os contos de fadas: suas origens histo - rico …

121
"os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - " RICO-CULTURAIS E IMPLfcAÇOES PSICOPEDAGÓ- GICAS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRÉ ESCOLAR" / MARIA BEATRIZ FACCIOLLA PAIVA

Upload: others

Post on 18-Nov-2021

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

"os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO -"

RICO-CULTURAIS E IMPLfcAÇOES PSICOPEDAGÓ-

GICAS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRÉ ESCOLAR"

/

MARIA BEATRIZ FACCIOLLA PAIVA

Page 2: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

"OS CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HIST6 -RICO-CULTURAIS E IMPLICAÇOES PSICOPEDAG6-

GICAS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRE-ESCOLAR"

Orientadora: Angela Valadares Dutra de

Souza Campos

Dissertação submetida como requi sito parcial para a obtenção do

grau de mestre em Educação.

Rio de Janeiro

Fundação Getúlio Vargas Instituto de Estudos Avançados em Educação

Departamento de Psicologia da Educação

1990

Page 3: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

Ao Va.n,,[

Page 4: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

AGRADECIMENTOS

- A professora Angela Valadares Dutra de Souza Campos,

me orientou por dois anos e meio, em reconhecimento

seu trabalho junto a nós alunos do IESAE.

que

pelo

- A Daniel Keller, pelo seu apoio e carinho durante os momen

tos difíceis.

- Ao analista junguiano Carlos Alberto Bernardi, que nos deu

um precioso auxílio na formulação deste trabalho, assumin

do o papel de co-orientador.

- A suiça Elisa Hilty, por nos receber em sua casa em Win -

terthur, dando-nos uma entrevista e presenteando-nos com

seu livro, o que me ajudou muito no esclarecimento de al­

guns tópicos desta dissertação.

- Estendo meus agradecimentos ã CAPES que, pela concessão de

uma Bolsa de estudos, me possibilitou a realização do Cur

so de Mestrado no IESAE.

IV

Page 5: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

INDICE

págs.

INTRODUÇÃO 1

CAPITULO 1

SOBRE AS ORIGENS DOS CONTOS "DE FADAS ............ 7

1.1 A relação existente entre o mito e o conto de

fadas ........................................ 7

1.2 As fontes possíveis que deram origem aos con -

tos de fadas ................................. 14

1.3 Num país distante, no tempo em que os desejos

ainda se realizavam 17

1.4 O legado da cultura celta ................... . 19

1.5 Perrault, os Grimm, Andersen e Cascudo ....... 22

CAPITULO 2

"O SIGNIFICADO PSICOL6GICO DOS CONTOS DE FADAS" .. 31

2.1 O significado do simbólico 31

2.2 Os simbolismos presentes nos contos retratam

d ~. ramas pSlQU1COS .••••..••..••.•••••.••••••••• 38

2.3 Analisando dois contos: desvendando alguns se~

tidos ....................................... . 45

CAPITULO 3

"O CONTO DE FADA PARA CRIANÇAS" .................. 58

3.1 Por que relatar contos de fadas para crianças? 58

3.2 As críticas negativas endereçadas aos contos.. 65

3.3 O mecanismo de projeção e introjeção de MeIa -nie Klein .................................... 76

v

Page 6: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

Pags.

CAP!TULO 4

"A VOCAÇÃO PEDAGÓGICA DOS CONTOS DE FADAS PARA A

CRIANÇA EM IDADE PR~-ESCOLAR 80

4.1 Caracterizando a criança em idade pré-esco -lar ........................................ 80

4.2 Quais as funções dos contos de fadas no con-~

texto pre-escolar? ......................... 90

4.3 Considerações Finais ....................... 100

BIBLIOGRAFIA................................... 106

VI

Page 7: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo principal elu­

cidar as implicações de se relatar contos de fadas às crian

ças em idade pré-escolar, destacando-se suas origens histó­

rico-culturais e a sua função psicopedagógica.

Com subsidios obtidos em obras de alguns autores

da área de história, literatura, filosofia, psicologia e p~

dagogia, foi feita uma análise considerando-se alguns tópi­

cos, dentre os quais a possibilidade de serem os contos mi­

tos transformados, cuja evolução ou construção da narrativa

tem uma característica análoga aos ritos iniciáticos das so

ciedades consideradas "primitivas" ou pré-letradas. Neste

sentido, trazem em seu bojo a nossa herança cultural.

Além disso, possuem função psicopedagógica, que po~

sibilita à criança em idade pré-escolar identificar-se com

a imagem arquetípica do herói ou heroina, na medida em que

estes passam por provações, e adotar uma postura positiva

frente às mesmas.

Argumentou-se, ainda, quanto às criticas de que e~

tas narrativas têm sido alvo, como, por exemplo, a sua "cru

eldade", a visão de mundo "deturpada e irreal" que elas pr~

moveriam de acordo com alguns autores que privilegiam o ra­

cionalismo, e o papel "degradante e passivo" destinado a aI

gumas personagens femininas de algumas histórias.

Conclui-se o trabalho avaliando-se o papel doscon

tos de fadas no contexto pré-escolar, e de que forma a exp~

riência de relatá-los às crianças pode ser enriquecedora do

VII

Page 8: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

ponto de vista pedagógico.

Apoiando-se na abordagem junguiana, trata-se de

um trabalho de pesquisa e análise teórica que visa ampliar,

esclarecer, bem como justificar o papel dos contos de fadas

na educação pré-escolar, levando-se em conta suas funções

psicopedagógicas e o seu caráter socializante, na medida em

que a criança tem acesso a valores sócio-culturais que pre­

dominaram e ainda repercutem nas relações sociais contempo­

raneas.

VIII

Page 9: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

SUMMARY

The main aim of this essay is to clarify the im­

plications of telling fairy tales to children at preschool

age, outstanding their historical-cul tural origins and their

psychopedagogical function.

Based on the data obtained in the work of several

authors in the fieIs of history, literature,

psychology and pedagogy, an analysis was made

philosophy,

on some

topics, such as the possibility that the tales are trans­

formed myths, the evolution or construction of the narrative

of which have analogous characteristics to the initiation

rites of the societies considered as "primitive" or prele,!

tered. In this sense, they bring in their core our cultural

inheritance.

Furthermore, they acquire a psychopedagogical

function, since they give the children at preschool age

the chance to identify themsel ves wi th the achetypical image

of the hero or heroine, as they undergo their ordeals, and

to adopt a positive attitude to cope with them.

The cri ticisms that these tales have been suffering,

as their "cruelty", the "misrepresented and unreal" vision

of the world that they would promote as per some authors

that favor the rationalism, and the "degrading and submis

sive" role given to some female characters of some stories,

were also discussed.

This essay ends by evaluating the part that fairy

IX

Page 10: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

tales play at the preschool context, and how thc experience

of telling them to the children can be enriching, in the

pedagogical point of view.

Based on the jungian approach, it is a research

and a theoretical analysis which aims to improve,elucidate,

as well as justify the role of the fairy tales in preschool

education, considering their psychopedagogical

and their socializing character, once the child

functions

gets in

touch with social-cultural values which prevailed and still

have echo in the contemporary social relationships.

x

Page 11: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

ZUSAMMENFASSUNG

Die vorl iegende Dissertation richtet ihren Schwerpunkt

auf die Abhandl ung der Impl ikationen, die beim Marchenerúihlen

an Kindern im Vorschulalter entstehen.Kulturgeschichtliche

Ursprünge und psychopadagogische Funktionen werden be­

sonders hervorgehoben.

Mit Zuhilfenahme der Werke einiger Autoren aus

den Bereichen der Geschichte, Literatur, Philosophie, Psycholo­

gie und Padagogie wurde eine Analyse erstellt, die ver­

schiedene Themen in Betracht zieht, wie z.B. die Moglich­

keit, dass Marchen transformierte Mythen seien, deren Ent­

wicklung oder Erzahlkonstruktion analoge Merkmale zu Ini­

tiationsriten sogenannt "primitiver" ode r "vor-schriftli­

cher" Gesellschaften vorweisen. In diesem Sinne überbrin­

gen Marchen in ihrem Innern unsere kulturelle Erbschaft.

Im weiteren besitzen Mã"rchen eine psychopadagogische

Funktion, die den Kindern im Vorschulal ter errnoglicht, sich m:i t

dem archetypischen Bild des Helden oder der Heldin zu

identifizieren, Soweit diese durch Prüfungen gehen und

gegenüber Prüfungen eine positive Haltung einnehmen.

Weiter argumentieren wir gegen einige Kritiken,

die auf Marchen abzielen. Einige ,Autoren, di~ eine verstandesma~

sige Haltung bevorzugen, kritisieren, um nur einige Bei­

spiele zu nennen, die "Grausamkei t", die Forderung eines

Bildes einer entstellten und unwirklichen Welt, oder die

XI

Page 12: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

"würdelose und passive" Rolle, die in einigen Marchen ei­

nigen weiblichen Figuren zugeschrieben werden.

Abschliessend bewerten wir die Rolle der Marchen

im vorschulalterlichen Zusammenhang und zeigen auf, in we~

cher Form die Erfahrung des Marchenerzahlens an Kindem vom

padagogischen Standpunkt aus eine Bereicherung sein kann.

Die vorliegende Forschungsarbei t und theoretische

Analyse stützt sich auf Grundsatze der jungianischen Psych~

logie. Sie versucht, die Thematik zu erweitern und

Punkte aufzuklaren, sowie die Rolle des Marchens

einige

in der

Vorschulerziehung zu rechtfertigen, indem sie seine psy­

chopadagogischen Funktionen und seinen sozialisierenden

Charakter in Rechnung stell t. Das Kind hat über das Marchen

Zugang zu vorherrschenden gesellschaftskulturellen Werten,

die in den sozialen Beziehungen von heute Wiederhall finden.

XII

Page 13: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

INTRODUÇJ\O

A opçao pelo Curso de Mestrado em Psicologia da

hlucaç;lo surgiu li partir dl' algumas experiências pessoais, tan

to na irea da psicologia como na da Educação.

Foi cursando a disciplina Mitos, contos de fadas,

arte, folclore e literatura: sua pesquisa, que vimos despe:

tar um interesse maior a respeito dos contos de fadas. Nes

sas aulas, 1 íamos e di scut íamos a função dos mi tos e dos con

tos do ponto de vista da psicologia analítica (ou junguia -

na), atendo-nos principalmente ao seu caráter terapêutico,

ao recorrermos a uma le i tura dos significados das imagens si!!!.

bólicas que estas histórias proporcionam, já que estas nos

fornecem também recursos interpretativos.

Em outro momento, tivemos oportunidade de traba -

lhar na area de educação pré-escolar, estabelecendo um con­

tato quase diário com as crianças na faixa de dois anos e

meio a seis anos. Durante este período, fomos percebendo,

com a prática, que dentre as atividades que as crianças de­

senvol viam havia uma em especial que propiciava um clima agr~

dável na sala de aula, de muita troca e envolvimento. Era

o momento em que as crianças ouviam os contos de fadas, que

chamávamos de "histórias de boca", visto que elas só pode -

riam ouvir e usar a imaginação, já que para aquelas histó

rias nao havia ilustrações a serem mostradas.

Durante esta atividade percebíamos que, dependen­

do da sua história pessoal, ou mesmo de acordo com a sua n~

cessidade momentânea, algumas crianças realmente identifica

Page 14: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

2

vam-se e projetavam-se em algumas figuras centrais ou em aI

guma situação ali presente.

Dentro deste quadro, as meninas identificavam-se

com as personagens femininas e os meninos com as masculinas,

podendo isto ser observado a partir das brincadeiras ou ati

vidades em que as crianças exercitavam a representação, co-

mo as gráficas (pintura, desenho) e os jogos dramáticos.

Houve, por exemplo, o caso de uma criança que se

sensibilizou muito com a história de "Joãozinho e Maria",di

zendo-nos com ar tristonho que "nunca mais queria voltar p~

ra a escola". Pudemos presumir que a idéia de "abandono"su

gerida pela história (quando o pai de Joãozinho e Maria os

abandona na floresta porque não tinha condições econômicas

de sustentá-los, não só havia sido assimilada pela criança,

como também ela identificou-se com os personagens centrais,

já que seus pais eram médicos, trabalhavam o dia todo e dis

punham de pouco tempo para se dedicar aos filhos.

Esta hipótese pôde ser confirmada quando entrevis

-tamos o casal, e apos conversarmos e deliberarmos sobre qual

o encaminhamento mais proveitoso para ambas as partes, pud~

mos cons ta tar, com o passar do tempo, que a criança mostrou-se

muito mais descontraída e alegre no seu dia-a-diana escola.

A partir desta vivência e que se foi instaurando

a vontade de pesquisar mais sobre as implicações de se rela

tar contos de fada às crianças, e de buscar nos vários auto

res, de diversas áreas, subsídios teóricos que vieram nos

respaldar na realização desta dissertação.

Page 15: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

3

E importante ressaltar que alguns autores, como

os folcloristas Vladimir Propp e Luís da Câmara Cascudo,uti

lizaram os termos "conto maravilhoso" e "conto de encanta -

mento", respectivamente, para designar o que conhecemos por

"conto de fadas", por acreditarem ser este termo último nao

apropriado, já que não se refere a histórias cujos enredos

giram apenas em torno de fadas. No entanto, continuamos a

adotar a denominação "conto de fadas" por acharmos que esta

é a mais conhecida pelo público em geral (incluindo-se o in

fantil).

Com relação às abordagens que nos subsidiaram no

campo da psicologia, buscamos referências tanto na escola

psicanalítica IBruno Bettelheim, (1988), Melanie Klein (in

Segal, 1975) I, como na junguiana IMarie Louise Von Franz

(1981, 1985~, 1985Q, 1986), Hans Dieckmann (1986), entre o~

trosl, sendo que esta última ocupou um espaço maior e mere-

ceu um destaque mais significativo de nossa parte. Não pr~

tendemos, com isto, desmerecer a psicanálise freudiana,

que esta constitui um marco que impulsionou um maior conhe­

cimento da natureza humana, do ponto de vista psíquico. Além

disto, suas formulações teóricas e metodológicas suscitaram

o aparecimento de outras abordagens, incluindo-se aí a jun-

guiana.

Reconhecemos no entanto, que ambas apóiam-se em

visões de mundo diferentes. Baseando-se nestas colocações,

cabe aqui expor em linhas gerais algumas contribuições que

a psicanálise nos propiciou.

A teoria psicanalítica sem dúvida dedicou-se mais

Page 16: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

4

à psicologia infantil, haja vista as formulações de Freud e

seus seguidores acerca dos desejos e conflitos edipianos d~

rante a infância, assim como as de Melanie Klein, a respei-

to das relações objetais, para se compreender a atividade

psicológica deflagrada a partir do relacionamento htmlano com

os "objetos" ou pessoas (no caso, a relação mãe-criança)que

atraem a sua atenção e/ou necessidades.

Jung, por sua vez, não se dedicou muito a discor-

rer, em suas obras, sobre a infância; mas, a despeito disso,

compartilhamos em grande parte a forma ou a perspectiva que

ele elaborou a respeito do inconsciente, cujos conteúdos,além

de serem encarados corno potencialmente criativos, também p~

dem extrapolar a experiência pessoal.

.. . Ele considerava as imagens onlrlcas, por exemplo,

corno a melhor expressão de conteúdos inconscientes, e reco­

mendava que, num primeiro momento, ouvíssemos o que o incon~

ciente tem a nos dizer; ou seja, para compreender o signifl

cado do sonho, faz-se necessário ater-se primordialmente a

imagem onÍrica. A imagem representaria a situação tal qual

ela é, e não sujeita às deformações atribuídas ao inconsci-

ente. A interpretação seria requerida, nesse caso, de for-

ma a tornar a imagem original mais significativa.

Esta visão, em nosso entender, também proporcionou

urna extensão maior acerca do significado da natureza humana,

pois ao se ampliar o conteúdo simbólico de um sonho leva-se

em conta o contexto pessoal, podendo-se abarcar também o co

letivo, relacionando-o com simbolismos míticos, históricos,

culturais (incluindo-se aí ternas arquetípicos desenvolvidos

Page 17: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

5

nos contos de fadas).

Portanto, Jung nao conseguiu referendar por muito

tempo a visão psicanalítica que apregoava uma interpretação

exclusivamente sexual da motivação, daí uma das causas do rom

pimento entre ele e Freud.

Com relação aos contos de fadas, os psicanalistas

freudianos preocupam-se em mostrar que tipo de material re­

primido ou inconsciente encontra-se subjacente a essas his­

tórias. Os junguianos, por sua vez, acredi tam que nestas Ú.!..

timas são representados os tipos humanos básicos, que espe­

lham os trajetos do desenvolvimento psíquico. Expressariam,

portanto, um modelo de comportamento arquetípico em conso -

nância com o ego, como iremos mostrar no desenvolvimento des

te trabalho.

Entendendo que o pensamento junguiano privilegia

uma postura menos dogmática e por vezes polêmica, e que nos

encontramos em relativa sintonia com as idéias e conceitos

desenvolvidos por esta escola, é que optamos por empreender

umô discussão mais ampla a respeito dos contos de fadas de~

tro da perspectiva anteriormente citada, embora esta seja c~

locada em relação com outros pontos de vista ou abordagem.

Neste sentido, examinamos também as colocações de

Piaget (1978!,1978E), Bettelheim (1988), do historiador das

religiões Mircea Eliade (1972), do filósofo Gilbert Durand

(s.d.), da psicóloga e escritora Jacqueline Held (1980), en

tre outros.

Por fim, estamos cientes de que, ao versarmos e d~

senvolvermos esta temática de acordo com as perspectivas por

Page 18: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

6

nós apontadas e relevadas, estaremos sem dúvida relegando ou­

tras idéias ou visões a respeito do tema em questão. Cabe

esclarecer que estamos pondo em pauta algumas ver soes den -

tre várias, haja vista a tamanha amplitude já alcançada pe­

la investigação e pensamento humanos, além daquelas ainda inex

pIoradas.

Entretanto, apesar de termos plena convicção do li

mite do nosso alcance enquanto pesquisadores, esperamos que

este trabalho venha contribuir para ampliar, ainda mais, a

noção que as pessoas possam ter acerca das implicações de se

relatar contos de fadas à criança em idade pré-escolar.

Page 19: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

CAPITULO I

SOBRE AS ORIGENS DOS CONTOS DE FADA

1.1 A relação existente entre o mito e o conto de fadas

Durante a fase de pesquisa, analisamos extenso ma

terial acerca das analogias e diferenças existentes entre os

mitos e os contos de fadas.

As divergências ocorrem no sentido de o conto ter-se

transformado num mito dessacralizado, ou seja, o herói ou a

heroína não agem em nome da ira dos deuses e nem situam-se

num mundo governado por estes. A despeito de os heróis ou

heroínas serem punidos ou não pelos seus atos, o conto lan­

ça-nos em um mundo de confrontação com algo inusitado, e a

solução ou transposição do mesmo exigirá que os protagonis­

tas passem a adotar uma nova atitude, o que implicará uma

transformação de si mesmos, ou uma relação diferente para com

a vida.

Mircea Eliade (1977) levanta algumas questões acer

ca deste assunto, dentre as quais está o contraste entre o

pessimismo dos mitos e o otimismo dos contos, pois neste úl

timo geralmente o desfecho é feliz, ao passo que na narrati

va mítica o herói, na maioria das vezes, tem um fim trágico.

Além disso, outro fator que os diferencia relati­

vamente é o fato de nos contos ser mais improvável eviden -

ciar a cul tura na qual se originaram, o que nao ocorre no ca

so dos mitos, sendo possível identificar no mito de ~dipo,por

exemplo, elementos da cultura grega.

Page 20: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

8

De certa manej ra, os contos de fadas sao também in­

fluenciados pela cjvilização em que surgiram, mas sem dúvi­

da torna-se um desafio identificá-los no tempo e no espaço,

já que há poucos registros neste sentido.

~ interessante notar que nos contos de fadas o tem

po e o país não são evidentes, pois geralmente eles começam

com: "Era uma vez, num castelo no meio de uma floresta ... "

"Num certo país ... " ou "Numa época em que os animais ainda fa

lavam ... "

Apesar de não se comprovar o espaço e o tempo da

narrativa, os contos iniciam a sua história num ambiente fa

miliar onde se insere perfeitamente o homem comum. "João e

Maria" desenrola-se em torno de um fato real e corriqueiro

para nós: o pai é pobre e se pergunta como poderá cuidar dos

filhos. "Rapunzel" também começa num ambiente familiar co­

mum, onde os pais desejavam ter filhos, e a partir daí de­

senvolve-se toda a trama.

~ claro que no decorrer da história os elementos

"mágicos" vão surgindo, mas não se pode compará-los com os

elementos sagrados e sobrenaturais presentes nos mitos, cujos

acontecimentos relatados se dão presumidamente num tempo pr2:.

mordial. Um exemplo desta idéia refere-se aos mitos cosmo­

gônicos, em que se percebe a tentativa de buscar explica­

ções' sejam simbólicas ou sagradas, da criação ou produção

de algo. ~ a narrativa de uma "criação".

Segundo Mircea Eliade, "o mito ensina ao homem ar

caico as histórias primordiais que o constituíram existen -

cialmente". (Eliade, 1972, p. 16). Histórias estas que são

Page 21: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

9

fruto da emoçao e da necessidade do homem de compreender o

que acontecia i sua volta, levando-o a buscar na religiosi-

dade os elementos que lhe proporcionariam um controle maior,

em termos racionais, dos efeitos da natureza sobre si mesmo,

assim como de seus próprios instintos, como o de sentir me-

do.

Do ponto de vista filosófico, pode-se perceber nos

mi tos a famosa indagação: de onde eu vim e para onde vou? Ou,

então, a busca de respostas para as mais diversas manifesta

ções da natureza, como as estações do ano, as inundações, o

aparecimento do boto (na mitologia dos índios da Amazônia),

etc.

E o que seriam, então, as possíveis construções mi

tológicas respaldadas pelo medo?

Paul Diel dá~nos o seu depoimento a este respeito:

"o homem primitivo ( .•• ) nunca sera completamente

seguro dele mesmo (eis aqui a primeira razão de seu temor ( ..• )

Não é mais que um temor ontológico ao qual esta ligado ins~

paravelmente, como se verá, o medo metafísico). Do medo on­

tológico nascera a magia e do medo metafísico a religiosid~

de. Pelo fato de que as duas formas de medo (ante o ambien

te e o mistério) são inseparaveis, a magia e a religiosida­

de se encontram ligadas entre si ( •.. )" (Diel, 1959, p. 59).

~ o medo do desconhecido, a perplexidade frente às

várias manifestações naturais, sejam elas externas, como já

foi descrito, e até mesmo internas. Como explicar sentime~

tos por vezes arrasadores que nos assolam? O medo, a pai -

xão, o ódio, a inveja, etc. Cabe aqui lembrar que nos tem-

pos antigos não existia a ciência como ela é constituída ho

Page 22: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

10

je, e muito menos a psicologia, um corpo de conhecimento que

adquiriu um caráter empírico e se disseminou na sociedade a

partir das obras de Freud.

