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1 OS OBSTÁCULOS AO ACESSO À JUSTIÇA E A INEFETIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO: PASSADOS VINTE ANOS, (AINDA) O NECESSÁRIO COMBATE AO (VELHO) POSITIVISMO Lenio Luiz Streck 1 RESUMO Passados dezoito anos desde a promulgação da Constituição do Brasil, parte considerável de suas “promessas” ainda não foram cumpridas. Nesse sentido, é importante discutir os obstáculos contrapostos à concretização desse conteudístico que une direito e política, que é a Constituição. E parece não haver dúvida de que o (velho) positivismo continua como forte elemento obstaculizador desta fase pós positivista. Palavraschave: acesso à justiça – jurisdição constitucional – positivismo jurídico discricionariedade 1. Interpretação e aplicação da Constituição no Brasil O século XX foi generoso para com o direito e a filosofia. No direito, o segundo pósguerra proporcionou a incorporação dos direitos de terceira dimensão ao rol dos direitos individuais (primeira dimensão) e sociais (segunda dimensão). Às facetas ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito agrega um plus (normativo e qualitativo): o direito passa a ser transformador, uma vez que os textos constitucionais passam a conter (co originariedade entre direito e moral) as possibilidades de resgate das promessas da modernidade, questão que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia como o Brasil, em que o welfare state não passou de um simulacro. Na filosofia, o linguistic turn (invasão da filosofia pela linguagem) operou uma verdadeira revolução copernicana no campo da compreensão (hermenêutica). A linguagem, entendida historicamente como uma terceira coisa “interposta” entre um sujeito e um objeto, passa 1 Doutor em Direito do Estado (UFSC); PósDoutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Professor do Programa de PósGraduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNESARJ; Professor Titular da UNISINOSRS.

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OS OBSTÁCULOS AO ACESSO À JUSTIÇA E A INEFETIVIDADE DA

CONSTITUIÇÃO: PASSADOS VINTE ANOS, (AINDA) O NECESSÁRIO

COMBATE AO (VELHO) POSITIVISMO

Lenio Luiz Streck 1

RESUMO

Passados dezoito anos desde a promulgação da Constituição do Brasil, par te considerável de suas “promessas” ainda não foram cumpr idas. Nesse sentido, é impor tante discutir os obstáculos contrapostos à concretização desse conteudístico que une direito e política, que é a Constituição. E parece não haver dúvida de que o (velho) positivismo continua como forte elemento obstaculizador desta fase pós­ positivista.

Palavras­chave: acesso à justiça – jurisdição constitucional – positivismo jur ídico ­

discricionariedade

1. Interpretação e aplicação da Constituição no Brasil

O século XX foi generoso para com o direito e a filosofia. No direito, o segundo

pós­guerra proporcionou a incorporação dos direitos de terceira dimensão ao rol dos

direitos individuais (primeira dimensão) e sociais (segunda dimensão). Às facetas

ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o

Estado Democrático de Direito agrega um plus (normativo e qualitativo): o direito passa

a ser transformador, uma vez que os textos constitucionais passam a conter (co­

originariedade entre direito e moral) as possibilidades de resgate das promessas da

modernidade, questão que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia

como o Brasil, em que o welfare state não passou de um simulacro. Na filosofia, o linguistic turn (invasão da filosofia pela linguagem) operou uma verdadeira revolução

copernicana no campo da compreensão (hermenêutica). A linguagem, entendida

historicamente como uma terceira coisa “interposta” entre um sujeito e um objeto, passa

1 Doutor em Direito do Estado (UFSC); Pós­Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Professor do Programa de Pós­Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNESA­RJ; Professor Titular da UNISINOS­RS.

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ao status de condição de possibilidade de todo o processo compreensivo. Torna­se possível, assim, superar o pensamento metafísico que atravessou dois milênios. Esse

giro hermenêutico, que pode ser denominado também de giro lingüístico­ontológico, proporciona um novo olhar sobre a interpretação e as condições sob as quais ocorre o

processo compreensivo.

Pois a revelia desta revolução paradigmática, as pesquisas sobre a interpretação

do direito em terras brasileiras continuaram atreladas aos cânones do esquema sujeito­

objeto, no interior do qual a linguagem tem sido visto como algo que fica à "disposição"

do sujeito­intérprete. Esta questão, aliás, levou Gadamer a fazer uma crítica ao processo

interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma

operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro conheço, depois interpreto, para só então aplicar).

Daí que a ruptura com o pensamento metafísico que sustenta esse modus

interpretativo dá­se pela idéia de antecipação de sentido, que ocorre no interior do

círculo hermenêutico, idéia chave na hermenêutica filosófica – no interior do qual o

intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e

explicitação do ser já exige uma compreensão anterior. Essa antecipação de sentido está

fundada na tradição; consequentemente, se a tradição produz uma baixa compreensão,

os pré­juízos daí exsurgentes causarão enormes prejuízos à interpretação constitucional.

Este parece ser o caso do Brasil. Pagamos o (alto) preço pelo passado “pequeno­

constitucional”.

Nesse contexto, é importante referir – para desmi(s)tificar velhas práticas ainda

presentes em parcela considerável da doutrina e da jurisprudência de terrae brasilis – que a noção de círculo hermenêutico, tão cara à essa revolução copernicana provocada

pelo giro lingüístico­ontológico, torna­se absolutamente incompatível com a assim

denominada – como quer a dogmática jurídica tradicional – “autonomia” de métodos,

cânones ou técnicas de interpretação e/ou de seu desenvolvimento em partes ou em

fases. Repetindo: o processo interpretativo não acontece aos pedaços, em partes, em

fatias. Interpretar é sempre aplicar 2 .

