em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ BÁRBARA SEBASTIANA LAGOS ZANIRATO EM BUSCA DA REALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO CORPO NA ANATOMIA E NA PINTURA DO RENASCIMENTO CURITIBA 2011

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Page 1: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

BÁRBARA SEBASTIANA LAGOS ZANIRATO

EM BUSCA DA REALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO CORPO NA

ANATOMIA E NA PINTURA DO RENASCIMENTO

CURITIBA

2011

Page 2: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

BÁRBARA SEBASTIANA LAGOS ZANIRATO

EM BUSCA DA REALIDADE: A REPRESENTAÇÃO DO CORPO NA

ANATOMIA E NA PINTURA DO RENASCIMENTO

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito para a conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula

Vosne Martins

CURITIBA

2011

Page 3: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

Para os meus pais,

Alcir e Carmelina.

em retribuição ao apoio e carinho

Page 4: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

AGRADECIMENTOS

À professora Ana Paula Vosne Martins, agradeço primeiramente por ter me

apresentado a este tema maravilhoso que é a História do Corpo e às pranchas

anatômicas de Vesalius, que fizeram com que eu me apaixonasse pelas dissecações

no Renascimento. Obrigada por me orientar e pelos livros interessantíssimos que me

apresentou. Agradeço, ainda, por ter me aceitado como voluntária no PET, logo no

primeiro mês de graduação. Foi uma experiência incrível e com certeza moldou a minha

vida acadêmica e pessoal. Você foi muito importante nestes quatro anos, suas aulas

eram ótimas e seus conselhos muito bem vindos. Sou muito grata por ter sido orientada

por você, a quem admiro e respeito tanto como pessoa, quanto como professora e

historiadora.

Ao PET – História, grupo em que fui voluntária e bolsista e que me proporcionou

experiências inesquecíveis. À professora Renata Senna Garraffoni, que foi minha tutora

por um curto período, muito obrigada pela experiência. Aos colegas do PET, que

dividiram momentos de alegrias e frustrações, que me ajudaram quando precisava

urgente de bibliografia, certificados, ou simplesmente para desabafar. Agradeço

especialmente à Stella, pelas discussões de contexto, pelas revisões e sugestões.

Obrigada por tudo, foi muito bom estudar com você.

Aos amigos que fiz neste período, obrigada pelas lembranças maravilhosas que

vou levar para a vida. Flora, lembro até hoje, quando te encontrei meio perdida na porta

do elevador. Depois deste dia vivemos experiências inesquecíveis nas festas, nos

trabalhos que fizemos madrugada adentro, nos almoços no Mafalda (precisamos

continuar fazendo isso). Encontrei em você alguém que entendia minhas neuras e que

reclamava junto comigo dos problemas que iam aparecendo...

À minha família, muito obrigada pelo apoio. Rafael e Mariana, vocês não têm

idéia de como são importantes para mim. Vi vocês nascerem, os dois numa sexta-feira,

no mesmo horário das reuniões do PET. O momento em que vocês vieram ao mundo

está marcado na minha memória e é uma das experiências mais felizes que tenho

destes anos. Ainda vai demorar muito para que vocês aprendam a ler para saber o que

Page 5: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

está escrito aqui, mas mesmo assim muito obrigada, brincar com vocês alegra meu dia.

Rafael, a “tia Tabara” te ama muito. Mariana, obrigada por ser minha puxa-saco...

Agradeço também ao meu irmão, Arthur, primeiro pelo sobrinho lindo que me

deu, e segundo por ser este amigo da vida toda. Obrigada por ter sido sempre tão

protetor, apesar das briguinhas típicas de irmãos que sempre tivemos. Obrigada por ter

me levado pra escola quando eu era pequena e por ter me ensinado aqueles golpes de

judô, embora eu nunca tenha aprendido direito (você ainda lembra disso?). Obrigada

também à minha cunhada Gislaine, que torce comigo para que volte o sorvete de maçã

verde do Mc Donalds.

Agradeço também aos meus sogros, que foram maravilhosos comigo, desde o

dia em que nos conhecemos. Edna, obrigada por me deixar entrar na sua vida de forma

tão intensa e irreversível. Thelmo, queria muito que você estivesse aqui, fosse para

elogiar ou para implicar com esta monografia.

Alexandre, nem sei por onde começar a agradecer. Sem o seu apoio esta

monografia nunca teria sido possível. Obrigada por estar ao meu lado sempre, por ter

me dado forças nos momentos em que queria desistir de tudo, por me ajudar a achar

uma saída dos problemas mais chatos e complicados. Obrigada também pelos

momentos de alegria, que felizmente foram a maior parte dos nossos momentos, pelas

aventuras gastronômicas, por entrar no meu embalo de sonhadora e por planejar um

futuro junto comigo. Muito, muito obrigada por tudo!

Finalmente, agradeço aos meus pais, Alcir e Carmelina, pelo apoio incondicional,

pelo amor, pela paciência... Vocês são maravilhosos! Obrigada por terem me

aguentado nas crises de raiva, frustração e tristeza, sei que não deve ter sido fácil...

Mãe, obrigada por estar sempre ao meu lado e por ter feito café para mim naquelas

madrugadas em que eu estava fazendo as famosas provas 24 horas. Pai, sei que esta

monografia é muito importante para você, espero que aproveite a leitura.

Page 6: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

De fato, o céu às vezes nos manda algumas

pessoas que não representam apenas a

humanidade, mas a própria divindade, de tal

modo que, sendo tais pessoas modelo desta,

possamos imitá-las para, em espírito e por

meio da excelência do intelecto, aproximarmo-

nos das partes mais elevadas do céu.

Giorgio Vasari

Page 7: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

RESUMO

Esta pesquisa busca compreender de que forma o corpo humano foi estudado e problematizado no contexto da Renascença, nos séculos XV e XVI, levando em consideração os estudos de anatomia e de pintura. Para tanto, são utilizadas como fontes pranchas com estudos de anatomia realizados por Andreas Vesalius (1514 – 1564) e Leonardo da Vinci (1452 – 1519), tendo em vista o objetivo de entender como os conhecimentos sobre a anatomia humana e a pintura renascentista se relacionam. Assim, procuramos compreender como o corpo se tornou objeto de teorias e estudos e ainda de práticas culturais durante o Renascimento. Acreditamos que a busca renascentista pelo conhecimento sobre o ser humano tenha contribuído para o desenvolvimento de uma arte pautada pela representação do corpo. Desta forma, procuramos entender os estudos de anatomia produzidos por Vesalius e da Vinci a partir da perspectiva da História do Corpo, buscando compreender de que forma o corpo se torna o objeto do olhar de um anatomista e de um artista, respectivamente. Para tanto, esta pesquisa foi dividida em três momentos. O primeiro foi dedicado à revisão bibliográfica, o segundo à seleção e descrição das fontes e o terceiro consistiu na análise das fontes, a partir de leituras específicas sobre história da arte e história do corpo, bem como de bibliografia que trate sobre os autores estudados.

Palavras-Chave: História do Corpo, Anatomia, Arte renascentista

Page 8: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09

CAPÍTULO 1 – O CORPO RENASCENTISTA: IDEAL DE PERFEI ÇÃO.................15

1.1 O HOMEM NO MUNDO E NA NATUREZA…………………………………15

1.2 HISTÓRIA DO CORPO………………………………………………………..23

1.3 O CORPO NA MODERNIDADE……………………………………………...27

CAPÍTULO 2 – CULTURA DE ATELIÊ E DA UNIVERSIDADE NA PRODUÇÃO DO

CONHECIMENTO SOBRE O HOMEM………………………………………………….31

2.1 ESTUDOS DE ANATOMIA E DE PINTURA………………………………..31

2.2 ANDREAS VESALIUS…………………………………………………………38

2.3 LEONARDO DA VINCI………………………………………………………..43

CAPÍTULO 3 – O CORPO EM PERSPECTIVA ………………………………………..50

3.1 A ABORDAGEM TRÍPLICE COMO MÉTODO DE ANÁLISE

IMAGÉTICA…………………………………………………………………………………51

3.2 DESCRIÇÃO DAS FONTES …………………………………………………52

3.2.1 ANDREAS VESALIUS - De humani corporis fabrica………........53

3.2.2 LEONARDO DA VINCI - Leonardo’s Anatomical Drawings….....59

3.3 A RELAÇÃO ENTRE ANATOMIA E ARTE: ESPÍRITO DE

SUPERAÇÃO……………………………………………………………………………….66

3.3.1 AS PRANCHAS ANATÔMICAS DE VESALIUS………………….67

3.3.2 OS ESTUDOS DE LEONARDO DA VINCI……………………….69

3.3.3 O ANATOMISTA E O ARTISTA: DUAS REPRESENTAÇOES DO

CORPO………………………………………………………………………………………72

CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………….75

FONTES ................................................................................................................... 79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 80

ANEXOS…………………………………………………………………………………….82

Page 9: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

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INTRODUÇÃO

As imagens sobre o corpo produzidas no Renascimento costumam causar

grande impressão. O que nos chama atenção nestas imagens é, antes de tudo, a

preocupação do artista em dotar a representação de características que podemos

chamar de naturalistas, mesmo que eventualmente o resultado obtido não seja este.

Ao observarmos estas obras de arte acabamos nos detendo nos detalhes, na

impressão de movimento, nas expressões, sempre procurando encontrar aquele

aspecto que torna a obra instigante e desafiadora aos nossos olhos.

Foi esta questão que primeiro chamou atenção sobre este tema, ou seja, a

busca destes artistas em encontrar o elemento que tornasse suas representações

repletas de graça, movimento e perspectiva. Que isto se baseava em fórmulas

matemáticas já era sabido, mas o que intrigava era que estas fórmulas estavam

sendo construídas a partir de uma nova forma de olhar sobre o objeto representado,

fosse ele o corpo ou a natureza.

Este “novo olhar” resultou na proliferação de estudos anatômicos, utilizados

tanto no aprendizado da pintura, como também nas aulas de medicina. É importante

ressaltar que antes do Renascimento eram realizadas dissecações nas

universidades, mas estas eram raras e necessitavam de autorização da Igreja. A

grande novidade das dissecações realizadas no período estudado foi o modo como

o entendimento sobre o corpo mudou, ou seja, o processo de dissecação passou a

ser entendido como um método que permitia compreender o corpo em seus

detalhes, entendendo a função de cada tecido, o que possibilitou buscar novos

diagnósticos, pautados pelo que se observava na mesa de dissecação, e não mais

por elementos sobrenaturais.

A partir da aproximação com este campo de estudos e também do

aprofundamento de leituras sobre a História do Corpo, estabelecemos nosso objeto

de estudo, que é entender como o corpo humano foi estudado e problematizado no

contexto da Renascença, entre os séculos XV e XVI, recorrendo aos estudos de

anatomia e de pintura e tendo como base o referencial teórico da História do Corpo.

Neste sentido, esta pesquisa busca compreender de que forma o corpo humano foi

representado neste período a partir da análise de fontes imagéticas de caráter

pedagógico. Para tanto, são utilizadas como fontes pranchas com estudos de

Page 10: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

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anatomia realizados por Andreas Vesalius (1514 – 1564), anatomista, e Leonardo da

Vinci (1452 – 1519), artista, com o objetivo de entender como os conhecimentos

sobre a anatomia humana e a pintura renascentista se relacionaram e, assim,

compreender como o corpo se tornou objeto de teorias e estudos e ainda de práticas

culturais durante o Renascimento. Desse modo, esta pesquisa visa contribuir para a

historiografia pertinente à História do Corpo, bem como no debate que relaciona

ciência e arte, tendo em vista a importância dos estudos anatômicos realizados a

partir da dissecação do corpo humano tanto para a arte quanto para a anatomia e

medicina.

A historiografia vem se debruçando sobre a História do Corpo há algum

tempo, produzindo estudos sobre este objeto com os mais diferentes recortes e

fontes, nos quais se revelam possibilidades analíticas promissoras sobre o

Renascimento. No Brasil esta é uma área que está sendo explorada com pesquisas

que problematizam o corpo a partir de diversas perspectivas, dentre elas a questão

da beleza, da higiene, da saúde, entre outros. Contudo, a problematização do corpo

como um objeto de estudo no Renascimento é uma área pouco abordada pela

historiografia brasileira, de forma que esta pesquisa se mostra como uma

oportunidade de inserir esta discussão no debate histórico.

No Renascimento o aprendizado sobre o corpo foi em grande parte formado

pela cultura visual, pela produção das imagens, haja vista o início de um novo

método de observação direta dos objetos de estudo que começava a se sobrepor

paulatinamente à leitura de textos consagrados da Antiguidade. Isto não significa

que os clássicos e as referências conceituais do Medievo fossem abandonados, mas

foi notável a valorização da informação visual. Desta forma observa-se a

multiplicação de pranchas anatômicas, esboços, moldes tridimensionais, entre

outros, que possibilitassem o estudo do corpo a partir da percepção visual.

Outro aspecto importante que esta pesquisa busca problematizar é a visão

naturalizada que se tem do corpo humano, como se este objeto tivesse sido

percebido da mesma forma ao longo do tempo. Este aspecto pode ser percebido,

por exemplo, ao se estudar a literatura que trata do conhecimento médico e também

sobre aspectos culturais da sociedade, onde o corpo, quando citado, é tratado como

objeto passivo, apenas um receptáculo de práticas de diversas naturezas. Esta visão

não problematiza o corpo como um objeto ativo dentro dos diferentes contextos

sócio-históricos, diretamente ligado às práticas onde os indivíduos expressam

Page 11: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

11

emoções e sensações, como parte de um processo de construção subjetiva e de

inserção social. A partir da crítica a esta forma de entender o corpo, podemos

questionar uma explicação totalizante do corpo, tendo em vista a variação de

relações e interpretações que cada indivíduo e sociedade fazem sobre si mesmos e

sobre o mundo.

Desta forma, os estudos de anatomia humana produzidos por da Vinci e

Vesalius são de grande importância para esta discussão, pois o material elaborado

por eles demonstra uma preocupação em situar o corpo espacialmente, explorando

diversos recursos para dotar a representação, seja ela uma gravura ou um desenho

a giz, de dramaticidade e de mobilidade. Os corpos reproduzidos nestes estudos,

apesar de representarem cadáveres, nem de longe passam uma impressão de

morbidez e passividade, pelo contrário, neles podemos identificar vários elementos

que relacionamos ao contexto, como a dignidade do homem, o controle do corpo e a

intenção de representar o real.

A primeira etapa da pesquisa consistiu em um levantamento bibliográfico

sobre o período com a preocupação de embasar o conhecimento sobre o contexto

em que estes estudos foram elaborados. A partir destas leituras é possível conhecer

os métodos empregados para se estudar o corpo humano – para fins anatômicos e

artísticos – bem como analisar estudos produzidos no período, tanto a respeito do

homem, como também de anatomia e pintura, para entender porque se procurou

representar o corpo de forma mais realista, além de revisar a literatura que trata dos

estudos sobre o corpo.

Neste sentido, recorremos à obra de Jacob Burckhardt, A cultura do

Renascimento na Itália1, um ensaio a respeito dos aspectos culturais e políticos da

Itália renascentista, para auxiliar na compreensão deste período. É desta obra que

extraímos referências a respeito da questão da valorização do indivíduo, concepção

importante para esta pesquisa.

Tendo em vista que um dos objetivos é relacionar arte e ciência no

quattrocento e no cinquecento, é de fundamental importância refletir historicamente

sobre estas duas áreas do conhecimento. Para tratar a respeito dos estudos de

anatomia e também sobre suas relações com a pintura, nos apoiamos no livro de

1 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia da Letras,

2009.

Page 12: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

12

Deanna Petherbridge e Ludmila Jordanova, The Quick and the Dead2, no qual as

autoras abordam temas relacionados à anatomia e às construções culturais do corpo

a partir de imagens produzidas por artistas e anatomistas dentro deste complexo

campo da representação e significação do corpo humano.

Nossa discussão a respeito da arte renascentista é pautada principalmente

nas obras de Ernst H. Gombrich, A História da Arte3, no qual o autor desenvolve

uma extensa descrição e análise sobre a arte em diversos períodos. São deste

autor, ainda, alguns conceitos primordiais para a análise das nossas fontes, tais

como a questão do progresso artístico, da ilusão de realidade e da correção do real,

que consideramos a partir da leitura de Arte e Ilusão4, onde o autor se dedica a

estudar a psicologia da representação imagética, e de Norma e Forma5, no qual

Gombrich relaciona o contexto da Renascença à produção artística deste período. A

respeito da arte renascentista também consultamos a obra O projeto Renascimento,

de Elisa Byington6, que faz uma interessante análise sobre o tema, tendo em vista o

contexto em que os artistas estavam inseridos. Para aprofundar a questão sobre a

formação dos ofícios de anatomia e de pintura, bem como para análise de contexto,

nos apoiamos na leitura de O Renascimento Italiano: Cultura e sociedade na Itália,

de Peter Burke7.

Para a análise das fontes foi de fundamental importância também a leitura do

Esboço Biográfico sobre Andreas Vesalius8 realizado por J. B. DeC. M. Saunders e

Charles D. O’Malley presente na obra De Humani Corporis Fabrica9, de Andreas

Vesalius. Já com relação ao material elaborado por da Vinci, utilizamos

principalmente o livro Leonardo da Vinci10, de Gabriel Séailles, que analisa o

processo epistemológico do fazer artístico de Leonardo, com base em esboços,

pinturas e pranchas de anatomia, bem como nos estudos de perspectiva e de novas

técnicas e métodos.

2 JORDANOVA, Ludmila. PETHERBRIDGE, Deanna. The Quick and the Dead. Berkeley: University of

California Press, 1997. 3 GOMBRICH, Ernst. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2000, 16ª edição. 4 GOMBRICH, Ernst. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 5 GOMBRICH, Ernst. Norma e Forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 6 BYINGTON, Elisa. O projeto Renascimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. 7 BURKE, Peter. O Renascimento Italiano: Cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria,

1999. 8 SAUNDERS, J. B. DeC. M. e O’MALLEY Charles D. Esboço Biográfico sobre Andreas Vesalius. In:

VESALIUS, Andreas. De humani corporis fabrica. Campinas: Editora. Unicamp, 2003. 9 VESALIUS Andreas. De humani corporis fabrica. Campinas: Editora Unicamp, 2003. 10 SÉAILLES, Gabriel. Leonardo da Vinci. Nova York: Parkstone Press International, 2010.

