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EM MARES DE MEMÓRIA: MOBILIZAÇÃO, DEMANDAS E RADICALIZAÇÃO DO
MOVIMENTO DOS MARINHEIROS NO CONTEXTO DO GOLPE CIVIL-MILITAR DE
1964
ROBERT WAGNER PORTO DA SILVA CASTRO
Aluno do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pelotas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho parte de um referencial teórico fundamentado na história política,
que sob a perspectiva de René Rémond, não se atem mais ao “estudo do Estado como se ele
encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser” (RÉMOND, 2003, p.20),
mas passa a analisar as origens das decisões políticas, ou em suas palavras, “a raiz das
decisões, as estratégias dos grupos de pressão” (RÉMOND, 2003, p.21). Tendo como
objetivo contribuir para um melhor entendimento da relação entre antigas demandas sociais
básicas inerentes aos subalternos da Marinha do Brasil e a mobilização desses militares em
um cenário político tensionado entre os anos de 1962 e 1964, tendo como “pano de fundo”
a questão social latente no seio da força naval brasileira. Esta releitura realiza-se a partir da
análise de entrevistas e obras memorialísticas de integrantes do movimento dos
marinheiros, além de matérias publicadas na mídia impressa do período em questão e da
crítica a trabalhos historiográficos de autores que, em alguma medida, abordam o
movimento dos marinheiros como acontecimento preponderante para a instauração de uma
ditadura civil-militar no país em abril de 1964. Através da memória reavivada foram
analisadas as condições de trabalho e as relações sociais internas aos quadros da Marinha,
bem como as demandas dos subalternos oriundas do déficit destas relações com a
oficialidade e a maneira como estas demandas contribuíram para conferir coesão a essa
categoria específica de militares.
Num primeiro instante, procuro problematizar os referenciais teórico-conceituais de
“memória” e “identidade” no contexto da atividade marinheira e das fronteiras deste último
referencial, no que concerne aos subalternos da Marinha enquanto membros de um
2
segmento específico dentro de uma classe – os militares. Em seguida, busco utilizar a
memória reavivada enquanto instrumento para a reconstrução da trajetória deste segmento
de militares durante o recorte temporal em questão e estabelecer um diálogo desse
referencial com a história política. Por fim, procuro demonstrar a relação entre a resposta da
alta administração naval às reivindicações dos marinheiros e a radicalização de seu
movimento em apoio ao programa reformista do então presidente João Goulart.
1. MEMÓRIA & IDENTIDADE EM EVIDÊNCIA.
Ao propagar a ideia dos “vencedores” em relação aos acontecimentos passados, a
“memória oficial” relega ao esquecimento histórico, segmentos como o dos marinheiros,
suas demandas e atuação na cena política – seja internamente à Marinha, seja na cena
política nacional como em 1964. Corroborando a ideia de Michael Pollak, ao analisarmos
as “memórias subterrâneas das minorias, dos marginalizados e dos excluídos” (POLLAK,
1989, p.4), torna-se possível compreender de modo mais aprofundado como determinados
acontecimentos políticos ocorreram. E que só se efetivaram a partir de pressões sociais, que
se constituem então na “raiz das decisões” (RÉMOND, 2003, p.21). Nesta medida, de
acordo com Thompson1 “ao propor que se adotasse a perspectiva dos vencidos, a história
vista de baixo, traz-se ao centro da cena a experiência de grupos e camadas sociais antes
ignorados” (LUCA, 2011, p. 113).
A memória, como instrumento de reconstrução da trajetória de determinados grupos
não abarcados pela “memória oficial”, está intimamente relacionada com a ideia de cultura
política – inserida no contexto da renovação da história política com René Rémond. Onde
esta consiste em “um fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva a uma explicação
unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos”
(BERSTEIN, 1998, p. 350).
