perio-dicamente pela poltica americana. O inimigo americano participa, assim,da consolidao do sentimento nacional. Ele encarna a violncia da qual ostrs milhes d~ mortos coreanos, segundo os nmeros divulgados pelo his-toriador americano Bruce Cummings.r- resumem a brutalidade. A lembranada guerra onipresente, evocada pelo Cemitrio dos Mrtires Revolucio-nrios, o Monumento aos Mrtires do Exrcito Popular ou ainda pelosmuseus ... Em todo lugar se manifesta a alma de uma nao combativa quea caro custo conquistou uma independncia que permanece precria. O casodo Pueblo, o cruzador americano reconhecido em 1968 em guas territoriaiscoreanas, vem confirmar o sentimento vigente. O trofu de guerra brandido

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    diante de todo estrangeiro a fim de demonstrar a realidade da poltica agres-siva de Washington atesta, aos olhos do regime, a permanncia da hostilidade.A ameaa da agresso uma realidade, e no uma construo imaginria. Oapelo resistncia e vigiincia da nao no resulta de uma paranoia, masde uma certeza corporificada pelo Japo e depois pelos Estados Unidos. Apoltica americana de George Bush e a incluso da Coreia do Norte na listados Estados delinquentes a partir de 2002 s reforam o complexo de naositiada e tornam, portanto, mais legtimo o seu direito de existir. Alm disso,a fratura da Corei a exacerba a identidade' nacionalista na medida em que aCoreia do Norte se v como nica depositria da nao coreana. O Sul sexiste por vontade de uma potncia estrangeira. No poderia, consequen-temente, encarnar a nao coreana." S a reunificao vai reconciliar a na-o coreana com ela mesma. Levar o processo a seu termo significaria, almdo mais, a reunificao de trs Coreias, acrescentando s duas, a pequenaCoreia formada essencialmente pela prefeitura de Yanban, em territrio chi-ns, em consequncia das migraes ocorridas sobretudo entre 1880 e 1920,diante da conquista do territrio coreano pelo japo.:" O discurso da unida-de funciona, assim, enquanto solicita a memria de um passado glorioso, masimpedido de se desenvolver plenamente por uma adversidade sempre em ao.A promessa de um futuro feliz para uma nao enfim reunificada ganha ain-da mais fora aos ouvidos de uma populao para a qual a separao de grandenmero de famlias de ambos os lados do paralelo 38 extremamente dolo-rosa. Assim, a nao idealizada constitui um instrumento eficaz no processode consolidao de uma identidade coletiva coreana, legitimando o poderestabelecido e aquele que o encarna.

    o SAGRADO

    O poder coreano obtm visibilidade, em primeiro lugar, por meio de seulder. O potencial de adeso identidade nacional , na verdade, proporcio-nal adeso suscitada pelo chefe a sua pessoa. Sem o chefe, a nao corre-ria o risco de desaparecer na abstrao. Sua forasimblica, sua capacidadede funcionar como uma "comunidade imaginada", segundo a expresso de

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    Benedict Anderson,!' funo da concretizao em uma forma viva, a dolder. Mas esse s pode corresponder simetricamente a tal exigncia namedida em que aparece como homem parte, dotado de qualidades taisque se situe, essencialmente, em outra categoria que no a humana. Aomesmo tempo homem e Deus, ele simboliza a fuso do profano e do sagra-do, do poltico e do religioso.

    A transcendncia assim atribuda ao primeiro dos coreanos deve, noentanto, se apoiar em uma realidade. A crena s pode funcionar se os fa-tos a sustentarem. O ato de f exige sinais visveis. Como aderir tiraniasem reservas de Kim Il-sung desde 1948, sucesso dinstica por meio deseu filho Kim ]ong-il, e, principalmente, transmutao do pai da naoem "presidente eterno", prevista na reviso constitucional adotada em 1998?Como possvel, cotidianamente, designar o pai, sob pena de ofensa grave,em caso de desobedincia, "Grande lder" e seu filho "Chefe dirigente"? Oculto que cerca o fundador da Corei a se materializa, de fato, na esttua gi-gante situada no alto da colina Mansun, acima de Pyong Yang, de onde sev toda a capital. Dali, o presidente eterno, com a mo e o olhar estendidosem direo ao horizonte, zela pelo destino do povo coreano. O culto seprolonga no mausolu erigido no Palcio Memorial Kumsusan, onde cadacoreano pode vir se inclinar, em protocolo marcado pelo recolhimento,diante dos restos mortais daquele sem o qual a Coreia no existiria.