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13

A metodologia de análise imagética utilizada na descrição e análise das

fontes é a da abordagem tríplice, proposta pelo historiador Artur Freitas e retirada do

artigo História e imagem artística: por uma abordagem tríplice11, na qual se busca

estabelecer uma relação entre o conhecimento histórico e a história da arte e suas

diferentes perspectivas analíticas. Este método visa a compreensão da obra em três

dimensões: a formal – que abrange a esteticidade do visual e nos permite identificar

e compreender os signos representados; a social – análise de contexto, tendo em

vista a história material da imagem, suas condições de produção e suas recepções

e; a semântica – que dá conta das interconexões com as demais representações

culturais de determinado período.

Sobre a problematização histórica do corpo, recorremos à coleção História do

Corpo12, organizada por Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello,

composta por três volumes, 1. Da Renascença às Luzes; 2. Da Revolução à Grande

Guerra e; 3. As Mutações do olhar. O Século XX. Apesar de apenas o primeiro

volume se referir ao recorte temporal onde se inserem as fontes selecionadas, a

leitura dos outros volumes se mostra interessante para aprofundar o referencial

teórico desta pesquisa. Utilizamos igualmente diversos autores que trataram deste

tema, direta ou indiretamente, como Denise Sant’Anna13, Norbert Elias14, Claudine

Haroche15, entre outros, além de outros estudos de Courtine, de Vigarello e de

Corbin que não constam na coleção acima referida.

Esta monografia está dividida em três capítulos. No primeiro, intitulado “O

Corpo Renascentista: Ideal de Perfeição”, tratamos do contexto da produção destas

imagens, abordando principalmente a questão da valorização do indivíduo, bem

como os processos de produção do conhecimento. Enfatizamos o ambiente de

valorização do conhecimento sobre o humano e ainda de uma nova postura frente

ao mundo e à natureza. Destacamos, também, a atuação dos humanistas neste

processo de valorização do sujeito, tanto pela fé, como pelo uso da razão. Neste

capítulo buscamos ainda discutir o referencial teórico da História do Corpo,

11 FREITAS, Artur. “História e imagem artística: por uma abordagem tríplice”. Estudos Históricos. Rio

de Janeiro, n. 34, jul-dez/2004. 12 CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Gorges. História do corpo: Da

Renascença às Luzes. 2ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 13 SANT’ANNA, Denise. “É possível realizar uma história do corpo?”. In SOARES, Carmen. Org.

Corpo e história. Campinas: Editora Autores Associados, 2001. 14 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 15 HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. São Paulo: Papirus, 1998.

Page 14: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

14

estabelecendo sua área de atuação e objeto de estudo, relacionando esta discussão

ao contexto pesquisado.

No segundo capítulo, “Cultura de Ateliê e da Universidade na Produção do

Conhecimento sobre o Homem”, procuramos compreender especificamente a

anatomia e a pintura no contexto do Renascimento, analisando os processos

formativos destes ofícios bem como seu significado social. Desta forma, discutimos

como os estudos e práticas a respeito do corpo desenvolvidos pela pintura e pela

anatomia estavam em consonância com os ideais humanistas discutidos no capítulo

anterior. Neste segundo capítulo também elaboramos um esboço biográfico de

Vesalius e de da Vinci, destacando seus estudos e os processos de formação do

ofício de cada um.

O terceiro e último capítulo, intitulado “O Corpo em Perspectiva”, trata da

descrição e da análise das fontes, tendo em vista a metodologia da abordagem

tríplice. Desta forma fizemos primeiro uma discussão a respeito deste método de

análise onde explicamos a particularidade das fontes produzidas por Leonardo e

Vesalius. Para isto, descrevemos separadamente cada imagem buscando identificar

seus elementos constitutivos. Em seguida, analisamos o conjunto de fontes de cada

autor separadamente e depois comparamos os resultados, de forma e perceber

aproximações e distanciamentos.

Ao longo desta monografia, portanto, procuraremos demonstrar a importância

destes dois estudiosos para a nascente ciência moderna, tendo em vista a

preocupação em seguir um método rigoroso de estudo, baseado na observação

prática e na repetição para construir determinado conhecimento e ainda colocá-lo à

prova, através da repetição destas observações.

Page 15: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

15

CAPÍTULO 1

O CORPO RENASCENTISTA: IDEAL DE PERFEIÇÃO

“Muitas são as maravilhas do mundo/

E nenhuma tão maravilhosa quanto o homem.”

Antígona , Sófocles

Neste capítulo vamos tratar do Renascimento procurando compreender os

elementos sociais que permearam os processos de elaboração das pranchas

anatômicas de Andreas Vesalius e de Leonardo da Vinci. Nosso ponto de partida

será a discussão sobre a concepção renascentista de dignidade humana e de

valorização do indivíduo, estabelecendo uma relação entre estes conceitos e os

ideais humanistas de desenvolvimento da razão como forma de ação positiva no

mundo.

Outra questão discutida neste capítulo é o delineamento deste campo

conhecido como História do Corpo. Buscamos inserir a discussão sobre o corpo no

contexto delimitado pelas fontes desta pesquisa, de forma a relacionar os ideais

renascentistas de perfeição corporal com a produção intelectual e artística

propiciada pelos estudos de anatomia.

1.1 O HOMEM NO MUNDO E NA NATUREZA

Quando se estuda o Renascimento não se pode relevar a intenção explícita

dos pensadores e escritores da época em estabelecer uma relação de continuidade

com a Antiguidade Clássica. De fato, “Renascimento” sugere uma continuação de

algo que já aconteceu, um ressurgimento. Esta palavra foi empregada por sugerir

uma repetição de uma época considerada como representante do mais elevado

espírito criativo no conhecimento, nas artes e nas letras. A palavra foi utilizada

também com um sentido de oposição à época imediatamente anterior e com uma

conotação que indicava um estatuto inferior à Idade Média. Cabe ressaltar,

entretanto, que este estudo procura compreender a Renascença como um período

de grande diversidade cultural no qual se destaca uma nova postura em relação ao

Page 16: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

16

conhecimento e também ao indivíduo, sem adotar uma visão hierárquica e

dicotômica entre épocas históricas ou culturas.

Ernst Gombrich16 aponta para a facilidade com que se exagera esta dicotomia

entre Medievo e Modernidade mas, afora definições apressadas em que se busca

diferenciar o Renascimento e principalmente a arte produzida no Medievo, o

historiador que se dedica a estudar este período pode identificar alguns elementos

de transição e de ruptura entre os dois períodos. A partir de discussões sobre

história do corpo, da arte e da ciência, pode-se observar claramente uma

transformação na forma dos indivíduos perceberem a sociedade em que estavam

inseridos, como demonstram os diversos estudos elaborados neste período, que

procuravam entender o lugar do homem no mundo e na natureza.

No Renascimento ocorre um fenômeno de apropriação cultural em relação à

Antiguidade. A tradição clássica era utilizada como referência, tanto nas obras como

também nos métodos de trabalho (exemplo da arte de característica naturalista).

Neste sentido os elementos clássicos foram empregados em conjunto com ideais e

conceitos modernos. A pintura é um exemplo dessa relação entre passado e

presente, fortemente influenciada pela tradição cristã trabalhou com o tema do lugar

do homem na natureza e a relação do humano com o divino. Em pinturas e gravuras

renascentistas podemos observar um estilo clássico de retratar o ser humano, mas

também a presença de signos religiosos cristãos.

Outro aspecto que observamos é a presença de elementos da natureza na

composição de representações artísticas. A vegetação e os animais não aparecem

apenas para compor o fundo de uma imagem, mas para demonstrar a técnica do

artista. Percebemos assim que todos os elementos da pintura eram estudados para

que a composição final fosse dotada de harmonia. De fato, a natureza não aparecia

somente como acompanhamento em uma imagem, como elemento agregador de

harmonia. Neste período houve uma popularização do gênero de pintura de

paisagem, onde artistas representavam a natureza sem se preocupar em colocar

pessoas ou construções feitas pelo homem. Um grande exemplo de artista que se

dedicou a este estilo foi Dürer, que criou famosas aquarelas topográficas17 (Fig. 1).

16 GOMBRICH, “Norma...” Op. Cit. p. 5. 17 Idem, pp. 142-143.

Page 17: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

17

(Figura 1 – Ervas, Albrecht Dürer, 1503)

Gombrich18 chama a atenção para o fato de que a arte passou a suscitar um

sentimento de fascinação por possibilitar a representação não apenas das histórias

sagradas, mas também de fragmentos do mundo real. Assim sendo, percebe-se um

desejo de realizar experiências e de buscar novos efeitos de representação. É

importante ressaltar esta obsessão pela representação perfeita, pois é neste

contexto que vemos os minuciosos estudos sobre a anatomia do corpo humano com

a finalidade de se criar uma imagem muito parecida com a que os olhos viam. Este

princípio norteava o processo de formação dos ofícios de pintura e de anatomia, que

muitas vezes se confundiam podendo até ser exercidos pela mesma pessoa.

Burckhardt discute a questão da valorização da imagem e do corpo ocorrida

no período renascentista, demonstrando que ocorreu um desvelamento do homem e

do mundo, bem como o que ele denomina de emergência do indivíduo:

[...] esse período desenvolve ao máximo o individualismo, conduzindo-o, a seguir, ao mais diligente e multifacetado conhecimento do indivíduo, em todos os níveis. O desenvolvimento da personalidade vincula-se, essencialmente, a seu reconhecimento em si próprio e nos outros.19

18 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. 19 BURCKHARD,. Op. Cit., p. 282.

Page 18: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

18

No período renascentista atribuiu-se um valor ao sujeito também por sua

sensibilidade. Era através dela que o homem percebia a grandiosidade da natureza,

que passou a ser valorizada paulatinamente em função da sua utilidade para o

homem. A natureza também não despertava mais o medo, mas sim uma atração

respeitosa por ser uma criação de Deus. O homem, por sua vez, deixou de ser visto

apenas como um pecador que só conhecia o mal. Ele passou a ser encarado como

uma criatura passível de se aperfeiçoar através do uso da razão e da fé.

Um sinal dessa valorização do indivíduo está no fato de se difundir, nesta

época, uma literatura de caráter biográfico e autobiográfico, que ressaltava as ações

da pessoa sobre a qual se escrevia. Foi neste período também que os pintores

começaram a assinar suas obras. Ainda na pintura surgiram os retratos e auto-

retratos. Houve toda uma preocupação em se preservar a memória, que é única e

singular. Ressaltamos que essa valorização foi resultado de um desejo de

conhecimento, tanto da natureza, quanto do ser humano.

Peter Burke discute o conceito de individualismo artístico no Renascimento

entendendo-o como uma indicação de que “tanto artistas como público estavam

interessados em estilos individuais”20 e aponta este elemento como um dos aspectos

que distingue o Renascimento da Idade Média. Contudo, Burke afirma que este

individualismo “só emergiu muito lentamente”21.

Prezava-se, ainda, o estudo do rosto – chamado fisiognomonia – pois se

acreditava que era possível conhecer o caráter das pessoas a partir de marcas ou

características da face. Como Claudine Haroche e Jean Jacques Courtine nos

mostram, neste período

(...) o rosto está no centro das percepções de si, da sensibilidade a outrem, dos rituais da sociedade civil, das formas do político. [a fisiognomonia] É um conhecimento antigo que, no entanto se reveste de uma tonalidade nova.22

e era usado para se conhecer o invisível através do visível. Esse conhecimento

procurava entender o que cada rosto expressava, mas não como havia sido feito até

então (com a intenção de se conhecer o futuro) e sim de conhecer o que se

escondia por trás daquela fisionomia.

20 BURKE, Op. Cit., p. 34. 21 Idem, p. 81. 22 COURTINE, Jean Jacques; HAROCHE, Claudine. História do rosto. Exprimir e calar as suas

emoções (do século XVI ao início do século XIX). Lisboa: Editorial Teorema, 1995, p.7

Page 19: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

19

Doravante o indivíduo surge indissociável da expressão singular de seu rosto, tradução corporal de seu íntimo. Mas por outro lado este mesmo movimento que o incita a exprimir-se, ordena-lhe ao mesmo tempo que se apague, que mascare esse rosto, que encubra essa expressão. [...] Exprimir-se, calar-se; descobrir-se, mascarar-se: estes paradoxos do rosto são os do indivíduo.23

Percebe-se que havia uma preocupação com o que era revelado ao outro e

também com o que era ocultado. Através do controle do corpo, do comportamento e

dos sentimentos se revelavam qualidades cada vez mais privilegiadas pela

sociedade, como o refinamento dos modos e demonstração de cultura letrada, e se

mascaravam os atributos e comportamentos que não eram bem vistos.

Conforme Norbert Elias24, este controle foi introjetado por meio de uma

construção histórica e social de costumes e valores. Através do controle corporal o

indivíduo podia expressar quem ele era, sua posição social, sua educação. Essa

preocupação ocorria devido a uma necessidade de se diferenciar dos demais. Assim

o sujeito poderia mostrar qual era o seu lugar naquela estrutura social muito bem

delimitada. A necessidade de se controlar perante o outro surgiu em função da

organização da sociedade de corte, marcada por um intenso convívio social.

Percebemos, então, a emergência de um indivíduo que sabia se adequar ao

ambiente em que estava inserido, sabendo agir, conversar e se portar, ou seja, que

demonstrava ter um alto controle sobre si e seu corpo. Segundo Elias nas

sociedades de corte as pessoas passavam mais tempo em companhia uma das

outras. Com isso, foi necessário calcular minuciosamente as palavras e os gestos na

presença dos outros. Haroche e Courtine nos mostram que aquele que se adequava

a esta exigência social recebia reconhecimento de seus pares e era percebido como

um ser civilizado:

O aparecimento e o desenvolvimento da noção de civilidade, a sua estreita associação com a educação da linguagem (compreendida no sentido lato de linguagem do corpo, do gesto e do rosto tanto como da palavra) e um domínio de si mesmo são, portanto prova de uma profunda transformação do vínculo social.25

23 COURTINE e HAROCHE, Op. Cit., p.8 24 ELIAS, Op. Cit. 25 COURTINE e HAROCHE, Idem, p.21.

Page 20: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

20

Podemos perceber essa preocupação com o convívio social em obras

literárias da época como “O Cortesão”, de Baldasare Castiglione, escrito em 1528,

que é um verdadeiro código de polidez e de elegância dirigido aos nobres, e

“Galateo ou Dos Costumes”, escrito em 1558 por Giovanni Della Casa, na qual o

autor se propõe a registrar os modos considerados dignos para se viver em

sociedade, utilizando o recurso da sua própria experiência. Nesses livros buscou-se

ensinar e instruir a respeito dos bons comportamentos, dos costumes e das novas

formas mais intensas de sociabilidade.

Muitos manuais que ensinavam a maneira correta de se portar para agradar

ao próximo foram publicados especialmente a partir do século XVI em função de

haver um público leitor interessado em se adequar aos padrões de conduta social.

Um importante representante destes manuais é o livro “De civilitate morum

puerilium”, de 1530, escrito pelo humanista Erasmo de Rotterdam. Segundo Elias,

no já citado “O Processo Civilizador”, este manual teve forte contribuição para

educação e o desenvolvimento da noção de polidez na época. Neste livro Erasmo

ensina como os indivíduos deviam se portar em público, qual postura, quais gestos,

o vestuário e as expressões faciais mais adequados à vida em sociedade, ou seja,

escreveu um tratado de conduta humana26. Nessa mesma obra, o humanista

ressalta a diferença de hábitos como um sinal de distinção que separa a classe alta

da classe baixa. Sua obra deu um novo impulso a um conceito que estava entrando

em voga na época, o de civilitas. Percebemos, desta forma, a importância dada ao

autocontrole, tanto sobre as emoções, como também do corpo e do comportamento.

Outro aspecto que também foi influenciado pelos clássicos era a ideia de

beleza. O que era considerado belo estava muito bem descrito e delimitado,

havendo uma distinção bastante clara entre o que era digno de ser representado

como ideal. É claro que os artistas deste período em sua busca incansável pela

técnica faziam estudos de representações do que se considerava feio, mas havia um

imaginário muito bem construído sobre os elementos que deveriam compor uma

obra de arte que precisasse demonstrar graça e beleza. Comparando obras da

Antiguidade e do Renascimento percebemos uma grande semelhança nas feições

retratadas como belas, por exemplo, as diversas representações de Vênus feitas

26 Faz-se necessário dizer, que segundo Elias, desde a Idade Média havia algumas publicações

acerca do comportamento humano escritos, sobretudo, por religiosos. Esta não é, portanto, uma criação moderna. Erasmo por sua vez, como típico humanista, se apropria de muitas regras de convivo da Idade Media, mas cria algo novo.

Page 21: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

21

durante as duas épocas. Gombrich comenta o famoso quadro de Botticelli, “O

nascimento da Vênus” (Fig. 2), de 1485, no qual o artista utiliza diversas referências

clássicas na composição da tela, como o fato de os antigos costumarem representar

esta deusa surgindo do mar27.

(Figura 2 – O nascimento de Vênus, Sandro Botticelli, c.1485)

A apropriação cultural, contudo, não foi praticada somente nas artes visuais.

Os humanistas valorizavam os studia humanitatis, prezavam a retórica, a escrita, a

poesia e a filosofia e a história, todos conhecimentos herdados da Antiguidade

Clássica. Pico Della Miràndola28 utilizou muitas fontes deste período para discorrer

sobre a dignidade do homem. Erasmo de Rotterdam também citou muitas fontes da

tradição clássica em seu livro “O Elogio da Loucura”29. Thomas More30 se baseou na

República de Platão para criar um lugar perfeito, mas criou um gênero de escrita

completamente novo: o modelo utópico. Podemos caracterizar o humanismo pelo

enaltecimento da razão e pela valorização da palavra, da representação e da ética.

Esses valores, compartilhados com a tradição clássica, eram considerados

importantes para o aperfeiçoamento do ser humano.

27 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. pp. 263-264. 28 DELLA MIRÀNDOLA, Pico. A dignidade do Homem. Coleção Grandes Obras do Pensamento

Universal. São Paulo: Editora Escala, s.d. 29 ROTTERDAM, Erasmo de. O Elogio da Loucura. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril

Cultural, 1972. 30 MORE, Thomas. A utopia. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972.

Page 22: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

22

Para entender melhor a importância de Pico Della Miràndola, podemos nos

basear em sua concepção de que, para ser um homem apto a “agir no mundo”, era

necessário ter um conhecimento de caráter pluralista e que conhecesse a fundo as

diferentes áreas do conhecimento, participando da vida pública de forma ativa. Se o

homem não fosse capaz de aplicar seus conhecimentos para melhorar o lugar em

que vivia, sua sabedoria não teria utilidade nenhuma.

