elisabetefigueiredo valente coelho luisapinheiro

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    Conviver com o Risco - A importncia da

    incorporao da percepo social nos mecanismosde gesto do risco de cheia no concelho de guedaElisabete FIGUEIREDO

    Sociloga. Doutorada em Cincias Aplicadas ao Ambiente. Professora Auxiliar; Departamento de Ambiente e Ordenamento, Universidade deAveiro, 3810-193 Aveiro, Portugal; Telef.: +351 234 372594; Fax: +351 234 429 290; [email protected]

    Sandra VALENTELicenciada em Planeamento Regional e Urbano. Bolseira de Investigao; CESAM - Centro de Estudos do Ambiente e do Mar; Departamento de

    Ambiente e Ordenamento, Universidade de Aveiro, 3810-193 Aveiro, Portugal; Telef.: +351 234 370 831; Fax: +351 234 429 290;[email protected]

    Celeste COELHOGegrafa. Professora Catedrtica; CESAM - Centro de Estudos do Ambiente e do Mar; Departamento de Ambiente e Ordenamento, Universidadede Aveiro, 3810-193 Aveiro, Portugal; Telef.: +351 234 370 831; Fax: +351 234 429 290; [email protected]

    Lusa PINHOMestre em Gesto e Polticas do Ambiente. Bolseira de Investigao; CESAM - Centro de Estudos do Ambiente e do Mar; Departamento de

    Ambiente e Ordenamento, Universidade de Aveiro, 3810-193 Aveiro, Portugal; Telef.: +351 234 370 831; Fax: +351 234 429 290;[email protected]

    Introduo

    Ao longo dos ltimos anos, vrios autores tm salientado a importncia da comunidade participadaem processos de tomada de deciso sobre medidas de mitigao e gesto de riscos ambientais e

    tecnolgicos. Essa importncia sobretudo traduzida na reflexo acerca do contributo que a integraodas percepes das populaes locais, em conjunto com o conhecimento tcnico e cientfico, pode darpara a legitimidade e eficcia daqueles processos. Em Portugal, a incorporao das percepes sociaisna criao e implementao de medidas tcnicas, associadas mitigao e gesto dos riscos de carctertecnolgico e ambiental, tm sido frequentemente negligenciada, reduzindo-se a participao pblica aaces de carcter pontual e, geralmente, com reduzido impacte nas decises tcnicas e polticas.

    Na determinao do risco, os decisores recorrem habitualmente a pareceres tcnico-cientficos que,grosso modo, tentam quantificar o risco, atravs da avaliao das probabilidades de ocorrncia dosfactores associados e da previso das consequncias dos mesmos. A percepo social do risco obedecea aspectos bastante diversos, incluindo, essencialmente, uma avaliao intuitiva do mesmo, integrandoconsideraes qualitativas como o temor, o potencial catastrfico, o carcter controlvel dosacontecimentos, a equidade, a incerteza (), a confiana na gesto () (Flynn e Slovic, 2000: 110).Tais consideraes, muito embora imbudas de juzos de valor, reflectem aspectos com importantesignificado social e poltico, devendo ser incorporadas nas decises tcnicas e polticas sobre o risco.

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    Mais ainda, estando o risco intimamente associado s dinmicas socioeconmicas especficas de cadacontexto social, a dimenso e a intensidade do mesmo no s percepcionada diferentemente emcontextos diversos, como o nvel de aceitao, a adeso a medidas de mitigao e a capacidade deintervir na gesto so igualmente diversas. Podemos dizer que, perante situaes de risco, cada contextosocial desenvolve reaces e comportamentos prprios que se encontram dependentes das suascaractersticas sociais, culturais, econmicas e polticas. Referir que as percepes, as atitudes e asprticas face ao risco so, em grande medida, socialmente determinadas no implica negar existnciaobjectiva e material do mesmo. Neste sentido, o facto de se reconhecer que o sentimento de perigo ouacontecimento catastrfico no tem (...) nenhuma correspondncia natural a um qualquer instinto desobrevivncia, mas inteiramente formado e suscitado, pelo jogo simblico dos sujeitos sociais, noimplica negar a materialidade do perigo ou a do acontecimento. (Duclos, 1987: 52). Dependendo doscontextos sociais, do modo como o processo de gesto conduzido e da prpria natureza do risco, apercepo do mesmo pode variar desde o conhecimento e posterior intolerncia e indignao, at aceitao e ao conhecimento do perigo sem actuao ou at total ignorncia (Almeida, 2003).

    Nesta comunicao, pretendemos fazer uma reflexo acerca do modo como as populaes expostasao risco de cheia o percepcionam e a forma como essa percepo tem sido incorporada nas medidas emecanismos de gesto do mesmo, no municpio de gueda. A ocorrncia frequente de episdios de

    cheia, assim como a vulnerabilidade e exposio da populao ao risco associado foram factoresdeterminantes para a escolha deste caso de estudo1. semelhana do que acontece em todo o pas,tambm no concelho de gueda se tem negligenciado a natureza multidimensional do risco de cheia. Osdados recolhidos evidenciam alguma disparidade entre as propostas e perspectivas tcnicas e aspercepes das populaes locais. No mesmo sentido, tanto o conhecimento das percepes sociais dorisco de cheia, como as comunidades locais, no tm sido integradas, de uma forma substantiva e pr-activa, quer nos processos de desenho das polticas, quer na implementao das mesmas (e.g. Coelho etall., 2004). A evidncia emprica demonstra igualmente que no concelho de gueda existe uma claratendncia para a aceitao e convivncia da populao com o risco de cheia. Este aspecto pareceassociar-se ao reconhecimento, por parte das populaes locais, da impossibilidade de eliminartotalmente o risco, admitindo simultaneamente como compensadora a ocupao dos leitos de cheia.

    Os riscos, as percepes sociais e os instrumentos tcnicos e polticos a difcilintegrao

    As percepes sociais dos riscos ambientais

    Flynn e Slovic (2000: 109) referem que os seres humanos inventaram o conceito de risco para osajudar a compreender e a lidar com os perigos e as incertezas da vida. Mas a que se deve estaincerteza? impossvel tentar responder a esta questo sem mencionar os trabalhos pioneiros, nestedomnio, de Ulrich Beck (e.g. 1992; 1994) e Anthony Giddens (e.g. 1990; 1991 e 1994). Ambos os autorespropem que as questes da incerteza e da inquietude sejam abordadas luz daquilo a que chamam amodernidade reflexiva, tendo em conta que vivemos numa sociedade de risco(Beck, 1992) que avanano sentido da ps-modernidade(Giddens, 1990). Embora a insegurana e inquietao mencionadas no

    sejam apenas causadas pela magnitude e pelas caractersticas dos problemas ambientais com quelidamos nas sociedades contemporneas, eles tm desempenhado um papel crucial na ampliaodaqueles sentimentos (e.g. Irwin, 2001). A reduzida visibilidade, o carcter crescentemente global etransfronteirio e ainda a ausncia de experincia atravs dos sentidos da maior parte dos problemasambientais, so os factores subjacentes enorme contribuio destes problemas para a sociedade derisco. A este propsito Adam (1993, 400) refere que os processos ambientais no tm em conta asfronteiras socialmente constitudas. Beck (1992: 73) aponta a ausncia de sistemas de conhecimentoclaros e inequvocos sobre os problemas ambientais como os principais aspectos subjacentes screscentes percepes sociais dos riscos, tornando-os socialmente mais problemticos e intolerveis.Para Jacques Theys (1987) foram os acontecimentos, mais que as anlises tericas e cientficas, queimpuseram a noo de sociedade vulnervel(e.g. os atentados terroristas que se iniciaram nos anos 70,

    1Os dados apresentados foram produzidos no mbito do projecto europeu CLIMED - Effects of climate change and climate variability on wateravailability and water management practices in Western Mediterranean; (ICA3-CT-1999-30026).

