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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ ELEN RODRIGUES DA FONSECA LIMITES E POSSIBILIDADES DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DIANTE DA NATUREZA PRESTACIONAL Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

ELEN RODRIGUES DA FONSECA

LIMITES E POSSIBILIDADES DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DIANTE DA NATUREZA PRESTACIONAL

Rio de Janeiro 2008

ELEN RODRIGUES DA FONSECA LIMITES E POSSIBILIDADES DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DIANTE

DA NATUREZA PRESTACIONAL

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

Rio de Janeiro 2008

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

A Dissertação

LIMITES E POSSIBILIDADES DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DIANTE DA NATUREZA PRESTACIONAL

Elaborada por

ELEN RODRIGUES DA FONSECA

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo

Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial à obtenção do

título de

MESTRE

Rio de Janeiro, 27 de março de 2008.

BANCA EXAMINADORA

_________________________

Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

Presidente

Universidade Estácio de Sá

__________________________

Prof. Dr.

Universidade Estácio de Sá

__________________________

Prof. Dr.

Aos três homens da minha vida: meu marido Cari por sobreviver como um bravo guerreiro a duas gestações concomitantes – uma biológica e outra intelectual, ao meu anjo e primogênito Gabriel, pelas infindáveis vezes que deixamos de brincar (apesar de seus apelos), para que eu pudesse estudar; e ao meu caçula Leonardo, que dentro de mim pôde compartilhar profundamente todas as minhas angústias e aflições. Vocês são tudo na minha vida!

AGRADECIMENTOS

Tarefa difícil é esta de se reproduzir de forma sucinta todas as pessoas responsáveis pela elaboração da presente dissertação. Portanto, desde já peço perdão, se cometer uma injustiça esquecendo alguém importante. Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, pelo dom da vida; vida esta que tem sido repleta de alegrias e oportunidades. Ao meu orientador, Luiz Edson Fachin, um verdadeiro “gigante do saber”, agradeço a honra em ter me aceito como orientanda, e com toda paciência e carinho do mundo me guiou pelos caminhos do conhecimento. Muito mais do que um orientador, é um Mestre que conduz os seus discípulos pela busca incessante do saber, nos permitindo alçar vôos inimagináveis, mas nos trazendo para a realidade, sempre que preciso. Um exemplo de profissional, e acima de tudo, de ser humano. Como dizia Fernando Pessôa: “há momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.” Aos amigos Fábio, Paulo Roberto e Tiago, pelas inúmeras vezes que os perturbei, sendo sempre recebida com um sorriso estampado no rosto e uma palavra amiga. Vocês são o coração desse mestrado.

Não, não pares. É graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Manter o ritmo ... Mas a graça das graças é não desistir. Podendo ou não podendo, caindo, embora aos pedaços chegar até o fim.

(D. Helder Câmara)

RESUMO Com o advento da Constituição Federal de 1988, a saúde foi alçada a categoria de

direito fundamental social, sendo, portanto, um direito de todos; constituindo-se em

dever do Estado assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços de

saúde. Sendo assim, o presente estudo teve como objetivo debater os problemas

referentes ao direito fundamental à saúde, diante dos limites, existentes ou não,

para sua efetivação, em razão da escassez de recursos, que se contrapõe as

necessidades que são ilimitadas. Assim sendo, foi necessário adentrar em temas

como o princípio da dignidade da pessoa humana, reserva do possível e mínimo

existencial, dentre outros. Para alcançar esse propósito, buscou-se fundamento

teórico na doutrina nacional e internacional, bem como em decisões proferidas

tanto pelo Supremo Tribunal Federal, quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. A

relevância da presente pesquisa é no sentido de discutir e difundir um tema tão

atual que é a saúde pública em nosso país, levando o leitor a uma reflexão sobre o

tema em questão. Para tanto, a metodologia de pesquisa empregada foi a

qualitativa,através do método exploratório.

PALAVRAS-CHAVE: saúde – direito fundamental – (in) efetividade – vida –

dignidade da pessoa humana

ABSTRACT

The survey dialogues on the arrival of 1988´s Brazilian Federal Constitution for it

appreciates Health while a social fundamental right since lifting it to a remarkable

status given that it represents a right to every citizen and constitutes a State duty

which is to ensure universal and equal access towards healthiness measures and

services. Therefore this research endeavors to discourse about troubles

concerning fundamental right to Health, taking into account likely restrictive

features, which would target its accomplishment, due to resource deficit what

contradicts public requests that are unlimited. Thus in order to achieve this purpose

it is mandatory to scrutinize particular issues namely Human Dignity, reserve of the

possible and existential minimum plus seek theoretical arguments within

international and national doctrine as well as judgments avowed by both Federal

and State Brazilian Supreme Courts. The relevance of the study is not merely

deliberations but moreover the broadening of such a latest subject, that is the

Brazilian public healthiness, so to conduct the reader to a contemplation on it.

Consequently, it is performed a qualitative inquiry methodology through an

analytical scheme so as to examine the matter.

Key words: health – fundamental right – (in) effectiveness – life - Human dignity

LISTA DE ABREVIATURAS

ADC Ação Direta de Constitucionalidade

AgReg Agravo Regimental

AI-AgR Agravo Regimental em Agravo de Instrumento

ANHP Associação Nacional dos Hospitais Privados

AI Agravo de Instrumento

Art. Artigo

CF/88 Constituição Federal de 1988

CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira

DJRJ Diário de Justiça do Rio de Janeiro

FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

IBASM Instituto de Benefícios e Assistência aos Servidores Municipais

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INPC Índice Nacional de Preços ao Consumidor

INSS Instituto Nacional de Seguridade Social

IPMF Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira

OMS Organização Mundial de Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

PROCAPE Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco

RE Recurso Extraordinário

REsp Recurso Especial

RMS Recurso em Mandado de Segurança

RTJ Revista do Tribunal de Justiça

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

SUS Sistema Único de Saúde

TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

TSE Tribunal Superior Eleitoral

UTI Unidade de Tratamento Intensivo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

1. PESSOA, DIREITO E TUTELA JURÍDICA ................................................ 15

1.1 Princípios e conteúdo dos direitos fundamentais da pessoa humana ....... 15

1.1.1 Princípio da Igualdade ........................................................................... 26

1.1.2 Princípio da Integridade Física e Moral ................................................. 34

1.1.3 Princípio da Liberdade e da Solidariedade ............................................ 36

1.2Evolução dos Direitos Fundamentais e Eficácia nas Relações Internas .... 37

1.3Da Discussão jurídica constitucional à efetividade ..................................... 52

2. SUJEITOS, SAÚDE E DIREITO ................................................................. 72

2.1Direito fundamental à saúde ....................................................................... 72

2.2 A efetividade dos direitos sociais prestacionais ......................................... 86

CONCLUSÃO ................................................................................................ 109

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 114

INTRODUÇÃO

O conceito de Constituição não é unívoco, mas sim equívoco, existindo,

portanto, várias concepções/sentidos que buscam construir o seu conceito.

Jorge Miranda1 apresenta vários sentidos de Constituição, dentre eles,

podem-se destacar alguns.

No sentido jusnaturalista há princípios e regras de Direito Natural,

sobretudo dos que exigem o respeito dos direitos fundamentais das pessoas; a

Constituição vem como meio de subordinação do Estado a um Direito superior, e,

juridicamente, o poder político não existe senão em virtude da Constituição.

No sentido historicista, a Constituição apresenta-se como lei que deve reger

cada povo, tendo em conta as suas qualidades e tradições, a sua religião, a sua

geografia, as suas relações políticas e econômicas.

No sentido marxista, a Constituição é a superestrutura jurídica da

organização econômica que prevalece em qualquer país, sendo um dos

instrumentos da ideologia da classe dominante.

No sentido institucionalista, a Constituição é a expressão da organização

social, seja como expressão das idéias duradouras na comunidade política, seja

como ordenamento resultante das instituições, das forças e dos fins políticos.

No sentido decorrente da filosofia dos valores, a Constituição é a expressão

de ordem de valores, ordem que lhe é, portanto, anterior, por ela não criada e que

vincula diretamente todos os poderes do Estado.

No sentido estruturalista, a Constituição vem como expressão das

estruturas sociais historicamente situadas, ou, ela própria como estrutura global do

equilíbrio das relações políticas e da sua transformação.

Autores brasileiros, como José Afonso da Silva, Pedro Lenza e Alexandre

de Moraes, falam comumente dos sentidos sociológico, político, jurídico, formal e

material.

1 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, Parte III, Título I, Cap. I.

11

O sentido sociológico, de Ferdinand Lassale2, distingue as Constituições em

real e escrita. A Constituição há de ser um fator real de poder, e quando a

Constituição escrita não corresponde a esse fator real de poder, estará condenada

a ser uma folha de papel.

No sentido político, Carl Schmitt diz que a essência da Constituição não

reside na lei ou na norma, mas sim na decisão política do titular do poder

constituinte. O autor distingue Constituição de leis constitucionais. A Constituição

se refere à decisão política fundamental, e as leis constitucionais seriam os

demais dispositivos constantes no texto da Constituição, mas que não contêm

matéria de decisão política fundamental.

Observe-se que é de Carl Schmitt a distinção de normas formalmente

constitucionais (leis constitucionais) e normas materialmente constitucionais

(Constituição).

No sentido jurídico, Hans Kelsen afirma ser a Constituição a lei fundamental

do Estado e da Sociedade. A concepção de Kelsen toma a palavra Constituição

em dois sentidos: lógico-jurídico e jurídico-positivo.

No sentido formal, Constituição é o conjunto de normas formalmente

constitucionais (tem manifestação física).

No sentido material, Constituição é o conjunto de normas materialmente

constitucionais (não tem manifestação física, será o somatório das normas no

texto da Constituição ou fora dela).

Vale citar a evolução do conceito de sentido material, que é a existência do

bloco de constitucionalidade, citado na ADIN 595, Relator Min Celso Mello.

O bloco de constitucionalidade é a aplicação da Constituição Material no

controle de constitucionalidade. O parâmetro do controle de constitucionalidade

ultrapassa a Constituição Formal, e alcança normas que a rigor são legais, mas

que têm o substrato constitucional, ou seja, o controle passa a ser feito em relação

a elas.

Tal conceito é importado do direito francês e merece algumas observações.

Na França, a Constituição é sintética, possuindo 51 artigos, e os direitos

fundamentais estão inseridos no preâmbulo. A França tem uma posição tal como a

nossa de que o preâmbulo não integra a Constituição. Portanto, criaram o conceito

2 LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Liber Juris Ltda., 1985.

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de bloco de constitucionalidade para se fazer o controle do preâmbulo, pois do

contrário, não haveria o controle dos direitos fundamentais. Todavia, a

Constituição brasileira é analítica, e dificilmente matéria de alguma importância

não estará inserida nela; até porque, mesmo que não esteja inserida na

Constituição, direito não se resolve em regras, direito compreende princípios

(entre os quais os implícitos); portanto, é muito mais lógico se falar que controla-se

uma lei ou ato normativo diante do princípio constitucional de proteção ao nome,

do que se falar que o controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo é feito

diante do Código Civil quando fala em nome.

O fato é que a Constituição Federal, como fundamento da validade de todo

ordenamento jurídico, lei maior, reconhece, pela primeira vez, e insere em seu

corpo, em 1988, os direitos sociais como direitos fundamentais, estando a saúde

incluída dentre tais direitos, passando a ser considerada direito de todos e dever

do Estado.

Contudo, antes mesmo de se adentrar no estudo propriamente do direito

fundamental à saúde, seus limites e possibilidades, diante de sua natureza

prestacional, importante é tecer alguns comentários acerca de questões que

conduzem o leitor a um melhor entendimento do tema ora proposto.

Assim, o presente trabalho divide-se em duas partes.

Na primeira parte, define-se, inicialmente, o que vem a ser direitos

fundamentais, e os princípios reconhecidos na CF/88, ainda que implícitos.

Ressalta-se, que é no princípio da dignidade da pessoa humana, que tem-se o

elemento unificador dos direitos fundamentais, sendo este positivado, pela

primeira vez, em nosso ordenamento jurídico, na CF/88. Desta forma, maior

atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana foi dada neste trabalho, bem

como, breves considerações foram feitas acerca dos princípios corolários a este.

Seguindo, e ainda na primeira parte do trabalho, tem-se a evolução

histórica dos direitos fundamentais, até a análise de sua aplicação no âmbito das

relações privadas, em que a proteção deve se dar não somente contra os poderes

públicos, mas também em relação aos particulares, inclusive no que se refere aos

direitos sociais; buscando-se, até mesmo, uma solução para a problemática que

envolve os direitos fundamentais, no âmbito privado, com a autonomia privada.

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Por fim, busca-se comentar a efetivação dos direitos fundamentais,

especialmente, no tocante aos direitos de defesa, já que os direitos sociais, na sua

dimensão prestacional, serão analisados no segundo momento do trabalho,

quando se tratar especificamente do direito fundamental à saúde.

Para tanto, é feita uma análise do § 1º, do art. 5º, da CF/88 e suas

peculiaridades, no tocante à abrangência de tal dispositivo e sua efetividade.

Com isso, encerra-se a primeira parte do trabalho, onde se procurou,

embora não esgotando o assunto, abordar um panorama geral dos direitos

fundamentais, para então, se adentrar no tema central da dissertação.

Na segunda parte do trabalho, inicialmente é feito um estudo da saúde e

seu panorama geral ao longo da história, até os dias atuais, em que a mesma foi

alçada à categoria de um direito fundamental, passando a integrar o rol dos

direitos sociais.

Em seguida, é feita uma análise da efetividade dos direitos sociais

prestacionais, diante da reserva do possível e do mínimo existencial.

Sendo assim, a presente pesquisa tem como objetivo específico promover a

análise dos limites, existentes ou não, do direito fundamental à saúde, diante da

escassez de recursos que se sobrepõe às necessidades que são ilimitadas.

O presente trabalho se situa no âmbito de pesquisa da linha Direitos

Fundamentais e Novos Direitos, e tem como relevância discutir e difundir um tema

tão atual e sempre debatido, que é a saúde pública em nosso país, atuando como

um dos fatores para a injustiça social, que perspassa pela desigualdade social.

Para tal, é preciso que se abandonem os preconceitos e se coloque como

indivíduo comprometido no processo de evolução social, e não apenas como mero

espectador. Paulo Freire3 assim entendia por compromisso:

Não é possível um compromisso verdadeiro com a realidade, e com os homens concretos que nela e com ela estão, se desta realidade e destes homens se tem uma consciência ingênua. Não é possível um compromisso autêntico se, àquele que se julga comprometido, a realidade se apresenta como algo dado, estático e imutável. Se este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques. Se não a vê e não a capta como uma totalidade, cujas partes se encontram em permanente interação. Daí sua ação não poder incidir sobre as partes isoladas, pensando que assim transforma a realidade, mas sobre a totalidade. É transformando a

3 FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 13.Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.21.

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totalidade que se transformam as partes e não o contrário. No primeiro caso, sua ação, que estaria baseada numa visão ingênua, meramente “focalista” da realidade, não poderia constituir um compromisso.

A fim de alcançar os objetivos propostos, a metodologia de pesquisa

utilizada será a qualitativa, através do método exploratório, sendo elaborada uma

pesquisa documental. As fontes utilizadas serão a Constituição Federal brasileira,

de 1988, como fonte primordial, além da legislação existente que trata do tema em

questão. Serão analisadas, ainda, decisões do Supremo Tribunal Federal e

Superior Tribunal de Justiça acerca do assunto.

Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo acordar o leitor para a

necessidade de construção de uma sociedade que privilegia a vida, devendo esta

ser digna. Para tanto, é por meio da saúde, que se tem uma das soluções para tal

problema, já que se trata de um direito de todos.

1. PESSOA, DIREITO E TUTELA JURÍDICA

1.1 Princípios e conteúdo dos direitos fundamentais da pessoa humana

Inicialmente, já que os termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos”

comumente são utilizados como sinônimos, necessário se faz tecer breves

comentários acerca de tais expressões. O termo “direitos fundamentais” refere-se

àqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do Direito

Constitucional, já o termo “direitos humanos”, refere-se aos direitos do ser humano

de cunho supranacional, ou seja, direitos reconhecidos para todos os povos e

tempos, independentemente da ordem constitucional a qual o ser humano faça

parte.

Ingo Wolfgang Sarlet4 sustenta que:

Em face dessas constatações, verifica-se, desde já, que as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos” (ou similares), em que pese sua habitual utilização como sinônimas, se reportam a significados distintos. No mínimo, para os que preferem o termo “direitos humanos”, há que referir – sob pena de correr-se o risco de gerar uma série de equívocos – se eles estão sendo analisados pelo prisma do direito internacional ou na sua dimensão constitucional positiva. Reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam, de tal sorte que – no que diz com o conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais – está ocorrendo um processo de aproximação e harmonização, rumo ao que já está sendo denominado (e não exclusivamente – embora principalmente -, no campo dos direitos humanos e fundamentais) de um direito constitucional internacional.

Os direitos fundamentais são direitos subjetivos instituídos pelo

ordenamento jurídico, com aplicação nas relações das pessoas com o Estado e na

sociedade, preceituados, ou não, na Constituição.

O Tribunal alemão diz que os direitos fundamentais seriam os únicos que

ao mesmo tempo são objetivos e subjetivos, ou seja, de natureza dúplice. São

4 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6.Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 39.

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categorias especiais de direitos subjetivos, já que não são todos os direitos que

são fundamentais, mas apenas aqueles inerentes à condição da pessoa humana

e, ao mesmo tempo, são parte integrante do direito objetivo, já que são princípios.

A decisão proferida pela Corte Federal Constitucional da Alemanha, em

1958, consignou que “os direitos fundamentais não se limitam à função precípua

de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público,

mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva

da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem

diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.”

As normas consagradoras de direitos fundamentais afirmam valores, os

quais incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico e servem para iluminar

as tarefas dos órgãos judiciários, legislativos e executivos. Nesse sentido, é

possível dizer que tais normas implicam em uma valoração de ordem objetiva.

A norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade de

sua subjetivação, sempre contém valoração. O valor nela contido, revelado de

modo objetivo, espraia-se, necessariamente, sobre a compreensão e a atuação do

ordenamento jurídico. Atribui-se aos direitos fundamentais, assim, uma eficácia

irradiante. Afirmar a dupla dimensão – objetiva e subjetiva – dos direitos

fundamentais não significa dizer que o direito subjetivo decorre do direito objetivo.

O que importa esclarecer, aqui, é que as normas que estabelecem direitos

fundamentais, se podem ser subjetivadas, não pertinem somente ao sujeito, mas

sim a todos aqueles que fazem parte da sociedade.

Uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva está em

estabelecer, ao Estado, um dever de proteção dos direitos fundamentais.

Os titulares de direitos fundamentais são pessoas naturais e,

eventualmente, pessoas jurídicas, já que há direitos que não são incompatíveis.

José Joaquim Gomes Canotilho sustenta que a distinção entre capacidade

de direito e de gozo, e de exercício e de fato, não tem importância quando discute-

se matéria humana, ou seja, direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são: inalienáveis (indica que são insuscetíveis de

alienação, a qualquer título; todavia, o bem que o corporifica poderá sê-lo),

irrenunciáveis (são insuscetíveis de atos abdicativos, podendo-se abrir-mão de um

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não exercício voluntário) e relativos (Daniel Sarmento diz que a não-tortura seria o

único exemplo de direito fundamental absoluto).

A Constituição Federal de 1988 positivou, em seus primeiros artigos, os

princípios fundamentais, apresentando, logo a seguir, os direitos e garantias

fundamentais, além de outros direitos fundamentais espalhados por toda a

Constituição Federal ou mesmo fora dela5, elevando-os, inclusive, a categoria de

cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF/886).

Diferentemente das Constituições anteriores, na Constituição Federal de

1988, o centro de estudos migrou da parte orgânica para a parte dogmática,

deixando de ser o Estado o centro de estudos, passando a ser cada vez mais o

ser humano, ou seja, os direitos fundamentais passam a condicionar a atuação do

Estado.

Como pode-se encontrar normas formal e materialmente constitucionais

que tratam de direitos fundamentais, conclui-se que o sistema de direitos

fundamentais não é autônomo e auto-suficiente, mas sim, um sistema aberto e

flexível. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet7 alega que:

Com base no que foi exposto e à luz do direito constitucional pátrio, verifica-se, de plano, ser inviável a sustentação, também entre nós, da concepção segundo a qual os direitos fundamentais formam um sistema em separado e fechado no contexto da Constituição. Com muito mais pertinência do que no caso da Lei Fundamental alemã, as ponderações tecidas por Hesse revelam sua procedência e atualidade quando consideradas em face do texto da Constituição de 1988. Em primeiro lugar, cumpre referir que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5º, § 2º, da CF aponta para a existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional e até mesmo em tratados internacionais, bem assim para a previsão expressa da possibilidade de se

5 Ressalte-se a distinção existente entre normas formalmente constitucionais (leis constitucionais) e normas materialmente constitucionais (Constituição). A norma formalmente constitucional é aquela que está prevista na Constituição, ainda que não trate de matéria própria da Constituição. Norma materialmente constitucional é aquela que trata de matéria própria da Constituição, mesmo que não esteja prevista nela. A rigor, só encontra-se duas matérias próprias da Constituição, quais sejam: parte orgânica que corresponde à divisão do exercício do poder político, onde tem-se a divisão territorial ou em plano vertical (União, Estado, Município e Distrito Federal) e divisão funcional ou em plano horizontal (Poder Judiciário, Poder Legislativo e Poder Executivo); e a parte dogmática que corresponde aos direitos, garantias e remédios constitucionais, além das finalidades que o Estado pretende alcançar na ordem econômica e social. 6 Corrente majoritária entende que, embora a Constituição Federal tenha falado em direitos e garantias individuais, tem-se que interpretar como direitos e garantias fundamentais. Neste sentido já há decisão no STF: Mandado de Segurança 24875/DF – Distrito Federal, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 11/05/2006, no Tribunal Pleno. 7 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 84-85.

18

reconhecer direitos fundamentais não-escritos, implícitos nas normas do catálogo, bem como decorrentes do regime e dos princípios da Constituição. Além disso, a diversidade de conteúdo do catálogo dos direitos fundamentais (composto por um número sem precedentes de direitos de liberdade, concretizações do princípio da igualdade, direitos sociais, políticos, garantias institucionais etc.), impede, em princípio, que se estabeleçam critérios abstratos e genéricos que possam demonstrar uma quantidade de conteúdos, inclusive no sentido de uma construção baseada numa relação de generalidade e especialidade. Outrossim, também os direitos fundamentais de nossa Constituição não radicam, em sua totalidade, ao menos não de forma direta, no princípio da dignidade da pessoa humana, havendo que reconhecer, neste sentido, no mínimo relevantes distinções quanto ao grau desta vinculação.

Há duas espécies de direitos fundamentais: os direitos formal e

materialmente fundamentais positivados na Constituição Federal, e os direitos

apenas materialmente fundamentais, que apesar de se encontrarem fora da

Constituição, tendo em vista sua importância e relevo, podem ser equiparados aos

direitos formalmente constitucionais.

Ingo Wolfgang Sarlet8 sustenta a existência de dois grupos de direitos

fundamentais, um positivado e o outro não-escrito.

Sendo assim, não é constitucional somente aquilo que está escrito no

ordenamento jurídico, mas também aquilo que se deduz da análise deste sistema.

Cláudio Pereira de Souza Neto9 alega que nessa definição do campo de

fundamentalidade material, os princípios constitucionais possuem uma importância

decisiva. Princípios como os da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da

separação dos poderes, do Estado de Direito etc., podem fornecer elementos

8 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 102. Transcreve-se, a seguir, o que diz o autor: “... já podemos sustentar a existência de dois grandes grupos de direitos fundamentais, notadamente os direitos expressamente positivados (ou escritos), no sentido de expressamente positivados, e os direitos fundamentais não-escritos, aqui genericamente considerados aqueles que não foram objeto de previsão expressa pelo direito positivo (constitucional ou internacional). No que concerne ao primeiro grupo, não existem maiores dificuldades para identificar a existência de duas categorias distintas, quais sejam, a dos direitos expressamente previstos no catálogo dos direitos fundamentais ou em outras partes do texto constitucional (direito com status constitucional material e formal), bem como os direitos fundamentais sediados em tratados internacionais e que igualmente foram expressamente positivados. Já no que concerne ao segundo grupo, podemos distinguir também duas categorias. A primeira constitui-se dos direitos fundamentais implícitos, no sentido de posições fundamentais subentendidas nas normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (aproximando-se da noção atribuída por J. A. da Silva), ao passo que a segunda categoria corresponde aos direitos fundamentais que a própria norma contida no art. 5º, § 2º, da CF denomina de direitos decorrentes do regime e dos princípios. Tal classificação deverá, doravante, servir de referencial para o desenvolvimento da análise da concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais em nossa Lei Fundamental, ora intentada.” 9 SOUZA Neto, Cláudio Pereira de apud BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional. 2.Ed. São Paulo: Renovar, 2006, p.287-288.

19

normativos importantíssimos para se definir a quais direitos se deve imputar a

jusfundamentalidade material, e em que medida isso deve ser feito.

Os princípios constitucionais são a síntese dos valores mais relevantes da

ordem jurídica. Os princípios fincam os alicerces e traçam as linhas mestras das

instituições, dando-lhes o impulso vital inicial; têm a função de ser o fio condutor

dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando unidade ao sistema

normativo.

Os princípios representam o fundamento, razão pela qual assumem

importância absolutamente singular, com muito mais razão os princípios

constitucionais, na medida em que a Constituição Federal é que dá validade a

todas as demais normas. De acordo com Jorge Miranda10, uma Constituição só se torna viva, só

permanece viva, quando o empenhamento em conferir-lhe realização está em

consonância (não só intelectual, mas sobretudo afetiva e existencial) com o

sentido essencial dos seus princípios e preceitos; quando a vontade da

Constituição vem a par do sentimento constitucional.

Na Constituição existem princípios explícitos ou não, que equivaleriam ao

sustentáculo, ou seja, à base do ordenamento jurídico, e Direito não se resume a

regras, mas compreende princípios, dentre os quais, os implícitos.

Celso Antonio Bandeira de Mello11 assim define princípio:

... o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Os princípios deixaram de possuir um teor supletório, passando a ser

fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais.

10 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, Parte III, Título I, Cap. I, p. 354. 11 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980, p.230.

20

Paulo Bonavides12 entende que os princípios, uma vez constitucionalizados, se

tornam a chave de todo o sistema jurídico.

Os princípios constitucionais influenciam toda e qualquer decisão judicial.