Os instintos, as intenções e a necessidade de bus

car soluções para a complexidade do mundo eram e ainda sao

(embora em menor grau) proj etados na religião, nos deuses ou,

mais especificamente, no pensamento mágico, fatores estes

característicos do pensamento mítico explorado pela socied~

de quando esta iniciou o seu processo de estruturação e or­

ganização.

Com relação aos contos de fadas, como já foi dito,

existe a hipótese de serem eles mitos dessacra1izados, pois

segundo alguns autores têm uma tradição oral, o que facili­

tou sua migração de uma região a outra. Portanto, estavam

sujeitos a sofrerem mutações, adaptando-se à cultura local

assim como recebendo as influências da ordem judaico-cristã.

Mesmo assim, alguns contos mantiveram suas raízes na cultu­

ra popular, preservando elementos inerentes às religiões di

tas pagas.

Contudo, como já apresentamos no início deste ca

pÍtulo, existem ainda fatores que colocam o mito e o conto

em sintonia. Dentre alguns, podemos citar a linguagem e as

imagens que se fazem presentes nas duas narrativas. Ambos

são dotados de uma linguagem simbólica, isto ~, de uma lin­

guagem que dá margem a uma ou mais interpretações, vários sen

tidos ou significados.

Do ponto de vista da psicologia junguiana, esta lin

guagem simbólica pode tamb~m referir-se a padrões arquetÍpi

Page 23: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

11

cos, conceito este que Jung desenvolveu e reformulou algu -

mas vezes ao longo de sua 0bra.

De acordo com Jolande Jacobi (s.d.), é importante

ressaltar a diferença que há entre a noção de arquétipo e de

imagem arquetípica.

o arquétipo em si é imperceptível, um princípio or

denador cujos elementos provenientes do inconsciente coleti.

vo (compostos de conteúdos universais, transpessoais) estr~

turam e coordenam o funcionamento da psique. E uma espécie

de padrão básico subjacente que se revela :La psique indivi-

dual ou coletiva, com base na experiência de vida daquele i~

divíduo ou daquela coletividade. E importan te ressaltar que

esta capacidade de organização é herdada, enquanto o conte~

do ou as imagens arquetípicas sofreill as influências do meio.

Citando Andrew Samue~s:

"( ... ) é perfeitamente sensato argumentar que, em

bora o conteúdo não seja herdado, forma e padrão o são; o con

ceito de arquétipo satisfaz este critério. o arquétipo é vi~

to corno um concei to puramente formal, um arcabouço então pre

enchido com imagens, idéias, ternas, etc. A forma ou padrão

arquetípico é herdado, mas o conteúdo é variavel, sujeito a

mudanças históricas e ambientais" (Samuels, 1989, p. 43).

Jo1ande Jacobi (s.d.), ajuda-nos a compreender m~

1hor esta afirmativa, dizendo-nos que o arquétipo "materno",

por exemplo, está prenhe de todos os aspectos e variações

que um símbolo pode apresentar, seja a goela de uma baleia,

o seio da igreja, a caverna acolhedora, a fada boa ou a bru

xa (podendo simbolizar aspectos positivos e negativos da mãe

vivenciados através dos contos de fadas), e até mesmo a nos

Page 24: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

12

sa mae pessoal.

Ou seja, os modelos arquetípicos básicos ou núcleos

estruturantes são universais, sao comuns a todos os povos,a

todos os indivíduos, e persistem com o passar do tempo. No

entanto, a relação do indivíduo com o arquétipo tende a ser

estabelecida através de imagens, estas sujeitas as varia-

çoes individuais e culturais.

Portanto, existem símbolos nas suas formas arque-

típicas fundamentais que quanto mais profundas ou arcaicos,

mais coletivos e universais serão, ao passo que estando eles

mais próximos da camada consciente, mais específicos e sin-

guIares serão, perdendo o seu caráter universal.

Ao tentarmos explicitar mais claramente a noçao de

arquétipo e sua diferenciação da idéia de imagem arquetípi­

ca, buscamos argumentos para demonstrar a identidade que há

entre mito e contos de fadas cujos motivos básicos têm ori­

gem nas camadas profundas do inconsciente, comuns à psique

de todos os humanos.

Mircea Eliade (1972) ajuda-nos a entender melhor

esta afirmativa:

"Certamente os mesmos arquetipos, ou seja, as mes

mas figuras ou situações exemplares, reaparecem indiferent~

mente nos mitos, nas sagas e nos contos" (Eliade, 1972, p.I71).

~ importante esclarecer que o conceito de arquéti.

po, para Eliade tem significado diferente daquele definido

por Jung: para ele, arquétipos são modelos ou protótipos de

comportamento. Nesta citação acima, o autor deveria estar

se referindo ao herói como um modelo arquetípico represent~

Page 25: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

13

do em ambas as narrativas.

Se, por um lado, contos e mitos lidam com padrões

arquetÍpicos, como o arquétipo do herói que luta, se sacri­

fica na busca de algo novo, da salvação ou recuperaçao do que

foi perdido, expressões típicas do arquétipo da transforma­

çao que exigem mudanças decisivas e expansão da consciência,

existem autores que defendem a idéia de que os contos de f~

das são muito menos influenciados pela civilização em que

surgiram devido ã sua estrutura mais elementar.

Como já foi exposto, é difícil precisar a cultura

e a tempora1idade dos contos de fadas, pois estes parecem

nos conduzir para uma realidade incomum, para um mundo onde

tudo é possível embora preservem elementos extraídos da rea

1idade trivial aos seres humanos: família, pobreza, abando­

no, desejos a princípio difíceis de serem realizados, etc.

Percebe-se nos contos a composição de dois mundos

que se inter-relacionam: o mundo "mágico" e o mundo real que

se assemelha ao cotidiano do homem comum.

As figuras do "mundo m;gieo" são entes que nunca

vimos, mas imaginamos como são: as bruxas, mulheres e homens

sábios, anões, gigantes e animais que falam. Acontecem mi­

lagres e transformações, figuras que voltam a viver, a Bela

Adormecida que dorme cem anos e continua boni ta e jovem, etc.

Raramente o conto se inicia no "mundo mágico", mas sim no

cotidiano do mundo de cá, até que surge o elemento mágico que

nos transporta para o outro mundo.

Mas se para Bette1heim (1988) os heróis míticos

oferecem excelentes imagens para o desenvolvimento do supe~

Page 26: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

14

ego, já que representam aspectos divinos humanamente impra­

ticáveis, para Von Franz (198S~) os mitos, por estarem mais

inseridos na civilização e retratarem de forma mais proemi­

nente as influências da religiosidade de uma determinada cu1

tura, dificilmente poderão ser estudados sem se conhecer a

fundo o seu legado cultural.

Neste sentido, o conto de fadas, por ter uma es -

trutura mais elementar, por ter uma linguagem simples e, po~

tanto, ser mais facilmente compreendido (visto que até hoje

faz sucesso junto ao público infantil), pôde migrar melhor

de uma região ã outra, pois reduzido aos seus elementos es-

truturais básicos, faz sentido para qualquer um.

1.2 As fontes possíveis que deram origem aos contos de fadas

Além desta idéia de que os contos de fadas sao re

manescentes modificados dos mitos, existem outras hipóteses

defendidas por folcloristas, mitólogos, psicólogos, que ap~

rentemente se contradizem. Mas se formos analisá-las aten-

tamente, percebe-se que uma nao exclui a outra.

A psicóloga junguiana Marie Louise Von Franz sug~

re que as formas mais originais dos contos de fadas sao as

sagas locais e as histórias parapsicológicas, histórias mi-

raculosas que acontecem devido a invasões do inconsciente

coletivo sob a forma de alucinações em forma de vigília:

"Estas coisas ainda acontecem; os camponeses suí­

experenciam-nas constantemente e elas formam a base das cren

ças folclóricas. Quando alguma coisa estranha acontece,ela

ê cochichada e corre, como correm os boatos; então, sob co~

dições favoráveis o fato emerge enriquecido de representa -

Page 27: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

15

.".. . - . . çoes arquetlplcas Ja eXlstentes e progresslvamente transfor

ma-se num conto" (Von Franz, 1981, p. 133).

Há outra hipótese levantada pelo folclorista sovi

ético V. Propp, mencionado por Eliade (1972), que se refere

a uma origem ritua1Ística dos contos populares, ou seja,e1e

vê nos contos a reminiscência dos ritos totêmicos de inicia

ção, pois se reduz a um enredo iniciatório (lutas contra o

monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a se

rem desvendados, o casamento, etc.).

Eliade faz um comentário sobre isto:

"Embora em quase todos os contos haja o happyeYl.d,

seu conteúdo propriamente dito refere-se a uma realidade ter

rivelmente séria; a iniciação, ou a passagem através de uma

morte ou ressurreição simbólicas, da ignorância e da imatu­

ridade para a idade espiritual do adulto" (Eliade,1972,p.173).

Von Franz (1981), como já mencionamos preliminar­

mente, nao compartilha desta idéia, pois acredita que a ba-

se nao é o ritual mas uma experiência arquetípica. Segundo

a sua tese, os rituais apareciam nas sociedades primitivas

quando um ou mais integrantes da tribo compartilhavam as suas

VI soes e os seus sonhos com o resto da tribo. Ao serem en-

cenados para todos,estes sonhos surtiam um efeito profundo

naquelas pessoas, chegando mesmo a ter um caráter curativo.

Estas encenações passaram, então, a serem feitas repetidas

vezes, passando a fazer parte do ritual daquela tribo.

Esta é uma explicação plausível, isto é, a de que

o ritual pode ser imanente ao inconsciente coletivo, lembran

do que este termo, definido por Jung, corresponde às cama -

Page 28: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

16

das mais profundas do inconsciente, aos fundamentos estrutu

rais da psique comuns a todos os homens.

Estas colocações, do nosso ponto de vista, sao i­

gualmente válidas, levando-se em conta os seus mentores. Ob

viamente Mircea Eliade (1972), busca analisar dados dando-lhe

um perfil antropológico, e Marie Louise Von Franz (1981), sem

dúvida, privilegia uma interpretação psicológica, em sinto­

nia com a escola da qual faz parte, que pressupoe uma dinâ­

mica psíquica regida pelos arquétipos.

~ difícil traçar um limite claro entre o enredo i

niciatório e o conto de fadas, pois este último desvenda-nos

algumas passagens protagonizadas pelos seus heróis ou heroÍ

nas, que sugerem a mesma mensagem implícita nos rituais, ou

seja, as perdas inevitáveis para se chegar ã maturidade, a

capacidade que teremos de possuir representados pelo perso­

nagem principal de transpor as "provas" e sofrer as trans -

formações que a vida nos exige.

Mas, se indagarmos o que há de comum entre a exp~

riência arquetÍpica compartilhada e o ritual em si, chegar~

mos ã conclusão que é a representação afetiva que aglutina

os homens, já que tanto o ritual como a experiência arquet!

pica são submetidos ou desencadeados através de um apelo a­

fetivo, seja ele consciente ou inconsciente.

Portanto, podemos concluir que o conto de fadas tem

uma natureza psicológica que se assemelha ã estrutura dos n~

to~ de ~n~e~ação, e se diferencia de parte dos mitos ,por ter

uma estrutura mais elementar e um material consciente cultu

ralmente muito menos específico que aquele encontrado nos mi

Page 29: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

17

tos. Inúmeras versoes dos contos e motivos semelhantes en-

contrados sobre a mesma temática, nos mais diferentes paÍ -

ses, não nos levam a afirmar qual a sua matriz cu1tura1,mas

sim o seu caráter mais universal do que os mitos.

1.3 Num país distante, no tempo em que os desejos ainda se

realizavam ...

Marie Louise Von Franz (1981) faz um histórico, com

base em pesquisas, dos primeiros contos que foram registra-

dos, e descobriu indícios de que estes surgiram na forma es

crita juntamente com o aparecimento da mesma, ou seja, há

3.000 anos.

Além deste registro, existem outros na Antigüida-

de - por exemplo, o conto "Amo~ e P~ique~ foi escrito por

Apuleius, famos9 escritor e filósofo. Segundo a autora, -e

interessante notar como o tema da mulher que redime o seu

amado da forma animal, que aparece neste conto, constitui um

padrão, ou seja, encontram-se motivos semelhantes em vários

países da Europa, assim como no Brasil, na história "O PrÍn

cipe Lagartão" da coletânea de Luís da Câmara Cascudo.

Pelos escritos de Platão, soube-se que as mulhe -

res mais velhas contavam às crianças histórias simbólicas,

e, desde então, os contos de fadas passaram a estar vincula

dos à educação de crianças.

Entretanto, até os séculos XVII e XVIII, os con-

tos costumavam ser a principal forma de entretenimento para

as populações agrícolas na época de inverno. Contar contos

de fadas, diz Von Franz, "tornou-se uma espécie de ocupação

Page 30: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

18

cspiritual cssencia1. Chegou-sl' mesmo a dizer quc elcs rc-

prC'scntavam a filosofia du rollu dc fjar" (Von Franz, 198],

p. 18).

Segundo essa autora, com o advento do Cristianis-

mo, o neo-paganismo começou nu Alemanha corno urna reaçao aos

ensinamentos cristãos, o que levou Von Franz a defender ain

da a idéia de que existem alguns contos que retratam urna co~

pensação do inconsciente frente ã supremacia da consciência

cristã na época.

Sem querer entrar a fundo no mérito desta questão, ~

pois e um assunto bastante amplo e exigiria mais dados de nos

sa parte, nos referiremos apenas a alguns pontos que exempli

ficam a afirmação descrita acima.

Observam-se, em alguns contos, elementos intrínse

cos ao paganismo: gigantes, fadas, bruxas, animais que fa -

Iam, personagens mitológicos em geral (sereias, homem com ca

beça de animal, etc.). Elementos, sem dúvida, simbólicos,

mas também utilizados e explorados pelas religiões que nao

se enquadram na tradição judaico-cristã e, portanto, sujei­

tas a perseguição e dizimação, como nos mostra a História,

em destaque na Idade Média, quando se "assavam" as chamadas

"bruxas" nas fogueiras.

Outra questão que nos parece relevante é o fato

de os contos até então propagados oralmente pelo povo antes

do século XVII, passarem a ter na figura dos Irmãos Grimm um

de seus principais compiladores.

Corno nos relata Von Franz:

Page 31: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

19

"Os Irmãos Grimm escreveram os contos literalmen'"

te, corno eram contados pelas pessoas das redondezas,mas me~

mo eles não resistiram algumas vezes a misturar um pouco as

versões" (Von Franz, 1981, p. 19).

Vê-se, então, a partir desta última colocação,

que as reproduções dos Irmãos Grimm não eram assim tão lite

rais como deduz a autora.

].4. O legado da cultura celta

Ao fazermos o levantamento bibliográfico sobre o

tema em questão, não poderíamos deixar de considerar as pe~

quisas realizadas no campo da literatura, em especial daqu~

la denominada "literatura infantil", destinada às crianças.

Deparamo-nos com um estudo significativo realizado por Nelly

Novaes Coelho (1987) sobre a etiologia dos contos de fadas,

E interessante notar que Nelly Novaes Coelho faz

uma distinção entre contos de fadas e o conto maravilhoso.

Segundo a autora, os contos de fadas, com ou sem fadas, de­

senvolvem seus argumentos dentro de uma magia feérica (reis,

rainhas, príncipes, fadas, bruxas, gigantes, tempo e espaço

fora da realidade conhecida, etc.) e têm como eixo gerador

uma problemática existencial expressada através de provas e

obstáculos que precisam ser vencidos, como um verdadeiro ri

tual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realiza

ção existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro eu,s~

ja pelo encontro com a princesa, que encarna o ideal a ser

alcançado.

Nelly Novaes Coelho nos aponta, ainda, que os con

Page 32: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

20

tos de fadas são de origem celta, cujos vestígios mais remo

tos provêm de séculos antes de Cristo e, a partir da Idade

Média, foram assimilados por textos de fontes européias, fi

cando-nos praticamente impossível a tarefa de resgatá-los

na sua forma "pura", talo amálgama de fontes que se fun-

diam nas narrativas recolhidas.

No entanto, ressalta a autora:

"Foi no seio do povo celta que nasceram as fadas.

Os celtas provavelmente vieram da Ásia, e foram impelidos a

emigrar para a Gália, Península Iberica, Ilhas Britânicas,

Alemanha, ate que nos seculos 11 d.C. e I d.C. foram compl~

tamente submetidos pelos romanos ( ... ). Na vida comum eram

simples e leais, e daí a sua contínua fusão com outros po­

vos, e enorme pulverização de sua cultura pela Europa ( ... ).

Eles eram espírito-naturalistas, isto e, deificavam todas

as manifestações da natureza. Suas divindades agrárias eram

femininas, por ser a agricultura, entre eles, tarefa das mu

lheres. Renderam culto aos animais, assim como às armas, a­

tribuindo-lhes poderes mágicos" (Coelho, 1987, p. 39).

Além de animistas, o seu espírito de religiosida­

de difundiu-se entre todos os povos devido a organização da

casta sacerdotal dos druidas. Etimologicamente, diz a auto-

ra, druida provém da palavra céltica d~u, que quer dizer

ea~valho (já que exerciam suas misteriosas funções no bos­

que), ou ainda outra significação resultante da decomposi­

ção d~u (prefixo indo-europeu que significa eomple~amen~e a

6unda) e vid (que significa eanheee~).

Co~ a crescerte cristianização proveniente de Ro­

ma, os rituais considerados pagãos mesclaram-se com a ordem

cristã, e toda a atmosfera mágica celto-bretã (donde deri-

Page 33: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

21

vavam as lendas do Rei Arthur) ficou entregue às bnunas e ao

esquecimento, e por que não dizer, de acordo com a termino­

logia psicológica apresentada, foi reconduzida ao inconsci­

ente de onde emergem os nossos sonhos e imagens arquetípi -

caso

Quanto aos contos de fadas, designados por Nelly

Novaes Coelho, como contos maravilhosos, são compreendidos

como narrativas que com ou sem a presença de fadas, se de­

senvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, gênios e d~

endes, etc.), e têm como eixo gerador uma problemática so-

cial (ou ligada ã vida prática concreta), mas que aponta p~

ra vivências simbólicas, como o confronto de tendências opos-

tas ali representadas nas mais variadas figuras: lobos, bru

xas, fadas, pássaros, personagens mitológicos, etc.

Enquanto os contos de fadas foram engendrados pe-

los povos europeus, e posteriormente disseminados pelos Ir-

mãos Grimm, Perrault, como por exemplo, "A Bela e a Fera",

"Rapunzel", "A Bela Adormecida", etc., os contos maravilho-

sos originaram-se nas narrativas orientais, e segundo Nelly

Novaes Coelho, enfatizam a parte material, ética e sensorial

do ser humano, como por exemplo: "As Mil e Uma Noites", "O

Gato de Botas", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa", etc.

Portanto, a autora nos abre uma perspectiva que

vem, em parte, corroborar e até ampliar nossas colocações,

isto -e, de que os contos de fadas tiveram a sua dissemina -

çao nos povos considerados pagãos, profundamente religiosos

e providos de uma cultura enriquecedora, a nível artístico e

espiritual.

Page 34: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

22

No ~ntanto, DO considerarmos ~stu possibilidad~

u~stacaua pela autora a respeito da sua herança celto, con~

tatamos que o homem, desde os prim6rdios da sua cultura,pr~

ocupa-s~ em buscar respostas para os enigmas da vida e da

criaç50, e na impossibilidade ou isento de condições para fa

zê-Io objetivamente, projeta-o ou elabora-o na religião e no

mistério; projeções e elaborações que refletem,numa 6tica

psicol6gica, o seu estado de indiferenciação com os fenôme­

nos não-explicáveis, ou de total comunhão com conteúdos ar­

quetÍpicos expressados na sua forma simb6lica.

1.5 Perrault, os Grimm, Andersen e Cascudo

Até aqui buscamos expor sobre quais as origens dos

contos de fadas, quais as fontes possíveis que geraram os

contos até estes serem coletados e editados pelos compilad~

res bastante conhecidos do público em geral, especialmente,

Perrault e os Grimm.

Os contes de fadas, devido ao seu caráter popular

e por serem disseminados oralmente, detonam nos pesquisado­

res, até hoje, questionamentos e suposições acerca da sua

etiologia, mas o que não podemos perder de vista é o seu ca

ráter coletivo. Ao migrarem de uma região a outra, de boca

em boca, sofreram adaptações de acordo com a cultura local

(os contos coletados por Luis da Câmara Cascudo, aqui no Bra

sil, possuem, em sua maioria, elementos da nossa cultura,c~

mo veremos mais adiante).

Faremos agora uma rápida análise do contexto his­

t6rico em que viveram alguns destes compiladores:

Page 35: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

23

Foi no século XVII que o francês Charles Perrault

adaptou os contos e lendas que coletou junto ao povo, preo­

cupando-se em retratar o popular de forma irônica e morali-

zante.

Segundo Ligia Cademastori (1987), Perrault, de ori

gem burguesa, desprezava o povo e as superstições populares, ~

revelando o modelo educativo imposto a ele e a sua epoca, ~

través de narrativas fáceis de serem retidas pelo público

infantil, não deixando de refletir, entretanto, as tensões

e soluções sonhadas pelos camponeses vítimas da repressão do

governo absolutista de Luís XIV.

~ importante lembrar que, antigamente, os contos

de fadas não eram destinados apenas às crianças, mas também

a adultos das classes mais baixas da população como lenhad~

res e camponeses, que entretinham as mulheres que se ocupa-

vam da roda de fiar.

Mas, com relação às posições conservadoras de Char-

les Perrault, Nelly Novaes Coelho faz uma ressalva:

liA natureza dos argumentos dos contos colhidos por

Perrault para a sua coletânea (praticamente todos centrados

em mulheres injustiçadas ou vítimas) confirma sua intenção de

apoio ã causa feminista, da qual uma das líderes era sua so­

brinha, Mlle. Heritier" (Coelho, 1987, p. 18).

Um exemplo de narrativa na qual Perrault represe~

tou magnificamente um conflito feminino, ocasionado pelo d~

sejo incestuoso de um pai por sua jovem filha, encontra-se

em "Pele de Asno", onde a heroína, em vez de "pura" e "rec~

tada", se veste de elementos da natureza, dança e seduz.

Page 36: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

24

Os contos retratam, além de dramas psíquicos, co-

mo veremos mais adiante, narrativas que por vezes fogem aos

padrões de comportamento propagados pelas instituições reli

giosas e burguesas, detentoras da normatização das regras s~

ciais. Neles era possível o jogo de sedução previsto entre

o lobo e a menina eJ!l "Chapeuzinho Vermelho", o casamento en

tre ricos e pobres em "Rapunzel", o "Alfaiatezinho Valente",

e a possibilidade de aceitação e afeto entre seres humanos

e "criaturas" que aparentemente causam repulsa em "A Bela e

a Fera", entre outras.

, Os contos proporcionam a crianç2 e aos adultos a

vivência de elementos mágicos e mitológicos, que nao corres

pondem a urna realidade objetiva mas sim subjetiva.

Por isso, fica-nos extremamente difícil e delica-

do estabelecer limites entre o real e o imaginário, já que

os contos extraíram das fontes mitológicas e onÍricas a es­

sência que delineou seus motivos e temáticas caracterizadas

corno simbólicas.