2 Para uma discussão mais aprofundada sobre a hermenêutica de matriz gadameriana­heideggeriana, ver meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007 e Verdade e Consenso – Hermenêutica, Constituição e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

3

Assim, não é por acaso que a doutrina caudatória do senso comum teórico dos

juristas – conceito cunhado por Luis Alberto Warat e que continua cada vez mais atual ­

inicia todas as discussões sobre hermenêutica jurídica reportando­se a um “método”,

capaz de “garantir” uma espécie de “supervisão epistemológica” no processo de

compreensão. Os métodos constituem­se, assim, em uma espécie de “super­ego”

hermenêutico. Transportando a afirmação para a linguagem da hermenêutica de cariz

filosófico, é como se o ôntico fosse “compreensível” de forma autônoma e fosse, ele

mesmo, o guia para alcançar o ontológico. É como se não houvesse transcendência

nessa “operação compreensiva”.

Por detrás de toda a discussão – pautada pela eterna busca dos juristas por uma

racionalidade fundamentadora do resultado da interpretação – está exatamente a

concepção tradicional de racionalidade calcada no fundamentum absolutum inconcussum veritatis que carateriza a(s) metafísica(s): a existência de um fundamento

último que satisfaria o raciocínio. No fundo, as súmulas são o resultado dessa pretensão

dogmática: produtos de uma autoprodução, tornam­se fundamentum inconcussum. Por isso, de há muito insisto na tese de que a hermenêutica filosófica – derivada da filosofia

hermenêutica – vem para romper com o esquema sujeito­objeto, representando, assim,

uma verdadeira revolução copernicana. Em outras palavras, venho tentando colocar em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento.

Em um universo que calca o conhecimento em um fundamento último e onde a

“epistemologia” é confundida com o próprio conhecimento (problemática presente nas

diversas teorias da argumentação e nas perspectivas análiticas em geral), não é difícil

constatar que a hermenêutica jurídica dominante no imaginário dos operadores do

direito no Brasil (perceptível a partir do ensino jurídico, da doutrina e das práticas dos tribunais) continua sendo entendida como um (mero) saber “operacional”. Com efeito, domina no âmbito do campo jurídico o modelo assentado na idéia de que “o

processo/procedimento interpretativo” possibilita que o sujeito (a partir da certeza­de­si­

do­pensamento­pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance o

“exato sentido da norma”, “o exclusivo conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro

significado do vocábulo”, “o real sentido da regra jurídica”, etc. Com uma

especificidade (e ao mesmo tempo, uma agravante): todas essas concepções, teses ou

teorias não fazem apostas hermenêuticas no sentido filosófico, mas, sim apostas instrumentais­metodológicas (algumas mais sofisticadas fazem apostas epistemo­

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procedurais). O que elas têm em comum? A delegação em favor do sujeito solipsista (no

caso, o juiz, que possui ampla discricionariedade para solucionar os hard cases­sic). Veja­se, por exemplo, as reformas efetuadas no campo do processo civil: a “grande

novidade” consiste em, cada vez mais, relativisar o procedimento em favor da

“capacidade cognitiva” do juiz em fazer uma “justa condução do processo”...!

De todo modo – ressalvadas as diversas posições e resgatados os méritos e

apontados os equívovos nas diversas teorias – , penso que uma hermenêutica que ainda

se calque em métodos ou técnicas (cânones) interpretativas fica, sobremodo, debilitada

no universo da viragem lingüístico­ontológica. Com efeito, os assim denominados

métodos ou técnicas de interpretação tendem a objetificar o direito, impedindo o

questionar originário da pergunta pelo sentido do direito em nossa sociedade. Isso sem

falar na velha dualidade “voluntas legis e voluntas legislatoris”, sobre a qual não é necessário desperdiçar energias nesta quadra da história.

Mas, atenção: há um “algo mais” do que a filosofia da consciência (que aposta

na subjetividade do intérprete e, na radicalidade, transforma o direito em política, como

algumas posturas realistas, herdeiras do desconstrutivismo) e que não pode ser

desprezado. Com efeito, em tempos de súmulas vinculantes, torna­se quase obrigatório

falar do paradigma metafísico aristotélico­tomista, de cunho dedutivista. Lado a lado,

subjetivistas e objetivistas consubstanciam as práticas argumentativas dos operadores

jurídicos. Assim, na medida em que o processo de formação dos juristas tem

permanecido associado a tais práticas, tem­se como conseqüência a objetificação dos

textos jurídicos, circunstância que, para a interpretação constitucional, constitui forte

elemento complicador/obstaculizador do acontecer (Ereignen) da Constituição.

Desse modo, a dogmática jurídica (tradicional), enquanto reprodutora de uma

cultura estandardizada, torna­se refém de um pensamento metafísico, esquecendo­se

daquilo que a hermenêutica filosófica representa nesse processo de ruptura

paradigmático. Esse esquecimento torna “possível” separar o direito da sociedade,

enfim, de sua função social. Dito de outro modo, o formalismo tecnicista que foi sendo construído ao longo de décadas “esqueceu­se” do substrato social do direito e do Estado. Transformado em uma mera instrumentalidade formal, o direito deixou de

representar uma possibilidade de transformação da realidade, à revelia do que a própria

Constituição estatui: a construção do Estado Democrático (e Social) de Direito. A toda evidência, esta circunstância produzirá reflexos funestos no processo de compreensão

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que o jurista terá acerca do papel da Constituição, que perde, assim, a sua

substancialidade. Veja­se, a propósito, a dificuldade que os juristas têm em lançar mão

da jurisdição constitucional; veja­se, por tudo, a inefetividade da Constituição, passados

mais de dezoito anos de sua promulgação! Veja­se, por trás de tudo isso, o velho

positivismo, que, de um lado, sempre apostou na expunção da faticidade e do mundo

prático, e, de outro, delegou para os juízes resolverem discricionariamente os casos

difíceis (ou, no caso de Kelsen, de forma decisionista).