Outra importante característica do humanismo renascentista eram as redes

de amizade. Através da troca de correspondências os humanistas estabeleciam um

rico intercâmbio de ideias e valores. Erasmo de Rotterdam e Thomas More eram

amigos e se correspondiam. Ambos foram educados numa tradição humanista e

acreditavam na possibilidade de aperfeiçoamento do homem através do uso da

razão e da fé. Para estes humanistas o conhecimento humano deveria ser aplicado

no mundo, com o sentido de melhorá-lo. Ao observarem as sociedades em que

viviam, percebiam profundos problemas, tanto sociais quanto morais. Ambos

valorizavam o papel do filósofo junto aos governantes, pois, para eles o humanista

era aquele que deveria conduzir os príncipes num modelo de perfeição baseado nos

preceitos divinos. Erasmo e More, porém, não foram ingênuos a ponto de pensar

que a conduta dos governantes era perfeita. Sabiam que estes agiam de acordo

com as suas ambições, o que criava um espaço para a corrupção. Erasmo

denunciava o afastamento dos valores cristãos que deveriam pautar a vida das

pessoas. Afirmava que os nobres só desejavam riquezas para benefícios pessoais e

extravagantes, ao invés de se dedicarem a uma vida em Deus. More, por sua vez,

criticava com maior ênfase as injustiças decorrentes de uma sociedade corrupta

onde os interesses individuais se sobrepunham ao bem comum.

A partir desta contextualização percebemos que a valorização do indivíduo e

dos conhecimentos produzidos sobre o ser humano, tanto sobre questões espirituais

como sobre o próprio corpo, foram determinantes para o aperfeiçoamento da

representação do homem e do mundo. Procurava-se desvendar os mistérios do

corpo para se entender o seu funcionamento. Nas artes, com a elevação do status

do artista, buscava-se sempre a superação, estudando minuciosamente os detalhes

do corpo para compreender quais eram os elementos fundamentais para uma

representação perfeita e natural que mais se parecesse com o que os olhos viam.

Page 23: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

23

Desta forma, podemos afirmar que houve uma busca pela perfeição representativa,

ou, nas palavras de Gombrich31, pela conquista da realidade.

1.2 HISTÓRIA DO CORPO

Ao se fazer uma história do corpo é preciso levar em consideração que o

corpo foi problematizado de diferentes formas ao longo do tempo. Ele se tornou um

objeto político e também foi usado para delimitar o que é o normal e o que está fora

do padrão. Através do corpo são obtidas as primeiras impressões sobre alguém,

sempre imbuídas de valores pré-concebidos e construídos culturalmente.

Conforme Corbin, Courtine e Vigarello nos esclarecem no prefácio da coleção

História do Corpo, esta área do conhecimento trabalha com o mundo dos sentidos,

com o que se relaciona, tanto física como abstratamente ao corpo humano. Desta

forma, a pertinência do estudo desta temática reside no fato de que, conforme

mudam as relações e experiências humanas mudam também as relações e

entendimentos sobre o corpo. A partir da história do corpo, portanto, é possível

compreender de que forma se dão as representações deste objeto em determinados

contextos32.

Denise Sant’Anna33 diz que a História do Corpo busca compreender como as

diferentes sociedades ao longo do tempo elaboraram formas de lidar com o

desconhecimento sobre o próprio corpo, seja através de explicações místicas ou

sobrenaturais, seja por processos introspectivos. A partir da busca pelo

conhecimento deste objeto, foram criados recursos para o controle e manutenção

dos corpos.

Neste sentido, um dos objetivos da História do Corpo é entender as

representações do corpo em diferentes culturas. Para Roger Chartier, a

representação é um instrumento central de análise cultural, pois o referente

significado assume determinados papeis nesta sociedade34, possibilitando a

31 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p.223. 32 Cf. CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, Op. Cit. 33 SANT’ANNA, Op. Cit. 34 CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados, vol.5 n.º11, São Paulo,

Jan/Abr 1991.

Page 24: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

24

compreensão de comportamentos individuais e coletivos. É necessário levar em

consideração, porém, que há uma distância entre o objeto representado e seu

correspondente real. Deve-se observar, portanto, quais os filtros que permearam o

processo de produção da representação. O corpo assume, desta forma, uma série

de significados, de acordo com suas referências interpretativas, que são variáveis de

acordo com os contextos sócio-históricos.

Desta forma, a História do Corpo questiona a visão naturalizada que se tem

do corpo humano, como se este objeto tivesse sido percebido de maneira inalterada

ao longo do tempo. Este aspecto pode ser percebido, por exemplo, ao se estudar a

literatura que trata do conhecimento médico e também de aspectos culturais da

sociedade, onde o corpo, quando citado, é tratado como objeto passivo, apenas um

receptáculo de práticas de diversas naturezas. Esta visão não problematiza o corpo

como um objeto ativo dentro dos diferentes contextos sócio-históricos, diretamente

ligado a práticas onde os indivíduos expressam emoções e sensações, como parte

de um processo de construção subjetiva e de inserção social. A partir da crítica a

esta forma de entender o corpo, podemos problematizar uma explicação abrangente

e plural deste objeto, tendo em vista a variação de relações e interpretações que

cada indivíduo faz sobre si mesmo e sobre o mundo.

O corpo tem tido importância central na representação artística ocidental, em

grande parte baseada em estudos de dissecações anatômicas que foram realizados

ao longo do processo histórico, com maior ou menor grau de aceitação da

sociedade35. O fato de ser uma prática limitada e escondida variou conforme a

região e os aspectos culturais das diferentes sociedades. O ato de realizar um

procedimento invasivo em um corpo, seja por uma cirurgia ou pela dissecação, foi

cercado de tabus, com importante apelo no imaginário coletivo.

Na Idade Moderna o corpo era cercado por uma mística na qual se

misturavam medo e fascínio. Neste período a busca pelo conhecimento levou a um

grande interesse por se desvendar os mistérios do corpo humano, procurando

explicações racionais para o seu funcionamento. Houve uma grande difusão de

estudos de anatomia pelas universidades e também pelos círculos de

correspondência desde meados do século XV. De fato, conforme Saunders e

O’Malley demonstram, o interesse pelos estudos deste objeto levou a que as

35 Cf JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit.

Page 25: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

25

universidades disponibilizassem corpos para que os estudantes de medicina

estudassem a partir de observações e não apenas através de gravuras. A

disponibilidade de corpos para estes estudos, contudo, era limitada, o que fazia com

que muitos anatomistas roubassem corpos de prisioneiros condenados à morte e

que eram deixados como exemplo nas estradas36.

As dissecações foram reproduzidas em desenhos nas pranchas anatômicas

para servir de recurso didático, tanto para alunos de medicina, como também para

auxiliar no preparo dos aprendizes de pintura e escultura. Estes manuais de

anatomia eram concebidos como verdadeiros “mapas” do corpo, organizados de

acordo com ideais filosóficos37, desta forma, podemos perceber que estas pranchas

apresentam elementos que vão além da simples representação fiel do objeto

representado, compostos por elementos que possibilitam uma reflexão a respeito da

relação com aspectos daquela sociedade38.

Na maioria das vezes quem realizava as dissecações eram os auxiliares do

anatomista mestre, pois devemos levar em consideração que no período não se

considerava o trabalho manual como uma atividade digna. As dissecações eram

feitas em anfiteatros como verdadeiros espetáculos nos quais o corpo ficava em

posição de destaque. O anatomista mestre ditava a explicação enquanto seu auxiliar

ia realizando as incisões39.

No entanto, alguns anatomistas dispensavam a presença do auxiliar e

realizavam pessoalmente as dissecações, acreditando que desta forma construiriam

um conhecimento mais sólido sobre o corpo. É o caso de Andreas Vesalius, cujos

estudos foram fontes para esta pesquisa. Vesalius foi o autor de um dos mais

importantes livros de anatomia do Renascimento40, sendo até hoje referência para

os estudos sobre representação do corpo. Para este anatomista era importante

trazer para os livros gravuras que tivessem uma grande semelhança com a

realidade, pois para ele e para muitos de seus contemporâneos o conhecimento se

realizava a partir da percepção visual, portanto, o objetivo das pranchas anatômicas

era dar a ver no papel o que se observava na mesa de dissecação. 36 Cf SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit. 37 JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit., p.63. 38 Podemos citar como exemplo a Gravura 21 (fonte A), do livro De humani corporis fabrica, de

Andreas Vesalius, que apresenta o estudo do esqueleto humano. Esta prancha, além de seu imediato caráter pedagógico, ainda faz uma representação da dança macabra, fortemente presente no imaginário da época.

39 SAUNDERS e O’MALLEY, Idem. 40 VESALIUS, Op. Cit.

Page 26: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

26

A presença de artistas durante as dissecações era corrente e importante, pois

eram eles os responsáveis por ilustrar as pranchas anatômicas. Apenas nos casos

de desenhos mais simples ou quando o anatomista tinha habilidades artísticas, o

artista era dispensado. Este é o caso de algumas pranchas de Vesalius, mais

especificamente as gravuras referentes ao sistema circulatório.

Os artistas muitas vezes aproveitavam as dissecações em anfiteatros para

realizarem suas observações. Aqueles que não conseguiam estar presentes, porém,

se valiam de livros-textos contendo ilustrações, além de estudarem a partir da

observação de modelos vivos, que posavam nus, ou ainda moldes tridimensionais

de partes humanas esculpidas em diferentes materiais. Esses modelos eram

visualizados e representados de diferentes ângulos para possibilitar uma

compreensão de como preencher um determinado espaço em um desenho ou numa

pintura.

Contudo, da mesma forma como alguns anatomistas realizavam as próprias

dissecações em estúdios privados, alguns artistas também realizavam esta prática,

como Michelangelo e Leonardo da Vinci. Estes “artists-anatomists”, na expressão

usada por Jordanova e Petherbridge41, contribuíram para as emergentes ciências do

corpo. Estes artistas deixaram uma grande quantidade de material contendo

esboços, anotações e observações sobre o corpo humano, bem com sobre a

representação de outros elementos da natureza, como animais e vegetais.

Leonardo, inclusive, fez grandes contribuições ao criar novos métodos para a

dissecação e representação dos corpos observados42.

Percebemos, desta forma, a importância dos estudos de anatomia para o

Renascimento, não apenas para as artes e a sua busca pela representação perfeita

da realidade, mas também para se compreender o funcionamento do corpo, pois se

trata de um período em que o conhecimento sobre o mundo é muito valorizado. Em

nossa investigação procuramos observar nas gravuras as conexões entre as

convenções pictóricas e os desenhos de anatomia43, de forma a tentar achar

soluções para problemas de representação, por exemplo, a obsessão artística e

anatômica pela proporção perfeita e pela impressão de movimento44.

41 JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit., p.8. 42 Idem, p.44. 43 Idem, p.64. 44 Idem, p.76.

Page 27: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

27

É importante, contudo, estar atento a conceitos como realidade, realismo e

ideal. No Renascimento o que ocorreu foi uma busca por representar a aparência do

real, ou seja, representar as coisas conforme elas nos aparentam e não

necessariamente como elas são. Desta forma, um artista poderia deliberadamente

não utilizar as proporções exatas do corpo que ele estava ilustrando, desde que o

resultado final fosse mais harmonioso e agradável ao olhar. Gombrich dá um grande

exemplo desta distinção entre real e ideal analisando o já citado quadro de Botticelli,

O nascimento da Vênus. Um olhar mais atento revela que as proporções da deusa

não podem corresponder a uma imagem real do corpo humano. Alguns detalhes

como o tamanho do pescoço, a articulação dos braços com o tronco e a posição dos

ombros revelam que o artista teve que recorrer a uma forma de representar o corpo

feminino distante da realidade a fim de garantir que a deusa apresentasse traços

harmoniosos45. A partir da análise desta imagem podemos entender que a aparência

e a harmonia eram elementos muito importantes para aquele período, tendo em vista

que Botticelli sacrificou uma representação de proporções perfeitas da deusa em

nome da graciosidade.

1.3 O CORPO NA MODERNIDADE

Como vimos, na Modernidade o corpo é compreendido por dispositivos que

estão além da influência de planetas ou de forças ocultas. Não que esta forma de

perceber o mundo tenha desaparecido, mas se percebe um “desencantamento” nas

formas de se processar o conhecimento a partir dos crescentes estudos produzidos

com o intuito de decifrar os segredos da natureza. Podemos dizer que na

Renascença o “corpo se singulariza”46, ou seja, tudo o que o corpo expressa, como

dor, alegria, medo, entre outros, passa a ser explicado a partir do próprio corpo,

como uma reação a um estímulo externo. Desta forma, explica-se a necessidade de

se estudar a ação do homem no mundo e vice versa. Dentro desta perspectiva, os

estudos de anatomia possibilitavam um olhar diferenciado sobre o corpo, permitindo

uma análise mais atenta aos detalhes da anatomia e do funcionamento corporal.

45 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit., p.264. 46 CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, Op. Cit., p. 16.

Page 28: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

28

Percebemos que surge uma demanda por uma representação pictórica que

acompanhasse essas mudanças na forma de entender o homem e seu corpo, o que

faz com que a sua forma de representação se modificasse.

Partindo desta discussão sobre o conceito de homem e sua sede de

conhecimento e também sobre a arte renascentista observa-se que o corpo se torna

um objeto do olhar neste período. Uma interpretação que procuramos demonstrar é

que com a emergência do indivíduo se deu, também, uma valorização do

conhecimento sobre o homem, em função da qual diversos estudos de anatomia

foram realizados a fim de melhor perceber os detalhes do corpo, suas expressões e

ainda entender seu funcionamento, tanto para fins artísticos como também para a

produção do conhecimento médico. Muitos pintores recorriam à dissecação para

compreender os movimentos do corpo, principalmente através do estudo do

esqueleto e da musculatura (particularmente da musculatura superficial) procurando

entender como estas estruturas afetavam a forma, o movimento e a expressão do

corpo47.

Pode-se afirmar, portanto, que a arte da Renascença foi marcada pela busca

de uma representação fiel da natureza e do corpo humano que fizesse com que o

observador tivesse a impressão de estar vendo uma parte da realidade. Esta

concepção exigiu do artista um aprofundamento do conhecimento de variados

temas, como o estudo da perspectiva e da matemática, elaborando esquemas e

fórmulas com o objetivo de possibilitar uma exatidão representativa. No final do

século XV essa nova concepção estética estava muito bem definida, desta forma,

pode-se compreender porque diversos artistas tenham recorrido aos estudos

detalhados sobre o corpo humano a fim de alcançar um nível de representação o

mais naturalista possível.

A historiadora da arte Elisa Byington afirma que neste período ocorreu uma

“consciência da individualidade do artista”48 e que em função disto o valor das obras

de arte passaram a ser medidos pela habilidade e técnica do artista, e não mais

apenas pelos materiais utilizados na sua composição (por exemplo, se era feito com

materiais nobres, como o ouro e a prata, ou com recursos mais acessíveis). Um sinal

da ocorrência deste fenômeno está no fato de que artistas de diversas áreas

começaram a assinar suas obras. Na pintura, surgiram os retratos e auto-retratos,

47 Cf. JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit. 48 BYINGTON, Op. Cit., p. 42.

Page 29: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

29

com toda uma preocupação em se preservar a memória, que era considerada única

e singular. Essa valorização demonstra um desejo de conhecimento, tanto da

natureza, quanto do ser humano.

Conforme demonstramos, a habilidade do artista era medida pela sua

capacidade de representação da realidade. Quanto mais a imagem passasse a

impressão de naturalidade, mais seu autor era admirado. Desta forma, tão

importante quanto a proporcionalidade da imagem, era a interação entre os seus

componentes, o que demandava um estudo minucioso dos movimentos do corpo e

de elementos da natureza, como a ondulação das águas de um rio e o balanço das

folhas de uma árvore pelo vento. Gombrich nos mostra que neste período houve

uma série de discussões e debates entre os artistas a fim de definir qual a melhor

forma de compor uma representação artística e que Leonardo da Vinci participou

ativamente desta discussão, deixando diversos escritos onde explica a importância

de se manter uma relação entre o movimento e a expressão do “estado de espírito

das criaturas que compõem seu quadro”49.

Outro aspecto muito importante para a consagração de um artista era a sua

habilidade de representar as expressões humanas, chamadas “afetos”50, que

deveriam demonstrar sentimentos com naturalidade e apropriados à situação em

que as figuras estavam colocadas. Encontramos neste aspecto um importante valor

renascentista extensamente trabalhado nos manuais de conduta discutidos

anteriormente, que é o da medida, pois os afetos deveriam se adequar à

necessidade da representação idealizada pelo artista e, portanto, não poderia estar

em falta ou em excesso.

A partir destes apontamentos podemos pensar o Renascimento como um

período em que houve um intenso ideal de aperfeiçoamento no sentido em que

aqueles que se ocupavam do problema de explicar o mundo procuravam sempre a

superação e a utilização do conhecimento para a melhoria da sociedade em que

viviam. Desta forma, podemos afirmar que, apesar da ideia de retorno ao passado

implícita na valorização da Antiguidade em detrimento ao Medievo, este período

nada teve de nostálgico, mas sim de uma vontade de superação em que as astúcias

do homem foram colocadas a serviço do progresso científico e artístico.

49 Leonardo da Vinci apud GOMBRICH, “Norma...” Op. Cit., p.77. 50 BYINGTON, Op. Cit., p. 41.

Page 30: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

30

A historiografia atual busca desfazer a ideia de que houve uma drástica

ruptura entre estes dois períodos, pois encontramos elementos fundamentais para

se entender a Renascença muito antes do século XIV e percebemos aspectos de

continuidade entre a Idade Media e o Renascimento. Tomando este cuidado,

podemos estabelecer alguns fundamentos para se compreender a especificidade da

representação do corpo no início da Modernidade. A ruptura com a tradição

medieval de reprodução de corpos estáticos, a hierarquia entre as figuras

representadas, acarretando em personagens de tamanho diferente de acordo com a

importância social, e ainda a utilização de cores que não correspondiam às captadas

no ambiente pelo olho humano, são alguns destes fundamentos. A invenção de

novas técnicas, como a pintura a óleo, também contribuiu para que se modificassem

os métodos e os resultados, proporcionando uma nova forma de se perceber o

mundo.

Tendo em vista este novo modo de entender o homem podemos

compreender a importância dos estudos sobre o corpo realizados no Renascimento.