Podemos também buscar nos seus compiladores fato­

res literários e de natureza pessoal, que ajudaram a compor

as suas respectivas obras.

E dando curso a isto, destacam-se as publicações

dos Irmãos Grimm, que no século XIX ampliam a antologia dos

contos de fadas, recolhendo da memória popular as antigas na!.

rativas com o auxílio de duas mulheres, uma camponesa e ou-

tra francesa, que se encarregavam de rechear os seus livros

de histórias.

Page 37: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

25

Jacob e Wi1heim tiveram uma formação bem diversi­

ficada, pois além de filósofos e grandes fo1c1oristas, fo -

ram estudiosos da mitologia germânica e da história do Di-

reito alemão, o que talvez tenha levado Jacob Grimm a dizer:

"Eles -(os contos) nao foram imaginados, inventa --dos, mas sao os reflexos das mais antigas crenças populares

e a fonte inesgotável dos mais puros mitos" (transcrição de

Laura Sandroni no Boletim ln6o~mativo da FNLIJ, 1987, p.38).

Dentre os contos mais conhecidos dos Irmãos Grimm

aqui no Brasil citamos "Joãozinho e Maria", "Branca de Neve

e os Sete Anões", "A Gata Borralhe i ra", 'IRapunzel' I, 1embran

do que se encontram algumas versões destes contos nas cole­

tâneas de Perrau1t, que ora se assemelham ora divergem das

de Grimm.

Com uma simplicidade que lhes é caracterÍstica,os

Irmãos Grimm reproduzem nos contos temáticas que são identi

ficadas nos vários contos que coletaram. Geralmente, um ra

paz ou uma moça nascem numa família pobre, sendo ou muito

amados ou desprezados pelos pais ou pelos substitutos des­

tes (a afetividade obedece a pólos extremos). A partir daí,

surge algum conflito ou alguma tarefa que leva o protagoni~

ta a "sair pelo mundo", podendo encontrar a solidão, a an -

gústia e a fome que fatalmente serão compensadas por alguma

intervenção mágica ou algum ajudante com poderes mágicos (voz

interna?) que irá impor-lhe tarefas que, caso sejam venci -

das ou superadas, haverá uma recompensa, ou seja, o casamen

to, mudança de posição social, reconhecimento pelos outros,

enfim, situações que objetivamente significam mudanças na vi:.

Page 38: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

2(,

ua uo protagonista, e subjetivamente acarn'tarão urna trans-

formação ue si mesmo, pois o protagonistu sem dúvida muua a

sua atituue perante a vida.

~ claro que estamos simplificando ao máximo, afi-

nal os contos sugerem urna riqueza de significados muito mais

ampla e profunda, e não seguem todos necessariamente este

"roteiro". O que queremos demonstrar é a sua narrativa de

fácil compreensão e que, por sua vez, usam recursos que ap~

sar de não terem similaridade com a realidade objetiva, tran~

portam-nos para o reino dos desejos e das imagens simbóli -

cas com tal graça e virtuosidade, que passaram a ser compa-

rados com uma obra de arte:

-"o conto de fadas nao poderia ter seu impacto psl

colõgico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tu

do uma obra de arte ( ••. ) Como sucede com toda grande arte,

o significado mais profundo dos contos de fadas sera dife -

rente para cada pessoa em vários momentos de sua vida" (Bet­

thelheim, 1988, p. 20 e 21).

Mais de um século separa os Grimm de Perrault e os

tempos são outros. Os folcloristas alemães, já na era do

Romantismo, davam um estilo mais suave a suas histórias, a-

menizando a violência e a crueldade expressas com mais vee-

mência nas coletâneas de Perrault. Para exemplificar, Per-

rault publicou contos como "Barba Azul", conhecido por seu

caráter "sanguinário", assemelhando-se em muito a uma histó

ria de terror, além da versão de sua autoria de "Chapeuzi -

nho Vermelho", cujo final termina com o lobo devorando a me

nina e a avó, em contraste com a de Grimm, que traz a figu-

ra do caçador que salva as duas mulheres da barriga do 10 -

Page 39: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

27

bo, despejando-o no rio com a barriga cheia de pedras.

Discutiremos a crueldade presente em alguns con -

tos mais adiante, assunto este que até hoje tem gerado pol~

micas.

Outro autor que se consagrou junto ao público in­

fantil foi o dinamarquês Hans Christian Andersen, conhecido

também por suas poesias e novelas.

Andersen viveu no ipice da era do Romantismo e,

portanto, seus contos, em especial, estão sujeitos a influ­

ências dos preceitos romãnticos, como emotividade exacerba-

da, permeada de amores idealizados e decepções amorosas que

levam os personagens a adoecerem e se entregarem à desilu -

sao frente à vida quase que por completo.

Contrastando com os demais, Andersen, reconhecido

por uma vida pessoal altamente atribulada, o que se refle -

tiu seriamente na sua personalidade, não buscou só nas fon­

tes populares inspiração para editar os seus contos, ji que

alguns foram criados por ele mesmo, adquirindo uma atmosfe­

ra trigica, e~pelhando em muito a sua problemitica pessoal.

Explicitando os padrões de comportamento exigidos

por uma elite em conformidade com a moral cristã da

Andersen ainda encontrava fôlego para manifestar em

-epoca,

alguns

contos as desigualdades soctais, mostrando não somente as in

justiças dos poderosos, mas a defesa dos direitos iguais p~

ra as classes populares, faixa social à qual ele também pe~

tencia.

Foi através de "Soldadinho de Chumbo", "A Sereia-

Page 40: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

28

zinha" c "Patinho Feio" que reconhecemos (J des.ilusão, a re­

jejç50 e a necessidade de aceitaç50 pelos que nos rodeiam.

Reconhece-se também a crítica social presente em "Roupa No­

va do Imperador", notabilizando-se ar a frase "O Rei est5

n~", ou seja, a falta de autenticidade das pessoas da corte

frente ã "figura detentora de poder" desmascarada apenas p~

la espontaneidade de uma criança que não se encontra na fa­

se de total assimilação e conseqüemte cumprimento das nor­

mas ditadas por um grupo social, sejam elas lícitas ou nao.

E, finalmente, o nosso compilador brasileiro, o

folclorista Luís da Câmara Cascudo, que também, ainda que

mais recentemente que os outros (década de 30), encontrou nos

contadores de histórias espalhados pelo Brasil (com desta -

que especial ao Nordeste do País) alguns de seus principais

colaboradores. Outras coletâneas suas foram tiradas de vo­

lumes impressos.

Segundo o autor, a proporçao entre os elementos in­

dígenas, africanos e brancos no folclore brasileiro é de 1:

3:5, ou seja, foram os portugueses, franceses, holandeses e

espanhóis, entre outros, que se encarregaram de divulgar no

Brasil a cultura e a narrativa européias, ainda que sofres­

sem adaptações de acordo com o narrador local.

Ao observarmos os contos descritos no seu livro

Con~o~ T~adieionai~ do B~a~il, notaremos que muitas versões

recolhidas por aqui são variações de contos portugueses, e~

panhóis e franceses, incluindo aí aquelas presentes nos li­

vros de Perrault (no Brasil a versão de "Bela Adormecida"g~

nhou o nome de "A Princesa do Sono-Sem-Fim") e Grimm (a ver

Page 41: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

29

sao de "Joãozinho e Maria" cujo título é idêntico), entre

outros. f importante ressaltar que o autor sempre nos noti

fica da origem popular de alguns contos e a dificuldade de

se estabelecer com precisão a sua fonte originária, tal a

quantidade de publicações de várias nacionalidades, cujos mo

tivos são semelhantes.

No entanto, é possível identificar a presença dos

elementos indígena e africano em "O Marido da Mãe d'Água",

assim como denominações oriundas da cultura brasileira, co-

mo por exemplo, "égua perebenta" no conto "A Princesa Jia",

possivelmente de origem espanhola ou portuguesa.

Cascudo, em algumas narrativas, mantém na íntegra

o discurso do contador da história, não se atendo às normas

gramaticais corretas, mas a reunir elementos do nosso fol-

clore e reproduzi-los fielmente.

Diz o autor:

"A novelística, que se tornou uma das mais apal.x~

nantes atividades de pesquisa cultural do seculo XIX, cons~

grou o conto popular, transmitindo oralmente, mostrando sua

maravilhosa ancianidade e o texto, jamais uno e típico, mas

tecido de elementos vindos de muitas origens, numa fusão que

se torna nacional pelo narrador (presença do ambiente meso­

lógico, fauna, flora, armas, vocabulários) e internacional

pelo conteúdo temático. ( ••• ) As pesquisas esclareceram que

os contos populares ( ... ) p~rtem de temas primitivos e obe­

decem a uma seriação articulada de elementos, de soluções

psicológicas, uso de objetos, encontro de obstáculos, comuns

e semelhantes" (Cascudo, 1988, p. 247).

Parece-nos que Câmara Cascudo conseguiu integrar

neste parágrafo os principais tópicos que queríamos abordar

Page 42: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

30

neste capítulo. Tentamos expor, levando em conta elementos

ora contraditórios, ora complementares, a identidade que há

entre os mitos e os contos de fadas, no que concerne à ado­

ção de motivos e elementos similares, assim como na sua lin

guagem simbólica. Elementos estes que, de acordo com a ar­

gumentação de algumas escolas psicológicas, expressam-se na

psique coletiva ou individual sob a forma de imagens arque­

típicas.

Formulamos ainda as posições de Mircea Eliade a­

cerca da origem ritualÍstica dos contos de fadas e a possi­

bilidade de terem eles a sua origem através da disseminação

da cultura celta, hipótese defendida por Nelly Novaes Coelho.

E ressaltaríamos mais uma questão: é extremamente

complexo estabelecer os limites entre cultural e o psicoló­

gico de um gênero literário ou artístico que praticamente se

alastrou pelo mundo e se difundiu através das mais diferen­

tes culturas, que traz na sua linguagem e imagens simbóli­

cas o seu principal agenciamento.

Sabemos que o símbolo se confunde com o desenvol­

vimento de toda a cultura humana, assim como incita senti­

dos que proporcionam uma mediação com tendências inconscien

tes, sejam elas coletivas ou individuais, já que a relação

que cada um estabelece com o símbolo é pessoal.

Considerando que o nosso objetivo é o conto defa

das que tem um caráter transcultural e, portanto, assimila­

do nas várias culturas, podemos deduzir o seu caráter uni­

versal, trazendo em seu bojo a sua tendência de incitar sen­

tidos vários e multÍvocos, dada a sua vocação simbólica.

Page 43: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

CAPITULO 2

O SIGNIF1CAJlO PSICOLOC1CO DOS CONTOS DE FADA

2.1 O Sighifitado do simb6lico

Antes de discorrermos especificamente sobre COIl

tos de fadas, precisamos situar-nos a respeito da noçao de

símbolo e contextualizá-lo um pouco dentro de uma perspecti

va cultural e aC3d~mica; e, de uma forma mais ampla, ressal

tar a função simbólica de acordo com algumas correntes psi­

cológicas, para percebermos até que ponto estas considera­

çoes serao relevantes dentro da nossa temática.

A noção de símbolo tem sido explorada em várias

areas de conhecimento, encontrando-se atualmente páginas e

páginas dedicadas a sua definição e função no campo da filo

sofia, lingüística, pedagogia, psicologia, artes, etc.

O trabalho desses autores nos proporcionou recolo

car a questão do símbolo dentro de uma visão epistemológica

voltada para a ampliação e a sustentação de algumas teorias

que se propoem elucidar questões acerca da exist~ncia huma­

na.

Gilbert Durand (s.d.) descreve em seu livro A ima

ginação ~imbõlica que foi atraves do cartesianismo e do po­

sitivismo que o simbolismo foi relegado aos patamares do in

verossímil, ou seja, o racionalismo assim como o empirismo

reducionista acabam por influenciar decisivamente o pensa -

mento humano pretendendo-se com isso perpetuá-los como meto

dos universais, ou as únicas vias possíveis de se promover

Page 44: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

32

o conhecimento.

Com a formulação de outros métodos, o empirismo

deixou de ser o único instrumental, e a questão das imagens

simbólicas em especial passou a ter reconhecimento frente

às contribuições da psicologia e da etnologia, que demons -

traram a importância das imagens simbólicas na cultura e no

psiquismo.

o "objeto ausente" passou a ser considerado a pa,E.

tir de sua representação ou imagens através de sonhos, mi-

tos, poesia e contos de fadas, re-ve1ados à consciência,

reconduzindo-nos a um universo sensível onde se privilegia

o inconsciente, o sobrenatural, o sagrado e a fantasia.

Para compreendermos melhor esta idéia, citamos G.

Durand, que se baseou nas colocações de Paul Ricoeur:

"( ... ) todo símbolo autêntico possui três dimen -

sões concretas: ele é, ao mesmo tempo, 'cósmico' (ou seja,

retira toda a s~a figuração do mundo sensível que nos ro­

deia); 'onírico' (enraíza-se nas lembranças, nos gestos que

emergem em nossos sonhos e constituem, como bem mostrou Freud,

a massa concreta de nossa biografia mais íntima) e, final -

mente, 'poético', ou seja, o símbolo também apela para lin

guagem" (Durand, s.d. p. 16).

]j este símbolo "indizível", mas que se manifesta

através da linguagem que o circunda e é portador de virios

significados, que nos impele a buscar relações, que nos aju

da a construir o universo humano, de forma mais abrangente.

E importante lembrar que signo e símbolo referem-se

a realidades diferentes. Como definiu muito bem Cassirer,

Page 45: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

33

os si~nos correspondem a uma parte do mundo físico e. por-

tanto. são "operadores". enquanto os símbolos sao uma parte

do mundo humano dos sentidos e. portanto. são "desiW1adores" .

o autor faz ainda algumas considerações sobre a

linguagem:

liA linguagem foi freqüentemente identificada com a

razão ou a origem desta. Razão ê um termo muito pouco ade­

quado para abranger as formas de vida cultural do homem em

toda a sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas -sao

simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um

animal ~ationale, deveriamos defini-lo como um animal ~ymbo­

lic.um" (Cassirer, 1977. p. 51).

Cassirer, talvez em resposta aos positivistas, de

fende a idéia de que o conhecimento humano é simbólico.o que

caracteriza ao mesmo tempo a sua força e limitações. E ao

descrever a estrutura da linguagem, do mito, da religião e

da,a:te, ele requisita a necessidade de uma terminologia psi­

cológica, pois se penetra num mundo em que o sentimento, a

imaginação artística ou mítica, assim como o pensamento, es-

tão em jogo.

Em se tratando da contribuição da psicologia em re­

lação à compreensão dos simbolismos presentes nas mais di-

versas formas de expressão é que destacamos as idéias de

Jung. que redescobriu e ampliou a noção de símbolo carac -

terizando-o também corno mediador entre consciente e incons-

ciente.

Ainda ocorrem confusões a respei to da noçao de sÍID

bolo e arquétipo dentro da teoria junQ'uiana: o "arquétipo em

Page 46: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

34

si" é essencialmente a energia psíquica, a matéria-prima

fornecida pelo inconsciente coletivo, que passa a ser re

conhecível através da manifestação de uma imagem arquetípi

ca ou símbolo.

Para exemplificar esta idéia, podemos reconhecer

o arquétipo da "luta do bem contra o mal", ou o conflito

de opostos através da luta ao herói contra aquelas forças

que personificam o mal: fome, frio, tempestades, dragões,

bruxas, etc.

A constatação da existência, ou nao, de um signi

ficado simbólico depende também daquele que o percebe, is­

to é, passa por uma avaliação subjetiva, onde, por exemplo,

a figura de um sol pode ser, para alguns, apenas a expre~

são de um signo, e para outros, um símbolo, ou seja, causa

um efeito que detona significados por vezes inexplicáveis.

Existem ainda, segundo Jolande Jacobi (s.d.),sím

bolos que podem se degenerar em signos dependendo do con -

texto ou daqueles que os contemplam. A cruz, num exemplo

dado pela autora citada, pode ser apenas o signo externo do

cristianismo, enquanto para outros pode simbolizar toda a

plenitude da história da Paixão.

E, finalmente, retomando a nossa colocação formu­

lada anteriormente, referimo-nos ao caráter mediador do sím

bolo, defendido por Jung como o unificador dos pares de opos­

tos, em primeira instância do consciente e inconsciente. Acres­

centa Jolande Jacobi:

"o símbolo e, então, uma especie de instância me-

Page 47: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

35

diadora entre a incompatibilidade do consciente e do incons

ciente, um autêntico mediador entre o oculto e o revelado".

E c on t in u a c i t a n do paI a v r a s de J u n {!: "E 1 e (o s í m bolo) não e nem abstrato e nem concreto. nem racional nem irracional.

nem real nem irreal: é sempre ambos" (Jacobi. s.d. 90).

Esta qualidade mediadora tem sido associada a uma

ponte. cuja função é de se criar uma passagem de um lado pa­

ra outro, dinamizando a psique, unindo pólos antagônicos num

exercício de síntese para separá-lOS em seguida, já que a

psique ohedece a leis dinimicas, da mesma forma que o fluxo

da vida.

E cada vez que procuramos novas referências, para

abranger os vários significados que emergem através do sím­

bolo, fica-nos cada vez mais evidente Que ao desvelar as ten

sões contraditórias Que lhe são inerentes. nota-se Que ele

possui um caráter dialético: o símbolo é universal, pois trans

cende o individual, mas pode, ao mesmo tempo, adquirir um

sentido relacionado especificamente com uma pessoa, depen -

dendo da relação que a mesma estabelece com aquela imagem em

especial. Pode ser portador de um sentido assim como ser

rico em numerosos sentidos.

o símbolo pode ser ao mesmo tempo consciente e in

consciente, não é racional nem irracional, mas as duas coi­

sas simultaneamente. Ele é, por um lado, acessível à cons­

ciência ou à razão, e, por outro, permanece oculto a ambas;

mas é através dele que se traça a possibilidade de inconsci

ente, e o consciente se aproximarem.

Mas de que forma torná-lo real para nós? Signifi

Page 48: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

36

cando-o, vivenciando-o ou até mesmo interpretando-o.

Esta é a proposta de Paul Ricoeur:

"A interpretação, diremos, e o trabalho de pensa­

mento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido

aparente, em desdobrar os

na significação literal.

4' • n1ve1S

Guardo

de significação implicados

assim a referência inicial

ã exegese, isto - -e, a interpretação dos sentidos ocultos.Sim

bolo e interpretação tornam-se conceitos relativos: há in -

terpretação onde houver sentido múltiplo; e é na interpret~

ç ã o que a p 1 li r a I i d a d e dos se n t i dos t o r na - sem a n i f e s ta" (Ri -

coeur, 1978, p. 15).

No entanto, apesar das palavras de Ricoeur, tende-

mos a o~tar por uma ou outra interpretação; somos remanes -

centes do racionalismo, e se nao nos definirmos por esta ou

aquela posição, corremos o risco de sermos rotulados de am-

bíguos, evasivos, etc.

Somos quase que impelidos a organizar o universo

em "categorias", pois existem publicações a respei to dos sÍID

bolos, tanto na 'área de psicologia (onde se diz que "isto" sis.

nifica "aquilo"), como nos "dicionários de símbolos", que

acabam por restringir o significante aos seus significados.

Esta é uma postura por demais dogmática, reducio­

nista, que tem sido muito criticada tanto dentro do próprio

círculo da psicologia corno. por exemplo, pelo psicólo­

go .. junguiano James Hillman quanto por filósofos, como

Gilbert Durand (s.d.).

o que devemos considerar, de acordo c~m o psicana

lista Meltzer (in Samuels. 1989) é Que deve ocorrer urna "at

mosfera interpretativa". onde há urna "interação" entre os

Page 49: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

37

significados das imagens e nao uma "tradução" da imagem em

significado.

A psicologia vem-nos mostrar que o símbolo é con­

cebido como uma síntese equilibradora, oferecendo soluções

-apaziguadoras para uma das tarefas mais complexas, que e o

autoconhecimento, ou a revelação de alguns aspectos da nos­

sa personalidade que, sem o instrumental psicológico, seriam

ignorados do ponto de vista da sua apreensão nos vários nÍ-

veis, e nao apenas racionalmente.

Citando uma frase de Jung destacada do livro de J~

lande Jacobi (s.d.), " ... é a capacidade de ter consciência

que torna o homem mais humano". Consciência esta que vai

exigir que, através das diversas interações que formos efe­

tuando entre o símbolo e os significados, busquemos rela-

ções que impliquem a adoção de uma linguagem que produza um

efeito esclarecedor. que motive a transposição daquele sig-

nificado antes inintelegÍvel, inconsciente. para uma esfera

real, possível, promovendo. assim. uma ampliação da consci­I

ência e a possibilidade de um maior conhecimento de si e do

mundo.

o símbolo. como já foi descrito. tem a capacidade

de detonar inúmeras interações, interpretações. devido à sua

multivocidade.

No entanto, o homem necessi ta de valores para con~_

truir o seu mundo interior. Valores estes que sao produzi-

dos na relação com o próprio símbolo (bom/mau; esperto/bo -

bo; feio/bonito; etc.) presente nas imagens encarnadas pe­

los personagens dos con tos. Na construção do nosso numdo in-

Page 50: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

38

tcrior, sclccionamos os valores c hicrarqujzamo-los de acor_

do com os nossos jnteresscs particularcs (' cul tl1nd s.

Se quisermos, portanto, vivenciar e compreender a

linguagem simbólica prcsente nos contos de fadas,teremos tam

bém que decodificá-la, pois assim poderemos fazer as intera

ções possíveis entre os vários significados que emanam des­

te universo simbólico que compõe estas histórias.

E como em toda linguagem simbólica, um pouoo de

mistério, entretanto, sempre permanecerá, considerando que

esta linguagem também é uma parte inerente ao mundo humano

de significação o qual nunca apreenderemos inteiramente.

2.2 Os simbolismos presentes nos contos retratam dramas psí­

quicos

Desde que foi concebida a identidade que há entre

as imagens simbólicas ou arquetípicas presentes nos sonhos,

nos mitos e nos contos de fadas, proporcionada em especial

pela psicologia, estas imagens ou motivos, como definem al­

guns, têm sido exploradas e analisadas nas diversas pub1ic~

çoes que encontramos sobre o assunto, entre as quais se de~

tacam as de Bette1heim (1988), Marie Louise Von Franz (1985~,

1985E., 1986), Hans Dieckmann (1986), que se ;aproftmdaram mais

sobre esta temática introduzida por Freud ou Jung.

