fogo sagrado - ufpr

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL HENRIQUE DA COSTA RESSEL Cerimônias nativas: tradição e inovação no Fogo Sagrado de Itzachilatlan CURITIBA 2013

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Dissertação sobre o fogo sagrado UFPR

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    HENRIQUE DA COSTA RESSEL

    Cerimnias nativas: tradio e inovao no Fogo Sagrado de Itzachilatlan

    CURITIBA 2013

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    HENRIQUE DA COSTA RESSEL

    Cerimnias nativas: tradio e inovao no Fogo Sagrado de Itzachilatlan

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Antropologia Social, no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Miguel Carid Naveira.

    CURITIBA 2013

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    Ao Silncio Eloqente e a Dana da Vida.

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    AGRADECIMENTOS

    Gratido Vida pela oportunidade de percorrer o fascinante aprendizado do Mestrado em Antropologia, que possibilitou uma percepo enriquecida por este universo extraordinrio do conhecimento humano sobre si e suas relaes. Agradeo a toda cadeia interminvel do conhecimento antropolgico e a todos os professores pela disposio em compartilhar esse valioso conhecimento. Em especial ao Prof. Miguel Carid Naveira pela dedicao zelosa na orientao, que trouxe valiosa contribuio em todo o desenvolvimento da dissertao.

    De mesma maneira agradeo ddiva do aprendizado envolvido em todas as relaes que abrangeram a concepo desta pesquisa. Especialmente queles que possibilitaram e apoiaram o percurso no que posso chamar de uma experincia de alteridade radical, possibilitada pela imerso nas prticas cerimoniais envolvidas, que me conduziram em uma inusitada Aventura na investigao existencial da prpria vida e no apaziguamento de todas as inquietudes inerentes a essa busca em si pura contemplao e gratido.

    Assim, seguindo as tradies, tambm agradeo a todos os nossos antepassados, da tradio antropolgica e da tradio nativa, que deram sua contribuio na rede infindvel de relaes que compe a teia da vida, apoiando a transmisso de mos em mos de um inestimvel conhecimento presente na epopia humana - um verdadeiro Presente. Que a ddiva recebida circule sempre, por e para todas as nossas relaes.

    Amor & Gratido por todas as relaes da Pura Vida Acontecendo Aqui Agora infinitamente.

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    Se queremos entender as origens do homem e sua existncia fenomnica, precisamos examinar sua criatividade tal como se manifesta em todos os pontos de sua vida cultural corrente, e no apenas em retrospecto. certo que muitas das inovaes de ontem se tornam parte da cultura transmitida de amanh, quer isso envolva a assimilao delas aos papis sociais supostamente inatos das sociedades tribais e camponesas ou as Culturas conscientemente fabricadas das civilizaes urbanas. E todavia, por mais que reconheamos esse fato, duplamente importante que tenhamos em mente que ao serem assimilados a uma tradio permanente esses elementos se tornam a base para inovaes posteriores. Seus efeitos comportamentais, demogrficos, ecolgicos e sociais esto eles prprios inextricavelmente ligados ao constante exerccio da criatividade, da inovao contnua, em que consiste a cultura; sua transmisso e recepo so elas prprias em grande medida uma espcie de induo inventiva. Uma grande inveno reinventada diversas vezes e em diversas circunstncias na medida em que ensinada, aprendida, usada e aperfeioada, frequentemente em combinao com outras invenes.

    Roy Wagner, A inveno da cultura.

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    RESUMO

    A presente dissertao trata da prtica de cerimnias nativas no contexto contemporneo do xamanismo urbano, a partir de pesquisa de campo realizada com um grupo fundador da primeira Igreja Nativa Americana no pas. Este grupo se apresenta como representante de uma Tradio Espiritual Indgena da Amrica, sustentando que essa tradio tem origem em povos nativos. A constituio dessa Igreja no pas decorrente de um movimento de expanso de uma Igreja Nativa Americana com sede nos Estados Unidos (Chicago/IL). A formalizao dessas cerimnias como Igrejas se deu em razo da necessidade de regulamentar essas prticas espirituais nativas junto ao Estado, onde foi criada no incio do sculo passado a Native American Church nos EUA. As lideranas, nacional e estrangeira, contam que essa tradio foi transmitida pelos nativos, no seio de suas comunidades, de forma direta e oral, por meio de ritos cerimoniais, que so conduzidos e oficializados por lderes preparados e delegados para tal. O trabalho de campo se desenvolveu a partir do grupo central pesquisado, abrangendo uma rede de atores centrais que estabelece um circuito ao redor da prtica das cerimnias nativas e compe os contextos de construo dos discursos de tradio nativa. A dissertao aborda uma discusso sobre tradio e religio como memrias do passado, e tambm apresenta o panorama mais abrangente da Nova Era e das novas religiosidades, contexto no qual est inserida a prtica das cerimnias nativas no contexto urbano contemporneo.

    Palavras-chave: Cerimnias nativas. Ritual. Tradio. Igreja Nativa Americana.

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    ABSTRACT

    This dissertation deals with the practice of native ceremonies in the contemporary context of urban shamanism, starting from field research conducted with a group founder of the first Native American Church in the country. This group presents itself as a representative of an Indigenous Spiritual Tradition of America, arguing that this tradition comes from native peoples. The constitution of this church in the country is due to a movement of expansion of a Native American Church based in the United States (Chicago / IL). The formalization of these ceremonies as churches occurred due the need to regulate these native spiritual practices with the State, where it was created early in the last century the Native American Church in the USA. The leaders, domestic and foreign, tell that this tradition was transmitted by the natives, in the bosom of their communities, directly and oral, through ceremonial rites, which are formalized and conducted by leaders and delegates prepared to do so. Fieldwork was developed from the core group researched, covering a network of central actors that establishes a circuit around the practice of native ceremonies and composes contexts of construction of the discourses of native tradition. The dissertation addresses a discussion on tradition and religion as memories of the past, and also presents the most comprehensive overview of New Age and new religions, the context in which it operates the practice of native ceremonies in contemporary urban context.

    Keywords: Native Ceremonies. Ritual. Tradition. Native American Church.

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    SUMRIO

    INTRODUO I. Apresentando o campo ........................................................................................12

    II. O vis de anlise escolhido na dissertao - Tradio e Inovao ................19

    III. Sobre a pesquisa de campo multissituada - a rede ........................................27

    Captulo 1 - Native American Church of the Sacred Fire of Itzachilatlan

    1.1. O grupo central pesquisado - O Fogo Sagrado de Itzachilatlan ..................33

    1.2. Native American Church: Cerimnias, prticas e religio - inovando a tradio ..................................37

    1.3. Tradio e/ou Religio - memrias do passado ........................................56

    1.4. Native American Church of the Sacred Fire of Itzachilatlan Aurelio Diaz Tekpankalli ..................................................................................65

    Captulo 2 - O Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil

    2.1. O Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil Ehekateotl Kara Riapu Uvdju ........................................................................78 2.2. As sete cerimnias do Fogo Sagrado de Itzachilatlan ............................. ....85 Cerimnia de Pipa Sagrada Temazcal (Tenda do Suor) Cerimnia de Meia Lua Busca de Viso Dana do Sol Dana dos Espritos Consagrao das Relaes

    2.3. Do contato com o campo .................................................................................91 O Temazcal A Chanupa A Busca de Viso: primeiras informaes

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    2.4. O Fogo Sagrado como expresso de religiosidade ....................................110

    2.5. As cerimnias do FSI como expresso do Caminho Vermelho ................113

    2.6. O palco das cerimnias no contexto do Fogo Sagrado do Brasil .............119

    2.7. Osho e o panorama New Age.........................................................................125

    2.8. O contexto Nova Era.......................................................................................137

    Captulo 3 - Tradio e Inovao - a rede pesquisada

    3.1. A rede pesquisada ..........................................................................................141

    3.2. A tradio lakota - Vernon Foster .................................................................146

    3.3. Neoxamanismo no Brasil - Sthan Xannia .....................................................159

    Captulo 4 - Rede de cerimnias - a Busca de Viso ...............................169

    Referncias ............................................................................................................192

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    INTRODUO

    I. Apresentando o campo

    A presente dissertao de mestrado trata da prtica de cerimnias nativas1 no contexto contemporneo urbano2, temtica tradicionalmente inserida nos debates sobre (neo) xamanismo e sobre novas religiosidades. Nesse contexto, a pesquisa de campo tem como objeto central de anlise um grupo cerimonial de prticas de cerimnias nativas no contexto urbano, que formam uma tradio3, e a sua insero em uma rede que estabelece um circuito ao redor das prticas cerimoniais, que cercam o fenmeno do xamanismo moderno. As cerimnias so procuradas por indivduos com diferentes interesses e perspectivas na apreciao das mesmas, muitos as tendo como uma tradio nativa viva ou como um caminho espiritual, outros como prticas voltadas ao autoconhecimento ou como espcie de terapia alternativa, onde os participantes so pessoas com profisses convencionais na sociedade moderna (mdicos, engenheiros, advogados, comerciantes, professores, atores, trabalhadores, etc.), de todas as idades e nveis de instruo, que tambm podem apresentar outras trajetrias pessoais como catlicos, espritas, agnsticos, etc., participando de diferentes prticas desse conjunto de novas religiosidades.

    1 Entre as cerimnias pesquisadas, que tratamos adiante, temos o Temazcal (Tenda do Suor), a Busca de Viso e

    a Dana do Sol, que so cerimnias tidas pelos participantes como provenientes da tradio nativa, com referncia a origem e prtica comum em diversos povos indgenas das Amricas. 2 No contexto pesquisado as cerimnias so conduzidas na sua maioria por no indgenas, como o caso do grupo

    brasileiro que foco central da pesquisa, mas h cerimnias conduzidas por indgenas que fazem percurso em vrias cidades do pas com essas atividades. Rose (2010) aponta para uma vinculao deste tipo de grupo com um pblico urbano, no-indgena e de classe mdia, em razo do valor cobrado pela participao nas cerimnias. 3 O grupo central pesquisado - Fogo Sagrado de Itzachilatlan (FSI), que apresentamos a seguir, faz parte de uma

    tradio internacional constituda nos Estados Unidos na forma de Igreja Nativa Americana. A formao dessas Igrejas decorre de um contexto de dilogo dos povos nativos com o Estado (norte-americano), como veremos a diante, onde se pode perceber uma inovao dentro das tradies nativas americanas (oral e direta), com a sua constituio jurdica (escrita) na forma de igrejas, sob o reconhecimento oficial pelo Estado como religio (Stewart 1987). Assim, vamos nos referir as atividades deste grupo como uma tradio, qual seja, a tradio desta Igreja Nativa Americana do FSI iniciada e constituda nos EUA, que conta com diversas representaes pelo continente americano, tambm presente na Europa. As atividades do FSI se encontram ligadas a uma rede com diversos atores do circuito do xamanismo urbano no pas, em que diferentes grupos da rede pesquisada compem um discurso mais amplo e abrangente de tradio nativa.