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    a crise energtica de 1973 e principalmente a sucesso de acidentes tecnolgicos e ambientais como ode Sevezo em 1976 e o de Chernobyl em 1986).

    Para a maior parte dos autores mencionados, os riscos que causam actualmente insegurana eincerteza no so maiores do que os do passado2, mas a viso dos actores sociais acerca do mundo e aelevada mediatizao dos factores de risco (ambientais e de outra natureza) conheceu alteraes muitoprofundas ao longo das ltimas dcadas. Esta perspectiva demonstra que, ainda que tenham condiesobjectivas de existncia, os riscos so socialmente construdos(Dake, 1992: 26) e que a preocupaocom o risco na moderna vida social nada tem que ver com os perigos existentes (Giddens, 1991: 115).Estas noes so reforadas pela circunstncia de que os indivduos, nas sociedades maisdesenvolvidas, se encontram hoje numa posio de maior segurana do que em pocas anteriores (e.g.Figueiredo, 2003)3. Na mesma linha, Flynn e Slovic, 2000: 109) argumentam que muito embora os riscospossam ser reais, no existe um risco real ou objectivo, j que as percepes sociais sobre essemesmo risco dependem de uma variedade (e respectiva conjugao) de circunstncias e conhecimentos,nem sempre facilmente mensurveis.

    A afirmao anterior remete-nos para a multidimensionalidade, subjectividade e carcter valorativoda percepo social dos riscos ambientais. Renn (2004: 405) afirma que o risco no pode ser entendidocomo um conceito monoltico (). O risco deve ser compreendido como um instrumento mental que

    permite a previso de acidentes e perigos futuros e facilita a elaborao de medidas de minimizao dosmesmos. Mais que um instrumento mental individual, as percepes dos riscos ambientais devem sercompreendidas dentro dos contextos sociais em que os indivduos se inserem, no apenas em termos dainteraco social, mas igualmente em termos dos modos como cada constelao social se relaciona como ambiente (e.g. Duclos, 1987; 1994; Bickerstaff, 2004 e Coelho et. al, 2004). A probabilidade deocorrncia e a gravidade dos perigos e seus efeitos4 no so, assim, as nicas componentes que osindivduos accionam no modo como percepcionam e avaliam o risco. essencialmente o contexto noqual o risco experimentado que determina a percepo do mesmo (Renn, 2004). Mais ainda, aexistncia de um conjunto de factores, nesse contexto e tambm a nvel individual, que contribui para aforma como o risco percepcionado e para as prticas desenvolvidas pelos diversos actores sociais faceao mesmo. Slovic et. al, 1981 e Slovic (1987) fornecem uma ampla listagem das circunstncias oufactores qualitativosque se encontram subjacentes s percepes do risco5:

    a familiaridade com a fonte do risco - a capacidade de tolerncia e convivncia com o risco,aumenta na proporo directa da frequncia e possibilidade de ocorrncia do mesmo;a aceitao voluntria do risco a capacidade de aceitar voluntariamente o risco estintimamente relacionada com os benefcios percepcionados;a capacidade para controlar o grau de risco neste caso, a capacidade de convivncia comdeterminado perigo encontra-se associada possibilidade de controlar os factores de riscoantecipadamente, quer seja individualmente, quer seja atravs da percepo da existncia demecanismos tcnicos e institucionais adequados;o potencial catastrfico da fonte de risco quanto maior for a probabilidade de ocorrncia de umacidente de propores catastrficas, menor ser a capacidade de convivncia com essacircunstncia;a certeza acerca do impacto do risco este aspecto est relacionado com a capacidade de

    controlo do grau de risco, sendo que existindo a certeza de qual o impacto de risco, os indivduosmostrar-se-o mais ou menos disponveis para conviver com ele;

    2Sobre a construo social do risco e as percepes e prticas sociais face ao mesmo ao longo da histria, podem consultar-se os trabalhos deTheys (1987: 6-18); de Beck (1992) e ainda de Giddens (1990, 1991). Estes autores referem que as alteraes sociais, decorrentes da viragemda modernidade para a alta modernidade ou ps-modernidade, proporcionaram as condies para tornar obsoletas as tradies polticas esociais herdadas da modernidade, ampliando o sentimento de incerteza e a intolerabilidade face ao risco.3 Efectivamente, pela primeira vez no decurso da histria o sentimento de insegurana parece ter ultrapassado largamente a realidade dasameaas objectivas. Theys (1987) procura explorar este facto atravs de quatro factores: (1) a diminuio dos nveis de violncia e deinsegurana tende a tornar mais insuportvel o que deles resta; (2) o alargamento dos sistemas de proteco social produziu maiores exignciasno que se refere ao alargamento dessa proteco a todos os domnios da existncia; (3) a sacralizao da cincia e da tecnologia modernas fez-nos desenvolver a expectativa de que sero capazes de eliminar completamente os perigos e, neste sentido, os acidentes so consideradosanormais e escandalosos e (4) o aumento do nmero de instituies e de tcnicas associadas segurana fez tambm aumentar o sentimentode alienao e contribuiu para o descrdito e desestabilizao da cincia e da tcnica sempre que se verifica a ocorrncia de alguma falha.4

    Renn (2004: 406) alerta-nos para a diversidade de modelos de percepo social do risco. Tendo em conta os riscos naturais e tecnolgicos,Renn refere que podem ser identificados cinco modelos, a saber: o risco como ameaa fatal; o risco como destino inescapvel; o risco comoprova de fora; o risco como jogo de azar e sorte e o risco como factor de alarme.5Para uma explicao mais detalhada destes factores, ver os trabalhos mencionados e ainda o artigo de Renn (2004).

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    o impacto do risco nas geraes futuras este factor relaciona-se de perto com asustentabilidade ambiental e com a percepo de que as actividades (positivas ou negativas) dopresente podero ter consequncias nas geraes futuras;a percepo sensorial do perigo existe actualmente um conjunto significativo de riscosrelativamente aos quais os actores sociais no tm um sistema sensorial de aviso(Spaargaren eMol, 1993: 443). Esta espcie de expropriao dos sentidos faz com que os riscos noimediatamente perceptveis atravs da experincia sensorial sejam menos tolerados;a percepo da justia na distribuio dos benefcios e riscos a capacidade de aceitao econvivncia com o risco encontra-se dependente do modo como a justia distributiva dos impactos(positivos e negativos) do mesmo apreendida;a percepo da (ir)reversibilidade do impacto do risco se as consequncias de um acidentenatural e/ou tecnolgico forem percepcionadas como irreversveis, menor ser a capacidade deaceitao e de disponibilidade face a ele; a confiana nos mecanismos e entidades de controlo e gesto do risco a capacidade deconviver com determinados factores de risco ser tanto maior quanto maior for a confianadepositada nos instrumentos polticos e tcnicos de controlo e gesto (e.g. Yearley, Forrester eBailey, 2000)

    a confiana nas fontes de informao este aspecto est intimamente associado ao anterior,assim como capacidade de controlar o grau de risco. Os actores sociais mostraro maior nvel deaceitao do risco e maior disponibilidade de convivncia com o mesmo se considerarem que ainformao fivel. A clareza e mecanismos de comunicao da informao sobre o riscoassumem aqui igualmente um papel relevante.

    Muito embora possamos afirmar que os indivduos utilizam alguns destes factores na representao,avaliao e comportamento face ao perigo, a presena destes critrios na formao de opinio e natolerncia face aos riscos varia consideravelmente entre grupos sociais e culturas diversas (e.g. Sjberg,1994). De qualquer modo, como acabmos de observar, a existncia de instrumentos tcnicos e polticosde controlo e gesto, bem como a sua credibilidade, encontram-se entre os factores mais importantes naconstruo social do risco e nas maiores ou menores capacidades de aceitao e convivncia com omesmo.