Mesmo algumas posturas consideradas críticas do direito, embora tentem romper

com o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade lingüística),

acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o

subjetivismo; da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e

fundante); da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica

moderna). E isso não pode ser subestimado (ou, no que é mais grave, não pode deixar

de ser estudado). Não conseguem, assim, alcançar o patamar da viragem

lingüístico/hermenêutica, no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero

instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem,

desse modo, prisioneiros da relação sujeito­objeto, refratária à relação sujeito­sujeito.

Sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido heideggeriano­

gadameriano, que retrabalho em meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e

Consenso como uma Nova Crítica do Direito). A revolução copernicana provocada pela

viragem lingüístico­hermenêutica tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivo­interpretativo

do “procedimento” para o “modo de ser”.

Assim, muito embora a recepção da hermenêutica pelas diversas concepções da

teoria do direito, é com a hermenêutica da faticidade que a hermenêutica vai dar o

grande salto paradigmático, porque ataca o cerne da problemática que, de um modo ou

de outro, deixava a hermenêutica ainda refém de uma metodologia, por vezes atrelada

aos pressupostos da metafísica clássica e, por outras, aos parâmetros estabelecidos pela

filosofia da consciência (metafísica moderna). Enquanto tentativa de elaboração de um

discurso crítico ao normativismo, a metodologia limita­se a procurar traçar as “regras”

para uma “melhor” compreensão dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e

Perelman), sem que se dê conta daquilo que é o calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que tem um cunho normativo): a da absoluta impossibilidade da

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existência de uma regra que estabeleça o uso dessas regras, portanto, da impossibilidade

da existência de um Grundmethode 3 . Daí o contraponto hermenêutico: o problema da interpretação é fenomenológico.

Não há como negar que a ausência de uma adequada compreensão do novo

paradigma do Estado Democrático de Direito torna­se fator decisivo para a

inefetividade dos direitos constitucionais. Acostumados com a resolução de problemas

de índole liberal­individualista, e com posturas privatísticas que ainda comandam os

currículos dos cursos jurídicos (e os manuais jurídicos), os juristas (compreendidos lato

sensu) não conseguiram, ainda, despertar para o novo. O novo continua obscurecido

pelo velho paradigma, sustentado por uma dogmática jurídica entificadora. Dizendo de

outro modo: ocorreu uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, no direito constitucional e na ciência política, que ainda não foi suficientemente recepcionada pelos juristas brasileiros.

2. Na continuidade, muita atenção: a superação da hermenêutica metódico­

tradicional não pode significar uma profissão de fé nas teses positivistas­

decisionistas.

Nada do que foi dito até aqui pode significar que o intérprete venha a dizer

“qualquer coisa sobre qualquer coisa”, isto é, a hermenêutica nem de longe pode ser

considerada relativista. Ao contrário, é a partir da hermenêutica filosófica que falaremos

da possibilidade de respostas corretas ou, se se quiser, de respostas hermeneuticamente

adequadas a Constituição. Portanto, sempre será possível dizer que uma coisa é certa e

outra é errada; há prejuízos falsos e pré­juízos verdadeiros. Aliás, no Estado

Democrático de Direito a obtenção de respostas adequadas constitucionalmente (no sentido hermenêutico aqui trabalhado, respostas corretas) é um direito fundamental. Há, pois, um dever – de fundamentar as decisões – que gera o direito de o cidadão obter respostas constitucionalmente adequadas­corretas.

Ao ser anti­relativista, a hermenêutica funciona como uma blindagem contra

interpretações arbitrárias e discricionariedades e/ou decisionismos por parte dos juízes.

Mais do que isso, a hermenêutica será antipositivista, colocando­se como contraponto a

3 Sobre esse Grundmethode, ver meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, op.cit.

7

admissão de múltiplas respostas advogada pelos diversos positivismos (pensemos, aqui,

nas críticas de Dworkin à Hart). 4

Dito de outro modo, levando em conta as promessas incumpridas da

modernidade em terrae brasilis, a superação dos paradigmas metafísicos clássico e moderno – condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno do novo

constitucionalismo e da conseqüente derrota do positivismo 5 – não pode representar o abandono das possibilidades de se alcançar verdades conteudísticas 6 . As teorias consensuais da verdade mostram­se insuficientes para as demandas paradigmáticas no

campo jurídico. Ou seja, nelas não há espaço para a substancialidade (conteudística).

Portanto, não há ontologia (no sentido de que fala a hermenêutica filosófica). Isto

demonstra que a linguagem – que na hermenêutica é condição de possibilidade –, nas

teorias consensuais­procedurais, é manipulável pelos partícipes. Continua sendo, pois,

uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, embora os esforços

feitos por sofisticadas construções no plano das teorias discursivas, como Habermas e

Günther.

É possível dizer, sim, que uma interpretação é correta, e a outra é incorreta. Movemo­nos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa ordem. E

disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreensão, os conceitos interpretativos não

resultam temáticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrário,

determinam­se pelo fato de que desaparecem atrás daquilo que eles fizeram

falar/aparecer na e pela interpretação. Aquilo que as teorias da argumentação ou qualquer outra concepção teorético­

filosófica (ainda) chamam de “raciocínio subsuntivo” ou “raciocínio dedutivo” nada

mais é do que esse “paradoxo hermenêutico”, que se dá exatamente porque a

compreensão é um existencial (ou seja, por ele eu não me pergunto porque compreendi,

pela simples razão de que já compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre

chegue tarde).

4 Permito­me remeter o leitor ao meu Verdade e Consenso, op.cit. 5 Sobre a “derrota” do positivismo, idem, ibidem.. 6 Sendo mais claro: a hermenêutica jamais permitiu qualquer forma de “decisionismo” ou “realismo”. Gadamer rejeita peremptoriamente qualquer acusação de relativismo à hermenêutica (jurídica). Falar de relativismo é admitir verdades absolutas, problemática, aliás, jamais demonstrada. A hermenêutica afasta o fantasma do relativismo, porque este nega a finitude e seqüestra a temporalidade. No fundo, trata­se de admitir que, à luz da hermenêutica (filosófica), é possível dizer que existem verdades hermenêuticas. A multiplicidade de respostas é característica não da hermenêutica,e, sim, do positivismo.