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    A oferta e procura por essas cerimnias foram denominados por Magnani como parte do neo-esoterismo, termo que usou para caracterizar o fenmeno das crenas, rituais e vivncias comumente tratadas como msticas, esotricas, ou da Nova Era. Nesse sentido, Magnani expe que esse fenmeno j foi considerado como uma espcie de religio ps-moderna, geralmente visto sob o prisma de sua fragmentao e de uma suposta ausncia de princpios ordenadores ou de uma doutrina apresentada como revelada e um corpo unificado de rituais, que caracterizado por uma imensa bricolagem4, resultado da livre escolha e juno de elementos tirados das mais diversas tradies e filosofias, sendo regidas pela criatividade de cada participante (Magnani, 1999; 2000). No campo pesquisado, as cerimnias so elementos centrais que estabelecem um trnsito de participantes e que formam o grande eixo no qual se renem componentes recorrentes na formao dos discursos de tradio nativa, que tambm servem como instncia legitimadora desses discursos. Nesse contexto, a Tradio considera a fonte e depositria de determinado tipo de conhecimentos sobre a natureza e sobre o lugar geral do homem no universo, sendo que o saber tradicional considerado como resultado da contribuio de diferentes culturas, as quais so vistas como contraponto civilizao ocidental (Magnani 1999). Segundo Magnani, este fenmeno caracterizado a partir do contexto das novas modalidades espirituais e teraputicas, vivenciadas em geral por segmentos das camadas mdias urbanas, que tm como referncia e inspirao algumas prticas xamnicas de povos indgenas (2000, 2005). No caso em estudo, as cerimnias em si, que so objeto fundamental na agregao dos participantes, so vistas como a prpria tradio viva - expresso da continuidade da prpria tradio nativa.

    Nesta introduo cabe esclarecer que no decurso da pesquisa de campo, dentro da observao participante acompanhei diversas cerimnias, sendo que no incio era mais observador do que participante, mas na observao estava contida a prpria participao. Em outro momento me permiti estar mais participante das

    4 A noo de bricolage trazida por Lvi-Strauss se prope a compreender como os nativos operam e produzem

    suas categorias, costurando fragmentos de cosmologias indgenas diversas, realizando remanejamentos que repercutem em novos significados, caracterizados por uma forma de traduo. Assim a bricolagem caracteriza um modo de operar do pensamento selvagem (Lvi-Strauss 1976). Nesse sentido, entendo que a bricolagem pode ser vista como um modo de funcionamento, no uma forma cosmolgica em si, em que os contextos histricos e culturais tomam papel influenciador determinante na atualizao do conhecimento para o esprito de poca.

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    cerimnias, inclusive assumindo posies cerimoniais especficas5, mas na prpria participao estava includa a observao. O que se quer dizer com essa colocao que, alm de buscar observar e analisar o que estava se passando nas cerimnias, procurei compreender os discursos dos atores com base tambm na participao efetiva das prticas, assim criando elementos que possibilitassem a aproximao das perspectivas expressadas pelos participantes sobre a vivncia das cerimnias.

    Durante a trajetria de acompanhamento das cerimnias, no decorrer da pesquisa, naturalmente ocorreu uma alterao do enfoque para uma participao mais efetiva e ativa, aceitando estar afeto pela proposta nativa, levando-a a srio, deixando que as observaes e reflexes se dessem em um momento posterior as prticas cerimoniais. Com isso abriu-se um espao para vivenciar as prticas sem se focar particularmente na compreenso do que se passava e o que aquilo parecia representar para os participantes. Isso possibilitou perceber outras dimenses da experincia criadas pelas imerses nas prticas em questo. Assim percebi que a efetiva participao produzia mais sentido e compreenso da proposta nativa de assimilao da tradio pelas cerimnias, onde os discursos recorrentes dos participantes so no sentido dos rituais (cerimnias) serem vistos como transmissores de valores culturais nativos, onde as cerimnias em si a realizao de suas prticas so tambm entendidas como a tradio em si. Assim a experincia compartilhada, que em ltima instncia tem um vis subjetivo, fornecia linguagem para a compreenso do palco dos acontecimentos em campo. Enquanto a interpretao deixava as falas distanciadas, muitas vezes com sentido enfraquecido, em razo da falta da referncia de uma experincia comum que possibilitasse uma linha de dilogo para compreenso das prticas em estudo e seus significados para os participantes do grupo em anlise.

    Por exemplo, observei muitos participantes trabalhando com o fogo e muitas vezes expressaram durante as cerimnias que quando se trabalha com o fogo ele conversa com voc, ele te ensina. O fato de tambm ter trabalhado com o fogo, assumindo a posio de Homem-Fogo em algumas cerimnias, permitiu-me entender o sentido assinalado do ensinar, que no se d de forma literal de uma

    5 Participei em Cerimnias de Temazcal e de Meia-Lua nas posies de Homem-Fogo, Homem-Porta e Homem-

    Tambor, lugares especficos dentro das cerimnias, alm da posio de Buscador de Viso e de Danante do Sol nas cerimnias centrais, que tambm tem carter de formao de condutores de cerimnias.

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    conversao atravs da fala. Mas sim de criar uma conexo que se d com o manuseio do fogo e a sua prpria forma de se manifestar durante essa relao. Que estabelece uma comunicao e transmite um aprendizado prprio, desde como aliment-lo e sustent-lo, nos termos e formas cerimoniais propostos, at no grau de ateno e zelo para no se queimar. O que proporciona uma maior concentrao com o andamento e desenvolvimento da cerimnia, algo que s possvel de se aprender atravs da prpria experincia, na prtica.

    Com a participao efetiva nas prticas, na vivncia, criou-se o espao de uma experincia compartilhada com os interlocutores. Isto possibilitou um lugar diferenciado para compreenso dos discursos produzidos pelos demais participantes, bem como da proposta nativa de que as cerimnias em si transmitiriam ensinamentos culturais especficos de povos nativos. E esse realmente o apontamento e a proposta presente nos discursos, de que a participao nessas prticas cerimoniais possibilitaria o entendimento sobre os conhecimentos sintetizados pela cultura nativa. Os quais s poderiam ser apreciados, compreendidos e assimilados pela prpria experincia direta, sendo essa a prpria lgica do sistema e da forma de ensino-aprendizado presente nessa tradio, direta e oral, especificamente na realizao das suas prticas cerimoniais. Aqui, de antemo, podemos perceber a importncia dada vivncia das cerimnias, ao processo ritual, que compe elemento central de especial relevo para os participantes.

    Neste percurso participei de diversas cerimnias de Chanupa e de Temazcal, conduzidas de forma autnoma pelos carregadores da tradio 6, e das cerimnias principais que so realizadas e conduzidas pelas lideranas do grupo, vistos como perpetuadores da tradio7, como a Cerimnia de Meia Lua, tambm chamada de Cerimnia dos Quatro Tabacos, e do Temazcal de Nutrio, prticas que tem maior perodo de durao e que atra maior nmero de participantes. Tambm concentrei o estudo sobre anlise, pesquisa e observao do evento de maior expresso do grupo no Brasil, em que realizado anualmente o ritual da Busca de Viso e, sequencialmente, da Dana do Sol, concentrado no sul do pas, em Segualquia. Que uma rea cerimonial junto a uma fazenda no municpio de Urubici, na regio

    6 Expresso utilizada para fazer referncia s pessoas autorizadas pela tradio a conduzir cerimnias.

    7 Termo que se refere s lideranas que tem a prerrogativa e atribuio de conduzir a formao e autorizar novos

    condutores de cerimnias da tradio.

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    serrana de Santa Catarina. Tais eventos so realizados no vero, durante o ms de janeiro e incio de fevereiro e tm um constante fluxo e trnsito de participantes, brasileiros e estrangeiros, indgenas e no indgenas. Neste ponto a proposta foi realizar um profundo estudo de campo atravs da apreciao do objeto em anlise, de uma vivncia direta onde ele se insere, permitindo assim, considerar as funes desempenhadas na sua organizao e a estrutura que forma a tradio.

    Com esse intento, participei do circuito das cerimnias que preparam os participantes para receberem a orientao necessria para se tornarem carregadores da tradio, se assim escolherem. Nessa trajetria participei dos eventos cerimoniais maiores da Busca de Viso e da Dana do Sol. Acompanhei o percurso e formao de diversos buscadores de viso e danantes do sol e os respectivos momentos da outorga de bnos para conduzir determinada cerimnia, momento de consagrao de participantes como carregadores da tradio. Esse conjunto analisado possibilitou que eu observasse a forma de transmisso em que se baseia a continuidade das prticas e o reconhecimento dos status (posies) dos participantes frente ao grupo. Nessa jornada participei da Busca de Viso por quatro veres consecutivos8, assumindo a posio de buscador de viso. Acompanhei todas as etapas de subida montanha, que importa em um processo cerimonial que se baseia em um recolhimento e isolamento, em silncio e completo jejum, sem comida e sem gua, por quatro dias e quatro noites num espao junto natureza, na montanha9. No primeiro ano so quatro dias e quatro noites, sete dias no segundo ano, nove dias no terceiro e, por fim, treze dias no quarto ano, quando se completa o crculo total da Busca de Viso da tradio do Fogo Sagrado de Itzachilatlan. Desse modo pude acompanhar um grupo especfico de buscadores de viso, que pode ser visto como uma espcie de turma de mesmo ano de formao, durante todo o processo de sua instruo ao longo de quatro anos e reconhecimento como carregadores da tradio. Assisti os preparativos, as cerimnias e as narrativas de seus processos durante a trajetria na Busca de Viso, bem como os encontros informais e outras

    8 Participei do evento da Busca de Viso, na posio de buscador de viso, em 2008, 2009, 2010 e 2011. Em

    2012, por ocasio do encerramento da pesquisa de campo, participei do evento sem subir a montanha, analisando as atividades do grupo de apoio e organizao do evento, ocasio em que a liderana e autoridade internacional mxima do grupo esteve presente acompanhando e conduzindo as atividades. 9 O espao junto natureza se trata de uma mata ciliar junto a um rio, que chamado pelos participantes como a

    montanha de viso.

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    cerimnias que se sucederam durante os anos, onde se deram relaes e discursos informais entre os participantes. Assim presenciei o circuito cerimonial completo para formao de Carregadores de Chanupa e Condutores de Temazcais, que so pessoas habilitadas e autorizadas a conduzirem as cerimnias mais frequentes da tradio.