    Dificuldades de integrao das percepes sociais, do conhecimento tcnico e das decisespolticas sobre os riscos ambientais

    Se os riscos, as percepes sociais e os mecanismos de controlo e gesto dos mesmos sotemticas profusamente estudadas desde h cerca de trs dcadas (e.g. Lima, 2004), as preocupaescom a necessidade da integrao do conhecimento leigo nas medidas de preveno, mitigao ecombate so uma rea de investigao relativamente recente. Efectivamente, apenas recentemente apercepo social do risco comeou a ser considerada como relevante para a sua gesto, merc doreconhecimento de que pode desempenhar um papel extremamente importante no modo como osactores sociais actuam e integram as medidas de mitigao, controlo e gesto do risco nos seus sistemasde valores e prticas. Apesar deste reconhecimento, e de acordo com o que referem Flynn e Slovic(2000) e Lima (2004), existe uma extrema dificuldade em integrar os resultados da anlise tcnica e

    cientfica do risco e os da investigao sobre a percepo social do mesmo. Neste sentido, Lima (2004:150) diz-nos que os experts tcnicos e o pblico encontram-se frequentemente em desacordo acerca dequais as melhores aces a tomar e acerca da gravidade dos riscos. A linguagem utilizada pelosespecialistas difere substancialmente da do pblico em geral, sendo que para os primeiros a avaliao egesto do risco se baseia na quantificao que por sua vez valoriza a probabilidade e as consequnciasconsideradas, assim como as medidas do risco (Flynn e Slovic, 2000: 109) e para o segundo a avaliaodo risco (como observmos antes) se sustenta numa mirade de factores decorrentes de pressupostos etcnicas subjectivas. Assim, em grande parte dos casos nem as mensagens dos especialistas para opblico, nem as do pblico para os especialistasso totalmente compreendidas e utilizadas como basepara a resoluo da controvrsia (Flynn e Slovic, 2000: 110). Mais ainda, e tendo presente o quereferimos na seco anterior, relativamente variao social e cultural da percepo leigados riscos, asdificuldades de integrao entre as perspectivas tcnicas e cientficas (com base nas quais as decises

    polticas so tomadas e os instrumentos de gesto criados) e as perspectivas leigas tornam-sesubstancialmente mais importantes. A natureza multidimensional, subjectiva e carregada de juzos de

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    valor das decises associadas aos riscos deveria, segundo Flynn e Slovic (2000), tornar-se mais evidenteatravs do conhecimento dos especialistas e do pblico leigo. Assim, a integrao das avaliaes dosactores sociais e a dos expertsrevela-se importante para a comunicao do risco e para a elaborao eaplicao de polticas e medidas de gesto dos riscos6. No mesmo sentido, Yearley, Forrester e Bailey(2000: 183) referem que tem-se chegado concluso repetidas vezes que as explicaesespecializadas acerca da realidade fsica tm entrado em conflito com o conhecimento das pessoas quevivem nos locais e que este conhecimento, em lugar de inferior ou deficiente, como por vezesconsiderado, se mostra afinal mais sensvel s realidades locais.

    De acordo com Bikerstaff (2004) e tambm com Lima (2004) uma boa parte da negligncia dasvises dos actores sociais sobre os riscos deve-se ao entendimento, por parte de tcnicos e cientistas, deque as mesmas no possuem qualquer valor prtico na anlise e resoluo dos problemas. A tendnciapara as percepes leigas(i.e. as que so propriedade do pblico em geral) divergirem substancialmentedas propostas pelos expertstem tambm sido frequentemente atribuda ignorncia e irracionalidade dopblico relativamente aos aspectos tcnicos e cientficos das questes7. Mas como refere a autoramencionada e o demonstram algumas investigaes levadas a cabo no domnio da poluio atmosfricae das alteraes climticas, a dcalage entre as perspectivas leigas e as dos experts no pode serapenas definida como sendo funo do erro ou ignorncia por parte do pblico, devendo ser

    fundamentada em aspectos como posio face ao poder, valores, confiana e contextualizao social(Bikerstaff, 2004: 836). Na mesma linha, Renn (2004: 410) diz-nos que qualquer tentativa para rejeitar aintegrao da percepo social do risco na deciso poltica com base no pressuposto de que a mesma fruto da irracionalidade, confiando somente nas avaliaes dos experts, provocar maus resultados.Sem negar a necessidade de criao de instrumentos de gesto do risco sustentados essencialmente noconhecimento cientfico8e reconhecendo o facto de que a percepo social no pode ser um substitutodas polticas racionaisde gesto, Renn (2004: 412) afirma que o que verdadeiramente necessrio uma maior interaco entre a avaliao tcnica do risco e a percepo intuitiva do mesmo. A poltica degesto do risco no deve ser apenas baseada na cincia nem apenas baseada nos valores sociais. Mascomo levar a cabo esta tarefa de integrao?

    Lima (2004: 151) refere que uma estratgia de reconciliao entre as posies tcnicas e leigasfaceao risco consiste na utilizao de mecanismos de informao. Muito embora a informao desempenhe

    um papel crucial na gesto do risco e na integrao de ambas as perspectivas mencionadas, o facto que os cidados no detm (nesta estratgia) praticamente nenhum controlo do processo de deciso. Ainformao um processo de comunicao unilateral, frequentemente orientado pelos especialistas.Nesta estratgia, ainda que relevante, a opinio e a percepo do pblico leigo no so tomadas emconsiderao. Lima (2004: 151 e segs.) demonstra como a estratgia da informao se baseia em certospressupostos que tm impedido uma eficaz e eficiente integrao das vises tcnicas e leigas, como asupremacia cientfica e tcnica; o deficit de cidadania e a tentativa de converso dos actores sociais perspectiva dos tcnicos sobre o risco9.

    Outro modo de reconciliao entre as posies tcnicas e leigasface ao risco, vai para alm da merainformao (e.g. Lima, 2004). Trata-se de utilizar um mecanismo de participao no qual os actoressociais possuam algum controlo do processo e resultados da tomada de deciso as parcerias. Comorefere a autora mencionada (idem: 152-153) as parcerias representam uma forma de consulta pblica

    cujos resultados tm um valor compulsrio sobre a deciso final, atravs de um compromisso acordadoentre as partes envolvidas. Segundo a mesma autora, no que se refere ao risco, esta perspectiva baseia-se em alguns pressupostos que vale a pena salientar:

    em primeiro lugar, na assumpo de que o conhecimento que temos do mundo falvel, de queexistem diversas interpretaes da realidade e representaes do risco;

    6Acerca da integrao das perspectivas do pblico nas anlises cientficas e nos processos de deciso, pode ser tambm consultado o trabalhode Lima (2000).7Lima (2004) refere, para alm da percepo da irracionalidade do pblico por parte dos tcnicos, cientistas e decisores polticos, que estespossuem igualmente uma viso dos actores sociais leigos como extremamente emocionais (e.g. entram facilmente em pnico em situaesconsideradas de risco); egostas (tendo o efeito Nimby Not in my backyard um papel decisivo neste domnio) e assumindo posies dbias face

    s situaes de risco, aos tcnicos e cientistas, conforme os seus interesses.8J que este conhecimento o nico com capacidade para comparar r iscos relativos e opes de mitigao.9A autora refere que para solucionar estas questes problemticas da estratgia de informao importante investir na melhoria do modo comoa informao tcnica e cientfica acerca dos riscos transmitida ao pblico leigo.

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    em segundo lugar, no pressuposto de que a diferena entre as posies tcnicas e leigas,resulta de diferentes interesses e informaes e de que o conhecimento e experincia doscidados pode constituir uma mais-valia para a deciso;finalmente, na assumpo de que a diferena de posies pode tambm ser minimizada atravsda reavaliao das anlises tcnicas, tendo em conta novos parmetros propostos pelos cidados.