    Mas as evocaes, por mais majestosas e emocionantes que sejam, pode-riam parecer um tanto fossilizadas sem o discurso que as acompanha. Abiografia oficial mistura os fatos e os mitos, em um condensado no qual aHistria se torna lenda." Nascido em 1912, Kim Il-sung vive uma vida in-teiramente consagrada desde a mais tenra idade construo de uma Coreiaindependente. O homem acumula as qualidades do chefe: conscincia re-volucionria de precocidade impressionante, aptides intelectuais superio-res, senso inato de organizao, capacidade de deciso, coragem, tenacidade,doao integral causa da Corei a que constri para si mesmo. O homempoltico tambm chefe militar e estrategista que, "na qualidade de coman-dante supremo do Exrcito Popular da Coreia (EPC) e presidente do Co-mit Militar (... ), dirige vitoriosamente a guerra de libertao da ptria [... ]contra a invaso dos imperialistas americanos",17 A narrao torna heri

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    aquele que moldou a Coreia do sculo XX a ponto de al-lo categoria desemideus, criador e protetor da Repblica Popular, infalvel em suas esco-lhas e guia eterno da Coreia. Como o falecimento de um super-homempoderia significar o fiin da epopeia? Toda a histria da nao se torna assimobjeto de um discurso no qual se confundem o destino coletivo e a trajet-ria pessoal. Mais forte do que a morte, adotando atitude quase crtica, o"Grande dirigente" continua acompanhando seu povo, transcendendo as-sim o tempo e as leis fsicas. A sucesso dinstica no deve ser antes com-preendida como a transmisso de um poder de essncia divina, assim comoo cristo Deus pai encarna em seu filho e, dessa maneira, humaniza suasubstncia? A biografia de Kim jong-il, o filho, se apodera do mesmo regis-tro, o de super-homem, depositrio da f no pai e, nessa qualidade, dispon-do de qualidades parte.

    Seria longo demais mencionar aqui os elementos factuais que, na mito-logia poltica da Repblica Popular Democrtica, fazem, por sua vez, do"Caro dirigente" um ser superior, nico digno de assumir a perenidade daordem poltico-religiosa coreana. 18 Evidentemente, a realidade se revela maisprosaica e os elementos de tipo patrimonial-clientelista no poderiam serapagados. Mas, ao reduzir o poder coreano a essa simples dimensoutilitarista, escamoteia-se o que habita os espritos e molda a adeso. Omesmo vale para aqueles que veem no sistema coreano do norte uma rpli-ca do modelo stalinista, como agrada a muitos analistas, eis a irredutvelespecificidade do sistema estabelecido. Raramente, de fato, foram ativadoscom tanta aplicao os repertrios do super-homem e do sobrenatural paraproduzir legitimidade. Por que se dedicar a elaborar uma ideologia oficial,o djoutch (ou juch), e no copiar servilmente os preceitos do marxismo-leninismo? Se fosse o caso, Kim Il-sung se teria privado de um recurso ca-pital na construo de seu prprio poder. Um deus no toma emprestadasua teologia da religio do vizinho. Por que acreditariam nele? precisoser o prprio produtor da doutrina em vigor. A partir de 1930, com apenas18 anos, como Jesus no templo arrebatando os doutores da lei com seu saber,Kim Il-sung, "durante uma reunio de altos dirigentes da Unio da Juven-tude Comunista eda Unio da Juventude Anti-imperialista, [...] afirma os

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    princpios das ideias do djoutch"." Depois, o "Grande lder" acumularos escritos. Nada menos do que 1.100 obras reunidas em 35 volumes lhepermitiram explicitar seu pensamento ... Seu filho, Kim Jong-il, contribuircom sua pedra no edifcio publicando, em 1985, dez volumes na "Coleodas grandes ideias do juche". Os postulados do marxisrno-leninismo estopresentes: o carter cientfico da revoluo, a necessidade histrica do co-munismo, a luta contra o imperialismo. Mas o essencial est na "corei-nizao" do discurso que conduzir, alis, a eliminar em 1980 qualquerreferncia ao rnarxismo-Ieninisrno da ideologia oficial em favor das ideiasunicamente do djoutch." O conceito se baseia no princpio central segun-do o qual o homem o centro de tudo, senhor de tudo e decide tudo.Nesse sentido, a filosofia do djoutch constitui uma inflexo terica pro-funda com relao ao materialismo e ao economicismo dominantes, comopodia retomar o marxismo-Ieninismo. Se as foras materiais so decisivas,no poderiam se impor segundo um determinismo de sentido nico, umavez que "a conscincia ideolgica decide tudo"?