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Uma interpretação será correta quando é suscetível dessa desaparição

(Paradoxerweise ist eine Auslegung dann richtig, wenn sie derart zum Verschwinden fähig ext). É o que denomino de “existenciais positivos”. Dizendo de outro modo, aquilo que algumas teorias (argumentativas) chamam de casos fáceis – portanto, solucionáveis

por intermédio de “simples subsunções” ou “raciocínios dedutivos” ­ são exatamente a

comprovação disto. Com efeito, na hermenêutica, essa distinção entre easy e hard cases desaparece em face do círculo hermenêutico e da diferença ontológica. Essa distinção

(que, na verdade, acaba sendo um cisão) não leva em conta a existência de um acontecer

no pré­compreender, no qual o caso simples e o caso difícil se enraízam. Existe, assim,

uma unidade que os institui, detectável na “dobra da linguagem”. Veja­se, nesse sentido,

como essa dualização (contraposição) entre casos difíceis e casos fáceis acarreta

problemas que as diversas teorias analítico­discursivas não conseguem responder

satisfatoriamente: casos fáceis, segundo Atienza (que vale também para as demais

versões da teoria da argumentação jurídica), são os casos que demandam respostas

corretas que não são discutidas; já os casos difíceis são aqueles nos quais é possível propor mais de uma resposta correta “que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo” 7 . Mas, pergunto: como definir “as margens permitidas pelo direito

positivo”? Como isso é feito? A resposta que a teoria da argumentação jurídica parece

dar é: a partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse primeiro interpretar e depois aplicar... Neste ponto, as diversas teorias do discurso se aproximam: as

“diversas” possibilidades de aplicação se constituem em discursos de validade prévia,

contrafáticos, que servirão para juízos de “adequação”. No meu sentir, entretanto, isso

implica um dualismo, que, por sua vez, implica separação entre discursos de validade e discursos de aplicação, cuja resposta se dará, quer queiram, quer não, mediante raciocínios dedutivos, e isso é filosofia da consciência, por mais que queira negar. Em

face disso, retomo a acusação feita por Arthur Kaufmann, acerca da prevalência do

esquema sujeito­objeto nas diversas teorias discursivas. Mas essa problemática deixo

para examinar em meu Verdade e Consenso. Se é verdade que as explicações decorrentes de nosso modo prático de ser­no­

mundo (o­desde­já­sempre­compreendido) resolvem­se no plano ôntico (o que,

traduzido na linguagem da filosofia da consciência, pode ser denominado de “raciocínio

causal­explicativo”), também é verdadeiro afirmar que esse “modo ôntico” permanecerá

7 Cfe. ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

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e será aceito como tal se – e somente se – a sua objetivação não causar estranheza no plano daquilo que se pode entender como tradição autêntica. Nesse caso, estando devidamente conformados os horizontes de sentido, a interpretação “desaparece”. Em

síntese, é quando ninguém se pergunta sobre o sentido atribuído a algo. Afinal, em

termos hermenêuticos, a compreensão é um existencial, decorrente do modo prático de

ser­no­mundo (não esqueçamos, neste ponto, a revolução copernicana proporcionada

pela viragem dos anos 20 do século XX, a partir de Heidegger e Wittgenstein).

Mas, se essa fusão de horizontes se mostrar mal sucedida, ocorrerá a demanda

pela superação das insuficiências do que onticamente objetivamos. Trata­se do

acontecer da compreensão, pelo qual o intérprete necessita ir além da objetivação.

Também isto não tem sido devidamente compreendido em terrae brasilis, ou seja, existe um problema na estrutura do pensamento, que ultrapassa qualquer filosofia

ornamental. Com efeito, estando o intérprete inserido em uma tradição autêntica do

direito, em que os juristas introduzem o mundo prático seqüestrado pela regra (para

utilizar apenas estes componentes que poderiam fazer parte da situação hermenêutica do

intérprete), a resposta correta advirá dessa nova fusão de horizontes.

Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma “responsabilidade política” dos

juízes. Os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os

direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado

Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui um direito

fundamental. Daí a necessidade de ultrapassar o “modo­positivista­de­fundamentar” as

decisões (perceptível no cotidiano das práticas dos tribunais, do mais baixo ao mais

alto); é necessário justificar – e isto ocorre no plano da aplicação – detalhadamente o

que está sendo decidido. Portanto, jamais uma decisão pode ser do tipo “Defiro, com

base na lei x ou na súmula y”. A justificativa (a fundamentação da fundamentação, se assim se quiser dizer) é

condição de possibilidade da legitimidade da decisão. Isto é assim porque o sentido da

obrigação de fundamentar as decisões, prevista no art. 93, inc. IX, da Constituição do

Brasil, implica, necessariamente, a justificação dessas decisões. Veja­se que um dos

indicadores da prevalência das posturas positivistas – e que denuncia a

discricionariedade judicial que lhe é inerente – está no escandaloso número de embargos de declaração propostos diariamente no Brasil. Ora, uma decisão bem fundamentada/justificada (nos termos de uma resposta correta­adequada­à­Constituição,

a partir da exigência da máxima justificação, ou seja, há que fundamentar a

10

fundamentação) não poderia demandar “esclarecimentos” acerca da holding ou do dictum da decisão. Os embargos de declaração – e acrescente­se, aqui, o absurdo representado pelos “embargos de pré­questionamento” (sic) – demonstram a

irracionalidade positivista 8 do sistema jurídico. Como é possível que se considere

“normal” a não fundamentação de uma decisão, a ponto de se admitir, cotidianamente,

milhares de “embargos”?