    De mesma maneira, tambm acompanhei e participei por quatro janeiros consecutivos da Dana do Sol10, outro circuito cerimonial que tem o carter de formar carregadores da tradio, onde, igualmente, o crculo completo de formao se d ao longo de quatro anos de participao, com a realizao de quatro danas. De tal modo, tambm pude acompanhar a trajetria de outras turmas de formao de participantes do grupo, que, na qualidade de danantes do sol, tambm receberam a preparao necessria para se tornarem Carregadores de Chanupa e Condutores de Temazcais.

    Portanto participei de um ciclo completo da Busca de Viso, ao longo de quatro anos, com as etapas de quatro, sete, nove e treze dias na montanha, e, tambm, com o crculo de quatro anos da Dana do Sol. Tambm participei da Dana dos Espritos, como Apoio do Fogo, no crculo cerimonial do Fogo Sagrado de Itzachilatlan no Equador11. Nessa trajetria acompanhei as formas de transmisso da tradio do Fogo Sagrado, atravs da entrega e recebimento de bnos, que significam e importam na autorizao e reconhecimento pblico para conduo das prticas. Durante este percurso, pude observar de perto a transmisso destas cerimnias para Carregadores de Pipa, Condutores de Temazcal, Homens Medicina, Lderes de Busca de Viso e de Dana do Sol, que a forma de continuidade da tradio, por meio das cerimnias compartilhadas, que formam um sistema de ensino-aprendizado.

    Contudo, em que pese o extenso percurso empregado na observao participante, esclareo que, para a proposta desenvolvida nesta dissertao, privilegiei dar destaque para as trajetrias dos atores centrais que tm especial

    10 Participei da Dana do Sol em janeiro de 2009, 2010, 2011 e 2012.

    11 No Equador, h cerca de duas horas de Quito, em uma propriedade chamada de Urcupacha, h um circulo

    cerimonial maior, onde se encontram vrias lideranas internacionais do FSI e se praticam todos os desenhos cerimoniais maiores, a Busca de Viso, Dana do Sol e tambm a Dana dos Espritos, que ainda no ocorreu no Brasil, cuja participao como danante tem como requisito que j se tenha participado de pelo menos duas Buscas de Viso, trs Danas do Sol e que seja Carregador de Pipa, onde h uma amplitude de participantes de um circuito internacional das cerimnias da tradio.

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    relevo no campo pesquisado, eis que so fundamentais na construo dos discursos de tradio nativa e na constituio da rede que compe um circuito ao redor da prtica das cerimnias nativas. Com isso focalizei neste trabalho os discursos das lideranas sobre a sua tradio, os documentos de fundao do grupo como Igreja Nativa Americana, e contexto em que se deu a constituio das Igrejas Nativas Americanas no sculo passado. Tambm enfoquei os textos de divulgao das atividades, com os respectivos esclarecimentos sobre os propsitos das cerimnias, bem como a experincia de transitar na rede e de acompanhar diversos participantes nos diversos contextos da prtica das cerimnias nativas.

    Assim a dissertao tem enfoque principal na anlise dos discursos que compe a ideia de tradio nativa, assim como na proposta de conhecimento apresentada pelo grupo central da pesquisa sobre as prticas e propsitos das cerimnias.

    Voltaremos a essa anlise em momento oportuno, por enquanto o intento era de apresentar um panorama geral da trajetria em campo, que incluiu os tipos fundamentais de mtodos de coleta de dados: entrevista, levantamento de documentos, anlise de artefatos cerimoniais e a observao participante.

    De mesma forma adotei a prtica de conviver com os lideres e organizadores do grupo, bem como demais participantes, Carregadores de Pipa, Buscadores de Viso, Danantes do Sol, Homens Medicina, etc., aprendendo com suas prticas e rituais, observando, fazendo perguntas e participando de suas atividades, tanto dos rituais preparativos, quanto dos eventos principais.

    Por conseguinte, atravs da observao participante, pude ver e ouvir as pessoas no seu ambiente natural, fazendo parte do fenmeno em estudo, possibilitando tambm, atravs de conversa informal, a captao de entrevista no estruturada. De tal modo, tambm me deixando estar afeto12 pelo objeto de pesquisa, busquei viabilizar a constituio de um quadro esclarecedor das atividades acompanhadas em campo, que possibilitasse comunicar as prticas, rituais e cerimnias tais como so vistos do(s) ponto(s) de vista(s) dos seus participantes.

    12 Aqui se faz uso da palavra afeto nos termos usados por Favret-Saada, no sentido do pesquisador se deixar

    experimentar o sistema nativo, expondo a si mesmo nessa proposta/sistema. Ao aceitar ser afetado, isso no implica identificar-se com o ponto de vista nativo, mas proporcionar a vivncia da alteridade, como forma de ponte de dilogo para a pesquisa, lembrando que, como sustentam muitos, ela se d no antroplogo (Favret-Saada (1990) 2005:155-161).

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    II. O vis de anlise escolhido na dissertao - Tradio e Inovao

    O presente tpico tem o carter de esclarecer a pesquisa, qual o caminho percorrido, a escolha do enfoque e suas razes. Isto porque, notadamente, trata-se de uma dissertao, onde evidente a necessidade prtica do pesquisador escolher / privilegiar uma temtica para realizao do trabalho. Coloca-se entre aspas as palavras escolher e privilegiar, pois dentro do conjunto de fatores que resultam nessa escolha, grande parte determinada pelos prprios fatos observados, pelas prprias condies do campo.

    Feita a introduo do contexto em anlise, esclareo que o presente trabalho se prope a estudar os discursos dos atores sobre a (sua) tradio, analisando as suas trajetrias, que compe os traos legitimadores da construo dos discursos de tradio, onde a biografia dos principais atores tem especial importncia na construo desses discursos e tambm revelam a constituio de uma rede do xamanismo urbano no pas.

    Magnani considera o xamanismo urbano no apenas como parte integrante do circuito que ele chamou de neo-esotrico, mas tambm constitui, ele prprio uma espcie de subcircuito derivado em seu interior. Entretanto, no s a insero nesse circuito que demonstra a integrao do xamanismo urbano no universo do neo-esoterismo e o insere na lgica e circuito mais geral da Nova Era. As pessoas que participam dessas cerimnias e vivncias, frequentando os espaos dedicados a essas prticas, esto em busca de mais uma alternativa para a expresso e desenvolvimento da dimenso da espiritualidade, o que est em consonncia com as expectativas e representaes contemporneas sobre o exerccio da religiosidade em seu sentido mais amplo (Magnani, 1999).

    Nesta direo proponho uma reflexo sobre a ideia de inovao de uma tradio13 a partir da pesquisa de campo realizada com o Fogo Sagrado de Itzachilatlan, grupo central da pesquisa, ponto de partida para outros ns da rede mencionada, onde as cerimnias compartilhadas constituem um circuito de trnsito intenso de participantes.

    13 Esclarece que a presente proposta no trata da questo especfica de conceitualizar tradio, sendo que em

    algumas oportunidades a utilizao desse termo se dar voltada a acepo estreita de um conjunto de cerimnias compartilhadas, que so realizadas de uma mesma forma tradicional e fazem parte do prprio fundamento dos discursos de tradio, sendo elementos centrais de uma rede do xamanismo urbano.

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    Dito isso, para anlise da proposta apresentada pelo Fogo Sagrado de Itzachilatlan de continuidade e inovao de uma tradio nativa, pesquisei a sua organizao e as cerimnias que tem a funo de transmitir de forma direta e oral o conhecimento envolvido nas prticas, que so o prprio fundamento da tradio, com a formao e distribuio de posies de liderana que permitem o seu funcionamento, continuidade e transmisso das cerimnias. Nessa estrutura, como dito, acompanhei a formao de novos condutores de cerimnias, que so carregadores da tradio, que implica em estar habilitado a desempenhar e conduzir determinada cerimnia. Esta formao, que direta e oral, tem uma estrutura baseada substancialmente na vivncia direta das cerimnias, que compe requisitos para o reconhecimento dessas posies, que so marcadamente componentes centrais que renem os participantes, constituindo o que podemos chamar de grupos cerimoniais. Este reconhecimento da trajetria do sujeito dado frente ao grupo, sendo que as posies de liderana, que so vistas como perpetuadores da tradio, so responsveis por outorgar bnos (autorizao) para os novos condutores de cerimnias.

    Desta forma, a transmisso direta e oral da tradio se d por uma estrutura voltada trajetria do sujeito nas cerimnias, realizada e reconhecida de forma pblica perante o grupo, sendo que o funcionamento desse sistema se d atravs dos perpetuadores e carregadores da tradio. Dentro dessa formao, o Fogo Sagrado de Itzachilatlan tem o seguinte caminho de liderana em ordem progressiva: Carregador de Pipa, Condutor de Temazcal, Lder Espiritual e Homem ou Mulher Consagrado, Homem ou Mulher Medicina, Homem ou Mulher do Caminho, Chefe e Chefe Perpetuador da Tradio com total autoridade.

    Para cumprir com o propsito de estudar a forma e composio do funcionamento deste grupo cerimonial, a presente pesquisa se pauta, como j dito, substancialmente na observao participante de diversas cerimnias de Chanupa, Temazcal, Meia-Lua, Busca de Viso, Dana do Sol, Dana dos Espritos e Consagrao de Relaes. Alm de acompanhar os discursos oficiais, presentes nas falas dos interlocutores de forma pblica durante as cerimnias, tambm se fez uso de diversos dilogos informais com os participantes do grupo, onde compartilharam suas trajetrias frente a essa estrutura de formao e como se tornaram carregadores da tradio. Alguns desses acontecimentos em campo,

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    cerimnias e dilogos com os participantes, foram registrados atravs de gravaes de udio, mantendo-se a integralidade do registro das falas. Em outras oportunidades, tomei nota dos pontos centrais apresentados nas suas falas, que por vezes foram retomados frente a novas falas e novos acontecimentos no campo.

    Em especial, tive a oportunidade de estudar o material escrito que compe a formao jurdica do grupo como Igreja no pas, notadamente o seu Estatuto, onde se apresentam disposies sobre os propsitos do Fogo Sagrado de Itzachilatlan. Colocamos nfase nesses documentos, pois estamos tratando de um fenmeno que se apresenta como uma tradio direta e oral, onde todas as instrues so passadas oralmente durante a execuo das cerimnias. Assim, a existncia de uma representao escrita do prprio grupo sobre suas prticas ganha especial relevo, pois se trata de algo que est a comunicar sobre as prticas na sociedade moderna, que eminentemente pautada em registros escritos. Pelo que, o registro institucional das atividades do grupo est a apontar para uma adaptao e inovao dentro do que seria essencialmente uma tradio direta e oral, contribuindo para a anlise dos discursos dos participantes do grupo, bem como dos apontamentos centrais transmitidos pelas lideranas.