No próximo capítulo trataremos do status da arte e da ciência através da análise

biográfica dos dois autores cuja produção estudamos: Andreas Vesalius e Leonardo

da Vinci.

Page 31: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

31

CAPÍTULO 2

CULTURA DE ATELIÊ E DA UNIVERSIDADE NA PRODUÇÃO DO

CONHECIMENTO SOBRE O HOMEM

“O gênio vive para sempre, tudo o mais é mortal”

Andreas Vesalius

Neste capítulo aprofundamos a discussão do contexto, tratando

especificamente das artes e da ciência no Renascimento. Para tanto analisaremos o

processo de formação destes ofícios bem como seu significado social, procurando

discutir de que forma os estudos e as práticas pertinentes a estas áreas do

conhecimento expressavam uma nova concepção sobre o corpo conforme

problematizada no capítulo anterior.

Este capítulo também é dedicado a um esboço biográfico de Vesalius e da

Vinci, destacando seus estudos e processos de formação, tendo em vista a inserção

social de ambos. Desta forma buscamos fazer uma análise que compreendesse o

círculo social ao qual cada um pertencia, quais os meios que cada um utilizou para

ter acesso à formação específica de seus ofícios e de que forma eles se

relacionavam com o ambiente em que atuavam – a universidade, no caso de

Vesalius, e o ateliê, no caso de Leonardo.

Nossa análise sobre estas biografias será pautada, ainda, pela prática da

dissecação anatômica realizada por ambos, mas que eram diferenciadas em função

da especificidade de cada um enquanto anatomista e artista, dos usos destinados a

estes estudos e do círculo social em que estavam inseridos.

2.1 ESTUDOS DE ANATOMIA E DE PINTURA

Conforme discutido no capítulo anterior o Renascimento foi um período no

qual o estudo do corpo humano foi marcado pelo paradigma de representação fiel à

natureza e principalmente aos ideais de proporção e harmonia, o que permite

entender porque os estudos de anatomia e as artes visuais foram tão valorizados.

Ambos eram complementares, de forma que anatomistas e artistas dominavam

Page 32: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

32

conhecimentos comuns, isso quando não exerciam as duas funções

concomitantemente. Desta forma, podemos estabelecer que neste período a

anatomia era entendida como um conhecimento indissociável da representação

artística, tendo em vista a articulação entre estes dois campos na produção do

conhecimento sobre o homem e a natureza.

Em função desta articulação se faz necessário entender a formação nestes

dois ofícios, procurando pontos em comum e observando quando se diferenciam as

práticas pedagógicas. Um aspecto comum aos dois processos de formação é a

utilização do método da observação direta de elementos reais e a busca pela

representação naturalista. Ou seja, tanto estudantes de anatomia quanto artistas

aprendizes praticavam a partir de modelos reais e partiam destas observações para

produzir as representações visuais. Para discutirmos a questão da relação entre

artistas e anatomistas e a forma como estes diferentes campos se articulavam temos

que ter em vista, também, que a formação destes campos de atuação estava ligada

a duas culturas diferentes, pelo menos na Itália, a do ateliê e a da universidade,

conforme divisão sugerida por Burke51. Esta “cultura de ateliê” pode ser indicada

como um fator importante para que determinadas características fossem

perpetuadas em diferentes gerações de artistas. Já as universidades eram o lugar

ideal para aqueles que desejavam ter a formação humanista ou de investigação

filosófica.

O estudo das artes se dava nos estúdios, que Peter Burke define como a

“unidade fundamental”52 na qual se reuniam pintores e escultores. A produção

artística destes estúdios era coletiva, ou seja, se dava a partir da intervenção

conjunta do mestre, dos seus assistentes e dos seus aprendizes. Muitas vezes havia

colaboração entre diferentes estúdios, dependendo do tamanho e especificidade da

encomenda, o que era regulado pelas guildas de cada ofício.

Para o aprendizado da pintura os aspirantes eram geralmente confiados por

seus pais a um mestre pintor como aprendizes. Esses jovens começavam a estudar

desde muito cedo e seus estudos introdutórios consistiam basicamente em auxiliar o

mestre a triturar materiais para a preparação das cores e também na elaboração de

outros recursos artísticos. Conforme o aprendiz ia adquirindo experiência, a ele eram

confiados trabalhos de maior importância até que fosse capaz de pintar cenas

51 BURKE, Op. Cit., p. 66. 52 Idem, p. 79.

Page 33: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

33

completas nos quadros a partir do esboço do mestre53. Burke nos mostra que o

processo de formação de um artista durava entre cinco e treze anos e que as guildas

costumavam aceitar pintores com um aprendizado mínimo de sete anos em seus

quadros de mestres pintores54.

Era esperado que o aprendiz conseguisse imitar os traços do mestre,

característica que nos revela outro importante aspecto da arte renascentista – a

imitatio – um conceito que não necessariamente indica ausência de originalidade,

mas que “louvava o exemplo e, enquanto tal ocupava o centro das preocupações

dos artífices de todas as disciplinas que tinham a ver com invenção: da política à

filosofia, da literatura às artes visuais”55. Desta forma, afirma Byington, a ideia de

imitação estava ligada à de exemplo a ser seguido ou superado, como indicação de

admiração por aquele que está sendo imitado, fosse ele um mestre da Antiguidade

ou o mestre pintor da corporação de ofícios da cidade.

A imitatio era aplicada também no que se referia à representação do homem

e da natureza. Este é o conceito que está por trás da busca da representação

naturalista, pois o que se buscava era imitar a natureza, eterna fonte de inspiração,

de forma que a representação correspondesse “à reprodução o mais possível

perfeita da realidade [...] ligado a uma prática pictórica determinada a recriar a

perfeita ilusão do visível”56.

Depois de receber um treinamento completo e de se mostrar capaz de atingir

os padrões exigidos, o artista entrava para a guilda de sua cidade, também

chamadas de corporação de ofícios, e podia, ele próprio, começar a recrutar

aprendizes. Burke define as guildas como “a unidade máxima de organização para

pintores, escultores e construtores”57, com estatutos próprios e funcionários

administrativos. Estas corporações foram muito importantes para se manter um

padrão na formação de novos artistas, pois procuravam garantir uma formação

mínima de três anos aos aprendizes e ainda evitavam que estúdios “fizessem

propostas a aprendizes de outros mestres”58, gerando uma discussão ética na

prática artística. Gombrich compara estas corporações aos nossos atuais

53 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p. 248. 54 BURKE, Op. Cit., p. 67. 55 BYINGTON, Op. Cit., p. 15. 56 Idem, p. 18. 57 BURKE, Idem,p. 84. 58 Idem, p. 85.

Page 34: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

34

sindicatos59, pois tinham o objetivo de garantir privilégios para seus membros com

relação aos artistas de outras localidades, bem como regular um mercado para as

obras produzidas. Isto nos permite entender as características regionalistas da arte

renascentista, pois tendo em vista o conceito de imitatio e as exigências para se

entrar em uma corporação, podemos acreditar que cada região buscava se

caracterizar por determinados traços, que acabaram sendo reproduzidos como

padrão. Por este motivo se faz importante saber de onde era determinada produção

artística e seus objetivos, ou seja, saber se havia sido concebida para fins artísticos

– para ficar em apenas um lugar, em determinada parede de uma igreja ou palácio –

ou para fins pedagógicos – se era produzida para circular pelos estúdios e

universidades.

Peter Burke nos mostra que neste período o uso mais frequente para as

obras de arte era o religioso, tendo em vista que “as pessoas daquela época viam

[as imagens] primordialmente como imagem sagrada” 60. Este aspecto explica o

motivo de grande parte das pinturas e esculturas desta época representarem Jesus,

a Virgem ou os santos. Estas imagens podiam ser devocionais ou didáticas, com a

finalidade de transmitir a doutrina cristã61.

Burke também aponta para o uso político das obras renascentistas através da

representação de membros importantes da elite e também através das dedicatórias

aos patronos62. Outro uso bastante comum era um tipo de “propaganda” que poderia

ser sobre uma filha esposável ou simplesmente para impressionar outras famílias,

tendo em vista que os bens de uma família eram “cenário e objetos de cena da

longa peça de teatro em que exibiam seu status” 63. Além destes usos não podemos

deixar de lado o mais imediato, que é o de proporcionar prazer. Burke nos mostra

que “a crescente importância dessa função é uma das mais significativas mudanças

do período” 64.

Para poder representar o corpo humano de forma naturalista os artistas

utilizavam modelos vivos que posavam nus, ou ainda moldes tridimensionais de

partes do corpo humano esculpidas em diferentes materiais. Esses modelos eram

visualizados e representados de diferentes ângulos de forma a possibilitar uma 59 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p. 248. 60 BURKE, Op. Cit., p. 150. 61 Idem, pp. 152-153. 62 Idem, pp. 156-158. 63 Idem, p. 166. 64 Idem, p. 168.

Page 35: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

35

compreensão de como preencher um determinado espaço em um desenho ou

pintura (Fig. 3).

(Figura 3 – A academia de Baccio Bandinelli, Enea Vico, c. 1535)

Outro recurso bastante utilizado – e que interessa especialmente aos

objetivos desta pesquisa – era o uso de cadáveres. Muitos pintores utilizavam da

dissecação para compreender os movimentos do corpo, principalmente através do

estudo do esqueleto e da motricidade (particularmente da musculatura superficial)

procurando entender de que forma estes aspectos afetavam a forma, o movimento e

a expressão do corpo. Michelangelo e Leonardo da Vinci foram dois dos primeiros

artistas a utilizar estes recursos65. Outra forma de os artistas terem acesso a um

corpo dissecado era participando das aulas nas universidades ou ainda nos estúdios

de anatomistas, conforme demonstramos no primeiro capítulo.

Nos estudos de anatomia aquele que queria se aprofundar geralmente

entrava para um curso de medicina. Burke aponta que neste período as

universidades eram “a coisa mais próxima de uma guilda”66 para humanistas e

cientistas, pois era onde estes estudiosos podiam se reunir. Nas aulas sobre a

fisiologia do corpo os estudos se baseavam na observação de livros-textos, como De

65 Conforme JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit., p.8. 66 BURKE, Op. Cit., p. 86.

Page 36: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

36

Humani Corporis Fabrica e Tabulae Sex67, ambos de Andreas Vesalius, ou, como

vai se tornar cada vez mais usual a partir do Renascimento, se utilizava o recurso da

dissecação, realizada em aulas expositivas nos anfiteatros das universidades e

também em estúdios privados68.

Diversas descrições e ilustrações sobre as práticas pedagógicas do estudo da

anatomia mostram artistas e estudantes que são vistos desenhando em frente a um

esqueleto completo ou a modelos de partes de corpos humanos, enquanto um

compacto grupo de estudantes se coloca à volta de um cadáver, geralmente

dissecado pelo assistente do mestre anatomista (Fig. 4). Conforme discutimos no

primeiro capítulo, é interessante observar a presença do assistente e o fato de que

geralmente não era o anatomista quem realizava a dissecação. Este aspecto é

relevante pois temos que lembrar o preconceito social deste período com relação ao

trabalho manual69. Apenas alguns poucos artistas e anatomistas realizavam, eles

próprios, suas incisões e análises do corpo, entre eles Leonardo da Vinci (1452 –

1519) e Andreas Vesalius (1514 – 1564), que são os autores das imagens utilizadas

como fontes para esta pesquisa.

(Figura 4 – Fascículo de Medicina, Johannes de Kethan, 1493) 67 Ambos contidos em: VESALIUS, Andreas. De humani corporis fabrica. Campinas:

Editora. Unicamp, 2003. 68 Conforme JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit., p.8. 69 Cf. BURKE, Op. Cit.

Page 37: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

37

Como afirmamos anteriormente, a presença de artistas durante as

dissecações era muito importante para que se garantisse que o que se observava

fosse transferido fielmente para o papel. Desta forma, a grande maioria dos livros-

textos eram ilustrados por artistas. Como neste período ainda não estava sendo

difundida a prática de assinar as obras muitos destes artistas não assumiram a

autoria destas representações, o que dificulta sua identificação. No caso dos livros

de Vesalius, especialmente o De Humani Corporis Fabrica, alguns historiadores,

como Deanna Petherbridge e Ludmila Jordanova, afirmam que o artista que o

ilustrou foi Johan Stephan Von Calcar70. Outros historiadores, como Saunders e

O’Malley, são mais cautelosos no que se refere à autoria das ilustrações. Para estes

historiadores, Jan Stefan van Kalkar (Johan Stephan Von Calcar) foi o provável autor

das imagens, porém afirmam que esta discussão está cercada por incertezas

históricas. Para eles a única certeza com relação a Kalkar é de que ele foi o autor de

três imagens de esqueletos completos contidos nas Tabulae Sex71. Há, ainda

indicações de que Ticiano tenha desenhado algumas das pranchas anatômicas que

compõem Fabrica, conforme estudo de Daniel Arasse72.

É importante levar em consideração, contudo, que a parcela da população

que podia se dedicar aos estudos em ateliês e, principalmente, nas universidades

era muito reduzida e que a maior parte das pessoas viveu alheia aos valores

máximos do Renascimento. Apenas uma minoria de artistas, humanistas e cientistas

era oriunda do campesinato ou de camadas populares urbanas73. Burke afirma que

geralmente estes ofícios estavam ligados a uma tradição familiar e que, no caso dos

artistas, quando estes não tinham pais ou tios pintores era muito provável que

viessem de famílias de artesãos, o que fazia com que os aprendizes já tivessem

experiência com questões práticas do ofício, como saber trabalhar com tintura de

tecidos, cortar pedras ou madeira, entre outras74. No que diz respeito aos estudantes

universitários era notável a predominância de nobres, humanistas e cientistas. Burke

explica que esta característica não é difícil de explicar, tendo em vista que era mais

caro manter um filho na universidade do que num estúdio de artistas, tornando mais 70 JORDANOVA e PETHERBRIDGE, Op. Cit., p.27. 71SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., pp. 29-31. 72 ARASSE, Daniel. “A Carne, a Graça, o Sublime”. In: CORBIN, COURTINE e VIGARELLO, Op. Cit.,

p. 566. 73 Cf. BURKE, Op. Cit. 74 Idem, pp. 61-62.

Page 38: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

38

difícil para um indivíduo das camadas populares seguir o caminho das artes

liberais75.

A partir desta constatação Burke define que a elite criativa era formada por

dois grupos diferentes, “um grupo visual recrutado na maioria entre artesãos e um

grupo literário recrutado nas classes superiores”76. Podemos acrescentar a este

último aqueles que se dedicavam aos studia humanitatis, à ciência e às leis. É

importante levar em consideração, contudo, que esta separação entre dois grupos

distintos não foi incontornável e definitiva. Não podemos esquecer, ainda, o ideal de

homem universal, bastante importante para este período e que demandava estudos

intensos por parte daqueles que buscavam aperfeiçoamento em seu ofício77.

Outra questão importante a ser levada em consideração para se entender a

inserção social de artistas e anatomistas é a crescente valorização do ambiente

urbano. A concentração de artesãos e de serviços burocráticos públicos típicos das

cidades acarretou em um afloramento das artes visuais e científicas neste período,

demandando uma organização social específica para estes ofícios que, como já

discutimos, se dava nos ateliês e nas universidades.

Após esta breve discussão a respeito dos ofícios de anatomista e da pintura

podemos nos dedicar à vida e obra de Andreas Vesalius e de Leonardo da Vinci,

tendo em vista a sua inserção nos círculos respectivos de cada ofício, a universidade

e o estúdio.

2.2 ANDREAS VESALIUS

Andreas Vesalius foi um dos mais importantes anatomistas do Renascimento.

Seus estudos são citados atualmente em livros escolares, manuais de medicina,

manuais de desenho e ilustração, entre outros. Contudo, a forma como sua obra

anatômica é referenciada, principalmente nos materiais didáticos e nos manuais,

geralmente é apenas ilustrativa, para exemplificar um tipo de estudo sobre noções

de perspectiva e harmonia. Desta forma, se faz necessário problematizar a

75 BURKE, Op. Cit., pp.65-66. 76 Idem, p. 66. 77 Idem, pp. 74-79.

Page 39: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

39

discussão sobre a obra vesaliana, a fim de evitar generalizações e explicações

sumárias, inserindo seu trabalho dentro do contexto renascentista. Na historiografia

encontramos diversas referências a Vesalius, tanto no que diz respeito à história da

arte como também à história do corpo e da ciência, o que demonstra não apenas a

relevância de seus estudos, mas a importância e o alcance da anatomia humana na

Renascença para diferentes áreas do conhecimento.

Nascido em 31 de dezembro de 1514 em Bruxelas, Vesalius vem de uma

família dedicada ao estudo da medicina78. Seu avô, seu bisavô e também seu

tataravô haviam sido médicos reconhecidos em suas localidades e haviam

contribuído para o estudo da prática da medicina, deixando diversos tratados sobre

o tema que, inclusive, serviram de introdução aos estudos do jovem Vesalius. Seu

pai foi farmacêutico e prestou serviços ao Imperador Carlos V. Conforme Saunders e

O’Malley, o jovem Andreas se beneficiou da produção intelectual de seus

antepassados, se inspirando nos estudos sobre os mistérios do corpo humano.

Andreas Vesalius faleceu ao retornar de uma peregrinação à Terra Santa em

15 de outubro de 1564 e o motivo de sua morte ainda é desconhecido sendo poucas

as informações que chegaram até nós, como a data da morte e o local do enterro,

que foram inscritas em seu túmulo, na ilha grega de Zante79, que fica entre a Grécia

e a Itália.

Pouco se sabe, também, sobre sua educação inicial, além do fato de Vesalius

ter tido acesso a uma vasta biblioteca familiar em sua infância. Em 1528 ingressou

na Universidade de Louvain, onde estudou latim, além de se dedicar ao estudo de

obras de filosofia natural de escritores medievais. Já demonstrava neste período

interesse pela prática da dissecação, tendo realizado este procedimento em

pequenos animais. Em 1531 foi transferido para o Collegium Trilingue de Louvain,

cujo currículo era baseado em ideais humanistas80.