Como se pode resolver uma questão relativa a uma situação aflitiva humana sem

levar em consideração os princípios básicos da República Federativa do Brasil,

que são: o princípio da dignidade da pessoa humana, erradicação das

desigualdades, fundação de uma sociedade justa e solidária? Como se pode

pretender uma solução adequada às aspirações do povo, tendo em vista que o

Judiciário também é o poder que emana do povo e em seu nome é exercido, sem

a obediência desses princípios?

Portanto, além dos princípios terem uma ação imediata, quando

diretamente aplicáveis à determinada relação jurídica, eles têm também uma

outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e

integração do Texto Constitucional, ou seja, como limites interpretativos máximos.

José Joaquim Gomes Canotilho sustenta que, "o princípio da unidade

hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa Constituição

formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-

infra-ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de

interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses,

ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: 1) a tese das

‘antinomias normativas’; 2) a tese das ‘normas constitucionais inconstitucionais’. O

princípio da unidade da Constituição é, assim, expressão da própria positividade

normativo-constitucionais e um importante elemento de interpretação".

A construção doutrinária constitucional de Canotilho conduz à interpretação

de que o princípio da unidade da Constituição provoca uma leitura, por parte de

todos, para aplicação e execução das regras e princípios, como uma unidade do

sistema jurídico.

Assim, o princípio da unidade é uma especificação da interpretação

sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e

contradições entre normas, e deverá fazê-lo, guiado pela grande bússola da

12 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 258.

21

interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos

ou decorrentes da Lei Maior.

Daniel Sarmento13 assim leciona:

Nesta tarefa, estará o exegeta dando cumprimento ao princípio da unidade da Constituição, que lhe demanda o esforço de buscar a conciliação entre normas constitucionais aparentemente conflitantes, evitando as antinomias e colisões. Isto porque a Constituição não representa um aglomerado de normas isoladas, mas um sistema orgânico, no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das demais. Assim, como ressaltou Canotilho, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição em sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre as normas constitucionais a concretizar. Portanto, deve o intérprete buscar a demarcação do campo normativo de cada princípio envolvido, para verificar se a hipótese está realmente compreendida no âmbito de tutela de mais de um deles.

Desta forma, a interpretação que se há de fazer em relação ao § 2º do art.

5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) que versa: “Os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte”, é no sentido de que os direitos fundamentais

positivados ou não no texto Constitucional devem ter como leitmotiv os princípios

fundamentais previstos no Título I (arts. 1º a 4º) da CF/88. Este, inclusive, é o

entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet14:

De acordo com a redação do art. 5º, § 2º, da nossa Constituição, poder-se-ia, ao menos em princípio, sustentar que apenas os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios se encontram umbilicalmente vinculados aos princípios fundamentais consagrados no Título I de nossa Lei Fundamental, no sentido de que os demais direitos fundamentais localizados fora do catálogo (na Constituição ou em tratados internacionais) não são – ou não precisam ser – necessariamente decorrentes daqueles. Todavia, ainda que se cuide, como já ressaltado quando enunciamos nossa proposta classificatória dos direitos fundamentais, de categorias distintas entre si, o fato é que tanto os direitos integrantes do catálogo, quanto os que lhe são estranhos (escritos, ou não) guardam alguma relação – ainda que diversa no que tange ao seu conteúdo e intensidade – com os princípios fundamentais de nossa Carta Magna. Neste contexto, basta apontar para alguns exemplos para verificarmos esta estreita vinculação entre os direitos e os princípios fundamentais. Assim, não há como negar que os direitos à vida, bem como os direitos de liberdade e de igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana. Da mesma

13 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 99-100. 14 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 110.

22

forma, os direitos políticos (de modo especial, o sufrágio, o voto e a possibilidade de concorrer a cargos públicos eletivos) são manifestações do princípio democrático e da soberania popular. Igualmente, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radica tanto no princípio da dignidade da pessoa humana (saúde, educação, etc.), quanto nos princípios que, entre nós, consagram o Estado social de Direito.

Todavia, é no princípio da dignidade da pessoa humana que encontra-se o

elemento unificador dos direitos fundamentais previstos ou não no Texto

Constitucional, sendo que, tal princípio foi positivado pela primeira vez em nosso

ordenamento jurídico na CF/88, que o alçou a categoria de princípio fundamental

(art. 1º, III)15, demonstrando assim a mudança do eixo filosófico de nosso sistema,

em que a pessoa humana passa a condicionar a atuação do Estado, uma vez que

o Estado existe em função desta. Como princípio fundamental, a dignidade da

pessoa humana representa um elemento condutor não somente dos direitos

fundamentais, mas de todo o ordenamento jurídico. Portanto, ao Estado cabe o

dever de respeitar e proteger a dignidade de cada indíviduo. A pessoa humana é o

limite e o fundamento da dominação política em uma República que se propõe

democrática como a brasileira16.

Carmen Lúcia Antunes Rocha17 menciona que:

A positivação do princípio como fundamento do Estado do Brasil quer significar, pois, que esse existe para o homem, para assegurar condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins: que o seu fim é o homem, como fim em si mesmo que é, quer dizer, como sujeito de dignidade, de razão digna e supremamente posta acima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado.

A pessoa humana é o ser individual juntamente com o ser social, que se

conjugam e formam a essência da pessoa humana. Ser pessoa não é um ato

isolado, mas antes de tudo é o reconhecimento do outro como pessoa e sujeito de

direitos.

15 “Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III – a dignidade da pessoa humana.” 16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.Ed. Editora Almedina, 2006, p. 221. 17 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social. Revista Interesse Público, p. 34.

23

Hannah Arendt18 assim define a pluralidade humana:

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdades e diferenças. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas.

A dignidade é uma qualidade intrínseca ao ser humano, ela simplesmente

existe, não podendo o homem dela dispor; assim, o grau de dificuldade em

conceituá-la é grande, já que é mais fácil de se sentir do que de se conceituar.

Desta forma, à luz do caso concreto, é que deve-se analisar se foi ou não atingida

a dignidade da pessoa humana.

Corroborando tal entendimento, Ingo Wolfgang Sarlet19 preceitua que:

... o princípio da dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassam o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. Admitindo-se a viabilidade de eventuais restrições ao próprio princípio da dignidade humana – como aceita parte da doutrina, inclusive entre nós – não há como transigir no que tange à preservação de sua essência, já que sem dignidade o ser humano estaria renunciando à própria humanidade. De qualquer modo – e insistimos nisso – causa espécie a tentativa de graduar a dignidade para fins de admitir sua restrição, já que o reconhecimento de diversos níveis de dignidade constitui, em verdade, uma contradctio in terminis, uma vez que é a dignidade das pessoas que as torna iguais em humanidade. Não se deve, portanto, confundir esta situação com a existência de ofensas mais ou menos graves à dignidade, que, dependendo de sua intensidade, podem, ou não, ser toleradas em prol de outros valores constitucionais. Da mesma forma, não se trata de refutar a possibilidade de alguma relativização inerente à condição da dignidade desse princípio jurídico, já que – para além da dimensão axiológica – são os órgãos (pessoas) encarregados da aplicação da Constituição que sempre acabarão por definir se houve, ou não, uma ofensa à dignidade.

18 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10.Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.188. 19 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, pp. 126-127.

24

Em sendo o homem um ser originado por Deus para ser o centro da

criação, e salvo de seu pecado original, foi no Cristianismo que surgiu a idéia de

uma dignidade humana.

Baseado nesta idéia, São Tomás de Aquino entendeu a dignidade como

inerente ao homem, algo que reside em sua alma. O homem então não deve olhar

apenas em direção à Deus, mas sim para ele mesmo, ou melhor, para sua

consciência, agindo de modo compatível.

Entre os teóricos modernos que conceituaram pessoa humana, destaca-se

Immanuel Kant, que entendeu que as normas devem ter a espécie humana como

finalidade, uma vez que o homem deve ser visto como fim, e não como meio para

se alcançar algo. As coisas têm preço e as pessoas dignidade. Esta é a máxima

do imperativo categórico – princípio da supremacia da moralidade - criado por

Kant20:

A moralidade consiste, pois, na relação de toda a ação com a legislação, somente mediante a qual é possível um reino dos fins. Essa legislação deve se encontrar em todo ser racional, podendo mesmo brotar de sua vontade, cujo princípio é: jamais praticar uma ação senão em acordo com a máxima que se saiba poder se tornar uma lei universal, isto é, só de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesmo, ao mesmo tempo, universalmente legisladora. Se as máximas não são já pela sua natureza necessariamente concordantes com esse princípio objetivo dos seres racionais como legisladores universais, a necessidade da ação segundo esse princípio chama-se a obrigação prática, ou seja, dever. O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida. A necessidade prática de agir segundo esse princípio, isto é, o dever, não parte de sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim unicamente da relação dos seres racionais entre si, relação esta em que a vontade de um ser racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente como legisladora, porque de outra forma não poderia ser pensada como fim em si mesma. A razão relaciona, então, cada máxima da vontade concebida como universalmente para com nós próprios, e isso não se dá em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura, mas pela idéia da dignidade de um ser racional que não obedece outra lei senão aquela que simultaneamente dá a si mesmo.

O direito apenas reconhece a dignidade da pessoa humana e a tutela, não

delineando seus contornos, sendo elevada assim a categoria de princípio. Maria

Celina Bodin de Moraes21 entende que antes de se incorporar tal princípio às

20 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret, 2005, pp. 64-65. 21 MORAES, Maria Celina Bodin. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13.

25

Constituições, foi imperioso que se reconhecesse o ser humano como sujeito de

direitos e, assim, detentor de uma dignidade própria, cuja base (lógica) é o

universal direito da pessoa humana a ter direitos.

A inserção do princípio da dignidade humana no ordenamento jurídico,

aconteceu pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

proclamada pelas Nações Unidas, em 1948, que enunciava, em seu art. 1º, que

“todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Em seguida, foi

inserido na Constituição italiana, de 1947 (“todos os cidadãos têm a mesma

dignidade e são iguais perante a lei”), na Lei Fundamental de Bonn, de maio de

1949 (“A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação

de todos os poderes estatais”), na Constituição portuguesa, de 1976 (“Portugal é

uma República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa

humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade

livre, justa e solidária”), na Constituição espanhola, de 1978 (“A dignidade da

pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da

personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da

ordem política e da paz social”), e, finalmente, na Constituição brasileira, de 1988,

em que foi proclamado entre os princípios fundamentais.

Daniel Sarmento22 assim define o princípio da dignidade da pessoa

humana:

O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano – razão última do Direito e do Estado. Tal princípio não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua dignidade aviltrada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde, moradia etc.

22 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 60.

26

A posição de Ingo Wolfgang Sarlet 23acerca do conceito da dignidade da

pessoa humana é a seguinte:

... verifica-se que reduzir a uma fórmula abstrata e genérica tudo aquilo que constitui o conteúdo da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, a definição do seu âmbito de proteção ou de incidência (em se considerando sua condição de norma jurídica), não parece ser possível, o que, por sua vez, não significa que não se possa ou deva buscar uma definição, que, todavia, acabará alcançando pleno sentido e operacionalidade em face do caso concreto. Com efeito, para além dos aspectos ventilados, a busca de uma definição necessariamente aberta mas minimamente objetiva impõe-se justamente em face da exigência de um certo grau de segurança e estabilidade jurídica, bem como para evitar que a dignidade continue a justificar o seu contrário. (...) O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. Tudo, portanto, converge no sentido de que também para a ordem jurídico-constitucional a concepção do homem-objeto (ou homem-instrumento), com todas as conseqüências que daí podem e devem ser extraídas, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa, embora esta, à evidência, não possa ser, por sua vez, exclusivamente formulada no sentido negativo (de exclusão de atos degradantes e desumanos), já que assim se estaria a restringir demasiadamente o âmbito de proteção da dignidade. Isto, por sua vez, remete-nos ao delicado problema de um conceito minimalista ou maximalista (ótimo) de dignidade.

Como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana tem-se, o

princípio da igualdade, da integridade física e moral, da liberdade e da

solidariedade; sendo que o fiel da balança, o objetivo a ser alcançado, já está

determinado, a priori, em favor do conceito da dignidade humana.

1.1.1 Princípio da Igualdade

O fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana manifesta-se

em não receber tratamento discriminatório. O art. 5º da Constituição Federal de

23 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 5.Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 60-62.

27

1988, ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade”, leva a seguinte indagação: Serão todos iguais perante à lei?

Há os que sustentam que a desigualdade é a característica do universo.

Assim, os seres humanos, ao contrário da afirmativa do art. 1º da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, nascem e perduram desiguais. Sendo

assim, a igualdade não passaria de um simples nome, sem significação no mundo

real. Por outro lado, há quem postule um igualitarismo absoluto entre as pessoas.

A posição realista, reconhece que os homens são desiguais sob múltiplos

aspectos, sendo tais desigualdades fenomênicas, ou seja, naturais, físicas,

morais, políticas, sociais etc.24

John Rawls25 defende que as desigualdades imerecidas exigem reparação;

e como desigualdades de nascimento e de dotes naturais são imerecidas, elas

devem ser de alguma forma compensadas. Assim, o princípio da reparação

determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma

genuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles

com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A

idéia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade.

A idéia de igualdade – ou sua ausência -, é tema muito discutido desde os

tempos mais antigos, em razão das desigualdades, inerentes ao ser humano, há

muito existentes nas diversas sociedades.

Martin de Albuquerque26 assim retratou a temática da igualdade:

É possível referí-la desde o velho Egito. No Livro dos Dois Caminhos, o “Senhor Universal” diz aos outros deuses: “Fiz cada homem igual ao seu companheiro”; e Ptah-hotep ensina que as necessidades fundamentais e a mitigação dos piores azares são, por vontade de Deus, um direito de cada homem; que Deus fez os homens iguais em valor, como irmãos e membros de uma família. E remonta já, enquanto especulação filosófica conhecida, à Antigüidade Clássica – a Grécia e a Roma. Não admirará isto muito se pensarmos que se trata de uma matéria diretamente mergulhada na Ontologia e na Teologia, porque respeitante à própria natureza do homem, considerado em si mesmo ou nas relações com Deus.

24 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9.Ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 194. 25 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 2.Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 107. 26 ALBUQUERQUE, Martim de. Da igualdade: introdução à jurisprudência. Coimbra: Almedina, 1993, p. 7.

28

Para José Afonso da Silva27, o direito de igualdade não tem merecido tantos

discursos como a liberdade e, no entanto, a igualdade constitui o signo

fundamental da democracia.

Ronald Dworkin28 questiona se é possível dar as costas à igualdade;

acrescentando que nenhum governo é legítimo, a menos que demonstre igual

consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu

domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude

soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania.

Aristóteles29 associou a idéia de igualdade à de justiça, portanto, em sendo

o Magistrado guardião da justiça, o será também da igualdade.

Renata Malta Vilas-Bôas30 indaga: “que igualdade é essa que tanto

almejamos se todos os seres humanos são, naturalmente, desiguais?”. A própria

autora responde no sentido de que, não obstante já tivessem sido apresentados

diversos conceitos ao termo “igualdade” entre os filósofos e juristas, esse princípio

ganhou destaque após as sociedades européia e norte-americana, do século

XVIII, serem motivadas por uma série de utopias, que deram ensejo a duas

grandes revoluções no mundo – a Revolução Francesa e a Revolução da Virgínia,

que deram origem, respectivamente, a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão e a Declaração de Direitos da Virgínia, em 12 de junho de 1776, sendo

esta a precursora daquela; porém, foi na Revolução Francesa que o princípio se

solidificou.

Sendo assim, o primeiro momento histórico no qual se formalizou a idéia

jurídica de igualdade, foi na Revolução Francesa, inserindo-se a igualdade no art.

1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.31

Para José Afonso da Silva32, a igualdade prevista no art. 1º da Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão, gerou as desigualdades econômicas,

27 SILVA, Jose Afonso da, idem, 1992, p. 193. 28 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX. 29 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 116. 30 VILAS-BÔAS, Renata Malta. As Ações Afirmativas e o Princípio da Igualdade. 2. Ed. Rio de Janeiro:América Jurídica , 2003, p. 15. 31 “Art. 1º Os homens nascem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum.” 32 SILVA, José Afonso da, idem, 1992, p. 196.

29

porque fundada numa visão individualista do homem, membro de uma sociedade

liberal relativamente homogênea.

Lopes Praça33 assim reflete sobre a igualdade:

Em que consiste propriamente o direito de igualdade? Este direito tem dado lugar a grandes abusos e sofismas de todo o gênero, a objeções e a divergências sem-número. Os que deduzem o nivelamento das fortunas do direito de igualdade cometem um erro tão crasso e prejudicial, como se admitissem que todos e cada um dos homens têm igual aptidão, para todos e cada um dos misteres ou trabalhos necessários para a sua existência e perfectibilidade individual e social. Todos os homens considerados, quanto à sua natureza, são iguais e desiguais. Iguais quanto às suas qualidades essenciais, ao número de suas faculdades, à sua origem, e aos seu fim último. São desiguais quanto à intensidade de cada uma dessas faculdades, ao seu desenvolvimento e à sua aptidão. A Filosofia do Direito encarrega-se de demonstrar que, além da natureza geral, comum, e igual em todos os homens, tem cada um deles a sua natureza especial, sui generis, com idéias, sentimentos, resoluções próprias e tão originais, que não existem nem têm existido, nem existirão nunca dois indíviduos com naturezas especiais iguais e indistintas. O direito de igualdade, portanto, não prejudica o reconhecimento da desigualdade relativamente à natureza especial do homem. Como direito individual, o direito de igualdade, não pode significar senão que a fatos da mesma natureza será aplicada a mesma lei, e que, pelo tanto, todos têm igualmente garantido o direito à instrução, o direito de segurança, o direito de liberdade, o direito aos socorros públicos, e o direito de defesa etc. Se a lei tratasse igualmente fatos desiguais seria injusta e desigual. O Acto Const. Francês de 24 de junho de 1793: “Todos os homens são iguais pela natureza e perante a lei”. Condorcet no seu projecto de constituição entendeu-a nos seguintes termos: “A igualdade consiste em que cada um possa gozar dos mesmos direitos. A lei deve ser igual para todos, quer se compense, quer puna, quer reprima. Todos os cidadãos são admissíveis a todos os lugares, empregos e funções públicas. Os povos não podem reconhecer outros motivos de preferência além dos talentos e das virtudes.

Portanto, embora em um primeiro momento tenha-se tratado da igualdade

formal, verificou-se ser insuficiente, uma vez que as pessoas são diferentes entre

si. A igualdade formal é a vedação ao Estado de tratamento discriminatório

negativo, ou seja, de proibir todos os atos administrativos, judiciais ou expedientes

normativos do Poder Público que visem à privação do gozo das liberdades

públicas fundamentais do indivíduo, com base em critérios como a raça, a religião

ou a classe social. De outro, sustenta-se que, além de não discriminar

arbitrariamente, deve o Estado promover a igualdade material (também chamada

de igualdade substantiva ou substancial) de oportunidades, por meio de políticas 33 PRAÇA, Lopes apud SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio Constitucional da Igualdade. 2.Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 40-41

30

públicas e leis que atentem para as especificidades dos grupos menos

favorecidos, compensando, desse modo, as eventuais desigualdades de fato

decorrentes do processo histórico e da sedimentação cultural. Portanto, parte-se

de um conceito jurídico passivo, para um conceito jurídico ativo.

A igualdade material assegura o tratamento uniforme de todos os homens,

diante de uma igualdade real e efetiva, perante todos os bens da vida.

Nos direitos de segunda geração, busca-se assegurar a todos o acesso aos

direitos sociais - como saúde, educação, trabalho, lazer – de maneira igualitária.

Além da distinção que é feita em relação a igualdade formal e igualdade

material, alguns doutrinadores também a distinguem em igualdade perante a lei e

igualdade na lei. Na primeira hipótese, o destinatário é o aplicador da lei, já na

segunda hipótese, o destinatário é o próprio legislador, no intuito de não dar

tratamento diferenciado.

O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Injunção nº 58-1 DF, que teve

como relator o Ministro Celso de Mello, reconheceu a distinção entre igualdade na

lei e igualdade perante a lei, conforme ementa transcrita a seguir:

O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é, enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica, suscetível de regulamentação ou de complementação. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.34

O princípio da igualdade perante a lei, que se confunde com a igualdade

formal, foi o princípio estabelecido pelas Constituições brasileiras desde o período

do Império.

A Constituição brasileira de 1824, único exemplo dentre nós de Constituição

semi-rígida ou semi-flexível, em matéria de direitos fundamentais, estabeleceu

uma cláusula geral de igualdade enunciada no artigo 179, XIII, que dispunha: “A

34 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 12.12.2006.

31

lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em

proporção dos merecimentos de cada um”. Tal Constituição proclamava ainda em

outros artigos: “Todo o Cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis,

políticos, ou militares, sem outra diferença, que não seja a dos seus talentos e

virtudes”, e também que “Ficam abolidos todos os privilégios, que não forem

essencial, e inteiramente ligados aos cargos, por utilidade pública”.35

Todavia, quando analisa-se o Título 4º, Capítulo VI, denominado “Das

Eleições”, constata-se a desigualdade real, em que excluía-se do exercício de

direito de voto nas eleições, dentre outros, os criados de serviço que não

obtivessem uma renda líquida anual de cem mil réis.

A Constituição de 1891 marcou o fim da forma de governo monárquica e a

adoção da República, bem como Federação. Tal Constituição teve como influência

a Constituição norte-americana de 1787.

O Título IV, Seção II de tal Constituição trouxe a “Declaração de Direitos”,

estabelecendo no artigo 72, a equiparação de brasileiros e estrangeiros quanto a

inviolabilidade de direitos relativos a liberdade, a segurança individual e a

propriedade; declarando, ainda, que: “Todos são iguais perante a lei”.36 Proibiu os

privilégios decorrentes de nascimento e desconheceu e extinguiu os foros da

nobreza, os títulos nobiliários, assim como as prerrogativas e regalias. Todavia,

não proibiu as discriminações por motivo de raça e sexo.

A Constituição brasileira de 1934, apesar de também proclamar a igualdade

formal, proibiu privilégios e distinções por motivo de nascimento, sexo, raça,

profissões, classe social, riqueza, crença religiosa e idéias políticas, declarando,

além disso, de maneira expressa que ninguém poderia ser privado de seus

direitos por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas.

O princípio da igualdade foi empregado em outros títulos do texto

constitucional, como exemplo o artigo 115, do Título IV, onde se estabeleceu que

“A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as

necessidades da vida nacional, de modo que se possibilite a todos existência

digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica”. Verifica-se,

35 Ibid., art. 179, XIV e XVI. 36 Constituição Brasileira de 1891, art. 72, § 2º.

32

então, que, nesta Constituição, buscou-se proteger as diferenças para lograr a

igualdade.

Getúlio Vargas, que outorgou a Constituição de 1937, fundamentou tal

atitude utilizando, dentre outras, as seguintes justificativas:

ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; (...)37

Referida Carta conservou em seu texto os fundamentos básicos da

democracia, dos direitos individuais, das garantias e tudo relacionado ao princípio

da igualdade, todavia, tais fundamentos não foram postos em prática.

A Constituição de 1946 marcou o período pós-guerra, portanto, refletindo o

quadro social e político latente no mundo e no Brasil. Adotou como paradigma a

primeira Constituição da República e a Constituição de 1934. Todavia, não inseriu

em seus artigos declaração expressa da proibição de distinções ou discriminações

por motivo de sexo, cor, origem nacional, entre outros. Permaneceu não regulando

o direito de pessoas analfabetas votarem.

Em relação a Constituição de 1967, ainda perdura a discussão se de fato

existiram duas Constituições, ou seja, a de 1967 e a de 1969, ou apenas existiu a

Constituição de 1967, sendo o Ato Institucional (AI) nº 5 uma emenda

constitucional. José Afonso da Silva, assim define o AI-5:

Teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil. Ela fora modificada por outras vinte e cinco emendas, afora a de nº 26, de 27-11-85, ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte, constitui, nesse

37 Decreto Justificativo da Constituição de 1937.

33

aspecto, um ato político. Se convocara a Constituinte para elaborar Constituição nova que substituiria a que estava em vigor, por certo não pode ter a natureza de emenda constitucional, pois esta tem precisamente sentido contrário, ou seja, de manter a Constituição emendada. Se visava destruir esta, não pode ser tida como emenda, mas como ato político..38

As Constituições de 1967 e de 1969, ou para quem entender, a

Constituição de 1967 e o AI-5, mantiveram os textos inseridos na Constituição

anterior, em relação aos princípios democráticos, direitos e garantias, bem como a

igualdade. Mas, apesar de sua bela redação, ficou muito longe da realidade.

Todavia, o princípio da igualdade tem assento em outros dispositivos

constitucionais, inclusive estando inserido como um dos objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil (art. 3º, I, II, III e IV da CF/88).

Ainda que o STF não reconheça o preâmbulo como corpo jurídico da

Constituição Federal, é nele que se encontra, pela primeira vez, na Constituição,

referência ao princípio da igualdade quando versa que “(...) instituir um Estado

Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais

(...) a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos (...)”.

Carmen Lúcia Antunes Rocha39 sustenta que:

Já, então, vê-se que, pela positivação da ordem constitucional de 1988 reestruturando o Estado Brasileiro e reorganizando a República Federativa, não apenas se pretendeu proibir o que se tem assentado em termos de desigualdades de toda ordem havidas na sociedade, mas que se pretende instituir, vale dizer, criar ou recriar as instituições segundo o modelo democrático, para se assegurar, dentre outros, o direito à igualdade, tida não apenas como regra, ou mesmo como princípio, mas como valor supremo definidor da essência do sistema estabelecido.

Todos os verbos utilizados nos dispositivos do art. 3º da CF/88 - construir,

garantir, erradicar e promover – indicam ação, ou seja, um comportamento

positivo. Sendo assim, se a igualdade jurídica fosse meramente a igualdade

formal, o princípio se revelaria completamente insuficiente para possibilitar a

realização dos objetivos fundamentais da República Federativa brasileira.

38 SILVA, José Afonso da, idem, 1992, p. 80. 39 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 33, nº 131, p. 283-295, jul/set 1996.

34

1.1.2 Princípio da Integridade Física e Moral

Neste princípio contemplou-se o direito de não ser torturado, o direito a

certas garantias penais, o direito à existência digna, bem como o direito ao bem-

estar psicofísico social, que compreende o direito à saúde.