1 In, LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas. São Paulo, Contexto, 2011, p. 113.
3
O trabalho de releitura da trajetória do movimento dos marinheiros, fundamentado em
entrevistas e obras memorialísticas de integrantes do movimento dos marinheiros, a que se
propõe esta análise, não pode ser realizado em detrimento da análise crítica de outros tipos
de fontes, neste caso, obras historiográficas que de alguma maneira abordam o referido
tema e matérias publicadas na mídia impressa do período em questão. Pois, como os demais
tipos de fontes com as quais o historiador trabalha, por força de seu ofício, a memória é
dotada de determinado grau de subjetividade, mas com a característica de ser “volátil” de
acordo com as demandas do presente, ou nas palavras de Pierre Laborie “ela se constrói sob
influência dos códigos e das preocupações do presente, por vezes mesmo em função dos
fins do presente” (LABORIE, 2009, p. 80). Esta característica da memória não diminui sua
relevância enquanto fonte a ser trabalhada pelos historiadores. Mas no contexto de um
passado “rejeitado” por grande parte da sociedade brasileira, como o golpe civil-militar em
1964, devemos tomar o cuidado de não sobrepor a memória à história, entre as quais, no
entender de Denise Rollemberg, existe um “abismo aprofundado com o tempo [...] num
confronto em que os personagens e os testemunhos assumiram a missão de guardiães da
memória, arautos da história” (ROLLEMBERG, 2009, p. 378). Cabe ao historiador analisar
a memória enquanto fonte, ciente de que, sobretudo nas “batalhas de memória”, está,
“imersa no presente, preocupada com o futuro, quando suscitada, é sempre seletiva.
Provocada, revela, mas também silencia.” (REIS, 2004, p. 29).
A memória não se reduz ao simples ato de recordar. Para Maurice Halbwachs (2003,
p. 39), a memória seria um processo coletivo fruto da interação individual com os outros (o
fenômeno social), possibilitando, assim, que as pessoas se lembrem de determinados fatos.
Deste modo, cria-se a concepção de uma memória coletiva que abrangeria toda uma
influência da cultura social na sua formação. O posicionamento de Halbwachs acerca da
“memória coletiva” vai de encontro à afirmação de Joel Candau, que considera:
[...] impossível admitir que essa expressão designe uma faculdade, pois, a única
faculdade de memória realmente atestada é a memória individual [...] a expressão
4
“memória coletiva” é uma representação, uma metamemória, quer dizer, um
enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória
supostamente comum a todos os membros desse grupo. (CANDAU, 2014, p.24)
Faz sentido analisar o fato de que os indivíduos dialogam entre si, criando-se assim
uma linha tênue entre diferença e identidade, formadores de memórias que são reflexos do
fenômeno social. Na medida em que “podemos dizer que a identidade é uma construção,
um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo [...] que tem
estreitas conexões com relações de poder” (SILVA, 2014, p. 97), onde podemos
compreender a construção de uma identidade própria dos subalternos da Marinha. Não
somente a partir de suas atividades profissionais, mas também da relação paradoxal
estabelecida com a oficialidade. Segundo Kathryn Woodward (2014, p. 13), a identidade de
um determinado grupo é relacional, ou seja, constitui-se a partir da relação e da diferença
relativa a outras identidades e também se vincula a aspectos e condições sociais e materiais.
Mesmo que inerente a um determinado segmento interno a uma classe, como no caso dos
marinheiros analisados no presente trabalho. Mesmo não sendo uma faculdade mental, a
memória coletiva – enquanto fenômeno de interação social dentro de um grupo ou
segmento social onde lembranças individuais convergem em diversos pontos constituindo
uma base comum – é um elemento fundamental para a construção ou (re) afirmação de uma
identidade e o estabelecimento de suas fronteiras.
2. A ASSOCIAÇÃO E SUA GÊNESE.
A rebelião dos militares da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil
(AMFNB), ocorrida de fato entre os dias 25 e 27 de março de 1964, foi o clímax de um
movimento iniciado com a fundação da supramencionada associação em março de 1962
com sede na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, com a finalidade de assistir aos
subalternos da força naval em suas demandas sociais, especialmente aqueles oriundos de
outras cidades do país, a partir de 1963, com a eleição de sua segunda diretoria, a
5
associação fuzinauta2 passou a contestar a situação social do grupo que representava,
cobrando melhorias salariais e o acesso a benefícios sociais, além “direitos políticos e
civis” 3. A característica peculiar deste movimento se apresenta no fato de que fora
constituído essencialmente por militares de baixa graduação, isto é, cabos, marinheiros e
soldados. Elementos oriundos das camadas de base da sociedade brasileira. Este aspecto,
associado à efervescência política do período, propiciou um maior destaque para as ações
reivindicatórias da associação junto à alta administração naval.