    Atravs do estabelecimento de parcerias possvel, de acordo com a autora que temos vindo a citare tambm com Gonalves (2003), conciliar a perspectiva do pblico com a dos cientistas e tcnicos e,consequentemente, com a dos decisores polticos. No entanto, tais processos de participao pblicamostram-se de difcil implementao, j que as posies do pblico leigocontinuam a ser subvalorizadaspor referncia s perspectivas da cincia e da tecnologia. Mais ainda (e os processos de participaopblica em Portugal tm-no demonstrado bem10), visvel um deficit de transparncia nos processos detomada de deciso com a correspondente excluso das perspectivas e preocupaes dos cidados,assim como (e isto particularmente verdadeiro no caso portugus) se observa uma falta de confiana,por parte dos mesmos, nas instituies administrativas e/ou polticas encarregues da elaborao eaplicao das medidas e polticas de preveno, mitigao e gesto do risco (e.g. Lima, 2004; Renn,2004).

    Conviver com o risco de cheia no concelho de guedaDa objectividade do risco

    O que temos vindo a argumentar, quer no domnio da construo e percepo sociais de umdeterminado risco, quer no mbito das dificuldades de conciliao entre as perspectivas tcnicas ecientficas e as vises do pblico leigo,aplica-se ao risco de cheia. Como refere Plate (2002: 2) a gestodo risco de cheia como processo tem sido amplamente discutida sem que os actores envolvidos sejamconsiderados. Segundo Plate (2002) e Silva (2004) a participao da populao e a integrao das suaspercepes do risco, no caso dos episdios de cheia, um aspecto fundamental de qualquer medida demitigao e gesto do mesmo. Mesmo porque, em alguns casos, a expanso da populao para reas derisco em conjunto com as dinmicas sociais, econmicas e polticas da decorrentes tm aumentado ograu de exposio e de vulnerabilidade ao risco, assim como tm influenciado decisivamente a frequnciae a magnitude da ocorrncia de episdios de cheias (e.g. Montz, 2000; Coelho et.al2004; Silva, 2004).Estes aumentos devem-se essencialmente ao acrscimo de impermeabilizao dos solos (devido ocupao urbanstica e alteraes importantes no uso dos terrenos) e do escoamento, quer pelasintervenes nos rios, quer atravs da drenagem desadequada das guas pluviais. Como refere Silva(2004) as cheias esto certamente entre os riscos que gozam de maior omnipresena no quadro dassociedades modernas, pela frequncia com que se manifestam sob a forma de desastre. O territrioportugus no surge aqui enquanto excepo. Inverno sim, Inverno no, a arena pblica v-se inundadapor notcias que reportam a ocorrncia de fenmenos de cheia, paradoxalmente, quase sempre vividoscomo excepcionalidades da natureza.

    De entre as zonas do territrio portugus mais afectadas pelas cheias destaca-se o concelho degueda. Alis, a ocorrncia frequente de episdios de cheia e a vulnerabilidade e exposio das

    populaes locais a este risco foram os factores determinantes da escolha deste concelho como caso deestudo11. O concelho de gueda, localizado na Regio Centro de Portugal, composto por 20 freguesiase est integrado na Bacia Hidrogrfica do Vouga, como podemos observar na figura 1.

    10Por exemplo, os casos de Estudos de Impacte Ambiental a propsito de grandes obras; os casos dos Planos Directores Municipais; os casosdos Planos de Ordenamento das reas Protegidas, entre outros.11Como se referiu, a evidncia emprica aqui apresentada insere-se no mbito do projecto europeu CLIMED - Effects of climate change andclimate variability on water availability and water management practices in Western Mediterranean; (ICA3-CT-1999-30026). Neste sentido, nointuito de avaliar a percepo da populao face s alteraes climticas e face ao risco de cheia, foi aplicado um inqurito por questionrio populao do concelho de gueda. Este divide-se em dois grandes grupos de questes. O primeiro grupo aborda a problemtica das alteraesclimticas, nomeadamente as questes associadas aos sinais que evidenciam esta mudana, s causas, s consequncias e s possveismedidas de mitigao dos seus efeitos. O segundo grupo refere-se s causas e consequncias das cheias, bem como s medidas deminimizao associadas aos seus efeitos e, ainda, anlise e avaliao da magnitude do risco associado. Utilizou-se a amostra por quotas, com

    base em critrios associados dimenso populacional das freguesias, estrutura etria, ao sexo, ao estado civil, ao nvel de escolaridade e condio perante a actividade econmica. Foram aplicados 823 inquritos, representando cerca de 2% do total da populao residente com maisde 15 anos. Paralelamente, realizaram-se inquritos por entrevista, no sentido de conhecer a perspectiva das entidades locais e extra-locais, cominterveno nesta matria.

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    O problema das cheias em gueda no s frequente e de grande magnitude, como constitui umaquesto antiga. Constata-se que no concelho de gueda ( semelhana da maior parte dos locais deocorrncia de episdios de cheia) a frequncia e a intensidade das cheias tm conhecido umagravamento nos ltimos anos. Em termos geogrficos, podemos dizer que se encontram reunidas ascondies para a ocorrncia de cheias que, no entanto tm sido agravadas pela ocupao humana dosleitos de cheia ao longo dos anos. A bacia do rio gueda (principal afluente do rio Vouga) caracteriza-sepor um relevo muito diversificado. As zonas de maior altitude dos rios gueda, Alfusqueiro e Crtima so,pela morfologia que apresentam12, as que mais contribuem para a intensificao dos fenmenos deprecipitao, conduzindo a um aumento do caudal e da velocidade dos cursos de gua13. A jusante daconfluncia do rio Alfusqueiro com o rio gueda ntida a suavizao da inclinao e a maior abertura doleito, levando reduo da velocidade de escoamento, acumulao de sedimentos e consequentereduzida capacidade de vazo. Assim, a cidade de gueda, particularmente a zona baixa, encontra-sefrequentemente exposta a inundaes, situao que agravada pelas intervenes antrpicas, querpelas obstrues ao escoamento (causadas pela construo de pontes e vias de comunicao), quer pelaindevida ocupao dos leitos de cheia. As cheias nesta zona da cidade repetem-se quase todos os anos,observando-se a existncia de prejuzos avultados, nomeadamente decorrentes da inundao deestabelecimentos comerciais, armazns e habitaes, da destruio de exploraes agrcolas e agro-

    pecurias e ainda de alguns constrangimentos ao nvel das infra-estruturas, entre outros (e.g. Coelho et.al, 2003).

    Figura 1 Localizao da rea de estudo

    Apesar de ser um problema extensvel a todo o municpio, os episdios de cheias no concelho degueda no afectam uniformemente toda a sua rea, variando quanto intensidade e frequncia dosepisdios e tambm quanto ao tipo de danos e prejuzos resultantes. Assim, pareceu-nos de extremaimportncia a anlise e a avaliao territorial da dimenso e do impacto scio-econmico da ocorrnciade cheias14. Neste sentido, foi elaborado um mapa15onde esto delimitadas e diferenciadas as freguesiasafectadas pelas cheias (figura 2). Verifica-se que as reas inundveis, delimitadas na Carta da Reserva

    12Elevado declive, devido ao acentuado relevo da Serra do Caramulo.13Os episdios de cheia no concelho de gueda podem ser caracterizados como flash floods, i.e., cheias decorrentes de uma subida muitorpida dos caudais dos rios. Este tipo de cheias, segundo Plate (2002) caracteriza-se pela velocidade e pelas foras tremendamente erosivasdas guas.14A elaborao deste tipo de anlises (mapas de risco) apontada por diversos autores como de extrema importncia, quer na previso dos

    impactos das cheias, quer ainda na implementao de estratgias de mitigao e gesto.15O mapa apresentado representa um exerccio de delimitao das reas de risco de cheia, baseado no cruzamento de informao espacial einformao resultante da anlise emprica. Assim, pretende-se evidenciar a importncia da integrao de vrios tipos de informao naelaborao de cartas de risco de cheias.