Sendo assim, podem-se destacar as seguintes decisões do STF:

EMENTAS: 1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc.. 2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70, caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in pejus. Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito de recurso exclusivo da defesa. 3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal. Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução. (RE 351487/RR, Relator Ministro Cezar Peluso, julgamento em 03/08/2006, Tribunal Pleno)40

EMENTA: TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE - EXISTÊNCIA JURÍDICA DESSE CRIME NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO - NECESSIDADE DE SUA REPRESSÃO - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SUBSCRITAS PELO BRASIL - PREVISÃO TÍPICA CONSTANTE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI Nº

40 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 25.10.2007.

35

8.069/90, ART. 233) - CONFIRMAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DESSA NORMA DE TIPIFICAÇÃO PENAL - DELITO IMPUTADO A POLICIAIS MILITARES - INFRAÇÃO PENAL QUE NÃO SE QUALIFICA COMO CRIME MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. PREVISÃO LEGAL DO CRIME DE TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE - OBSERVÂNCIA DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA TIPICIDADE. - O crime de tortura, desde que praticado contra criança ou adolescente, constitui entidade delituosa autônoma cuja previsão típica encontra fundamento jurídico no art. 233 da Lei nº 8.069/90. Trata-se de preceito normativo que encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto criminoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. - O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine)... (HC 70.389/SP, Relator Ministro Sydney Sanches, julgamento em 23/06/1994, Tribunal Pleno)41

Nos tempos atuais, o que vem se destacando é o desenvolvimento da

biotecnologia e suas conseqüências na esfera psicofísica do ser humano.

Embora ainda não se tenha norma regulamentando todo o avanço científico

na área da biomedicina, a Declaração de Helsinque, de 1964, dispõe que os

interesses e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre o interesse

exclusivo da sociedade ou da ciência. Portanto, é a proteção ao ser humano e sua 41 Decisão disponível no site http:///www.stf.gov.br, acesso em 25.10.2007.

36

dignidade que deve prevalecer, quando se trata de sua saúde física e/ou psíquica.

Tal pensamento corrobora o entendimento de Kant de que o homem deve ser

visto como um fim em si mesmo e não como meio.

1.1.3 Princípio da Liberdade e da Solidariedade

No Estado Liberal clássico, a maior manifestação da dignidade da pessoa

humana era a liberdade de manifestar vontade. Contudo, com sua substituição por

um Estado intervencionista, começou-se a buscar a justiça social.

A liberdade, para Kant, era sinônimo de autonomia, em que todos são

súditos e legisladores ao mesmo tempo. Por conseguinte, a liberdade era o único

direito inato ao homem. Locke entendia que todos os homens eram iguais, e todos

seriam igualmente livres, não podendo um indíviduo ter mais liberdade do que

outro.

Os direitos existem para serem vivenciados em contextos sociais, havendo,

portanto, o dever de solidariedade social. Paulo Bonavides42 entende que o

princípio da solidariedade seja daqueles que mais se presta a servir como

oxigênio da Constituição, conferindo unidade de sentido e auferindo a valoração

da ordem normativa do sistema constitucional.

O princípio da solidariedade está inserido como princípio constitucional

fundamental, e através dele persegue-se a criação de uma sociedade justa, livre e

solidária. O Supremo Tribunal Federal já se utilizou de tal princípio como

fundamento jurídico, como pode-se observar na ADC 9, do Órgão Pleno, Relator

Ministra Ellen Gracie, julgamento em 13/12/2001.

EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA nº 2.152-2, DE 1º DE JUNHO DE 2001, E POSTERIORES REEDIÇÕES. ARTIGOS 14 A 18. GESTÃO DA CRISE DE ENERGIA ELÉTRICA. FIXAÇÃO DE METAS DE CONSUMO E DE UM REGIME ESPECIAL DE TARIFAÇÃO. 1. O valor arrecadado como tarifa especial ou sobretarifa imposta ao consumo de energia elétrica acima das metas estabelecidas pela Medida Provisória em exame será utilizado para custear

42 BONAVIDES, Paulo, idem, 2004, p. 259.

37

despesas adicionais, decorrentes da implementação do próprio plano de racionamento, além de beneficiar os consumidores mais poupadores, que serão merecedores de bônus. Este acréscimo não descaracteriza a tarifa como tal, tratando-se de um mecanismo que permite a continuidade da prestação do serviço, com a captação de recursos que têm como destinatários os fornecedores/concessionários do serviço. Implementação, em momento de escassez da oferta de serviço, de política tarifária, por meio de regras com força de lei, conforme previsto no artigo 175, III da Constituição Federal. 2. Atendimento aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista a preocupação com os direitos dos consumidores em geral, na adoção de medidas que permitam que todos continuem a utilizar-se, moderadamente, de uma energia que se apresenta incontestavelmente escassa. 3. Reconhecimento da necessidade de imposição de medidas como a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos consumidores que se mostrarem insensíveis à necessidade do exercício da solidariedade social mínima, assegurada a notificação prévia (art. 14, § 4º, II) e a apreciação de casos excepcionais (art. 15, § 5º). 4. Ação declaratória de constitucionalidade cujo pedido se julga procedente.43

Sendo assim, a liberdade hoje tida como a possibilidade de se realizar as

próprias escolhas individuais, deve ser relativizada diante de uma nova visão, na

qual o homem deve ser visto não apenas como um ser individual, mas também

como um ser coletivo. O direito de liberdade evolui de acordo o princípio do

tratamento igual.

1.2. Evolução dos Direitos Fundamentais e Eficácia nas Relações Internas

O aparecimento dos Direitos Humanos, no Ocidente, parte da Antigüidade

greco-romana (concepção da existência humana voltada para o humanismo

racional), passa pela época medieval onde encontra-se o paradoxo do

desenvolvimento do Renascimento, das letras, das grandes navegações,

convivendo com os Tribunais de Inquisição, que não respeitam as individualidades

e os Direitos Humanos, até chegar ao século XVIII e XIX, período do

amadurecimento dos Direitos Humanos e Fundamentais.

É no século XVIII e XIX que se humanizam os processos sancionatórios,

criando-se as garantias processuais penais influenciadas pelos pressupostos do

Direito Natural.

43 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 02.10.2007.

38

O marco inicial de todo esse processo está no movimento de

Independência dos Estados Unidos que, em 1776, lança para o mundo o primeiro

manifesto da Declaração dos Direitos Humanos, e que mais tarde será

aprofundado pelo movimento revolucionário burguês da Revolução Burguesa.

A proclamação desses direitos inspira todos os sistemas jurídicos e molda

os Estados Nacionais, a partir do modelo clássico do Liberalismo.

Contudo, o grande divisor de águas foi a Revolução Francesa, que de

acordo com Norberto Bobbio44:

Os testemunhos da época e os historiadores estão de acordo em considerar que esse ato representou um daqueles momentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero humano. Um grande historiador da Revolução, George Lefebvre, escreveu: “Proclamando a liberdade, a igualdade e a soberania popular, a Declaração foi o atestado de óbito do Antigo Regime, destruído pela Revolução.” Entre os milhares de testemunhos sobre o significado ideal desse texto que nos foram deixados pelos historiadores do século passado, escolho o de um escritor político, ainda que ele tenha sido o primeiro a pôr em discussão a imagem que a revolução fizera de si mesma: Alexis de Tocqueville. Referindo-se à primeira fase do 1789, descreve-a como “o tempo de juvenil estusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras, tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna memória, e que, por muito tempo ainda, perturbará o sono dos que querem subjugar ou corromper os homens.

A partir da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão ,

assinada em 26 de agosto de 1789, surge a diferença entre os direitos do homem

e os direitos do cidadão. O homem é colocado como alguém que existe fora da

sociedade, eis que preexiste a ela. O cidadão se encontra exatamente no centro

da sociedade e sob a autoridade do Estado. Dessa forma e, como é próprio da

concepção jusnaturalista, os direitos do homem são naturais e inalienáveis,

enquanto os direitos do cidadão são positivos e garantidos pelo direito positivo.

Essas primeiras declarações de direitos fundamentais são de caráter

normativo, impositivo e externo às Constituições vigentes; trazem a conotação de

direitos naturais dos homens, desvinculados da experiência política e jurídica do

homem na sociedade estatal; tais direitos ainda são percebidos como privilégios,

não tendo um caráter universal em sua aplicação; esses direitos caracterizam-se

pela conotação individualista; direitos como à vida, à liberdade, à segurança, à

44 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 85-86.

39

igualdade e à propriedade são denominados de primeira geração. A conquista da

universalidade dos direitos foi lenta.

Norberto Bobbio45 divide a formação das declarações de direitos em três

fases, a saber:

As declarações nascem como teorias filosóficas. Sua primeira fase deve ser buscada na obra dos filósofos. Se não quisermos remontar até a idéia estóica da sociedade universal dos homens racionais – o sábio é cidadão não desta ou daquela pátria, mas do mundo -, a idéia de que o homem enquanto tal tem direitos, por natureza, que ninguém (nem mesmo o Estado) lhe pode subtrair, e que ele mesmo não pode alienar (mesmo que, em caso de necessidade, ele os aliene, a transferência não é válida), essa idéia foi elaborada pelo jusnaturalismo moderno. Seu pai é John Locke. Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem não é o estado civil, mas o natural, ou seja, o estado de natureza no qual os homens são livres e iguais, sendo o estado civil uma criação artificial, que não tem outra meta além da de permitir a mais ampla explicitação da liberdade e da igualdade naturais. Ainda que a hipótese do estado de natureza tenha sido abandonada, as primeiras palavras com as quais se abre a Declaração Universal dos Direitos do Homem conservam um claro eco de tal hipótese: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O que é uma maneira diferente de dizer que os homens são livres e iguais por natureza. E como não recordar as primeiras célebres palavras com que se inicia o Contrato Social de Rousseau, ou seja: “O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros”? A Declaração conserva apenas um eco porque os homens, de fato, não nascem nem livres nem iguais. São livres e iguais com relação a um nascimento ou natureza ideais, que era precisamente a que tinham em mente os jusnaturalistas quando falavam em estado de natureza. A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser. Enquanto teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos direitos do homem são pura e simplesmente a expressão de um pensamento individual: são universais em relação ao conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas são extremamente limitadas em relação à sua eficácia, na medida em que são (na melhor das hipóteses) propostas para um futuro legislador. ... O segundo momento da história da Declaração dos Direitos do Homem consiste, portanto, na passagem da teoria à prática, do direito somente pensado para o direito realizado. Nessa passagem, a afirmação dos direitos do homem ganha em concreticidade, mas perde em universalidade. Os direitos são doravante protegidos (ou seja, são autênticos direitos positivos), mas valem somente no âmbito do Estado que os reconhece. Embora se mantenha, nas fórmulas solenes, a distinção entre direitos do homem e direitos do cidadão, não são mais direitos do homem e sim apenas do cidadão, ou, pelo menos, são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão deste ou daquele Estado particular. Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas

45 BOBBIO, Norberto, idem, 1992, pp. 28-30.

40

idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem.

Com o desenvolvimento do sistema capitalista que aprofunda as

desigualdades entre as classes sociais, a classe trabalhadora se organiza e passa

a exigir melhores condições de trabalho e de vida fazendo com que se amplie o

debate dos Direitos Humanos e Fundamentais. A crise do capital vai ensejar duas

guerras mundiais e o Estado deixa a sua posição de simples espectador e passa a

intervir na vida econômica e social da comunidade. É necessária a efetivação de

tais direitos por parte do Estado, atuando o Poder Público como protetor do bem-

estar econômico e social de seus cidadãos.

Surge a segunda geração dos Direitos, denominados direitos de

solidariedade, que são aqueles que não se preocupam apenas com o indivíduo

isoladamente, mas com toda a coletividade e que têm como destinatário o gênero

humano. Esse movimento se intensificou a partir da Segunda Guerra Mundial,

com a universalização e multiplicação dos direitos, e está em aprimoramento até

os dias atuais.

No tocante à universalização, Norberto Bobbio46 diz que o ponto de partida

de uma profunda transformação do direito das “gentes”, como foi chamado

durante séculos, em direito também dos “indivíduos”, dos indivíduos singulares, os

quais, adquirindo pelo menos potencialmente o direito de questionarem o seu

próprio Estado, vão se transformando, de cidadãos de um Estado particular, em

cidadãos do mundo.

Já no que se refere à multiplicação, esta emerge da reflexão sobre temas

referentes ao desenvolvimento e à autodeterminação dos povos, à paz, ao meio

ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, à comunicação e ao patrimônio

comum da humanidade. Essa multiplicação se deu em razão do aumento de bens

merecedores de tutela, a titularidade de direitos foi estendida à sujeitos diversos

do homem, e o homem passou a ser analisado não diante de um enfoque

abstrato, mas sim concreto, portanto, nos seus vários status sociais.

Com a globalização iniciada na década de 1980, a desigualdade social se

aprofunda, exigindo do homem maiores critérios de eficiência e produtividade. 46 BOBBIO, Norberto, idem, 1992, p. 68.

41

Marginaliza-se uma considerável parcela da população que não consegue se

enquadrar nas novas exigências do mercado. São os despossuídos que passam a

viver sem leis e sem garantias em suas universalidades, tornando-se presa fácil

das várias formas de violência, sejam elas físicas, morais ou simbólicas.

Surge uma nova geração de Direitos Humanos e Fundamentais que são: os

direitos transindividuais, ou direitos coletivos e difusos, que vão tratar do direito do

consumidor e da questão ecológica; os direitos de manipulação genética,

relacionados à biotecnologia e à bioengenharia, discutindo a questão da vida e da

morte; os direitos decorrentes da chamada realidade virtual decorrentes do

desenvolvimento da cibernética, impondo novas fronteiras econômicas e culturais.

A reflexão sobre as relações que se estabelecem entre Direito e Moral,

toma contornos mais definidos a partir da época moderna quando o Iluminismo

impõe a Era da Razão, suplantando os dogmas da época medieval. O homem

passa a ser, novamente, o centro das atenções que, acreditando no poder

supremo do criador, é o sujeito do seu próprio destino. É nesse contexto que

surgem as correntes jusnaturalistas do Direito que, respeitando as normas morais

como fruto de criação humana, não se confundem com as regras positivadas. O

direito natural depende do sentido de valor atribuído ao homem de per si,

consoante a concepção de cada época ou período histórico.

Conseqüentemente, os direitos da pessoa humana se tornam uma

conquista da cultura jurídica e política do Ocidente e os Direitos Humanos vão se

moldar a uma perspectiva de direitos inatos à condição humana não

condicionados ao agir humano e a despeito das contingências históricas de sua

revelação. Assim, a diferença entre moral e direito ainda não está definitivamente

resolvida, sendo preocupação da filosofia do direito.

Ao lado da dimensão ética e moral dos Direitos Humanos é necessário

incorporá-los aos ordenamentos jurídicos constituídos, sob pena de não poderem

ser objeto de proteção por parte do Estado.

Se para o jusnaturalismo o direito subjetivo não se confunde com as

normas do direito objetivo, já que aqueles são faculdades e poderes inatos ao

homem, a única coisa que o direito positivo pode fazer é conhecê-los e

regulamentar o seu exercício.

42

Os direitos objetivos são as ferramentas dos Direitos Humanos e sua

positivação irá transformá-los em direitos fundamentais. Isso acarreta uma

discussão de natureza política e jurídica, principalmente porque esses direitos não

se apresentam tão-somente frente ao Estado mas, fundamentalmente, como

oponíveis diante dos demais cidadãos e nas suas inter-relações cotidianas,

surgindo a expressão direitos públicos subjetivos.

Nesse sentido, o Estado não pode ter mais papel de simples garantidor das

normas de mercado, da ordem e segurança entre as relações de produção e das

reivindicações das classes trabalhadoras. É necessário uma nova postura junto a

sociedade civil, ao mercado, intervindo sempre que for necessário, não para

garantir as regras do lucro e os direitos das classes dominantes, mas também

para garantir a ordem e segurança dos pactos já alinhavados e comprometidos. O

Estado assume outra feição e passa a se preocupar com a sociedade civil como

um todo, interferindo para a diminuição dos conflitos de grupos sociais com

projetos e propostas, que tenham como objetivo diminuir as tensões e

desigualdades sociais, adotando medidas jurisdicionais de proteção a um universo

cada vez maior de direitos e garantias sociais.

Os direitos subjetivos da mesma forma que corporificam normas de conduta

sociais obrigatórias, proibidas, permitidas ou facultativas, pode também

estabelecer normas que determinem quem e em que condições possam realizar

atos que possuam efeitos jurídicos sobre outras pessoas, nas três esferas de

poder, visando implantar os Direitos Humanos e Fundamentais.

Os Direitos Humanos e Fundamentais, vistos pela ótica de sua

existencialidade subjetiva e objetiva, são os legitimadores de todos os poderes

sociais políticos e individuais. Se eles forem feridos, a sociedade toda estará

enferma. Uma crise desses direitos terá como conseqüência a crise do poder de

toda a sociedade democraticamente organizada.

Como a finalidade dos direitos fundamentais é a de assegurar a dignidade

aos indivíduos, necessário se faz sua aplicação em todas as situações nas quais

possa ser comprometido.

43

Gregorio Peces-Barba Martínez47 entende que:

Os direitos, junto com os valores e os princípios, formam parte do conteúdo de justiça de uma sociedade democrática moderna e têm como objetivo último ajudar a que todas as pessoas possam alcançar o nível de humanização máximo possível, em cada momento histórico. São meios para que a organização social e política permita o desenvolvimento máximo das dimensões que configuram nossa dignidade, quer dizer, para que possamos eleger livremente, para que possamos construir conceitos gerais e raciocinar, para que possamos nos comunicar, transmitir a semente da cultura como obra do homem na história, e para que possamos decidir livremente nossa moralidade privada, nossa idéia de bem, da virtude, da felicidade ou da salvação, segundo seja o ponto de vista em que nos situemos.

Os direitos fundamentais devem ter sua eficácia valorada não só sob um

ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua

posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da

comunidade na sua totalidade, já que cuida de valores e fins que esta deve

respeitar e concretizar. Assim, o exercício dos direitos subjetivos individuais está

condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se

encontra inserido e da qual não pode ser dissociado.

Importa esclarecer que as normas têm vigência ou existência, validade e

eficácia. Vigência é a existência da norma, sem nenhum outro questionamento.

Validade é a sua compatibilidade com a norma superior. Eficácia é a aptidão para

produção de efeitos jurídicos.

De acordo com classificação de José Afonso da Silva, no tocante à eficácia,

as normas dividem-se em norma de eficácia plena (norma auto-aplicável), norma

de eficácia contida (norma auto-aplicável mas que admite a contenção de seus

efeitos) e norma de eficácia limitada (norma não auto-aplicável, que divide-se em

princípio institutivo ou organizatório – o conteúdo é a instituição ou a organização,

e princípio programático – conteúdo é programa de atuação do governo; programa

este que será posto em prática no futuro).

O art. 5º, § 1º da CF/8848 dispõe que as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais têm aplicação imediata. Portanto, a estas normas foi

atribuída aplicação direta e imediata, permitindo que o operador do direito, ao se

deparar com uma situação em que esteja em jogo um dado direito fundamental, 47 MARTÍNEZ, Gregorio Peces-Barba apud BARROSO, Luís Roberto, idem, 2006, p.148. 48 Tal dispositivo constitucional será melhor analisado no tópico seguinte.

44

possa, ele próprio, criar meios de dar efetividade a esse direito,

independentemente de existir norma infraconstitucional integradora e mesmo

contra a norma infraconstitucional que esteja dificultando a concretização do

direito. Está-se diante, então, da teoria do desenvolvimento e efetivação das

normas constitucionais em que as normas constitucionais que definam direitos

fundamentais, independentemente da classificação abstrata que tenham (eficácia

plena, eficácia limitada e eficácia contida), dão ensejo a prestação jurisdicional.

A abrangência da norma do art. 5º, § 1º da CF/88 não está limitada apenas

aos direitos individuais e coletivos do art. 5º, alcançando todos os direitos

fundamentais, inclusive aqueles reconhecidos fora do texto constitucional.

Outro aspecto que merece destaque é a idéia de os direitos fundamentais

irradiarem efeitos também no âmbito das relações privadas49 e não constituírem

apenas direitos oponíveis aos poderes públicos; fato este que vem sendo

considerado um dos mais relevantes desdobramentos da perspectiva objetiva dos

direitos fundamentais. Além disso, como dever geral de efetivação atribuído ao

Estado, há o reconhecimento de deveres de proteção do Estado não somente

contra os poderes públicos, mas também contra agressões provindas de

particulares e até mesmo de outros Estados.

Portanto, não são os direitos fundamentais tidos como mero limitadores da

atuação do Estado em favor da liberdade individual, já que dirigem-se a toda

sociedade. Ademais, o respeito aos direitos fundamentais é um pressuposto para

a possibilidade de democracia.

Desta forma, a CF/88 é incompatível com a tese adotada nos Estados

Unidos, que exclui a aplicação dos direitos individuais sobre as relações privadas,

bem como é também incompatível com a eficácia horizontal indireta e mediata dos

direitos individuais, prevista na Alemanha, onde a incidência de tais direitos

depende da vontade do legislador ordinário, ou os restringe ao papel de modelos

de interpretação das cláusulas gerais do direito privado.

49 Nos Estados Unidos por volta de 1944 e 1948, a jurisprudência admitiu a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares nas hipóteses em que a violação era praticada como uma ação estatal. Já na Alemanha, que tornou-se referência para toda doutrina européia, foi aproximadamente na década de cinqüenta que surgiu a expressão drittwirkung der grundrechte (eficácia perante terceiros), traduzindo a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Tal expressão foi foco de diversas críticas, cujo debate não é o objetivo do presente tópico.

45

Se é o princípio da dignidade da pessoa humana o epicentro axiológico da

ordem constitucional e o elemento unificador dos direitos fundamentais, ele deve

condicionar a todos, sem distinção. E é neste sentido que Luiz Edson Fachin50

entende que a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais às relações

privadas é derivada da própria natureza intrínseca da dignidade da pessoa

humana, como princípio fundamental que promove a integração normativa do

ordenamento jurídico. Luís Roberto Barroso51 afirma que em uma perspectiva de

avanço social, devem-se esgotar todas as potencialidades interpretativas do Texto

Constitucional, o que inclui a aplicação direta das normas constitucionais, no limite

máximo do possível, sem condicioná-las ao legislador infraconstitucional. Ingo

Wolfgang Sarlet52 também aponta que na ordem constitucional pátria inexiste

respaldo suficientemente robusto a sustentar uma negativa no que diz com a

vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, ao menos nas

hipóteses em que não tenham por destinatário exclusivo o poder público.

Jane Reis Gonçalves Pereira53 sintetiza os principais problemas envolvendo

lesões a direitos fundamentais na esfera privada:

i) se ou até que ponto as liberdades (religiosas, de residência, de associação, por exemplo) ou bens pessoais (integridade física e moral, intimidade, imagem) podem ser limitadas por contrato, com o acordo ou o consentimento do titular; ii) se uma empresa pode celebrar contratos de trabalho com cláusulas pelas quais os trabalhadores renunciem a exercer atividade partidária ou a sindicalizar-se; iii) se um partido político pode impedir que participem das convenções destinadas a escolher seus candidatos nas eleições, indivíduos da raça negra; iv) se é legítimo que um clube social recuse o ingresso de novo sócio sem declinar a motivação, ou proíba o acesso de pessoas de determinada raça ou sexo; v) se uma empresa pode celebrar contrato de trabalho em que conste cláusula de celibato do empregado, ou ainda, que o obrigue a não ter filhos durante a vigência do contrato ou por certo prazo, sob pena de demissão por justa causa; vi) se uma escola particular pode recusar-se a matricular alunos de determinada religião ou raça; vii) até que ponto é admissível a liberdade de expressão (e de outras liberdades) dos jogadores de um clube desportivo, dos membros de um partido político ou de uma ordem religiosa; viii) quais os poderes de sancionamento que os pais podem exercer sobre os menores; ix) se o senhorio pode despejar um inquilino por não pagamento da renda quando tolera o não pagamento de outro que também não paga; x) se é

50 FACHIN, Luiz Edson. Fundamentos, Limites e Transmissibilidade: Anotações para uma leitura crítica, construtiva e de índole constitucional da personalidade no Código Civil Brasileiro. Revista da EMERJ, vol. 8, nº 31, 2005, pp.51-70. 51 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 260. 52 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 152. 53 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 447-449.

46

legítima cláusula testamentária que estabeleça que o direito de herança não poderá ser exercido caso o herdeiro se case com uma israelita; xi) se pode uma associação expulsar sócio sem observar as regras estatutárias, ou, ainda, se pode o condômino ser sancionado, sem que antes lhe seja dada a oportunidade de defender-se (ou seja, se há direito ao devido processo legal e à ampla defesa em face de entes privados) ...

O que se conclui diante de tantas indagações, é que o principal problema a

se enfrentar, no tocante à eficácia dos direitos fundamentais nas relações

privadas, é que todas as partes envolvidas são titulares de direitos e deveres que

se chocam e se complementam. Em síntese, Jane Reis Gonçalves Pereira54

resume a questão reconhecendo que nas relações privadas potencialmente

lesivas a direitos fundamentais, forma-se uma complexa rede de direitos e

deveres, que se limitam e condicionam mutuamente. O cerne do problema reside

em saber com base em que recursos hermenêuticos, com que limites coordenar

os direitos em jogo.

A aplicação do efeito de irradiação dos direitos fundamentais, não é

incompatível com o reconhecimento da eficácia direta ou imediata dos direitos

fundamentais na esfera das relações privadas55. A referida irradiação está

vinculada à própria idéia de supremacia constitucional.

O que pode parecer irrazoável, em um primeiro momento, seria estender

em relação aos particulares, a eficácia direta em relação aos direitos sociais.

Contudo, em razão do princípio da solidariedade, somos responsáveis pelo bem-

estar de cada um de nós, portanto, torna-se possível o reconhecimento da eficácia

horizontal aos direitos sociais. Ademais, ao estabelecer, a CF/88, como um dos

princípios da República Federativa à contrução de uma sociedade livre, justa e

solidaridária, não alçou tal objetivo apenas à categoria de princípio, mas o

reconheceu como diretriz de interpretação de todo ordenamento jurídico. Portanto,

assim como é dever do Estado promover esta sociedade, é obrigação de cada um

dos seus integrantes também fazê-lo.

54 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, idem, 2006, p. 451. 55Tanto na teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas quanto na teoria da eficácia indireta ou mediata, os direitos fundamentais não vinculam apenas o poder público, mas aplicam-se em todas as relações privadas. O ponto de divergência entre ambas é que na primeira a aplicação ocorre de forma direta e imediata, sem a necessidade do Estado legislar a este respeito. Já na segunda, tal aplicação deve ser apenas levada em conta pelo Estado na criação legislativa ou na interpretação do direito privado.