Os oficiais da Marinha, oriundos em sua maioria das camadas mais abastadas da
sociedade brasileira, preservavam os valores e costumes de uma sociedade senhorial,
fundamentada em relações de preconceito e servilismo. Já os subalternos, recrutados entre
as camadas menos favorecidas e que até o início do séc. XX ainda eram punidos com
castigos corporais, eram submetidos a uma relação de caráter servil e paternalista com a
oficialidade naval e marginalizados no meio social. Situação essa que denotava um conflito
iminente, no entendimento do ex-marinheiro Antônio Duarte, “um conflito originado na
estrutura envelhecida da Marinha, como se a instituição tivesse o direito de fazer do
soldado uma propriedade semelhante a que se tinha na época da escravidão” (DUARTE,
2005, p.93).
O relato do “entrevistado um4” contribui para uma melhor compreensão da condição
marginal em que se encontravam os marinheiros no contexto social do período:
2 Termo utilizado na Marinha para fazer referência aos fuzileiros navais (“fuzi”) e marinheiros (“nautas”)
juntos. 3 Como consta no discurso do marinheiro de 1ª classe José Anselmo dos Santos, lido no dia 25/03/1964 no
Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara. Cf. Biblioteca Nacional – O Globo, 28 mar. 1964, p.6. 4 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de novembro de 2013, na qual o doravante denominado “entrevistado
um” solicitou o anonimato. Trata-se de um ex-marinheiro que ingressou na força naval em dezembro de 1959,
na Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina. E que em dezembro de 1960 foi enviado para o Rio
de Janeiro, a fim de servir no navio “Cruzador Barroso”. Esteve presente na assembleia da AMFNB realizada
em março de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, sendo expulso da Marinha neste mesmo
ano e condenado a cinco anos e três meses de prisão sob a alegação de crime de subversão, dos quais cumpriu
dois anos na cadeia de Pelotas, segundo ele.
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[...] Por que quando nós chegamos no Rio, marinheiro era marginalizado. Por
quê? O cara com o que ganhava como é que ia procurar mulher? Não tinha
condições! O que que o cara fazia? O cara vivia ali, na Central do Brasil [...] ali
tava sempre cheio de vagabunda. E o marinheiro ia ir aonde? Se metia sempre no
meio das vagabunda ali entendeu!? O nosso meio social; de quem não era de lá,
de quem não tinha família lá; era tá no meio das vagabunda ali. E até por isso, as
famílias não aceitava marinheiro. Deus o livre que uma moça fosse namorar um
marinheiro! De jeito nenhum!
A doutrina de reafirmação de uma relação senhorial de dominação, se sintetiza na
seguinte frase dirigida aos subalternos por seus comandantes: “Você não é ninguém, a
Marinha o retirou da barriga da miséria para transformá-lo em um ser civilizado”
(DUARTE, 2005, p.93). Uma doutrina que visava à manutenção do status quo então
instaurado na Marinha do Brasil, mas que mostrava seu viés elitista quando ensinada nos
cursos de formação de oficiais, e seu caráter de submissão e desconstrução da dignidade do
marinheiro durante o curso de formação destes. Exaltando as suas origens sociais, as
antigas práticas de recrutamento, ou seja, seus “antepassados”, os benefícios
proporcionados pela Marinha (basicamente comida, teto e salário) e associava a sua
imagem a do elemento relacionado à malandragem, vícios, brigas, farras e ao pouco
desenvolvimento intelectual. Deste modo, se construía uma representação em relação aos
marinheiros, que ultrapassava os limites da força naval, como exposto pelo historiador
Flávio Rodrigues:
Sua imagem, aos olhos dos paisanos [...] correspondia em geral ao
estereótipo do indivíduo desgarrado e de moralidade duvidosa, frequentador de
prostíbulos e violento, toxicômano e alcoólatra: [...] por vezes, as mulheres
mudassem de lugar nos ônibus, quando um marinheiro sentava-se ao seu lado [...]