O principal assunto destas investigações refere-se

à existência de analogias surpreendentes entre as imagens

arquetípicas encontradas nos contos de fadas e aquelas en -

contradas no inconsciente durante a terapia de cunho ana1í-

Page 51: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

39

co, ou seja, da escola junguiana, encontrando-se aí a simb~

lização do processo psíquico, relativo -a individuação

(processu de Jesenvolvimellto psíquico com vistas ,à amplia -

çao da consciência cuja tendência é realizar potencialida

des inatas do indivídu~, ã maturidade e ao desenvolvimento.

o psicanalista Bettelheim(l988) nâo diverge muito

desta idéia, acreditando que o conto de fadas tem fins tera

pêuticos, pois contém projeções de fenômenos internos psic~

lógicos do ser humano, sob a forma simbólica, na busca de

respostas às suas indagações e de resolução de conflitos in

ternos.

o que distingue as duas escolas é que para a psi-

canalítica, os contos passaram, através dos tempos, a tran~

mitir significados manifestos e encobertos, assim como a

atividade onírica na concepção freudiana, enquanto para os

adeptos de Jung os contos espe lham a eS'Lrutura bãsicá da psique ...

,cujas ra1zes se encontram na psique coletiva.

Tanto a psicanálise como a psicologia analíticacon­

cordali1 que os contos de fadas têm uma estrutura semelhante

ã dos sonhos. Freud já tinha percebido que os contos nao

são fundamentalmente distintos dos sonhos, e que falam uma

linguagem simbólica idêntica.

Marie Louise VonFranz (198S~1, por sua vez, diz

que os contos de fadas parecem exercer, no âmbito de um po­

vo, uma função semelhante ã dos sonhos para o indivíduOI eles

cunfirmam, curam, compensam e criticam a ati tude coletiva pr~

dominante, assim como os sonhos o fazem com relação ã atitu

de de um indivíduo.

Page 52: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

40

Ela acredita que apesar de haver nos contos mui -

tos motivos religiosos, eles jamais foram suprimidos ou ab­

sorvidos por qualquer ensinamento religioso vigente, pois

atuaram como compensaçao onfrica para o qual podiam ser ve~

tidas aquelas necessidades psicológicas que não fossem sufi

cientemente respeitadas na atitude consciente coletiva.

Todos são unânimes em apontar que os contos ofer~

cem modelos para a vida, modelos estes que encontram na fi­

gura do herói ou da heroína um exemplo a ser observado.

Para Bettelheim, o her6i traz em si um apelo posi

tivo proporcionando que a criança se identifique com este

lado. O autor acredita que é importante prover a criança m~

derna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozi­

nhos e que, apesar de ignorarem o desfecho desta sua traje­

tória, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus ca

minhas com uma profunda confiança interior.

Para Marie Louise Von Franz (1986), os heróis dos

contos de fadas nao são muito humanos, pois suportam todos

os sofrimentos, nao vacilam ante o perigo, até atingirem seus

objetivos.

Neste sentido, os heróis ou heroínas - diz ainda

a autora.-, representam modelos para um funcionamento do ego

em harmonia com a totalidade da psique Ccom inconsciente e

consciente), sendo, além disto, um modelo e padrão arquetí­

pico para o tipo "correto" de comportamento.

Não obstante, existem contos em que a figura pri~

cipal, ou herói como já definimos, não passa de um tolo, ou

é colocado nesta condição por outros personagens da histó -

Page 53: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

41

ria, fugindo ao senso comum de que o herói tem que ser es -

perto e audaz. Neste caso, o cha,mado "tolo" ,necessi ta de

uma ajuda mágica, ou de algum animal prestativo.

Encontramos outro exemplo na personagem aparente­

mente "monstruosa" da história da "Bela e a Fera", ,onde a

fera a princípio pune e amedronta o pai de Bela por este

ter-lhe roubado uma rosa do jardim, mas mostra-se solícito

e amoroso com a Bela, o que proporcionou que esta úJtima pas­

sasse a amá-lo também, quebrando o fei tiço que o havia trans

formado em fera.

Vê-se, então, que quando Von Franz refere-se ao

herói como um modelo de comportamento "correto", não signi­

fica o correto na concepção convencional da palavra. Signi

fica antes de tudo um tipo de comportamento específico que

naquela história ou contexto "dará certo", ou seja, a figu­

ra central atingirá seus objetivos mesmo que a princípio s~

ja considerada tola, ou até usando certos tipos de estrata­

gemas de certo modo condenáveis, mas, se participarmos dá

trama com o nosso sentimento, sentlremos ser esse o modo se

creto de enfrentar a vida.

Portanto, esta caracterização de "correto" pode não

se aplicar ao senso comum, a categorias produzidas social -

mente, mas obedece sobretudo a mecanismos instintivos ou afe

tivos que nos levam a ter a sensação de que a ação do herói

é a correta naquela situação específica da história.

Podemos, en tão, di zer que es ta a ti tude do herói ou

da heroína frente a uma determinada si tuação Ce aí pode en

trar a questão ética a qual os contos também sugerem, que dis

Page 54: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

42

cutiremos mais adiante) nao se submete apenas aos ~tores ou

normas sociais permitidas ou aceitáveis, mas sobretudo por

aquela atitude que está de acordo com a totalidade da pers~

nalidade psicológica. Totalidade esta que, ao abarcar con­

te6dos conscientes e inconscientes, produz inevitavelmente

uma relação dialética constante entre o mundo interior e o

exterior, entre aquilo que é subjetivo e o que se refere -a

realidade objetiva das relações sociais.

Da mesma forma que é necessário tornar-se ciente

da sociedade em que vivemos, inclusive para transforma-la,

existem as exigências internas que, caso não sejam ouvidas,

produzem sofrimentos e ansiedades, podendo-se chegar a si -

tuações extremas, como neuroses, ou, em maior grau, a psic~

ses.

Dentro deste quadro, insere~se também a própria

estrutura dos contos de fadas, já que as figuras centrais

ali colocadas (herói ou heroína) representam modelos para tun

funcionamento do ego numa relação dialética com a estrutura

global da personalidade.

Para darmos curso ao significado psicológico pre­

sente nos contos, nos quais alguns já destacamos,deveríamos

concomitantemente pôr em discussão toda a simbologia prese!!.

te nos contos, e para se tirar conclusões acerca dos signi-

ficados nos quais os símbolos evocam, teremos que recorrer

a um instrumental que, como já expomos, tem sido alvo de aI

gumas críticas: a interpretação.

E preciso deixar claro que o significado que cada

Page 55: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

43

um extrai de cada conto ou motivo poderá ser diferente de

pessoa para pessoa. No entanto, corno já enfatizamos, os

padrões arquetÍpicos explorados nos contos podem ter um ca

ráter coletivo, pois focalizam questões que transcendem a

esfera individual, corno maturação, o processo de desenvol­

vimento psíquico do ser humano, que implica "sair pelo mug

do" e enfrentar perigos, vislumbrando o alcance de algo maior

que, portanto, exigirá mudanças tanto externas corno inter­

nas, etc. O conto propõe também a figura do herói ou de um

fator ajudante (animal, magia, velhinha) que lida com si -

tuações imprevisíveis ou tarefas difíceis, que exigirão urna

sintonização seja com o mundo interno, seja com o externo

(num processo dialético) para optar pelo caminho que visa

urna maior realização nos vários níveis.

Além disso, não é redundante recolocar que os con-

tos foram engendrados dentro de uma esfera coletiva, ou se

j a, um número inimaginável de pessoas colaboraram, antes que

tivessem sido fixados pela escrita, na forma conhecida por

nós. Os contos, como j á expomos, utilizam-se de imagens si!!!

bólicas ou arquetÍpicas imanentes da psique coletiva,e têm

como base a experiência de vida da coletividade.

Citando Marie Louise Von Franz:

"Jamais se pode afirmar que um conto de fada re­

presenta o processo de individuação pe~ he, pois ele não re

presenta, nem pode representar tal coisa. O processo de in

dividuação, pe~ de6-i..n-i..:t-i..oner,~. é algo que só pode ocorrer num

só ser humano e que sempre tem uma forma única. No entan-

to, a despeito de constituir evento único, num único ser hu

mano, existem certos aspectos típicos coincidentes que se

repetem e se assemelham em todo processo de individuação.

Page 56: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

44

Por ISSO, pode-se dizer que tais contos refletem fases típ!

cas do processo de individuação de muita gente, e que tais

fases típicas são ressaltadas de acordo com a atitude da cons

ciência nacional coletiva do povo ao qual elas sao relata

das" (Von Franz, 1985~, p. 273, 274).

Jung tem-nos alertado, em algumas de suas obras,

para nao confundirmos individuação com individualismo. lndi

vidualismo, segundo diz o autor, significa acentuar e dar

ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a

considerações e obrigações coletivas, enquanto individuação

e um processo de diferenciação que tem por meta o desenvol-

vimento da personalidade individual, que não leva ao isola-

mento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e ge-

ralo Portanto, considerar de forma adequada as peculiarid~

des individuais, acarretará um melhor rendimento social.

Para entendermos melhor o simbolismo das imagens

presentes nos contos, teremos que relacioná-las com alguns

significados. Não pretendemos inscrever na função interpr~

tativa uma prática redutora, mas sim esclarecedora, amplia-

dora, ou seja, "que faça algum sentido", por acreditarmos ser

esta uma das funções fundamentais da prática psicológica.

Dizemos "relações possíveis", pois sabemos que e~

ta nossa exposição terá que ter um fim, visto que o caráter

simbólico em si imprime a possibilidade de se extrair signi

ficados inesgotáveis, o que exigiria que lhes dedicássemos

inúmeras páginas.

Portanto, nos limitaremos a selecionar algumas i~

terpretações, esperando que estas façam sentido para os lei

tores que nos acompanham.

Page 57: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

45

2.3 Analisando dois contos: desvendando alguns sentidos

Começaremos inicialmente com um resumo do conto

dos Irmãos Grimm, liA Rainha das Abelhas.

~E~a uma vez, doi~ 6ilho~ do ~ei que pa~ti~am pe­lo mundo em bu~ca de aventu~a~, caZ~am na vida de 6a~~a e nunca mai~ volta~am. O mai~ moço, que e~a chamado de João

Bobo, ~aiu ã p~ocu~a dele~, ma~ quando 6inalmente o~ encon­

t~ou, o~ doi~ ~Ô 6ica~am zombando dele, compa~ando-o a um idiota que nunca ia te~ condiçõe~ de ~e da~ bem na vida.

No entanto, o~ t~ê~ p~o~~egui~am caminho junto~ e ~e depa~a~am com um 60~miguei~0. O~ doi~ mui~ velho~ que­

~iam e~maga~ o 60~miguei~0 pa~a ~e dive~ti~ vendo a~ 60~mi­

ga~ ~e apavo~a~em co~~endo de um lado pa~a out~o, ma~ João Bobo impediu-o~ de 6aze~em i~to pedindo que a~ deixa~~em em paz.

Mai~ adiante, chega~am a um lago cheio de pato~ na

dando, e o~ doi~ mai~ velho~ que~iam pegá-lo~ pa~a aMM. MM

João Bobo não pe~mitiu que ele~ o~ mata~~em dizendo-lhu que

o~ deixa~~em em paz.

Finalmente, chega~am a uma colméia que tinha tan­

to mel que até e~co~~ia pelo t~onco da á~vo~e. O~ doi~ i~­

mão~ mai~ velho~ que~iam expul~a~ a~ abelha~, tocando 60go

no pé da á~vo~e e, em ~ eguida, ~ouba~ o mel, ma~ uma vez João Bobo não deixou, dizendo-lhe~ que deixa~~em a~ abelha~ em paz.

Mai~ ta~de, o~ i~mão~ chega~am a um ca~telo,e qua!!. do ent~a~am vi~am cavalo~ de ped~a no~ e~tábulo~ ma~ não v~

~am nenhum ~e~ humano. Pa~~a~am po~ vá~ia~ ~ala~, até que 6inalmente chega~am a uma po~ta que tinha t~ê~ t~anca~, e bem no meio, tinha uma janelinha que dava pa~a out~a ~ala.

Ne~~a ~ala, havia um homenzinho cinzento ~entado diante da me~a. Chama~am-no uma vez, dua~, e ele nem ~e mexeu. Quan­

do chama~am a te~cei~a, ele ~e levantou, de~t~ancou a po~ta

e veio até ele~. Não di~~e uma palav~a, ma~ levou o~ t~ê~

até uma me~a po~ta com toda na~tu~a e ~iqueza e depoi~ que

Page 58: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

46

come~am e bebe~am bem, mo~t~ou a cada um o ~eu qua~to.

Na manhã ~egu~nte, o homenzinho cinzento apa~eceu,

6ez ~ina~ pa~a o mai~ velho, e levou-o até junto de uma lá­pide onde havia uma in~c~ição na ped~a, com a li~ta de t~ê~

ta~e6a~ que p~eci~avam ~e~ cump~ida~ pa~a que o ca~telo pu­

de~~e 6ica~ liv~e do encantamento. A p~imei~a e~a ~ecolhe~ mil pé~ola~ da 6ilha do ~ei, que e~tavam upalhadM pelo meio

do mu~go e do matinho ~a~tei~o do bo~que. Tinham que..6~ t~

da~ ~ecolhida~ ante.~ do cai~ da noite., ~em 6alta~ ne.nhuma.

Se 6alta~~e. uma ~õ, que.m p~ocu~ava ia vi~a~ pe.d~a.

o i~mão mai~ velho ~aiu e. p~ocu~ou o dia inte.i~o.

Ma~ quando chegou no 6im do dia, ~Õ tinha encont~ado uma~

cem e, exatamente. como e~tava e.6c~ito na lápide, 60i t~an.6-

6o~mado em ped~a.

No out~o dia, o .6e.gundo i~mão também óe.z ~ua ten­

tativa, ma~ também ~Õ achou uma duzenta~ pé~ola~ e também vi

~ou ped~a.

Finalmente chegou a vez de João Bobo, que começou

a p~ocu~á-la~ no meio do mu~go, ma~ como encont~á-la~ e~a

muito dióZcil, ele ~e ~entou numa ped~a e começou a cho~a~.

AZ apa~eceu com um ~équito de cinco mil óo~miga~, o ~ei da~ 6o~miga~ cujo vida ele tinha ~alvo. Num in~tante o~ animal

zinho~ encont~a~am toda~ a~ pé~ola~ e. 6ize~am um monte com ela~ num ~o luga~.

A ~egunda ta~e6a e~a encont~a~ a chave do qua~to

da óilha do ~ei, caZda no 6undo do ma~, o que ele con~eguiu com a ajuda do~ pato~ que ele tinha ~alvo, que. me.~gulha~am

tanto que acaba~am achando a chave.

A te~cei~a ta~eóa e~a a mai~ di6Zcil de toda~. A~

t~ê~ óilha~ do ~ei, toda~ linda~ e muito pa~ecida~, e~tavam

do~mindo e ele p~eci~ava de~cob~i~ qual e~a a mai~ moça. A única di6e~ença é que, ante~ de do~mi~, ela~ tinham comido

t~ê~ doce~ di6e~ente~. No da mai~ velha tinha açúca~,no da ~egunda, dua~ gota~ de xa~ope e no da mai~ moça, uma colhe~ de mel.

AZ apa~eceu a ~ainha da~ abelha~ que João Bobo ti

Page 59: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

47

nha halvo. Vepoih de p~ova~ oh lãbioh dah t~êh moçah, pa~ou

junto ã boca da que tinha comido mel. lhhO mOht~ou ao 6ilho

do ~ei qual e~a a p~inceha ce~ta.

Vehha manei~a, o encantamento he queb~ou e todah

ah pehhoah do cahtelo aco~da~am de heu hono, ao mehmo tempo

que todoh Oh que vi~a~am ped~a voltavam ã 6o~ma humana. João

Bobo cahou com a p~inceha maih moça e maih bonita e de­POih que o pai dela mo~~eu, 6icou hendo ~ei. Oh doih i~mãoh

dele cahaJtam com ah iJtmãh dela" (história extraída do livro

Chapeuzinho VeJtmelho e outJtOh contoh de GJtimm, selecionado e

traduzido por Ana Maria Machado, 1986, p. 95-8).

Como já tivemos a oportunidade de colocar antes,

o conto inicia-se no "mundo de cá" , no mundo real, cotidia-

no, onde três i rmãos saem pelo mundo "em busca de aventuras" ,

isto é, procuram algo novo, se submetem ao destino onde tu­

do pode acontecer. Estão entregues ã própria sorte, ao aca

so, onde o tempo, o lugar e o futuro não importam. Isto siR

nifica que o tempo deles chegou para seBuir o caminho e sair

do aconchego (família) ao qual normalmente se está habituado.

Dentre os irmãos temos os dois mais velhos que co~

sideravam-se mais espertos, e o mais moço, o João Bobo, do-

tado de ingenuidade e integridade que o tornam capaz de ou-

vir a natureza. E é com a ajuda desta mesma natureza, re -

presentada pelos animais, que ele cumpre as tarefas que lhe

sao colocadas.

Ele não é um herói no sentido de atuar sozinho 'na

realização das tarefas que lhe são exigidas, pois é ajudado

o tempo todo por animais.

Outro detalhe é que nesta história, dentre as fi-

guras principais, o elemento feminino não está representado.

Page 60: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

48

Decorre daí que a açao principal refere-se ao fato de livrar

do encantamento o castelo e as pessoas que estão nele e en­

contrar a filha mais nova do rei, da qual depende toda a he

rança do reino.

E, para se chegar a isto, ocorrem situações que atr~

vessam o caminho dos três irmãos, e que se repetem em três

momentos: deixar os animais (a natureza) em paz e não fa­

zer-lhes mal.

Consciência ecológica, dirão uns. Respeitar o "cu!.

so natural das coisas", dirão outr0S. Ou o instinto, fre -

qüentemente associado à figura do animal, que não deve ser

eliminado, mas simplesmente observado e ouvido, conservando-lhe

a "vida". Vida ins tinti va, vida mai s s in toni zada com a psique

inconsciente. E foi isto que João Bobo intuitivamente, sem

sabermos o porquê, "soube" levar em consideração.

Os irmãos chegam então no castelo, e nele jaziam

seres adormecidos ou estranhos; não havia indícios de "nor­

malidade", mas cavalos petrificados e uma porta de três tran

cas onde se podia avistar, através de uma janelinha, um "ho

mem cinzento", que não fala e só atende quando o chamam pe­

la terceira vez.

Mundo estranho este. Geralmente, ao sermos trans

portados para este mundo, acontecem coisas nas quais não p~

demos entender racionalmente mas simplesmente vivenciar, ou

deixar-se levar pelo instinto e pela intuição, sendo que se

res da natureza ou sobrenaturais (o homem cinzento) indicam

caminhos, impõem tarefas que, ao serem vencidas, proporcio­

nam a redenção de algo antes enfeitiçado, transportando as

Page 61: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

49

figuras centrais da história para uma situação nova de en -

contro com o elemento oposto (feminino e masculino). A par-

tir daí será possível também que as figuras centrais ocupem

a posição de relnar, ao assumir o cargo de rei após a morte

do pai da princesa.

Devemos considerar alguns dos principais simbo1is

mos presentes nesta história:

o n 9 três, que aparece várias vezes nesta histó -

ria, geralmente é relacionado com movimento, dinamismo. De-

pois da unidade (1) e do dualismo (2), surge o três que po­

de ser a resolução do conflito colocado pelo dualismo ou dua

1idade, ou seja, a síntese. O "três" aparece em vários mo-

mentos: três irmãos, que encontram três animais, que se de­

param com uma porta com três trancas e u~ homenzinho que só

atende ao terceiro chamado e lhes indica três tarefas, sen-

do que na terceira João Bobo tem que descobrir qual dentre

as três irmãs é a mais nova.

Com relação às tarefas propostas na lápide, havia

três, dentre elas, apanhar o maior número de pérolas, sendo

esta associada a uma pedra preciosa que se encontra escondi

da dentro de uma ostra no fundo do mar. A "jóia oculta" -e

difícil de ser encontrada, ainda mais no musgo, como a his­

tória descreve.

A pérola também tem sido associada com a "alma hu

mana", e nos textos alquímicos é associada à "pedra filoso-

fal".

A segunda tarefa ou etapa era encontrar a chave.

O intrumento que "abre" portas, que permite observar ou in-

Page 62: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

50

gressar em algum espaço antes oculto, secreto. Pois bem,com

a chave, estamos de posse de um instrumento que nos permite

desvendar algo secreto, nuo visto, ou seja, o lado incons -

ciente que abrange todos estes significados que acabamos de

mencionar. Esta "chave" pode ser encontrada quando os pa-

tos mergulharam no fundo do mar. ~

O mar geralmente e asso -

ciado ao oceano interior, é a fonte da vida porque nele ha­

bitam vários seres e plantas, corno também pode ser o final

da mesma vida, quando neles somos jogados, não sabendo corno

sobreviver a ele (o que requer forças e saber nadar para não

ser tragado pelas águas, frente aos fenômenos naturais intem

pestivos). Mergulhar no fundo do mar significa entrar nes­

te mundo misterioso, oculto pelas águas, o que também se as

socia à inconsciência.

A chave no fundo do mar - ou seja, aquilo que des

venda o segredo -, encontra-se dentro de nós mesmos, no mar

da inconsciência. ~ buscada por um pato, o animal que vive

na terra e na água, um habitante e mediador entre os dois

mundos, consciente e inconsciente.

E, por fim, o filho mais moço acha a filha mais mo

ça, com a aj uda da abelha que identifica o mel na boca da mu

lher.

O mais moço ou a mais moça correspondem, de acor­

do com os preceitos psicológicos, a uma fase onde não se re

siste tanto às necessidades básicas instintivas. Quanto mais

moço, mais o ego encontra-se em formação e, portanto, está

menos cristalizado e mais próximo dos instintos.

Page 63: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

51

o mel tem significado de uma subst5ncia que tem

efeito curativo (sendo receitado como rem6dio, fortifican -

te) assim como uma riqueza natural, já que 6 resul tado de um

misterioso processo de elaboração das abelhas.

Tudo isso se passa num castelo, cenário onde se

resguardam tesouros, armas, reis, rainhas, ou seja, uma for

taleza onde reside a riqueza e onde as decisões são tomadas

atrav~s do rei que nele habita.

E, finalmente, o casamento, símbolo da união dos

opostos que tem sido associada, de acordo com a teoria jun-

guiana, à individuação, ou seja, a Íntima união e concilia-

ção interna entre o feminino (associado aos sentimentos e in~

tintos) e masculino (ou o espírito e concepção de id~ias).

A partir do casamento ou união, o João Bobo pode exercer a

função de rei, em conseqüência da morte do pai da moça. Ele

~ a figura de transição que irá garantir a sobrevivência do

reino que dele depende, segundo as sociedades antigas.

Von Franz nos diz:

"Em muitas sociedades primitivas, a prosperidade

de todo país depende da sanidade física e psíquica do rei:

se ele se torna impotente ou doente, ele tem que ser morto

e um outro rei tomar o seu lugar, um novo rei cuja saúde e

potência garantam a fertilidade das mulheres e do gado, ta~

to quanto a prosperidade de toda tribo" (Von Franz, 1981,p.63).

A autora refere-se ao rei como a representação do

conteúdo simbólico central e dominante da consciência cole-

tiva, sendo compa!"ado tamb~Jil ao símbolo do ~e..t6, que, de aco,E.

do com a teoria junguiana, significa o centro auto-regula -

Page 64: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

52

dor du psique coletiva, do qual depende o bem-estar do indi

vrduo. Recorrendo ã História, saber.ios que o rei era fre­

qUentemente associado a representaç50 religiosa de Deus. De

acordo com esta concepção, o rei traz em si o princípio di­

vino, dele depende a sorte do reino, e dar ele dominar urna

certa atitude coletiva.