47

Corroborando com a afirmação exposta no parágrafo anterior, o Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro proferiu o acórdão no AI 9845, Relator

Desembargador Raul Celso Lins e Silva, DJRJ 24/03/1999, em que reconheceu a

eficácia direta do direito à saúde numa relação privada:

FUNCIONÁRIO CONTRATADO PELA CLT – PENA DE SUSPENSÃO – ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR – MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA – AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECURSO DESPROVIDO. Agravo. Concessão de liminar obrigando empresa a prestar assistência médica e hospitalar à empregada afastada da mesma por motivo de saúde. A suspensão, pela empresa/empregadora, colocou em risco a vida da empregada. Saúde é um direito social a todos garantido, como prevê o disposto no art. 6º, da Carta da República. Manutenção do decisum. Conhecimento e improvimento do recurso56.

Jurisprudência do STF vem admitindo a eficácia dos direitos fundamentais

nas relações privadas, conforme pode-se constatar em algumas decisões da

referida Corte. A Segunda Turma do STF, no RE 158.215-4, DJ 07/06/1996,

Relator Ministro Marco Aurélio, por unanimidade, aplicou a garantia do devido

processo legal à relação privada, cujo acórdão foi assim ementado:

COOPERATIVA – EXCLUSÃO DE ASSOCIADO – CARÁTER PUNITIVO – DEVIDO PROCESSO LEGAL Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância do devido processo legal, viabilizando o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.57

Também neste mesmo sentido, a mesma Turma proferiu o seguinte

acórdão no RE 161.243-6, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 19/12/1997:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DE PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. I – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita aos empregados de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade. II – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo

56 Jurisprudência colhida em SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2.Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 304. 57 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 19.07.2007.

48

religioso etc., é inconstitucional. Precedentes do STF: Ag. 110.846 (Ag. Rg) – PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III – Fatores que autorizariam a desigualação não ocorrentes no caso. IV – RE conhecido e provido.58

As pessoas, como seres individuais e em sociedade, bem como as

entidades privadas têm o dever de respeitar os direitos fundamentais, contudo,

não se vêem obrigadas a protegê-los diante de agressões de terceiros, cabendo

tal proteção às autoridades estatais. Todavia, a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações privadas não ocorre da mesma forma que vigoram nas

relações entre os indivíduos e o Estado. Como exemplo de tal assertiva, Daniel

Sarmento59 exemplifica da seguinte forma:

... não é razoável exigir, com base na isonomia, que um indivíduo trate de forma igual todos os seus vizinhos, pois ele tem o direito de gostar mais de alguns do que de outros, de convidar alguns para sua casa e outros não, e seria totalitária a ordem jurídica que pretendesse imiscuir-se nesta questão (...). Temos, como seres humanos, o direito inalienável de agir com base em nossos sentimentos pessoais, preferências subjetivas de foro íntimo, e até caprichos, e esta faculdade as autoridades públicas, num Estado de Direito , não podem possuir.

Sendo assim, busca-se solucionar a problemática que envolve os direitos

fundamentais, no âmbito privado, por meio da ponderação com a autonomia

privada.

Um dos fatores que deve ser sopesado é a questão da desigualdade

substancial que envolve as relações entre os particulares, a fim de se verificar a

intensidade de proteção dos direitos fundamentais em jogo, já que diferentemente

do desejado, ainda vive-se em uma sociedade repleta de disparidades, existindo

diversos poderes além do Estado, que podem oprimir o indivíduo. E neste

aspecto, tem aplicação a observação feita por Daniel Sarmento60:

Portanto, a desigualdade material justifica a ampliação da proteção dos direitos fundamentais na esfera privada, porque se parte da premissa de que a assimetria de poder prejudica o exercício da autonomia privada das partes mais débeis. É assim, enfim, porque se entende que quando o ordenamento jurídico deixa livres o forte e o fraco, esta liberdade só se torna efetiva para o primeiro. O hipossuficiente, no mais das vezes, vai acabar curvando-se diante do arbítrio do mais poderoso, ainda que, do ponto de vista puramente

58 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 19.07.2007. 59 SARMENTO, Daniel, idem, 2006, pp. 259-260. 60 SARMENTO, Daniel, idem, 2006, p. 262.

49

formal, seu comportamento possa parecer decorrente do exercício da sua autonomia privada.

Por outro lado, ainda que haja uma relação paritária entre os envolvidos, o

núcleo essencial dos direitos fundamentais permanece sendo protegido; portanto,

apesar da autonomia privada, que em tal caso será protegida com intensidade, o

livre consentimento não legitima a lesão de tais direitos.

A essencialidade do bem é um critério para se aferir a intensidade da

proteção referente à autonomia privada. Neste aspecto, se um bem for

considerado supérfluo, a autonomia privada será mais intensamente protegida do

que o próprio direito fundamental em questão.

Todavia, a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, não

significa restrição desproporcional à esfera subjetiva de outrem. Também, não se

pode deixar de observar o princípio da dignidade da pessoa humana, que como

fonte primordial dos direitos fundamentais, deve ser o fio condutor de qualquer

ponderação feita.

Pode-se também deparar com situações de princípios ou regras

incompatíveis entre si. Tal incompatibilidade é denominada antinomia. Há três

critérios clássicos, apontados por Norberto Bobbio, para a solução de antinomias:

o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex

superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis

derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses

três critérios, na forma do tudo ou nada.

No caso de colisão de princípios constitucionais, no entanto, não há que

simplesmente afastar a aplicação de um princípio, já que eles possuem a mesma

hierarquia normativa e, portanto, devem ser igualmente obedecidos.

Sendo assim, somente diante do caso concreto será possível resolver o

problema da colisão de princípios, através de uma ponderação de valores

(dimensão do peso e importância dos princípios), pois, ao contrário do que ocorre

com a antinomia de regras, não há, a priori, critérios formais preestabelecidos para

resolvê-lo. A ponderação de interesses, embora não encontre seu método de

aplicação estabelecido no texto constitucional, também não é uma técnica vedada

pela norma constitucional.

50

O intérprete, no caso concreto, por meio de uma análise necessariamente

tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e subjetivos, qual o valor que

o ordenamento, em seu conjunto, deseja preservar na situação, sempre buscando

conciliar os dois princípios em colisão.

Desta forma, quando não for possível decidir baseando-se no mecanismo

da subsunção, e quando há valores e interesses contrapostos, estar-se-á diante

dos hard cases (casos difícieis), em que a solução será baseada na ponderação,

buscando-se preservar cada uma das normas envolvidas, mantendo-se a unidade

da Constituição.

Corroborando tal entendimento, Ana Paula de Barcellos61 explica que:

Do ponto de vista metodológico, porém, a ponderação é exatamente a alternativa à subsunção, quando não for possível reduzir o conflito normativo à incidência de uma única premissa maior. Isso é o que ocorre quando há diversas premissas maiores igualmente válidas e vigentes, de mesma hierarquia e que indicam soluções diversas e contraditórias. Nesse contexto, a subsunção não tem elementos para produzir uma conclusão que seja capaz de considerar todos os elementos normativos pertinentes: sua lógica de funcionamento tentará isolar uma única premissa maior para o caso. Essa, portanto, é a primeira distinção entre a ponderação e as técnicas tradicionais de solução de antinomias: estas estão ligadas à subsunção, ao passo que a ponderação é uma alternativa a ela.

Continua lecionando Ana Paula de Barcellos62:

Quando se trabalha com a Constituição, no entanto, não é possível simplesmente escolher uma norma em detrimento das demais: o princípio da unidade, pelo qual todas as disposições constitucionais têm a mesma hierarquia e devem ser interpretadas de forma harmônica, não admite essa solução. Situação semelhante ocorre com muitas normas infraconstitucionais que, refletindo os conflitos internos da Constituição, encontram suporte lógico e axiológico em algumas normas constitucionais mas parecem afrontar outras. Também aqui, a verificação da constitucionalidade dessas normas infraconstitucionais não poderá ser resolvida por uma mera subsunção. Na verdade, os casos típicos dos quais se ocupa a ponderação são aqueles nos quais se identificam confrontos de razões, de interesses, de valores ou de bens albergados por normas constitucionais (ainda que o objeto imediato do exame seja uma disposição infraconstitucional). O propósito da ponderação é solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser aplicadas em intensidades diferentes. A ponderação também se presta a organizar o raciocínio e a

61 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 32/33. 62 BARCELLOS, Ana Paula de, idem, 2005, p. 35.

51

argumentação diante de situações nas quais, a despeito do esforço do intérprete, haverá inevitavelmente uma ruptura do sistema e disposições normativas válidas terão sua aplicação negada em casos específicos.

É fato que, hoje, a ponderação é uma técnica aplicada desde o juiz de

primeiro grau até o Supremo Tribunal Federal, conforme pode-se observar,

exemplificativamente, nas seguintes decisões:

STF – Agravo de Instrumento 529733/ RS – Rio Grande do Sul – Rel.: Ministro

Gilmar Mendes – julgamento em 17/10/2006 – 2ª Turma;

STF – Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3540/DF – Distrito

Federal – Rel.: Ministro Celso de Mello – julgamento em 01/09/2005 – Tribunal

Pleno;

STF – Habeas Corpus 82424/RS – Rio Grande do Sul – Rel.: Ministro Moreira

Alves – julgamento em 17/09/2003 – Tribunal Pleno;

TJRJ – Apelação Cível 2006.001.22010 – Desembargador Reinaldo P. Alberto

Filho – julgamento em 24/10/2006 – 4ª Câmara Cível;

TJRJ – Apelação Cível 2006.001.39097 – Desembargadora Odete Knaack de

Souza – julgamento em 14/11/2006 – 8ª Câmara Cível;

TJRJ – Apelação Cível 2006.001.46559 – Desembargador Roberto de Abreu e

Silva – julgamento em 14/11/2006 – 4ª Câmara Cível.

A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, no campo

processual, não causa problema, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro,

diferentemente do modelo americano (controle difuso) e do austríaco (controle

concentrado), adota o modelo misto, eclético ou híbrido, em que admite-se o

controle difuso e concentrado. No controle difuso, admite-se a possibilidade do

controle de constitucionalidade como questão prejudicial em qualquer processo

judicial, até mesmo nos relativos a litígio de natureza privada. Inclusive, a doutrina

dominante admite que o particular figure no pólo passivo de remédios

constitucionais.

52

1. 3 Da discussão jurídica constitucional à efetividade

Apesar da aparente simplicidade da idéia dos direitos fundamentais do

homem, sua realização prática já apresentou e segue apresentando enormes

dificuldades. A época contemporânea já reconheceu e reconhece, junto das

declarações de direitos humanos mais autênticas, nobres, amplas e solenes, as

mais brutais violências e transgressões. O poder político reflete muitas vezes esta

dupla face de garantidor e transgressor dos direitos humanos fundamentais.

Podendo-se deduzir que, mesmo que o poder ilimitado e incontrolado do pior

inimigo e a negação dos direitos humanos, a única saída aceita está do lado da

regulamentação do poder por meio da lei e do Direito.

Sobre o tema, Norberto Bobbio63 tece o seguinte comentário:

Creio que uma discussão sobre os direitos humanos deve hoje levar em conta, para não correr o risco de se tornar acadêmica, todas as dificuldades procedimentais e substantivas. A efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana. É um problema que não pode ser isolado, sob pena, não digo de não resolvê-lo, mas de sequer compreendê-lo em sua real dimensão. Quem o isola já o perdeu. Não se pode pôr o problema dos direitos do homem abstraindo-o dos dois grandes problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria, do absurdo contraste entre o excesso de potência que criou as condições para uma guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas humanas à fome. Só nesse contexto é que podemos nos aproximar do problema dos direitos com senso de realismo (...) O campo dos direitos do homem – ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direito ao homem – aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição do norma e sua efetiva aplicação. E essa defasagem é ainda mais intensa precisamente no campo dos direitos sociais. Tanto é assim que, na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de “programáticas”. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de “direito”?.

Eusébio Fernandez Dias64 diz que uma melhor forma de proteger os direitos

humanos não é somente contar com as técnicas jurídicas que os garantem, mas

63 BOBBIO, Norberto, idem, 1992, p. 63.

53

também com circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas que os

possibilitem e que sejam favoráveis a eles, senão também estar respaldado por

bons argumentos na hora de fundamentá-los e defendê-los.

Sendo assim, antes mesmo de se adentrar na discussão da efetividade,

torna-se necessário tecer alguns breves comentários do que se entende por

efetividade.

Conforme já explicitado, as normas têm vigência ou existência, validade e

eficácia. Todavia, a efetividade é uma qualidade da eficácia, assim como a

aplicabilidade. José Afonso da Silva fala em aplicabilidade, que é a aptidão da

norma para ser aplicada a casos concretos, dividindo-a em eficácia social da

norma (aplicação da norma no plano dos fatos) e eficácia jurídica (qualidade de

produzir efeitos jurídicos, referindo-se, portanto, a possibilidade da aplicação

jurídica da norma). Luís Roberto Barroso fala em efetividade, que é o que Kelsen

chamava de eficácia social, ou seja, aptidão da norma que é efetivamente

cumprida no meio social. Desta forma, a eficácia social se confunde com a noção

de efetividade.

José Afonso da Silva65 explica que eficácia e aplicabilidade são fenômenos

conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes:

aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma

não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-

lhes eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim, como a

possibilidade de aplicação. Para que haja esta possibilidade, a norma há que ser

capaz de produzir efeitos jurídicos.

Na lição de Maria Helena Diniz66, existem três planos de concretização da

norma jurídica e da norma constitucional em especial, para que se consiga atingir

a efetividade plena das regras de direito, o plano sintático (a norma jurídica, para

se realizar no mundo do ser, deve ter uma estrutura lógica completa com a

descrição detalhada da hipótese, disposição e a respectiva sanção em caso de

descumprimento), o plano semântico (além de necessitar de uma estrutura lógica

completa, a norma jurídica, para se efetivar, deve refletir valores que estejam em 64 DIAS, Eusébio Fernandes. Teoria da Justiça e Direitos Humanos. 65 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7.Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 49-50. 66 DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. 2.Ed. São Paulo:Saraiva, 1992, p. 100.

54

consonância com os anseios da sociedade, sendo essencial haver uma sintonia

entre o disposto no plano ideal/normativo, do dever ser e o que está presente nas

ruas e no dia-a-dia do cidadão no plano da realidade, do ser) e o plano pragmático

(para que se complete a concretização de uma norma jurídica e ocorra a sua

plena efetividade, deve haver, além da conexão norma- sistema, norma – valores

sociais, o necessário empenho de governantes e da população em respeitar o

ordenamento jurídico e fazer valer os princípios vetores da ordem normativa).

Buscando dar efetividade às normas constitucionais em casos de

inconstitucionalidade por omissão (que são as hipóteses de norma de eficácia

limitada), o ordenamento brasileiro prevê dois institutos: o mandado de injunção e

a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Além disso, as normas

constitucionais que definam direitos fundamentais, independentemente da

classificação abstrata que tenham (eficácia plena, contida ou limitada), dão ensejo

a prestação jurisdicional naquilo que elas comportarem.

As distinções existentes entre a ação direta de inconstitucionalidade por

omissão, prevista no art. 103, §2º, da CF/88, e o mandado de injunção, previsto no

art. 5º, LXXI, da CF/88, são as seguintes:

na ação direta de inconstitucionalidade por omissão: são legitimados ativos

aqueles previstos no art. 103 da CF/88; a competência para julgar é

exclusiva do STF; o objeto é a tutela do direito objetivo; e a eficácia é erga

omnes.

no mandado de injunção: são legitimados ativos todos os titulares de

direitos subjetivos constitucionais, cujo exercício esteja impedido pela

ausência de norma regulamentadora; a competência para julgar será do

STF (art. 102, I, q e art. 102, II, a, ambos da CF/88), do STJ (art. 105, I, b,

da CF/88), TSE (art. 121, § 4º, V, da CF/88) ou dos Tribunais Estaduais

(art. 125, § 1º, da CF/88); o objeto será a tutela de direito subjetivo

constitucional cujo exercício esteja individualizado por ausência da norma;

e a eficácia é inter partes.

Em relação aos efeitos da decisão, na ação direta de inconstitucionalidade

por omissão, o art. 103, § 2º, da CF/88 estabelece efeitos diversos para o poder

competente e para o órgão administrativo. Ao poder competente será dada

ciência, sem ser fixado prazo para a elaboração da lei, pois ao Poder Legislativo é

55

conferido a liberdade de conformação, ou seja, cabe ao Poder Legislativo escolher

o melhor momento e sobre o que legislar. Todavia, decretada a sua inércia caberá

indenização, desde que se demonstre nexo de causalidade entre o dano e a

inércia legislativa. Quanto ao órgão administrativo deverá este fazer a lei no prazo

de trinta dias, sob pena de responsabilidade.

No tocante aos efeitos da decisão no mandado de injunção doutrina e

jurisprudência são controvertidas. Para a posição concretista geral, por intermédio

de normatividade geral, o STF legisla no caso concreto, produzindo a decisão

efeitos erga omnes até que sobrevenha norma integrativa pelo Legislativo. Para a

posição concretista individual direta, à decisão, implementando o direito, valerá

somente para o autor do mandado de injunção, diretamente. Para a posição

concretista individual intermediária, julgando procedente o mandado de injunção, o

Judiciário fixa ao Legislativo prazo para elaborar a norma regulamentadora. Findo

o prazo e permanecendo a inércia do Legislativo, o autor passa a ter assegurado o

seu direito. Já para a posição não concretista, adotada pelo STF, a decisão

apenas decreta a mora do poder omisso, reconhecendo-se formalmente a sua

inércia.

Portanto, o que se verifica é que tais mecanismos não são totalmente

eficazes e suficientes para a solução da inércia do poder público violador de

direitos fundamentais.

A 4ª Vara Federal do Ceará decidiu acerca da Ação Ordinária nº

99.0016938-7, em que a parte autora pretende o levantamento do seu FGTS em

razão de que sua neta nasceu com grave patologia, necessitando de dinheiro para

custear o tratamento. Conquanto o seu caso não esteja elencado entre as

hipóteses da Lei 8.036/90, entendeu o R. Juízo que o direito constitucional à

saúde deve prevalecer.

A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, aliás, já entendeu que o

“preceito constitucional que garante o direito à saúde é de observância

imperativa”, razão pela qual o saque (levantamento) do FGTS, em caso de

necessidade familiar grave e premente, não pode ser suprimido por norma inferior,

por contrariar a própria finalidade do fundo, que é proporcionar a melhoria das

condições sociais do trabalhador (REsp 129746/CE (97/0029504-4), DJ

15/12/1997 PG:66250, Relator Ministro Garcia Vieira).

56

Além disso, deve-se ter em conta que o direito à saúde é um direito

fundamental, sendo certo que os direitos fundamentais, após a Constituição de

1988, passaram a ocupar uma posição privilegiada dentro da ciência do direito. A

eles foi reconhecida uma efetiva força jurídica e não apenas moral, simbólica ou

política. E mais: a força jurídica é potencializada por se tratar de norma de

hierarquia superior. A eles foi reconhecida uma aplicação direta e imediata (art. 5o,

§1o, da CF/88), permitindo que o operador do direito, ao se deparar com uma

situação em que esteja em jogo um dado direito fundamental, possa, ele próprio,

criar meios de dar efetividade a esse direito, independentemente de existir norma

infraconstitucional integradora e mesmo contra a norma infraconstitucional que

esteja dificultando a concretização do direito. A eles foi dada uma abertura (art. 5o,

§2o, da CF/88), de tal modo que é possível extrair direitos fundamentais mesmo

fora do vasto elenco do art. 5o da CF/88. A eles foi dada uma posição topográfica

de destaque dentro da Constituição, já que antes eram enunciados nos

dispositivos finais do texto constitucional e agora se situam, em sua maioria, logo

após os princípios fundamentais, mais precisamente no art. 5o. Enfim: houve a

nítida proposta de não apenas declarar os direitos fundamentais, mas, sobretudo,

concretizá-los.

A intenção deliberada do constituinte de entronizar e levar a sério os

direitos fundamentais trouxe avanços significativos na denominada hermenêutica

constitucional. Consolidou-se a mentalidade de que não são os direitos

fundamentais que giram em torno da lei, mas a lei que deve girar em torno dos

direitos fundamentais. Isso significa que a concretização dos direitos fundamentais

deve ser buscada mesmo contra a vontade da lei ou na ausência desta. Ou seja:

para fazer valer um direito fundamental não é preciso pedir licença a ninguém.

Portanto, apesar da Lei do FGTS não contemplar a situação do autor nas

hipóteses de autorização de saque da conta do FGTS, é inquestionável que, em

nome do direito fundamental à saúde, pode (e deve) o Judiciário dar prevalência à

concretização desse direito fundamental tão importante, que é o direito à saúde e

à própria vida, no caso, à vida de um dependente do autor (sua neta).

57

Superada tal problematização, segue-se a um estudo mais detalhado do

art. 5º, §1º, da CF/8867; e a primeira indagação suscitada é no tocante à

abrangência de tal dispositivo, ou seja, se aplica-se a todos os direitos

fundamentais, inclusive aqueles fora do texto constitucional, ou sua aplicação é

restrita aos direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF/88. A resposta a esta

indagação é que o dispositivo em questão estende-se a todos os direitos

fundamentais, pois ainda que fosse feita uma interpretação meramente literal, a

conclusão que se chegaria é que o texto constitucional não limitou a aplicação aos

direitos e garantias fundamentais expressos tão-somente no texto constitucional.

Por outro lado, em se realizando uma interpretação sistemática e teleológica, a

conclusão seria a mesma, já que nossa Constituição não estabelece diferença

entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, estando ambos elevados à

categoria de direitos fundamentais; além disso, a extensão da aplicação imediata

aos direitos fundamentais encontrados fora do texto constitucional, não encontra

óbice na própria CF/88.

Outra questão que se coloca, é em relação ao alcance do art. 5º, § 1º, da

CF/88, no tocante à sua efetividade, especialmente em razão das normas

programáticas, já que normalmente necessitam de concretização legislativa. Ingo

Wolfgang Sarlet68 analisa o referido questionamento quando diz que as diferentes

concepções encontradas oscilam entre os que, adotando posição extremamente

tímida, sustentam, por exemplo, que a norma em exame não pode atentar contra a

natureza das coisas, de tal sorte que boa parte dos direitos fundamentais alcança

sua eficácia apenas nos termos e na medida da lei, e os que, situados em outro

extremo, advogam o ponto de vista segundo o qual até mesmo normas de cunho

nitidamente programático podem ensejar, em virtude de sua imediata

aplicabilidade, o gozo de direito subjetivo individual, independentemente de

concretização legislativa.

As normas programáticas normalmente indicam os fins sociais a serem

atingidos pelo Estado, tendo em vista os objetivos fundamentais previstos na

Constituição. São normas com baixa efetividade social e jurídica, pois dizem

respeito a planos e diretrizes futuros a serem implementados pelos governantes. 67 Art. 5º § 1º da CF/88: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 68 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 274.

58

Pontes de Miranda69 afirma que as normas programáticas são aquelas em que o

legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação

concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes

públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses

ditames que são programas dados à sua função.

Celso Ribeiro Bastos70 critica as normas programáticas alegando que estas

são extremamente generosas quanto às dimensões do direito que disciplinam, e,

por outro lado, são muito avaras nos efeitos que imediatamente produzem. A sua

gradativa implementação, que é o que no fundo se almeja, fica sempre na

dependência de resolver-se um problema prévio e fundamental: quem é que vai

decidir sobre a velocidade dessa implementação? Pela vagueza do Texto

Constitucional, essa questão fìca subordinada a uma decisão política. Trata-se,

portanto, de matéria insuficientemente juridicizada. O direito dela cuidou, sim, mas

sem evitar que ficasse aberta uma porta para o critério político.

José Joaquim Gomes Canotilho71, proclama a “morte das normas

programáticas". Este perquire pela ruptura da doutrina clássica (e da decorrente

classificação da eficácia das normas constitucionais) ao afirmar que, em razão

daquelas possuírem um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos

restantes preceitos da Constituição, não se deve, pois, falar-se de simples eficácia

programática (ou diretiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-

se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político. E vai mais além, ao

afirmar que esta positividade das normas programáticas acarreta na vinculação do

legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); na

vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-los

em consideração como diretivas materiais permanentes, em qualquer dos

momentos da atividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); e na

vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos,

justificando a eventual censura, sob forma de inconstitucionalidades, em relação

aos atos que as contrariam.

69 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1969, pp. 126-127. 70 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 16.Ed. São Paulo:Saraiva, 1994, p. 130. 71 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, idem, 2006, pp. 1102-1103.

59

Na verdade, inexiste norma constitucional destituída completamente de

eficácia, ainda que na hipótese das normas de eficácia limitada, estas dependam

de uma atuação concretizadora. Tais normas têm eficácia vinculante e imediata,

pois toda norma constitucional é sempre obrigatória, derivando do Poder

Constituinte e subordinadas ao ápice do ordenamento jurídico a que as demais

normas devem respeito.

Neste sentido, lembra Luís Roberto Barroso72 que a visão crítica que muitos

autores mantêm em relação às normas programáticas é, por certo, influenciada

pelo que elas representavam antes da ruptura com a doutrina clássica, em que

figuravam como enunciados políticos, meras exortações morais, destituídas de

eficácia jurídica. Modernamente, a elas é reconhecido valor jurídico idêntico ao

dos restantes preceitos da Constituição, como cláusulas vinculativas, contribuindo

para o sistema por meio dos princípios, dos fins e dos valores que incorporam.

A CF/88 é intervencionista e social, sendo os direitos sociais também

considerados direitos fundamentais. A Segunda Turma do STF, no RE-AgR

393175/RS – Rio Grande do Sul, Ag. Reg. no RE, Relator Ministro Celso de Mello,

julgamento em 12/12/2006, reconheceu eficácia à norma programática do art.

196 da CF/88, cujo acórdão vale a pena transcrever:

EMENTA: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no

72 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas - limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 2.Ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1993, p. 111.

60

plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.73

A Primeira Turma do STJ no REsp 811608/RS que debateu a

implementação do modelo de assistência à saúde do índio e à instalação material

dos serviços de saúde à população indígena situada em área no Rio Grande do

Sul, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 15/05/2007, reconheceu também a

eficácia imediata da norma programática do art. 196 da CF/88, além de abordar as

questões referentes à reserva do possível e ao mínimo existencial, que serão

analisadas em capítulo próprio, conforme pode-se constatar em trechos do

acórdão cuja parte interessa:

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS CONCRETAS. DIREITO À SAÚDE (ARTS. 6º E 196 DA CF/88). EFICÁCIA IMEDIATA. MÍNIMO EXISTENCIAL. RESERVA DO POSSÍVEL. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE DECIDIU A CONTROVÉRSIA À LUZ DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO COLENDO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA. “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

73Decisão obtida no site http://www.stf.gov.br, acesso em 29.06.2007.