    ESPANHA

    ATLNTICO

    ESPANHA

    0 150.000 300.00075.000Meters

    0 10.000 20.0005.000Meters

    CONCELHO DE GUEDA

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    Ecolgica Nacional (do Plano Director Municipal de gueda), se localizam maioritariamente na parteOeste do concelho, junto aos rios Vouga, gueda, Alfusqueiro, Crtima e Marnel. Relativamente aosinquritos, os resultados demonstram que as freguesias com o maior nmero de inquiridos afectados porcheias so gueda, Aguada de Cima, Borralha, is da Ribeira, Segades e Travass. Esta informaoreflecte, novamente, a concentrao dos impactos das cheias na parte Oeste do concelho. Em sntese,verifica-se que nas freguesias de gueda, Aguada de Cima, Borralha e is da Ribeira que as cheiastm gerado mais danos e prejuzos, designadamente a inundao de habitaes e estabelecimentoscomerciais, causando perdas de bens e equipamentos, bem como outros custos associados enormalmente no contabilizados (danos morais; perda de documentos; impossibilidade de habitar a casaou de abrir o estabelecimento; entre outros). No nvel mdio, situam-se as freguesias de Lamas doVouga, Valongo do Vouga, Segades, Travass, Fermentelos, Espinhel, Recardes e Aguada de Baixo,que apesar de tambm serem frequentemente afectadas por episdios de cheia, ou possuem umaextenso menor de reas inundveis, ou no se evidenciam tantos prejuzos e danos. As freguesiasserranas Prstimo, Macieira de Alcba, Castanheira do Vouga, Agado e Belazaima do Cho somuito pouco afectadas pelo evento extremo em questo, uma vez que correspondem, normalmente, azonas de maior altitude.

    Figura 2 Delimitao das zonas afectadas pela ocorrncia de episdios de cheia, no concelho de gueda, pornvel de exposio ao risco de cheias

    s percepes sociais

    Ao longo deste trabalho temos vindo a argumentar que, em grande medida, ainda que o risco possuauma realidade objectiva, ele socialmente construdo. Por outro lado temos vindo a defender a ideia deque a integrao das percepes sociais nos instrumentos de gesto do risco um aspecto fundamentalpara o sucesso daqueles instrumentos e, consequentemente, para a preveno e mitigao do mesmorisco. Assim, o modo como as populaes do concelho de gueda percepcionam o risco constitui umaspecto fundamental, quer para a anlise dos comportamentos e prticas adoptados face ocorrncia deepisdios de cheia, quer para a avaliao do conhecimento face magnitude, causas e consequnciasde que se reveste o prprio risco. O envolvimento e a participao das comunidades locais importantepara o sucesso da aplicao das medidas de gesto e de mitigao, sendo este aspecto determinante naanlise dos problemas e no desenvolvimento das propostas, porque susceptvel de criar consensos e

    compromissos nos processos de tomada de decises.

    0 5.000 10.0002.500Meters

    Alto

    Mdio

    Linhas de ua

    Rio Vou a

    Muito Baixo

    Baixo

    Limites das Fre uesias

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    A maior parte dos inquiridos no concelho de gueda (56%), independentemente das suascaractersticas objectivas e da exposio da sua rea de residncia ao risco, tende a associar aocorrncia e o agravamento dos episdios de cheia ao fenmeno mais global das alteraes climticas.O aumento da precipitao causado pelas alteraes climticas globais, o aquecimento global e adestruio da camada de ozono (essencialmente pelas componentes poluio, desflorestao eincndios) so as razes mais frequentemente apontadas para a relao estabelecida entre as alteraesclimticas e o agravamento do risco de cheia. No que se refere ao modo como as alteraes climticasglobais tm afectado a rea de residncia dos inquiridos, a maioria deles sentem esses efeitos (76%)essencialmente na actividade agrcola (40%16), no aumento da intensidade e da frequncia das cheias(21%), na sade (14%), na intensidade e frequncia dos perodos secos (7%) e ainda na ocorrncia deincndios e na diminuio do recurso gua (4% em cada resposta). De salientar que existe umaassociao estatstica evidente e relativamente forte entre a percepo do modo como as alteraesclimticas afectaram o local de residncia e o grau de exposio ao risco. Assim, nas reas maisvulnerveis ao risco que os inquiridos apontam com maior frequncia o impacte das alteraes climticasglobais no aumento dos episdios (e da sua magnitude) de cheia. De qualquer modo, os efeitos naagricultura so os mais mencionados em todas as freguesias do concelho, excepo da freguesia degueda onde, pela sua enorme exposio ao risco, as cheias o impacte mais referido.

    Tal como mencionmos anteriormente, as cheias no so um fenmeno recente, nem poucofrequente, no concelho de gueda. Por esta razo no surpreendente que 77% dos inquiridos refira quepossui memria de algumas cheias em particular. Tambm no pode ser considerado surpreendente que,destes indivduos, uma boa parte refira as cheias dos anos hidrolgicos recentes (respectivamente 40%referem-se s cheias de 2002/2003 e 28% apontam as cheias de 2000/2001). Para 10% a cheia ocorridano Natal de 1995 continua a ser aquela de que possuem mais memria. De notar a enorme dependnciaestatstica que existe entre esta varivel e a vulnerabilidade ao risco da rea de residncia, sendo que medida que a exposio aumenta, aumenta igualmente a percentagem de inquiridos que tm memria dealguma cheia em particular chegando a atingir os 98% nas reas classificadas como de altavulnerabilidade. Cerca de 27% dos inquiridos referem ter sido afectados, pelo menos uma vez, por umepisdio de cheia. Destes, 26% referem a inundao da habitao como a forma como foram afectados;23% o corte de estradas ou danos em outras infra-estruturas; 16% mencionam a inundao dos campos

    agrcolas e 11% referem a inundao de estabelecimentos comerciais e/ou industriais. A figura seguintemostra o nmero de vezes que os inquiridos foram j afectados pelas cheias.

    Figura 3 Nmero de vezes que os inquiridos foram afectados por cheias, no concelho de gueda, por nvel devulnerabilidade e exposio ao risco das freguesias de residncia

    O nmero de indivduos que referem ter sido j afectados por uma cheia mais elevado nas reasem que a exposio a esse risco maior. Nas reas de maior vulnerabilidade os efeitos das cheiasfizeram-se sentir essencialmente ao nvel da inundao de habitaes e estabelecimentos comerciaise/ou industriais, enquanto que nas reas de mdia vulnerabilidade os efeitos mais mencionados so a

    inundao de campos agrcolas, o corte de estradas e danos em outras infra-estruturas. Dos inquiridos16Os inquiridos podiam fornecer mais que uma resposta questo.