para não serem “confundidas”. (RODRIGUES, 2004, p.60)
Em consonância com o contexto político-social da época, os marinheiros
vislumbraram na possibilidade de criar uma associação – a exemplo dos suboficiais e
sargentos e dos taifeiros da Marinha – uma forma de tentar unir forças em um auxílio
mútuo, e posteriormente, buscar mudanças em suas realidades dentro da força. Porém, a
7
AMFNB inseriu-se no cenário político nacional no ano de 1963 como uma associação que
buscava melhorias para aqueles a quem representava. Na negação em reconhecer a
pertinência das demandas dos marinheiros e em estabelecer um canal de diálogo com estes,
o almirantado contribuiu sobremaneira para a radicalização do movimento dos subalternos.
Nas palavras de Avelino Capitani, ex-marinheiro e integrante da AMFNB: “A persistente
obstinação do Conselho do Almirantado em não reconhecer e condenar a Associação levou-
nos a trilhar caminhos cada vez mais políticos e mais combativos na solução das
reivindicações.” (CAPITANI, 1997, p. 25).
3. A MOBILIZAÇÃO E A GUINADA À “BOMBORDO5”.
Com a ascensão do grupo mais combativo à direção da AMFNB em abril de 1963, o
distanciamento entre a alta administração naval e o movimento dos marinheiros tendeu a
aumentar. Pois, aqueles exigiam que a associação alterasse seu estatuto, dele escoimando
tudo que não dizia respeito a problemas de natureza cívica, cultural, beneficente e
desportiva para que assim pudesse ser reconhecida pela Marinha. A diretoria da AMFNB
por sua vez, rejeitava este discurso e cobrava através da arena política, em assembleias e
manifestações públicas em atos políticos, a reformulação do Regulamento Disciplinar da
Marinha (RDM), melhores salários e condições de serviço, o reconhecimento de sua
associação pela força naval, a estabilidade na carreira, direito ao voto e ao casamento, além
de poder usar trajes civis nos horários de folga. Em seu relato a cerca da assembleia
ocorrida em março de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, o
“entrevistado um6” denota bem esse caráter reivindicatório da associação e algumas
demandas dos marinheiros:
[...] a associação ia reivindicar aumento e que ia reivindicar também pro
marinheiro poder casar e mais uma série de reivindicação que eles iam fazer. Bah
aquilo tudo ia ser uma boa pra nós, e aí agente foi se entusiasmando e ficando.
5 “Bombordo” é a lateral esquerda de uma embarcação, quando observada da “popa” (parte traseira) para a
“proa” (parte dianteira). 6 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de novembro de 2013.
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Alguns historiadores que trabalham com o recorte temporal em questão, abordam o
movimento dos marinheiros sob a ótica da quebra de hierarquia e da indisciplina em
detrimento das suas demandas sociais. Caracterizando a mobilização desses militares como
um atentado contra os “fundamentos da disciplina e da hierarquia como condições
indispensáveis para o exercício de comando de quaisquer forças militares regulares” (REIS,
2004, p.38). Este tipo de abordagem historiográfica do movimento dos marinheiros entre os
anos de 1962 e 1964 deixa de considerar o social enquanto provocador de mudanças
políticas, de inseri-lo no contexto do golpe civil-militar enquanto uma das “estruturas
básicas sobre as quais a política se assentava” (JANOTTI, 2011, p.11). Na medida em que
o movimento dos marinheiros, em especial a assembleia da associação em 25 de março de
1964, é interpretado por muitos historiadores como fator precipitador dos acontecimentos
do dia 31 de março do mesmo ano.