61

Mesmo que situado, como comando expresso, fora do catálogo do art. 5º da CF/88, importante destacar que o direito à saúde ostenta o rótulo de direito fundamental, seja pela disposição do art. 5º, § 2º, da CF/88, seja pelo seu conteúdo material, que o insere no sistema axiológico fundamental - valores básicos - de todo o ordenamento jurídico. INGO WOLFGANG SARLET, ao debruçar-se sobre os direitos fundamentais prestacionais, bem posiciona o tema: “Preliminarmente, em que pese o fato de que os direitos a saúde, assistência social e previdência - para além de sua previsão no art. 6º da CF - se encontram positivados nos arts. 196 e ss. da nossa Lei Fundamental, integrando de tal sorte, também o título da ordem social, e não apenas o catálogo dos direitos fundamentais, entendemos não ser sustentável a tese de que os dispositivos não integrantes do catálogo carecem necessariamente de fundamentalidade. Com efeito, já se viu, oportunamente, que por força do disposto no art. 5º, § 2º, da CF, diversas posições jurídicas previstas em outras partes da Constituição, por equiparadas em conteúdo e importância aos direitos fundamentais (inclusive sociais), adquirem também a condição de direitos fundamentais no sentido formal e material, ressaltando, todavia, que nem todas as normas de ordem social compartilham a fundamentalidade material (e, neste caso, também a formal), inerente aos direitos fundamentais. Além disso, percebe-se, desde já, que as normas relativas aos direitos sociais do art. 6º da CF exercem a função precípua de explicitar o conteúdo daqueles. No caso dos direitos à saúde, previdência e assistência social, tal condição deflui inequivocamente do disposto no art. 6º da CF: 'São direito sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Além disso, poderia referir-se mais uma vez a íntima vinculação entre os direitos a saúde, previdência e assistência social e os direitos à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, renunciando, neste particular, a outras considerações a respeito deste aspecto”. (in A eficácia dos direitos fundamentais, 3ªed., Livraria do Advogado, 2003, Porto Alegre, p. 301/302). Os direitos fundamentais, consoante a moderna diretriz da interpretação constitucional, são dotados de eficácia imediata. A Lei Maior, no que diz com os direitos fundamentais, deixa de ser mero repositório de promessas, carta de intenções ou recomendações; houve a conferência de direitos subjetivos ao cidadão e à coletividade, que se vêem amparados juridicamente a obter a sua efetividade, a realização em concreto da prescrição constitucional. O princípio da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos fundamentais está encartado no § 1º, do art. 5º, da CF/88: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Muito se polemizou, e ainda se debate, sem que se tenha ocorrida a pacificação de posições acerca do significado e alcance exato da indigitada norma constitucional. Porém, crescente e significativa é a moderna idéia de que os direitos fundamentais, inclusive aqueles prestacionais, têm eficácia tout court, cabendo, apenas, delimitar-se em que extensão. Superou-se, assim, entendimento que os enquadrava como regras de conteúdo programático a serem concretizadas mediante intervenção legislativa ordinária. Desapegou-se, assim, da negativa de obrigação estatal a ser cumprida com espeque nos direitos fundamentais, o que tinha como conseqüência a impossibilidade de categorizá-los como direitos subjetivos, até mesmo quando em pauta a omissão do Estado no fornecimento do mínimo existencial. Consoante os novos rumos interpretativos, a par de dar-se eficácia imediata aos direitos fundamentais, atribuiu-se ao intérprete a missão de desvendar o grau dessa aplicabilidade, porquanto mesmo que se pretenda dar máxima elasticidade à premissa, nem sempre se estará infenso à uma interpositio legislatoris, o que não ocorre, vale afirmar, na porção do direito que trata do mínimo existencial.(...)

62

Merece lembrança, ainda, que a atuação estatal na concretização da sua missão constitucional deve orientar-se pelo Princípio da Máxima Efetividade da Constituição, de sorte que "à uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todos e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas pragmáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)." (JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional, 5ª edição, Coimbra, Portugal, Livraria Almedina, p. 1208). Incumbe ao administrador, pois, empreender esforços para máxima consecução da promessa constitucional, em especial aos direitos e garantias fundamentais. Desgarra deste compromisso a conduta que se escuda na idéia de que o preceito constitucional constitui lex imperfecta, reclamando complementação ordinária, porquanto olvida-se que, ao menos, emana da norma eficácia que propende ao reconhecimento do direito subjetivo ao mínimo existencial; casos há, inclusive, que a disciplina constitucional foi além na delineação dos elementos normativos, alcançando, então, patamar de eficácia superior que o mínimo conciliável com a fundamentalidade do direito. A escassez de recursos públicos, em oposição à gama de responsabilidades estatais a serem atendidas, tem servido de justificativa à ausência de concretização do dever-ser normativo, fomentando a edificação do conceito da "reserva do possível". Porém, tal escudo não imuniza o administrador de adimplir promessas que tais, vinculadas aos direitos fundamentais prestacionais, quanto mais considerando a notória destinação de preciosos recursos públicos para áreas que, embora também inseridas na zona de ação pública, são menos prioritárias e de relevância muito inferior aos valores básicos da sociedade, representados pelos direitos fundamentais. O Ministro CELSO DE MELLO discorreu de modo lúcido e adequado acerca do conflito entre deficiência orçamentária e concretização dos direitos fundamentais: "Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à 'reserva do possível' (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, 'The Cost of Rights', 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da 'reserva do possível' - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (...)”74

74 Decisão obtida no site http://www.stj.gov.br, acesso em 02.07.2007.

63

Em que pese as decisões apresentadas, a questão que se coloca acerca da

eficácia imediata dos direitos fundamentais não é tão pacífica na Corte Suprema,

especialmente no tocante aos direitos de defesa75 e aos direitos sociais na sua

dimensão prestacional. Todavia, como o último será analisado em capítulo próprio,

resta apenas enfrentar, neste momento, a eficácia em relação aos direitos de

defesa.

Em tese, não há distinção entre os direitos fundamentais clássicos e

aqueles exigentes de uma atuação positiva do Poder Público, portanto, o § 1º do

art. 5º da CF/88 incide tanto sobre os direitos de defesa quanto nos direitos sociais

prestacionais.

Por outro lado, as estruturas normativas que tratam de tais direitos são

distintas. Quando os direitos de defesa são violados, o que se exige do juiz, como

guardião da ordem constitucional, é simplesmente uma atuação de censura

judicial à ação do poder público, diferentemente do que ocorre em relação aos

direitos prestacionais, já que necessitam de uma atuação do Estado, ou seja,

manifestação legislativa.

Embora os argumentos sustentem a inquestionável natureza eficacial dos

direitos de defesa no que tange ao art. 5º, § 1º, da CF/88, não é este o

entendimento pacífico por parte do STF, que inobstante estar-se diante de um

direito de defesa, já sustentou a necessidade de uma atuação concretizadora do

legislador, por entender ser este um pressuposto do exercício do direito

fundamental. Tal fato ocorreu no julgamento do Tribunal Pleno do STF, no

Mandado de Injunção 20-DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 22/11/1996, que

entendeu que o direito de greve dos servidores públicos, por tratar-se de norma de

eficácia limitada, depende de concretização legislativa, portanto, o direito dos

75 São aqueles que reclamam uma atitude de abstenção dos poderes estatais e dos particulares. Como bem elucida José Joaquim Gomes Canotilho, os direitos de defesa cumprem sua função sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (Direito Constitucional, 6.Ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 541)

64

servidores somente poderia ser exercido na medida da lei. Segue trecho do

acórdão:

EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO - DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL - EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO - MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO - PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) - IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR - OMISSÃO LEGISLATIVA - HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO - RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL - IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE - ADMISSIBILIDADE - WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta - ante a ausência de auto- aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição - para justificar o seu imediato exercício. O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar referida - que vai definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público - constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna técnica, precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justifica a utilização e o deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal configura-se, objetivamente, quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legislativa - não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré-fixado para a edição da necessária norma regulamentadora - vem a comprometer e a nulificar a situação subjetiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos seus beneficiários. MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo, com a finalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição. Precedentes e doutrina. 76

Ingo Wolfgang Sarlet77 manifesta-se da seguinte forma acerca de tal

entendimento do STF:

Por derradeiro, em que pese certa contenção por parte do Supremo Tribunal Federal no que tange ao reconhecimento das amplas possibilidades que decorrem do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais – mesmo onde não se vislumbram obstáculos de maior relevância -, podemos concluir que em se tratando de direitos fundamentais de defesa, a presunção em favor da aplicabilidade imediata e a máxima da maior eficácia possível

76 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 19.07.2007. 77 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 293.

65

devem prevalecer, não apenas autorizando, mas impondo aos juízes e tribunais que apliquem as respectivas normas aos casos concretos, viabilizando, de tal sorte, o pleno exercício destes direitos (inclusive como direitos subjetivos), outorgando-lhes, portanto, sua plenitude eficacial e, conseqüentemente, sua efetividade. Além do mais, cumpre ressaltar que a eficácia dos direitos de defesa de longe não se esgota na perspectiva jurídico-subjetiva ora referida.

Conexo ao tema da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais,

está a questão da interpretação constitucional, sendo assim, os princípios de

interpretação especificamente constitucionais que se destacam e que atuam como

elemento norteador de todo ordenamento jurídico são: o princípio da supremacia

constitucional, o princípio da unidade constitucional, o princípio da presunção de

constitucionalidade das leis e dos atos do poder público, o princípio da

interpretação conforme à Constituição, e o princípio da razoabilidade.

Luís Roberto Barroso78 sustenta que:

O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que o legislador ordinário. Daí que, em uma perspectiva de avanço social, devem-se esgotar todas as potencialidades interpretativas do Texto Constitucional, o que inclui a aplicação direta das normas constitucionais no máximo do possível, sem condicioná-las ao legislador infraconstitucional. Essa tarefa exige boa dogmática constitucional e capacidade de trabalhar o direito positivo. Para fugir do discurso vazio, é necessário ir à norma, interpretá-la, dissecá-la e aplicá-la. Em matéria constitucional, é fundamental que se diga, o apego ao texto positivado não importa em reduzir o direito à norma, mas, ao contrário, em elevá-lo à condição de norma, pois ele tem sido menos que isso. O resgate da imperatividade do Texto Constitucional e sua interpretação à luz de boa dogmática jurídica, por óbvio que possa parecer, é uma instigante novidade neste país acostumado a maltratar suas instituições.

Michel Temer79 ao falar de interpretação constitucional afirma que:

Para a boa interpretação é preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. Impende examinar como o Constituinte posicionou determinados preceitos constitucionais. Alcançada, exegeticamente, essa valoração é que teremos os princípios. Estes, como assinala Celso Antonio Bandeira de Mello são mais do que normas, servindo como vetores para soluções interpretativas.

78 BARROSO, Luís Roberto, idem, 1996, p. 260. 79 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 8.Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 25.

66

Assim, é importante, na busca da boa interpretação constitucional, a

identificação dos princípios, vetores interpretativos.

A Constituição ocupa uma posição hierárquica superior em relação a todas

as demais espécies que formam a ordem jurídica. Na verdade, é a pirâmide de

Kelsen. As demais espécies buscam seu fundamento de validade, direta ou

indiretamente, na Constituição.

Somente com a supremacia tem-se uma relação vertical, podendo se

identificar qual norma é parâmetro, ou seja, norma em relação a qual é feito o

controle, e qual norma é objeto, ou seja, norma sobre a qual é feito o controle. Do

contrário, a relação seria horizontal entre Constituição e lei, não podendo

identificar quem é parâmetro e quem é objeto.

Todavia, essa supremacia somente se verifica onde exista Constituição

rígida, em que a Constituição só pode ser modificada por processo de reforma

constitucional. Sendo assim, eventual colidência entre Constituição anterior e lei

posterior, não cabe por ensejar revogação da Constituição.

Georges Burdeau80 realça que é somente no caso da rigidez constitucional

que se pode falar em supremacia formal da Constituição, acrescentando que a

previsão de um modo especial de revisão constitucional dá nascimento à distinção

de duas categorias de leis: as leis ordinárias e as leis constitucionais.

A supremacia constitucional traduz-se em uma superlegalidade formal e

material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária

da produção normativa. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de

toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da

Constituição. A inobservância dessas prescrições deflagra um mecanismo de

proteção da Constituição conhecido como controle de constitucionalidade.

Os Embargos Infringentes nº 2005.005.00525, da Segunda Câmara Cível

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgado em 05/04/2006,

reconheceu a isonomia de vencimentos e vantagens em relação aos Procuradores

do Município de Niterói e Procuradores do Instituto de Benefícios e Assistência

aos Servidores Municipais – IBASM, estabelecida pela Lei nº 1.259/94, com o

argumento de que diante da presunção de constitucionalidade das leis, impõe-se a

80 BURDEAU, Georges apud SILVA, José Afonso da, idem, 1992, p. 47.

67

aplicação daquela. Sendo assim, reformou-se o acórdão para reconhecer a

isonomia pretendida.

Na verdade, doutrina e jurisprudência já assentaram que a dúvida milita em

favor da lei, ou seja, a violação da Constituição há de ser manifesta e a

inconstitucionalidade nunca se presume.

Na ação direta de inconstitucionalidade, a pretensão é dirigida à declaração

de inconstitucionalidade; portanto, a parte pretende, a rigor, elidir a presunção

relativa de constitucionalidade que toda norma tem. Já na ação declaratória de

constitucionalidade a parte autora pretende converter a presunção relativa em

presunção absoluta de constitucionalidade; sendo assim, o autor não está indo

contra a norma, e sim a favor dela.

O Advogado-Geral da União será o curador da presunção de

constitucionalidade da norma impugnada – defensor legis, sendo essa a posição

do STF. Diz-se que essa atuação é plenamente vinculada; isso significa que o

Advogado-Geral da União é obrigado a defender a norma, ainda que,

pessoalmente, entenda que a norma é inconstitucional.

Ocorre que, em relação a ação declaratória de constitucionalidade a

posição do STF é de que não deverá atuar o Advogado-Geral da União, pois não

há o que se defender. Destaque-se, todavia, o argumento do Ministro Marco

Aurélio, que é voto vencido, no sentido da necessidade de atuação do Advogado-

Geral da União também na ação declaratória de constitucionalidade, uma vez que

se for esta julgada improcedente, a norma será declarada inconstitucional, tal

como seria se em uma ação direta de inconstitucionalidade tivesse pedido

procedente.

Luís Roberto Barroso fala em inaplicação por inconstitucionalidade que

refere-se à indagação se pode o Chefe do Poder Executivo de entidade de menor

abrangência (ex.: Governador deixar de aplicar uma lei federal por entendê-la

inconstitucional) deixar de aplicar uma norma de entidade maior por considerá-la

inconstitucional sem promover a referida ação. O Chefe do Poder Executivo tem o

poder-dever de defesa da Constituição, o que pode ser feito por qualquer

mecanismo, inclusive por esse. Assim, se o Estado deixar de aplicar uma norma

por entendê-la inconstitucional e depois vier a ser considerada constitucional e

isso causar danos, o ente responderá.

68

O Tribunal Constitucional alemão produziu o que ele chamou de Técnica de

Decisão, que são modos de decidir na ação direta de inconstitucionalidade, que

importam em mitigação da eficácia ex tunc, para justamente permitir que a decisão

se adeque ao caso concreto. A interpretação conforme à Constituição é uma

dessas técnicas.

A apelação cível nº 2005.001.44730, da Segunda Câmara Cível, do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgado em 23/11/2005, decidiu

acerca da seguinte situação: relação homossexual em que o empregado pretendia

incluir como dependente, em plano de saúde empresarial, companheiro seu, ao

fundamento de que viviam em união estável. Recusou-se a seguradora com base

no contrato. O argumento utilizado pela Segunda Câmara Cível foi a interpretação

conforme a Constituição, já que a CF/88 apenas reconhece união estável entre

homem e mulher (art. 226, § 3º), não sendo possível estender o conceito às

relações homo-afetivas para o fim de obrigar planos de saúde a incluírem-nas na

cobertura securitária sem previsão contratual. As seguradoras podem admití-las

como fato gerador de cobertura securitária em planos de saúde, mas não podem

ser a tanto obrigadas, sem expressa previsão contratual.

Na verdade, a interpretação conforme a Constituição ocorre quando tem-se

uma norma plurisignificativa, ou seja, uma norma com mais de um sentido

possível; além disso, a intenção do Tribunal não é de declarar a norma

inconstitucional, mas de salvá-la, portanto, o Tribunal afasta os sentidos

inconstitucionais, e deixa de declarar a norma inconstitucional desde que adote o

sentido que ele indica.

A interpretação conforme a Constituição é composta dos seguintes

elementos:

1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em

harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades

interpretativas que o preceito admita.

2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é

o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto.

3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se a exclusão expressa

de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado

contrastante com a Constituição.

69

4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constituição não é mero

preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de

constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da

norma legal.

Com base no princípio da unidade da Constituição é que a Segunda

Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgou, em

24/05/2006, a apelação cível nº 2006.001.16426, em que discutia-se, de um lado,

a liberdade de informação dos veículos de comunicação garantida pela

Constituição, e de outro, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e

imagem das pessoas, também protegidos pela Constituição.

Os direitos individuais, conquanto previstos na Constituição, não podem ser

considerados ilimitados e absolutos, em face da natural restrição resultante do

princípio da convivência das liberdades, pelo que não se permite que qualquer

deles seja exercido de modo danoso à ordem pública ou às liberdades alheias.

Ainda que noticiado fato importante para a sociedade, caracteriza abuso do

exercício regular do jornalismo a absolutamente dispensável imposição de

sacrifício ao direito à privacidade do personagem. Sendo assim, a divulgação, em

âmbito nacional, de aspectos constrangedores da vida privada de pessoa que não

intentava revelá-los e que jamais foi entrevistada pelo jornal, tendo este divulgado

seu nome e sobrenome sem sua autorização ou conhecimento, após acessar o

depoimento que a vítima de tortura prestara sigilosamente em procedimento

administrativo, caracterizou, diante do princípio da unidade constitucional,

violação a intimidade, vida privada, honra e imagem da pessoa.

Portanto, foi confirmada a decisão de 1º grau que condenou o agressor ao

pagamento de danos morais, indenização esta que se destina a desestimular a

reiteração do fato.

No que diz respeito ao princípio da razoabilidade, o conceito de

razoabilidade não é unívoco; há o conceito francês que equipara razoabilidade a

constitucionalidade, o conceito americano que divide a razoabilidade em interna e

externa, e o conceito alemão adotado pelo STF e falado por Luís Roberto Barroso.

Konrad Hesse, José Joaquim Gomes Canotilho e Gilmar Ferreira Mendes

dizem que razoabilidade é um gênero que se decompõe em três espécies:

adequação, necessidade e proporcionalidade, ou seja, o meio tem que ser

70

adequado, necessário e proporcional ao fim. Sendo assim, qualquer medida que

seja adequada, necessária e proporcional, é uma medida que se mostra razoável,

portanto, terá sua constitucionalidade aferida.

A adequação é a existência de relação adequada entre um ou vários fins

determinados e os meios com que são determinados. Já a necessidade é a

escolha dentre as soluções possíveis, em que deve-se optar pela menos gravosa.

E, finalmente, na proporcionalidade, leva-se em conta os interesses em jogo

(equilíbrio global entre as vantagens e desvantagens da conduta), vale dizer,

cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefíco da medida, isto é, da

ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Em

palavras de Canotilho81, trata-se de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para

se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens

do fim.

Luís Roberto Barroso82 assim define o princípio da razoabilidade:

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia, o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente far-se-á diante de certas circunstâncias concretas; será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios. Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além disso, há de se tomar em conta, também, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver entre esses elementos.

A 4ª Vara Federal do Ceará deferiu liminar no Mandado de Segurança nº

2002.81.00.012535-4, em que a Impetrante objetivava matrícula na Univerdade de

Fortaleza, tendo em vista que a matrícula foi indeferida por conta de apresentar, a

Impetrante, débitos na Impetrada, com o argumento de que a Lei nº 9.870/99, que

confere a prerrogativa de a instituição de ensino indeferir pedido de matrícula de 81 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, idem, 2006, p. 401 82 BARROSO, Luís Roberto, idem, 1996, p 208.

71

aluno em débito com a Universidade, é inconstitucional, pois viola o direito

fundamental de educação, não passando pelo teste da razoabilidade, em sua

vertente de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

No caso da norma analisada, apesar de ser ela adequada, pois a finalidade

a que ela se propõe é atingida (qual seja, facilitar a cobrança dos débitos), não

observa ela o critério de necessidade nem de proporcionalidade em sentido

estrito. A necessidade é violada, uma vez que a medida não é a “mais suave” para

solucionar o problema; afinal, impedir a matrícula é o modo mais extremo de se

obrigar o aluno a pagar seus débitos. Na verdade, a Universidade poderia se

utilizar de todas as formas em direito admitidas para cobrar o aluno,

principalmente a via judicial, não sendo necessário “expulsá-lo” da Universidade,

privando-o de exercer seu direito fundamental de educação. Logo, ao

impossibilitar a matrícula, está-se criando um meio excessivamente penoso para

que se leve a cabo a cobrança do débito. O meio é adequado, mas não

necessário.

A medida também não é proporcional em sentindo estrito. Isto porque não

há direito fundamental a se proteger ao se fazer tal exigência. Em outras palavras,

limita-se o direito fundamental à educação em nome de um mero interesse

(privado) da Universidade.

Hoje, o princípio da razoabilidade deixou de ser um conceito

exclusivamente de direito constitucional. Já se têm vozes, inclusive, se

manifestando quanto à possibilidade de controle judicial de mérito administrativo

(Diogo de Figueiredo Magalhães e Wilney Magno), além de controle judicial das

omissões administrativas (Marcos Mazelle Gouveia, Eduardo Santos Carvalho e

Carlos Bernardo Aaron), com base neste princípio.

Assim, buscou o presente tópico apresentar, de forma sucinta, a tríade que

se apresenta diante da análise do art. 5º § 1º da CF/88.

2. SUJEITOS, SAÚDE E ESTADO

2. 1 Direito fundamental à saúde

O conceito de saúde é fornecido pela Organização Mundial de Saúde

(OMS), no preâmbulo de sua constituição, datada de 26 de julho de 1946, que a

considera como "o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não

consiste somente na ausência de doença ou de enfermidade". Sendo assim, a

definição de saúde também abrange uma vida integrada na convivência social,

como elemento participante e receptivo dos benefícios da vida comunitária, tendo

como objetivo precípuo a qualidade de vida, que depende de um conjunto de

direitos inerentes às pessoas humanas e ao ambiente em que situam.

Francisco Carlos Duarte83 diz que o direito à saúde integra o conceito de

qualidade de vida, porque as pessoas em bom estado de saúde não são as que

recebem bons cuidados médicos, mas sim aquelas que moram em casas

salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar à luz,

crescer, trabalhar e morrer.

Germano Schwartz84 conceitua saúde como sendo um processo sistêmico

que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor

qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de

cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo

indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-

estar.

A figura do médico surgiu ao lado dos "mágicos", curandeiros ou feiticeiros,

e remonta ao ano de 4.000 a.C., entre os Sumérios, na Mesopotâmia, que

deixaram registrados seus conhecimentos médicos em placas de barro, contendo

receitas e históricos clínicos. O sistema centrava-se no médico e o doente surgia

sobretudo na posição de objeto da atuação daquele e menos na de sujeito

juridicamente ordenado em posição de paridade com o médico no âmbito de uma

83 DUARTE, Francisco Carlos. Qualidade de Vida: A Função Social do Estado. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, nº 41, junho/1994, p. 173. 84 SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Direito à Saúde: Efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p 89.

73

relação de prestação de serviço. O sistema orientava-se, no entanto, já

predominantemente por uma função de proteção do doente85.

A circuncisão feita pelos judeus, além de representar uma questão religiosa,

também demonstra a preocupação higiênica e preventiva que tinham e têm os

judeus até hoje.

Entre os gregos, o incentivo a práticas desportivas certamente se ligava à

idéia de equilíbrio orgânico, pelos elementos "força" e "beleza", para o almejado

equilíbrio entre corpo e alma, a que se somaram os conhecimentos científicos e a

notória atuação de Hipócrates (o "pai da medicina"). Sendo assim, afastou-se a

religião do campo das doenças. Para Hipócrates, as doenças deveriam ser

tratadas diferentemente, de acordo com as particularidades locais; fato este que

influenciou a saúde no Brasil, que é tratada de forma descentralizada.

O juramento de Hipócrates é uma declaração solene tradicionalmente feita

por médicos por ocasião de sua formatura. Acredita-se que o texto é de autoria de

Hipócrates ou de um de seus discípulos:

Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, os quais terei como preceitos de honra. Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre a minha vida e a minha arte, de boa reputação entre os homens. Se o infringir ou dele me afastar, suceda-me o contrário.

Todavia, com a Idade Média, houve um retrocesso na área da saúde,

retornando-se a tese de que a doença representava a purificação do pecado,

portanto, sua cura só viria quando merecida. No entanto, a própria Igreja Católica,

por volta de 1240, começou a trazer de volta os ensinamentos gregos. Mas, foi

apenas no século XVII que retorna-se, efetivamente, às origens gregas, passando

a saúde a ser tratada sob um prisma científico, surgindo a idéia de que saúde

significa ausência de doença.

Mas foi com a Revolução Francesa que se começa a pensar saúde como

um bem acessível a todos. Entretanto, com a Revolução Industrial, no século XIX, 85 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa: Lex Edições Jurídicas, 1991, p. 43.

74

ao conceito de saúde, soma-se a idéia de que esta tem como concepção, repor o

indivíduo ao trabalho.

Somada a medicina curativa, que tem por origem o individualismo liberal

que floresceu no século XIX, aliou-se a medicina preventiva, que tomou corpo com

o chamado "Estado do bem estar social" (welfare state), surgido após as grandes

guerras do século XX e as transformações sociais, para garantia de iguais

condições, de digna existência a todos os membros da sociedade.

O direito à saúde nasce, no plano do Direito público, com o reconhecimento

e garantia pelo Estado do direito à proteção da saúde. A par de bem individual,

atributo ou qualidade da pessoa, a saúde converte-se em riqueza coletiva, como

saúde pública. A fim de que ela seja defendida e incrementada, os poderes

públicos assumem novas obrigações, mas adquirem um novo título que lhes

permite intervir, regulamentar, autorizar, proibir ou fiscalizar. A instituição

hospitalar transforma-se ou converte-se em núcleo do sistema de saúde pública.