    Colecionei esse conjunto de material ao longo da trajetria em campo acompanhando as suas cerimnias e seus participantes, o processo de aprendizado e formao dos carregadores da tradio, possibilitando trazer as falas dos atores principais sobre o que estaria presente na vivncia dessas prticas em estudo. Afinal, por exemplo, em se tratando da Busca de Viso, que uma das cerimnias/ritos centrais necessrias para a formao de um carregador da tradio, onde a pessoa permanece sozinha e em completo silncio, por quatro dias e quatro noites, sem beber nem comer absolutamente nada, em um pequeno espao delineado na natureza, qual seria o aprendizado por traz desta experincia? Estamos nos referindo a uma cerimnia em que se diz, pelo discurso dos participantes do grupo, que o aprendizado da pessoa direto com a natureza e com a sua prpria experincia na montanha, sem a interferncia de outro ensino. Onde a prtica realizada ao longo de quatro anos, aumentando-se progressivamente o tempo na montanha de quatro para sete, nove e treze dias, sendo esta uma das instrues necessrias para que o participante adquira o conhecimento e o grau de experincia imprescindvel para se tornar um carregador da tradio.

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    Assim, esclareo a postura adotada em campo, qual seja a participao no circuito cerimonial do grupo, visando anlise e reflexo da proposta nativa e dos discursos de seus participantes, onde se sustenta estarem condensados saberes e valores nativos na prtica dessas cerimnias. Dito de outra forma, a proposta de levar a srio a proposta dos nativos, e desse contato, dessa vivncia, desse dilogo, trazer elementos que possam dar subsistncia para uma reflexo sobre o discurso dos participantes do grupo. Aqui, nos pautamos pela proposta de que uma boa poltica aquela que multiplica os possveis, lembrando Viveiros de Castro (2008). Esclareo tambm que o presente trabalho apresenta pessoas especficas do universo pesquisado, em especial as lideranas, pois o foco eleito o estudo dos discursos de tradio nativa, da ideia de continuidade, inovao e transmisso de uma tradio direta e oral, e a composio de um circuito ao redor das cerimnias, que formam uma rede do xamanismo urbano. Para este enfoque, nos interessa, quando trouxer uma fala, a posio do sujeito no grupo, no circuito cerimonial, seu status como condutor ou participante das cerimnias. Assim, em algumas falas somente se identificar a posio do sujeito frente ao grupo ou na rede. Tomei essa opo com o objetivo de no expor as pessoas pesquisadas e preservar a confiana estabelecida nessas relaes. Caso contrrio, a anlise do texto contendo referncia direta das pessoas possibilitaria um desconforto por parte dos envolvidos, que poderiam ter as suas restries pela forma como foi utilizado o que foi dito, bem como poderia criar um clima de animosidade em razo da predileo de alguns em detrimento de outros, por no dar a expresso que gostaria sobre a sua participao especfica. Assim, o que se pretende quando trouxer uma fala14 apresentar as observaes em campo que do subsdios para a anlise da tradio e suas cerimnias, com a sua forma de funcionamento e a ideia de inovao de uma tradio nativa.

    Tambm apresento os discursos das lideranas do grupo (da Igreja) de que as cerimnias guardariam saberes com conhecimento e valores nativos, que podem ser aprendidos na prpria experincia do percurso de suas cerimnias, que teriam sido transmitidas atravs do contato e dilogo de povos nativos com a sociedade moderna, onde ocorreu a institucionalizao destas cerimnias como Igreja.

    14 Quando mencionarmos o nome do interlocutor junto com suas falas porque o mesmo autorizou sua citao.

    Em alguns casos, usaremos o nome do caminho (na tradio), em outros, o nome civil. Essa deciso o pesquisador deixou a encargo dos prprios pesquisados, que informaram sua preferncia.

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    Antes de prosseguir na apresentao da pesquisa, trago alguns pargrafos para levantar algumas possibilidades outras que se apresentaram no campo em estudo. Por mais que o termo xamanismo muitas vezes expresse um rtulo dentro da antropologia que remete a um universo voltado ao mgico e religioso, o que explicita um olhar que ainda permeado de certo grau de exotismo (Santos 2007), por mais que se saiba existir o esforo no sentido contrrio, no caso em apreciao convm explorar essa designao - o campo em anlise como expresso do xamanismo urbano. At mesmo porque, essas possibilidades de anlise do campo sob o vis do mgico junto com o religioso tambm se fizeram presentes nas relaes observadas.

    Igualmente cabe salientar que no discurso oficial do grupo central objeto da pesquisa, que se do especialmente pelas falas das lideranas durante as cerimnias, no se faz meno palavra xamanismo. Pelo contrrio, pude perceber um nimo de no associar as prticas realizadas sob esse rtulo, ou melhor, no se trata bem de um esforo nesse sentido, mas sim de uma inteno de no utilizao de uma expresso que tipifique as cerimnias de forma caricata. Esse fato que constatei na observao participante em campo, bem explicitado pela fala de um conselheiro do grupo, uma pessoa que participa desde o comeo das suas atividades no Brasil e que faz parte do Conselho de Busca de Viso e de Dana do Sol. Certa vez. Ao fazer-lhe a (infeliz) pergunta se o Fogo Sagrado de Itzachilatlan no seria uma vertente do xamanismo, recebi a seguinte resposta: Xamanismo? Nem sei o que isso (risadas). Me diga voc j que vocs que inventaram essa palavra.

    Essa fala marca bem algo que repetidamente observei em campo: muitas pessoas, em diversas oportunidades, fazem questo de negar, pela omisso, esse rtulo do xamanismo e de reafirmar seu ponto de vista sobre as cerimnias do grupo como tradio nativa, sendo as cerimnias vistas como expresso de sua cultura, de sua sabedoria, contendo seu modo de viso do mundo condensado e gravado na experincia das cerimnias. Esse fato me deixava intrigado, pois mais familiarizado com a disciplina da antropologia, pensava: mas as prticas presentes nas tradies nativas no so tambm vistas como xamanismo?

    Por outro lado vi que vrios dos participantes, quando por ocasio das conversas informais, fizeram uso do termo xamanismo para expressar sobre suas

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    vivncias nas cerimnias, como, por exemplo, as falas especficas de dois sujeitos que, quando perguntei sobre sua entrada no grupo e trajetria na participao das cerimnias, um deles respondeu: eu vim para o xamanismo por que me senti identificado com a filosofia; e o outro pontuou durante sua resposta: quando o xamanismo entrou na minha vida, eu mudei completamente minha forma de ver o mundo.

    Em suma, a diversidade de olhares dos participantes sobre o que tratam as cerimnias, no permite uma unificao de seus discursos, pelo contrrio, expressam uma grande contradio sobre o fenmeno observado. Se arriscarmos a tentativa de buscar uma linguagem comum para resumir as diversas expresses dos participantes sobre as atividades do grupo, a que melhor se adequaria a essas falas seria um caminho espiritual, e, por mais contraditrio que parea, junto com essa expresso surgiria o complemento mas no uma religio. Sendo que a grande maioria dos participantes desconhece o fato do Fogo Sagrado de Itzachilatlan ser uma Igreja juridicamente constituda, sendo que as cerimnias em si so vistas como uma tradio nativa pelos participantes.

    O fato dos participantes em geral desconhecerem a constituio das atividades como uma Igreja ganhou destaque na pesquisa, contribuindo para o vis de estudo. Mas, de fato, podemos dizer que as relaes dadas no grupo em anlise fazem parte do universo visto como xamanismo urbano (ou neoxamanismo), at mesmo para apontar para amplitude de abordagens possveis dentro do que se apresentava no campo, no havendo a possibilidade de se seguir todas elas, nem de unificar os discursos e vises dos participantes na busca de compreender totalmente o significado dessas prticas para cada um.

    De qualquer forma, pude constatar que alguns participantes tm um vis notadamente inclinado para um xamanismo mgico sobre as cerimnias realizadas pelo grupo, onde a forma e sequncia dos ritos cerimoniais so vistos como fundamentais para a produo de eventos na relao dos humanos com o mundo (com a natureza), onde as cadeias de comportamentos a serem respeitados so vistas como modeladores e construtores da realidade do mundo, com poder de agncia com interferncia nos acontecimentos cotidianos.

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    Para explicar melhor essa perspectiva mgica presente na apreciao de algumas das pessoas que participam dessas prticas, fao uso da fala de um buscador de viso - nome dado ao participante da Busca de Viso, que economista e empresrio por profisso, que em uma conversa informal falou que a Busca de Viso abria o poder da magia na vida da pessoa; perguntei-lhe no que consistia essa magia, recebendo como resposta: a magia a movimentao de uma cadeia favorvel de eventos para a concretizao de um acontecimento, ou a mudana de uma cadeia indesejvel que j est em movimento para no ocorrncia de um evento, e sustentou que a interao do sujeito na cadeia de eventos/ acontecimentos fundamental para o seu desfecho.

    Dentro dos estudos da antropologia sobre xamanismo, nas palavras de Santos, uma das principais formas, nas quais o debate tem ocorrido, com relao s reivindicaes conflitantes da contraposio entre religio e magia por um lado, e racionalidade e cincia, por outro (Santos, 2007: 33). No campo pesquisado, esse conflito se faz presente, conforme se depreende dos diversos pontos de vista dos participantes. De alguma forma, entendo que esse conflito pode ser traduzido por duas expresses que esclarecem essa diviso: ver para crer seria a perspectiva da racionalidade e cincia; crer para ver seria a perspectiva da religio e da magia. Mas esse enfoque foi deixado de lado na elaborao desse trabalho, exclusivamente por necessidade prtica de se estabelecer um recorte especfico para a dissertao.

    Por outro lado, o desconhecimento geral quanto constituio do grupo como Igreja me levava questo do que estaria por trs dessas prticas empreendidas pelo grupo. Uma religio? Uma tradio? Um caminho espiritual? Um caminho de autoconhecimento? Enfim, qual seria a finalidade destas cerimnias, o que significariam na prtica, tanto pelo vis dos participantes quanto pelo discurso das lideranas sobre a experincia contida na prtica das cerimnias?

    Assim, o interesse se voltou tambm para refletir sobre o fenmeno dessas prticas no contexto pesquisado e qual a sua finalidade e lugar para os participantes, haja vista que cada interlocutor tem uma perspectiva particular na apreciao das cerimnias. Neste sentido, o contexto em estudo se apresenta mais como um grupo ritual do que um grupo que tenha um credo uniforme, onde o interesse comum pelas cerimnias o elemento central que rene os diversos participantes.