O historiador Thomas Skidmore apresenta uma abordagem historiográfica acerca do
movimento dos marinheiros, que além de também ressaltar a questão da indisciplina em
detrimento das demandas sociais inerentes ao segmento, como na seguinte colocação do
autor: “O que finalmente galvanizou a ação dos moderados foi o flagrante desafio de Jango
ao princípio da disciplina militar durante o fim da Semana Santa de 27 a 29 de março”
(SKIDMORE, 2003, p. 358). Skidmore caracteriza a AMFNB, como “um sindicato que
exigiria melhoria de condições de trabalho a seus comandantes […] que havia ganho o
apoio dos marinheiros liderando suas revindicações de melhor soldo e o direito de se
casarem e de usar trajes civis quando fora do serviço” (SKIDMORE, 2003, p.358). Ele
ressalta a espontaneidade do movimento dos subalternos da Marinha, mas desconsidera em
seus membros, a capacidade de conscientização política no que tange às suas demandas
específicas e à realidade política do período em questão, ao afirmar que: “sua liderança
9
estava ligada diretamente aos esquerdistas radicais que se haviam entendido com o
presidente nos moldes da nova estratégia de 13 de março7” (SKIDMORE, 2003, p.358).·.
A alta oficialidade, adepta em sua maioria de um discurso anticomunista, não
reconhecia a justeza das reivindicações de seus subalternos. Os “rótulos” de comunistas,
agitadores, indisciplinados e subversivos, atribuídos ao movimento e a seus integrantes,
também contribuíram para uma acentuada radicalização dos mesmos. Distanciando-se do
almirantado e travando uma “batalha” pública no cenário político nacional ao apoiar as
propostas reformistas do presidente João Goulart e tratar abertamente de questões políticas
de amplitude nacional.
No fluxo do contexto político-social da década de 1960 e diante da negação da alta
administração naval em reconhecer as demandas de seus subalternos. Os marinheiros
opuseram-se à grande maioria da oficialidade naval, inclusive ao Conselho do Almirantado
e ao Clube Naval, em busca do atendimento as suas demandas. A mobilização política e a
manifestação pública dos marinheiros entre os anos de 1962 e 1964 evidenciava a
existência de um conflito social acentuado na Marinha e também desfazia a ideia de
unidade da classe militar junto à opinião pública. A divergência em termos de
posicionamento político no interior da cúpula militar, por mais radical que fosse – como no
episódio da sucessão de Jânio Quadros na Presidência da República em 1961 – não era
vista como subversão ou quebra da hierarquia e da disciplina. Mas quando esta divergência
partia dos subalternos, mesmo que restrita a questões sociais tornava-se ameaçadora ao
status quo de dominação na força naval.
A crescente projeção do movimento dos marinheiros, acompanhada do acirramento da
crise com o alto comando da Marinha, culminou em uma série de prisões administrativas
iniciada em setembro de 1963, principalmente dos dirigentes da associação, além de
transferências de militares envolvidos com o movimento para quartéis mais isolados e até
mesmo para outros estados, tudo com o objetivo de desarticular as ações da AMFNB. Esta
7 Em referência ao comício realizado por João Goulart em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, no
Estado da Guanabara.
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repressão é melhor ilustrada no relato de Paulo Fernando da Costa8, ex-marinheiro e sócio
da AMFNB em 1964:
[...] a associação foi se agigantando demais, entendeu? E aí a estrutura militar
começou a pressionar, entendeu? Queria que ela acabasse! Prendiam, prendiam
os diretores e depois soltavam. O pessoal a bordo era perseguido, quem era da
associação, dirigentes ou quem recolhia as mensalidades, eram repreendidos ou
presos. Porque justamente você reivindicava coisas pro bem estar. E eles era
contra, achavam que a administração naval é que teria que fazer isso aí. Não os
marinheiros. [...]
De todas as maneiras empregadas para pressionar os marinheiros, eram as prisões
administrativas as que mais os ameaçavam, não pelo aspecto do cárcere propriamente dito,
mas pelas consequências que este ato administrativo poderia provocar na carreira daquele
que fora punido; como por exemplo, a própria expulsão da força. Este instrumento passou a
ser amplamente utilizado para coagir os membros da associação e aqueles que tivessem
algum tipo de envolvimento com os mesmos.