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    que foram j afectados pela ocorrncia de cheias, 54% referem que sofreram algum tipo de danos, sendoque a maior parte (90%) mencionam exclusivamente danos materiais, consubstanciados designadamenteno estrago de mveis, electrodomsticos (quer nas habitaes, quer nos estabelecimentos comerciais eindustriais), culturas agrcolas, edifcios e perda de animais. medida que a vulnerabilidade ao riscoaumenta, aumenta igualmente a percentagem de inquiridos que refere a destruio e estragos emedifcios e nos bens no interior dos mesmos. Nas zonas de mdia vulnerabilidade os danosmaioritariamente referidos so os estragos e prejuzos nas culturas agrcolas e perda de animais. Apesardos danos sofridos, a maior parte dos inquiridos reocupa os edifcios e retoma as actividadesanteriormente desenvolvidas nos locais afectados. Tal circunstncia vai ao encontro do que se referiu naprimeira seco deste trabalho, ou seja, do facto de em determinados contextos, as populaes semostrarem dispostas a conviver com os riscos. Neste caso concreto podemos avanar a localizaoprivilegiada dos estabelecimentos comerciais na baixa da cidade de gueda como compensadora nobalano dos custos/benefcios dos impactos das cheias e como o principal factor que predispe aspopulaes convivncia com o risco. Como refere Renn (2004: 407) compreensvel, ainda que nopossa ser considerado muito racional, que as pessoas que vivem em regies afectadas por terramotos echeias regressem frequentemente a essas zonas aps os desastres, j que a ponderao dos efeitos semostra compensadora e, se no conduz negao da existncia do risco, tende a constituir-se como um

    factor de minimizao do mesmo. Apesar da ocorrncia de cheias no concelho de gueda serrelativamente frequente e, em certa medida, previsvel, a percentagem de inquiridos que declara possuirum seguro contra este risco diminuta (13%), no sendo surpreendente que a sua totalidade resida nasfreguesias classificadas como de maior vulnerabilidade17. A no realizao de seguros contra o risco decheias pela maioria dos inquiridos afectados pelas mesmas pode constituir-se como mais um elementode reforo para o que argumentmos anteriormente, i.e., de que a ocupao das zonas mais expostas serevela compensadora18.

    Quanto s causas apontadas para a ocorrncia de cheias no concelho de gueda (reconhecidas por96% dos inquiridos), as mais frequentemente mencionadas (figura 4) so a falta de limpeza das linhas degua e terrenos adjacentes, a precipitao, a incapacidade de escoamento dos rios, as obras realizadasnos leitos de cheia e as alteraes no uso do solo. Uma vez mais se observa a existncia de associaoestatstica entre as causas mencionadas e o nvel de vulnerabilidade ao risco da zona afectada, sendo

    que nas freguesias de elevada exposio os factores no naturais (como a ausncia de limpeza, asobras, etc.) so os mais frequentemente apontados, assim como a m gesto poltica. De salientar que apopulao no se percepciona a si mesma como contribuindo para o agravamento das situaes derisco, designadamente pela ausncia de referncia ocupao indevida dos leitos de cheia pelasexploraes agrcolas, pela construo de edifcios e infra-estruturas diversas19.

    Como maiores consequncias da ocorrncia de episdios de cheia em gueda, os inquiridospercepcionam mais frequentemente a perda de bens, equipamentos e mercadorias (33%), a degradaode imveis (19%), o encerramento temporrio de estabelecimentos comerciais e de servios (18%), osprejuzos na agricultura (14,4%) e a destruio e degradao de infra-estruturas pblicas (5,4%). So asfreguesias de elevado ou mdio grau de exposio as que mencionam as trs primeiras consequnciasreferidas anteriormente, enquanto nas freguesias de baixo ou muito baixo nvel de vulnerabilidade, osprejuzos na agricultura e na criao de gado e o encerramento temporrio de algumas estradas so

    referidos com maior frequncia como os principais efeitos das cheias.

    17 Relativamente a subsdios de compensao para os prejuzos provocados pelas cheias, apenas 9% dos inquiridos referem ter sidobeneficirios deste tipo de apoio, sendo que a maior parte destes reside nas zonas de elevada exposio ao risco.18

    Por outro lado, a entrevista com a Associao comercial de gueda (ACOAG) revela que muitas seguradoras se recusam a fazer seguros quecubram este tipo de risco, dada a previsibilidade dos prejuzos provocados pelos seus efeitos.19Apenas a ttulo de curiosidade, refiramos que o recentemente construdo Quartel dos Bombeiros Voluntrios de gueda se localiza numa zonade elevadssima vulnerabilidade ao risco de cheia.

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    Figura 4 Causas das cheias apontadas pelos inquiridos, no concelho de gueda, por nvel de vulnerabilidadee exposio ao risco das freguesias de residncia

    Se em termos de causas, a populao no percepciona as actividades que desenvolve nos leitos decheia como tendo impactes significativos na intensidade e agravamento deste risco, ao nvel dasconsequncias elas associam-se frequentemente s perdas e danos causados naquelas actividades.Apesar disto, apenas 13,5% dos inquiridos refere ter j adoptado medidas individuais face s cheias,materializadas na salvaguarda prvia de bens materiais e a realizao de pequenas intervenes eestruturas de proteco. Trata-se essencialmente de medidas tomadas a posteriori e no de medidaspreventivas e de combate. Tal facto vem reforar que, no concelho de gueda, mesmo nas zonas demaior exposio ao risco, os indivduos se mostram dispostos a tolerar e a conviver com o mesmo risco,devido familiaridade, avaliao dos custos/benefcios e, de certo modo, percepo do impacto dascheias como no catastrficas e controlveis. Isto mesmo confirmado pelos dados recolhidos a partirdas entrevistas realizadas s entidades polticas e administrativas que actuam no domnio da prevenoe combate s cheias. O responsvel pelos Servios de Proteco Civil de gueda, por exemplo, refereque as pessoas naturais desta zona habituaram-se a conviver com as cheias e no se importam muito.Na mesma linha, o representante da Cmara Municipal, salienta que, nos comportamentos da populaoface s cheias a preocupao vem do prprio dono, porque normalmente o rs-do-cho comercial eeles que sofrem. Se no fosse aquela cheia do Natal de 1995 eles at conviviam bem com as cheias,as pessoas j esto habituadas. Quando comeam as cheias as pessoas pem as coisas mais altas,

    fecham a porta, metem umas comportas e vo tratar da vida deles.59% dos inquiridos tm conhecimento de algumas das medidas institucionais desenvolvidas paramitigar e gerir o risco de cheias no concelho de gueda, 30% desconhecem a existncia de qualquermedida e 9% referem a sua inexistncia. Entre os que possuem conhecimento de algumas medidas,51,6% referem a limpeza das linhas de gua e terrenos adjacentes, 13,4% a construo de um paredojunto ao rio na baixa da cidade de gueda e 10% o desassoreamento e alargamento do rio e das linhasde gua. Com percentagens menos significativas, so apontadas medidas como a destruio da Ponteda Rata, a construo de barragens, represas e diques e pequenas obras de correco. De salientar queas medidas mencionadas pertencem todas ao mbito das estratgias estruturais e tecnolgicas20. Este

    20Estas medidas tm dominado as estratgias de preveno, combate e gesto do risco de cheia em Portugal. Estas medidas, como refere Silva

    (2004) e como veremos com maior detalhe no ponto seguinte, so essencialmente direccionadas para o armazenamento e utilizao do recursogua e, simultaneamente, atravs de obras de engenharia, para o controlo dos caudais dos rios. Recentemente, tem-se vindo a observar umaviragem para adopo de medidas de carcter no-estrutural que, entre outros aspectos, apelam ao envolvimento e participao das populaesafectadas.

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    facto poder estar relacionado com a ausncia de informao e com a identificao com as medidas jadoptadas, ou ainda com a prpria acomodao situao presente (e.g. Coelho et. al, 2004).Exactamente no mesmo sentido encontramos as respostas dadas percepo dos inquiridos sobre asmedidas a adoptar no futuro. Observamos que todas as medidas referidas so de carcter estrutural etcnico. Quanto avaliao que os inquiridos fazem do sucesso das medidas apontadas, 32%

    percepcionam o seu xito e eficcia, enquanto que, respectivamente, 18% salientam a sua ineficcia ou oseu sucesso parcial.