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    Como levantamos brevemente nessa introduo, h vrios propsitos e linguagens pelos quais os participantes do grupo apresentam sua viso das cerimnias em anlise e das razes que os levaram a aderir tais prticas. Trago essas consideraes para ilustrar as possibilidades experienciadas na escolha do recorte do vis de anlise desta dissertao, pois as temticas de apreciao eram mltiplas. Mas, de alguma maneira, o percurso empreendido no campo levou a privilegiar o enfoque no discurso mais proeminente, qual seja, a ideia de inovao e continuidade de uma tradio nativa e o que isto estaria a comunicar sobre a realizao dessas prticas no contexto contemporneo. Afinal, seria essa tradio uma religio? Ou o inverso, seria essa religio uma tradio? Pelo que, esclareo que a presente proposta no abordar propriamente o xamanismo nos termos das discusses sobre magia, mas sim sobre a constituio da primeira Igreja Nativa Americana no Brasil e a formao da sua tradio, bem como a anlise de sua insero no circuito neoxamnico no pas, onde se compe uma rede de xamanismo urbano, em que um discurso mais abrangente de tradio nativa pode ser estudado a partir da trajetria de vida de atores centrais, que revelam outros pontos dessa rede, em que diversas pessoas transitam ao redor da prtica das cerimnias com perspectivas e interesses diferentes. Frente a todo o conjunto de observaes realizadas em campo, uma generalizao possvel fazer de antemo, que traduz algo que se faz presente nas falas, e suas entrelinhas, de quase todos os interlocutores: a procura por essas prticas tem uma alta carga de busca existencial dos participantes e, de fato, elas implicam em uma (re)significao de vida do sujeito, seja para qual sentido for, com impacto na sua forma de ver e compreender o mundo, consequentemente, na sua forma de ser e estar no mundo. Isto, de alguma maneira, est a apontar para a ideia que comumente tratada como experincia religiosa. Neste percurso, pesquisei a bibliografia estrangeira sobre a constituio das cerimnias nativas em Igrejas, buscando identificar as origens em que se fundam a criao da Native American Church, bem como o fenmeno da prtica das suas cerimnias no contexto contemporneo. Assim, tambm direcionei meus esforos sobre as prticas realizadas pelo grupo central observado, empregando exame de suas formas cerimoniais e do sistema/estrutura de sua transmisso e formao de novos condutores, baseado em intensa observao participante do grupo e suas atividades, que me levaram a outros pontos da rede em que se insere.

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    III. Sobre a pesquisa de campo multissituada - a rede.

    Tendo em vista que estamos tratando de um campo imerso no contexto de novas religiosidades, onde o enfoque irreverente na experimentao religiosa e livre, na expresso e desenvolvimento subjetivos so traos distintivos associados religiosidade Nova Era (Alves, 1977:72), onde o sujeito compe seu processo de autoconhecimento a partir de um forte experimentalismo e pela circulao nos diferentes grupos, em razo do acesso livre e voluntrio rede informal e organizadora de vrias comunidades esotricas, em que as pessoas podem circular (Siqueira, 2003:126), buscamos acompanhar o trnsito e trajetria dos indivduos no circuito em que as cerimnias so apresentadas, alm do grupo central de anlise.

    De tal modo, tivemos a oportunidade de perceber e acompanhar parte da rede de relaes e dilogos mais ampla em que est situado o grupo pesquisado, onde h um trnsito com fluxo contnuo de indivduos ao redor das cerimnias e prticas, apresentando-se tanto interesses comuns quanto particulares.

    Assim, norteado por uma pesquisa antropolgica multissituada (Marcus, 1995), baseada substancialmente nas ideais de: follow the characters (acompanhar os atores), follow the plot (acompanhar a trama/o enredo), follow the things (seguir as coisas/objetos), follow the discourse (acompanhar os discursos), follow the group (seguir o grupo), pude expandir a pesquisa sobre as cerimnias nativas no contexto contemporneo abrangendo a perspectiva ampla que se apresenta na rede.

    Tendo em mente a conjuntura mais ampla presente no trnsito nas novas religiosidades, buscamos acompanhar os atores/participantes do grupo central em estudo, com isso pudemos verificar uma extensa rede de relaes de grupos que fazem parte desse circuito mais amplo. Na especificidade do tema tratado the plot, qual seja, a prtica de cerimnias nativas no contexto contemporneo, pudemos acompanhar diferentes grupos que realizam as mesmas prticas pelo pas. Diferentes grupos e lugares onde so realizadas Cerimnias de Chanupa, de Temazcal, de Meia-Lua, de Busca de Viso, bem como os diferentes discursos sobre a tradio nativa e seus propsitos.

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    Assim pude acompanhar participantes de grupos distintos que tem o interesse comum na prtica dessas cerimnias, que so tidas como provenientes da cultura nativa. Pelo que, as prticas em si podem ser vistas como objetos, que envolvem elementos de um saber (um know-how), fazendo parte de um mercado do religioso15, podendo assim ser vistas, de certa maneira, como artigos. De tal modo, as cerimnias so vistas como um artefato cultural pelos participantes, com a acepo de algo proveniente do passado. Nesta esteira, de acordo com o discurso dos participantes, as cerimnias so vistas como um patrimnio imaterial - um know-how - que considerado em si como uma tradio.

    De fato, as prticas no so exclusivas do grupo central pesquisado, fazendo parte de um universo mais amplo, onde so divulgadas e realizadas de forma semelhante, guardando relao na sua forma e propsito central, mas com certos contornos particulares, sendo que em todos os grupos os discursos de tradio, e sua legitimidade, so construdos a partir da trajetria dos atores centrais (organizadores). Nesse sentido, acompanhei Cerimnias de Temazcal e de Chanupa conduzidas por pessoas de diferentes linhas, com diferentes trajetrias sobre a forma que iniciaram a realizao das cerimnias. A grande maioria dos Condutores de Temazcal e Carregadores de Chanupa que tive como interlocutores na presente pesquisa se tornaram carregadores da tradio atravs da configurao da tradio empreendida pelo Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil. Contudo, tambm participei de cerimnias realizadas por pessoas sem qualquer vinculao com este grupo, e que possuem seus prprios discursos sobre as cerimnias.

    Assim, nos interessa utilizar a reflexo conjunta das prticas realizadas por outros atores e grupos que tambm participei. Em especial, traremos o caso de Vernon Foster, que nativo norte-americano da etnia Klamath/Modoc e foi adotado ainda jovem pela nao Lakota e pelo American Indian Movement (AIM). Vernon Foster se apresenta como guardio da tradio lakota, profundo conhecedor dos ensinamentos da tradio nativa americana, realiza workshops e jornadas pelo pas para compartilhar ensinamentos da espiritualidade indgena e rituais ancestrais, entre eles a Tenda do Suor e a Chanupa. Vernon tambm ampara a direo da

    15 No contexto pesquisado do trnsito de participantes so oferecidas inmeras prticas, mtodos, terapias

    alternativas, experincias que fazem parte do universo das chamadas novas religiosidades, que permeiam a construo de novos estilos de vida e tambm compe um mercado do religioso (Siqueira 2003).

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    Busca de Viso que realizada anualmente nas Serras Altas da Mantiqueira, no municpio de Itamonte, Minas Gerais. Pelo que, a anlise de sua biografia nos interessante no s por ser um ator central na rede pesquisada, mas pelo fato de se tratar da figura do prprio indgena versando sobre a sua tradio no contexto urbano, o que ganha especial relevo para anlise dos discursos de tradio nativa.

    Nessa direo, aproveito para esclarecer a relevncia dada no presente trabalho s trajetrias dos atores centrais, com a apresentao das suas biografias ou histrias de vida, eis que estes participam ativamente na construo do discurso amplo de tradio nativa, que compem uma rede do circuito das cerimnias no contexto urbano, sendo essas trajetrias legitimadoras dos discursos de tradio em cada contexto. Pelo que, esses atores centrais assumiram um lugar importante na dissertao, em funo de conduzirem as cerimnias principais, empreendendo os discursos que formam e divulgam a sua tradio, onde diversos participantes transitam pelas prticas cerimoniais. At mesmo porque, no campo em exame, a rede observada, que forma o circuito da prtica das cerimnias nativas, estabelecida diretamente por esses atores centrais, que conduzem as cerimnias em diferentes locais, independentemente do local em que se encontrem, sendo muitas das cerimnias e atividades ocorrem de forma itinerante, precisando mais da presena de um condutor habilitado para sua realizao do que um espao especfico. Desta forma, o que determina a rede do circuito das prticas o percurso dos seus atores centrais, at mesmo porque, estes atores, nos seus respectivos contextos, so responsveis pela conduo das cerimnias que orientam o propsito da tradio, sendo assim peas principais na construo destes discursos.

    Assim, a rede em que circulam os participantes fundamentalmente organizada a partir do trnsito destes atores, que organizam as atividades de acordo com a oportunidade e convenincia das suas agendas. Por outro lado, as cerimnias mais freqentes so organizadas independentemente por participantes que assumiram posies de conduo das cerimnias menores, que tambm compe circuito do trnsito de pessoas interessadas nas prticas. Esse cenrio se encontra em consonncia com a proposta da Teoria de Ator-Rede de Latour, onde se ressalta a relevncia das intenes e significados humanos dados pelos atores na constituio dos discursos e redes, que proporcionam certa flexibilidade interpretativa nessas relaes e conexes (Latour 2008). Nessa proposta, o princpio

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    fundamental que os prprios atores fazem de tudo, incluindo as suas prprias teorias, os seus prprios contextos, as suas prprias metafsicas, e at mesmo as suas prprias ontologias.

    Pelo que, a noo da Teoria Ator-Rede nos facilita a pensar o campo em anlise, eis que remete aos fluxos, circulaes e alianas, nas quais os atores envolvidos interferem e sofrem interferncias constantes. Neste sentido a rede constituda por uma lgica das conexes, e no de superfcies, definidas por seus agenciamentos internos e no por seus limites externos, ou seja, na rede no h unidade, apenas agenciamentos, no havendo pontos fixos, apenas linhas. Nestes termos, uma rede de atores no redutvel a um ator sozinho, mas sim composta pela srie de elementos conectados e agenciados. Nos dizeres de Latour, no h informao, apenas transformao, sendo essa a principal caracterstica da rede, tratando-se de enfatizar os fluxos, os movimentos de agenciamento e as mudanas por eles provocadas.

    Desta forma a constituio da rede parte de ncleos de participantes especficos, marcados pelas suas prprias trajetrias e relaes. Estas relaes, antes vinculadas a um contexto particular, so alargadas e articuladas em rede, ligando os participantes no circuito de interesse comum das cerimnias nativas, que constroem o discurso geral de tradio nativa no qual as prticas esto inseridas. Pelo que, na dinmica das redes que se constroem elos intermedirios que formam o pano comum dos discursos de tradio nativa, relacionando pequenos contextos ao panorama amplo apresentado no circuito ao redor das prticas cerimoniais nativas.