João Bobo, portanto, representa a nova atitude con~

ciente, que é capaz de entrar em contato com o feminino e

renovar a vida consciente, libertando-o da petrificação ou

da paralisação, o que é representado pela libertação das pe~

soas do castelo que haviam virado pedra. Para realizar es­

ta façanha ele necessitou do auxílio da parte instintivaani

mal, ou seja, é como se ele tivesse que se guiar pelos pró­

prios instintos, o que possibilitou que vivenciasse urna ex­

periência Íntima bastante profunda.

O segundo conto que vamos relatar resumidamente

chama-se "Almofadinha de Ouro", coletado por Luís da Câmara

Cascudo, no Rio Grande do Norte.

~ importante ressaltar que se encontram neste con

to os mesmos motivos de "Pele de Asno", de Perrault, e de

"Maria Borralheira", da versão de Grimm e Perraul t.

Os motivos referem-se ao episódio do baile, do anel

escondido no bolo, aos três vestidos, etc., o que confirma

a tese de que a maioria dos contos de encantamento ou de fa

das recolhidos aqui no Brasil é proveniente da Europa, embo

ra eles tenham sofrido algumas adaptações.

Vamos então ao conto:

Page 65: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

S3

"fita uma ve.z uma ói.tha bonita e. gltac.io.6a, óilha ú.n.<..

c.a e. que. te.ve. a inóe..tic.idade. de. óic.alt oltóã de. mãe.. Se.u pai

c.a.6Ou de. novo c.om uma viú.va que. tinha uma ói.tha óe.ia e. oltg~

.tho.6a, e. c.ome.çou a obltigalt a e.nte.ada a óazelt tltaba.tho.6 pe..6~

do.6, c.omo .timpalt a c.a.6a quando o maltido e..6tava óolta viajan­

do.

A moc.inha e.ntão vivia amaltgultada pOIt .60óltelt todo

o tipo de. pltivaçõe..6 e. in.6u.tto.6, e de.c.idiu então Óugilt daqu!

.te pultgatóltio.

Ante.6 de .6ailt de c.a.6a, c.ontou c.om a ajuda de uma

ve.thinha que lhe óalou do c.aminho do Itio e lhe plte.6ente.ou c.om

uma almoóadinha de OUItO que elta enc.antada.

Ve.ixando a c.a.6a, a moça andou muito.6 dia.6 c.om óo­

me e .6ede e. enc.ontltou uma oc.upação num palâc.io vi.6to.6o, Ite­.6idênc.ia de. um pltlnc.ipe. vi.6to.6o.

A moça, palta não de.6pelttalt .6u.6peita.6, .6ujou OitO!

to e. andava ~ão imunda que .6Ó lhe deitam o .6eltviço de tltatalt

da.6 galinha.6 e do.6 poltC.O.6, doltmindo no óundo do quintal, num

qualttinho e..6C.Ulto e i.6olado do palâc.io.

Foltam anunc.iado.6 então tltê.6 dia.6 de óe..6ta.6, o que

oc.a.6ionou que a.6 moça.6 da c.idade .6e. pltepalta.6.6em óazendo Itou

pa.6 nova.6, de..6 ej ando que o pltlnc.ipe .6 e engltaça.6.6 e c.om uma de la.6 e. c.a.6a.6.6e. pOIt oc.a.6ião da.6 óe.6ta.6.

Chegando o pltimeilto dia, todo.6 0.6 empltegado.6 do p~

lâc.io óoltam ve.1t o baile, e óic.ando a moça .6ozinha, tomou um

banho, penteou-.6e e. pediu ã almoóadinha de. OUItO que lhe de! .6e. um ve.6tido C.OIt do c.ampo c.om .6ua.6 ólolte.6 e. uma c.altltuagem

c.om c.oc.heilto.6.

Apalte.c.eu o pe.dido e a moça ve.6tiu-.6e. e c.ompalte.c.eu -a óe..6ta c.au.6ando a.6.6omblto pela .6ua 6oltmo.6ulta e. lindeza do

tltaje. O pltlnc.ipe .6Ó dançou c.om ela e, c.omo lembltança do e!!. c.ontlto, deu-lhe um anel. Peltto da meia-noite. a moça de.6ap~

Itec.eu, óugindo palta c.a.6a onde tltOc.ou de Itoupa, o ve.6tido e o c.altlto .6umiltam.

No dia .6eguinte, c.om um ve..6tido C.OIt de malt c.om to

do.6 0.6 peixinho.6, ac.ontec.eu a me.6ma c.oi.6a, e o pltlnc.ipe, en

Page 66: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

S4

cantado com ela, deu-lhe un~ b~inco~, e ante~da meia-noite

a moça de~apa~eceu do baile e vóltou pa~a ca~a, 6icando ~u­

ja e 6eia como habitualmente apa~ecia ao~ olho~ de todo~.

No te~cei~o dia, o me~mo ~ucedido. Ve~ta vez o ve~tido e~a da co~ do ceu com todo~ o~ ~ eu~ a~t~o~, e o p!Ú.n­

cipe p~e~enteou-lhe com um cola~ e 6icou t~i~te quando ela

de~apa~eceu ante~ da meia-noite.

Pa~~ado~ o~ t~ê~ dia~, ~Õ ~e 6alava na cidade da

moça de~conhecida, com o~ t~ê~ ve~tido~ mai~ bonito~ do mun do. O p~lncipe p~ocu~ou-a como um cego p~ocu~a a luz e não

a encont~ou em pa~te alguma. E~tava tão apaixonado que ado! ceu na cama, não que~endo ~e alimenta~.

Um dia a moça di~~e ã p~ince~a-velha, mae do p~l~

cipe, que que~ia 6aze~ um bolo pa~a o p~lncipe doente. A p~~ ce~a achou g~aça, ma~ tanto a moça pediu e ~ogou que obteve

-o con~entimento. P~epa~ou-~e, 60i a cozinha e 6ez um bolo dou~ado, colocando dent~o da ma~~a o anel que o p~lncipe lhe

de~a de p~e~ente na noite do baile.

O p~lncipe acabou cedendo ao~ pedido~ da mãe pa~a

come~, levou um pedaço de bolo ã boca e ~epa~ou num objeto que apa~ecia na pa~te ~e~tante do p~ato. Puxou com o bico

da 6aca e ~econheceu o anel. Comeu todo o bolo e, melho~a~ do, pediu out~o bolo 6eito pela me~ma moça. A moça 6ez ou­t~o bolo e ne~te mandou o b~inco, que o p~lncipe achou e 6~

cou Qe~to de que a moça e~tava po~ pe~to. Pediu out~o bolo e ne~te veio o cola~. Então, ~em te~ mai~ dúvida~, di~~e ã ~ua mãe que manda~~e ao ~eu qua~to quem 6ize~a o~ t~ê~ bo -lo~. A p~inQe~a. ob~igou a moça a muda~ de ~oupa, P~6MmM-~e pa~a ti~a~ o mau-chei~o do galinhei~o, e di~~e que ~e ap~e­~enta~~e ao ~eu 6ilho.

A moça ~ubiu a e~cada com a almo6adinha de o~o na -mao, e a~~im que bateu na po~ta, pediu que lhe apa~eQe~~e

no co~po o ve~tido do te~cei~o dia. Quando a po~ta ~e ablÚU, o p~lnQipe a ~eQonheceu, e levantou-~e da cama bonzinho de ~aúde, e chamando a mãe, mo~t~ou-lhe a moça, que utava mai~ bonita do que na~ noite~ pa~~ada~. Ca~a~am-~e imediatamen-

Page 67: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

55

te e 6o~am 6elize6ati a mo~te".

Esta história se assemelha muito, como já disse -

mos, a "Pele de Asno" e "Gata Borralheira".

Iniciamos a história com a figura da madastra,que

segundo Von Franz representa a mae temível, que bloqueia o

desenvolvimento mais elevado do personagem principal.

Como se sabe, a criança, no início de se desenvol

vimento, estabelece uma unidade físico-psicológica com a mae.

No decorrer de seu desenvolvimento, inicia-se o processo de

separaçao para a formação de uma personalidade autônoma,que

pode ser bem ou malsucedida para a criança. Portanto, du -

rante esta fase de desenvolvimento, a imagem que a criança

constrói acerca de sua mae será para ela, conforme a situa­

ção, positiva ou negativa. Neste último caso, o conto mos­

tra ã criança como lidar com estes sentimentos negativos,o~

de, por exemplo, de acordo com o conto relatado, vemos a mo

ça buscar na figura da velhinha o lado acolhedor da mae,que

a ajuda e a aconselha a sair pelo mundo na posse de uma al­

mofadinha de ouro.

Por que um pai tão ausente? Podemos supor que a

ligação com a mae durante a primeira infância é sempre mais

estreita: a mãe alimenta, cuida, enfim ela assume mais o la

do provedor, aspecto este r~forçado até hoje pela sociedade.

A velhinha e a sua almofadinha de ouro são, por -

tanto, um ponto de apoio do qual a criança pode se assegu -

rar para adquirir confiança de que algo novo e interessante

poderá acontecer. Ou seja, seguir o caminho do rio - bus -

car meios para sair desta situação ruim, de carência, de in

Page 68: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

S6

veja, de cobiça, etc.

A moça que é a figura central, aceita o desafio,e

ao aceitar trabalhar no castelo, vivendo e lidando com a su

jeira (galinheiro), se sujando inclusive, almeja passar des

percebida pelas pessoas que vivem no castelo.

Torna-se "feia" e viver quase completamente na s~

jeira e no esquecimento - o que pode representar o lado ob~

curo e oculto - pode proporcionar vivenciar o seu oposto,i~

to é, ser bonita e notada por todos, inclusive pelo lado mas

culino.

o banho é o ponto de transição. ~ a possibilida­

de de sair do mundo obscuro e entrar no luminoso através de

uma transformação. O "banho", nos tempos antigos, sugeria

a possibilidade de cura pelos velhos feiticeiros da era paga.

Os vestidos aparecem como elementos da natureza em

três versões: vestido cor do campo com suas flores (terra),

vestido cor do mar com todos os seus peixes (água), vestido

cor do céu com todos os seus astros (ar), e, por fim, o bo­

lo dourado que a moça oferece ao príncipe (fogo). Percebe-se

claramente que os quatro elementos encontrados na natureza

encontram-se representados na roupagem da moça e no bolo.

Ao atrair o príncipe, ela ganha um anel. Von Franz

( 1981 ) fala-nos que se um homem dá um anel a uma mulh~r,

ele expressa, saiba ou nao, o desejo de ligar-se a ela,e de

tê-la ao seu lado. O anel, portanto, significa um elo, re­

presenta estar unido a alguém.

Em seguida, o príncipe presenteou-a com um brinco

Page 69: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

57

e, por fim, deu-lhe um colar cuja significação nos remete à

idéia de estabelecer um vínculo, já que ornamentam e perma­

necem junto ao corpo da moça.

o bolo neste caso, logicamente, é o alimento que

nutre nao só o corpo mas também o espírito, sobretudo por­

que se encontra no seu interior o símbolo daquilo que une

dois personagens: o anel, o brinco e o colar.

Finalmente, desvendando-se o mistério que rondava

a moça que encantou o príncipe, ambos se casam, o que signi

fica a união dos princípios feminino e masculino e o final

da história, ou o fim do caminho.

. ~. Portanto, o prlnclplo feminino ou receptivo e o

masculino ou criativo se unem de forma harmSnica. Isto acon-

teceu por ter a figura central optado por seguir o caminho

ajudada pelas forças mágicas (almofadinha de ouro), cujos

"acontecimentos nao são compreendidos racionalmente, pois f~

gem à lógica. ~ o mundo interior, subjetivo, onde se con -

frontam extremos possíveis, onde um pólo pode se transfor -

mar no seu contrário: rico/pobre, fei9/bonito,sujo/lfupo,etc.

o conto de fadas usa este processo de transforma­

çao de um pólo a outro, transportando-nos para o mundo da

p~~eo(alma) logu~(sabedoria), onde é possível experimentar

toda uma riqueza de simboli~mos, que provocam uma modifica­

ção interior representada pelas figuras principais da hist~

ria. Melhor dizendo, no final do primeiro conto, João Bobo

não é o mesmo João do princípio da história, algo sem dúvi-

da mudou. O mesmo ocorre com a moça da "Almofadinha de Ou-

ro" ...

Page 70: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

CAPITULO 3

o CONTO DE FADAS PARA CRIANÇAS

3.1. Por que relatar contos de fadas para crianças

Dentro deste tópico, temos as posições de vários

autores, que argumentam da seguinte forma:

Segundo Bettelheim, os contos de fadas oferecem

exemplos tanto de soluções temporárias, quanto permanentes

para dificuldades prementes:

"Esta e exatamente a mensagem que os contos de

fadas transmitem ã criança de forma múltipla: que uma luta

contra dificuldades na vida e inevitavel, e a parte intrín

seca da existência humana -mas que se a pessoa nao se in-

timida mas se defronta de modo firme com as opress~es ine~

peradas e muitas vezes injustas, ela dominara todos os obs

taculos e, ao fim, emergira vitoriosa" (Bettelheim, 1988, p. 14).

O autor declara ainda que em contraste com as his

tórias "fora de perigo", onde não se mencionam nem a morte

nem o envelhecimento, ou seja, os limites da nossa existên

cia, os contos de fadas confrontam a criança com os predi­

camentos humanos básicos. Além disso, oferecem também no­

vas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia

descobrir por si só.

Outro ponto colocado por Bettelheim é o de que

os conto~ também nos falam a linguagem de símbolos, como já

discorremos no capítulo anterior, representando conteúdos

inconscientes que apelam à nossa mente consciente e incons

ciente.

Page 71: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

S9

Bettelheim afirma ainda que os contos proporcio­

nam ã criança colocar alguma ordem no caos interno de sua

mente de modo a poder entender-se melhor. Este "sentido or

denador" ao qual ele se refere condiz com o período duran­

te a infância, onde desde o nascimento a criança participa

da vida psíquica de seus pais, ou seja, ocorrem-lhe fanta­

sias de estar fundida com sua mãe, corno se ambas formassem

urna unidade. Sendo assim, não existe urna nítida diferen -

ciação consciente entre sujeito (criança) e objeto (mãe).

Na medida em que a criança, no curso de seu desenvolvimen­

to, vai fortalecendo o ego (ou o "eu"), dá-se início então

o processo de diferenciação, onde ela passa a integrar gra

dativamente, no ego consciente, aspectos antes indiferen -

ciados·ou inconscientes, traçando um "percurso simbólico"

que se assemelha em muito ã "trajetória do herói" nos con­

tos.

o que ocorre realmente é que o conto tende a ofe

recer ã criança, na forma de imagens simbólicas, possibili

dades típicas e projetos para sair vitoriosa desta luta.

Estas imagens simbólicas presentes nos contos são

condizentes com as estruturas perceptivas e cognitivas da

criança em idade pré-escolar.(como veremos no próximo caPi·

tulo) , já que nesta fase ela ainda não desenvolveu plena­

mente as estruturas mentais operatórias formais.

Nesta fase, a criança ainda não tem formulados

os conceitos objetivos de "bom" e "mau", mas os percebe de

acordo com sua própria experiência, avaliando-os com o sen

timento.

Page 72: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

60

Comp]clllenLmdo ('0111 urna citnção do l:ivro de Elisa

Hilty:

,,~ por iS80 que o conto de fada ê importante na

pducaçio infantil. Ela nio entende as coisas explicadas

56 no verbal ( •.. ) as explicaç~es racionais n;o ajudam.

Com o conto de fada pode-se dar a imagem das dificuldades

da vida sem sobrecarregi-Ia e sem tirar a vontade de viver,

porque o conto de fada e sempre otimista e ajuda o mais

fraco" (Hi1ty, 1988, p. 23).

~ O que ohservamos nos personagens principais

dos dois contos de fadas relatados: um deles estava ameaç~

do por um complexo de inferioridade (João Bobo) e o outro,

pela inveja e perseguição def1agrada por sentimentos nega­

tivos da madrasta (a moça da "Almofadinha de Ouro"). Ambos

sarram pelo mundo e viveram urna s~rie de experi~ncias e t~

refas que conseguiram ser suplantadas ou transfOl1TIadas atra­

v~s do auxrlio de ajudantes, sejam eles animais (como na

"Rainha das Abelhas") ou mágicos (a "Almofadinha de Ouro").

A figura deste ajudante ~ importante para a cri­

ança pequena porque ela ~ sempre dependente de nós e de nos

sa ajúda, necessitando que a confortemos e a ajudemos a en

contrar sardas. Da mesma forma que nós adultos, ao nos en

contrarmos numa situação de extrema fragilidade, necessita

mos de ajudantes, sejam externos ou internos. Ouvir a nos-

sa voz interna, aquela que provém da nossa experiência,dos

nossos instintos e sentimentos, dependendo da situação, ou

sermos ajudados por outras pessoas, pode-nos ser útil para

encontrarmos um caminho ou uma sarda para urna situação di-

fícil.

Page 73: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

61

Citamos a opini50 de Bettelheim (1988) sobre o

significado dos contos de fadas para crianças e concorda­

mos com elas. Marie Louise Von Franz t3mb~m corrobora o

que já relatamos anteriormente:

"Quando se conta história de fadas para as crian

ças, elas se identifjcam ingênua e imediatamente e captam

toda a atmosfera e sentimento que a história contem. Se a

história do pobre patinho e contada, todas as crianças que

têm complexo de inferioridade esperam que no fim elas tam­

bem se tornem uma princesa. Isso funciona exatamente como

deveria ser: o conto oferece um modelo para a vida, um mo­

delo vivificador e encorajador que permanece no inconscie~

te contendo, todas as possibilidades positivas davida" (Von

Franz, 1981, p. 74).

A criança pequena compreende, nao predominante-

mente de forma racional, mas intuitiva, e embora estas his

tórias não sejam reais, trazem em seu bojo alguma verdade.

Os fatos são envolvidos por uma atmosfera mágica e podem

se referir a uma experiência interna e de desenvolvimento

pessoal, pois os contos de fada exprimem, atrav~s de uma

forma imaginária e simbólica, etapas significativas que en

volvem o crescimento e a aquisição de uma existência inde-

pendente.

Neste sentido, com base naquela id~ia desenvolvi,

da anteriormente, o conto segue uma estrutura semelhante a

um ri tual iniciático, onde .~s provas devem ser vencidas ein

função de galgar uma outra etapa ou uma nova fase de exis­

tência marcada pelo ingresso ao mundo adulto.

Sendo assim, podemos afirmar que os contos retra

tam, atrav;s de seus personagens e acontecjmentos, os nos-

Page 74: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

62

50S próprios teJJlores e :incapacidades contra os quais tere-

mos de lutar, assim como os animais, as velhinhas ou os ob

jetos mágicos reprl'~cntam as nossas capaddadcs e possibi-

lidades internas, conhccidas ou não, que poderemos obter

para superar nossas difjcu]dades.

o psicólogo junguiano IIans Dieckmann exemp1ifica

brilhantemente esta idfia que acabamos de mencionar:

"Toda pessoa experimenta, após uma etapa de de­

pend~ncia materna, a primeira autonomia e desligamento na

fase da teimosia; toda pessoa tambem experimenta na puber­

dade o despertar da sexualidade e a necessidade de relacio

namento com o outro sexo. Cada um tem a experiência da pr~

bJemática da meia-idade, quando a vida declina e deveria

ir mais em profundidade do que que em superflcie.E cada um

vivencia a morte, com o problema da transiçao para outro

mundo ou outra forma de exist~ncia, do qual nada sabemos~

Quando enfrentamos tais situações novas e muitas vezes an­

gustiantes, tentamos, em primeiro lugar, formar uma imagem

das eventuais possibiljdades como poderiam ser, como do­

miná-las, quais os problemas a resolver e quais os perigos

a enfrentar ( ... ) assim a compreensão de um conto de fada

pode ter várias facetas, o psicológico e somente parte dos

possíveis c?nteúdos, e em cada fase da vida um símbolo po­

de ser preenchido por outro conteúdo concreto, adicional.

Ganha-se, dessa forma, novo e" mais aprofundado sentido e

alargamento da compreensão" (Dieckmann, 1986, p. 16). /

Algumas pessoas podem argumentar que a idéia de

um "final feliz", assim como a promessa de que a figu:ra I

principal tornar-se-á a dona absoluta de um reino, concebi

da na maioria dos contos de fadas, produzirão na criança

uma concepçao ilusória e otimista de vida. Portanto,estas

fantasias poderiam ser facilmente extinguidas, já que se

Page 75: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

63

constata que a mesma ~ pontuada por fr3cassos e ~xitos que

nem sempre levam a um "final feliz".

Entretanto, o conto se passa num universo também

mágico, onde só podemos visitar com o nosso pensamento, e

o mundo que se mostra através dele é o mundo dos nossos so

nhos, fantasias, medos, e limitações que podem ser vividos

ou confrontados de acordo com a situação, quando aceitamos

os riscos que eles contêm. Não os enfrentaremos sozinhos

mas com ajuda de alguém ou de uma força que advém de ...

nos

mesmos, mesmo que para isto devamos satisfazer as . -eXlgen-

cias impostas por estas forças ou ajudantes. Sendo assim,

existe uma esperança real que se apresenta ã criança de que

o reino será dela, e que será r.ecessário que o aconchego

do lar seja deixado para que ela efetue esta conquista ou

esta busca de seu próprio reino, no qual ela reinará.

Esta ansiedade, possivelmente provocada pelo aban

dono do lar, da segurança inerentemente proporcionada pelo

afeto da família, é compensada ou substituída pela união

do príncipe com a princesa, do elemento masculino e do fe-

minino, ou seja, por uma relação onde o parceiro ou a par-

ceira ideais foram encontrados e, conseqüentemente, aquela

ansiedade inicial pôde ser transcendida.

-Portanto, "o final feliz" sugere a criança que

todas estas tentativas para superar o medo, vencer os desa

fios, enfrentar forças que personificam conteúdos negati­

vos ou sombrios podem ser coroadas de êxito,dando-Ihe o es

tímulo necessário para que ela encontre saídas frente a es

tes obstáculos.

Page 76: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

64

Ao Jmaglnanllos, nas dU;JS 11jstóyjas que relatamos,

o castelo no qual J050 Robo e seus irm50s se encontravam,

onde havia animais petyjficados, um homenzinho estr3J1ho que

-nao falava, e pessoas aJoJ"mecidas, pode-se intuir ou sen-

tir que li o tempo parou, como se o curso natural da vida

houvesse parado ou sido interrompido, sinal de que algo não

ia bem.

o mesmo podemos sentir na história da "Almofadi-

nha de Ouro", onde a moça renegada e maltratada pela ma-

drasta sai de casa e vai trabalhar num castelo, onde assu-

me uma aparência suj a e mal chei rosa. f corno se através des

ta imagem pudéssemos perceber que o abandono e o complexo

de rejeição a que o personagem foi submetido adquirissem

forma, passando a fazer parte de seu cotidiano. Aqui, a

transformação e a viv~ncia do lado limpo e luminoso eram

necessirias para que ela passasse a ser o que realmente era:

um ser desejivel.