    As entidades consideradas responsveis pela preveno e/ou combate s cheias em gueda soidentificadas por 91% dos inquiridos, observando-se (figura 5), que as entidades que operam ao nvellocal so aquelas a que atribuda maior responsabilidade (50%). Os bombeiros e os servios deproteco civil so consideradas as entidades com maiores responsabilidades neste domnio por 24%dos indivduos e o governo central por 18%. De salientar que a populao apenas referida comoresponsvel por 6% dos inquiridos. Quanto percepo da actuao destas entidades, observamos umadisperso de opinio entre os inquiridos. Assim, 39% consideram que as entidades mencionadas actuamde forma positiva e 35% referem que a actuao daquelas insuficiente ou negativa. A percepo daactuao das entidades como positiva est associada representao das cheias como umainevitabilidade, por um lado, e impossibilidade do risco ser completamente eliminado, por outro. Comosalienta o responsvel pela Associao Comercial de gueda (ACOAG), ns no queremos muito teraquela ideia de fatalismo, mas as pessoas daqui j esto conscientes que esto numa zona de risco noque toca s cheias e por mais obras que se faam, nunca se consegue eliminar esse risco a 100%, vaihaver sempre o risco da cheia vir.

    Bombeiros

    15%

    Servios de proteco civil

    9%

    Juntas de Freguesia

    6%

    Cmara Municipal

    43%

    Entidades governamentais

    18%

    Entidades regionais

    1%

    Governo Civil

    1%

    Outras

    1%

    Entidades em geral

    0% Populao em geral

    6%

    Figura 5 Entidades consideradas como responsveis pelo combate/preveno do risco de cheia no concelho degueda

    e aos instrumentos tcnicos e polticos de gesto

    Salientmos anteriormente o carcter estrutural da maior parte das medidas e polticas de gesto dorisco de cheia. Efectivamente, semelhana do que aconteceu na maior parte dos pases ocidentais ath cerca de duas dcadas , em Portugal a minimizao do risco de cheia tem assentado, sobretudo, nautilizao de medidas estruturais em detrimento de medidas no estruturais, desfavorecendo um carcterpreventivo de actuao (Parker, 2000)21. A percepo social e institucional da segurana tcnicaassociada s medidas de natureza estrutural tem-se traduzido, com frequncia, na ocupao densa edesordenada das reas inundveis (Rocha, 2003), como visvel no caso do concelho de gueda. Aexcessiva confiana na cincia e nas medidas tcnicas de minimizao do risco de cheia tem conduzido ocupao, com actividades de natureza variada, de locais de grande vulnerabilidade e exposio aesse mesmo risco. Consequentemente, as alteraes observadas em termos de uso do solo em gueda,

    21Para um conhecimento mais aprofundado desta questo, recomenda-se a leitura do trabalho de Silva (2004).

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    ao longo dos anos, tm contribudo igualmente para o agravamento dos episdios de cheia, quer na suamagnitude, quer na sua frequncia. Ao observar-se uma mudana nos usos dos solos mais expostos aorisco de cheia, tm-se perdido tambm algumas prticas mais tradicionais de minimizao dos seusefeitos, como a limpeza das margens dos leitos dos rios. De acordo com o responsvel pelo InstitutoNacional da gua (INAG), este papel pode ser realizado pelos proprietrios dos terrenos marginais, masantigamente era desempenhado pelos guarda-rios. medida que os guarda-rios iam caminhando nostrabalhos, iam falando com os proprietrios, iam sensibilizando os proprietrios. Isso uma espcie [osguarda-rios] em vias de extino, ou acabou, de maneira que temos de recorrer s entidades da zona ()que conhecem os proprietrios e que lhes vo dando uma palavrinha. Mais ainda, acrescenta oentrevistado, se h proprietrios que recebem de braos abertos as nossas intervenes, h outros quenem por isso, porque so senhores daquele meio metro de terra para pr feijes ou outra coisa qualquer.Por outro lado, a ocupao das reas de risco (sobretudo na chamada baixa de gueda), apesar daintensificao das cheias, tem-se revelado compensadora para a maior parte dos comerciantes ainstalados, j que, segundo o representante da ACOAG se de facto o mercado e o comrcio que o quepredomina aqui na zona da baixa, se a cidade sente presses sociais e econmicas para se desenvolverpara este lado, porque o risco compensa.

    As medidas de gesto do risco de cheia, bem como as medidas mais especficas de preveno e

    combate a esta ocorrncia, tm-se caracterizado por serem essencialmente tcnicas, materializando-sena elaborao de estudos de incidncias ambientais e em anlises globais de Bacia, na eliminao depontes e atravessamentos que tm contribudo de forma significativa para aumentar a frequncia dascheias em gueda, nas limpezas das margens e dos leitos dos rios, na eliminao de aterros, naconstruo de diques e barragens, no desassoreamento, na construo de pontes e muros na zonabaixa da cidade. De salientar que as medidas futuras (apontadas pelos entrevistados e semelhana dosinquiridos) possuem a mesma natureza estrutural, sendo de referir a colocao de vlvulas de mar nazona baixa da cidade, a demolio de alguns edifcios e a elaborao de uma planta de emergncia paraprever situaes e resolv-las de forma mais imediata. Apesar de a populao ter conhecimento da maiorparte das medidas de gesto j adoptadas, as campanhas de informao/sensibilizao da populaono so mencionadas pelos tcnicos entrevistados como estratgias relevantes de preveno e combateao risco de cheia. No mesmo sentido, as medidas de carcter no estrutural so mencionadas de forma

    marginal pelas entidades, se exceptuarmos as campanhas de sensibilizao da populao.As questes associadas ao planeamento e ordenamento do territrio ainda que frequentementemencionadas como pertinentes para a minimizao dos efeitos das cheias, tm sido subalternizadas emrelao s opes mais tradicionais de correco. Como salientmos antes, no caso de gueda, osaspectos associados ao ordenamento tambm se observam, designadamente atravs da indevidaocupao dos leitos de cheia da zona baixa da cidade. Esta rea concentra grande parte do comrcio edos servios deste municpio, continuando a evidenciarem-se presses no sentido do seudesenvolvimento scio-urbanstico. Perante esta ocupao consolidada, as entidades locais manifestamalguma incapacidade para evitar a exposio da populao ao risco e encontrar solues deplaneamento alternativas. Se, e ao contrrio do que refere Fordham (2000), os tcnicos locais valorizam aimportncia da ligao dos residentes s reas locais e da componente vital que estas representam paraa sua identidade social, ntida a no integrao das populaes locais e das suas percepes do risco

    nos processos de desenho e aplicao das medidas de gesto. Fordham (2000), Flynn e Slovic (2000),Plate (2002), Lima (2004) e Silva (2004), entre outros, salientam a importncia do desenho dacomunidade participada, integrando o contributo e o conhecimento leigoda populao e a experinciados tcnicos. Neste sentido, muito importante a informao, a sensibilizao e o envolvimento dapopulao, no apenas face ao combate em situaes de cheia, mas sobretudo na preveno do risco aque esto expostas. Observamos que, em gueda, os passos para uma gesto do risco de cheiaparticipada no tm sido dados, privilegiando-se a perspectiva tcnica e poltica (baseadafrequentemente na primeira), em conjunto com uma estratgia unilateral de comunicao: a informao edivulgao das medidas adoptadas. Como salienta Silva (2004) a eficcia das medidas no domnio dorisco associado ocorrncia de cheias (como noutros) encontra-se extremamente dependente da adesodo pblico e da sua consequente actuao em conformidade com as regras. Embora alguns autores (e.g.May et. al (1996) cit. in Silva (2004) considerem que as populaes em risco so potenciais agentes depresso sobre os governos e os tcnicos para a tomada de medidas de preveno, o facto que parece

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    imperar em algumas populaes (como o caso de gueda) uma atitude de desqualificao do risco22semelhante quela que, segundo a autora mencionada, pode ser encontrada entre os governantes. Nestesentido qualquer poltica de gesto do risco que implique remexer nas lgicas de organizao scio-espacial do territrio e incrementar comportamentos protectivos implica assegurar o maior envolvimentodo pblico possvel(Silva, 2004: 9).