De estabelecimento dirigido à proteção dos doentes destituídos, ela passa a

centro público de diagnóstico e de prestação de cuidados médicos aberto a todos

e financiado pelo Estado86.

Surge, então, como órgão integrante da Organização das Nações Unidas

(ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, que simboliza o marco

teórico-referencial do conceito de saúde.

Mas, foi apenas em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do

Homem, que se assumiu posição solene em favor do direito à saúde, conforme

consta do seu artigo 25:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, ao vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

No mesmo sentido, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, de 1976, cuida do direito à saúde, apontando mecanismos para 86 ASCENSÃO, José de Oliveira, idem, 1991, pp. 43-44.

75

assegurar seu pleno exercício, de acordo com o que preceitua seu art. 12: "Os

Estados-partes no Presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de

desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental." Para o alcance dessa

proteção integral à saúde das pessoas, o Pacto estabelece a obrigação de os

Estados adotarem medidas que se façam necessárias para garantir, tais como: a)

a diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o

desenvolvimento são das crianças; b) a melhoria de todos os aspectos da higiene

do trabalho e do meio ambiente; c) a prevenção e o tratamento das doenças

epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas

doenças; d) a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e

serviços médicos em caso de enfermidade.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, conhecida como

Pacto de San José da Costa Rica, no seu art. 4º reconhece o direito à vida desde

a sua concepção, e no art. 5º diz que toda pessoa tem direito a que se respeite

sua integridade física, psíquica e moral.

O Brasil foi signatário tanto da Declaração Universal, quanto dos Pactos

acima referidos, todavia, inobstante o reconhecimento de tais documentos,

demorou a tomar providências legislativas internas que assegurassem aqueles

direitos declarados como dignos de proteção.

No que concerne especificamente ao direito à saúde, verifica-se

inexistência de disposições próprias no texto das Constituições brasileiras de 1824

e de 1891.

Na Carta de 1934, que tem notório fundo social, surgiram indicações de

preocupação sanitária, com a previsão de competência concorrente da União, dos

Estados e dos Municípios para adoção de "medidas legislativas e administrativas

tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade dos infantes; e de higiene

social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis" (artigo 138, letra

"f").

Contudo, a Constituição de 1937, não reproduziu o texto da Constituição de

1934, tampouco a Carta de 1946, embora o elenco de direitos individuais do seu

76

art. 141 contemple a "inviolabilidade dos direitos concernentes à vida", e normas

de cunho protetivo ao trabalhador, no art. 157, com menção a higiene e segurança

do trabalho (inciso VIII), assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica

preventiva ao trabalhador e à gestante (inciso XIV).

Mesmo sendo o Brasil signatário da Declaração Universal dos Direitos do

Homem, na Constituição de 1967, a única referência ao direito à saúde foi o art.

8º, XIV que delegou à União competência para estabelecer planos nacionais de

educação e saúde.

Todavia, foi com o advento da Constituição Federal de 1988, que a saúde

passou a integrar os chamados direitos sociais que se baseiam na igualdade entre

as pessoas, sendo portanto um direito do homem.

José Afonso da Silva87 define os direitos sociais como pressupostos para o

gozo dos demais direitos individuais, para o exercício efetivo da igualdade

garantida formalmente, ou seja, igualdade perante a lei (que a mesma lei se

aplique aos mesmos casos) e igualdade na lei (que a lei não sancione

discriminações injustificáveis).

Passou-se também a considerar as ações e serviços de saúde de

relevância pública:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.88(grifo nosso)

Sendo assim, a saúde faz parte do rol dos direitos fundamentais, que são

aqueles direitos inerentes ao princípio da dignidade da pessoa humana, sem os

quais não se consegue levar uma vida digna, à altura de todo ser humano,

conforme demonstrado e já reconhecido pelo STF em várias decisões, e cujo

exemplo vale a pena aqui transcrever:

EMENTA: ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo

87 SILVA, José Afonso da, idem, 1992, pp. 258-259. 88 Art. 6º, caput da CF/88.

77

valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental (...)89 (ADPF-QO 54/DF, Relator: Ministro Marco Aurélio, julgamento em 27/04/2005)

José Joaquim Gomes Canotilho90 alega que somente em alguns casos é

que os direitos sociais conferem aos cidadãos um direito imediato a uma

prestação efetiva, sendo necessário que tal decorra expressamente do texto

constitucional. É o que sucede, designadamente, no caso do direito à saúde.

Ademais, em capítulo próprio voltado à seguridade social, a Constituição

Federal de 1988 dedicou seção específica à saúde, estabelecendo o art. 196 o

seguinte:

A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Em consonância com o preceito maior, a Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre

as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização

e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências,

denominada de Lei Orgânica da Saúde, dispõe em seus arts. 2º, § 1º, 3º e 4º:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. ... Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

89 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 04.10.2007. 90 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, idem, 1993, p. 130.

78

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

Dentre as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), eis o que

preleciona o art. 7º, I e II:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; ...

Portanto, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho91, o direito à

saúde apresenta duas vertentes, uma de preservação da saúde e outra de

proteção da saúde. A primeira está relacionada à política que vise a redução do

risco de doença, isto é, direito a um meio ambiente sadio, enquanto que a

segunda, trata do direito individual à prevenção de doença, seu tratamento e à

recuperação do doente.

Como direito subjetivo público que é, a saúde é assegurada sempre por

meio do exercício de uma função administrativa. Já a sua realização concreta, na

forma de ações e serviços, pode ser levada adiante com o concurso da iniciativa

privada, sempre de forma complementar. Portanto, em sendo a saúde um direito

público subjetivo, é exigível contra o Estado e contra todos os que, mesmo que

entes privados, sob a chancela do Estado, a garantem. Ao Estado cabe a direção

da prestação de serviços e ações de saúde, devendo fixar as diretrizes e

parâmetros para o exercício destes, portanto, pode-se dizer que é limitada a

liberdade dos prestadores privados.

91 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988 – vol. IV. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

79

José Joaquim Gomes Canotilho92 reafirma a idéia de que o direito à saúde

é direito público subjetivo devido a sua dimensão subjetiva, e que há de se conferir

a todos os cidadãos um direito atual aos cuidados médicos de que necessitem nos

serviços públicos de saúde.

Tupinambá Miguel Castro do Nascimento93 diz que todo ser humano tem

direito público subjetivo contra o Estado relativamente às ações e serviços de

saúde. O dever do Estado, colocado no pólo passivo devedor, diz respeito a

medidas a serem tomadas na área da prevenção e, complementarmente, na da

recuperação (art. 196).

O detentor, ou seja, o beneficiário do direito à saúde, de acordo com o art.

196 da CF/88 e em homenagem ao princípio da universalidade dos direitos

fundamentais, é direito de todos; não tendo pois, sua titularidade restrita. Ademais,

por ser o direito à saúde um elemento do próprio direito à vida e a integridade

física e corporal, são, portanto, por sua natureza, direito de todos, relacionados a

qualquer pessoa humana, brasileira ou não.

O direito à saúde é um direito social, sendo considerado, inclusive, como tal

no art. 6º da CF/88, que está inserido no Capítulo II, do Título II, da CF/88, que

trata dos direitos e garantias fundamentais; integrando, portanto, a assim

denominada segunda dimensão94 (ou geração) dos direitos fundamentais.

92 CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa – Anotada – vol. 1. Rio de Janeiro: RT, 2007, p.123. 93 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal: Direitos e garantias fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 88. 94 Norberto Bobbio diz que, classicamente, os direitos fundamentais possuem três gerações ou dimensões, baseando-se na liberdade, igualdade e fraternidade, a saber: a primeira geração seriam os direitos influenciados pelo valor liberdade (ex.: direitos individuais), a segunda geração seriam os direitos influenciados pelo valor igualdade (ex.: direitos sociais) e a terceira geração seriam os direitos de solidariedade ou fraternidade (ex.: direitos difusos). Modernamente, concebeu-se a idéia de uma quarta geração, que para Eliana Calmon seriam os direitos ligados a manipulação do patrimônio genético (exs.: fertilização in vitro com escolha de sexo, alimentação trangênica e clonagem), já para Paulo Bonavides seriam os direitos ligados a globalização econômica (ex.: comércio entre países) e para Alberto Nogueira seriam os direitos ligados a tributação justa (ex.: capacidade contributiva). Silvio Motta reconhece a existência de uma quinta geração que seriam os direitos ligados a cibernética (ex.: internet). Para Germano Schwartz (idem, 2001, pp. 52-55), apesar de ser o direito a saúde considerado de segunda geração, nada impede que este seja também enquadrado como direito de primeira, terceira, quarta e quinta geração, pelos seguintes motivos: como direito de primeira geração ocorre em virtude de ser a saúde um pressuposto indispensável à vida, portanto, estando a saúde associado ao direito à vida; como direito de terceira geração reside o fato de não se ter como negar que é a saúde um direito difuso, já que inexiste determinação de seus titulares, e o bem jurídico é indivisível; como direito de quarta geração justifica-se pelo fato de que a saúde trata de questões sobre a vida e a morte, sobre cópia de seres humanos; e, por fim, como direito de quinta geração, pois a qualidade de vida pressupõe que o indivíduo possa ter acesso a todos os instrumentos que

80

Ingo Wolfgang Sarlet95 diz que ainda que a saúde não tivesse sido

positivada, mesmo assim deveria ser considerada direito fundamental implícito.

Pela sua inequívoca relevância sob o aspecto de garantia do próprio direito à vida, poder-se-á ter como certo que o direito à saúde, ainda que não tivesse sido reconhecido expressamente pelo Constituinte, assumiria a feição de direito fundamental não-escrito implícito, a exemplo, aliás, do que ocorre em outras ordens constitucionais, como é o caso da Argentina.

O mesmo autor96 em outra obra de sua autoria, alerta para o fato de que o

direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito

de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e

terceiros na saúde do titular, bem como impondo ao Estado a realização de

políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população,

tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem

com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de

medicamentos, realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e

qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde.

No Brasil, em razão da dura realidade social vivida pela maioria da

população, a maior parte dos atendimentos realizados, na área de saúde, é feito

pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com índices obtidos na Agência

Nacional de Saúde.

Entre 1999 e 2002 os atendimentos realizados pela rede suplementar de

saúde, passou de 41,5 milhões para 35 milhões de pessoas, o que corresponde a

20,3% da população brasileira. Dessas 35 millhões de pessoas, 44% de

beneficiários foram atendidos pelas operadoras de medicina de grupo97, um quarto

dos usuários por cooperativas98 e 29% por sistemas de autogestão99 e

seguradoras100.

satisfaçam seu particular estado de bem-estar, no qual os computadores e a internet podem atuar como um dos fatores de maior contribuição. 95 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 298. 96 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico nº 10, p. 8. (www.direitopublico.com.br) 97 Medicina de grupo refere-se à prestação de serviços médicos e hospitalares mediante a realização de contratos com os clientes dos quais são cobrados valores fixos, porém submetidos a reajustes periódicos. 98 As cooperativas atuam como os planos de medicina de grupo cobrando, também, uma taxa fixa per capita pelo serviço prestado.

81

Segundo a Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANHP), existem

cerca de 8 mil hospitais no país, dos quais 65% são particulares. Cerca de 13,5

milhões de brasileiros são atendidos anualmente nos hospitais privados, sendo

que 90% destes atendimentos estão ligados à pacientes de planos de saúde

privados. A oferta total de leitos nestes hospitais é de 500 mil ao ano, dos quais

82% pertencem à rede privada.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), 95% da população beneficiada pelos planos de saúde privada estão

concentrados nas zonas urbanas.

Tais índices demonstram a necessidade e a seriedade em que o assunto

saúde deve ser tratado no país, já que o maior número de atendimentos médico-

hospitalares são realizados pela rede pública e seus credenciados, e os jornais, a

todo instante, noticiam o descaso com que a saúde pública é tratada, atingindo,

portanto, a pretendida justiça social.

Como exemplo do caos vivido na saúde pública, pode-se citar o problema

enfrentado no Nordeste e noticiado pelo Jornal “O Globo”, do dia 26 de agosto de

2007, que dedicou duas páginas ao tema. Com dificuldades em todo o país, o

SUS vive dias de caos no Nordeste, principalmente em Pernambuco, Alagoas e

Paraíba. Pelo menos um bebê em Pernambuco e duas mulheres na Paraíba

morreram por falta de atendimento médico. Essas mortes chocaram e revoltaram

muitas pessoas que classificaram os médicos grevistas de insensíveis e

desumanos. Todavia, a crise na saúde pública não foi causada pelas greves e

sim o contrário. Além das reivindicações salariais, as greves deixam à mostra a

superlotação dos hospitais, a falta de leitos e verbas, os descasos, o mau

aproveitamento e o desvio do dinheiro que deveria ser aplicado na melhoria do

sistema de saúde. Falta tudo nos hospitais, nos corredores sobram pacientes,

mesmo em estado grave, aguardando vagas nas UTIs.

De acordo com o Sindicato dos Médicos de Pernambuco existem 560 leitos

desativados nos quatro principais hospitais públicos da região metropolitana de

Recife, enquanto corredores de hospitais como o da Restauração e Getúlio 99 Autogestão em saúde é o modelo em que a própria empresa ou organização administra o programa de assistência à saúde dos seus empregados e dependentes. Pode ser operado com recursos e serviços credenciados (convênios) ou de livre-escolha (reembolso). 100 As seguradoras são submetidas à regulação específica e operam apenas com planos privados de assistência à saúde.

82

Vargas vivem superlotados. O problema ocorre até em centros de referência como

o Procape (Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco) onde, pacientes como

João Ferreira da Silva, de setenta anos, portador de insuficiência cardíaca,

aguardava, sentado, há 48 horas uma vaga na UTI. O Procape tem duas

máquinas sofisticadas de hemodinâmica, avaliadas cada uma em US$ 1 milhão,

que não funcionam porque faltam simples catéteres. Elas estão instaladas há um

ano e há seis meses esperam licitação para a compra do material. Segundo a

diretora da Procape, Deuseny Tenório, o hospital possui 23 leitos de UTI, sendo

doze pós-operatórios, mas só dois funcionam por falta de médicos, enfermeiros e

remédios. No dia 22 de agosto de 2007, havia nos corredores dezessete doentes

em estado grave, com infarto, angina, dispnéia, dores cardíacas, aguardando vaga

na UTI.

Aí, vem a pergunta: e a CPMF, onde é que entra nisso? Dizem que

memória de brasileiro é curta, portanto, vale lembrar que o criador da tal

contribuição provisória/permanente, o cirurgião Adib Jatene, justificou-a como um

imposto necessário para resolver os problemas crônicos da saúde pública. O

tributo foi criado em 1993, então como Imposto Provisório sobre Movimentação

Financeira (IPMF). Seu objetivo declarado era ajustar as contas públicas e permitir

o lançamento do Real. Em 1996, a taxa renasceu, já com o nome de Contribuição

Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), desta vez para reforçar o

Fundo Nacional de Saúde. Ela deveria durar pouco e arrecadar recursos para

gastos emergenciais da área. Atualmente, o chamado "imposto do cheque" ajuda

a honrar desde o Bolsa Família até as pensões do INSS e a folha de pagamentos

do governo101.

O governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), decretou estado de

emergência na saúde, desde o mês de julho. O Conselho Regional de Medicina

101 O Jornal “O Globo” do dia 20 de setembro de 2007 apresentou um estudo do economista José Roberto Afonso, que mostra que o gasto com a saúde não se alterou com a contribuição, continuando, nos últimos dez anos, na faixa de 1,75% do Produto Interno Bruto (PIB). A CPMF não aumentou o gasto com a saúde, pois os governos desviaram os recursos já destinados à área para outras fontes, em vez de acumulá-los. Na verdade, a CPMF está indo mesmo para a Previdência e para o caixa geral da União. Embora o gasto federal esteja subindo cada vez mais, a evolução dos chamados “gastos sociais” mostra que os programas universais, que são educação e saúde, continuam no mesmo nível desde 2000, enquanto os benefícios como Previdência, renda mensal vitalícia, seguro-desemprego e bolsa família subiram muito. Isto quer dizer que o governo federal arrecada cada vez mais e gasta mais com benefícios.

83

aponta o déficit de mil médicos. Para o Sindicato dos Médicos, o número seria

maior: 1.200. O presidente do Sindicato dos Médicos de Alagoas, Wellington

Moura, afirma que, no seu Estado, o déficit também é grande, pois muitos

profissionais migram para Sergipe e Bahia, onde os salários são maiores. Na

Secretaria de Saúde de Pernambuco continuam abertas as inscrições para

médicos que estão sendo contratados sem concurso. Durante a greve, 131

pediram demissão e o Estado apelou a profissionais das Forças Armadas e fez

contratações temporárias. Para o presidente do Sindicato dos Médicos de

Pernambuco, Mário Fernando Lins, a greve serviu também para denunciar o caos

na saúde. O Presidente do Conselho Regional de Medicina, Carlos Vital Tavares,

afirma que a crise não é de ética dos médicos, é orçamentária (as verbas só são

liberadas nos últimos três meses do ano), de gestão e da falta de vontade política.

A crise não se instalou de modo abrupto nem repentino, vem se agravando e

chegou a um ponto de ruptura.

Pesquisa encomendada pelo sindicato da categoria mostrou que 33% dos

médicos entrevistados não fazem exames preventivos, que 65% têm dois ou mais

vínculos trabalhistas e que, embora trabalhem em média 46,8 horas semanais,

acham que a carga ideal não deveria exceder 40 horas. Dos médicos

entrevistados, 18% conhecem outros que são usuários de drogas, lícitas ou

ilícitas. Os que já presenciaram o consumo de drogas no meio relatam o uso de

morfina (34%), maconha (21%), álcool (16%) e cocaína (5%). Entre os

especialistas, o maior consumo foi observado entre os anestesiologistas (46%), na

clínica médica e cirurgia (10%), na ginecologia (8%) e na cardiologia (4%). Dos

entrevistados, 16% relataram doenças. Cerca de 70% afirmam que trabalham

demais e não são devidamente remunerados.

Em pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde e disponível no site da

referida instituição, constatou-se que foram financiadas pelo SUS 67,6% das

internações e apenas 24,3% tiveram participação parcial ou integral de planos e

seguros de saúde. A participação do SUS variou de 84 a 89% em Roraima,

Paraíba e Ceará, a 52% em São Paulo e 58% no Rio de Janeiro.

A fim de se conhecer melhor a realidade brasileira, o IBGE divulgou uma

síntese dos indicadores sociais de 2007, por meio de uma análise das condições

de vida da população brasileira, chegando aos seguintes dados: o valor médio do

84

rendimento familiar per capita , segundo os dados da PNAD 2006, ficou em torno

de R$ 596,00. Em metade das famílias, porém, o rendimento ficou abaixo de R$

350,00.

Gráfico – Rendimento médio mensal familiar per capita, em salários mínimos, dos

40% mais pobres e dos 10% mais ricos – Brasil – 1996/2006.

No caso do rendimento das famílias situadas nos quatro primeiros décimos

da distribuição de renda (as 40% mais pobres), o valor médio era R$ 147,00, ou

pouco menos de meio salário mínimo daquele ano. No último décimo, o

rendimento alcançou quase R$ 2.678,00, ou seja, 18 vezes mais. Considerando o

conjunto de cerca de 565 mil famílias correspondente ao 1% mais rico, o

rendimento médio era de R$ 7.688,00 per capita . Tais resultados evidenciam o

alto nível de desigualdade de renda no País.

Os serviços de saneamento básico prestados de forma adequada podem

garantir melhorias nas condições de vida da população. Assim, a pesquisa

classificou com saneamento adequado ou completo os domicílios com serviços

85

simultâneos de abastecimento de água por rede geral com canalização interna,

ligados à rede geral de esgotamento sanitário e/ou rede pluvial, e com serviço de

coleta de lixo diretamente no domicílio.

Em 2006, 61,5% dos domicílios urbanos brasileiros apresentaram tais

serviços. Nas Grandes Regiões, o cenário é bastante diferenciado: Norte, apenas

10,5%; Nordeste, 34,5%; e Centro-Oeste, 37,2%, enquanto Sudeste e Sul

apresentaram percentuais mais favoráveis (84% e 60,6%, respectivamente).

Quando se considera este atendimento segundo faixas de rendimento médio

mensal domiciliar per capita , observa-se que conforme aumentam as faixas de

rendimento cresce o percentual de domicílios atendidos pelos três serviços

simultaneamente: 40,2% dos domicílios atendidos situavam-se na faixa de até

meio salário mínimo per capita , aumentando nas seguintes, e chegando a 81,9%,

na faixa de mais de cinco salários mínimos per capita .

A falta de serviços simultâneos de saneamento foi analisada também nas

regiões metropolitanas. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 82,7% dos

domicílios tinham estes serviços, o que equivale a dizer que 675 mil domicílios não

possuíam tais serviços simultaneamente. Considerando a média de três pessoas

por domicílio nesta região metropolitana, pode-se estimar que cerca de dois

milhões de pessoas não dispunham destes serviços no conjunto da Região

Metropolitana do Rio de Janeiro. Para a Região Metropolitana de São Paulo, este

mesmo raciocínio significaria mais de três milhões de pessoas sem tal

atendimento.

A existência simultânea de serviços e bens, segundo a PNAD 2006, mostra

um quadro diferente. Ter ao mesmo tempo iluminação elétrica, telefone fixo, posse

de computador, geladeira, TV em cores e máquina de lavar roupa era privilégio de

apenas 18,5% do total de domicílios urbanos brasileiros. Vale dizer que, no

Sudeste e no Sul, aproximadamente um quarto dos domicílios possuíam tais

características que, de fato, refletem o nível de desenvolvimento socioeconômico

dessas regiões. Nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Curitiba, cerca de

32% dos domicílios possuíam esse conjunto de bens e serviços. Por outro lado, o

Norte e o Nordeste apresentavam percentuais muito baixos, em torno de 6%,

86

dados que confirmam as desigualdades regionais existentes na sociedade

brasileira.

Dalmo de Abreu Dallari102 , com grande propriedade, afirma que:

De fato, não basta a existência de serviços destinados à promoção, proteção e recuperação sanitária adequados e em número suficiente, nem a existência de normas legais prevendo todas as hipóteses de agravo à saúde pública, se o Estado não tiver atingido um nível tal de desenvolvimento sócio-econômico e cultural que lhe permita dispor de todos os recursos técnicos existentes, atender a todas as necessidades de infra-estrutura e possuir uma população educada para a saúde. Assim o Estado subdesenvolvido que não possui todos os recursos técnicos conhecidos para o tratamento de certas patologias, que não dispõe de meios econômicos para promover o saneamento ambiental ou que não educou sua população para a saúde, não pode atingir o mesmo nível sanitário daqueles desenvolvidos que já emprega tais recursos sócio-econômicos e culturais.

Ao Estado, portanto, cabe promover e zelar pelo respeito a saúde, mediante

uma postura ativa, sendo, portanto, devedor de uma proteção global dos direitos

fundamentais103. E, ao Judiciário, quando acionado, caberá promover e tentar

corrigir as desigualdades existentes. Neste sentido, Germano Schwartz104 atesta

que a atuação do Estado vem em um momento primeiro; o Judiciário age depois

da omissão ou comissão da prestação positiva estatal. Mas isso não significa que

o problema seja única e exclusivamente de alçada dos Poderes Públicos, já que a

saúde exige solução de e por todos.

2. 2 A efetividade dos direitos sociais prestacionais

Antes mesmo de se adentrar especificamente na questão da efetividade

dos direitos sociais prestacionais, urge tecer alguns breves comentários sobre os

direitos fundamentais prestacionais e sua classificação.

102 DALLARI, Dalmo de Abreu. Uma Nova Disciplina: o direito sanitário. Revista de Saúde Pública, São Paulo, nº 22 (4), p. 327-334, 1988, p. 330. 103 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 335. 104 SCHWARTZ, Germano André Doederlein, idem, 2001, p.162.

87

Os direitos fundamentais prestacionais foram previstos, pela primeira vez,

no ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição Federal de 1824 (arts. 179,

XXXI e XXXII)105, ainda que de forma acanhada. Mas, foi na Constituição Federal

de 1988 que os direitos fundamentais prestacionais foram alçados a um patamar

mais importante, inclusive passando a existir um capítulo próprio reconhecendo os

direitos sociais como direitos e garantias fundamentais.

Os direitos prestacionais apresentam algumas classificações, sem todavia

tais classificações representarem formas estanques, já que se complementam,

estando, portanto, interligados.

Segundo o objeto, dividem-se em direitos a prestações jurídicas ou

normativas, e direitos a prestações fáticas ou materiais.

Os direitos prestacionais também dividem-se em prestações em sentido

estrito que englobam os direitos sociais prestacionais (status positivus socialis), e

prestações em sentido amplo abrangendo os direitos de proteção, direitos à

participação na organização e no procedimento106.

Embora seja correta a ligação que se faz entre o status positivus socialis107

aos direitos fundamentais a prestações em sentido estrito, o conceito de direito

fundamental social não se restringe à dimensão prestacional, abrangendo também

as liberdades sociais, que podem ser conduzidas ao grupo dos direitos de defesa.

Todavia, os direitos de defesa e os direitos sociais, inobstante suas diferenças, se

105 Art. 179 da Constituição de 1824: “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...) XXXI – A Constituição também garante os socorros públicos. XXXII – A instrução primária, é gratuita a todos os Cidadãos (...).” Tais dispositivos revelam uma certa preocupação com o social. 106 Consideram-se direitos à emissão de determinadas normas procedimentais, além de interpretação e aplicação das normas sobre procedimento. 107 Segundo lição clássica de Jellinek, o indivíduo se situa em relação ao Estado de quatro maneiras, quais sejam: status passivo (status subjectionis), em que o indivíduo estaria subordinado aos poderes estatais, sendo, meramente detentor de deveres, e não de direitos, possuindo o Estado a competência de vincular o cidadão juridicamente por meio de mandamentos e proibições; status negativus, em que qualquer pretensão do Estado tem de ser fundada juridicamente, tornando-se o estado fático da liberdade num estado juridicamente reconhecido; status positivus (status civitatis), no qual ao indivíduo seria assegurada juridicamente a possibilidade de utilizar-se das instituições estatais e de exigir do Estado determinadas ações positivas, podendo-se enquadrar aí os direitos a prestações estatais, dentre eles os direitos sociais; status activus, em que o cidadão passa a ser considerado titular de competências que lhe garantem a possibilidade de participar ativamente da formação da vontade estatal.