    )Mas, alm das consideraes tericas sobre a validade das proposiesenunciadas, a funo da ideologia como instrumento de legitimao quemerece ser ressaltada. Pensamento oficial, monopolizando todo oespaodo discurso legtimo, ela consagra o lder em seu status definitivamente parte. A ideologia do djoutch produto unicamente 'de seu gnio, a servi-o da nica causa que vale a pena, a da Coreia. Ela s pode ser o resultadode uma inteligncia fora do comum, qual toda forma de pensamento conduzida a reverenciar, a comear pelos intelectuais, cuja funo primeira comentar a intransponvel filosofia do djoutch. No entanto, a seduointelectual poderia parecer bem abstrata se contasse unicamente com as 'categorias do raciocnio. O telogo no trata da crena ingnua do homemsimples. Essa exprime uma crena espontnea, na qual o sentimento toimportante quanto a razo. A devoo dedicada ao lder no , portanto,apenas inclinao diante de um esprito superior, mas tambm adeso aomundo encantado construdo em torno de sua pessoa.

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    Com Kirn Il-sung, a estrela polar da humanidade, a realidade se transformaradicalmente. Um novo mundo est nascendo, como atesta a adoo de umcalendrio especfico. Oficialmente, a Corei a est no ano juche 96," umaaurora radiante tendo se erguido sobre a pennsula com o nascimento deKim Il-sung em 1912. A exemplo das grandes religies monotestas, ini-ciando, a partir da revelao de seu profeta, uma nova era, a Coreia do Nortereorganiza a relao com o tempo e abole as antigas referncias. O "Gran-de lder simbolicamente consagrado em sua essncia divina enquanto cresceo nmero de narrativas mticas que sacralizam a sua lenda. A vida de KimIl-sung e depois a de Kim Jong-il so, de fato, repletas de histrias que apre-sentam uma trama maravilhosa, alimentando, assim, o fervor religioso emrelao a eles. Segundo a lenda, desde cedo circularam numerosos mitossobre os poderes quase mgicos do lder coreano. Durante o perodo deluta antijaponesa, na regio do monte Paektu, contava-se que Kim Il-sung,"esfregando uma pinha, podia transform-Ia em bala de fuzil"." Era atri-buda a ele, igualmente, a capacidade de prever o futuro. Alguns considera-vam o general Kirn Il-sung dotado de uma fora herclea, comparvel deHong Kil Dong." Na ocasio de seu 80 aniversrio, a rdio anunciou quemilhares de pssaros definharam para que fosse confeccionada com suasplumas uma colcha para o "Grande lder". Quando ele faleceu, em 1994,ao nascer do sol, evoca-se que a natureza se manifestou violentamente comraios, troves e chuvas diluvianas que provocaram o transbordamento dasguas do rio Daedong, enquanto o lago Chon era sacudido por ondas departicular violncia.P J na vspera de sua morte, manifestaes estranhasaconteceram. Uma coruja, pssaro sagrado, havia entrado em uma das sa-las da universidade militar Kim Il-sung e permanecido imvel durante odia inteiro, de 9h s 19h, com a cabea baixa e piando de tristeza, diante doretrato do "Grande lder". Tambm no zoolgico da capital, o tigre coreanoao qual Kim Il-sung era muito apegado ps-se a rugir com uma fora prodi-giosa, fazendo tremer todo o vale do Monte Daesung, antes de se prostrar

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    matria de. stima arte". 25 As diferentes formas de expresso artstica parti-cipam assim do processo de educao poltica, contribuindo para afirmar acrena na supremacia do lder, dotado de todos os dons e, por isso, aindamais digno de admirao. Em virtude do que o esprito humano no seriaconduzido a se inclinar, ao mesmo tempo com respeito e entusiasmo, dian-te de tal demonstrao de talentos? Cada um dos lderes sucessivos deu seunome a uma flor diferente, elaborada especialmente pelos botnicos, a"kimilsunia" e a "kimjongilia". nicas no mundo, elas se impem pela be-leza e so especialmente veneradas pela populao.