    ConclusoNeste trabalho partimos de uma concepo multidimensional das percepes sociais dos riscos

    ambientais em geral e do risco de cheia em particular. Salientmos que, mais que a probabilidade deocorrncia e a gravidade dos riscos, o contexto social no qual estes so experienciados que determinaas percepes e as prticas face aos mesmos. Como argumentmos na primeira seco, na formao depercepes e comportamentos face ao risco intervm uma multiplicidade de factores mais ou menossubjectivos que vo desde a familiaridade com a fonte e os efeitos do perigo, a capacidade de controlo dograu de risco, o potencial catastrfico de que o perigo se reveste, o modo como percepcionada a justiana distribuio dos custos/benefcios dele decorrentes, o seu grau de reversibilidade at confianadepositada quer nas informaes disponibilizadas, quer nas entidades e mecanismos de gesto.

    Apesar do reconhecimento da importncia da integrao das percepes sociais (ou leigas) nos

    instrumentos tcnicos e polticos de gesto, observmos que apenas recentemente existe a consideraode que tal integrao fundamental para a gesto do risco, j que pode desempenhar um papel crucialnas prticas dos actores sociais e, consequentemente, na legitimidade e eficcia das medidas elaboradasneste domnio. No entanto, como argumentmos, existem mltiplas dificuldades na integrao entre oconhecimento cientfico e tcnico (e consequentemente, as decises polticas) e as percepes leigas.Como tivemos ocasio de referir, uma tal dificuldade deve-se sobretudo natureza do conhecimento eprtica cientfica (linguagem, mtodos, etc.) que tende a subalternizar as percepes sociais (e nofundamentadas nos mesmos pressupostos). Como menciona a maior parte dos autores consultados, aintegrao deve ser tornada possvel j que qualquer poltica de gesto do risco (para ser eficaz esocialmente legitimada) deve sustentar-se tanto no conhecimento tcnico-cientfico, como nas avaliaessociais. A integrao passa no apenas pela divulgao da informao, mas sobretudo pelo envolvimentodo pblico nos processos de tomada de deciso e implementao das medidas, designadamente atravsdo desenvolvimento de estratgias de participao e do estabelecimento de parcerias. Uma vez maisestes processos tm-se revelado de difcil materializao, j que a tendncia dominante a dasubvalorizao dos contributos dos actores sociais face s perspectivas tcnica e cientfica e tambmdevido ausncia de transparncia que tem caracterizado uma boa parte dos processos de tomada dedeciso. Tambm a escassa confiana que o pblico deposita nas entidades e polticas de mitigao egesto do risco parece desempenhar um papel fulcral neste domnio.

    O caso do risco de cheias no concelho de gueda , paradigmtico do que, em termos tericos foidiscutido neste trabalho. No sendo o risco de cheia uma questo recente, visvel que a frequncia dasocorrncias e a sua magnitude se tem agravado nos ltimos anos, sobretudo devido a factoresantrpicos, designadamente a ocupao dos leitos de cheia e as alteraes em termos dos usos do solo.No concelho de gueda as cheias so um fenmeno que se repete todos os Invernos, registando-se

    prejuzos avultados. Apesar deste risco afectar todo o concelho, observmos que as cheias no ocorremuniformemente em toda a sua rea, sendo varivel o grau de vulnerabilidade e exposio a estefenmeno. Esta variabilidade no pode deixar de influenciar, como verificmos, a forma como aspopulaes percepcionam o risco.

    Partindo do pressuposto de que as percepes sociais do risco de cheia, em gueda, se constituemcomo um aspecto fundamental, quer na anlise das prticas adoptadas face s ocorrncias, quer naavaliao do conhecimento do fenmeno e suas consequncias, a evidncia emprica produzida permitiudemonstrar que:

    a maior parte dos inquiridos associa a ocorrncia e o agravamento das cheias s alteraesclimticas globais, especialmente os residentes em reas de maior exposio ao risco;

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    Como sugerimos antes, esta atitude (entre a populao de gueda) pode ser explicada por diversos factores, desde a familiaridade com afonte do risco e com a prpria situao de risco at disponibilidade de convivncia com a mesma motivada essencialmente pela percepo dosbenefcios associados e tambm (ainda que aparentemente em menor escala) pelo sentimento de impotncia perante a inevitabilidade do risco epelo carcter reversvel de que o mesmo se reveste.

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    mais de um quarto dos indivduos refere ter sido afectado, pelo menos uma vez, pela ocorrnciade cheias, sendo as suas consequncias essencialmente visveis em danos materiais,consubstanciados em estragos em edifcios e bens, nas estradas e outras infra-estruturas, nainundao, com consequente perda de culturas, dos campos agrcolas e estragos diversos emestabelecimentos comerciais e industriais; apesar dos danos sofridos, observmos que a maior parte dos inquiridos afectados pelas cheiasreocupa os edifcios e retoma as actividades desenvolvidas nos locais dos sinistros; as causas mais frequentemente apontadas para a ocorrncia de cheias no concelho associam-se mais a aspectos relacionados com as medidas (no) tomadas pelas entidades comresponsabilidades neste domnio, e muito menos a questes associadas s prticas das populaes,nomeadamente quanto ocupao indevida dos leitos de cheia; como consequncias principais, os indivduos identificam prioritariamente os aspectos queafectam a sua vida quotidiana e as suas actividades econmicas; apesar disto, apenas uma escassa percentagem de inquiridos refere ter adoptado medidasindividuais de preveno das cheias; a maior parte da populao consultada conhece as medidas institucionais adoptadasactualmente e aponta estratgias para o futuro, referindo quase exclusivamente aquelas que

    possuem um carcter estrutural; as medidas adoptadas a nvel institucional so avaliadas de forma positiva, assim como aactuao das entidades consideradas responsveis pela gesto do risco de cheia; na mesma linha, grande parte dos inquiridos atribuem s entidades polticas e administrativas denvel local a maior responsabilidade na mitigao e gesto do risco de cheia, sendo de destacar queapenas uns escassos 6% indicam as populaes como sendo as principais responsveis nestamatria.Pelo exposto, constatamos que a maior parte das percepes da populao evidenciam uma atitude

    de predisposio e capacidade para conviver com o risco. Tal atitude essencialmente motivada pelafamiliaridade com a fonte do risco; pela percepo da ocupao das zonas de maior exposio evulnerabilidade como compensadora face aos prejuzos que a ocorrncia pode provocar e temprovocado; pelo conhecimento e informao sobre as medidas e mecanismos de gesto tomadas a nvel

    institucional; pelo sentimento de impotncia individual e institucional perante a inevitabilidade do risco eainda pela percepo dos efeitos das cheias como reversveis.No concelho de gueda, semelhana do que tem acontecido em Portugal e do que ainda

    dominante nos pases ocidentais, as medidas de gesto do risco de cheia assumem um carcterestrutural, sendo materializadas principalmente em obras de engenharia e no conhecimento tcnico ecientfico e negligenciando, quer as percepes das populaes, quer o seu envolvimento e participaoactiva. Como argumentmos, a eficcia das medidas (estruturais e no estruturais) encontra-seextremamente dependente da adeso das populaes expostas e desta depende igualmente aintegrao daquelas mesmas medidas nas suas prticas. Embora seja visvel, entre a populao inquiridano concelho de gueda uma atitude de desqualificao ou mesmo de minimizao do risco, tal nodeveria invalidar a adopo de medidas de natureza no estrutural, inclusivas dos actores sociais e apossibilidade de desenvolver estratgias que tentem conciliar as suas percepes com a perspectiva dos

    tcnicos e decisores polticos.

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