88

complementam, já que ambos baseiam-se na idéia de que a dignidade da pessoa

humana, está intimamente ligada a busca da igualdade material ou substancial.

Os direitos sociais prestacionais objetivam promover uma compensação

das desigualdades sociais, pressupondo um comportamento ativo do Estado na

busca pela igualdade material que depende de uma implementação por parte do

Estado. Ademais, de acordo com lição de Ingo Wolfgang Sarlet108, os direitos

fundamentais sociais almejam uma igualdade real para todos, atingível apenas por

intermédio de uma eliminação das desigualdades, e não por meio de uma

igualdade sem liberdade, podendo afirmar-se, que, em certa medida, a liberdade

e a igualdade são efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais.

Os direitos de proteção são aqueles nos quais ao Estado incumbe o dever

de zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos

indivíduos, contra quem quer que seja. Já os direitos à participação na

organização e no procedimento, auxiliam na efetivação da proteção aos direitos

fundamentais, a fim de se evitarem os riscos de uma redução do significado do

conteúdo material dos direitos fundamentais, por meio da implementação de

procedimentos ou organizações em geral ou a possibilidade de participação em

procedimentos ou estruturas organizacionais já existentes. Desta forma, a

dimensão organizatória e procedimental se manifestam em razão do

reconhecimento de uma democracia com cunho participativo, portanto, cabe ao

Estado, especificamente ao legislador, estabelecer procedimentos a fim de

garantir aos indivíduos a participação efetiva na organização e no procedimento.

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho109, o legislador é quem irá, na maior

parte das vezes, criar as estruturas organizacionais e estabelecer os

procedimentos reclamados, de forma direta ou indireta, pelos direitos

fundamentais.

Ingo Wolfgang Sarlet110, no entanto, faz o seguinte comentário:

(...) os direitos a prestações de modo geral (em sentido amplo e restrito) se encontram a serviço de uma concepção globalizante e complexa do ser humano e de sua posição no e perante o Estado, que justamente parte do pressuposto de que a proteção da igualdade e da liberdade apenas faz

108 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 230. 109 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.Ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 651. 110 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, p. 220.

89

sentido quando não limitada a uma dimensão meramente jurídico-formal, mas, sim, enquanto concebida como igualdade de oportunidades e liberdade real de exercício da autonomia individual e de efetiva possibilidade de participação na formação da vontade estatal e nos recursos colocados à disposição da comunidade.

E, por fim, mas não menos importante, os direitos prestacionais dividem-se

em direitos derivados e originários. Os direitos derivados, na lição de Canotilho111,

têm como pressupostos o direito de igual acesso, obtenção e utilização de todas

as instituições públicas criadas pelos poderes públicos (ex.: igual acesso aos

serviços de saúde), e o direito de igual quota-parte (participação) nas prestações

fornecidas por estes serviços ou instituições à comunidade (ex.: direito de quota-

parte às prestações de saúde). Portanto, referem-se ao direito do cidadão à

participação igual nas prestações estatais, de acordo com as capacidades

existentes, bem como na concretização das normas definidoras de direitos

fundamentais à prestação pelo legislador ordinário; são aqueles em que as

posições jurídico-prestacionais já foram concretizadas pelo legislador. Desta

forma, ao particular, quando excluído da prestação existente, nasce o direito ao

acesso a prestação pretendida.

Quanto aos direitos originários, Canotilho112 sustenta que tais direitos

apenas existirão a partir da garantia constitucional de certos direitos, em que se

reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação dos pressupostos

materiais indispensáveis ao exercício efetivo desses direitos, e a faculdade de o

cidadão exigir, de forma imediata, as prestações constitutivas desses direitos.

Superada a questão dos direitos prestacionais e sua classificação, a

problemática enfrentada agora será restrita à questão da eficácia e aplicabilidade

dos direitos prestacionais em sentido estrito, ou seja, os direitos à prestações

materiais ou direitos sociais prestacionais, uma vez que no capítulo anterior, tal

tema foi abordado de forma mais abrangente.

Diferentemente dos direitos de defesa, em que a prestação do seu objeto

(vida, liberdade, intimidade etc.) podem ser resguardados, independentemente

das circunstâncias econômicas, nos direitos sociais prestacionais, como o que se

111 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, idem, 1993, p. 542. 112 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, idem, 1993, p. 543

90

busca é uma atuação positiva, culminando na destinação, distribuição ou criação

de bens materiais, constata-se uma dimensão economicamente relevante.

A neutralidade econômica-financeira dos direitos de defesa, refere-se ao

fato de que, apesar dos direitos fundamentais, inclusive os direitos de defesa,

demandarem, em algumas situações, medidas positivas do Estado, implicando,

então, na alocação de recursos materiais e humanos para sua efetivação, sem

contudo ter que se verificar a possibilidade econômica; em relação aos direitos

sociais prestacionais, deve-se verificar a possibilidade econômica dos órgãos

jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação do objeto reclamado.

Sendo assim, aos direitos sociais prestacionais está atrelada a idéia da

reserva do possível que abrange a possibilidade e o poder de disposição por parte

do destinatário da norma.

Ingo Wolfgang Sarlet113 sustenta que a reserva do possível apresenta pelo

menos uma dimensão tríplice, que abrange o seguinte:

(...) a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramenta para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional.

E aí surgem algumas questões básicas relacionadas à satisfação dos

direitos sociais e ao problema da escassez. A alocação de recursos envolve

interrogações múltiplas: Quem beneficiar? Quanto disponibilizar? Como investir?

Questões que, por si só, seriam objeto de uma dissertação.

Assim, em última análise, atender a um determinado direito implica negar

outro; direcionar recursos para uma pretensão “X” pode significar deixar de

113 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, pp. 301-302.

91

atender a pretensão “Y”, que pode ser tão fundamental quanto aquela. A questão

da alocação de recursos transforma-se em uma verdadeira “escollha de Sofia”, em

que optar pela realização de uma determinada despesa importa reduzir ou

suprimir recursos para uma outra atividade.

Quando o dilema apresenta-se na área da saúde, a questão pode tornar-se

ainda mais grave, já que a satisfação do direito à saúde depende de meios

materiais que, entretanto, são finitos, surgindo, então, a escassez. Tal escassez

vai além dos recursos financeiros e atingem também os recursos não mentários,

como órgãos, pessoal especializado, equipamentos, dentre outros.

Como bem expõe Gustavo Amaral114:

a escassez é inerente às pretensões positivas e de modo ainda mais acentuado quanto à saúde. Ante a escassez, torna-se imperiosa a adoção de mecanismos alocativos. A alocação, notadamente no que tange à saúde, tem natureza ética dupla: é a escolha de quem salvar, mas também a escolha de quem danar. É importante dizer que as escolhas, quando se referem às elaborações das leis orçamentárias, recaem não apenas sobre a indagação acerca da área a ser beneficiada, mas também acerca de quanto e de como investir. A questão que se põe é se há total liberdade nas opções das políticas públicas ou se poderá o Judiciário realizar o controle dessas políticas públicas.

A corrente majoritária, encabeçada por Hely Lopes, José dos Santos

Carvalho Filho e Jessé Torres, dentre outros, é no sentido de que é impossível o

controle judicial de omissão administrativa, visto que o controle judicial seria

reduzido à ação administrativa, porém, mesmo assim, sem alcançar o mérito. A

fundamentação é devida ao princípio da separação dos poderes, em que o

Judiciário não poderia imiscuir-se em assuntos da Administração Pública. Neste

sentido, destacam-se duas decisões que corroboram tal entendimento, sendo uma

proferida pelo STJ e outra pelo STF:

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER IMPOSTA AO MUNICÍPIO. Inobstante para a Administração Pública figurar como réu na ação civil pública, há carência de ação, pela impossibilidade jurídica do pedido, se esta visa obrigá-lo a realizar determinada obra. Ao Poder Executivo Municipal, na sua atuação constitucional discricionária, cumpre eleger, segundo sua exclusiva conveniência e oportunidade, quais as obras

114AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. pp.180-181.

92

que devem executar, segundo prévia dotação orçamentária. Remessa e apelo conhecidos e improvidos115. EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPI. CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS. ALÍQUOTAS REGIONALIZADAS. LEI 8.393/91. DECRETO 2.501/98. ADMISSIBILIDADE. 1. Incentivos fiscais concedidos de forma genérica, impessoal e com fundamento em lei específica. Atendimento dos requisitos formais para sua implementação. 2. A Constituição na parte final do art. 151, I admite a “concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país”. 3. A concessão de isenção é ato fundado em juízo de conveniência e oportunidade, implementa suas políticas fiscais e econômicas e, portanto a análise de seu mérito escapa do controle do Poder Judiciário. 4. Não é possível ao Poder Judiciário estender isenção a contribuintes não contemplados pela lei, a título de isonomia. 5. Recurso Extraordinário não conhecido116.

Entretanto, já há vozes, embora isoladas, no sentido de se admitir o

controle das políticas públicas, como é o caso de Marcos Maselli Gouvêa, sob o

argumento de que se de um lado está o art. 2º da CF/88, por outro, há o art. 37 da

CF/88. Portanto, pode-se admitir uma restrição da separação de poderes em

relação a eficiência administrativa. Mas, o fato é que na jurisprudência dos

Tribunais Superiores, as decisões favoráveis encontradas são em relação à

omissão administrativa, quando refere-se a distribuição gratuita de medicamentos

a hipossuficientes; mas o argumento utilizado é com base no direito à vida e ao

princípio da dignidade da pessoa humana.

Outra questão que se coloca é se a ausência de recursos pode tornar

legítima a recusa do Estado em cumprir os deveres correlatos aos direitos sociais.

E aí, a questão orçamentária não pode ser tratada como um problema secundário

ou meramente burocrático. Na lição de Ricardo Lobo Torres117, o orçamento

público é também algo previsto constitucionalmente, correspondendo aos

importantes imperativos de transparência e racionalização da gestão financeira.

Portanto, os envolvidos na implementação dos direitos prestacionais devem

buscar o caminho de analisar com realismo as possíveis limitações econômicas do

ente público e, se estas de fato não impossibilitam a consecução do direito visado;

aos julgadores caberá apreciar a questão sob uma ótica macroscópica. Segundo

115 AgRg no Ag 138.901/GO, Relator Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgamento em 15.09.1997. Decisão obtida no site http://www.stj.gov.br, acesso em 27.09.2007. 116 RE 344.331/PR, Relatora Ministra Ellen Gracie, Primeira Turma, julgamento em 11.02.2003. Decisão obtida no site http://www.stf.gov.br, acesso em 27.09.2007. 117 TORRES, Ricardo Lobo. O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p.41.

93

entendimento de Marcos Maselli Gouvêa118, entre aderir ao conformismo de nada

fazer em face do argumento da reserva do possível e atuar impulsivamente,

desconsiderando ingenuamente as contingências econômicas necessariamente

envolvidas na concretização de uma prestação estatal positiva, não são poucos os

que trilham um terceiro caminho.

De qualquer forma, o véu da reserva do possível não pode se tornar um

óbice à efetivação dos direitos sociais, por não se tratarem estes, de um simples

apelo legislativo, mas, sobretudo, uma imposição constitucional de transformações

sociais, na medida em que essas forem necessárias para a efetivação desses

direitos.

O direito à saúde, ainda que de forma parcial e não-satisfatória, já foi objeto

de concretização por parte do legislador (havendo leis que dispõem sobre a

organização e benefícios do SUS e fornecimento de medicamentos), todavia,

permanecem os questionamentos em relação aos direitos subjetivos a prestações

nos limites econômicos, bem como a possibilidade ou não de se extrapolar os

limites impostos pela legislação infraconstitucional. O fato é que, havendo

escassez de recursos e de meios, o Direito precisa estar aparelhado para dar

respostas.

Gustavo Amaral119 diz que um dos mais importantes desafios aos modernos

sistemas de saúde é a alocação de recursos. Os recursos para cuidados de saúde

têm que ser alocados em um sistema de saúde no contexto de escassez e

incerteza. Recursos para saúde são alocados por meio de decisões profissionais e

econômicas, mas os resultados gerados por esses mecanismos muitas vezes

originam litígios. Esses litígios são freqüentemente resolvidos por instituições de

direito e por meio do Judiciário, em particular.

Lênio Streck120 lembra que é possível utilizar o Judicário para o

desenvolvimento de políticas públicas, ou seja, por meio dele é possível exigir das

autoridades que cumpram seus deveres, que tomem atitudes.

Sendo assim, o princípio da reserva do possível deve ser sopesado diante

da preservação da vida e da dignidade da pessoa humana; devendo o Estado 118 GOUVEA, Marcos Maselli. Controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas de implantação dos direitos prestacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 384. 119 AMARAL, Gustavo, idem, 2002, pp. 142-143. 120 STRECK, Lenio Luiz. A Necessária Constitucionalização do Direito: o óbvio a ser desvendado. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, nº 9/10, dez/1998, p. 51-67, p. 59.

94

garantir ao indivíduo a segurança de sua vida. Ademais, o objeto do direito social

da saúde é a prestação sanitária, e não a pecuniária.

Neste sentido, tem-se a decisão proferida no Tribunal de Justiça do Estado

Rio de Janeiro, agravo de instrumento nº 1999.002.12096, Nona Câmara Cível,

Relator Desembargador Marcus Tullius Alves, julgado em 02/05/2000:

EMENTA: SAÚDE PÚBLICA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS POR ENTIDADE PÚBLICA MUNICIPAL PARTICIPANTE DO SUS. CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA EM PLEITO ORDINÁRIO. DIREITO À VIDA. DEVER COMUM DOS ENTES FEDERADOS. ARTS. 196 E 198 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTES PRETORIANOS. AUSÊNCIA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA QUE NÃO PODE PENALIZAR O CIDADÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO. DECISÃO CONFIRMADA. As entidades federativas têm o dever ao cuidado da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadores de deficiência de saúde, a teor do disposto no art. 23 da Constituição Federal. Assim, não se pode prestar à fuga de responsabilidade a mera arguição de violação ao princípio do orçamento e das normas à realização de despesa pública, quando verificado que o Estado na condição de instituição de tributo especial dirigido a suplementar verbas da saúde não o faz com competência devida.

Ana Paula de Barcellos121, tentando responder a essa intrincada questão,

diz que os recursos públicos disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no

atendimento de fins considerados essenciais pela Constituição, bem como de

seus objetivos fundamentais, sendo necessário identificar quais são as prioridades

apontadas pela Lei Maior. Sendo a dignidade da pessoa humana o valor

fundamental da República Federativa do Brasil, conclui a autora que os direitos

sociais que representam o núcleo material da dignidade deverão possuir

prioridade na destinação orçamentária. Esse núcleo - que é chamado de mínimo

existencial - deverá ser efetivado pelo Estado, entregando ao titular do direito

condições materiais para uma existência digna, sob pena de se afetar a

legitimidade do poder estatal. Portanto, primeiro procede-se à aplicação dos

recursos conforme as prioridades definidas na Constituição, que integram o núcleo

material da dignidade humana, chamado de mínimo existencial. Os direitos sociais

que não compõem esse núcleo estariam sujeitos aos recursos remanescentes e

121BARCELLOS, Ana Paula de. Educação, Constituição, Democracia e Recursos Públicos. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. 12, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

95

dependentes das deliberações políticas. Sendo assim, o mínimo existencial está

interligado à dignidade humana.

Além disso, Constituição não respeitada não é verdadeira Constituição, é

Constituição aparente. Não basta, portanto, simplesmente promulgar uma

Constituição e torná-la vigente de modo formal. Impõe-se dar-lhe eficácia e

obediência, a fim de que a mesma seja uma verdadeira Constituição e que seja

totalmente cumprida122. Neste sentido, Clèmerson Merlin Clève123 diz que:

Por isso a Constituição, atualmente, é o grande espaço, o grande locus, onde se opera a luta jurídico-política. O processo constituinte é um processo que se desenvolve sem interrupção, inclusive após a promulgação, pelo poder constituinte, de sua obra. A luta, que se travava no seio da Assembléia Constituinte, transfere-se para o campo da prática constitucional (aplicação e interpretação). Afirmar esta ou aquela interpretação de determinado dispositivo constitucional, defender seu potencial de execução imediata ou apontar a necessidade de integração legislativa, constituem comportamentos dotados de claríssimos compromissos ideológicos que não podem sofrer desmentido. No Brasil contemporâneo, constitui missão do operador jurídico produzir a defesa da Constituição. A Constituição brasileira, tão vilipendiada, criticada e menosprezada, merece consideração. Sim, porque aí, nesse documento mal escrito e contraditório, o jurista encontrará um reservatório impressionamente de argumentos justificadores de renovada ótica jurídica e da defesa dos interesses que cumpre, para o direito alternativo, defender.

Marcos Maselli de Gouvêa124 por sua vez, desenvolve o tema da

sindicabilidade dos direitos prestacionais, concluindo que:

A teoria dos direitos fundamentais desponta nos dias de hoje como conceito-chave de nodal importância para a sindicação das prestações materiais do Estado. Além de eventualmente suprir omissões no rol traçado legal e constitucionalmente e de densificar posições jurídicas positivadas de modo incompleto ou vago, ela determina a prioridade das prestações abrangidas no âmbito do mínimo existencial sobre outros encargos do poder público. Este critério jurídico de prioridade é o que permite ao magistrado superar os obstáculos doutrinários da reserva do possível e da separação de poderes.

Na verdade, a reserva do possível atua como espécie de limite jurídico e

fático dos direitos fundamentais, além de sua atuação como elemento de

ponderação entre direitos fundamentais conflitantes, onde a indisponibilidade de

122 DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 86. 123 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria Constitucional e o Direito Alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória, in Uma Vida Dedicada ao Direito: Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 37-38. 124 GOUVEA, Marcos Maselli, idem, 2003, p. 382.

96

recursos salvaguardará o núcleo essencial de outro direito fundamental.

Destaque-se que não há ofensa ao princípio da isonomia quando o Estado se

restringe aos recursos que efetivamente dispõe, uma vez que, ao preferir uns em

relação a outros, há o controle da razoabilidade.

No tocante ao mínimo existencial, diversos autores têm relacionado quais

os direitos que estariam inseridos na caracterização do mínimo existencial.

Para Ana Paula de Barcellos125, o mínimo existencial, configurado como

núcleo irredutível da dignidade da pessoa humana, é composto de quatro

elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a

saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Já na

concepção de Ricardo Lobo Torres, os direitos referentes ao mínimo existencial

incidiriam sobre um conjunto de condições que seriam pressupostos para o

exercício da liberdade, concepção análoga à desenvolvida por Rawls. Ricardo

Lobo Torres126 assim declara:

Os direitos à alimentação, saúde e educação, embora não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive. Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não fundamental (direito à saúde, à alimentação etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que torna difícil estremá-lo, em sua região periférica, do máximo de utilidade, que é princípio ligado à idéia de justiça e de redistribuição da riqueza social. (...) A proteção do mínimo existencial se fundamenta na liberdade, ou melhor, nas condições iniciais para o exercício da liberdade, na idéia de felicidade, nos direitos humanos e no princípio da igualdade. Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.

Ingo Wolfgang Sarlet, ao estudar a eficácia dos direitos fundamentais,

também aponta para a necessidade de reconhecimento de certos direitos

subjetivos a prestações ligados aos recursos materiais mínimos para a existência

de qualquer indivíduo. A existência digna, também estaria intimamente ligada à

prestação de recursos materiais essenciais, devendo ser analisada a problemática 125BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 258. 126 TORRES, Ricardo Lobo. Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 128-129.

97

do salário mínimo, da assistência social, da educação, do direito à previdência

social e do direito à saúde. Assim leciona Ingo Wolfgang Sarlet127:

... ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (daí, por exemplo, a proibição da pena de morte), mas também a ele se impõe o dever de proteger etivamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito (fundamental, ou não). Não nos parece absurda a observação de que negar ao indivíduo os recursos materiais mínimos para a manutenção de sua existência (negando-lhe, por exemplo, uma pensão adequada na velhice, quando já não possui condições de prover seu sustento) pode significar, em última análise, condená-lo à morte por inanição, por falta de atendimento médico etc. Assim, há como sustentar – na esteira da doutrina dominante – que ao menos na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador.

Gustavo Amaral128, analisando a escassez de recursos, assim expõe em

sua obra:

Se não há divisão nítida, como saber se a prestação é exigível incondicionalmente ou não? O mínimo existencial é o mesmo em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e interior de Alagoas e do Piauí? Se a resposta for positiva, então a escassez de recursos não estará sendo considerada. Se a resposta for negativa, então parecerá que foi incluída uma condição que afasta a exigibilidade incondicional.

Robert Alexy129, por sua vez, entende que:

A condição é que o interesse ou a carência seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito. A fundamentabilidade fundamenta, assim, a prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também perante o legislador. Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca o núcleo essencial da autonomia. Daqui são compreendidos não só os direitos de defesa liberais clássicos, senão, por exemplo, também direitos sociais que visam ao asseguramento de um mínimo existencial.

Diante do acima exposto pelos autores, conclui-se que os direitos que

abrangem o mínimo existencial, em sua maioria, são direitos sociais prestacionais,

provocando, justamente por isso, divergências quanto à sua eficácia.

127 SARLET, Ingo Wolfgang, idem, 2006, pp. 322-323. 128 AMARAL, Gustavo, idem, 2001, p.185. 129 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. Revista de Direito Administrativo, 217: 61, 1999.

98

Nas normas constitucionais de cunho programático enquadram-se todas as

normas que, em princípio, necessitam de uma concretização legislativa, e não têm

sua carga eficacial fixada abstratamente, por dependerem do conteúdo de cada

norma. Todavia, são tais normas também dotadas de eficácia, a medida que, a

despeito de se ter o ato concretizador, se encontram aptas a desencadear algum

efeito jurídico. Desta forma, nas normas programáticas as lacunas existentes são

secundárias e não devem criar obstáculos à realização do princípio que a mesma

expressa.

Neste sentido, tem-se o direito à saúde em que o constituinte consagrou a

promoção e proteção da saúde como uma tarefa do Estado, portanto como norma

impositiva de políticas públicas, assume a condição de norma de cunho

programático, mas que nem por isso deixa de ter sua carga eficacial.

José Carlos Vieira de Andrade130 diz que a existência de normas

programáticas, não significa que a liberdade de conformação do legislador seja

total e que os preceitos constitucionais que estabelecem os direitos socias não

tenham força jurídica. Fala-se, propositadamente, em imposições constitucionais e

não em normas programáticas para indicar que o legislador, além de estar

obrigado a agir, está vinculado jurídico-constitucionalmente pelas diretivas

materiais que expressamente ou por via de interpretação decorram das normas

que lhe impõem tarefas concretas.

Corroborando com a afirmação acima, tem-se as decisões do STF

proferidas no AI-AgR 604949/RS – Rio Grande do Sul, Relator Ministro Eros Grau,

julgamento em 24/10/2006, no AI-AgR 597182/RS – Rio Grande do Sul, Relator

Ministro Cezar Peluso, julgamento em 10/10/2006 e no AI-AgR 486816/RJ – Rio

de Janeiro, Ministro Carlos Veloso, julgamento em 12/04/2005, que reconheceram,

ao Estado, a obrigação de fornecer medicamentos à pacientes carentes de

recursos financeiros, todas baseando-se na decisão proferida no RE 271.286-

AgR, Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 12/09/2000, que dispõe o

seguinte:

130 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, p. 250.

99

EMENTA: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.131

O STJ também já reconheceu o direito à saúde como um dever do Estado,

conforme pode-se constatar nas decisões proferidas no Resp 625329/RJ – Rio de

Janeiro, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 03/08/2004, no Resp

904204/RS – Rio Grande do Sul, Relator Ministro Humberto Martins, julgamento

em 15/02/2007, e no Resp 890441/RS – Rio Grande do Sul, Relator Ministro José

Delgado, julgamento em 13/03/2007, respectivamente:

131 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 28.08.2007.

100

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM BÓCIO DIFUSO TÓXICO COM HIPERTIROIDISMO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. JULGAMENTO EXTRA E ULTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. 1. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 2. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão posto legítima e constitucionalmente garantida, uma vez assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida. A saúde, como de sabença, é direito de todos e dever do Estado. 3. Proposta a ação objetivando a condenação dos entes públicos ao fornecimento gratuito dos medicamentos necessários ao tratamento de bócio difuso tóxico com hipertiroidismo, resta inequívoca a cumulação de pedidos posto umbilicalmente interligados o tratamento e o fornecimento de medicamento. É assente que os pedidos devem ser interpretados, como manifestações de vontade, de forma a tornar o processo efetivo, o acesso à justiça amplo e justa a composição da lide. 4. A decisão que ante a pretensão genérica do pedido defere tratamento com os medicamentos consectários, não incide no vício in procedendo do julgamento ultra ou extra petita. 5. Recurso especial desprovido.132

EMENTA: FAZENDA PÚBLICA – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – TUTELA ANTECIPADA – ASTREINTES – CABIMENTO – ART. 461, § 5º, e DO ART. 461-A DO CPC – PRECEDENTES. (...) 2. A negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível, cuja ausência gera risco à vida ou grave risco à saúde, é ato que, per si, viola a Constituição Federal, pois a vida e a saúde são bens jurídicos constitucionalmente tutelados em primeiro plano. 3. A decisão que determina o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas de verdadeira observância da legalidade. 4. O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode fixar as astreintes contra a Fazenda Pública, com o objetivo de forçá-la ao adimplemento da obrigação de fazer no prazo estipulado. Recurso especial conhecido em parte e improvido.133

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. MEDICAMENTO ESPECÍFICO. RISCO DE MORTE. NÃO FORNECIMENTO PELO ESTADO. BLOQUEIO DE VALORES NECESSÁRIOS À AQUISIÇÃO. POSSIBILIDADE. ART. 461, § 5º, DO CPC. PROVIMENTO DO RECURSO. (...) Os fundamentos recursais indicam, em síntese, que: a) o acórdão infringiu o artigo 461, §§ 4º e 5º ao entender inaplicável à Fazenda Pública o depósito ou o seqüestro das verbas para cobrir os valores necessários ao

132 Decisão disponível no site http://www.stj.gov.br, acesso em 28.08.2007. 133 Decisão disponível no site http://www.stj.gov.br, acesso em 28.08.2007.