Neste sentido, o conto de fadas lida com as pol~

ridades no transcorrer da história, ou seja: o bobo vira

esperto, o feio se torna bonito, etc. Estas nolaridades in

clicam que aquela atitude consciente inicial p6de ser trans

formada no seu extremo oposto, possib~litando a vivência

de experiências novas, enriquecedoras.

I

O mesmo se apliça ao nosso dia-a-dia, onde tam-

bém lidamos com situaç5es extremas: um dia estamos bem, no

outro estamos mal, e somos quase que impelidos a conviver

com estas situaç5es q~e nos levam a refletir e rever posi-

çoes.

Page 77: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

65

Os contos de fadas, ao retratarem estas polari­

dades, t~m recebido ainda muitas crítjcas que dizem respei

to ã sua crueldade (ao relatar temas como a morte, person~

gens excessivamente maldosos, etc.).

Com relação ã crueldade presente nos contos, des

tacamos a opinião de Jesualdo sobre este assunto:

"Em livros como os do argentino Germãn Berdiales

e do mexicano Antoniorrobles, ambos autores de

infantil' ( ..• ) li duras críticas ã literatura

'literatura

tida por

'clássica'. 'Raia pelo inconcebível', dizem, que se dêem ã

criança contos como 'Pele de Asno', história de um rei que

enviúva e pretende casar-se com a própria filha; ( .•. ) ou

a de Chapeuzinho Vermelho, conto espantoso de um lobo que

devora a velhinha e a sua neta ( ••. ) (Jesualdo, s~d. p. 41,

43) •

O autor ainda nos aponta que estes críticos se

aterrorizam com tais coisas, mas no entanto, será que sen-

tem o mesmo horror ante as centenas de crimes bárbaros que

aparecem nos jornais?

Será que é necessário suprimir ou falsear os con

tos de fadas, para oferecer ã criança histórias repletas

apenas de boas intenções, onde todos os personagens são rum veis e bons,? Será que esta atitude não será falsear a rea­

lidade, retratando-a de forma pueril? "

A psicóloga junguiana Vera Kast, no seu depoime~

to a uma rádio suíça sobre contos de fadas, relata-nos que

nos anos 70 houve uma época em que censuraram o lado bru­

tal dos contos, até que as crianças reagiram. Ela acredita

Page 78: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

66

que as crianças precisam ter contato com esta crueldade,

lbdas as devidas proporções (no caso, o conto "Barba Azul"

seria uma cxccç50, j5 que o clima de terror exposto na his

t6ria 6 excessivo). Diz a psic610ga que censuraram tempo-

rarialllente os contos, mas os notici5rios e os filmes vio-

lentos continuaram a ser transmitidos.

Portanto, não é banindo o "mal" ou o "lado mons-

truoso" dos contos de fadas que se impedirá que a criança

tome contato com o lado negativo ou sombrio da vida. Mesmo

porque a cri.mça também carrega dentro de si o seu "mons­

tro", ou suas fantasias negativas, e caso não seja estimu­

lada a [alar sobre elas, não poderá conhecê-las e nem en­

tendê-las, o que acarretaria um sentimento de impotência

face ~s suas piores ansiedades.

Ao escondermos a "face cruel" existente nos con-

tos da criança, estaremos transmitindo-lhe uma visão unila

teral e limitada da vida, ou seja,não lhe daremos oportuni

dade de prestar atenção aos seus desejos e fantasias mais

fntimos, aqueles oriundas do nosso lado obscuro, inconsci-

ente. Ao lhe oferecermos hist6rias com uma visão de mundo

objetiva, racionalista, equivocada e inadequada, não a es­

taremos alimentando, também, com imagens e hist6rias que

dão algum sentido ~s suas emoçoes.

Segundo Hans Dieckmann,

"Com base num catalogo tão macabro, não é de ad­

m1rar que sempre houve esforços para banir o conto de fada

do quarto das crianças, ou ao menos, quando fosse posstvel,

purifica-lo da crueldade para oferecê-lo às crianças em ver

Page 79: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

67

são mais amena. O que e de estranhar e que tais esforços

nunca foram coroados de êxito. Sempre fracassaram, pelo f~

to de que as próprias crianças não estavam muito interessa

das nessas formas purificadas, e ansiosamente liam o texto

arcaico e cruel quando conseguiam apoderar-se dele" (Diec~

mann, 1986, p. 116).

E importante lembrar que esta crueldade nao acon

tece só com os personagens "malvados", e nem só para os i~

gênuos e desprevenidos, mas também como provação imposta

ou causada pelo próprio herói ou heroína das histórias.

Nas histórias que relatamos, percebemos que a moça de "Al­

mofadinha de Ouro" também esteve sujeita a situações desa­

gradáveis e até cruéis, como o tratamento que recebeu de

sua madrasta.

Resta-nos ainda a dúvida se esta "crueldade" real

mente leva a criança ã perplexidade, ou se não passa de um

temor manifestado pelos adultos perante o prazer manifest~

do pelas crianças frente ã "violência" dessas histórias.

O que os adultos nao se dão conta é que, da mes-

ma forma que as crianças observam "atos cruéis" nos contos,

elas também contemplam os "atos humanitários", como salvar

a vida de alguém, não matar os animais, etc.

E importante frisar que o ser humano, como ser

natural, não contém só o lado bom e protetor, mas também o

seu lado cruel, temível.

Tomando como exemplo a nossa realidade, a cruel­

dade tem sido presenciada por nós brasileiros quase dia ria

mente. Basta sair pelas ruas ou ler e ouvir as notícias

dos jornais. Parece mesmo que ela já faz parte do nosso

Page 80: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

cotidi;lno, e ~s vezes chegamos mesmo a nao nos

m~ds CUJTl el~.

68

espantar

A diferença que h5, acreditem ou n30, é que nos

contos de fadas, e no universo imagin3rio dessas hist6rias,

hi resist~ncia contra essa crueldade, e ~s vezes ela ~ su­

plantada ou banida, coisa que dificilJnente tem acontecido

na vida real enfrentada diariamente por n6s, brasileiros.

Portanto, este aspecto cruel proclamado por al­

guns ~utoles ou pessoas revela, queiramos ou nao, uma das

facetas do llundo cm que vivemos, e é através da vivência e

do confronto dos personagens dos contos com estes aspectos

"degradantes" que se P(lSSl biJ j ta que a criança aprenda a

lidar com os mesmos.

Os contos têm recebjdo também outras criticas a

respei to do seu cariter inora] _i zante, onde o bem quase sem­

pre prevalece sobre o mal; ou seja, na luta entre o "persa

nagem bonzinho e ingênuo" e o outro "malvado e inescrupul~

50", este último na maioria das vezes sai perdendo.

Neste sentido, o conto nos propoe uma discu~são

sobre os princípios étjcos, já que levam a uma apreciação

de padrões de conduta suscetiveis de uma qualificação mani

queista.

Os personagens dessas hist6rias seguem um prinçf

pio de polarização: ou são boas, ou más; nao seguem um

meio-termo, ou nao sao ambivalentes, como somos todos na

realidade.

Para Bettelheim, a apresentação das polarizações

Page 81: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

69

rl e c a r ií t e r p L' r nd te ã c r i : 1 11 ç a c o III p r e ('11 d e r f a c i 1 me n t c a d i f e

rença entre ;JS (luas figllr:ls,a mií c a boa, ficando-lhe difí

c i I d j s t i n g ld - 1 a s c a s o c s t :J S f o s sem r e p r e S e n t a das c o m to -

(~as as r:olllplexirléldes liue caractcr:ÍZam as pessoas reais.

A16m disso- diz o autor - as escolhas das crian

ças não são hascadas no certo veJr.6lL.6 errado, mas sobre quem

lhe despertél sjmpatia ou :lntipatia. A criança se identifi

ca com o her6i ou a figura central, nao por causa de sua

bondade, mas porque a condição do her6i lhe traz um profu~

do apelo positivo.

Marie Louise Von Franz (198Sb), por sua vez, co­

loca que existem duas coisas que ditam o comportamento hu­

mano: o c6digo ético coletivo, que também se pode chamar

de 'superego freudiano, e a reação moral de cada indivfduo.

Além deste c6digo ético coletivo que somos obrigados a con

siderar, para não nos vermos em apuros, cada indivfduo po~

sui o seu pr6prio nível ético e forma de reagir.

Algumas pessoas já devem ter-se deparado com ou­

tras que insistem em acreditar que estão agindo da forma

certa, quando sabemos que podem estar prejudicando tercei-

ros. Cada um sempre tem um bom motivo para justificar aqui

lo que para outros seda um equívoco.

Poderíamos fazer ~m ligeiro percurso através da

hist6ria das religiões e das mitologias, que sempre tenta­

ram, i sua maneira, explicar a presença do mal. Foi atra­

vés dos mitos que o homem antigo personificou as forças no

civas da natureza, assim corno o medo ou o temor frente a

estas forças ainda incxpl icáveis do ponto de vista racional.

Page 82: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

70

Neste sentido, atrav6s da comoçio espiritual, o homem da-y

que]a 6poca projetava na natureza, atrav6s dos entes que a

representavam (gnomos, fadas, duendes), tudo o que lhe pa­

recia corno benc~rcio ou hostil, do ponto de vista subjeti-

vo.

Dentre as virias mitologias estudadas pelo te51~

go John A. Sanford, o "mal" era excmplifjcado seja de fo~

ma dualista ~ corno nas mitologias dualistas dos escandina-

vos, egípcios, e outros - seja na forma sintetizada as di-

vindades gregas são capazes de promover tanto o bem como o

mal.

Segundo esse autor:

"C ... ) em todos esses mitos podemos notar duas

m~nsagens. Primeir~, existe um poder maligno aut~nomo que

está acima do controle do homem; segundo, na vida existe

um equilíbrio de opostos: a luz é sempre antagonizada pela

treva~ Qua~to ma1S a luz (aspecto positivo) é enfatizada e

personificada pela figura de uma divindade benéfica, tanto

mais inevitável torna-se a encarnação do lado escuro num

deus (ou deusa) que é tio ruim e malevolente quanto a di­

vindade da luz é Doa e benevolente" (Sanford, 1988, p. 35).

Foi com o advento da tradição judaico-crist1ã que

as divindades ditas boas e más foram definitivamente disso

ciadas, sendo o mal ou o diabo, ou Sa tanãs, corno a Bíblia

apregoa - condenado e relegado a viver nos infernos, ou

nas trevas, o que exigiu que os adeptos dessa filosofia re

primissem e bloqueassem determinados padr8es de comporta-

mento ou mesmo pensamentos, pois caso contrário, ; seriam

considerados "pecadores", ou indígnos da providencia divi-

na, ou seja, "do reino dos céus".

Page 83: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

71

John Sanford lembra-nos que o diabo, por exemplo,

é representado na forma de cabra porque as divindades pa­

gãs das florestas apareciam sob esta forma. O casco cliva­

do pode ser visto como o casco de Pã, e seus chifres sao

como os de Dioniso. Entretanto, diz-se também que os chi­

fres do diabo têm sua origem num deus cornÍfero, adorado

numa religião da natureza da antiga Inglaterra, conhecido

como Wicca.

Havia outras divindades cultuadas na Inglaterra

que foram combatidas com a chegada do cristianismo, como

por exemplo, uma divindade feminina, a benéfica deusa da

cura e da fertilidade, e um masculino e benéfico deus cor­

nÍfero. Com a deflagração de um movimento para reprimir a

velha religião "Wicca" passou para o submundo e foi en­

tão que as bruxas com seus caldeirões e vassouras (instru­

mentos estes ligados às tarefas domésticas exercidas essen

cialmente por mulheres), tornaram-se figuras do folclore.

Com isto conclui-se que as divindades cultuadas nas anti­

gas religiões passaram a ter as suas funções absorvidas p~

10 cristianismo, de acordo com seu aspecto moral: Zeus,foi

sincretizado com o Deus judaico-cristão. Mas Dioniso, por

exemplo, deus do êxtase e do ~razer ilimitado, não teve e~

paço após a instituição da igreja, da mesma forma que Afro

dite, considerada deusa de ~ros e da união sexual.

Esses deuses e deusas negligenciados e rejeita­

dos, e as funções psicológicas que eles personificam foram

tornando-se objeto da repressão cristã e reapareceram no

folclore e na literatura.

Page 84: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

72

Do ponto de vista da psicologia junguiana, o mal,

ou a personificação deste, tem sido associado a aspectos

sombrios, negativos da personalidade.

Dizemos "negativos" porque a sombra, de maneira

geral, é tudo aquilo que faz parte de uma pessoa mas que

ela desconhece. Como enfatiza Jung, "a sombra é simples­

mente todo o inconsciente". E o inconsciente, como define

a escola junguiana, é dotado de aspectos criativos (quali­

dades do indivíduo que podem se desenvolver de acordo com

as condições externas e internas) e aspectos imaturos ou

inferiores (fraquezas, complexos reprimidos,

negativos, etc.).

sentimentos

:E importante notificar que a sombra refere-se nao

só a aspectos pessoais, mas também coletivos. Percebemos

quando um grupo ou uma nação está sendo dominada pela sua

sombra quando ocorrem manifestações racistas,ou surgem pr~

conceitos coletivos que levam aquele povo a criar um bode

expiatório.

Neste caso. a "sombra destrutiva" é projetada num

ser ou num grupo social, que representariam os "geradores

de todos os males".

Neste sentido, os contos explicam o "mal" de for

ma clara, assim como o desenvolvimento de forças boas, que

podem referir-se a aspectos individuais e coletivos. Como

ressalta ~1arie Louise Von Franz, não se percebe nos contos

de fadas uma maneira de lidar com o mal. Lida-se com ele

de uma forma ou outra, dependendo das circunstâncias: ora

Page 85: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

73

opondo-se a ele de forma resoluta, ora devendo-se aproxi-

mar dele indiretamente, ou mesmo fugir dele, o que leva o

personagem central a vivenciar situações novas que o levam,

no final, a uma renovaçao.

-De qualquer maneira, nota-se que se ve represe~

tados nos contos aspectos contraditórios, que nos levam de

um extremo a outro. E é justamente com esta contradição

que convivemos diariamente, quando se trata de tomar posi­

çoes frente a determinadas situações.

Neste sentido, assim como nos contos de fadas,

vivemos constantemente num conflito ético: uma coisa é boa

ou má, dependendo da posição privilegiada pelo indivíduo.

Há momentos em que pode ser interessante realizar aquilo

que "o coração manda" - privilegiou-se o sentimento. Em ou

tros momentos é preciso "ser realista, objetivo", priori-

zando-se a posição racional, ou a função pensamento. Ou en

tão, o que é bom para alguém pode ser mau para outro.

Portanto, o conflito ético, ou aquilo que é cer

to ou errado para um indivíduo ou para a coletividade, ten

de a ser relativizado de acordo com o momento.

E claro que se uma pessoa ou um grupo tem cons-

ciência da sua natureza ou potencialidade, assim como o co

nnecimento objetivo dos pros e contras de uma determinada

situação, a possibilidade de tomar uma atitude que lhe se­

ja benéfica é maior.

Recapitulando, então, a partir da santa inquisi

ção, aguçou-se o conflito ético. onde se julgava necessário não

Page 86: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

74

entrar num conflito s~rio com a sombra, mas neg5-la ou re-

primi-la. Portanto, as noções de "mal" e "bem" não se con

figuram por si mesmas; mas são relativas a um ponto de vis

ta seja cultural, individual ou religioso.

Com relação aos contos, fica-nos difícil carac-

terizar qual é o seu enfoque ético: às vezes os persona-

gens são levados a mentir para se "safar" de algo perigo-

50; outros adotam uma posição de confronto e, por fim, al­

guns podem se aliar às forças consideradas "negativas" e

transformá-las em positivas.

Segundo Von Franz:

"E por essa razão que os contos de fadas são tao

importantes. Neles encontramos regras de comportamento, de

lidar com essas coisas. Muito freqüentemente não se trata

de um assunto etico muito claro, mas de como se encontrar

um caminho de sabedoria natural" (Von Franz, 1985, p. 203).

Portanto, esta visão de que nos contos de fadas

é passada a mensagem de que se tem que ser bonzinho para

conseguir as coisas, é uma análise parcial. Primeiramente,

não existe um único comportamento válido para todos os cog

tos. Cada história se desenrolará de urna forma e o person~

gem principal agirá de acordo com as circunstâncias: -sera

esperto, corajoso, ou esperará o momento adequado, ou agi­

rá de maneira intuitiva ou de acordo com seus sentimentos,

enfim nao existe um comportamento padronizado em todos os

contos.

o conto de fadas diz à criança que o "mal" exis

te e que se deve ora confrontá-lo, ora simplesmente sucum-

Page 87: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

7S

bit frente a sua presença, para que esta força negativa

torne-se positiva, nem que para is'l6'sej am necessárias aI

gumas perdas e provações a fim de que seja possível viven

ciar um processo de emancipação.

Outra crítica que se faz aos contos refere-se ao

papel passivo e degradante reservado à mulher, como na

história que contamos ou mesmo na "Gata Borralheira", on-

de as mulheres sujeitam-se a trabalhos,~rçados como se ':'~ ,

impõe a uma criada. ... ,~:-

E claro que um adulto ou uma criança com o míni

mo de sensibilidade não ficarão impassíveis frente ao tra

tamento recebido ou imposto ao personagem, e certamente o

recriminarão podendo dizer, ou perguntar: "por que o obri

gam a fazer isto?"

Mas, a despeito dos contos serem extraídos de

representações culturais delineadas há no mínimo três sé­

culos, será que em nossos dias a mulher já se encontra

isenta de assumir o papel de faxineira e provedora do lar?

Não só sabemos, mas vivenciamos em uma socieda-

de ainda patriarcal, que a mulher de hoje ou assume os vá

rios papéis (mãe, tarefas domésticas, esposa, trabalhado-

ra remunerada, etc.), ou contrata alguém para fazê-lo,

salvo raras exceçoes.

E bom explicitar que nao compactuamos com este

tipo de postura ou atitude "machista", mas o que queremos

ressaltar é que não é o conto o principal veiculador de

uma moral, mas ele simplesmente traduz uma experiência vi

Page 88: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

76

vida pelas sociedades desde os tempos antigos. E claro que

ocorreram mudanças em alguns setores da sociedade ap6s os

movimentos feministas de libertação da mulher, mas esta

ainda vem sendo subjugada ao homem tanto do ponto de vis-

ta legal (conforme a legislação de alguns países), como

cultural, ao ser relegada também às tarefas domésticas.

Neste sentido, além de já termos explicitado

que a criança certamente também julgará determinadas si-

tuações e comportamentos considerados "aviltantes" por a.!

gumas pessoas, cabe ao educador, aos pais ou à pessoa que

veicula contos de fadas mediar se necessário, questões que

possam vir a surgir por parte das crianças acerca destes

t6picos apontados.

3.3. O mecanismo de projeção e introjeção de Melanie Klein

Dentro desta questão acerca da polarização do

bem e do mal percebida nos contos de fadas, descobrimos,

através da teoria de Melanie Klein (in Segal, 1975) acer-

ca dos mecanismos de defesa, subsídios para compreender

como a criança lida com sentimentos negativos e positi-

vos. As considerações abaixo são baseadas no livro de

Hanna Segal (1975).

De acordo com a: autora, j á no nascimen-to existe

ego suficiente para experimentar a ansiedade. lnicialmen-

-te o ego e amplamente desorganizado, embora, de acordo

com toda a fundamentação acerca do crescimento físico e

psico16gico, ele já possuia desde o começo uma tendência

Page 89: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

77

ã integração. Desde cedo, o ego tem uma relação com o o~

jeto primário, o seio, sendo este estágio dividido em duas

partes: o seio ideal e o persecutório. A fantasia do obje

to ideal funde-se com as experiências gratificantes de

amor e alimentação recebidos da mãe externa real, e é con

firmada por essas experiências, ao passo que a fantasia

de perseguição mescla-se, de forma semelhante, com expe­

riências reais de privação e sofrimento, as quais são atri

buidas pelo bebê aos objetos perseguidores.

A privação, portanto, se constituiria numa amea

ça de aniquilação do objeto ideal e do ego resultando na

ansiedade. Neste sentido, o ego desenvolve uma série de

mecanismos de defesa, sendo provavelmente o primeiro um

uso defensivo de introjeção e de projeção. Como medida de

defesa, o ego esforça-se para introjetar o bom e para pro

jetar o mau, ou o bom é projetado para mantê-lo a salvo

do que é sent~do como uma maldade interna. Portanto, em

situações de ansiedade a divisão é ampliada e a projeção

e introjeção são usadas a fim de manter os objetos perse­

guidores e ideais afastados o máximo possível um dos ou-,

tros, mantendo-os também sob controle.

Portanto, esta ordenação de experiência que ocor

re com o processo de divisão em um objeto bom e mau rege

o universo das impressões,:emocionais e sensoriais da cri­

ança, e constitui uma precondição da condição posterior.

Trata-se, segundo a autora citada, da base do que mais

tarde se torna a faculdade de discriminação, cuja origem

é a diferenciação primitiva entre bem e mal.

Page 90: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

78

Percebe-se que estas fundamentações de Melanje

Klein estão de acordo com Bettelheim, corno já descrevemos,

quando ele diz que a polarização em figuras más e boas ]lOS

contos de fadas permite à criança compreender mais facil­

mente a diferença entre as duas, o que seria mais diffcil

se estas qualidades fossem mescladas num mesmo personagem,

corno acontece na vida real.

Neste sentido, atrav€s de mecanismos de proje­

çao e introjeção destes aspectos bons e maus encarnados

pelos personagens dos contos de fadas, a criança tem a

possibilidade de ver espelhado ou refletido o que se pas­

sa em seu psiquismo, identificando-se ora com processos

destrutivos de um determinado personagem, ora com os cons

trutivos, corno requeiram suas necessidades momentâneas.

Conseqüentemente, a partir de todas estas colo­

caçoes, dentro da perspectiva apregoada pela psicologia

ou por estudiosos da mesma f que ,apesar das crfticas ca­

bfveis à prática de se relatar contos às crianças, perce­

be-se que algumas já "caducaram" frente às evidências e

às contra-argumentações de alguns autores. Outras não pr~

cisam buscar nos contos as "rafzes dos males sociais" ou

"exemplos excessivamente moralizantes" que proporcionam à

educação das crianças. Mas estas representações extrafdas

de realidades subjetivas e objetivas nada mais são do q~e

os reflexos das próprias contradições a que somos expos­

tos enquanto seres sociais. E o conflito €tico no qual s~

mos levados a considerar e avaliar constantemente de acor

do com a situação, visto que ignoramos o que seja o "bem"

Page 91: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

79

e o "m3]" em si mesmos.

r também com este cunflito étjco que a criança

se dcp:na quando em cont 3to com os contos de fadas, o que

impljca que a postura do "contador de histórias" é funda-

li:cntaJ para criar uma atmosfera propfcia, onde não ...

sera

dado ;:nfase nem reforço ao compor1amento dos personagens

"]1onzjnhos" em detrimento daqueles considerados "maus". O

jdeal é que o narrador seja um mediador, sem qualificar

personagens e situações de fOllna maniqueísta, o que propi

c:i aria que as imagens dos contos e seus personagens "fa-

lassem por Sl mesmos".