Após esta primeira instrução formal Andreas Vesalius ingressou no curso de

medicina da Universidade de Paris. Saunders e O’Malley afirmam que esta

instituição era bastante conservadora em relação ao método e às condições de

ensino. Enquanto nas universidades italianas a prática da dissecação era mais

difundida, em Paris ainda utilizavam métodos medievais de estudos de anatomia,

78 Cf. SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit. 79 Idem, p. 41. 80 Idem, p.18.

Page 40: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

40

“constituindo-se em pouco mais que formalidades”81, consistindo em raras sessões

de dissecação que não satisfaziam totalmente as necessidades dos estudantes, o

que fez com que Vesalius estudasse basicamente através de manuais didáticos ou

ainda que procurasse por ossos nos ossários da cidade para estudar a partir da

observação das estruturas anatômicas.

Em 1514 foi publicada em Paris a tradução de uma coletânea de trabalhos de

Galeno, do grego para o latim, o que foi um grande avanço para o estudo da

medicina ocidental que, até então, tinha acesso a estas obras somente através de

traduções do grego para o aramaico e deste para o árabe e só então para o latim, o

que poderia causar muitas distorções em relação ao original. A partir de então foram

realizadas diversas traduções das obras de Galeno e de Hipócrates, produzindo uma

efervescência nos estudos de anatomia e medicina em Paris. Porém, apesar desta

renovação metodológica humanista a Universidade de Paris continuava

conservadora em relação às práticas de dissecação anatômica em seres humanos,

o que fez com que o jovem Vesalius tenha presenciado apenas duas ou três

demonstrações desta natureza no período em que ficou na cidade. De fato, Vesalius

queixou-se posteriormente que “era grande a falta de apoio dos professores nessa

parte da medicina”82.

Vesalius deixou Paris sem concluir o curso de medicina em função da invasão

da região da Provença por Carlos V, pois foi forçado a retornar a Louvain por ser

súdito imperial. O fato de não ter concluído o curso, entretanto, não pareceu ser

motivo de maiores tristezas para Vesalius, pois recebeu bastante apoio do governo

daquela cidade para realizar seus estudos de anatomia, tendo enfim a oportunidade

de se dedicar às dissecações e ao método da observação, concluindo seu

bacharelado em Louvain.

Contudo, Saunders e O’Malley comentam que Vesalius teve um

desentendimento com Jeremiah Drivère, professor da Universidade de Louvain, pois

discordavam veementemente sobre a metodologia mais adequada à venissecção

(sangria). Esta discussão acabou por dificultar seus estudos naquela cidade, o que

fez com que Vesalius buscasse oportunidades em outros lugares, especialmente nas

cidades italianas, que apresentavam maiores oportunidades para o estudo de

medicina e de anatomia em função de seus métodos menos conservadores com

81 SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., p.18. 82 Idem, p. 20.

Page 41: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

41

relação às práticas anatômicas, Desta forma, partiu para Pádua em 1537, onde com

apenas vinte e três anos recebeu o grau de Doutor em Medicina e foi nomeado

professor de cirurgia, cargo que implicava, também, a função de professor de

anatomia83. Burke aponta esta universidade como a mais importante daquele

período na Itália em função do investimento do governo veneziano, território ao qual

Pádua pertencia84.

Como professor de Cirurgia, Vesalius atraiu bastante atenção e popularidade

em função do caráter peculiar de seu método de ensino. Para este anatomista a

percepção visual era primordial no aprendizado da medicina, o que fazia com que

descesse de sua cátedra e interferisse nas sessões de dissecação, explicando os

conteúdos através de demonstrações visuais, manejando o escalpelo. Quando não

havia um corpo para ser dissecado Vesalius recorria ao recurso dos desenhos

anatômicos para que fosse “proveitosa a todos aqueles aos quais é recusada a

observação experimental”85. Estes desenhos foram posteriormente publicados,

resultando em um vasto material didático que revolucionou a forma de se entender o

corpo, estabelecendo “um novo critério para o uso da ilustração na biologia e

também nas artes gráficas”86.

É importante levar em consideração os livros de anatomia elaborados por

Vesalius para entender a importância social deste anatomista e sua inserção no

contexto renascentista de produção do conhecimento. Suas principais obras, Fabrica

e Tabulae Sex, foram impressas pelo método da gravura em metal, de forma a obter

uma qualidade visual superior, apresentando detalhadamente cada prancha. Burke

credita ao Renascimento a confecção das primeiras gravuras em chapas de metal87,

de forma que podemos inferir que Vesalius estava em sintonia com os avanços

tecnológicos de sua época.

Além de ser conhecido pelas pranchas anatômicas de fins pedagógicos,

Vesalius também é reconhecido por ter revisado a obra de Galeno e, através das

observações feitas a partir da mesa de dissecação, ter percebido que havia

discrepâncias entre os ensinamentos do grande mestre da Antiguidade e as

conclusões do jovem anatomista. Vesalius, porém, tratou da questão com humildade 83 SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., pp. 20 e 21. 84 BURKE, Op. Cit., p. 69. 85 Andreas Vesalius apud MANDRESSI, Rafael. “Dissecações e anatomia”. In: CORBIN, COURTINE

e VIGARELLO, Op. Cit., pp. 423-424. 86 SAUNDERS e O’MALLEY, Idem, p. 22. 87 BURKE, Idem,p. 25.

Page 42: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

42

e procurou conciliar os ensinamentos de Galeno com aqueles que ele próprio estava

construindo. Percebemos, desta forma, a importância do método da observação

para Vesalius, que se tornou o cânone dos estudos anatômicos durante séculos.

A publicação de De Humanis Corporis Fabrica em 1543 é tida por muitos

especialistas como o início da ciência moderna. Nesta obra as imagens e os textos

se completam, não sendo o recurso visual concebido apenas como uma ilustração,

mas sim como a consolidação dos conhecimentos obtidos na mesa de dissecação.

Cada imagem era acompanhada de um texto escrito por Vesalius, de forma que um

não poderia ser entendido sem o outro, formando “um todo inseparável”88.

É interessante prestar atenção ao fato de que Carlos V foi o mecenas de

Fabrica, pois, a partir da sua publicação, um marco na carreira do anatomista, ele foi

nomeado médico do imperador. Os biógrafos de Vesalius apontam que a partir desta

nomeação ele passou a ficar em segundo plano e sua obra teve mais

reconhecimento do que o próprio autor. Saunders e O’Malley acreditam que isto se

deva ao fato de que “o ideal vesaliano era o médico completo” 89, que tivesse seus

conhecimentos baseados tanto na observação quanto na prática, de forma que com

a nomeação como médico imperial tivesse a oportunidade de conhecer este outro

lado da medicina.

A receptividade de Fabrica na Europa foi bastante positiva, apesar de

Vesalius sofrer críticas e ataques ferozes de alguns estudiosos mais conservadores

que não concordavam com suas ratificações à obra de Galeno. Desta forma, tanto o

livro quanto seu autor percorreram diversas cidades e universidades, como Bolonha

e Pisa90, cumprindo o intento pedagógico que Vesalius tanto prezava em um livro de

anatomia.

Vesalius publicou uma segunda edição do De Humanis Corporis Fabrica em

1555, onde foram acrescentadas algumas revisões baseadas em novas

observações e reflexões nascidas da experiência de Vesalius como anatomista e

cirurgião91. Esta nova edição foi impressa em papel de melhor qualidade e em um

formato maior que o da primeira impressão. A qualidade das gravuras foi

amplamente elogiada e Saunders e O’Malley apontam que “Em nenhum outro lugar,

88 SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., p. 25. 89 Idem, p. 33. 90 Idem, p. 34. 91 Idem, p.38.

Page 43: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

43

e isso inclui o moderno Icones de 1934, encontram-se ilustrações melhores”92. Para

estes estudiosos da obra vesaliana, tal feito foi possível graças à fortuna que

Vesalius acumulara com heranças de família e também por sua atuação como

médico da corte imperial.

Com a abdicação de Carlos V em 1555 Vesalius passou a servir o novo

soberano espanhol, Felipe II a partir de 1556. Saunders e O’Malley apontam um

série de infortúnios que fizeram com que o anatomista não fosse feliz em seu novo

posto, como o despeito e as posturas antiquadas dos outros médicos da corte

espanhola93. A gota d’água havia sido a doença do Infante Dom Carlos. Ferido

gravemente na cabeça foi tratado com métodos arcaicos baseados em crendices

populares. Vesalius recebeu forte oposição da população, mas também pelo “ciúme

e provincialismo dos médicos espanhóis”94 , até que finalmente pode administrar

seus conhecimentos para recuperar a saúde do Infante. Após seu desligamento da

corte espanhola Vesalius empreendeu uma peregrinação à Terra Santa, na qual,

como falamos inicialmente, veio a falecer durante a viagem de volta, em 1564.

A partir de sua vida e obra justifica-se o estudo da obra vesaliana ainda hoje,

tendo em vista a grande contribuição de Andreas Vesalius para a nascente ciência

moderna em função da “criação de uma atmosfera de pesquisa e do estudo

anatômico fundado na observação”95, que acabou se consolidando como um dos

fundamentos do método científico. Vesalius modificou de tal forma os estudos sobre

o corpo humano que ao final do século XVI seu método havia se tornado prática de

referência para todos os estudos anatômicos96.

2.3 LEONARDO DA VINCI

Leonardo da Vinci nasceu em 15 de abril de 1452 na pequena cidade de

Anchiano, perto de Vinci, na região de Florença. Conforme o esboço biográfico

contido no livro Leonardo da Vinci, de Gabriel Séailles97, Leonardo é filho ilegítimo

92 SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., p.38. 93 Idem, pp. 38-39. 94 Idem, p. 40. 95 PORTER, Roy. VIGARELLO, Georges. Corpo, saúde e doenças. In: CORBIN, COURTINE e

VIGARELLO, Op. Cit., p. 452. 96 Idem, p. 453. 97 SÉAILLES, Op. Cit.

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44

de Ser Piero e uma jovem chamada Catarina. Após seu nascimento, sua mãe o

deixou aos cuidados do pai e se casou com outro homem. Após estes

acontecimentos seu pai se casou com Alberia Amadori, com quem teve outros filhos,

e levou Leonardo para viver com uma nova família. Da Vinci morreu no dia 02 de

maio de 1519, aos 67 anos, na corte do rei da França, Francisco I, de quem foi

amigo.

Da mesma forma como ocorre com Vesalius, pouco se sabe sobre sua

formação inicial, o que se sabe é que aos 8 anos de idade o jovem Leonardo seguiu

com seu pai para Florença e que em 1469 se tornou aprendiz no estúdio de Andrea

Del Verrochio, nesta mesma cidade98. Conforme explicado anteriormente, na

condição de aprendiz ele deveria ir progredindo de acordo com seus méritos, ou

seja, após receber as instruções iniciais sobre o ofício foi realizando trabalhos cada

vez maiores, aumentando gradualmente a dificuldade de forma a adquirir as noções

necessárias para a prática da pintura. Leonardo, porém, se diferenciou de outros

aprendizes de sua época, pois estes começavam seus estudos ainda meninos, por

volta dos 10 anos, enquanto da Vinci ingressou no ateliê de Verrochio aos 15 anos.

Este aspecto é interessante, pois nos permite entender a excepcionalidade de

Leonardo, que, mesmo começando seus estudos artísticos mais tarde que o usual

para a época, desenvolveu rapidamente suas notáveis habilidades.

De acordo com as regras vigentes na época, Leonardo deveria ser capaz de

realizar algumas técnicas com precisão para então ser considerado digno de entrar

na guilda de pintores de sua cidade. Em 1472 conseguiu se registrar como membro

independente da guilda de pintores de Florença, mas ainda continuou no estúdio de

Verrochio, realizando trabalhos para seu mestre até 147799.

Leonardo chamou atenção como artista desde seus primeiros trabalhos, tanto

que Vasari, ao analisar uma obra de Verrochio chamada Batismo de Cristo, afirma

que seu mestre ficou assustado ao perceber que a parte do quadro que deixou a

cargo de seu aprendiz, a figura de um anjo segurando algumas vestes, havia ficado

melhor do que todo o resto, e que “nunca mais quis tocar nas cores, inconformado

pelo fato de um menino saber mais que ele” 100 (Fig. 5).

98 Idem, p.5. 99 Idem, p.12. 100 VASARI, Giorgio. Vidas dos Artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.445.

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45

(Figura 5 – Batismo de Cristo, Leonardo da Vinci e Andrea Del Verrochio, 1470 -

1476)

De acordo com Séailles a maior parte dos primeiros trabalhos de da Vinci

foram perdidos e só sabemos sobre eles por análises feitas por Vasari. A partir

dessas descrições podemos perceber que já nos anos iniciais Leonardo havia criado

uma identidade própria como artista, desenvolvendo estudos sobre a natureza e

também sobre o funcionamento do corpo. Já havia desenvolvido também

habilidades de composição e o método do chiaroscuro, pelo qual passou a ser

imitado por artistas como Perugino, Michelangelo e Rafael101.

Da Vinci já demonstrava neste primeiro momento uma capacidade de

expressar diversas emoções em suas obras, tanto pinturas como esculturas, e a

preocupação em manter uma relação entre o movimento e os afetos em suas

composições. Contudo, não reservava estas habilidades apenas no campo das

artes, mas também já se dedicava ao estudo de outras ciências, como arquitetura e

engenharia.

101 SÉAILLES, Op. Cit., p.18 – 20.

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46

Em 1492 Leonardo trocou Florença por Milão, conforme Séailles afirma,

“buscando a oportunidade de agir e exercer seu gênio universal”102, e, ainda

conforme Séailles, não podia achar ninguém melhor que Ludovico Sforza - “Que era

ávido por glória, curioso sobre todas as ciências e pretendia justificar a usurpação do

poder, fazendo Milão a cidade mais importante da Itália e rival de Florença”103 - para

financiar seus estudos e suas criações artísticas.

Em Milão começou a projetar suas famosas invenções, como catapultas,

canhões e outras máquinas de guerra. Como sua fixação por aprender o

funcionamento de mecanismos das máquinas e dos organismos ficava cada vez

maior, dedicou grande parte de seu tempo estudando estas questões, passando a

aplicar seus novos conhecimentos em projetos de engenharia e também

desenvolvendo novas técnicas como artista.

O principal trabalho de Leonardo da Vinci em Milão foi a Última Ceia, pintado

no refeitório da Igreja de Santa Maria delle Grazie, entre 1494 e 1498 (Fig. 6). Da

Vinci queria que seu trabalho “refletisse perfeitamente o “natural” da forma como era

vista pelo olho humano” 104, demonstrando estar em perfeita sintonia com os ideais

de sua época que, conforme explicado no capítulo anterior, buscavam uma

representação da realidade bastante naturalista, na qual o artista passasse para a

sua obra uma aparência de realidade. Leonardo aplicou tão bem esta regra em sua

pintura que o observador tem a impressão de que por trás dos homens

representados ao logo da mesa há um longo hall. Gombrich explica que a

importância desta obra está na originalidade com que o artista trabalhou um tema já

tão explorado na arte ocidental, afirmando que “Nada havia nesse afresco que se

assemelhasse às representações anteriores do mesmo tema. [...] Há nela drama,

teatralidade e excitação” 105.

102 Tradução livre de: “seeking the opportunity to act and to exercise his universal genius”. SÉAILLES,

Op. Cit., p. 26. 103 Tradução livre de: “who was avid for glory, curious about all the sciences and intent on justifying his

usurpation of power by making Milan the most important city in Italy and the rival of Florence”. SÉAILLES, Op. Cit., p. 26 – 27.

104 Tradução livre de: “perfect reflect ‘Nature’ as it is seen by the human eye”. SÉAILLES, Op. Cit., p. 32.

105 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p. 297.

Page 47: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

47

(Figura 6 – A Última Ceia, Leonardo da Vinci, 1494-1498)

As incertezas políticas na Itália com a invasão de Milão pelos franceses fez

com que Leonardo deixasse a cidade e seguisse para Mantua, depois Veneza e

finalmente Friuli, em busca de trabalho106. Em 1501 da Vinci retorna a Florença e de

acordo com Séailles, precisava de um “protetor cujas necessidades fossem tão

variadas quanto os seus talentos”107, desta forma, entrou para o serviço de Cesar

Borgia, pois “Leonardo era o homem certo para um príncipe de tão grandes

ambições”108. Em 1501, ainda, Leonardo termina a pintura de seu mais famoso

quadro: A Mona Lisa, pelo qual ficou conhecido na posteridade por apresentar todas

as técnicas que desenvolveu para a representação naturalista, tais como a

perspectiva, o uso do chiaroscuro, do sfumato109, entre outros.

A volta de Leonardo para Florença também foi marcada por sua famosa

inimizade com Michelangelo, que o detestava110. Gombrich nos esclarece que da

Vinci foi um artista pouco compreendido por seus contemporâneos, muito em função

de seus constantes deslocamentos pela Itália111, que eram motivados pela situação

política desta região tão instável. Séailles completa ainda, explicando que

106 SÉAILLES, Op. Cit., p. 5. 107 Tradução livre de: “protector whose needs were as varied as his talents”. SÉAILLES, Op. Cit., p.

86. 108 Tradução livre de: “Leonardo was just the man for a prince with such great ambitions”. SÉAILLES,

Op. Cit., p. 94. 109 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit., p.p 300 – 303. 110 SÉAILLES, Idem, p. 122. 111 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p. 296.

Page 48: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

48

Michelangelo, por ser um patriota apaixonado não compreendia a indiferença de

Leonardo com relação às fidelidades políticas e citadinas112.

A partir desta discussão sobre seu “não-patriotismo”, podemos entender sua

nomeação como pintor na corte de Luis XII da França, em 1507113, corte na qual

permaneceu sob proteção até a sua morte tendo, porém empreendido ainda muitas

viagens pela Itália. Em abril de 1519 Leonardo se encontrava doente e procurava

encaminhar seus negócios e encomendar serviços religiosos para sua alma, como

era comum naquela época, através de missas e garantindo um enterro em solo

sagrado. Em seu testamento deixa todos os seus manuscritos, desenhos, estudos e

ferramentas para seu discípulo favorito, Francesco Melzi e todas as pinturas

remanescentes em seu estúdio, incluindo a Mona Lisa, foram deixadas para Salai,

outro aprendiz. No dia 02 de maio deste mesmo ano, Leonardo morreu na corte do

Rei da França, Francisco I, e foi enterrado em Amboise.

Estudar a vida de Leonardo para entender como se dava a representação do

corpo naquele período nos permite entender de que forma os valores que citamos

anteriormente, como a valorização do homem, do conhecimento e da razão,

estiveram presentes na sua arte. Na busca por tornar visível aquilo que era

concebido pela imaginação, da Vinci passou também a estudar corpos humanos,

recorrendo ao método da dissecação e da observação com o intuito de entender de

que forma se davam os movimentos do corpo para dotar suas imagens de

naturalidade e expressão. De acordo com Séailles, “A ambição de Da Vinci foi a de

representar tudo o que, em uma face ou em uma figura, mostra a alma humana: Os

sorrisos de uma nobre mulher de Florença, bem como as caretas de

soldados ferozes” 114.