Nessa linha, a applicatio – porque interpretar é sempre um aplicar – evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido)

que é própria da hermenêutica filosófica. Aquilo que é condição de possibilidade não

pode vir a se transformar em um “ simples resultado” manipulável pelo intérprete. Afinal, não podemos esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um

raciocínio feito por etapas foi a forma pela qual a hermenêutica clássica encontrou para

buscar o controle do “processo” de interpretação. A compreensão de algo como algo

(etwas als etwas) simplesmente ocorre (acontece), porque o ato de compreender é existencial, fenomenológico, e não epistemológico. Qualquer sentido atribuído

arbitrariamente será produto de um processo decorrente de um vetor (standard) de racionalidade de segundo nível, meramente argumentativo/procedimental 9 , isto porque

filosofia não é lógica e, tampouco, um discurso ornamental.

Gadamer sempre nos ensinou que a compreensão implica uma pré­compreensão

que, por sua vez, é pré­figurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete

e que modela os seus pré­juízos. Desse modo, o intérprete do direito (jurista lato sensu)

falará o direito e do direito a partir dos seus pré­juízos, enfim, de sua pré­compreensão.

Falará, enfim, de sua situação hermenêutica (o conceito de situação caracteriza­se

porque alguém não se encontra frente a ela e portanto não pode ter um saber objetivo

dela; se está nela, este alguém se encontra sempre em uma situação cuja iluminação é

uma tarefa que não pode ser desenvolvida por inteiro) 10 . Essa pré­compreensão é

produto da relação intersubjetiva (sujeito­sujeito) que o intérprete tem no mundo. O

intérprete não interpreta do alto de uma relação sujeito­objeto. Estará, sim, sempre

inserido em uma situação hermenêutica. Há uma “situação lingüística”, não sendo a

8 Não fosse isso suficiente, darwinianamente, o sistema jurídico construiu, jurisprudencialmente, uma nova figura “recursal”, sem qualquer previsão no Código de Processo Civil: os embargos declaratórios com efeitos infringentes (sic). Aceitar que uma decisão colegiada seja alterada dessa forma apenas demonstra a deficiência do modo de fundamentação da decisão. 9 Ibid., p. 246 e segs, onde trabalho a noção dos vetores de racionalidade de Hilary Putnam e Ernildo Stein. 10 Cfe. GADAMER, Hans­Georg. Wahrheit und Methode I e II. Tubingen: Mohr, 1990, passim.

11

linguagem algo que esteja à disposição do intérprete, circunstância que inexoravelmente

transformaria a atividade de interpretar em um ato voluntarista. Ao contrário disto, o

intérprete “pertence” a essa lingüisticidade. Ele é “refém” da linguagem. Nesse sentido,

a atividade hermenêutica ex­surge desse processo de (auto)compreensão.

É preciso ter claro, desde logo, que diferentemente de outras disciplinas (ou

ciências), o direito possui uma especificidade, que reside na relevante circunstância de

que a interpretação de um texto normativo – que sempre ex­surgirá como norma –

depende de sua conformidade com um texto de validade superior. Trata­se da

Constituição, que, mais do que um texto que é condição de possibilidade hermenêutica

de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. A tradição nos lega vários sentidos de Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do

constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) coloca­nos à

disposição a noção de Constituição enquanto detentora de uma força normativa,

dirigente, programática e compromissária, pois é exatamente a partir da compreensão

desse fenômeno que poderemos dar sentido à relação Constituição­Estado­Sociedade no

Brasil, por exemplo. Mais do que isso, é do sentido que temos de Constituição que

dependerá o processo de interpretação dos textos normativos do sistema.

Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repita­se, estará sempre contido em uma

norma que é produto de uma atribuição de sentido) válido tão­somente se estiver em

conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma pré­

compreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa co­pertença “faticidade­

historicidade do intérprete e Constituição – texto infraconstitucional”. Não se interpreta,

sob hipótese alguma, um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) desvinculado da

antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição.

Destarte, uma “baixa compreensão” acerca do sentido da Constituição – naquilo

que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito – inexoravelmente

acarretará uma “baixa aplicação”, problemática que não é difícil de constatar nas salas

de aula de expressiva maioria dos cursos jurídicos do país e na quotidianidade das

práticas dos “operadores” do direito. Por isto, pré­juízos inautênticos (no sentido de que

fala Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista.

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3. A Constituição e o acesso à justiça: em busca de efetividades qualitativas ou de como as posturas instrumentalistas do processo continuam atreladas ao

positivismo (em busca de efetividades quantitativas)

Embora o considerável leque de possibilidades de controle de

constitucionalidade, a jurisdição constitucional ainda está longe de assumir o papel que

lhe cabe no Estado Democrático de Direito, mormente se entendermos que a

Constituição brasileira tem um nítido perfil dirigente e compromissório. Desse modo,

fazer jurisdição constitucional não significa restringir o processo hermenêutico ao

exame da parametricidade formal de textos infraconstitucionais com a Constituição.

Trata­se, sim, de compreender a jurisdição constitucional como processo de vivificação da Constituição na sua materialidade, a partir desse novo paradigma instituído pelo

Estado Democrático de Direito. E isso parece ser extremamente relevante ao pensarmos

nos dezoito anos da Constituição brasileira.

É nesse sentido que entra na discussão o papel do Poder Judiciário quando

defrontado com essas questões. Passados dezoito anos, a resposta não tem sido

satisfatória. Pelo contrário, chamado à colação, o Poder Judiciário mostra­se ainda

comprometido com o paradigma liberal­individualista que vem sustentando o direito em terrae brasilis.