-' !

Page 92: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

A VOCAÇÃO PEnA~nGJCA DOS CONTOS DE FADAS PARA

A CRIANÇA EM IDADE PR~-ESCOLAR

Após discorrermos sobre as supostas orIgens dos con

tos de fadas, sua herança cultural, sua linguagem simbólica

que proporciona algumas leituras, dentre elas a de espelhar

aspectos do psiquismo, buscamos ao longo deste trabalho elu­

cidar a importância e as implicações de se relatar contos de

-fadas as crianças.

-Faltou abordar o seu papel dentro do contexto pre-

escolar e, neste sentido, temos que recorrer às considerações

até então formuladas por Piaget (1978~ e E.)acerca dos aspectos do

desenvolvimento infantil, do ponto de vista cognitivo-afeti-

vo, para situarmos melhor esta criança, que encontraria den-

tro do espaço educativo a possibilidade de desenvolver mais

eficazmente as suas potencialidades.

Destacamos a pré-escola e a criança em idade pre -

escolar por acreditarmos ser mais proeminente na primeira in

fância uma identidade maior entre afetividade e cognição; ou

melhor, são aspectos complementares, como sugere Piaget, que !

acompanham a criança no decorrer de seu desenvolvimento, mas

que encontram na fase pré-conceitual ou pré-operatória uma

incid~ncia maior. ~as é durante esta fase que se configura

em maior grau uma não-diferenciaç~o entre o mundo ffsico e

o mundo psfquico, que, segundo Piaget,

Page 93: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

81

"~ de se esperar que considere como VlVOS e cons-

cientes um grande numero de corpos que para nós -sao inertes.

~ este fenômeno que designaremos de anúnLómo" (Piaget, ]978~,p.139).

E durante esta fase pré-lógica que a criança dis-

poe de uma abertura maior para o "faz-de-conta", o "mágico"

j á que se encontra mais próxima da inconsc i ênc i a, visto que

o ego, nos primórdios de sua diferenciação, não está plena-

mente capacitado para estabelecer relações lógicas, racio-

nais e objetivas entre o mundo interior e o exterior.

Neste sentido, as crianças desta fase acabam por

se envolver mais inteiramente com as histórias de encanta -

mento e magia, identificando-se em maior grau com a sua lin

guagem simbólica imaginativa, já que a mesma não a sobrecar

rega intelectualmente.

A partir do momento em que a criança atinge a fa­

se operatória, por volta dos sete anos de idade, as estrutu

ras lógicas atingem uma maior maturação, e a partir daía es

cola, a sociedade e a própria criança passam a requerer mais

o exercício das suas capacidades lógico-racionais. Isto não

impediria que o conto de fadas pudesse ser um estímulo a e~

tas crianças, assim como aos adultos, de entrar em contato

com as suas imagens ricas, que refletem os aspectos do dq­

senvol vimento ps íquico as s im corno a possibilidade de se extrair

delas uma fonte de autoconh~cimento.

Portanto, apesar de nos dirigirmos mais especifi­

camente i criança em idade pré-escolar, algumas considera -

ções podem ser pertinentes também nas fases subseqtientes ,a~

sim como aos adultos que precisam "alimentar-se" destas his

Page 94: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

82

tórias no sentido de mobilizar a sua capacidade imaginativa,

ou mesmo de estabelecer um vínculo significativo com os sim

bolismos presentes nestas histórias que se conjuminam com

sua história pessoal e/ou cultural.

~, sem dúvida, um desafio buscar uma referência

nos estudos de Piaget acerca do desenvolvimento dos aspectos

cognitivos durante a infância, mas não menos significativo,

pois, sem dúvida, o autor se voltou para as pesquisas acer­

ca da função do pensamento ou cognitiva, e a emoção não oc~

pou um espaço maior nos seus estudos, apesar dele pontuar a

sua relevância. A despeito de o autor sustentar que o afe­

to e a inteligência são dois aspectos essenciais e insepar~

veis, Piaget procurou "acomodar" a afetividade em estrutu -

ras semelhantes aos seus "esquemas cognitivos", dizendo:

"Creio que no campo afetivo tambem se encontraria

o equivalente da lógica no campo cognitivo, seriam estrutu­

rações de conceitos sociais em forma de escalas de valores

morais ( •.. )" (Piaget, in Williams & Varma, 1980, p. 69).

Na verdade, a "epistemologia genética" é uma epi~

temologia "carente de afetos", sendo que o seu mentor chega

a confessar que se limitará àquilo no qual tem experiência,

ou seja, as estruturas lógicas, almejando que chegue o dia

em que a sua epistemologia venha a se fundir com a psicaná-

lise numa teoria geral.

Limi tar-nos-emos, então, a buscar, a. partir de suas

pesquisas e formulações a respeito do desenvolvimento das

estruturas cognitivas da criança, assim como a relação que

esta estabelece com o seu meio, material que venha a nos

Page 95: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

83

subsidiar a fim de elucidarmos como se processam as represe~

tações que a criança formula.

Piaget (1978~, 1978~) tem sustentado, ao longo de

seus estudos, que o egocentrismo (quando a criança pensa e

age de acordo com pontos de vista próprios, ignorando mais ou

menos os dos outros) é caracterizado por uma "ausência de ló

gica ou de socialização do pensamento".

Na medida em que o pensamento egocêntrico se en­

contra em fase de indiferenciação, ou seja, tanto de absor -

çao inconsciente do grupo no eu, quanto de ignorância dos po~

tos de vista alheios,a criança ainda não é dotada,inteiramen

te de logicidade, assim como da formulação de conceitos (es­

truturas compostas de identidades e suj ei tas a generalização),

que são em geral comunicáveis. Nesta fase, a criança elabo­

ra pré-conceitos (que estão presentes geralmente na idade de

dois a quatro anos mais ou menos), que são sustentados por

imagens que, por sua vez, desempenham o papel de significan­

te, sendo também um dos produtos da função semiótica.

Neste sentido, esta fase do pensamento que Piaget

(1978~) caracterizou de "pensamento transdutivo" estaria su­

jeita a "superar o campo perceptivo, por meio da representa­

ção", sendo possível ã criança "deformar essa realidade re­

presentada ao sabor de seus desejos e subordiná-la ao fim a

que visa". Piaget mostrava-se mais interessado em demorts­

trar a atividade mental nas suas funções ]ógico-cognitivas,

daí por vezes apresentar o período transdutivo da fase .A

pre-

operacional" como um período de transição para o pensamento

lógico, sendo então aquele caraterizado por "meras experiên-

Page 96: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

84

cias mentais que prolongam as coordenaç6es pr5ticas no pla-

no representativo", e que não são sujeitas a "grupamentos"

gerais que estabilizam e generalizam as primeiras conexoes

que se processam através de intuiç6es articuladas.

o que talvez escapasse a Piaget é que as emoçoes

que acompanham as funções cognitivas não estão sujeitas es­

sencialmente a um desenvolvimento contínuo e subseqüente,a~

sim como o pensamento lógico. Este está em permanente con~

trução quando estimulado para tal fim, enquanto as emoçoes

sofrem constantemente o mecanismo que Jung denominou "re-

gressão" e "progressão".

Do ponto de vista energético, estes mecanismos obe­

decem a um processo dinâmico, donde a regressão inclui uma

adaptação da psique às condiç6es próprias do mundo interior,

ou seja, os elementos pSJquicos (inconscientes ou parcial -

mente conscientes) que são forçados a ultrapassar o limiar

da consciência. Trata-se de conteúdos de cunho infantil e

sexual em parte irracionais, geralmente carregados de afeto.

A progressão, no caso, obedece a um processo contínuo às con-

dições do mundo ambiente, e pode surgir de forma comp1emen-

tar à regressão ou mesmo compensá-la, ou no sentido de re -

primir as tendências e exigências internas.

Estes mecanismos energéticos podem ocorrer duran-I

te qualquer fase ou etapa ~~ desenvolvimento do ser humano,

já que correspondem a um acontecimento psfquico que, de ma-

neira geral, possui uma "lógica" própria. Com base nas for

mu1aç6es de Jung, podemos afirmar que quando se trata de co!!.

teúdos inconscientes temos de avaliá-los também de forma re-

Page 97: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

8S

lativa, pois obedecem a um sistema subjetivo de valores, di

fÍceis de serem mensurados numa escala absoluta e fixada de

maneira geral.

Mas, apesar disso, afetividade e inteligência, ao

serem observadas como funções complementares, têm caracte­

rísticas funcionais semelhantes, embora também divergentes,

de acordo com o ponto de vista no qual Piaget privilegia.

Tanto o pensamento pré-conceitual transdutivo tem

o suporte de imagens, como a atividade psíquica (seja ela onf

rica ou em vigília) adquire um significado através de suas

imagens. No entanto, para Piaget, a imagem é um esboço de

uma representação baseada em fatores externos, ou seja, a

imagem mental, isto é, o símbolo é encarado como um esboço

interior do objeto, podendo ser um produto de interioriza -

çao da própria imitação. Com esta afirmativa, podemos infe

rir que Piaget restringe a noção de símbolo ou imagem a um

significante que envolve apenas o ego, em contrapartida a

Jung, que define a imagem como uma expressão condensada da

situação psíquica como um todo, ou seja, expressa conteúdos

inconscientes que se encontram constelados momentaneamente

no consciente, e que estão sempre em relação com a total ida

de psíquica (consciente e inconsciente), ji que são sempre

apreensÍveis pelo indivíduo.

Apesar desta divergência entre a definição de im~

gem para ambos, supõe-se que eles tomaram pontos de partida

diferentes: Piaget busca formular o desenvolvimento cogniti

vo especialmente na criança, partindo essencialmente de um

método clínico-empírico e Jung, no caso, baseou-se também em

Page 98: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

86

fatos empfricos, embora procurasse condicion5-los a uma abor

dagem sint6tica e herrnen~utica.

Voltando ã questão das imagens, resta-nos enten -

der de que forma a criança entra em relaç~o com elas,j5 que

se encontra num estado de indiferenciaç~o entre o objetivo

e o subjetivo. ~ importante lembrar que embora a criança

dominada pelo egocentrismo coloque as suas necessidades pe!

soais em primeiro plano, j5 inclui algumas adaptaç6es men-

tais, um pouco de orientação para a realidade objetiva, se

constituindo numa fase preparat6ria para o pensamento con -

ceitual.

Mas, na medida em que nesta fase egoc~ntrica pr~-

16gica o conceito ~ uma abstraç~o, parece que a criança, ao

querer conjecturar sobre as coisas de maneira geral, proje-

ta na realidade externa sonhos e experi~ncias subjetivas,c~

mo, por exemplo, quando atribui aos outros as suas pr6prias

intenç6es e vontades, tornando o seu ponto de vista absolu­

to, ignorando que este ~ subjetivo.

Piaget nos dá o exemplo da criança que acredita

que o sol a segue assim como as nuvens, como se ela pudesse

ter o poder de atraf-Ios, e n~o que eles tenham esta inten-

çao.

Este estágio de indiferenciaç~o entre o sujeito;e

o objeto tem um significado'análogo ao que Levy-Brfihl dcno-

minou "participaç~o mfstica", ~egllndo o ':tual dentro da vi -

são antropo16gica, o sujeito das socjed:1dcs ditas "pdmiti-

vas" ou pré-letradas estaria nlJma relaç~c de jndistin{~30 com

o objeto, estando (;1es intimamente ligados. Jung tomou em-

Page 99: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

87

prestado o mesmo termo para se referir a relações entre pes-

soas em que o sujeito, ou parte dele, controla o objeto ex -

terno, ou atribui-lhe significados de acordo com pontos de

vista de seu mundo interno.

Piaget também acredita que a fase onde a criança

formula pré-conceitos (onde partes de um conjunto não são en

quadrados num todo) também se constitui numa fase de "parti-

cipação" no sentido de Levy-Brühl. Embora essas duas concei

tualizações se refiram a situações distintas, são constata -

ções que se assemelham, ji que as formas de causalidade na

criança são provocadas por uma confusão entre a realidade e

o pensamento.

Esta conceituação, por sua vez, também tem um sig­

nificado mais ou menos anilogo, aquele outro elaborado pela

escola psicanalítica, a "identificação projetiva" em que pa!.

te da personalidade é projetada no objeto, e este último -e

experimentado como se fosse o conteúdo projetado.

Estes sentimentos de participação, ou certos con -

teúdos internos que sao projetados nos objetos, sao conse-

quencia de uma falta de consci~ncia de sua subjetividade, ou

seja, o real esti impregnado de aderências do eu. A criança

nao pensa senao a partir de si, ignorando mais ou menos ós

pontos de vista dos outros, acreditando que todos pensam co-

,TIO ela. Segundo Piaget (1978~), "ela não descobriu a multI. -

plicidade de perspectivas e permanece fechada na sua como se

fosse a única possível: a criança afirma sem provar, e nao

tem a necessidade de convencer".

Portanto, durante esta fase onde predomina o -pre-

Page 100: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

88

conceito que se ap6ia atrav6s de imagens, nota-se que o pe~

S<1l1lcnto da criança 6 mui to mai s imaginativo e sobretudo mais

motriz que conceitual.

Esta etapa seria superada, segundo Piaget, quando

a cri ança, através da experiência com seu meio, aprender que

seus sentimentos são subjetivos por uma série de decepções

c pela existência das resistências dos outros.

Por volta dos sete a oito anos mais ou menos, até

os doze, a criança passaria a desenvolver um pensamento que

se enquadraria em sistemas e objetivos intelectuais mais am

p]os,onde passaria a operar em maior grau o pensamento 16-

gico. A imaginação criadora não se debilita com o avanço

da idade, mas passaria de um estágio essencialmente lúdico

e espontineo para outro em que se integra gradualmente na

inteligência, ampliando-a.

Sendo assim, é durante a primeira infincia (dos

dois aos sete anos mais ou menos), ou seja, na idade pré -e~

colar que a criança, ainda em fase de indiferenciação entre

o subjetivo e o objetivo, experiência e reconhece determina

dos fatores ou representações tanto do mundo interno como no

externo, através de um pensamento intuitivo, baseada na prª

pria percepção e representaç~o por 5magens. Não podemos de

forma alguma afirmar que durante esta etapa o seu pensamen­

to é totalmente egocêntrico-intuitivo, sendo a criança inc~

paz de perceber o ponto de vista alheio, ou que ela tem urna

vi são de mundo "deformante". O que ocorre é que a cr j ança

vaI gradualmente adquirindo, através da relaç~o com o meio,

11ma percepção gradual da sua subjetividade e maior consciên

Page 101: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

89

cia de si, e conseqüentemente urna percepçao mais "realista"

do que ocorre à sua volta.

o que é necessário pontuar aqui é que nesta fase,

quando a criança começa a dimensionar o real através da re­

presentação e da construção de imagens, é essencial a cons-

tituição do espaço representativo, corno por exemplo a lin -

guagem corporal, plástica e verbal que pode referir-se tan-

to a imagens ou significantes individuais corno a significa~

tes arbitrários, porque adquiridos socialmente.

~ justamente "imaginando" a realidade que teremos

também condições de agir sobre ela, assim como de buscar si&.

nificações para os conteúdos provenientes do nosso mundo in

terior.

Até mesmo Piaget, que nao se sentia à vontade pa­

ra tratar de questões relativas à afetividade, assim corno

daquelas imagens que se formam no consciente a partir de ema

nações do inconsciente, tende a atribuir às imagens urna im-

portância significativa quando se trata de lidar com conteQ

dos afetivos. Neste sentido, Pi~Gct não nega a incompetên­

cia da lógica ao expressar aquilo que é pessoal:

"( ... ) a linguagem corrente, principalmente adap­

tada as operações lógicas, permanece inadequada a descrição

do objeto individual, infralógico; não há necessidade, por

outro lado, de relembrar sua pobreza essencial quando se tra

ta de exprimir o vivido e a experiência pessoal" (Piaget,

1978~, p. 345).

Portanto, ao notarmos que a criança em idade pré-e~

colar percebe o mundo exterior e o interior essencialmente

Page 102: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

90

através de imagens, e nao de conceitos, e que esta etapa .. e

fundamental para a construção de um "espaço representativo"

que venha a contribuir para a formação de representações,s~

jam elas coletivas ou individuais, por que não favorecer ne~

ta fase para que a criança tenha contato com as histórias

"ricas em imagens", que retratam, como já descrevemos, si -

tuações que exprimem dramas psíquicos os quais ela segura -

mente irá enfrentar?

Estas questões apresentadas nao sao apenas vincu-

ladas e delineadas por exigências tanto internas (amadurecl

mento, autonomia, conflito entre sentimentos contraditórios,

etc.) como externas, já que são situações engendradas pela

sociedade, acessíveis a todo ser humano, que produzem uma

comunicação subliminar do indivíduo com o seu meio social,

visto que um convívio ou participação social mostra-se mais

frutífero na medida em que nos tornamos cientes da socieda-

de em que vivemos.

4.2 Quais as funções dos contos de fadas no contexto pré-es-

colar?

Todos nós fomos crianças, vivemos e sabemos do fas

cínio que os brinquedos e as histórias de encantamento exer

ciam sobre nós. A psicologia e a pedagogia, através de to­

do o seu instrumental, comprovaram a importância do lúdico

e da imaginação como um meio fundamental onde se estabele­

ce um elo de ligação entre a criança e o mundo, de acordo

com o que já relatamos.

A criança, no curso de seu desenvolvimento, passa

Page 103: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

9]

por fases em que a representação (imitação, jogos e brinca-

deiras) tende a ser urna das atividades que e]e exerce signi

ficativamente. Através da representação, a criança lida com

aspectos internos (quando ela os projeta) e externos (na me

dida em que extrai elementos da realidade), no sentido de

buscar significados tanto do ponto de vista afetivo como cOR

nitivo.

Portanto, real e imaginário sao duas noçoes que se

inscrevem num exercício dialético, já que ambas estão sem-

pre presentes no processo de conhecimento de si e do mundo.

tão:

verso.

Jacqueline Held dá o seu depoimento sobre esta que~

"Cada um de nós retira do real o seu próprio un1-

E Gaston Berger, quando fazia pesquisas sobre cara~

tereologia, perguntava: um comerciante de madeira e um pin­

tor ao contemplar uma floresta ao crepúsculo, vêem a mesma

coisa? De certa maneira, e em resumo, produzo o meu próprio

real. Por isso mesmo, o meu real e fantástico, assim como

o meu fantástico e real" (Held, 1980, p. 26).

Isto nos leva a refletir que o real e o imaginá -

rIo definem-se dialeticamente (um se define pelo outro). C~

da um de nós retira do real o seu próprio universo, ou me-

lhor, eu produzo meu próprio real. .. .. - .. Se o ImagInarIo fosse p~

ramente subjetivo, oposto ao real, então corno poderia ele

ser comunicável?

Do ponto de vista da autora ci tada, nao existe fan

tástico (no sentido daquilo que é criado pela imaginação)ou

irreal puro, pois caso contrário, este fantástico nos apre-

sentaria apenas o desconhecido, pois urna vez que não teria

Page 104: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

92

nenhum ponto de contato conosco, nos permaneceria estranho.

Portanto, existe na criação uma dosagem sutil de conhecido

e desconhecido. Ainda segundo essa autora, qualquer hist6-

ria, para ser compreensível, comunicável, supõe um mínimo,

pois, de referências ao humano, ao natural, ao ordinário.

Dentro destas referências que podemos reconhecer

nos contos de fadas fundem-se vários elementos. Alguns fr~

tos da imaginação, construídos a partir de elementos consi­

derados "irreais" (bruxas, anões, monstros, etc.). Outros

referem-se a uma realidade mais ou menos presente, se inse­

rem no dia-a-dia, no cotidiano do homem comum (camponês, l~

nhador, família, mulher e filhos, etc.). E, por fim, liga­

do aos precedentes, um domínio reservado, que segundo J .Held,

é "um lugar bem seu, onde ninguém jamais entrará, um espaço

maravilhoso onde habitam seres muito amados".

Neste sentido, na paisagem, nos enredos e nos pe~

sonagens presentes nos contos encontram-se elementos tanto

vinculados à realidade objetiva corno aqueles nos quais nos

identificamos tão intimamente, que chegam até a mobilizar

sensações e afetos que carregamos também dentro de nos; se­

ria aquele "domínio reservado", corno diz a autora, mas nao

inteiramente inacessível.

Da mesma forma que para a criança pequena,como já

demonstrou Piaget, o mundo objetivo e o subjetivo tendem a

mesclar-se, esta mesma configuração é observada nos contos

de fadas, ou seja, é um espaço narrativo onde o real e o irna

ginário interpenetram-se, favorecendo que a criança veja ali

espelhado o que se passa no seu Íntimo. Neste caso,as fron

Page 105: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

93

teiras entre real e imagin5rio permanecem t6nues e fluidas

por um certo tempo. ~ na infância que se inicia o processo

de construção da personalidade, onde aos poucos a criança

vai tornando consciência de si, através das relações com o

meio que pode favorecer ou nao o seu desenvolvimento, levan

do em conta as suas pptencialidades inatas.

~ um processo longo, lento e, por vezes, doloro -

so, pois na procura de si mesma, e até sofrendo com sua "in

ferioridade" ou submissão aos adultos, a criança muitas ve-

zes deseja ser independente, daí projetar-se com prazer nas

figuras centrais dos contos de fadas que "enfrentam o mundo

e os outros". Mas não seria perturbador para nós adultos,

ou educadores, vê-la imersa numa história que poderia refo~

çarsua fantasia, iludindo-a na medida em que ela é incapaz

de enfrentar o mundo por si só?

Algumas correntes pedagógicas chegaram a condenar

a prática de se contar histórias às crianças. Para exempli..

ficar, reproduziremos as palavras de Paula Lombroso, que e~

creveu um livro sobre a "Pedagogia Montessori", registradas

no livro de Jesualdo:

"( ... ) contando-lhe histórias, julgamos transpor­

tá-la a um mundo fantástico, inverossímil no qual a criança

vê apenas uma ficção poetica e imaginária ( ... ) não se deve

enganar a criança porque mais cedo ou mais tarde o desenga­

no chega a sua alma, apodera-se dela e deixa para sempre um

amargo sentimento de dor ou de indignação contra a socieda­

de, segundo cada indivíduo ( .•• ) sua imaginação (a da crian

ça) ê pobre e cultivá-la ã base de absurdos é um erro ético,

nao menos condenável por ser tradicional" (Lombroso, in Je-

sU31do, s.d., p. 24 e 25).

Page 106: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

94

Este tipo de visão estaria de acordo com uma filo

sofia pedagógica apregoada até há pouco tempo (talvez ainda

existam defensores da mesma) que encara a criança como sub­

desenvolvida, sendo necessário instruí-la (ensiná-la a ler,

contar, escrever) o mais rápido possível, onde não se perde

tempo em "agradá-la" com contos, pois não seria "sério" e

"rentável". Esta visão deformada do próprio sentido do que

é ser pedagógico acaba por privilegiar uma literatura sim-

plista e realista (tipo manual "O que é?" e "Para que ser­

ve?"), já que a criança nao passa de um "ser vazio" que de-

ve ser preenchido por informações que tenham uma utilidade,

que assegurem a formação de um indivíduo "sério".