Aproveitando do seu crescente destaque no cenário político nacional e sua
influência em meio aos grupos sociais de base, muito ligados ao apoio ao próprio
presidente Goulart. A AMFNB passou a buscar interlocutores diretamente no governo
federal, como o ministro do trabalho Amauri Silva e o chefe da Casa Civil da Presidência
da República o Sr. Darcy Ribeiro9. Estavam tomadas as posições, e a AMFNB passara a
crer que as mudanças que desejava na Marinha não poderiam ser realizadas através do
diálogo com as autoridades navais, devido ao reacionarismo e a soberba destas. Mas
poderiam ser implementadas pelo próprio presidente da República se o seu projeto
reformista para o país fosse adiante. Assim, os marinheiros optaram por permanecer fiéis ao
governo e à Constituição.
No dia 24 de março de 1964 o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta
determinou a prisão de 12 diretores da AMFNB pela sua participação em debates sobre as
8 Entrevista realizada pelo autor, em 02 de novembro de 2013. 9 Algumas reuniões eram realizadas em seu apartamento no Rio de Janeiro. Cf. RODRIGUES, Flávio Luís.
Vozes do mar, o movimento dos marinheiros e o golpe de 1964. São Paulo: Cortez, 2004, p. 96.
11
reformas de base durante reunião no Sindicato dos Bancários e no dia seguinte determinou
a prisão de mais 40 marinheiros. Este fato não impediu a realização da assembleia do dia 25
de março em comemoração aos dois anos da AMFNB, porém mudou seu caráter, o que
seria um ato festivo, transformou-se em uma assembleia permanente diante das notícias das
ordens de prisão, da divulgação de que “os militares que vão cumprir a terceira pena
disciplinar serão licenciados10
após a conclusão do castigo, conforme preceitua o
Regulamento Disciplinar” 11
. Diante dos acontecimentos e da possibilidade de punições em
massa caso os marinheiros retornassem aos seus navios ou quartéis, estes iniciaram uma
vigília no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro e declararam-se em assembleia
permanente até que suas reivindicações fossem aceitas, começava uma “queda de braço”
entre o ministério da Marinha e a associação.
O desfecho deste episódio no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com a
libertação dos marinheiros, foi amplamente explorada pela mídia carioca, no sentido de
relacionar a figura do presidente à indisciplina e a desordem promovidas por amotinados12
da Marinha, como divulgou o jornal “O Globo”:
Cumprida a promessa do Presidente da República obtida com a mediação do
CGT e da qual estava ciente o novo ministro da Marinha, almirante reformado,
Paulo Mário da Cunha Rodrigues. Os amotinados da Associação dos Marinheiros
e Fuzileiros Navais do Brasil que haviam sido removidos do Sindicato dos
Metalúrgicos, onde começou o movimento, para o Batalhão de Guardas do
Exército, deste foram libertados e começaram a sair às 17h40min. E deram início
logo a uma passeata que se deteve na estátua de Marcílio Dias na Praça Onze,
dirigindo-se depois até a Candelária de onde após ovacionarem os almirantes
Paulo Mário, novo titular da Marinha, Araújo Suzano, novo chefe do Estado
Maior da Armada e Cândido Aragão, que assumiu o comando geral dos fuzileiros
navais, dirigiram-se para a sede de sua Associação.13
A questão da “quebra da hierarquia e da disciplina14
” fora amplamente explorada
pelos golpistas em detrimento das reivindicações de um movimento de base e cunho
eminentemente social, interno à Marinha do Brasil. A radicalização dos marinheiros -
10 Afastados temporariamente. 11 Biblioteca Nacional - Diário de Notícias, 25 mar. 1964, p.3. 12 Grifo do autor. 13 Biblioteca Nacional – O Globo, 28 mar. 1964, capa. 14 Grifo do autor.
12
evidenciada na assembleia realizada no Sindicato dos Metalúrgicos - diante das negativas
da alta administração naval em estabelecer diálogo acerca de suas demandas, foi
preponderante para a precipitação de um golpe civil militar que já se desenhava.