Desnecessário lembrar que o Poder Judiciário não pode se substituir aos demais

poderes e “realizar” políticas públicas. Não se está falando, à toda evidência, de uma

judicialização da política. Entretanto – e busco aqui as palavras absolutamente

insuspeitas de um autor como Martonio Barreto Lima, 11 avesso a qualquer

intervencionismo justicional – parece inadmissível não valorizar o papel do controle de

constitucionalidade – até mesmo de atos de governo – nesta quadra da história:

“A sobrevivência de uma constituição dirigente depende também do

convencimento da sociedade de que esta constituição ainda vigora e que sua

simbologia referencial não foi esquecida. Naturalmente que o raio de uma tal

ação política inclui instrumentos da sociedade – intelectuais, partidos políticos

11 Cfe. Martonio Mont’Alverne BARRETO LIMA. Idealismo e efetivação constitucional: a impossibilidade da realização da Constituição sem a política. Comunicação apresentada no encontro Cainã IV, Fortaleza, 2005, inédito (grifei).

13

por exemplo – mas também engloba setores do próprio Estado, nas mãos de um

governo sinceramente comprometido com a manutenção da idéia constituinte,

com os poderes Legislativo e Judiciário, especialmente se se dispõe de uma Corte controladora da constitucionalidade das medidas de governo.“

Isso significa admitir a existência de um novo paradigma, no interior do qual o

fenômeno do constitucionalismo (ou, se se quiser, do neoconstitucionalismo)

proporciona o surgimento de ordenamentos jurídicos constitucionalizados, a partir de

uma característica especial: a existência de uma Constituição “extremamente

embebedora” (pervasiva), invasora, capaz de condicionar tanto a legislação como a

jurisprudência e o estilo doutrinário, a ação dos agentes públicos e ainda influenciar

diretamente nas relações sociais. 12 É nesse contexto que se move o discurso jurídico em

tempos de Estado Democrático de Direito: de um lado, as promessas da modernidade

(incumpridas) previstas na Constituição que esperam efetivação a partir dos

mecanismos da democracia representativa; de outro, em face da inefetividade desses

direitos, o aumento das demandas que acabam chegando aos Tribunais e a discussão

acerca dos limites de sua atuação. Não parece adequado os juristas se negarem a dar

resposta a esse problema. Para que serve o direito, afinal?

Para uma resposta a essa indagação, é necessário levarmos em conta a

exigência de um novo olhar sobre o direito (nestes tempos de pós­positivismo) toma

forma quando a liberdade de conformação do legislador, pródiga em discricionariedade

no Estado­Liberal, passa a ser contestada de dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes, apontando para um dever de legislar em prol dos direitos

fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu

conteúdo material, incorporando os valores previstos na Constituição.

Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da

maioria, o que significa entender a Constituição também como um remédio contra maiorias. Portanto, a noção de um terceiro modelo de direito, o do Estado Democrático de Direito, leva em conta a noção de Constituição como direitos substantivos a serem

realizados, exsurgentes da produção democrática do direito. A Constituição surge, nesse

terceiro modelo/paradigma, não somente como a explicitação do contrato social, mas,

12 Consultar, nesse sentido, GUASTINI, Ricardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico. In: CARBONEL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

14

mais do que isso, com uma força normativa capaz de constituir­a­ação do Estado (isto é,

vincular os poderes da República). E esse direito já não é um direito desindexado da

moral; agora, é um direito no qual está institucionalizada a moral. Por isso, a moral – na

correta concepção de Habermas – é co­originária ao direito. Este é um salto para além

da separação positivista entre direito e moral; este é um salto próprio do pós­positivismo

(entendido, aqui, como superador do positivismo, em uma similute com aquilo que tem

sido denominado de neoconstitucionalismo).

Com as devidas advertências relacionadas aos limites entre democracia e

constitucionalismo, entendo que a justiça constitucional pode e deve assumir uma

postura intervencionista nesta quadra da história, para além da postura absenteísta

própria do modelo liberal­individualista­normativista que permeia a dogmática jurídica

brasileira. A toda evidência, quando estou falando de uma função intervencionista do

Poder Judiciário, não estou propondo uma (simplista) judicialização da política e das

relações sociais (e nem a morte da política) 13 .

Quando falo em “intervencionismo”, refiro­me, sim, a um “intervencionismo

substancialista”, destinado a garantir o cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos

aos Direitos Fundamentais Sociais e ao núcleo político do Estado Social previsto na

Constituição de 1988. Disso é possível afirmar que, no limite, para evitar que o texto

constitucional se transforme em algo meramente simbólico e, na inércia dos poderes

encarregados precipuamente de implementar as políticas públicas, é obrigação

constitucional do Judiciário, através da jurisdição constitucional, propiciar as condições

necessárias para a concretização dos direitos sociais­fundamentais. Sem decisionismos e

sem arbitrariedades. Se uma Constituição pode naufragar pelo descumprimento dos

direitos nela previstos, por falta de políticas públicas, também poderá sucumbir e se

esfacelar se substituirmos um problema por outro. A atuação da jurisdição

constitucional deve ser feita nesse “fio da navalha” que, dialticamente, separa­une

“constitucionalismo e democracia”.

13 Como bem assinala Ackerman, ao tratar da problemática norte­americana, declarando inconstitucional um determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função dualista crítica. Ele está indicando à massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo nos corredores do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com pouca credibilidade; e que, uma vez mais, há chegado o momento de determinar se nossa geração responderá fazendo o esforço político requerido para redefinir, como cidadãos privados, nossa identidade coletiva. Cfe. ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 203 .