    A simetria observada nos dois dirigentes, o segundo retomando a "tc-nica" usada pelo pai, serve para prolongar a magia do encantamento emurna evocao onrica que acalenta os espritos. Cada objeto, cada refern-cia, cada smbolo visa a suscitar no seio do povo um sentimento de fascina-o por uma forma de poder e de ordem social que deriva do extraordinrio.O espao tambm faz parte do processo de encantamento. Alguns lugaresso erigidos em reas de peregrinao, como o de Mankyeungdai, onde opresidente Kim Il-sung oficialmente passou uma parte da infncia, ou ain-da o Monte Paektu, onde era mantido o campo secreto a partir do qual aluta revolucionria foi conduzida. Esses lugares de memria incentivam ohomem comum a se elevar na intimidade dos "grandes homens" e a se dis-solver em um imaginrio desrealizado. Por meio da evocao das persona-lidades fora do comum que so Kim Il-sung e Kim Jong-il, cada um transportado em um mundo onde predominam a virtude, a coragem, a so-lidariedade e, portanto, a invencibilidade.

    O mundo encantado no conhece o mal dentro de si. Ele est livre dosreveses das sociedades humanas. do exterior que vem o perigo. O encan-tamento, enfim, so as mobilizaes coletivas rituais que sugerem para asociedade o esprito da Coreia como sntese absoluta. Mais uma vez a est-tica convocada. Os desfiles militares no so mais destinados apenas aencenar a fora. A amplitude excepcional dos meios materiais e humanosempregados, mas, sobretudo, a ordenao impecvel dos atores visando comunho do conjunto da sociedade coreana, por meio de um processo deidentificao, corporifica o mito do povo em armas. Os bals majestososque acompanham as festas nacionais na praa Kirn Il-sung deslumbram os

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    olhos e tambm a alma. A harmonia das cores e dos sons produz o senti-mento de uma harmonia coletiva perfeita, a exemplo do que seria a socie-dade real. A iluso s pode durar um instante, mas a repetio permiteaprofundar o sentimento de uma sociedade na qual os vrios componentesse interpenetram.

    CONCLUSO

    A combinao dos trs repertrios da memria, do sagrado e do encanta-mento permite criar legitimidade? O regime norte-coreano ilustra suamaneira que nenhum poder pode se impor exclusivamente pela fora. Oconsentimento, se no for obtido, deve ser conquistado. De onde esse traba-lho de elaborao simblica do poder que entra em ressonncia com a cultu-ra, a Histria, a experincia vivida. Nessa busca de adeso, nada definitivo.Todo discurso, mesmo mitificado, corre o risco de esclerose. preciso tam-bm se regenerar, se enriquecer para que a magia continue a operar. A legi-timidade uma conquista de todos os dias. O discurso coreano no poderiaser analisado como um bloco monoltico cujos contornos teriam sido defi-nidos de uma vez por todas. Existe, certamente, uma inegvel permann-cia, uma sedimentao de invariveis aqui exemplificadas pelas semelhanasentre Kim Il-sung e Kim jong-il. Mas por trs dessa ossatura apareceminflexes, inovaes que do mostras de uma criao interrompida.

    O universo dos mitos ilimitado. Mas no se povoa de novas figuras demaneira incoerente. Um dos atributos do poder decidir quando introdu-zir novas referncias para reafirmar o consentimento. Uma das representa-es mais presentes na simbologia do poder a do rei Tangun. Entronizadocomo fundador da Coreia, suas origens mticas constituem uma verdadeiralenda que entrou na cena poltica a partir dos anos 1970, quando decidi-ram fazer escavaes em volta de seu tmulo;" Mas a partir de 1993 quea figura de Tangun vai assumir um papel central no panteo coreano. Seutmulo ser reconstrudo em 1994, aps o falecimento do presidente KimIl-sung. preciso legitimar, ento, um poder em transio. Nesse processo,o retorno tradio constitui um dos caminhos mais frequentes. O homem

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  • A CONSTRUO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITRIOS - FRICA E SIA

    coreano que "decide tudo por sua conscincia ideolgica" tambm umhomem enraizado no passado impregnado pelos valores do confucionismo,Se o regime nunca renunciou verdadeiramente a suas origens, a valorizaodo confucionismo baseado no respeito das relaes entre idosos e jovens,pais e filhos, sditos e soberanos se acentua a partir da queda do impriosovitico e da crise do modelo comunista em escala internacional. Ele ins-creve a fidelidade ao poder em uma tradio multissecular. Aparecem, igual-mente, ao longo da histria da Coreia do Norte desde 1948, palavras deordem que visam a motivar constantemente a mobilizao (Songun consa-gra em 1995, aps o falecimento de Kim Il-sung, o exrcito como maiorvalor da revoluo) ou novas lendas como a de Tcheullima, o cavalo aladocuja esttua de bronze se eleva desde 1961 acima de Pyong Yang. A rapidezque lhe atribuda (podia percorrer mil lguas em um dia) simboliza omovimento para adiante e o impulso permanente da sociedade coreana.