Para Leonardo, a resolução de um problema que se colocava ao trabalhar em

uma representação deveria se dar a partir da observação e do estudo e

desenvolvimento de técnicas novas. Esta característica nos mostra um artista

sempre em busca de aperfeiçoamento e que não aceitava que se colocasse um

impedimento à sua arte. Nesta busca por descobrir a melhor forma de pintar

112 SÉAILLES, Op. Cit., p. 126. 113 Idem, p. 7. 114 Tradução livre de: “Da Vinci’s ambition was to render everything which, on a face and in a figure,

shows the human soul: The smiles of the noblewomen of Florence as well as the grimaces of ferocious soldiers.”. SÉAILLES, Op. Cit., p. 146.

Page 49: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

49

dissecou mais de trinta cadáveres com o intuito de desvendar os segredos do corpo

humano115.

A partir destes estudos da Vinci fez centenas de desenhos anatômicos.

Conforme Porter e Vigarello116, estes foram feitos para uso próprio, provavelmente

em sigilo, e não para servir de material didático nas universidades. Contudo, Gilson

Barreto e Marcelo G. de Oliveira afirmam que o objetivo de Leonardo era elaborar

um manual de anatomia em conjunto com o anatomista Marcantonio Della Torre,

que não pôde ser finalizado em função da morte deste. Os corpos a que Leonardo

teve acesso provinham de criminosos executados e até mesmo de hospitais, e foram

disponibilizados pelo Mosteiro do Espírito Santo, em Roma117.

Podemos concluir, a partir dos estudos anatômicos de Leonardo, que apesar

de manter seus escritos e esboços em sigilo este artista foi de grande importância

para a constituição da anatomia moderna, pois conforme Arasse nos explica, “a

modernidade própria dos desenhos de Leonardo está, aliás, com toda precisão, na

neutralidade objetiva com a qual eles apresentam (ou supostamente apresentam) a

constatação gráfica de uma observação visual”118.

A partir desta constatação, podemos entender melhor como a produção de da

Vinci se insere no contexto renascentista tendo em vista a excepcionalidade deste

artista ao aplicar técnicas novas que procuravam resolver problemas postos pela

representação naturalista, desenvolvidas a partir do método científico da observação

e da busca por desvendar os mistérios da Natureza. Desta forma Leonardo foi além

dos outros artistas de sua época que se contentavam com o estudo da motricidade a

partir de músculos, ossos e articulações, e buscou conhecer minuciosamente o

funcionamento do corpo como um todo.

115 GOMBRICH, “A História...” Op. Cit. p. 294. 116 PORTER e VIGARELLO, Op. Cit. 117 BARRETO, Gilson e OLIVEIRA, Marcelo G. A Arte Secreta de Michelangelo: Uma lição de

anatomia na Capela Sistina. São Paulo: Arx, 2004, pp. 49-50. 118 ARASSE, Op. Cit., p. 569.

Page 50: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

50

CAPÍTULO 3

O CORPO EM PERSPECTIVA

“Detalhes fazem a perfeição,

mas a perfeição não é um detalhe”

Leonardo da Vinci

Neste capítulo analisamos as fontes tendo em vista o contexto no qual foram

produzidas e o processo que cada um dos dois autores utilizou na elaboração das

suas famosas pranchas anatômicas. Inicialmente fazemos uma discussão a respeito

da metodologia que visa compreender a singularidade das fontes produzidas por

Leonardo e Vesalius. Para isto descrevemos separadamente cada imagem

buscando identificar seus elementos constitutivos. Em seguida analisamos o

conjunto das fontes de cada autor separadamente e depois comparamos os

resultados, de forma a perceber aproximações e distanciamentos.

Para esta pesquisa foram selecionadas cinco pranchas de cada autor, num

total de dez. O critério de escolha se baseou em obter imagens que mostrassem o

corpo em diferentes momentos da dissecação, ou seja, desde o corpo completo até

aquelas pranchas que representem esqueletos e estudos dos ossos

individualizados, de forma a permitir uma compreensão de todas as etapas deste

processo minucioso de estudo. A partir deste primeiro critério foi preciso estabelecer

outros que permitissem explorar melhor as fontes. Desta forma procuramos

selecionar imagens que representassem o corpo em diferentes ângulos, em

diferentes posições e que nos permitissem estudar detalhadamente quais eram as

características ilustrativas mais importantes para cada autor.

As pranchas referentes aos estudos de Andreas Vesalius estão no livro

De humani corporis fabrica119 que além de conter os estudos que ele realizou ao

longo de sua vida, traz também um Esboço Biográfico e uma análise das ilustrações

do livro, realizados por J. B. DeC. M. Saunders e Charles D. O’Malley. Estes

suplementos foram de grande utilidade na descrição das fontes em função da

linguagem bastante técnica que as acompanham. Para entender as pranchas é

necessário levar em consideração que a obra de Vesalius é de caráter pedagógico e 119 VESALIUS, Op. Cit.

Page 51: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

51

foi escrita para atender tanto aos alunos de medicina como aos aprendizes de

artistas de diferentes estúdios.

Os estudos de Leonardo da Vinci estão numa publicação norte-americana

que faz parte da coleção Dover Art Library120. Este livro é composto apenas de

reproduções de pranchas com estudos da anatomia humana realizados por da Vinci,

sem qualquer análise ou textos explicativos das ilustrações. Há apenas uma nota

bastante sucinta no início do livro com uma curta biografia de Leonardo.

3.1 A ABORDAGEM TRÍPLICE COMO MÉTODO DE ANÁLISE IMA GÉTICA

A metodologia de análise imagética utilizada na descrição e análise das

fontes é a da abordagem tríplice, proposta por Artur Freitas121, na qual se busca

estabelecer uma relação entre o conhecimento histórico e a história da arte e suas

diferentes perspectivas analíticas. Este método visa a compreensão da obra em três

dimensões: a formal, a social e a semântica.

A primeira dimensão explorada por este método é a formal, a qual, conforme

Freitas nos esclarece, se refere ao “momento em que, de fato vemos a imagem

como um acontecimento da visão: com sua dimensionalidade, sua materialidade e

sua visualidade”122. A partir disto, procura-se perceber todos os elementos que

compõem a imagem, indicando a posição, forma, volume, textura e os demais

detalhes que influenciem a percepção visual.

A dimensão social, por sua vez, tem por objetivo a análise de contexto, tendo

em vista a história material da imagem, suas condições de produção e de recepção.

Para Freitas é a abordagem social que nos permite “compreender em certo nível as

eventuais funções da imagem, ao descrevê-la justamente como uma operação que

atua num certo sentido, cumprindo certos papéis”123. No caso das fontes desta

pesquisa este aspecto é importante, pois precisamos compreender as imagens

120 DA VINCI, Leonardo. Leonardo’s Anatomical Drawings. Mineola, N.Y.: Dover Publications Inc,

2004. 121 FREITAS, Op. Cit. 122 Idem, p. 10. 123 Idem, p. 13.

Page 52: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

52

enquanto instrumentos pedagógicos de uso público e privado, pois esta é a

particularidade que as insere socialmente no contexto do Renascimento.

A última dimensão de análise proposta por Freitas é a semântica, que dá

conta das interconexões com as demais representações culturais de determinado

período. Esta dimensão nasce da interpretação das duas anteriores (formal e social),

ou seja, “nasce dos significados atribuídos pelo sistema de referências e valores de

um observador concreto – nasce, enfim, da construção subjetiva de um conteúdo”124.

Recorremos a este método – mesmo que as nossas fontes não sejam obras

artísticas, mas sim de estudos – por entendermos que estas três dimensões nos

possibilitam compreender a significação dada pelos artistas e anatomistas

renascentistas aos estudos imagéticos sobre o corpo, tendo em vista que

estabelecemos critérios de análise que envolvem desde os métodos e processos de

produção, a divulgação e recepção e até mesmo a influência da subjetividade de

cada autor, de forma a entender como Leonardo e Vesalius representaram o corpo.

Tendo esclarecido o método de análise empregado nesta pesquisa podemos

agora dar continuidade ao estudo das pranchas anatômicas elaborando,

primeiramente, a descrição das imagens, procurando estabelecer os aspectos

formais e sociais.

3.2 DESCRIÇÃO DAS FONTES

Para proceder à análise das fontes, primeiramente será feita a descrição

formal das imagens, tendo sempre a preocupação de inseri-las numa dimensão

social. Desta forma a descrição busca dar conta de todos os detalhes das pranchas,

tais como o posicionamento espacial do corpo, os tecidos representados, a

expressão ou ausência desta, o estudo específico da função corporal apresentada,

os elementos de composição, tais como objetos que interagem com o corpo, fundo,

entre outros. O aspecto social será apresentado antes da descrição formal, de forma

a facilitar o entendimento sobre esta dimensão e como ela interfere na questão

formal destas imagens.

124 FREITAS, Op. Cit., p. 14.

Page 53: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

53

3.2.1 ANDREAS VESALIUS - De humani corporis fabrica

Conforme dito anteriormente, as pranchas de Vesalius estão no livro

De humani corporis fabrica, publicado em 1543. É importante lembrarmos que esta

publicação é de caráter pedagógico e foi concebida para auxiliar a formação de

médicos que não tivessem acesso ao estudo do corpo a partir da prática da

dissecação. Este livro também era dirigido aos estudantes que freqüentavam os

estúdios de arte, para que pudessem entender as particularidade do corpo humano

de forma a alcançar uma representação artística naturalista. As pranchas estão aqui

nomeadas conforme a edição de Fábrica publicada no Brasil em 2003, pela Editora

Unicamp e, para facilitar a identificação das imagens, elas serão aqui indicadas

pelas letras A, B, C, D e E.

FONTE A – GRAVURA 21125

Descrição:

A Gravura 21 busca representar a face anterior do esqueleto humano, de

forma que o observador possa visualizar todos os ossos e articulações presentes 125 VESALIUS, Op. Cit., p. 90.

Page 54: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

54

nesta posição. O corpo está em uma posição central, ocupando toda a altura da

imagem. O fundo da gravura é neutro, exceto pela parte inferior que mostra uma

paisagem com morros ao longe. O esqueleto está numa superfície plana.

A figura está apoiada pelo antebraço direito em uma pá, ao lado de uma cova

aberta. Estes elementos estão presentes em diversos motivos pictóricos

relacionados à Dança Macabra e ainda à representação da Morte126. Esta alusão

indica que Vesalius recorreu a uma tradição antiga e bem conhecida para criar um

cenário para sua gravura.

Os elementos que compõem a imagem são utilizados de forma a dotar a

figura de vigor, pois apesar de ser uma representação repleta de referências à

morte, o esqueleto não remete a um corpo morto, inerte. Sua postura e posição

remetem ao corpo de um ser superior, apesar da gravura apresentar alguns

problemas de proporção, além da ausência de curvatura na coluna, o que modifica a

posição original da maioria dos ossos do tórax. Estas imprecisões foram

reconhecidas por Vesalius, contudo este tipo de imprecisão atendia à necessidade

de adequar o elemento observado e organizado na dissecação aos cânones

clássicos de representação da proporcionalidade humana127.

FONTE B – GRAVURA 22128

126 VESALIUS, Op. Cit., p. 90. 127 Idem, Ibidem. 128 Idem, p. 92.

Page 55: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

55

Descrição:

A gravura 22 apresenta a parte lateral de um esqueleto em pé, apoiado pelo

cotovelo esquerdo em uma lápide. A mão direita está sobre um crânio, também

apoiado na lápide e a mão esquerda apóia a cabeça, numa posição de reflexão. As

pernas se cruzam de forma que o pé direito está todo encostado no chão, e o pé

direito encosta apenas com as pontas dos dedos.

Pode-se dividir a ilustração verticalmente em duas partes, na metade da

direita se encontra o esqueleto, ocupando toda a altura da imagem. No lado inferior

direito há o solo com pouca vegetação onde o esqueleto está assentado. Na metade

da esquerda observa-se a lápide que serve de apoio ao esqueleto e ao crânio, além

dos pequenos ossos do ouvido (hióide, martelo e bigorna) posicionados ao lado do

crânio.

Esta gravura visualiza todos os ossos do corpo humano e como se articulam.

A proporção dos ossos deste esqueleto apresenta os mesmos problemas dos

identificados na Gravura 21. A imagem também apresenta dramaticidade devido à

forma como o esqueleto preenche o espaço, com uma postura claramente humana e

contemplativa, demonstrando uma das características da dignidade humana.

Esta gravura aparece no Primeiro Livro do De Humanis Corporis Fabrica, e

também na Epitome129, obra que Vesalius publicou para auxiliar na introdução dos

estudos da medicina. A diferença entre as duas gravuras consiste apenas na

inscrição da lápide que, em Fábrica aparece “O gênio vive para sempre, tudo o mais

é mortal”. Já em Epítome, a inscrição é “Todo o esplendor é desfeito pela morte, e

através dos limbos brancos como a neve, rouba o Estígio matiz para corromper a

graça da forma” 130. Estes textos não aparecem na versão impressa utilizada nesta

pesquisa.

129 VESALIUS, Op. Cit., p. 226. 130 Tradução do latim por SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit., p. 92 e 226.

Page 56: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

56

FONTE C – GRAVURA 25131

SEGUNDA GRAVURA DOS MÚSCULOS

Descrição:

Esta imagem mostra os músculos superficiais do corpo humano numa

perspectiva lateral. O corpo está centralizado, voltado para a esquerda. A imagem

preenche todo o espaço de forma harmoniosa, pois os braços estão esticados,

ocupando todo o campo superior esquerdo, enquanto as pernas ocupam a área

inferior direita. Esta posição dá ao observador a impressão de movimento. Não é

uma figura estática. Os braços estão um pouco afastados um do outro, permitindo a

visualização da musculatura anterior e posterior. As pernas também permitem esta

visualização, pois estão em posição de marcha. A cabeça está inclinada para cima

e, em conjunto com a mão esquerda, passa a impressão de contemplação.

O fundo da ilustração é composto por uma paisagem apenas na parte inferior,

onde podemos observar algumas construções e vegetação. Na parte superior não

há nada no fundo, feito com técnicas que criam ilusão de perspectiva.

131 VESALIUS, Op. Cit., p. 100.

Page 57: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

57

FONTE D – GRAVURA 27132

QUARTA GRAVURA DOS MÚSCULOS

Descrição:

A Gravura 27 apresenta um estágio mais avançado do processo de

dissecação do que a Gravura 25. A partir da “Quarta Gravura dos Músculos”,

Vesalius vai gradualmente retirando os músculos, expondo-os como se estivessem

pendurados , até chegar à dissecação completa, passando a ilustrar partes isoladas

do corpo. Desta forma pode-se visualizar melhor as conexões entre os músculos,

bem como sua forma, volume e tamanho.

Nesta imagem podemos visualizar o corpo em posição frontal, com as pernas

e os braços um pouco afastados. A posição das mãos e dos pés permite visualizar

diferentes músculos. A cabeça está voltada para a esquerda, deixando os músculos

do pescoço expostos. O corpo está centralizado e distribuído harmoniosamente em

toda a superfície da gravura. O fundo é composto por uma paisagem com vegetação

e construções na parte inferior, com ilusão de profundidade.

132 VESALIUS, Op. Cit., p. 104.

Page 58: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

58

FONTE E – GRAVURA 33133

DÉCIMA GRAVURA DOS MÚSCULOS

Descrição:

A Gravura 33 é referente à mesma etapa de dissecação da Gravura 27. Nesta

imagem está representada a musculatura superficial da parte posterior do corpo.

Alguns músculos aparecem pendendo do corpo de forma a expor algumas partes da

musculatura interna.

O corpo é visto de costas, centralizado e ocupando quase todo o espaço da

gravura. As pernas estão semi-flexionadas, em aparente movimento de marcha. O

braço direito está um pouco afastado do corpo, enquanto o braço esquerdo está

apontando para o canto superior esquerdo. A composição dos braços e pernas cria

uma harmonia de conjunto, dando a impressão de movimento. Os músculos

posteriores do pescoço estão bastante visíveis e a cabeça apresenta uma faixa de

couro cabeludo com cabelos. A paisagem de fundo da gravura é composta por

vegetação, construções e ainda uma ponte sobre um rio, dispostos em perspectiva.

133 VESALIUS, Op. Cit., p. 116.

Page 59: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

59

3.2.2 LEONARDO DA VINCI - Leonardo’s Anatomical Drawings

As imagens produzidas por Leonardo utilizadas neste estudo foram retiradas

da coleção Dover Art Library, publicada em 2004 que é composta por diversos

estudos anatômicos de da Vinci. Cada prancha foi aqui nomeada de acordo com a

publicação norte-americana e não pelo nome original. Esta escolha se deu pela

dificuldade de encontrar a nomenclatura original, tendo em vista que a historiografia

consultada apresenta nomes diferentes para a mesmas imagens. Desta forma

optamos pela edição de Leonardo’s Anatomical Drawings para estabelecer um

padrão nominal. Nesta monografia elas estão indicadas pelas letras F, G, H, I e J.

Todas as pranchas referentes aos estudos de da Vinci apresentam corpos

que foram ilustrados em fundo branco, sem imagem ou qualquer outro aspecto

iconográfico de fundo. Segundo o levantamento que realizamos, a maioria das

imagens foi elaborada com giz preto ou vermelho, carvão vegetal, pena e tinta134.

FONTE F – 1. THE SKELETON135

134 SÉAILLES, Op. Cit. 135 DA VINCI, Op. Cit.

Page 60: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

60

Descrição:

Nesta imagem observamos seis ilustrações referentes ao estudo dos ossos.

Nenhuma delas apresenta um esqueleto completo, cada uma estuda uma parte

específica e não há imagens de antebraços, das mãos e do crânio. Ao analisar o

conjunto de imagens podemos ter uma visão da maioria dos ossos e articulações do

corpo humano com riqueza de detalhes. Para facilitar a descrição das imagens, elas

serão analisadas individualmente, da esquerda para a direita e de cima para baixo.

A primeira mostra a parte posterior do tronco, ombros e uma parte do braço. É

possível ver as articulações e até mesmo os pequenos ossos, percebendo o volume,

posicionamento e curvaturas. Os braços estão posicionados ao lado do corpo, sem

impressão de movimento. Não é possível observar de que forma ocorre a rotação da

articulação dos ombros.