15

Trata­se, pois, de utilizar a própria jurisdição constitucional para uma espécie de

controle dela mesma. De fato, estamos longe de implementar os direitos fundamentais­

sociais (nas suas diversas facetas) contidas na Constituição. Parece haver um equívoco

quando se pensa que a implementação da Constituição depende da figura do juiz. Do

mesmo modo, é equivocado ligar a realização ou o respeito aos direito à atuação

(adequada ou inadequada) do Poder Judiciário. Exemplo disso é a aporia construída por

parcela expressiva dos processualistas que buscam, a partir de diversas mini­reformas,

apostar em efetividades quantitativas para desafogar o judiciário (como se o judiciário

não estivesse “afogado em processos” por culpa da própria sistemática processual). O

que ocorre é que o processo continua sendo pensado a partir do paradigma da filosofia

da consciência. Por isso, as partes tornam­se uma “terceira coisa” que se interpõem

entre o sujeito e o objeto...! 14 Na busca de efetividades quantitativas (lembremos as

diversas leis que buscam colocar obstáculos à interposição de recursos), esquecemos a

“coisa mesma”, porque o objetivo mesmo é transformar tudo na “mesma coisa”

(pensemos um pouco: die Sache selbst ist nicht die selbe Sache).

14 Esse problema também está presente na prevalência do sistema inquisitivo no processo penal. Um exame detalhado mostrará que todo o processo penal está assentado na figura do juiz (solipsista), teorizado no malsinado – e metafísico – “princípio da verdade real”. Essa problemática aproxima sobremodo o processo penal do processo civil: naquele, busca­se a verdade “sem intermediações”, como se o direito tivesse uma essência, em que as partes “perdem” importância (veja­se que, mesmo que o Ministério Públoico requeira a absolvição, o juiz poderá condenar o réu; veja­se o velho sistema de ouvida de testemunhas “por intermédio” do juiz; veja­se a “possibilidade” de o juiz decretar prisão ex­ officio – sic); neste, cada vez mais se coloca o procedimento à disposição do pensamento “justo” do juiz, valendo, por todos, citar a assim denominada instrumentalidade do processo, pela qual, v.g., autores prestigiados, como José Roberto dos Santos Bedaque, procuram resolver o problema da efetividade do processo a partir de uma espécie de “delegação” em favor do julgador, com poderes para reduzir as formalidades que impedem a realização do direito material em conflito, sendo que isso é feito a partir de um novo princípio processual – decorrente do princípio da instrumentalidade das formas – denominado princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação da técnica processual. Por este princípio se reconhece “ao julgador a capacidade para, com sensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo às especificidades da situação, que não é sempre a mesma” (Bedaque, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 45 – grifei). Ou seja, “deve ser o juiz investido de amplos poderes de direção, possibilitando­lhe adaptar a técnica aos escopos do processo em cada caso concreto, mesmo porque a previsão abstrata de todas as hipóteses é praticamente impossível” (Idem, ibidem, p. 64­65). E como a previsão legislativa não comporta todas hipóteses de aplicação, “observado o devido processo legal, deve ser reconhecido ao juiz o poder de adotar soluções não previstas pelo legislador, adaptando o processo às necessidades verificadas na situação concreta” (idem, ibidem, p. 571). Em sua – refira­se ­ sofisticada tese, embora demonstre preocupação em afastá­la da discricionariedade, Bedaque termina por sufragar (ainda que implicitamente) as teses hartianas e kelsenianas, quando admite que as fórmulas legislativas abertas favorecem essa atuação judicial: “Quanto mais o legislador valer­se de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido, maior será a possibilidade de o juiz adaptá­la às necessidades do caso concreto. Esse poder não se confunde com a ‘discricionariedade judicial’, mas implica ampliação da margem de controle da técnica processual pelo legislador” (idem, ibidem, p. 109). Daí a minha insistência: o problema possui um fundo paradigmático; continua­se a apostar no sujeito solipsista.

16

Cada vez que se pretende “processualizar mais o sistema”, ocorre uma

diminuição do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal.

Ora, se o devido processo legal serve para preservar direitos, não é em nome dele que se

pode fragilizar o próprio processo. Dia­a­dia, o sistema processual caminha para o

esquecimento das singularidades dos casos. Trata­se, pois, de um novo princípio epocal.

Na verdade, se o último princípio epocal da era das duas metafísicas foi a vontade do

poder (wille zur Macht), o novo princípio, forjado na era da técnica, acaba por se transformar no mecanismo que transforma o direito em uma mera racionalidade

instrumental (lembremos, sempre, as escolas instrumentalistas...!). Manipulando o

instrumento, tem­se o resultado. Ao final dessa “linha de produção”, o direito é aquilo

que a vontade do poder quer que seja. Chega­se ao ápice da não democracia: o direito transformado em política. Ou seja, uma contradição em si mesmo: se o direito serve

para controlar/garantir a democracia (e, portanto, a política), ele não pode ser a própria

política.

Os defensores dessas (diversas) reformas quantitativas não têm a dimensão do

problema representado por essa contradição que vem sendo construída. Veja­se as

súmulas vinculantes e a proliferação de livros “vendendo” interpretações

estandartizadas (verbetes, que nada mais são do que “proto­súmulas”). A doutrina não

doutrina . O que mais se utiliza da doutrina é, justamente, o que não é doutrina, isto é, o

que mais se utiliza são os verbetes proto­sumulares que se multiplicam nos manuais

jurídicos. Pura metafísica, pois. Esse fenômeno ingressa perigosamente nas academias,

onde é possível encontrar dissertações de mestrado e teses de doutorado tratando de

agravo de instrumento, exceção de pré­executividade, limitação de fim de semana para

presos, embargos de declaração, o papel do árbitro, a função do oficial de justiça,

inquérito policial, a união homossexual (em um programa que trata do meio­ambiente),

cheque pré­datado, além de alunos e docentes que, financiados pelo povo (bolsas de

estudo, etc.) escrevem contra o poder constituinte, contra a Constituição, pela

relativização de direitos penais­processuais, etc. De todo modo, também poder­se­ia

perguntar: afinal, para que servem estudos e pesquisas mais críticas e sofisticadas se,

para parcela considerável da comunidade jurídica (incluída parte da academia), o direito

é aquilo que os juízes (e tribunais) dizem que é?