    Nessa esteira, a partir da pesquisa de campo feita com o Fogo Sagrado de Itzachilatlan, pude perceber a sua insero em uma rede que participa na composio de um circuito do xamanismo urbano no pas. Pelo que, tambm realizei observao participante em outros grupos que realizam as mesmas prticas cerimoniais16 acompanhando os atores centrais que propagam o discurso amplo de tradio nativa. Assim, acompanhei em campo vrios grupos em diferentes lugares, pesquisando a trajetria e biografia dos condutores principais que participam nesta rede da prtica de cerimnias nativas, tambm seguindo as pessoas, as cerimnias, os discursos e o enredo.

    16 Tais como as Cerimnias de Tenda do Suor, de Chanupa, de Medicina e da Busca de Viso.

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    Diferentemente dos outros contextos pesquisados, o Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil o nico institudo juridicamente como Igreja Nativa Americana no pas e que inclu na sua proposta formar carregadores da tradio. Nos demais grupos, h a realizao das prticas com o discurso de que contm ensinamentos nativos, mas no h o propsito de formar condutores de cerimnias.

    No primeiro captulo, apresentamos o grupo central pesquisado e a sua constituio como Igreja Nativa Americana. Em seguida abordamos a institucionalizao e reconhecimento da tradio nativa como religio frente ao Estado norte-americano, seguido de uma reflexo sobre tradio e religio como memrias do passado. No final do captulo, trazemos a constituio da Native American Church of The Sacred Fire of Itzachilatlan e a trajetria de seu fundador e lder internacional - Aurlio Diaz Tekpankalli.

    No segundo captulo, abordamos a constituio do Fogo Sagrado no Brasil, como a primeira Igreja Nativa Americana no pas, bem como as suas cerimnias, que so vistas e tidas como a base desta tradio. Tambm trazemos uma narrativa do contato com o campo, ilustrando as cerimnias que ocorrem com maior frequncia e de forma descentralizada, e, tambm o contexto das atividades para os participantes. Na sequncia tratamos o grupo como expresso de religiosidade; em seguida, como expresso e representante do Caminho Vermelho no Brasil. No final do captulo, apresentamos o palco atual das cerimnias do Fogo Sagrado de Itzachilatlan no pas, esboando a sua insero no contexto amplo em que se situa, e, na sequncia, delineando o panorama mais amplo da Nova Era em que as prticas esto inseridas.

    No terceiro captulo, apresentamos traos da rede estabelecida no circuito dos participantes das cerimnias nativas, fazendo uso da trajetria de atores centrais, cuja biografia tem especial relevo por comporem a construo dos discursos de tradio nativa. Desta forma, ilustramos parte da rede das cerimnias no pas onde o grupo central de pesquisa est situado, e que tambm (in)formam o contexto contemporneo pesquisado. Nesta rede, apresentamos o caso do indgena norte-americano Vernon Foster, com um exame da tradio lakota, apresentando um posicionamento do prprio indgena urbano sobre a sua tradio e as suas cerimnias. Em seguida delineamos o contexto do neoxamanismo brasileiro atravs de um dos seus atores de maior expresso, Sthan Xannia.

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    Por fim, no quarto captulo trago uma comparao entre diferentes divulgaes da cerimnia da Busca de Viso, nesses diferentes segmentos da rede observada, retornando ao exame da Busca de Viso - e da tradio - segundo o Fogo Sagrado de Itzachilatlan. Assim trazemos uma discusso sobre tradio e inovao das cerimnias nativas a partir da comparao de diferentes contextos da prtica das cerimnias, abordando consideraes sobre as falas presentes tanto na articulao da tradio do Fogo Sagrado de Itzachilatlan, quanto nos discursos gerais de tradio nativa, compondo uma rede do circuito do xamanismo urbano no pas.

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    CAPTULO 1 Native American Church of the Sacred Fire of Itzachilatlan

    1.1. O grupo central pesquisado - O Fogo Sagrado de Itzachilatlan

    Como brevemente apresentado, o presente trabalho se d a partir de pesquisa de campo empreendida com um grupo que se coloca como representante de uma Tradio Espiritual Indgena da Amrica, sustentando que essa tradio teria origem em povos nativos. O grupo em questo fundador da primeira Igreja Nativa Americana no Brasil17. A constituio desta Igreja no pas decorrente de um movimento de expanso de uma Igreja Nativa Americana com sede nos Estados Unidos (Chicago/IL), sendo que a constituio da tradio em forma de Igrejas decorreria do contato da cultura dos povos nativos com a sociedade moderna, onde, em 1918, tendo em vista a necessidade de se regulamentar essas prticas espirituais nativas junto ao Estado, foi constitudo um conselho indgena, que resultou na criao de uma associao religiosa, juridicamente constituda como Native American Church - NAC18, passando a fazer parte desta associao, diversos representantes de tribos e lideranas (espirituais) nativas. A formao da NAC est vinculada a tentativa de proteger e preservar as prticas nativas, inclusive contra a perseguio legal (Jones 2005), que foram oficialmente reconhecidas como religio. Sua criao esteve relacionada a vrios fatores, entre eles a existncia de cerimnias nativas antigas, a catequizao pelo cristianismo dos indgenas norte-americanos e o contato com nativos mexicanos que consumiam o cacto peyote. Assim, iniciou-se o que foi visto como um culto pan-indgena, com a utilizao em certos casos de elementos cristos nos rituais nativos de alguns dos povos indgenas (Huston Smith, 2006). As lideranas do Fogo Sagrado de Itzachilatlan, tanto a nacional quanto a estrangeira, contam que essa tradio espiritual, com suas prticas e cerimnias, foi

    17 Igreja Nativa Americana do Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil.

    18 Com a constituio do NAC em 1918, o governo dos EUA reconheceu oficialmente a tradio indgena como

    religio (Stewart, 1987).

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    transmitida secularmente pelos nativos, no seio de suas comunidades, de forma direta e oral, por meio de ritos cerimoniais, que so conduzidos e oficializados por lderes preparados e delegados para tal, sendo que essas prticas teriam ido alm das fronteiras dos povos nativos pela prpria continuidade da tradio. Este prosseguimento aconteceria por meio de sua transmisso de forma tradicional, no sentido que seriam transmitidas mantendo as mesmas caractersticas, formato, composio, ordem, estrutura, observando-se um know-how, preservando assim uma mesma essncia como substncia, com um mesmo sistema de aprendizado, sendo que algumas de suas lideranas teriam tido a viso (o entendimento) de que esse legado deveria ir alm das fronteiras das comunidades nativas, abrangendo a transmisso de tal herana para toda humanidade, incluindo, assim, o homem branco, aqui no sentido de possibilidade de participao por no indgenas.

    O Fogo Sagrado de Itzachilatlan19 do Brasil (FSIB ou FSI do Brasil20) proclama ser portador dessa Tradio Espiritual Indgena da Amrica comumente chamada de Caminho Vermelho21, cuja origem seria procedente de povos nativos da Amrica do Norte.

    Como dito, algumas das lideranas dessas associaes religiosas constitudas como Native American Church estenderam (abriram) as suas cerimnias ao homem branco - no ndios. Como exemplos de lderes que abriram suas prticas para no ndigenas, so citados Black Elk22, Henry Crow Dog23, assim como o caso, na atualidade, de Aurelio Diaz Tekpankalli.

    19 Segundo o Estatuto da Igreja, Itzachilatlan vem do idioma Nahuatl falado pelo povo Mexica (povo Azteca), e

    quer dizer Terra dos Gigantes Vermelhos, que uma maneira de chamar o continente Americano. 20

    Alm das iniciais FSIB, tambm usaremos FSI do Brasil, para reforar a localidade (pas) do contexto, pela sua sonoridade na leitura, eis que trazemos exemplos de outras localidades (contextos) como FSI do Equador, por exemplo. 21

    O caminho vermelho ou red road um conceito pan-indgena do caminho certo de (da) vida, conforme inspirao de algumas das crenas encontradas em uma variedade de ensinamentos espirituais de nativos americanos (Huston Smith, 2006). Canku Luta, na lngua Lakota significa Estrada Vermelha, tradio que segundo o discurso nativo teria uma mesma essncia presente em diversos povos nativos, em especial, nos ndios das plancies norte-americanos. A expresso tambm encontrada em uso entre os no nativos, geralmente aqueles que fazem parte de movimentos Nova Era (Heelas, 1996). 22

    Alce Negro (em ingls, Black Elk; em lakota, Heka Spa; c. 1863 17 de agosto de 1950) clebre personagem da histria americana e lder espiritual da tribo Oglala Lakota Sioux da Amrica do Norte, que abordamos novamente adiante. 23

    Henry Crow Dog introduziu o peyote na religio Siox. Ele pai de Leonard Crow Dog e filho de Crow Dog, sendo conhecido por introduzir o uso do peyote na sua tribo Oglala Sioux. Seu pai foi um dos ltimos Ghost Dancers (uma cerimnia nativa) no final do sculo 19, e todos os trs Crow Dog homens so descendentes de uma longa linhagem tradicional de Homens Medicina que procuraram encontrar novas maneiras de lidar com a civilizao americana, a fim de preservar as suas tradies (em American Indian Biographies, Library of Congress Cataloging-in-Publication Data, 2005).

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    Aurelio Diaz Tekpankalli, nascido em 1954, em Michocan, Mxico, ndio Purepecha radicado nos EUA, fundador e lder internacional da Native American Church of the Sacred Fire of Itzachilatlan24, que tem representaes em diversos pases do continente americano e da Europa, entre eles os Estados Unidos, Mxico, Colmbia, Peru, Equador, Chile, Argentina, Brasil, Portugal, Espanha e Inglaterra.

    No Brasil, Tekpankalli transmitiu a representao do legado desta tradio, com todos os seus direitos tradicionais25, para o lder espiritual brasileiro Haroldo Evangelista Vargas - Ehekateotl Kara Riapu Uvdju26, fundador e lder da primeira Igreja Nativa Americana no pas.

    Segundo conta o FSI do Brasil, a transmisso dessa tradio ocorreria de forma direta e oral, passando-se de gerao em gerao, de pessoa para pessoa, por meio do que entendido como conhecimentos condensados, onde saberes estariam agrupados e armazenados em ritos e cerimnias, chamados de desenhos cerimoniais27, onde, por meio da participao nesses desenhos cerimoniais (cerimnias), seriam transmitidos saberes e valores nativos, que estariam sintetizados na vivncia da experincia das cerimnias (prticas).

    Assim, o FSI do Brasil relata, atravs de seus constituidores, que receberam dos perpetuadores desse caminho, no caso da liderana internacional (igreja matriz) sete desenhos cerimoniais, que so conduzidos e oficializados pelos lderes brasileiros preparados e delegados para este fim.