Na segunda imagem temos o perfil de um tronco, mostrando o encaixe do

braço no ombro. O interessante desta imagem é a possibilidade de visualizar o

volume da caixa torácica e seu posicionamento com relação aos ombros, braços e

coluna vertebral.

A terceira imagem mostra a coluna vertebral, o lado esquerdo do tronco

articulado ao braço, o pescoço e a região do quadril. Percebemos a preocupação do

artista em demonstrar a curvatura dos ossos e a proporção entre eles. O braço está

relaxado ao lado do corpo, não sendo possível observar a rotação dos ombros.

Na quarta imagem observamos o final da coluna vertebral, o quadril e as

pernas, em posição frontal. As pernas estão esticadas e é possível observar

detalhadamente os ossos. Os pés estão apenas esboçados, virados para a frente,

mas não é possível visualizar os ossos.

A quinta e a sexta imagem podem ser analisadas conjuntamente, pois uma é

referente à perna esquerda e a outra à perna direita, ambas de perfil. Pode-se

imaginar que elas se complementem, tendo em vista que a perna esquerda aparece

em primeiro plano, encaixada no quadril e a perna direita aparece um pouco

afastada. O conjunto nos permite observar as pernas em dois ângulos distintos. Os

pés aparecem, mas são apenas esboços.

Page 61: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

61

FONTE G – 9. THE LOWER EXTREMITY136

Descrição:

Neste conjunto de estudos, observamos oito ilustrações de pernas, sendo que

sete delas mostram os ossos e articulações e uma apresenta a musculatura

superficial. Para facilitar a descrição, algumas das imagens serão analisadas em

conjunto, pois apresentam características semelhantes.

As primeiras cinco ilustrações mostram os ossos das pernas e do pé, vistas

de diferentes ângulos. Em todas as ilustrações as pernas estão esticadas, sem

mostrar a rotação das articulações. As duas primeiras mostram uma visão frontal

das pernas e dos pés, sendo possível observar quase todos os ossos facilmente. A

terceira imagem apresenta a parte posterior dos ossos da perna e do pé, enquanto a

quarta e a quinta mostram a perna de perfil, com os ossos voltados para a direita.

A sexta imagem mostra a musculatura superficial de uma perna em perfil. A

ilustração começa logo acima dos músculos das nádegas e vai até a região da

panturrilha, sem mostrar os pés. É possível observar o volume e formato dos

músculos bem como a forma como se ligam uns aos outros. Assim como nas cinco

136 DA VINCI, Op. Cit.

Page 62: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

62

ilustrações anteriores, esta mostra um perna esticada, desta forma observamos a

posição dos músculos quando não estão flexionados.

Na sétima e na oitava imagem podemos observar a rotação do joelho, pois as

duas apresentam os ossos da perna flexionados. Vemos esta flexão de dois ângulos

diferentes, o que nos permite relacionar este estudo com o de perspectiva, visto que

temos a impressão de profundidade.

FONTE H – 14. MYOLOGY OF TRUNK137

Descrição:

Nesta prancha observamos duas imagens principais, mostradas em diferentes

ângulos, permitindo uma visualização mais completa de diferentes regiões. Existem,

ainda, alguns estudos de outras partes do corpo, mas estes são de difícil

visualização em função da qualidade da reprodução. O que se pode observar é que

estes constituem de estudos de partes internas do corpo. Desta forma, nos

deteremos a analisar as duas imagens principais.

A primeira imagem mostra uma perna, aparentemente com pele, onde

podemos perceber o volume dos músculos. A perna é vista de frente e apresenta a

musculatura da coxa bastante delineada. Os pés aparecem, mas são apenas

137 DA VINCI, Op. Cit.

Page 63: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

63

esboços, o destaque é mesmo para a coxa. Apesar de ser apenas a perna direita,

podemos perceber, pelos recursos artísticos utilizados, que ela foi representada um

pouco afastada do corpo, deixando à vista a parte interna da perna.

A outra imagem mostra um corpo masculino de perfil, sem a pele, com

destaque para a musculatura superficial. Estão representadas quase todas as partes

do corpo, exceto a cabeça, os pés, antebraço e mãos. O corpo está em pé, com os

braços esticados para frente. Esta posição dos braços permite visualizar a posição

dos músculos neste movimento.

FONTE I – 17. MYOLOGY OF SHOULDER REGION138

Descrição:

Nesta imagem podemos observar claramente cinco estudos da região do

ombro e ainda alguns músculos do pescoço e do braço. Existem ainda pelo menos

quatro estudos que apresentam dificuldades de observação, pois se encontram

quase apagados. É interessante observar que cada estudo é referente à posição dos

músculos em diferentes movimentos de rotação do ombro.

Na primeira imagem o corpo está posicionado de frente para o observador.

Estão representados o peito, a cabeça, o pescoço, os ombros e os braços (não

138 DA VINCI, Op. Cit.

Page 64: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

64

estão visíveis os antebraços e as mãos) e a ilustração é referente a um corpo com

pele. A cabeça está levemente inclinada para a direita e para baixo. O braço

esquerdo está relaxado ao lado do corpo. O braço direito está levantado em um

ângulo de quase 90º em relação ao tronco, o que permite uma análise atenta da

posição dos músculos quando tensionados por este movimento. A musculatura do

pescoço também está em evidência.

A segunda imagem apresenta o estudo da região do ombro direito vista de

cima, com o braço em ângulo reto em relação ao corpo, que está voltado para a

direita. Assim como na ilustração anterior, o corpo também está representado com

pele, permitindo visualizar o volume da musculatura superficial.

Na terceira imagem, assim como a segunda, também mostra um estudo, visto

de cima, da região do ombro, desta vez o esquerdo. O corpo está virado para a

esquerda, com o braço posicionado ao longo do corpo, com os músculos relaxados.

E interessante estudar a segunda e a terceira imagem juntas, pois podemos

perceber a atenção do artista com relação à posição dos músculos em diferentes

movimentos.

A quarta imagem apresenta o estudo do ombro direito visto de frente. Pode-se

observar uma parte do pescoço e do braço, que está um pouco afastado do tronco.

Passa a impressão de apresentar pele e ser um corpo bastante magro, pois a

musculatura que liga o ombro ao pescoço está acentuada.

Na quinta imagem podemos observar o estudo da região que liga o ombro ao

pescoço. É difícil afirmar se apresenta pele, pois em alguns lugares ela é aparente e

em outros não. A imagem está ligeiramente voltada para a direita do observador,

deixando visível o ombro e parte do braço direito, o pescoço, o lado direito da

cabeça e parte do peito. O braço está levemente afastado do tronco, deixando os

músculos levemente tensionados.

Page 65: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

65

FONTE J – 24. MYOLOGY OF LOWER EXTREMITY139

Descrição:

Esta imagem apresenta apenas uma ilustração, referente à musculatura

superficial das pernas, onde podemos observar o ligamento das pernas com o

tronco. A ilustração apresenta os músculos sob a pele, desta forma percebe-se uma

preocupação em conhecer o volume e formato de cada músculo superficial e como

este interfere na forma do corpo.

A ilustração apresenta as pernas afastadas uma da outra, a direita voltada

para frente e a esquerda virada para o lado de forma a mostrar a parte interna. O

quadril e o tronco aparecem apenas esboçados, ficando cada vez mais apagados

em direção ao canto superior direito da imagem. Apenas o braço direito aparece,

revelando mais detalhamento do que o tronco, mas ainda assim não tão nítido

quanto as pernas.

139 DA VINCI, Op. Cit.

Page 66: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

66

3.3 A RELAÇÃO ENTRE ANATOMIA E ARTE: ESPÍRITO DE SU PERAÇÃO

Procederemos agora à análise imagética do nosso corpo documental. Para

tanto faremos uma discussão do conjunto de fontes de cada autor separadamente,

tendo em vista a dimensão semântica, procurando entender de que forma estes

estudos se relacionam com a produção renascentista. Após esta etapa será feito um

quadro comparativo entre Leonardo e Vesalius, aprofundando a discussão sobre a

representação do corpo no Renascimento.

Contudo, antes de nos determos nas particularidades de cada conjunto de

fontes e de traçarmos um quadro comparativo entre elas, é preciso discutir de que

forma os estudos de anatomia interagem com os estudos de arte, pois este aspecto

é bastante importante para entendermos a dimensão semântica das imagens

descritas. Para tanto, recorremos à discussão sobre progresso artístico conforme

proposta por Gombrich para entendermos como naquela época o espírito de

superação dos obstáculos ao conhecimento e à representação era fortemente

difundido, tendo em vista que “a ideia de progresso podia atuar como um estímulo e

um desafio” 140.

Em função deste ideal de superação podemos entender porque os estudos

sobre o corpo despertavam tanto interesse então, ainda mais se levarmos em

consideração o fato de que a arte e o conhecimento não eram áreas e práticas

separadas e que a medicina era considerada uma espécie de arte. Este status social

da arte exigia uma “intensificação dos estudos que chamamos ‘científicos’ [...] só o

mais íntimo conhecimento da estrutura da forma orgânica pode permitir ao artista

revestir de carne e osso seu primo pensiero”141.

Percebemos, desta forma, que conhecer o corpo em todos os seus detalhes

não era apenas um recurso para uma representação naturalista, mas sim um ideal

intrínseco à própria concepção de arte no Renascimento, na medida em que esta

era entendida como um ramo da ciência e, como tal, demandava estudos

específicos. Para o Renascimento, portanto, estudos científicos como a anatomia,

integravam o processo criativo artístico, de forma que a História do Corpo se coloca

como um tema de grande importância para se compreender as representações

deste período.

140 GOMBRICH, “Norma...” Op. Cit., p. 4. 141 Idem, p. 81.

Page 67: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

67

3.3.1 AS PRANCHAS ANATÔMICAS DE VESALIUS

Ao observarmos as imagens contidas em Fábrica, fica evidente a

preocupação de Vesalius em representar o corpo humano de forma a passar a

impressão de movimento e também de emoções. O artista que a elaborou teve

cuidado em não deixar que elas lembrassem cadáveres, mas sim a representação

de um corpo vivo, como se pudéssemos ver o que está por baixo da pele e dos

músculos, como se estes fossem transparentes, enquanto o corpo está executando

determinado movimento. É importante ressaltar, contudo, que as pranchas

selecionadas para este estudo representam corpos inteiros, mas que Fábrica

também apresenta estudos de partes específicas do corpo, como sistema

circulatório e respiratório. Entretanto optamos por escolher imagens que mostrassem

o corpo completo por serem bastante utilizadas tanto em estudos artísticos como

também de medicina.

A partir da descrição feita podemos estabelecer que as fontes A e B foram

elaboradas especialmente para o estudo da pintura, apesar de também servirem

para estudos de medicina. O erro proposital na questão da proporcionalidade da

imagem nos remete à discussão feita no primeiro capítulo a respeito da busca pela

representação fiel da realidade, porém sempre com a preocupação em dar uma

aparência de fidelidade ao que o olho humano está captando. Ou seja, Vesalius

tinha consciência de que sua prancha apresentava problemas de proporcionalidade

e esta “correção” do real foi necessária para que a imagem se ajustasse aos

cânones clássicos da pintura que já haviam estabelecido fórmulas para dar a ilusão

de naturalidade a determinados posicionamentos do corpo. Outro motivo para a

curiosa ausência de curvatura da coluna era o método que Vesalius utilizava para

montar esqueletos, no qual inseria uma barra de ferro nas vértebras proporcionando

maior estabilidade à montagem142.

Entretanto, insistimos que estas pranchas também eram usadas para o

estudo científico do corpo humano. Vesalius chamava a atenção para o fato da

imagem apresentar erros de proporcionalidade e que este aspecto era importante

quando se estudava o corpo para uma representação que seguisse os ideais

renascentistas de beleza. Contudo, estas pranchas permitem o estudo detalhado de

142 SAUNDERS e O’MALLEY, Op. Cit.

Page 68: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

68

todos os ossos humanos, trazendo informações sobre forma, volume, como se

articulam, entre outras. Desta forma, aquele que observava estas imagens com o

intuito de compreender as funções exercidas por cada osso, poderia estudar com

elas sem maiores problemas, apenas seguindo a ressalva de que deveriam ser

feitos alguns ajustes a respeito do posicionamento e curvatura de determinados

ossos, problemas que poderiam ser corrigidos a partir do estudo comparativo com as

demais pranchas do livro.

Ainda com relação à fonte B voltemos para as inscrições contidas na gravura

original (“O gênio vive para sempre, tudo o mais é mortal” e “Todo o esplendor é

desfeito pela morte, e através dos limbos brancos como a neve, rouba o Estígio

matiz para corromper a graça da forma”). A partir das inscrições e dos elementos

representados na gravura podemos entender que a imagem procurava levar seu

observador a refletir sobre a finitude da vida. É interessante observar este detalhe,

ainda mais tendo em vista o contexto de valorização da razão e do corpo humano

como ideais de perfeição analisados no primeiro capítulo.

Já com relação às pranchas referentes à musculatura corporal, podemos

destacar nestas gravuras a característica vesaliana de representar o corpo humano

de forma dinâmica. Segundo as considerações de Vesalius, as gravuras que

mostram os músculos “apresentam uma visão total do sistema muscular, como

somente os pintores e os escultores estão habituados a considerar” 143. Desta forma,

podemos fazer uma ligação com os estudos de pintura, pois o objeto do olhar era a

musculatura em seus mínimos detalhes, de forma a gerar a ilusão de perspectiva. É

interessante ressaltar que as gravuras referentes à musculatura são utilizadas até

hoje por estudantes de arte144. É importante observar que estas gravuras não

ressaltam o caráter mórbido ou inativo da morte e sim os aspectos que caracterizam

o homem como ser vivo, a saber, os movimentos expressivos e a reflexão, entre

outros atributos que podemos relacionar com a cara noção renascentista da

dignidade do homem.

Destacamos nas fontes D e E a preocupação em fazer com que o estudante

tivesse acesso ao maior número possível de músculos, entendendo sua função e

forma, tendo em vista o recurso de deixá-los “pendurados” no corpo, “com a

143 VESALIUS, Op. Cit., p. 98. 144 Idem, Ibidem.

Page 69: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

69

exposição sistemática dos músculos mais profundos, camada por camada” 145. É

importante destacar que apesar destas imagens mostrarem alguns músculos

descolados e pendurados ao corpo, de forma alguma esta é uma imagem destituída

de vivacidade ou mesmo mórbida. O corpo representado nesta gravura é dotado de

toda a dignidade atribuída ao homem, o que pode ser observado tanto pela postura

corporal como pela composição entre corpo e fundo na imagem.

Podemos concluir, portanto, que os corpos representados na obra de Vesalius

não representam cadáveres, mas sim a natureza humana a partir de sua estrutura

física, acessada a partir da observação e movida pela busca do conhecimento

através do uso da razão. Fica claro, também, como o método de Vesalius era

importante para os estudos do corpo no Renascimento, pois permitiam um olhar

atento, camada por camada, aos detalhes da anatomia humana, o que era possível

aliando a observação à prática.

3.3.2 OS ESTUDOS DE LEONARDO DA VINCI

Conforme o estudo de Georges Vigarello e Roy Porter146, Leonardo produziu

aproximadamente 750 desenhos anatômicos, porém estes estudos foram

elaborados “a título estritamente privado, provavelmente em segredo, e não tiveram

absolutamente nenhum impacto sobre o progresso da medicina” 147. Desta forma,

podemos diferenciá-lo de Vesalius, que buscou divulgar os conhecimentos obtidos a

partir das observações feitas da dissecação, inclusive com a publicação de textos e

livros pedagógicos. A partir desta constatação, podemos deduzir que da Vinci se

debruçou sobre os estudos da anatomia humana para satisfação de interesses

pessoais pelo tema, para saciar sua busca pelo conhecimento sobre o corpo,

aplicando o resultado de suas observações em sua produção artística. Desta forma,

a escolha pelos estudos de Leonardo como fonte na presente pesquisa se dá em

função de sua busca por desvendar os segredos do corpo a partir do olhar de um

145 VESALIUS, Op. Cit., p. 104. 146 PORTER e VIGARELLO, Op. Cit. 147 Idem, p. 451.

Page 70: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

70

artista e também de um investigador que estava intensamente envolvido nas

discussões contemporâneas sobre o homem e seu corpo.

Com a descrição das imagens é possível perceber que a preocupação de da

Vinci não era a de reproduzir o corpo inteiro, mas sim estudar os detalhes, de

diversos ângulos, de forma e entender como músculos, ossos, tendões e outros

tecidos se comportavam em determinados movimentos. Para tanto, Leonardo

estudou, observou e desenhou cada parte do corpo à exaustão, resultando em uma

minuciosa representação. Gombrich aponta para a “persistência dele [da Vinci] na

criação de certas imagens”148, e que este fator o levou a desenvolver um método de

esboçar que, nas palavras do próprio Leonardo, “harmonizem em escala e

proporções com a perspectiva, de tal forma que não se perceba, na obra, nada que

contrarie a razão e os efeitos naturais” 149

No estudo do esqueleto podemos perceber que a volumetria da caixa torácica

teve especial atenção. Para este estudo da Vinci procurou visualizar o esqueleto

tridimensionalmente, pois temos acesso ao tronco em uma visão anterior, lateral e

frontal, o que é revelador de sua obsessão em entender a constituição do corpo

humano. Para estudar a obra de Leonardo é fundamental que tenhamos em mente

que ele foi mais que um artista. Seu objetivo ao dissecar corpos humanos era o de

atingir uma representação perfeita dos objetos, mas também o de estudar, conhecer

e compreender o corpo humano.

Ao analisarmos a fonte G podemos compreender mais claramente de que

forma se dava esta busca pela representação perfeita dos objetos. Leonardo buscou

ilustrar os ossos da perna em diversos ângulos de forma a compreender como esta

estrutura ocupa lugar no espaço em determinada posição. Assim sendo,

observamos um conjunto de estudos de tridimensionalidade e também sobre as

articulações e rotações dos ossos da perna. A existência da imagem de uma perna

com os músculos sugere que da Vinci se preocupou em relacionar os ossos da

perna com o revestimento de músculos. Olhando o conjunto de imagens dos ossos

com a da musculatura entendemos o papel de cada uma destas estruturas para a

representação do corpo humano segundo os ideais renascentistas de

proporcionalidade e beleza.