CONCLUSÃO
Observar a participação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil
dentro do contexto histórico dos anos de 1962-1964, bem como de seus membros enquanto
militares subalternos da Marinha, somente como um movimento de indisciplina e
subversão da hierarquia. No qual marinheiros foram conduzidos “pelas esquerdas” a
radicalizar seu movimento e contrapor-se às determinações do almirantado. É desmerecer e
depreciar tanto intelectualmente quanto politicamente aqueles homens que se mobilizaram
em torno de uma associação atuando como membros, colaboradores ou apenas
simpatizantes desta. Pois, essa síntese do movimento dos marinheiros em 1964, muito
utilizada na época pelos oficiais golpistas, deixa de considerar naqueles marinheiros de
origem pobre, membros das classes menos favorecidas da sociedade brasileira, a
capacidade de entender a realidade a qual estavam submetidos, o contexto político do país à
época e de superar as inúmeras dificuldades que lhes eram impostas tanto pelos seus
superiores quanto pela própria sociedade que lhes tinha como marginais. Buscando através
da educação, da politização e da mobilização de seus pares, as mudanças que acreditavam
necessárias para que pudessem ter uma vida mais digna na Marinha do Brasil.
O movimento dos marinheiros em 1964 fora uma resposta dos próprios subalternos às
dificuldades que enfrentavam na força naval, diante da indiferença e até mesmo da
contrariedade de seus superiores em buscar soluções para suas antigas demandas, e assim,
mudar a realidade destes militares diminuindo o histórico “abismo social” existente na
Armada, que refletia de forma clara e sem eufemismos a situação de desigualdade que
vigorava na sociedade brasileira em meados do século passado.
A questão social foi, desde sempre, o principal problema, de cunho humano, nas
forças armadas brasileiras, em especial na Marinha, pelas razões já expostas durante este
13
trabalho. Assim, a AMFNB foi à maneira encontrada pelos escalões inferiores da Marinha,
para buscar melhorias junto à alta administração naval.
O processo de radicalização do movimento dos marinheiros acompanhou o grau de
inflexão do almirantado em dialogar com seus representantes a fim de reconhecer suas
demandas de ordem social. Acompanhou também, o processo de acentuada politização de
seus membros, o contexto político interno e externo, e, sobretudo, as perseguições aos
integrantes da associação. Desse modo, é possível observar que os desdobramentos da
mobilização dos marinheiros a partir de 1962, não foram conduzidos pela vontade dos
governantes ou dos comandantes navais, nem pelas ações e posicionamentos das lideranças
da AMFNB, mas constituem parte integrante do processo de construção da identidade deste
segmento social específico.
Enfim, as demandas sociais de um grupo submetido a séculos de preconceito,
violência e cerceamento de direitos, em uma estrutura monarquista e reacionária. Levaram-
nos a compreender as suas origens e o cenário do qual eram parte. Cientes de sua força
buscaram junto aos altos escalões do governo brasileiro as mudanças necessárias para que
pudessem viver com dignidade. Por esta razão foram taxados de subversivos e
indisciplinados, foram perseguidos e presos, alguns mortos, e seu movimento, bem como
suas demandas, foram submetidas a um relativo ostracismo histórico e renegada a sua
“classe” a capacidade de reflexão política, por se tratar de um “bando de marujos”, no
entender de boa parte da sociedade, incapazes de tal reflexão.
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FONTES
Fontes Orais
“Entrevistado um” (ex-marinheiro) - Entrevista realizada pelo autor, em 21 de
novembro de 2013.
Paulo Fernando da Costa (ex-marinheiro) - Entrevista realizada pelo autor, em 02 de
novembro de 2013.
Livros de Memória
CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1997.
DUARTE, Antônio. A luta dos marinheiros. Rio de Janeiro: Inverta, 2005.
Jornais e Periódicos
- Jornal o Globo
- Jornal do Brasil
- Jornal Última Hora
- Jornal A Tribuna do Mar
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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civil-militar no Brasil: da Rebelião de 1964 à Anistia. Dissertação (Mestrado em
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