    Estes sete desenhos cerimoniais, que o Fogo Sagrado de Itzachilatlan mantm na sua guarda e desenvolve como suas atividades, so os seguintes: Cerimnia de Pipa, Cerimnia de Temazcal, Cerimnia de Meia Lua, Busca de Viso, Dana do Sol, Dana dos Espritos e Consagrao das Relaes.

    24 Igreja Nativa Americana do Fogo Sagrado de Itzachilatlan, com sede em Chicago, Ilinois, EUA.

    25 Na documentao da Igreja, Haroldo reconhecido como Roadman and perpetuator of the tradition

    (Homem do Caminho e perpetuador da tradio), onde tambm o reconhece como Leadership of this form of spiritual life (liderana dessa forma de vida espiritual) e Vision Quest Leader and Sundance Chief (Lder de Busca de Viso e Chefe de Dana do Sol). 26

    Traduo prxima da literal segundo o mesmo: Ehekateotl (em Nahuatl) - deus (Teotl) do vento (Ehekatl), e Karai Riapu Uvdju (em guarani) - Poder/senhor (Karai) Trovo (Riapu) Paraso (Uvdju). 27

    O grupo usa a expresso desenhos cerimoniais para se referir s suas cerimnias que, conforme j mencionado, tem o desgnio de marcar que elas contm um know-how, uma forma, uma organizao, uma estrutura, uma seqncia, cujo formato (desenho) tradicional especfico observado com preciso, compondo um sistema de conhecimento e de aprendizado.

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    O espao fsico que utilizado de forma mais slida pelo Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil se encontra no sul do pas, na regio serrana de Santa Catarina, nas proximidades do municpio de Urubici, numa fazenda chamada Segualquia, onde h uma estrutura de edificao cerimonial, que pode ser entendida como um templo ou altar28, onde, como j dito, so realizados anualmente (todo vero, durante o ms de janeiro e incio de fevereiro) os seus eventos de maior expresso e durao - a Busca de Viso e a Dana do Sol, que so as cerimnias que tambm tem o carter de formar carregadores da tradio, onde ocorre um intenso fluxo de participantes, com o crescimento de adeptos das prticas. A edificao em Segualquia, tambm chamada de Opy, foi construda com ajuda de ndios guaranis da Aldeia de Mbiguau, Santa Catarina, utilizando madeira e taquara, mesmos materiais usados na construo das casas de reza Guarani, o que demonstra a utilizao de outras referncias indgenas pelo grupo.

    Todas as demais cerimnias so realizadas com total mobilidade, precisando apenas de um espao que comporte sua execuo, preferencialmente junto natureza, sendo conduzidas pelos Condutores de Temazcal, pelos Carregadores de Chanupa, Homens Medicina, etc..

    Como os participantes do Fogo Sagrado de Itzachilatlan se denominam como praticantes de uma antiga tradio do Caminho Vermelho, dentro da classificao do xamanismo urbano proposta por Magnani, essa tradio se identificaria como a linha norte-americana, contudo, o autor assinala que essas classificaes so apenas um parmetro, eis que entre essas linhas diferentes h dilogos e apropriaes (Magnani 1999). Entretanto, no caso aqui estudado, diante do discurso do FSI e do fenmeno mais abrangente em que este se situa, mesmo considerando que o modelo ritual aponta para essa linha norte-americana, tal classificao acaba por no favorecer a anlise do tema, eis que o FSI apresenta a reunio de diversos elementos indgenas na sua formao que no se reduzem aos povos da Amrica do Norte, incluindo, entre elas, referncias de elementos andinos, meso-americano e guarani.

    28 Lembramos aqui, conforme expe Mauss, que a Igreja pode ser vista como um lcus privilegiado do sagrado,

    que implica na congregao de homens (fiis), no caso, as reas cerimoniais onde quer que sejam elas. Contudo, para Mauss, no existem igrejas mgicas (Mauss, 2003). No caso em tela, essa distino se faz especialmente conflitante e contraditria, eis que se fazem presentes, concomitantemente, tanto a perspectiva mgica quanto a religiosa, entre outras, sobre as cerimnias desempenhadas pelo grupo.

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    Entretanto, no caso brasileiro em anlise, percebe-se a referncia de linhagens para o fundamento de seu propsito e de suas prticas, onde o discurso de tradio sustentado com base na trajetria de seus atores, que fizeram suas iniciaes nos Estados Unidos e Mxico, onde mantm vnculos com nativos que os orientaram nesses pases, fato que se apresenta com a finalidade de apontar para uma linha de continuidade com tradies nativas. De qualquer forma, o discurso parte sempre do pressuposto de que se trata da ligao com tradies imemoriais e do resgate de uma sabedoria perdida que ainda guardaria um modo de vida em harmonia e contato com a natureza. Nesse sentido, se aponta para a longa trajetria da tradio, como a mais antiga forma de contato com planos no ordinrios de conscincia, remontando o reconhecimento dessa ancestralidade para um tempo imemorial, mtico, marcado pelo contato harmnico com a natureza e suas foras (Magnani 1999). A seguir passamos a tratar da constituio da NAC e seu contexto, para em seguida apresentar uma reflexo sobre tradio e religio como memrias do passado. Ao final, abordamos a criao do Fogo Sagrado de Itzachilatlan como Igreja Nativa Americana nos Estados Unidos.

    1.2. Native American Church: Cerimnias, prticas e religio - inovando a tradio

    Como j informado, a constituio da tradio nativa em forma de Igrejas seria decorrente do contato (dilogo) da cultura nativa com a sociedade contempornea, por necessidade de regulamentarem essas prticas espirituais nativas junto ao Estado, com a criao da NAC. Diante desta perspectiva de que as prticas do grupo so constitudas no pas como uma Igreja Nativa Americana, com o campo reconhecido dentro da esfera da religiosidade, ressaltou o peculiar fato de que a maioria dos seus participantes no tem conhecimento de se tratar de uma Igreja ou religio e que muitos vem as

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    prticas como um saber nativo presente na tradio nativa, um modo de produo e transmisso de conhecimento gravado nas suas cerimnias. Portanto, partindo desse discurso, de que se trata de uma tradio de prticas cerimoniais tpica dos ndios norte-americanos que ultrapassou os limites de suas comunidades, transbordando para a sociedade contempornea, oportuno investigar esta possvel origem e ver como teria acontecido (iniciado) a institucionalizao destas cerimnias indgenas em Igrejas. Nos estudos sobre o tema na bibliografia norte-americana, constata-se que essas prticas, ou prticas muito similares a elas, de fato foram e so realizadas por diversas comunidades nativas nos EUA, em especial pelos ndios das plancies (Walker, 1991, Bucko 1998). Estes estudos demonstram a prtica destas mesmas cerimnias, que se apresentam com nomes equivalentes e configurao/desenho semelhantes29, por uma gama ampla de povos indgenas (siox, lakota, dakota, cheyenne, kiowa, comanche, apache, navajo entre outras). No nosso intento aqui discutir sobre quais os povos que utilizavam estas cerimnias, e nem se elas so exatamente idnticas, mas sim delinear um ponto de partida de que estas prticas decorreriam de cerimnias nativas ou, pelo menos, de inspirao nelas. Nesse sentido, estudos na antropologia norte-americana abordam o exerccio destas mesmas prticas tanto pelos nativos em seus prprios contextos, como as prticas no contexto contemporneo urbano incluindo no ndios30.

    Nesses estudos sobre a tradio nativa nos EUA e sua regulamentao atravs da criao da NAC, onde se verifica a realizao continua destas prticas, constata-se a sua associao ao fenmeno chamado como Peiotismo31 cerimnias com utilizao do sacramento conhecido como Peyote (Lophophora Willianssi), que contm mescalina - substncia psicoativa.

    Conforme mencionado, esses estudos apontam que a criao da NAC est associada organizao de um movimento indgena que buscava garantir o direito de manterem suas cerimnias, tendo em vista a iminente tentativa de proibio

    29 Os nomes das cerimnias principais em ingls e portugus so: Vision Quest Busca de Viso; Sun Dance -

    Dana do Sol; Sweat Lodge Tenda do Suor, etc.. A forma cerimonial destas prticas tambm semelhante, apresentando a mesma proposta e formato: recolhimento em jejum na natureza; dana em jejum na natureza; sauna natural em uma tenda. 30

    Fao referncia as seguintes obras: Demallie e Parks (1987), Sioux Indian Religion: Tradition and Innovation, e Bucko (1998), The Lakota Ritual Of The Sweat Lodge, History and Contemporary Practice. Studies in the anthropology of North American Indians. 31

    Religies/tradies que fazem uso do cacto peyote em Stewart (1987) e Anderson (1996).

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    dessas prticas pelo governo dos Estados Unidos. Nesse sentido, teria surgido a necessidade de se regulamentar as cerimnias da tradio nativa junto ao Estado. Pelo que, um grupo de indgenas se reuniu com essa finalidade, criando a associao religiosa da Native American Church, passando a fazer parte desta associao, diversos representantes de povos e lideranas nativas.

    Conforme expe Rose (2005), a NAC tambm conhecida como peiotismo ou religio do peiote, numa referncia ao consumo deste cacto durante os seus rituais, que tambm apresentam em certos casos circunstncias associadas introduo de elementos cristos nos rituais nativos de alguns povos indgenas das plancies do sul dos Estados Unidos e do norte do Mxico, que deu origem a um culto pan-indgena, onde se estima que o peiotismo seja praticado por mais de 50 tribos, tendo cerca de 250.000 adeptos nos Estados Unidos e no Canad (Stewart, 1987). Rose arrazoa que h tambm indcios de que as controvrsias relacionadas ao uso do peiote provocaram amplas reaes por parte dos grupos indgenas, contribuindo para que o consumo desta planta se tornasse um dos principais traos diacrticos atuais da identidade dos indgenas desta regio.

    Os estudos citados da bibliografia norte-americana sobre o Peiotismo demonstram que a formalizao dessas prticas nativas em forma de igrejas, ocorreu em razo da necessidade de se criar uma segurana jurdica frente ao Estado32, para os povos nativos que realizavam essas cerimnias. At mesmo porque, estes povos j tinham a experincia anterior de terem suas prticas proibidas durante dcadas pelo governo norte-americano. Com o crescimento do chamado Peiotismo, instaurou-se uma disputa poltica sobre a proibio desta prtica nos EUA, sendo que as lideranas das comunidades nativas lanaram mo da estratgia de constituir suas atividades juridicamente como Igrejas, visando garantir suas prticas dentro da garantia constitucional de liberdade religiosa. Pelo que, criaram, em 1918, a NAC, que reuniu esforos das lideranas nativas em uma longa batalha poltico-judicial33 que garantiu a continuidade de suas prticas, resultando dcadas mais tarde no American Indian Religious Freedom Act, e mais

    32 Jones (2005) expe que a formao da NAC est vinculada a uma tentativa de preservar e proteger as prticas

    nativas contra a perseguio legal. 33

    Obras que abordam essa disputa e seu panorama: One Nation Under God The Triumph of the Native American Church (compilado por Huston Smith & Reuben Snake a partir de dados da Biblioteca do Congresso dos EUA, 1996) e Native American Church: Peyote Religion: A History (Stewart, 1987).