De acordo com estas colocações, seria, então, pe­

rigoso investir nos contos de fada que favorecem o exercí -

cio da imaginação? Não seria perturbador ver a criança ima

ginar gratuitamente?

Como diz Jacqueline Held, a imaginação, como a in

teligência ou a sensibilidade, ou é cultivada, ou se atro-

fia. Diz a autora:

"Pensamos que a imaginação de uma criança deve ser

alimentada, que existe - com a condição de que não se esta­

beleçam receitas - uma pedagogia do imaginário que tal ped~

gogia precisaria se desenvolver" ( HeId, 1980, p. 46).

Quanto aos efeitos traumatizantes que algumas his

tórias poderiam provocar, Jacqueline Held cita Marc Soriano:

"Qualquer imagem e traumatizante na medida em que

mistura as angústias de uma criança já perturbada C .. ); tor

na-se ocasião de pesadelo numa criança angustiada"(Held,1980,p.93).

Page 107: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

95

Se por um lado identificar-se com o herói dos con

tos de fadas que possui profundo apelo posi tivo constitui um

fator que incita a criança a enfrentar "os obstáculos" que

a vida impõe, seria preocupante vê-la não se distanciar da­

quele, prolongando-se nesta identificação, o que acarreta -

ria um infantilismo, retardando a formação de uma personali

dade autônoma.

Neste sentido, nao deveríamos encarar o conto de

fadas como o "culpado" por ter sido a causa deste tipo de com

portamento. Podemos, sim, encará-lo, no plano psicológico,

como um instrumento diagnosticador, que propiciaria, a par­

tir destas identificações, trabalhar as questões e conteú -

dos conflitantes que envolvem este tipo de atitude por par­

te da criança.

O que faz ela optar por desligar-se da realidade

e projetar-se indefinidamente num personagem?

Os motivos podem ser vários, mas provavelmente não

deve estar sendó fácil para ela assumir uma identidade pró­

pria e encarar a realidade.

De fato, os contos de fadas, através de sua lin -

guagem simbólica, precisam ser vistos como uma unidade já

que engendram em si o real e o imaginário, ou o simbólico.

Adquirem um caráter estimulador, positivo e criativo quando

proporcionam uma integração a nível pessoal, mas caso esta

unidade sej a rompida e a criança passe a ter uma postura uni

lateral, de desdobramento da personalidade, o caráter simb~

lico atrofia-se, havendo o risco de não apreendê-lo na sua

totalidade já que não está ocorrendo aquele jogo dialético

Page 108: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

96

(real/imaginário) inerente ã atividade simbólica.

~ justamente o caráter exploratório, mediador,un!

ficador, socializante e de ressonância que queremos resga -

tar ao privilegiarmos a função simbólica presente nestas his

tórias.

São estas características que Alain Gheerbrannt e

Jean Chevalier ressaltam quando explicitam, no seu Vieionã

~io de ~lmbofo~, a função e o dinamismo dos símbolos.

Segundo esses autores, o símbolo que surge do in­

consciente criador do homem e de seu meio preenche uma fun­

ção favorável ã vida pessoal e social. Teria uma função ex

ploratória, pois os jogos de imagens e as relações imagina­

das, são um convite a pesquisar o desconhecido.

Sabemos que o símbolo tem uma faceta desconheci -

da, ou mesmo inconsciente, que nos incita a uma busca de sua

compreensao, através de relações aproximadas, já que este

não é definível e nem apreendido por completo, permanecendo

em torno dele uma atmosfera ainda misteriosa.

Ainda ligada ã função exploratória, seria a fun -

çao de substituto, na medida em que ele exprime o mundo pe~

ce bido e vivido pe lo suj e i to em função de todo o seu psiquis­

mo.

A outra função, como já descrevemos anteriormente,

é a de mediador, pois propicia uma aproximação entre incons

ciente e consciente, entre o real e o sonho, entre a cultu­

ra e a natureza.

Por ter uma função mediadora, o símbolo tem também

Page 109: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

97

urna função pedagógica e terapêutica. O símbolo responderia

nao de forma empírica mas sobretudo intuitiva, hermenêutica,

as múltiplas necessidades de conhecimento, e de segurança.

De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrannt:

"( ••. ) os símbolos tomam parte decisiva na forma­

çio da criança e do adulto, nio somente como expressio es -

pontânea e comunicaçio adaptada, mas também como um meio de

desenvolver a imaginaçio criadora e o sentido do invisível"

(Chevalier & Gheerbrannt, 1990, p. XXIX).

Além destas funções, ele ainda teria um fator so­

cializante, já que cada época, cada grupo têm seus símbolos,

o que produziria uma comunicação profunda com o meio social,

facilitada por sua linguagem universal. Este tipo de rela­

çao nao se restringe à área de conhecimento racional, mas t~

bém a uma compreensão interpessoal e mesmo grupal, de acor-

do com o seu apelo afetivo.

O símbolo vivo teria uma função de ressonância,ou

seja, ao ser evocado, pressentido, produz um efeito que ca­

talisa conteúdos, sejam individuais, sejam coletivos de um

indivíduo ou grupo social, tanto a partir da sua interpret~

çao ou mesmo de seu conteúdo imaginativo de per si.

Considerando o seu caráter de ressonância, teria

um papel transformador, já que pode integrar conteúdos in -

conscientes à consciência, transformando e reacomodando as

energias psíquicas ali envolvidas.

Mostra-se bastante relevante retomarmos a questão

do símbolo, ampliando a sua noção de forma a ressaltá-lo no

seu aspecto funcional, pois procuramos até então, ao longo

Page 110: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

98

deste trabalho, refletir sobre as implicações de se narrar

contos de fadas is crianças, sobretudo no contexto pr~-esc~

lar.

Como os contos sao histórias que se apóiam em ima

gens simbólicas, tamb~m tendem absorver estas funções atri­

buídas ao símbolo, ou seja, de possibilitar a exploração de

significados, de substituir e representar conteúdos psíqui­

cos, de possuir um caráter mediador e unificador, aproximan

do o homem do seu meio social assim como mediando e/ou int~

grando conteúdos inconscientes ã consciência, possibilitan­

do que esta última se amplie já que tem uma função de ress~

nincia e, conseqüentemente, transformadora, aumentando os ní

veis de consciência.

Não poderíamos esquecer que os contos tamb~m tem

uma função socializante, pois transmitem uma herança cultu­

ral atrav~s dos tempos, reconectarido a criança de nosso te!

po a uma realidade cultural longínqua mas que também perdu­

ra at~ hoje, quando se trata, por exemplo, de traçar e ques­

tionar o papel da mulher na sociedade como já discutimos an

teriormente.

Ao que parece, uma função engloba ou desencadeia

a outra, e na medida em que as vivenciamos na sua toalidade,

a atividade simbólica, tamb~m presente na narrativa dos con

tos de fadas, assume o papel de incitador de sentidos e me­

canismos de compreensão.

Poderia ser aquilo que G. Durand denomina "equili

brio psicossocial". Na verdade, o autor atribui este senti

do ã imaginação simbólica. Mas como ele mesmo define, esta

Page 111: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

99

nao se distingue da atividade simbólica, pois para ele "a im~

ginação simbólica constitui a própria atividade dialética do

espÍri to", entendendo dialética como uma tensão presente das

contraditórias.

Os símbolos, assim como as metáforas poéticas, ao

animarem o espírito dos homens, seriam o "hormônio" da ene,!.

gia espiritual, utilizando o termo empregado por Bachelard

e Durand, ou seja, do pensamento em geral.

James Hillman (1981) vai um pouco mais além, di

zendo que conhecer histórias é psicologicamente terap~uti -

co, se constituindo num benefício para a alma.

Citando o autor:

"Uma pessoa que na infância absorveu histórias e

as estruturou dentro de si, usualmente consegue estabelecer

um relacionamento melhor com o material patologizado das im~

gens obscenas, grotescas ou cruéis que aparecem espontanea­

mente em sonhos e fantasias. ( ... ) A prática me fez ver que

quanto mais experimentado e afinado for o lado imaginativo

da personalidade, menos ameaçador será o irracional ( .•. )

Nas histórias essas imagens encontram seu legítimo lugar.F~

zem parte dos mitos, lendas e contos de fadas, em que surge

toda sorte de figuras bizarras e comportamentos distorcidos

exatamente como nos sonhos" (Hillman, 1981, p. 15, 16).

O aspecto psicológico está sendo ressaltado mais

uma vez, através das palavras de Hillman. O social, de acor

do com o que vimos relatando, estaria caracterizado, na me-

dida em que os contos refletem alguns elementos da nossa he

rança cultural.

Segundo o folclorista Vladimir Propp, "o conto

Page 112: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

100

guarda em seu seio traços do paganismo mais antigo, dos cos

tumes e ritos da antigüidade" (Propp, 1984, p. 81).

4.3 Considerações finais

~ por estas e outras razoes já apontadas que pro­

pomos que a pré-escola, no uso de suas atribuições como: a

de propiciar o desenvolvimento da criança nos seus aspectos

cognitivo, afetivo, social dando-lhe condições para a form~

ção de uma personalidade cada vez mais autônoma, encarando

estes aspectos de forma global, e nao compartimentalizada,

passe encarar os contos de fadas como um instrumento impor-

tante para atingir as metas apontadas anteriormente.

Como já relatamos, os contos de fadas trazem em

seu bojo elementos que são um espelhamento poético (porque

utilizam-se de imagens) dos trajetos do desenvolvimento psi

quico, possuem um caráter socializante onde se vislumbram

questões e elementos provenientes da nossa herança cultural.

Neste sentido~ os contos de fadas cont~m fatores que contr!

buem-para a formação da personalidade nos seus aspectos af~

tivo, social e mesmo racional, já que a imaginação mostra-se

uma atividade precursora da ci~ncia e da técnica.

Neste sentido, não estariam os contos de fadas con

templando todos estes obj et'i vos delineados pela pré-escola,

cumprindo o papel de "alimentar" a criança nos seus aspec -

tos cognitivos, afetivo e social?

Desse modo, os contos de fadas representariam um

excelente meio de "iniciação". Algumas tribos se utilizam

e.aLIOT ••• ~GE11)UOV~

Page 113: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

101

de rituais, a nossa sociedade poderia utilizar os contos de

fadas para preparar a criança para um futuro o qual ele de~

conhece. Esta "iniciação" seria mais adequada entre os dois

e seis anos mais ou menos, pois é a fase em que ela pensa e

sente através de imagens, e não de conceitos. Em torno dos

seis anos, a criança entra numa fase realista, rerdendo um

pouco o interesse pelos contos de fadas, pois estes já nao

lhe fornecem mais subsfdios que venham auxiliá-la nas suas

"operações lógicas". Dizemos também "iniciação", pois re­

lendo as observações de Gianni Rodari(1982) sobre a narrati

va dos contos de fadas, o autor ressalta as colocações de

Vladimir Propp, que deduz que o conto de fadas passou a exis

tir como tal quando o rito antigo desapareceu, permanecendo

então em forma de narrativa.

Forma de narrativa esta que vem sendo imitada e adaE.

tada nos dias de hoje através dos desenhos animados da TV,

com a diferença de que o espectador, no caso a criança, re­

cebe estas imagens passivamente, nao as cria. Adquire tam­

bém uma dimensão nova através do cinema desde as adaptações

simplistas de Walt Disney, como aquelas que procuram retra­

tá-las de forma mais poética e imaginativa como "Histórais

sem Fim", "Cristal Encantado" entre outras, sem esquecer

dos recursos audiovisuais que decoram algumas produções de

Steven Spielberg como "E. T .': o Extra-Terrestre", o "O Enigma

da Pirâmide", etc.

Percebe-se que os vefculos de comunicação sao di­

ferentes. Mas sem querer invalidar ou qualificar um ou ou­

tro, a narrativa ocupava o espaço de promover uma maior ri-

Page 114: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

102

queza em termos de a criança ser o "produtor" destas ima-

gens que os contos produzem. Ela teria uma liberdade maior

de criá-las ou projetá-las de acordo com seus interesses e

necessidades mais íntimas. Além disso, propiciaria um con-

tato direto e vivo com o narrador, que poderia ser a miE, o

pai, o professor, enfim pessoas que estariam por perto e te

riam maiores chances de perceber e acompanhar todos os efei

tos que estas narrativas produziriam, tanto do ponto de vi~

ta emocional, como do cognitivo-social, além de proporcio -

nar um momento onde o apoio, a segurança e a troca poderiam

acontecer.

Quanto ao narrador, selecionando também aquelas

histórias as quais ele também tivesse prazer em relatar, s~

ria imprescindível que ele também estivesse envolvido, dan­

do voz ã imagem ali presente, evitando dar ã sua interpret~

çâo excessiva modulaçio de voz, tom dramático ou gestos ca!

regados que poderiam vir também a influenciar os sentimen -

tos e reações das crianças.

o importante é contar as histórias de forma tran-

qüila, objetiva, impessoal, para que seja proporcionado -a

criança um clima de segurança, que lhe propicia mergulhar mais

no assunto. Além disso, quando' se usa uma voz diferente, . a

criança pode ficar com medo e estranhar o adulto que está

contando, já que aquela voz impostada é diferente da sua voz

natural.

Na iminência de finalizar este trabalho, gostaría

mos ainda de "amarrar" alguns pontos que foram relatados até

então.

Page 115: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

103

A nossa proposta, através deste estudo, é conhe -

cer um pouco mais a origem dos contos, a sua relação com a

cultura pagã, que mesmo após as influências e deformações

do catolicismo na Idade Média, sobreviveu e continuou retra

tando simbolicamente elementos religiosos e culturais de ép~

cas remotas, como os rituais iniciáticos (presentes nas eta­

pas ou tarefas que o herói teria que cumprir e superar) e urna .

relação ainda de comunhão e respeito aos seres da natureza

(cultuados como deuses nas religiões ditas pagãs).

A tradição oral, além de constituir um elemento

aglutinador dos grupos sociais (através das pessoas que se

reuniram em torno do contador de historias), adquiriu forma

através dos vários compiladores como Perrault, os Grimm,An­

dersen e Cascudo no Brasil, que, entre outros, ajudaram a

difundir e instituir a literatura infantil, onde os contos

de fadas têm o seu legado na cultura popular .

. As açoes narradas referem-se a uma situação que é

concebida tanto no plano imaginário como no real, pois nos

aproxima da problemática profunda que se faz presente,da re

lação por vezes conflituosa entre desejo e realidade, ins -

tinto e cultura, razão e emoçao.

Neste sentido, a situação imaginária no brinquedo

tem continuidade também nos contos de fadas, e é através da

experimentação da linguagem simbólica que também possibiii­

ta ã criança exercitar os limites entre real e imaginário.

Os contos de fadas favorecem a representação e a

identificação, também por via do herói, das tendências afe­

tivas ali sintonizadas. Concomitantemente a isto, oferecem

Page 116: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

104

soluções ou caminhos para que estas mesmas situações confli

tantes possam ter um desfecho feliz, dando ã criança também

uma noção de que situações expostas ao perigo podem vir a

ser coroadas de êxito. Esta última alternativa torna-se tam

bém interessante do ponto de vista psicológico, já que cria

ria um clima de segurança, pois a história finaliza-se de

forma tal, que não estariam presentes o fracasso e o maIo -

gro, fatores estes que poderiam gerar uma certa ansiedade e

desestímulo frepte a situações conflitantes, caracterizadas

por um nível de exigência maior.

E, por fim, fica evidenciada também a sua vocaçao

pedagógica, pois além de se adaptarem perfeitamente ã fase

pré-conceitual, em que basicamente se encontra a criança em

idade pré-escolar, alimentam a construção do "espaço repre-

sentativo" fundamental nesta fase ainda marcada pelo pensa­

mentoegocêntrico (essencialmente sustentada por imagens),

onde a linguagem simbólica, ao suplantar a lógica, expressa

mais eficazmente a experiência pessoal e as representações

que a criança faz acerca do mundo ã sua volta.

-Proporcionar a criança o acesso aos contos de fa-

das, se escolhidos com discernimento, é pB-Ia a serviço da

longa e árdua tarefa que é a maturação. E preenchendo-a com

imagens simbólicas que lhe daremos a oportunidade de reorg!

nizar, tanto no plano subjetivo como no objetivo, as sUas

vivências, assim como lhe ofereceremos instrumentos valiosos

na produção de idéias criativas e na construção de histórias.

Por todos estes motivos e considerações, procura­

mos demonstrar a importância de se investir no contato das

Page 117: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

105

crianças em idade pr~-esc61ar com os contos de fadas, lem -

brando que ressaltamos alguns pontos e privilegiamos algu­

mas visões e abordagens.

Certamente nao abarcamos todas as visões acerca da

questão, tarefa esta que deixaremos para outros que se apr~

fundarem sobre o mesmo tema. No entanto, ficam aqui regis­

tradas algumas id~ias e "verdades" (utilizando uma palavra

mais filosófica) que não se propõem serem únicas nem incon­

testáveis, mas apenas mais algumas dentre várias, tal a pl~

ralidade e riqueza de id~ias que caracterizam o nosso pens~

mento, assim como a realidade em que vivemos.

Page 118: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

BIBLIOGRAFIA

BETTELHEIM, Bruno. A p~ieanãli~e do~ eonto~ de nada~. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

CADEMARTORI, Lígia. O que e lite~atu~a innantil? são Pau lo, Brasiliense, 1987.

CASCUDO, Luís da Câmara. Conto~ t~adieionai~ do B~a~il.

Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Editora da Univer sidade de são Paulo, 1986.

------o Vieionã~io do nolelo~e b~a~ilei~o. Belo Horizonte: Itatiaia. são Paulo: Editora da Universidade de São Pau 10, 1988.

CASSIRER, Ernest. Ant~opologia nilo~õniea. São Paulo, Mes tre Jou, 1977.

------o Linguagem e mito. São Paulo, Perspectiva, 1985.

CHEVALIER, Jean & CHEERBRANNT, Alain. Vieionã~io de 52mbo lo~. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1990.

CIRLOT, Jean-Eduardo. Vieionã~io de 52mbolo~, São Paulo, Moraes, 1984.

COELHO, Nelly Novaes. O eonto de nada~. São Paulo, Ática, 1987.

------o Pano~ama hi~tõ~ieo da lite~atu~a innantil juvenil. São Paulo, Quiron,1985.

DIECKMANN, Hans. Conto~ de nada~ vivido~. São Paulo, Pau­linas, 1986.

DIEL, Paul. P~ieanãli~e de la divindade México, Fondo de Cultura Econ6mica, 1959~

DURAND, Gi 1 bert. A imaginaç.ã.o ~imbõliea. são Paulo, Cultrix e Universidade de São Paulo, s.d.

ELIADE, Mircea. Mito e ~ealidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.

FURTH, Hans G. Piaget na ~ala de aula. São Paulo, Summus, 1980.

Page 119: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

107

GRIMM, Jacob. Chapeú.zinho VeltmeR.ho e outltO.6 c.ontO.6 de GJtimm,

Seleção e tradução de Ana Maria Machado, Rio de Janei­ro, Nova Fronteira, 1986.

------o 0.6 c.onto.6 de Gltimm, são Paulo, Pau1inas, 1989.

HELD, J acque 1 ine. O imaginãltio no podelt. São Paulo, Summus,

1980.

HILLMAN, James. E.6tudo.6 de p.6ic.oR.ogia altquetZpic.a. Rio de Janeiro, Achiamé, 1981.

HILTY, Elisa. Wege zum Ma.ltc.hen, Eina.ugR.ein, Zwe.LattgR.ein, VlteiaugR.ein. Bern, Zytg10gge Ver1ag, 1988.

JACOBI, Jo1ande. CompR.exo, altquétipo, .6ZmboR.o na p.6ic.oR.o-gia de C. G. Jung. São Paulo, Cu1trix, s.d.

JESUALDO, A R.iteltatulta in6antiR.. São Paulo, Cu1trix, s.d.

JUNG, C.G. A eneltgia p.6Zquic.a. Petrópolis, Vozes, 1983.

------o Aion, e.6tudo.6 .6oblte o .6imboR.i.6mo do Si-Me.6mo. Pe-trópo1is, Vozes, 1982.

------o (Concepção e organização) e colaboradores. O ho­mem e .6eu.6 .6ZmboR.o.6. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s.d.

PIAGET, Jean. A 6oltmaç.ão do .6ZmboR.o na c.ltia.nç.a.. Rio de Janei

ro, Zahar, 1978~.

------o A lteplte.6enta.ção do mundo na c.ltianç.a. Rio de Janei ro, Record, 1978Q.

------o PltobR.ema..6 de p.óic.oR.ogia. genétic.a. Rio de Janeiro, Forense, 1973.

PROPP, V.I. Molt6oR.ogia. do c.onto ma.lta.viR.ho.6o. Rio de Janei ro, Forense Universitária, 1984.

RICOEUR, Paul. Va. inteltpJte·tação-en.6a.io .6obJte FJteud. Rio de Janeiro, Imago, 1977.

ROCHA, Ruth. Conto.6 de PeJtJtauR.t. Rio de Janeiro,José Oly~ pio, 1988.

RODARI, Gianni. GJta.mãtic.a da 6a.nta.6ia. São Paulo, Summus, 1982.

Page 120: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

108

SAMUELS, Andrew. Jung e o~ põ~-junguiano~. Rio de Janeiro,

Imago, 1989.

SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred.Vicionã~io c~ltico de anãli~e junguiana. Rio de Janeiro, Imago, 1988.

SANFORD, John A. Mal, o lado ~omb~io da ~ealidade. São Paulo, Pau1inas, 1988.

SEGAL, Hanna. Int~odução ã ob~a de Melanie Klein. Rio de Janeiro, Imago, 1975.

SILVEIRA, Nise da. Jung, vida e ob~a. Rio de Janeiro, Jo­sé Álvaro Editor / Paz e Terra, 1975.

VARMA, Ved P. & WILLIAMS, Phillip. Piaget, p~icologia e educação. são Paulo, Cultrix, 1980.

VON FRANZ, Marie Louise. A inte~p~etação do~ conto~ de 6~

da~. Rio de Janeiro, Achiamé, 1981.

------o A individuação do~ conto~ de 6ada~. São Pau10,Pa~ linas, 1985a.

------o A ~omb~a e o mal no~ conto~ de 6ada~. São Paulo, Pau1inas, 1985~.

------o O ~igni6icado p~icolõgico do~ motivo~ de ~edenção no~ conto~ de 6ada~. são Paulo, Cu1trix, 1986.

PUBLICAÇOES:

Boletim Informativo da Fundação Nacional do Livro Infan­til e Juvenil: "200 ano~ do~ I~mão~ G~imm", Rio de Ja­neiro, 1987.

Page 121: os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO - RICO …

Dissertação apresentada aos Srs.:

Nome dos

Componentes da ar1a uC1a o 1ra o 1 va

banca examinadora

~~ Visto e permitida a impressão

Rio de Janeiro 07 / 12 / 1990

~ tMz~ ~~ coo~nadora Geral de ~-----