148 GOMBRICH, “Norma...” Op. Cit., p. 80. 149 DA VINCI, Leonardo, Apud GOMBRICH, Idem.

Page 71: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

71

Na fonte H vemos que Leonardo se deteve especialmente ao estudo da

musculatura masculina. É interessante ressaltar a preocupação do artista com o

volume e a forma de cada parte representada, e ainda sua preocupação com as

proporções corporais. Este aspecto é de grande importância em função de da Vinci

sempre buscar passar a impressão de vivacidade em suas obras, tendo em vista

que as pranchas demonstram que ele possuía grande conhecimento sobre a

motricidade, ou seja, como cada músculo deveria ficar (flexionado ou relaxado) em

determinada posição.

Este aspecto também pode ser percebido ao estudarmos a fonte I, sobre os

estudos da área do ombro. Nestas imagens percebemos que Leonardo não se

deteve apenas a observar a musculatura superficial, como os artistas de sua época

geralmente faziam, mas também de músculos internos, nervos e tendões,

articulação dos ossos do ombro e sua rotação, entre outros. O estudo minucioso de

da Vinci o levou a repetir os estudos da mesma área corporal em diversos ângulos e

perspectivas, e os desenhos apresentam uma aparência realista que surpreende o

observador pela perícia e exatidão.

A fonte J, referente ao estudo da extremidade inferior do corpo, se diferencia

das demais por não estar acompanhada de outros desenhos. É interessante

perceber que Leonardo se preocupa em apresentar o encaixe do quadril com o

tronco, mesmo que o objetivo do estudo fosse apenas compreender a musculatura

das pernas. Este aspecto nos permite pensar que para ele era importante inserir o

conhecimento adquirido em um conjunto maior, compreendendo de que forma o

detalhe fazia parte do todo representado. Outro aspecto impressionante nesta

imagem é a aparência de vitalidade que da Vinci consegue demonstrar, mesmo com

poucos traços e com um desenho incompleto.

A partir do conjunto documental de Leonardo podemos inferir que para este

artista a dissecação era um método de desvendar detalhes do corpo humano de

forma a permitir uma representação perfeita deste objeto e é este aspecto que deve

ser considerado em primeiro lugar para se entender sua anatomia. Outra questão

que devemos levar em consideração ao estudarmos as pranchas de da Vinci é a

forma como este artista conseguia transmitir vivacidade a seus desenhos e

ilustrações, mesmo com poucos recursos estilísticos.

Page 72: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

72

3.3.3 O ANATOMISTA E O ARTISTA: DUAS REPRESENTAÇOES DO

CORPO

A partir das descrições formais do nosso corpo documental passamos às

diferenças primordiais entre Vesalius e da Vinci. Desta forma, é interessante analisar

comparativamente os dois conjuntos de fontes desta pesquisa levando em

consideração os diferentes recursos utilizados pelos autores para dotar o corpo

representado da dignidade atribuída ao homem.

Uma diferença fundamental que podemos apontar é que as pranchas de

Vesalius possuem temas artísticos, enquanto os estudos de Leonardo são mais

objetivos, sem preocupação em inserir o objeto representado em um contexto. Esta

é uma observação importante se levarmos em consideração os ofícios de cada um,

pois Vesalius procurava dar um caráter científico à sua produção, que tinha função

pedagógica, já Leonardo, apesar de trabalhar em diferentes ocupações, como

inventor e até mesmo botânico, era notadamente reconhecido como artista. Desta

forma se torna curioso perceber que o anatomista buscou inserir suas pranchas em

uma narrativa pictórica formal e que da Vinci não se preocupou com este aspecto,

dando preferência ao estudo dos detalhes do corpo.

É interessante perceber que as imagens de Leonardo não buscam

representar o corpo inteiro e com a dramaticidade observada nos estudos de

Vesalius. Porém, o que as pranchas de da Vinci nos mostram, conforme Daniel

Arasse150, é a incansável busca pelo movimento, pelo detalhe de cada parte do

corpo, ou seja, podemos perceber uma obsessão em representar o movimento.

Talvez porque toda a dramaticidade, intensidade e delicadeza estavam nas suas

pinturas.

Outra diferença básica entre os conjuntos de imagens analisados é o material

com o qual foram produzidos. Enquanto as pranchas de Vesalius recorrem ao

método da gravura, Leonardo utiliza giz, carvão vegetal e tinta pura ou aguada, o

que possibilita criar efeitos tridimensionais. A partir desta diferenciação podemos

inserir as imagens em sua dimensão social, ou seja, compreender as funções

exercidas por elas no contexto renascentista.

150 ARASSE, Op. Cit.

Page 73: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

73

Analisando as fontes e recorrendo à historiografia pudemos perceber que o

recurso da gravura era importante para Vesalius, pois ele queria que sua obra fosse

difundida entre estudantes de medicina e das artes. Desta forma ele poderia garantir

certa qualidade de reprodução com um custo menor. Notamos, então, que o

detalhamento da imagem foi sacrificado em função de sua utilidade social, o que não

significa que Vesalius não tenha alcançado seu objetivo de produzir pranchas

pedagógicas que permitissem uma compreensão detalhada do corpo humano. As

gravuras nos passam a impressão de movimento, contemplação, perspectiva, entre

outros, porém elas não apresentam características naturalistas. Isto, contudo, não

impedia que as imagens cumprissem seu papel de servir como instrumento para se

entender tanto o funcionamento do corpo, como também estabelecer noções de

proporção e estética.

Os estudos de Leonardo, por outro lado, apresentam uma riqueza de detalhes

que impressiona o observador. Apesar de não se tratar de imagens de corpo inteiro

e de muitas vezes um desenho se sobrepor ao outro causando até mesmo uma

confusão, as partes representadas apresentam a impressão de naturalidade que,

como demonstramos anteriormente, era tão almejada pelos artistas. O recurso ao

giz e à tinta aguada dotava as pranchas de movimento, volume e profundidade. É

importante ressaltar que estas imagens foram produzidas para uso privado do artista

e de seus aprendizes, o que permitia que da Vinci dedicasse maior atenção aos

detalhes técnicos e formais. De fato, percebemos esta dedicação ao observarmos

que ele buscava representar alguma parte específica do corpo até a exaustão,

repetindo quantas vezes fossem necessárias para atingir o efeito desejado.

Percebemos ainda que Leonardo dedicou muita atenção ao estudo do movimento do

corpo humano, buscando desenhar as articulações em diferentes rotações e

ângulos, de forma a estar preparado para enfrentar qualquer desafio que se

apresentasse em um trabalho.

Aproximando os dois conjuntos de fontes estudados pode-se perceber que

foram concebidos para possibilitar a transformação do corpo em imagem de forma

que o observador tivesse a impressão de estar diante do objeto real e não da

representação. Para tanto, percebemos que o artista se via frente a um desafio de

mediar a relação entre as proporções reais e aquela que passava maior impressão

de naturalidade. Desta forma, a preocupação do pintor era entender “a natureza de

Page 74: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

74

nossas reações a este mundo [...] conjurar uma imagem convincente apesar do fato

de que nenhum tom isolado corresponde ao que chamamos de ‘realidade’” 151.

É importante relembrar, conforme discutido no primeiro capítulo, que a

representação pictórica do corpo humano estava diretamente ligada aos ideais de

beleza da época que se baseavam na reprodução de padrões neo-platônicos de

harmonia e proporção, o que fazia com que as imagens nem sempre fossem uma

representação fiel do objeto em questão, mas sim de um ideal de perfeição, o que

gerava algumas diferenças entre as fórmulas estabelecidas para a representação

perfeita e aquilo que era tido como ideal representativo. Este distanciamento entre

as medidas estabelecidas através do estudo atento de todas as partes do corpo e

aquilo que era necessário que o artista fizesse para que sua imagem tivesse uma

ilusão de naturalidade – o que podemos chamar de “correção” do real, de acordo

com Gombrich - gerou um intenso debate que envolveu artistas e anatomistas a fim

de estabelecer os melhores métodos representativos152.

151 GOMBRICH, “Arte...” Op. Cit. pp. 44-46. 152 Idem.

Page 75: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procuramos relacionar os conhecimentos sobre o corpo

produzidos no Renascimento a uma nova forma de representação. A partir da

localização cultural do objeto da nossa pesquisa apontamos alguns elementos

direcionadores para este estudo, como a questão do corpo ter se configurado como

um objeto do olhar, demandando estudos específicos que resultaram em diversas

ilustrações de caráter pedagógico, utilizadas como recursos didáticos nas

universidades e em estúdios de artes. É possível perceber, ao se observar esses

materiais, que anatomistas e artistas procuravam representar o corpo de forma

bastante naturalista. Foram explorados recursos visuais que possibilitaram a

impressão de movimento, dotando o desenho ou a gravura de certa dramaticidade.

A expressão corporal, os músculos, os detalhes superficiais eram alvo de análise,

bem como a tridimensionalidade.

O ambiente intelectual que permeou este processo de transformação do olhar

sobre o corpo facilitou a produção de um conhecimento que articulava a fé e a razão

influenciando de forma marcante a elaboração das pranchas anatômicas.

Defendemos a ideia de que estes estudos, que se preocupavam em entender o

lugar do homem no mundo e na natureza, foram muito importantes para que se

estudasse cada detalhe do corpo humano de forma a estabelecer fórmulas para uma

representação naturalista que demonstrasse e reforçasse a singularidade e a

dignidade humana.

Procuramos demonstrar também que este período foi marcado por uma forma

específica de se compreender o corpo. Em sua materialidade e expressividade foi

alvo de controles e determinações culturais intensos, resultado de um processo

social no qual as pessoas começaram a se preocupar em se adequar às regras cada

vez mais restritas dos espaços em que estavam inseridos.

Este período marcou, ainda, uma diferenciação do status social do artista, que

passou a ser valorizado pela sua individualidade e talento. Acreditamos que esta

característica influenciou a forma de representação do corpo, tendo em vista que os

artistas eram admirados pela sua capacidade de demonstrar expressão,

naturalidade e harmonia, gerando um desejo de superação tanto de si mesmo, como

Page 76: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

76

também de outros artistas. A partir destes aspectos definimos o Renascimento,

portanto, como um período em que houve um intenso ideal de aperfeiçoamento, o

que fez com que se criassem novos métodos e técnicas com o objetivo de conceber

representações artísticas que estivessem em consonância com os ideais da época.

Apontamos este ideal de aperfeiçoamento como gerador de um ambiente que

permitiu estudos aprofundados sobre o corpo através das dissecações anatômicas.

Tendo em vista que no Renascimento a medicina era concebida como uma arte e a

representação artística do corpo era tida como ciência, podemos, portanto, apontar

as pranchas anatômicas como um elemento catalisador entre estas duas áreas do

conhecimento. Concluímos assim, que a prática da dissecação era um recurso

importante para a construção do conhecimento sobre o homem, tanto para entender

sua constituição física, como também para buscar explicações científicas para as

reações corporais a doenças, prazeres e outros estímulos externos.

Observamos a importância social do anatomista e do artista que praticavam o

método da dissecação. Estes dois ofícios se ocupavam em desvendar os mistérios

do corpo em uma época em que se estava buscando uma nova interpretação sobre

a natureza, valorizando estudos cada vez mais baseados na observação.

Foi neste ambiente que Andreas Vesalius e Leonardo da Vinci produziram

suas obras anatômicas, cada um com um objetivo específico, buscando desvelar os

segredos do corpo humano. Cada um deles teve uma formação de acordo com o

esperado na época, ou seja, Vesalius cursou medicina na Universidade de Paris e

da Vinci serviu como aprendiz no estúdio de Andrea Del Verrochio. O grande

diferencial deles com relação a outros artistas e anatomistas da Renascença é que

ambos foram além da simples dissecação para conhecer o corpo e comprovar o que

mestres do passado haviam ensinado. Leonardo e Vesalius procuraram observar e

representar o corpo humano com rigor, mesmo que isto às vezes os levasse a

discordar dos cânones da anatomia. Vesalius ficou famoso por fazer uma correção à

obra galênica, o que acabou por gerar inimizades com os defensores do mestre da

Antiguidade.

Embora o objetivo de Vesalius e Leonardo fosse estudar o corpo em todas as

suas minúcias, podemos estabelecer diferenças primordiais em suas obras. Vesalius

era professor de cirurgia e utilizou seus estudos para desenvolver um material

pedagógico que ajudasse os estudantes de medicina e também para aprendizes de

artistas que não tinham a oportunidade de estudar a partir da observação prática do

Page 77: Em busca da realidade: a representação do corpo na anatomia e na

77

corpo. Já Leonardo elaborou seus estudos para aperfeiçoar suas técnicas, de forma

que poucas pessoas em sua época tiveram acesso a este material.

Entender a relação entre arte e ciência no Renascimento é fundamental para

compreender a importância social dos estudos de anatomia neste período. A arte era

entendida como uma forma de conhecimento e, como tal, demandava estudos

específicos para garantir um rigor que, além de permitir ao artista uma

representação harmoniosa da figura humana, dava à imagem a aura de perfeição.

Num período em que se discutia a dignidade do homem e seu lugar no mundo e na

natureza através da utilização da razão e da fé, a representação deveria

acompanhar este ideal de perfeição.

É importante levar em consideração este caráter quase cientifico da arte no

período estudado, pois nos ajuda a situar as fontes desta pesquisa no contexto

renascentista. Procuramos ressaltar tal característica ao longo desta monografia,

pois acreditamos que ela seja fundamental para entendermos de que forma o artista

e o anatomista da Renascença se posicionavam perante o corpo humano, que tipo

de olhar crescentemente dessacralizado era destinado a este objeto e de que forma

ele se tornou central no processo criativo do artista.

Apontamos nas pranchas de Vesalius um aspecto de “vitalidade” do corpo

representado, ou seja, todos os elementos de composição das imagens eram

minuciosamente calculados, de forma que o corpo representado não parecia o de

um cadáver, mesmo que estivesse sem a pele e com músculos pendurados ao

corpo.

Outra questão que definimos a partir da análise das imagens foi que as

pranchas contidas em Fábrica apresentam diversos elementos característicos da

concepção renascentista de representação do corpo, ou seja, por mais que o

objetivo principal destas imagens fosse servir de recurso pedagógico para a

construção de um conhecimento objetivo sobre o corpo, elas apresentam erros

propositais de proporção, curvatura e volumetria, de forma a passar uma impressão

de naturalidade. Há um distanciamento entre a representação naturalista e as

proporções que o elemento representado possui de fato, pois artistas e anatomistas

do Renascimento percebiam que havia uma diferença entre o objeto e aquilo que a

percepção humana captava daquele objeto.

Já as pranchas de Leonardo não buscavam representar o corpo inteiro, mas

sim estudos específicos de determinadas partes do corpo. Estas imagens

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78

mostravam detalhes do interior do corpo, diferentemente de estudos de outros

artistas da época que se preocupavam somente em entender a musculatura

superficial. É importante ressaltar, contudo, que, mesmo que estas pranchas

apresentem partes isoladas do corpo estas imagens são expressivas, pois ao

observarmos estas imagens temos a impressão de força, emoções e,

principalmente, movimento.

Outra questão importante a se ressaltar sobre estas pranchas é que elas

apresentam estudos repetidos das mesmas partes do corpo, em diferentes ângulos,

posições e tamanhos. Apontamos que este aspecto é fundamental para entender a

busca de da Vinci pela representação perfeita. Entendemos que este olhar

minucioso que Leonardo devotava às suas imagens tenha contribuído para a

elaboração de técnicas representativas que são admiradas até hoje, tais como o

sfumato, o chiaroscuro, entre outros.

Entendemos, portanto, que ao estudar o corpo no Renascimento a partir dos

estudos anatômicos acessamos um rico material epistemológico que nos permite

entender o lugar ocupado por este objeto, inserido em um amplo campo de

pesquisas sobre o humano, tanto a respeito do funcionamento corporal, quanto de

questões filosóficas com relação à dignidade humana, e o uso da razão.

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79

FONTES

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80

REFERÊNCIAS

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MANDRESSI, Rafael. “Dissecações e anatomia”. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Gorges. História do corpo: Da Renascença às Luzes. 2ed. Petrópolis: Vozes, 2008. MORE, Thomas. A utopia. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972. PORTER, Roy. VIGARELLO, Georges. Corpo, saúde e doenças. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Gorges. História do corpo: Da Renascença às Luzes. 2ed. Petrópolis: Vozes, 2008. ROTTERDAM, Erasmo de. O Elogio da Loucura. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972. SANT’ANNA, Denise. “É possível realizar uma história do corpo?”. In SOARES, Carmen. Org. Corpo e história. Campinas: Editora Autores Associados, 2001. SAUNDERS, J. B. DeC. M. e O’MALLEY Charles D. Esboço Biográfico sobre Andreas Vesalius. In: VESALIUS, Andreas. De humani corporis fabrica. Campinas: Editora. Unicamp, 2003. SÉAILLES, Gabriel. Leonardo da Vinci. Nova York: Parkstone Press International, 2010. VASARI, Giorgio. Vidas dos Artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011. VESALIUS Andreas. De humani corporis fabrica. Campinas: Editora Unicamp, 2003.

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ANEXOS

ANEXO 1

Figura 1 – Ervas, Albrecht Dürer, 1503

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ANEXO 2

Figura 2 – O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli, c.1485

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ANEXO 3

Figura 3 – A academia de Baccio Bandinelli, Enea Vico, c. 1535

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ANEXO 4

Figura 4 – Fascículo de Medicina, Johannes de Kethan, 1493

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ANEXO 5

Figura 5 – Batismo de Cristo, Leonardo da Vinci e Andrea Del Verrochio, 1470 -1476

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ANEXO 6

Figura 6 – A Última Ceia, Leonardo da Vinci, 1494-1498

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ANEXO 7

FONTE A – GRAVURA 21

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ANEXO 8

FONTE B – GRAVURA 22

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ANEXO 9

FONTE C – GRAVURA 25

SEGUNDA GRAVURA DOS MÚSCULOS

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ANEXO 10

FONTE D – GRAVURA 27

QUARTA GRAVURA DOS MÚSCULOS

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ANEXO 11

FONTE E – GRAVURA 33

DÉCIMA GRAVURA DOS MÚSCULOS

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ANEXO 12

FONTE F – 1. THE SKELETON

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ANEXO 13

FONTE G – 9. THE LOWER EXTREMITY

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ANEXO 14

FONTE H – 14. MYOLOGY OF TRUNK

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ANEXO 15

FONTE I – 17. MYOLOGY OF SHOULDER REGION

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ANEXO 16

FONTE J – 24. MYOLOGY OF LOWER EXTREMITY