101

fornecimento dos medicamentos necessários à saúde da recorrente; b) a impenhorabilidade dos bens públicos deve ser mitigada devendo ser imposta a medida coercitiva pleiteada pela recorrente ao recorrido para que este cumpra obrigação de fazer determinada pelo Juízo; c) o Superior Tribunal Justiça tem posicionamento formado no sentido da possibilidade de se proceder ao bloqueio de contas públicas para o cumprimento de determinação judicial de fornecimento de medicamento necessário no tratamento de moléstias graves. Contra-razões pelo desprovimento do recurso. 2. Em situações reconhecidamente excepcionais, tais como a que se refere ao urgente fornecimento de medicação, sob risco de perecimento da própria vida, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é reiterada no sentido do cabimento do bloqueio de valores diretamente na conta corrente do Ente Público. No caso particular, os autos noticiam que, não obstante a determinação judicial, o Estado do Rio Grande do Sul não forneceu os medicamentos, encontrando-se a recorrente, desde agosto de 2005, sem receber o tratamento e em sério risco de morte, sem obter do Estado sequer a insulina comum, motivo pelo qual postulou o bloqueio dos valores necessários à sua aquisição por seis meses, o que lhe foi indeferido, propiciando a interposição de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo, o qual, também, foi denegado, sendo, no mérito, desprovido o recurso. 3. Com efeito, o art. 461, § 5º, do CPC, ao referir que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento da parte, para a efetivação da tutela específica ou para obtenção do resultado prático equivalente, “determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou cousas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”, apenas previu algumas medidas cabíveis na espécie, não sendo, contudo, taxativa a sua enumeração. De tal maneira, é permitido ao julgador, à vista das circunstâncias do caso apreciado, buscar o modo mais adequado para tornar efetiva a tutela almejada, tendo em vista o fim da norma e a impossibilidade de previsão legal de todas as hipóteses fáticas. É possível, pois, em casos como o presente, o bloqueio de contas públicas. 4. Recurso provido para determinar o bloqueio dos valores, na conta do recorrido, e sua imediata liberação para que a recorrente possa adquirir a medicação de que necessita.134

A concretização das normas constitucionais de cunho programático não

refere-se ao aspecto de seu conteúdo, vez que nos direitos de defesa também

pode-se deparar com normas contendo formulações de cunho aberto e vago,

utilizando-se, então, o órgão judiciário do recurso da interpretação. Assim sendo,

nos direitos sociais pretacionais de cunho programático, o problema é de natureza

competencial, abarcando a questão da disponibilidade dos meios para realizar tais

direitos, bem como a implementação e execução de políticas públicas na esfera

socioeconômica.

Além disso, constituem os direitos fundamentais prestacionais de cunho

programático, parâmetro de interpretação, integração e aplicação das normas, já

134 Decisão disponível no site http://www.stj.gov.br, acesso em 28.08.2007.

102

que contêm princípios, diretrizes e fins que condicionam e influenciam os órgãos

estatais.

Os direitos sociais têm como objetivo garantir ao indivíduo uma existência

digna, através da prestação de recursos materiais essenciais, a fim de se alcançar

as condições mínimas para uma existência com dignidade. Ademais, o princípio

da dignidade da pessoa humana, além de constituir um dos princípios

fundamentais da ordem constitucional (art. 1º, III da CF/88), foi alçado à condição

de finalidade precípua da ordem econômica (art. 170, caput da CF/88).

O direito à saúde, que corresponde a um dos direitos sociais previstos no

ordenamento constitucional, busca assegurar a preservação da própria vida

humana, inclusive na condição de sobrevivência física.

A saúde como direito de todos e dever do Estado, está intimamente ligada

ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, portanto, diversos aspectos e

não simplesmente o fornecimento de medicamentos, são abordados na questão

do direito subjetivo individual a prestações materiais, como, por exemplo, o

fornecimento de bens e serviços essenciais, especificamente o acesso às fontes

de água potável, energia elétrica, dentre outros.

Embora, anteriormente, a posição dos Tribunais Superiores fosse no

sentido de não reconhecer a saúde como direito subjetivo exigível em juízo, mas

como mero direito programático, não mais prepondera tais posições, conforme

pode-se constatar na decisão proferida no RMS 11183/PR do STF, cuja parte que

interessa aqui transcreve-se:

Diante da negativa/omissão do Estado em prestar atendimento à população carente, que não possui meios para a compra de medicamentos necessários à sua sobrevivência, a jurisprudência vem se fortalecendo no sentido de emitir preceitos pelos quais os necessitados podem alcançar o benefício almejado (STF, AG nº 238.328/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11/05/99; STJ, RESP nº 249.026/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 26/06/2000). (...) Despicienda de quaisquer comentários a discussão a respeito de ser ou não a regra dos arts. 6º e 196, da CF/88, normas programáticas ou de eficácia imediata. Nenhuma regra hermenêutica pode sobrepor-se ao princípio maior estabelecido, em 1988, na Constituição Brasileira, de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196). (...) Tendo em vista as particularidades do caso concreto, faz-se imprescindível interpretar a lei de forma mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao único desfecho justo: decidir pela preservação da vida.135

135 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 25.08.2007.

103

Desta forma, as garantias dos direitos sociais podem ser efetivadas por

diversas formas, segundo José Eduardo Faria136:

As garantias dos direitos sociais podem, por isso, ser efetivadas hoje por alguns caminhos que variam em natureza: quando se falar em direito público subjetivo o cidadão está habilitado, creio, a exigir do Estado seja a prestação direta, seja a indenização; quando se tratar de garantia geral os caminhos serão: por meio do Ministério Público (art. 129 da CF/88), promover a responsabilidade de autoridades que não estejam dando andamento a políticas e ações já definidas em lei (orçamentárias e programas) e regulamentos ou atos administrativos; as leis orçamentárias, incluídos os orçamentos da previdência social, poderão ser impugnadas por ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I) toda vez que contrariarem dispositivos constitucionais, como o art. 201, e seus parágrafos, ou o art. 212, e sua respectiva hierarquia (lei complementar referida no art. 163 da Constituição Federal, plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, orçamento anual); responsabilização do Presidente da República especialmente no caso do art. 85, VI e do art. 167, § 1º.

O Judiciário, provocado adequadamente, passa a ser um poderoso

instrumento de formação de políticas públicas, já que é este não um mero

solucionador de conflitos, mas, acima de tudo, um poderoso instrumento de

transformação social, que tem por objetivo a busca por uma igualdade social.

Todavia, não se pode perder o foco que, os intérpretes, por excelência, da

dimensão positiva dos direitos fundamentais, são o Legislativo e o Executivo.

Corroborando tal entendimento, Eros Roberto Grau137 assim preceitua:

O Juiz não é, tão-somente, a boca que pronuncia as palavras da lei. Está, ele também, tal qual a autoridade administrativa – e, bem assim, o membro do Poder Legislativo – vinculado pelo exercício de uma função, isto é, de um dever-poder. Neste exercício, que é desenvolvido em clima de interdependência e não de independência de Poderes, a ele incumbe, sempre que isso se imponha como indispensável à efetividade do Direito, integrar o ordenamento jurídico, até o ponto, se necessário, de inová-lo primariamente. O processo de aplicação do Direito mediante a tomada de decisões judiciais, todo ele – aliás – é um processo de perene recriação e mesmo de renovação (atualização) do Direito. Por isso que, se tanto se tornar imprescindível para que um direito com aplicação imediata constitucionalmente assegurada possa ser exeqüível, deverá o Poder Judiciário, caso por caso, nas decisões que tomar, não apenas reproduzir, mas produzir Direito – evidentemente retido pelos princípios jurídicos. Não se pretende, nisso, atribuir ao Judiciário o desempenho de funções que são próprias do Legislativo – ou seja, a de produção de ato legislativo – ou

136 FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1998, pp. 137-138. 137 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pp. 292-293.

104

mesmo do Executivo – ou seja, a de produção de ato administrativo. O que se sustenta – e, no caso, sob o manto do princípio da supremacia da Constituição – é, meramente, cumprir ao Poder Judiciário assegurar a pronta exeqüibilidade de direito ou garantia constitucional imediatamente aplicável, dever que se lhe impõe e mercê do qual lhe é atribuído o poder, na autorização que para tanto recebe, de, em cada decisão que a esse respeito tomar, produzir Direito. Não se predica, aí, a atribuição, a ele, indiscriminadamente, de poder para estatuir norma abstrata e geral.

No mesmo sentido, Gustavo Amaral138:

No que diz respeito às pretensões positivas, cabe ao Judiciário o controle do discurso, o controle das condutas adotadas por aqueles que ocupam função executiva ou legislativa. Não cabe ao magistrado fazer a mediação fato-norma, seja pela subsunção ou pela concreção. Cabe-lhe, isto sim, projetar o conteúdo de pretensão positiva em que está investido o particular para, depois, contrastando o teor dessa pretensão com a realidade fática, verificar se há violação potencial. Havendo a violação potencial, cabe ao magistrado, então, questionar as razões dadas pelo Estado para suas escolhas, fazendo a ponderação entre o grau de essencialidade da pretensão e o grau de excepcionalidade da situação concreta, a justificar, ou não, a escolha estatal.

Além do que, não poderá o Judiciário perder de vista o princípio da

dignidade da pessoa humana, fonte primordial e princípio norteador de todos os

demais, bem como o ideário da sociedade e da CF/88, qual seja, construir uma

sociedade mais justa e igualitária. Para tanto, ao Judiciário, caberá decidir não

necessariamente pelo que é melhor, mas sim pelo que é devido.

É fato que a efetivação do direito à saúde perspassa por diversos

interesses, dentre os quais os políticos; todavia, em sendo um direito público

subjetivo e fundamental, a saúde deve ser resguardada diante da inércia estatal,

por estar intimamente ligada com o bem maior que é a vida, devendo esta ser

digna; e, não há que se falar em vida digna sem saúde.

Outro ponto importante é no tocante à proteção à saúde, direcionada

aqueles que não podem arcar com a manutenção de sua saúde, sem

comprometer o sustento próprio e/ou de sua família. Este, inclusive, tem sido o

entendimento dos Tribunais, conforme pode-se constatar das decisões

apresentadas no presente trabalho, nas quais têm-se assegurado o acesso à

saúde aos necessitados, e que alguns exemplos vale a pena transcrever:

138 AMARAL, Gustavo, idem, 2001, p. 208.

105

A legislação gaúcha (...) representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade139. No caso dos autos, assentou-se a impossibilidade material de o Agravado adquirir os medicamentos excepcionais próprios ao tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS) (...) Nego provimento ao agravo140. Porém, por tratar-se de pessoa carente, despojada de recursos financeiros para efetuar a aquisição do medicamento de custo muito elevado – R$ 1.188,47 (hum mil, cento e oitenta e oito reais e quarenta e sete centavos) – 50 mg, 4X14 – de acordo com a listagem de preços da Revista ABC Farma, da Associação Brasileira de Coméricio Farmacêutico para Farmácias, Drogarias e Empresas do Setor (junho/2000, ano 8, nº 107, Portaria 37/92) – viu-se compelida a impetrar o presente mandamus a fim de garantir o tratamento inadiável141.

Quanto ao pólo passivo das ações envolvendo direitos prestacionais

fundamentais, como é o caso da saúde, os Tribunais têm aplicado uma

interpretação ampliativa, em que o encargo é solidário e exigível da União,

Estados e Municípios, conforme constata-se no Agravo de Instrumento nº

238.328-0/RS, Relator Ministro Marco Aurélio, e no Agravo de Instrumento nº

253.938/RS, Relator Ministro José Delgado, cuja parte que interessa, transcreve-

se a seguir:

(...) O preceito do art. 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. A referência, contida no preceito, a “Estado” mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes (...)142

139 RE 267.612/RS, Relator Ministro Celso de Mello. Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 25.09.2007. 140 AI-AgR 238.328/RS, Relator Ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgamento em 16.11.1999. Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 25.09.2007. 141 RMS 11.183/PR, Relator Ministro José Delgado. Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 25.09.2007. 142 Decisão disponível no site http://www.stf.gov.br, acesso em 27.09.2007.

106

(...) 2. São responsáveis, solidariamente, o Estado e o Município pelo fornecimento gratuito de medicamentos para o tratamento de doentes de AIDS e portadores do vírus HIV143.

Desta forma, com base nos dispositivos constitucionais do art. 23, II, art.

196 e art. 198, tem-se uma legitimidade passiva solidária do Município, Estado e

União.

O que se constata, diante de todas as decisões referentes à saúde

apresentadas no presente trabalho, é que a preocupação do direito é com a

correção jurídica da adjudicação dos direitos prestacionais, por meio do

reconhecimento pelo Judiciário, dos programas sociais.

Marx Ehrmann, poeta e advogado, escreveu o texto Desiderata, em 1927,

que resume a trajetória pela busca incessante da felicidade que, na verdade,

representa o ideário de todo ser humano, mas, para tal, necessário se faz uma

vida digna:

Viva tranqüilamente, por entre a pressa e os ruídos, e lembre-se de quanta paz há no silêncio. Tanto quanto possível, sem se render, esteja em bons termos com as pessoas. Diga sua verdade calma e claramente, e ouça os outros, mesmo os mais medíocres e ignorantes – eles também têm a sua história. Evite as pessoas espalhafatosas e agressivas, pois essas são um insulto ao espírito. Não se compare com os outros, para não se tornar vaidoso ou amargo, e saiba: sempre haverá pessoas melhores e piores que você. Desfrute tanto de suas realizações quanto de seus planos. Cultive seu trabalho, mesmo que ele seja humilde; esse é um bem real, frente às variações da sorte. Seja cauteloso em seus negócios, pois o mundo é cheio de armadilhas. Mas não deixe que isso o torne cego para a virtude, que está sempre presente; muitas pessoas lutam por ideais nobres e, por toda a parte, a vida é sempre exemplo de heroísmo. Seja sempre você mesmo. E sobretudo nunca finja afeição. Nem seja cínico em relação ao amor, pois, apesar de toda a aridez e desencanto, ele é tão perene quanto a relva. Aceite serenamente os ensinamentos do passar dos anos, renunciando suavemente àquilo que pertence à juventude. Fortaleça seu espírito para que ele possa protegê-lo diante de uma súbita infelicidade. Não antecipe sofrimentos pois muitos temores são apenas fruto do cansaço e da solidão. Mesmo seguindo uma disciplina rigorosa, seja leniente consigo. Você é filho do Universo, tanto quanto as árvores e as estrelas; e tem o direito de estar aqui. E mesmo que isso não seja muito claro para você, não tenha dúvida de que o Universo segue na direção certa. Portanto, esteja em paz com Deus, não importa a maneira como você O concebe, e sejam quais forem as suas lutas e aspirações, na terrível confusão que é a vida, fique em paz com sua alma. Pois, apesar de toda a falsidade e sonhos desfeitos, este ainda é um lindo mundo. Seja cauteloso. Lute para ser feliz.

143 Decisão disponível no site http://www.stj.gov.br, acesso em 27.09.2007.

107

E essa tal felicidade, tão sonhada e almejada por todos, desde os tempos

mais remotos, foi perseguida. Aristóteles144 já tratava da felicidade como uma

coisa divina:

... tendo em vista o fato de que todo conhecimento e todo trabalho visa a algum bem, procuremos determinar o que consideramos ser os objetivos da ciência política e o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação. Em palavras, quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem que esse bem supremo é a felicidade e consideram que o bem viver e o bem agir equivalem a ser feliz. ... Ela é buscada sempre por si mesmo e nunca no interesse de uma outra coisa; enquanto a honra, o prazer, a razão, e todas as demais virtudes, ainda que as escolhamos por si mesmas (visto que as escolheríamos mesmo que nada delas resultasse), fazemos isso no interesse da felicidade, pensando que por meio dela seremos felizes. Mas a felicidade ninguém a escolhe tendo em vista alguma outra virtude, nem, de uma forma geral, qualquer coisa além dela própria. ... mesmo que a felicidade não seja uma graça concedida pelos deuses, mas nos venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou exercício, ela parece incluir-se entre as coisas mais divinas, pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude parece ser o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoada.

O fato é que há muito sabe-se que saúde e doença, longe de serem

fatalidade ou destino, são processos históricos e sociais determinados pelo modo

como cada sociedade vive, organiza-se e produz. As profundas transformações

históricas e sociais que a sociedade brasileira vem atravessando, ao longo das

décadas, têm levado a profundas mudanças na produção e distribuição social dos

problemas de saúde.

Desse modo – afora as desigualdades, inclusive as regionais, urbanas e

rurais – os problemas de saúde, sua valoração social e gravidade também se

distribuem desigualmente, entre mulheres e homens, brancos, negros, amarelos e

indígenas, pobres e ricos, jovens e velhos, seja pelas diferentes origens sociais,

pela desigualdade de acesso às ações e serviços de saúde e demais políticas

sociais, em meio a processos muitas vezes contraditórios, em permanente

mudança.

Considerados aqui os problemas na dimensão coletiva, fica claro que sua

superação não é possível apenas mediante decisões de âmbito hospitalar ou de

assistência médica. Seu enfrentamento necessita da ação da Saúde Coletiva, com

144 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 19-31.

108

ênfase na promoção da saúde e na prevenção das doenças, do trabalho

interdisciplinar, em equipe, da ação intersetorial, que apenas são possíveis com a

participação e a luta social.

CONCLUSÃO

A vida e a saúde são os bens mais caros do ser humano, pressupostos,

aliás, do propósito, do gozo de todos os demais. Ciente disso, o constituinte

brasileiro fez constar, já no artigo 5º da CF/88, no qual estão arrolados os “direitos

e garantias fundamentais”, a “inviolabilidade do direito à vida”, e no capítulo

seguinte, ao dispor sobre os “direitos sociais”, incluiu entre eles a saúde.

O presente trabalho buscou apresentar, a problemática ainda hoje

encontrada no campo da saúde, que embora seja reconhecidamente tida como

um direito fundamental do homem – direito de todos e dever do Estado, vez que é

um dos elementos para se obter uma vida digna, ainda é necessário se socorrer

ao Poder Judiciário, a fim de se fazer efetivar tal direito.

O descaso com a saúde pode ter como vilões a ausência de políticas

públicas ou mesmo de vontade política, mas o fato é que as conseqüências para

tamanho descaso são gravíssimas e suportadas, mais uma vez, por grande parte

da população que não tem condições de arcar com as despesas de um plano de

saúde, sem comprometer o sustento de sua família. E que, portanto, se vê refém

do Estado, e tendo que mendigar algo que já é seu por direito. O fato é que o

problema da saúde não é falta de dinheiro, mas sim de gestão.

Atualmente, a saúde passou a ter um conceito muito mais amplo, pois não

se restringe apenas à cura, como antigamente, mas soma-se a própria qualidade

de vida, que para tal, há de ser digna.

É inegável o fato de ser a saúde um direito público subjetivo, oponível

contra o Estado-devedor, além de ser também um direito fundamental. Logo, o

preceito do art. 196 da CF/88, é uma norma auto-aplicável e de eficácia imediata,

sendo, portanto, a saúde, protegida por meio de todos os mecanismos jurídicos.

Apesar de o STF caminhar no sentido de proclamar as generalidades do

direito à saúde, não é possível esta eficácia irrestrita, devendo ser relativizada,

pois, embora seja um direito fundamental, não é este absoluto, já que as

necessidades são infinitas e os recursos escassos.

Sendo assim, ao Judiciário cabe a difícil tarefa de decidir e apreciar as

questões envolvendo a saúde sob uma ótica macroscópica, uma vez que

110

encontra-se em suas mãos o velho dilema de quem salvar e quem matar.

Portanto, ao contrário do que se poderia concluir, a questão orçamentária tem

grande relevância, devendo-se analisar com seriedade e realismo as possíveis

limitações econômicas do ente público e, se estas, de fato, não impossibilitam a

consecução do direito visado.

Como o direito à saúde está intimamente atrelado ao direito à vida e ao

princípio da dignidade da pessoa humana, as limitações orçamentárias deverão

ser sopesadas em face de tais princípios e diante do caso concreto. Ao SUS cabe

promover e recuperar a saúde de todos os brasileiros, independente de onde

moram e quais os seus sintomas.

O fato é que, tomando a saúde como exemplo, tem-se mais uma prova da

grande desigualdade existente no país, e, apesar de ser o princípio da igualdade

uma norma constitucional cogente, sua aplicação na realidade concreta da vida,

ainda está muito longe de se realizar eficazmente.

No Brasil, um país repleto das desigualdades mais variadas (sociais,

culturais, econômicas etc.), enfim, um país dividido pelas diferenças, não é

suficiente para a realização plena do princípio da igualdade a só identificação da

igualdade formal; necessário se faz sua concretização, por meio da igualdade

material.

Para tal, é preciso que a população tenha conhecimento de seus direitos, e

que os faça valer, já que a saúde é de e para todos. Como exemplo de tais

direitos, muitas vezes desconhecidos por grande parte da população, tem-se os

seguintes:

Ter acesso ao conjunto de ações e serviços necessários para a promoção,

a proteção e a recuperação da sua saúde.

Ter acesso gratuito aos medicamentos necessários para tratar e

restabelecer sua saúde.

Ter acesso ao atendimento ambulatorial em tempo razoável para não

prejudicar sua saúde.

Ter direito, em caso de risco de vida ou lesão grave, a transporte e

atendimento adequado em qualquer estabelecimento de saúde capaz de

receber o caso, independente de seus recursos financeiros.

111

Ser atendido, com atenção e respeito, de forma personalizada e com

continuidade, em local e ambiente digno, limpo, seguro e adequado para o

atendimento.

Ser acompanhado por pessoa indicada, se assim desejar, nas consultas,

internações, exames pré-natais, durante trabalho de parto e no parto. No

caso das crianças, elas devem ter no prontuário a relação de pessoas que

poderão acompanhá-las integralmente durante o período de internação.

Identificar as pessoas responsáveis direta e indiretamente por sua

assistência, por meio de crachás visíveis, legíveis e que contenham o nome

completo, a profissão e o cargo do profissional, assim como o nome da

instituição.

Ter autonomia e liberdade para tomar as decisões relacionadas à sua

saúde e à sua vida; consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e com

adequada informação prévia, procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou

outros atos médicos a serem realizados.

Se não estiver em condição de expressar sua vontade, apenas as

intervenções de urgência, necessárias para a preservação da vida ou

prevenção de lesões irreparáveis, poderão ser realizadas sem que seja

consultada sua família ou pessoa próxima de confiança. Se, antes, tiver

manifestado por escrito sua vontade de aceitar ou recusar tratamento

médico, essa decisão deverá ser respeitada.

Ter liberdade de escolha do serviço ou profissional que prestará o

atendimento em cada nível do sistema de saúde, respeitada a capacidade

de atendimento de cada estabelecimento ou profissional.

Participar das reuniões dos conselhos de saúde; das plenárias das

conferências de saúde; dos conselhos gestores das unidades e serviços de

saúde e outras instâncias de controle social que discutem ou deliberam

sobre diretrizes e políticas de saúde gerais e específicas.

Ter acesso a informações claras e completas sobre os serviços de saúde

existentes no seu município. Os dados devem incluir endereços, telefones,

horários de funcionamento, mecanismos de marcação de consultas,

exames, cirurgias, profissionais, especialidades médicas, equipamentos e

ações disponíveis, bem como as limitações de cada serviço.

112

Ter garantida a proteção de sua vida privada, o sigilo e a confidencialidade

de todas as informações sobre seu estado de saúde, inclusive diagnóstico,

prognóstico e tratamento, assim como todos os dados pessoais que o

identifiquem, seja no armazenamento, registro e transmissão de

informações, inclusive sangue, tecidos e outras substâncias que possam

fornecer dados identificáveis. O sigilo deve ser mantido até mesmo depois

da morte.

Ser informado claramente sobre os critérios de escolha e seleção ou

programação de pacientes, quando houver limitação de capacidade de

atendimento do serviço de saúde. A prioridade deve ser baseada em

critérios médicos e de estado de saúde, sendo vetado o privilégio, nas

unidades do SUS, a usuários particulares ou conveniados de planos e

seguros saúde.

Receber informações claras, objetivas, completas e compreensíveis sobre

seu estado de saúde, hipóteses diagnósticas, exames solicitados e

realizados, tratamentos ou procedimentos propostos, inclusive seus

benefícios e riscos, urgência, duração e alternativas de solução. Devem ser

detalhados os possíveis efeitos colaterais de medicamentos, exames e

tratamentos a que será submetido. Suas dúvidas devem ser prontamente

esclarecidas.

Ter anotado no prontuário, em qualquer circunstância, todas as

informações relevantes sobre sua saúde, de forma legível, clara e precisa,

incluindo medicações com horários e dosagens utilizadas, risco de alergias

e outros efeitos colaterais, registro de quantidade e procedência do sangue

recebido, exames e procedimentos efetuados. Cópia do prontuário e

quaisquer outras informações sobre o tratamento devem estar disponíveis,

caso solicite.

Receber as receitas com o nome genérico dos medicamentos prescritos,

datilografadas, digitadas ou escritas em letra legível, sem a utilização de

códigos ou abreviaturas, com o nome, assinatura do profissional e número

de registro no órgão de controle e regulamentação da profissão.

113

Conhecer a procedência do sangue e dos hemoderivados e poder verificar,

antes de recebê-los, o atestado de origem, sorologias efetuadas e prazo de

validade.

Ser prévia e expressamente informado quando o tratamento proposto for

experimental ou fizer parte de pesquisa, o que deve seguir rigorosamente

as normas de experimentos com seres humanos no país e ser aprovada

pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do hospital ou instituição.

Não ser discriminado nem sofrer restrição ou negação de atendimento, nas

ações e serviços de saúde, em função da idade, raça, gênero, orientação

sexual, características genéticas, condições sociais ou econômicas,

convicções culturais, políticas ou religiosas, do estado de saúde ou da

condição de portador de patologia, deficiência ou lesão preexistente.

Ter um mecanismo eficaz de apresentar sugestões, reclamações e

denúncias sobre prestação de serviços de saúde inadequados e cobranças

ilegais, por meio de instrumentos apropriados, seja no sistema público,

conveniado ou privado.

Recorrer aos órgãos de classe e conselhos de fiscalização profissional

visando a denúncia e posterior instauração de processo ético-disciplinar

diante de possível erro, omissão ou negligência de médicos e demais

profissionais de saúde durante qualquer etapa do atendimento ou

tratamento.

Na verdade, o que os exemplos deixam claro, é que tais direitos, embora

possam parecer existentes somente no papel; dependem para sua efetivação,

também, da atuação de cada cidadão.

Apesar de tudo, os direitos fundamentais, do qual a saúde faz parte, estão

vivendo o seu melhor momento no constitucionalismo brasileiro, no tocante ao seu

reconhecimento pelo ordenamento jurídico, bem como sua efetivação. Os direitos

fundamentais integram o núcleo essencial da Constituição. Desta forma, a

proteção dos direitos fundamentais passou a ser um dever de toda a sociedade e

não somente do Estado.

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