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    tarde seus adendos, formando a legislao que garante o uso do Peyote para fins religiosos34.

    Na obra One Nation Under God The Triumph of the Native American Church (Uma nao sob Deus - O Triunfo da Igreja Nativa Americana), Huston Smith assevera que a Igreja Nativa Americana o baluarte espiritual (spiritual bulwark) de um quarto de milho dos habitantes originais deste continente. Suas razes se estendem at a zona nebulosa (twilight zone) da pr-histria, antes do surgimento do cristianismo. Mas porque o seu sacramento o Peyote... membros da Igreja Nativa Americana no podiam praticar a sua religio sem temer uma batida na porta. (Huston Smith, 1996:9, traduo minha).

    Essa expresso de classificar a NAC como o baluarte espiritual dos nativos, reflete bem a realidade d poca, onde surgiu a necessidade imperiosa de regulamentao para proteger a continuidade da tradio nativa e das suas cerimnias. Baluarte35 um termo em francs que significa fortaleza. Trata-se de um tipo de construo sustentada por muralhas, geralmente muito alta, e segura. Tambm significa algo que serve de defesa, que sustenta alguma coisa, sendo tambm uma obra de arquitetura militar, feita para defender pessoas, possuindo uma estrutura mais forte e pesada.

    Indicada essas circunstncias em que se deu a constituio da NAC, podemos perceber que esse ponto tem especial relevo para o discurso de continuidade da tradio, pois a bibliografia analisada assinala uma inovao (adaptao) da tradio com a constituio de Igrejas, assim se enquadrando sob a garantia constitucional de liberdade religiosa, para assegurar o direito dos indgenas de continuarem a realizar suas cerimnias, o que implicou no reconhecimento da tradio nativa como religio.

    34 O American Indian Religious Freedom Act ou AIRFA uma lei federal dos Estados Unidos aprovada em

    1978. Foi criado para proteger e preservar os direitos religiosos e prticas culturais dos grupos indgenas norte-americanos. Estes direitos incluem o acesso a locais sagrados, a liberdade de devoo atravs de direitos tradicionais e o uso e posse de objetos e plantas considerados sagrados, tais como penas ou ossos de guia (espcie protegida nos Estados Unidos) ou o peyote, que consiste uma parte integrante das cerimnias praticadas por membros de grupos como a NAC. O AIRFA exigiu que todas as agncias governamentais parassem de interferir no livre exerccio das prticas nativas (Canby, 1988). 35

    Em http://www.osignificado.com.br/baluarte/ , acesso em 29/02/12. Significado de Baluarte: s.m. Fortaleza. Bastio. Construo segura e alta, sustentada por muralhas. Fig. O que serve de defesa; sustentculo (em http://www.dicio.com.br/baluarte/ 29/02/12).

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    Essa situao, documentada na bibliografia pesquisada, est a demonstrar um evento onde a tradio nativa afetada pela conjuntura das circunstancias histricas. Nesse ponto, podemos perceber como as circunstncias histricas so transformadoras do andamento da tradio, de maneira semelhante ideia de conjuntura da estrutura retratada por Sahlins (2008). Esse evento do confronto de duas culturas abre uma oportunidade privilegiada para observar com maior clareza os processos de mudana e transformao em estudo, lembrando que, segundo Sahlins (2003), o que os antroplogos chamam de estrutura as relaes simblicas de ordem cultural objeto histrico. Para Sahlins, se, por um lado, a cultura historicamente reproduzida na ao, por outro lado ela alterada historicamente na ao, e esse movimento se desdobra nas aes criativas dos sujeitos histricos, ou seja, as pessoas envolvidas, pois, em maior ou menor grau, os significados so reavaliados na prtica. Assim sustenta que um acontecimento s se torna evento quando um significado lhe atribudo, que tem como finalidade assegurar que determinadas interpretaes sejam institucionalizadas, as quais esto ligadas, mais especificamente, a manuteno das tradies, que se sedimentam ao longo da histria (Sahlins, 2003). No episdio em anlise, vemos que a inovao da tradio nativa na forma de Igrejas se deu por necessidade de adaptao frente ao contato cultural englobante. Nesse evento especfico, a constituio sob a forma jurdica de Igreja visava continuidade e sobrevivncia da tradio - das suas cerimnias, que para a sua proteo teve como sada se adequar a regulamentao do Estado. Nesse sentido, por imposio das circunstncias, uma tradio direta e oral passa a ter a necessidade de registro escrito, para ter a sua legitimidade reconhecida pelo Estado, garantindo a sua continuidade. Quanto a esse ponto, nos dizeres de Viveiros de Castro (2008: 226-259), ressaltamos que o Estado absoluto, no havendo religio (legtima) fora dele. Pelo que, para anlise desse evento oportuno trazer as consideraes de Viveiros de Castro sobre o Estado que diz que:

    o Estado pode ser imaginado como a encarnao do absoluto, no apenas no sentido hegeliano, mas como a posio de um inegocivel, como algo que, por definio, nos coloca diante de um Fato Consumado.

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    ... o fato de que no podemos escolher no ter Estado, pois o Estado algo que est essencialmente antes e fora de ns. Pertencemos a um Estado, querendo ou no, a despeito de todo pacto, todo contrato, todo livre arbtrio, todo ideal democrtico. Porque o ponto de vista do Estado no um ponto de vista qualquer. Ele o ponto de vista, jamais um ponto de vista. O Estado , justamente, um absoluto. Os cidados podem ter pontos de vista, mas eles no podem ter um ponto de vista sobre o ponto de vista. Eles podem ter ponto de vista a partir do Estado, mas no podem ter ponto de vista sobre este ponto de vista, o Estado. Este ponto de vista no negocivel, a no ser em momentos rituais especficos, como na Constituinte. Mas mesmo a, h meramente uma iluso convencional de que tudo est em discusso, pois algumas coisas no esto em discusso.

    Essa colocao de peso nos leva a reconhecer que o Estado pode ser modelador das tradies dentro de seu alcance, sendo ele que, em ltima instncia, define e determina a sua natureza (carter), no caso, a tradio nativa como religio indgena. Assim, a legitimao das cerimnias da tradio no dilogo com o Estado foi a forma mais eficaz de garantir a proteo e continuidade da tradio. Digo isso porque, no caso em exame, podemos perceber que o peso da necessidade de dilogo da cultura nativa com o Estado se sobrepe manuteno das formas tradicionais da tradio (direta e oral, sem institucionalizao e sem definio como religio), como uma necessria adaptao para a sua permanncia. No episdio em questo, a sua institucionalizao e reconhecimento pelo Estado como religio.

    Esta importncia da relao do Estado com a religio j foi abordado por Giumbelli (2002) onde, em outro contexto, demonstra que religio e modernidade entretecem uma rede de relaes vivas, mesmo que mediadas pelo conflito. Neste sentido, estas so vistas pelo autor como resultado das condies de sua produo e dos efeitos que geram entre os agentes e na sociedade. No respectivo contexto analisado, Giumbelli situa algumas polmicas que envolvem os poderes pblicos no debate sobre a liberdade religiosa, abordando os prprios grupos em foco e setores diversos da sociedade. Como resultado desta anlise, o autor aponta para a necessidade de se compreender os dispositivos de regulao do religioso que se produziram nas sociedades modernas, e tambm para a oportunidade de se analisar a relao visceral entre modernidade e religio, onde a modernidade abrange o processo de definio e balizamento da religio.

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    Desta forma, aparentemente, a legitimao das prticas junto ao Estado, dentro de suas definies, disposies e garantias to importante para a continuidade das cerimnias, do que se buscar o reconhecimento pleno de seu sentido cultural, podendo-se perceber o Estado como modelador dos contornos da necessria adaptao para a subsistncia da tradio. Assim, denota-se que o Estado tem influncia modeladora no andamento das tradies dentro de sua jurisdio. Pelo que, cabe a reflexo de que a criao dessas Igrejas fruto da prpria influncia da sociedade englobante na trajetria da tradio, eis que a prpria imposio de um Estado de Direito que regulamenta todas as atividades dentro do seu domnio se demonstra ser fator importante na constituio dessas Igrejas - da tradio nativa como religio instituda. De qualquer forma, pode-se perceber que as aes criativas dos sujeitos histricos, ou seja, as pessoas envolvidas tm, papel fundamental para a continuidade da tradio, refletindo de igual forma nos caminhos e contornos adotados para prosseguimento das prticas. A institucionalizao de uma tradio direta e oral em Igrejas, na forma de religio, com registro escrito, sob o manto das regras da sociedade contempornea, pode ser vista como uma dessas aes criativas decorrente deste contato entre culturas. Podemos depreender aqui que a tradio alterada e (re)construda historicamente na ao. De mesmo modo, assim como a institucionalizao da tradio se demonstra como uma inovao para possibilitar a continuidade das suas prticas, a abertura das cerimnias para no ndios possibilita a participao de mais pessoas. Corresponde tambm a uma forma criativa e oportuna encontrada pelos sujeitos histricos para possibilitar a manuteno e expanso da tradio de suas cerimnias na sociedade moderna, proporcionando a sua difuso (transmisso) e garantindo a sua afirmao e segurana. Desta forma, podemos observar como a tradio nativa passou a ser considerada uma religio, nos termos reconhecidos pelo Estado.

    Nesse ponto, nos interessante trazer a conotao jurdica de tradio, segundo o Cdigo Civil ptrio (Estado), que aponta para o sentido direto de transferncia, dizendo que tradio a entrega da coisa de uma pessoa para outra. A palavra tradio36 deriva do latim traditio que significa transmisso, algo

    36 Em http://www.dicionarioinformal.com.br/tradi%C3%A7%C3%A3o/ , 03/03/2012.

    Outros significados de tradio:

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    que transmitido (ou transferido) do passado para o presente. Assim, pode-se retratar a tradio tambm como um conjunto de crenas de um povo que so seguidas e partilhadas sucessivamente durante vrias geraes.

    Aqui lembramos que Hervieu-Lger (2000) prope a religio como uma cadeia de memria, onde sustenta que as sociedades modernas definem a religio como uma cadeia de crena uma tradio, uma cadeia de memria, um passado imaginado. Nesse sentido, a autora sustenta que, na sociedade moderna, muitos tm dificuldade para se relacionar com a cadeia da tradio, e quando se bem sucedido nessa relao, ento a pessoa tem uma religio