    O discurso poltico, portanto, no se engessou. Mas, quaisquer que sejamas variaes, ele conserva as caractersticas do que Hannah Arendt chamavaa "religio secular".27 Baseando-se na necessidade social e fundamental decrer, o poder se esfora para obter, alm da obedincia, o fervor. Ser queconsegue? A resposta no evidente na medida em que, quaisquer que sejamos meandros, o discurso se choca com uma realidade econmica e social qued mostras de deteriorao. As penrias, a fome, as recentes inundaes criamum contexro que a retrica sozinha no conseguiria esconder." Se for verda-de que a legitimidade depende em muito das representaes e, portanto, daideologia, ela no poderia, no entanto, se reduzir unicamente ideologia. Acapacidade de um poder de corresponder s necessidades materiais de suapopulao determina tambm a possibilidade das relaes entre governantese governados. O fato de que o regime da Coreia do Norte, em meio a tantasvicissitudes, tenha, no entanto, conseguido se manter tende a demonstrar aimportncia do fator ideolgico, mesmo se o desafio a enfrentar se torna cadavez mais difcil. Pode-se argumentar que o fato de concentrar o olhar nessa

    dimenso do regime conduz necessariamente a entrar em empatia com ele.Trata-se, mais prosaicamente, de tentar compreender, a partir do interior, suaviso e suas motivaes, a fim de melhor compreender suas aes. Quanto aisso, o ngulo da legitimidade no deixa de ser pertinente.

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    MEMRIA, SAGRADO, ENCANTAMENTO

    Notas

    1. GRANGEREAU, Philippe. Au pays du grand mensonge . Paris: Editions du Srpentde Mer, 2001.

    2. DESTEXHE, Alain. Voyage en dinastie totalitaire. Paris: L'Harmattan, 2001.3. CHOL-HWAN, Kang. Les Aquariums de Pyongyang, Paris: Robert Laffont, 2000

    (em colaborao com Pierre Rigoulot),4. MALOVIC, Dorian; MORILLOT, Juliette. Evads de Core du Nord. Paris:. Belfond, 20040-

    5, RIGOULOT, Pierre. Core du Nord, Etat Voyou. Paris: Bucher Castel, 2003.6. COURTOIS, Stphane. Le livre noir du communisme. Crimes, terreur, repression.

    Paris: Robert Laffom, 1997.7. LAGROYE, Jacques. "La lgitimation". In: GRAWITZ, Madeleine; LECA, Jean.

    Trait de science politique. Paris: Presses Universitaires de France, 1985, p. 439.8. Com exceo da posio notvel da Coreia do Norte nas relaes internacionais.

    No caso, as fontes estrangeiras permitem que se trate de maneira relativamentesatisfarria a poltica estrangeira de Pyong Yang, com exceo da anlise dosprocessos de deciso interna.

    9. A Coreia passa ento por um perodo chamado dos "trs reinos" que so Baidkje,SiUa e Kokouryo.

    10. CHARVIN, Robert. Comment peut-on tre Coren (du Nord)? Nice: Editions duLosange, 2006, p. 34.

    11. Idem, p. 48.12. CUMINGS, Bruce. Noth Korea. Another country. Nova York: New Press, 2003.13. Segundo Kim Il-sung, "se o Japo no tivesse ocupado a Coreia e estabelecido a

    dominao colonial, nem se trataria dessa diviso ou reunificao , se, aps aSegunda Guerra Mundial, as grandes porncias no rivessem resolvido osproblemas coreanos a partir das relaes entre o Lesre e o Oeste, nosso pas nose teria dividido. Se nosso pas no est reunificado h quase meio sculo, antesde tudo porque os Estados Unidos ocupam a Corei a do Sul e impedem areunificao". Citao extrada de Kirn Il-sung. Rponses aux questions posespar l Rdacteur em chef du journal [aponais Mainichi Shimbun, Pyong Yang:Editions em Langues Errangeres, 1991, p. 5.

    14. LANKOV, Andrei. "The gentle decline of rhe "Third Korea", Asia Times, HongKong, 15 de agosto de 2007. No existe, na realidade, movimento em favor dareunificao dentro da "Terceira Coreia". O sentimento de "coreidade" parecese diluir nas geraes jovens que residem nessa parte da China.

    15. ANDERSON, Benedicr. Imagined communities. Reflections on the origin andspread of nationalism. Londres; Nova York: Verso, 1991.

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