No fundo, essas construções dogmáticas ­ súmulas, enunciados, leis

obstaculizadoras do acesso à justiça, reformas processuais que buscam efetividades

17

quantitativas ­ são fruto de uma espécie de adaptação darwiniana do positivismo jurídico, que funciona a partir da elaboração de conceitos jurídicos com objetivos universalizantes. Para tanto, são utilizados, paradoxalmente, os princípios

constitucionais, que passam a ter a “função de mandados de otimização” (princípios e

regras passam a estar cindidos estruturalmente).

Dito de outro modo, até mesmo os princípios constitucionais ­ que deveriam

superar o modelo discricionário do positivismo ­, passaram a ser anulados por

conceitualizações, transformando­os em regras. Basta ver, nesse sentido, que a

preocupação do establishment jurídico­dogmático sempre foi com a efetividade

quantitativa, que, aliás, foi gerada pelo modus compreensivo­interpretativo calcado no esquema sujeito­objeto ainda vigorante no direito.

Para tanto, foram sendo introduzidos, com o passar do tempo, mecanismos que

busca(ra)m “racionalizar” a interpretação­aplicação do direito e evitar a “multiplicação

de demandas”, como o art. 38 da Lei nº8.038/90, o art. 557 do CPC e a recente EC

45/04, que institucionalizou o que já existia há mais de 40 anos em terrae brasilis: o poder vinculatório das súmulas (no mínimo no plano de uma vinculação oriunda do

poder de violência simbólica proporcionado pelas súmulas). Veja­se a impressionante

redação do dispositivo acrescentado pela Lei 11.276/06 ao art. 518 do Código de

Processo Civil, pelo qual “o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal“ (é a súmula impeditiva de recurso). Observemos o paradoxo: ao

mesmo tempo em que se aprova emenda constitucional conferindo efeito vinculante às

súmulas do STF em matéria constitucional e elaboradas sob determinadas condições e circunstâncias, o parlamento aprova dispositivo legal que dá esse mesmo efeito – vinculante ­ às súmulas do STJ. Ora, o parágrafo introduzido pela nova Lei é

absolutamente inconstitucional, porque alça as súmulas do Superior Tribunal de Justiça

ao patamar das súmulas do Supremo Tribunal Federal. Repete­se, aqui, a (velha)

inconstitucionalidade que já estava presente no art. 557 do CPC, introduzido pela Lei

9.756.

Como dantes, continua­se sob o silêncio ­ eloquente ­ do processualismo

dominante em terrae brasilis. A discussão, como sempre, restringe­se à contradição secundária, como, por exemplo, questionar os limites semânticos (no plano de uma –

mera ­ analítica jurídica) da expressão “conformidade” (afinal, qual seria o sentido

dessa palavra?). Ou seja, ao invés de enfrentar – de frente – a questão da

18

inconstitucionalidade de ambos os dispositivos, a dogmática jurídica concentra a

discussão na diferença que pode(ria) existir entre o fato de o art. 557 exigir que a

decisão recorrida (para não ser recebido o recurso), esteja em “manifesto confronto com súmula...“ (Lei 9.756/95) e a nova lei (11.276/06) estabelecer que o juiz não receberá o

recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula...! Como

sempre bem denunciou Dworkin, o problema do positivismo está no aguilhão

semântico...!

Nesse verdadeiro império de standards jurídicos (súmulas, verbetes, enunciados, etc), parte considerável da doutrina acaba por reproduzir a posição dos tribunais, que

elaboram uma espécie de versão positivista de “discursos de fundamentação prévia”.

Ora, se os diversos mecanismos que buscaram resolver a multiplicidade de demandas

não tiveram êxito até hoje – e todos eles possuem um perfil que busca colocar em

segundo plano a substancialidade do direito –, é porque está sendo atacada tão­somente

a contradição secundária do problema. Ou seja, se as múltiplas respostas e a

discricionariedade (ausência de “controle” na interpretação e nas decisões judiciais) está

ligada ao positivismo (em suas diversas matizes) – e é isso que gera o “caos” no sistema

jurídico –, parece que a resposta está para além do positivismo e sua “ratio essendi”.

Parece, assim, que, se tivéssemos que apontar um problema – o principal – da

Constituição, nesses quase vinte anos, a resposta poderia ser: o acesso à justiça, com

uma repercussão em cadeia naquilo que se relaciona ao (des)respeito aos direitos

fundamentais (“negativos” e “positivos”, se se quiser essa antiga divisão). Como

componente principal, a (ausência de uma adequada) filtragem hermenêutico­

constitucional (mas, para tanto, retorna­se ao problema principal: o acesso à jurisdição

constitucional). Assim, por exemplo, diversas leis, apenas em parte incompatíveis com a

Constituição, têm permanecido intactas no sistema, pela timidez hermenêutica dos

operadores. Veja­se, só para exemplificar, lembrando sempre o caráter simbólico do

exemplo (como em Castoriadis, o gesto do carrasco é real por excelência, mas mais

poderoso enquanto simbólico) a Lei 10.259/01, que, de forma inconstitucional,

(des)classificou delitos como abuso de autoridade, fraude em licitação, fraude

processual, porte ilegal de arma, sonegação de tributos, desobediência, atentado ao

pudor mediante fraude, crimes contra a honra, para ficar apenas nos principais, como

19

“infrações de menor potencial ofensivo” (soft crimes), utilizando para tanto o critério horizontal da quantidade da pena 15 .

Do mesmo modo, o Código Penal está eivado de inconstitucionalidades; dezenas

de tipos penais não recepcionados pela Constituição continuam sendo aplicados; as

penas não guardam relação com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbot) e

proibição de proteção insuficiente ­ Untermassverbot (para se ter uma idéia, furto qualificado tem pena maior que sonegação de tributos e lavagem de dinheiro;

adulteração de chassis de automóvel acarreta pena maior do que a do homicídio

praticado ao volante, etc.); nessa linha, não causa nenhum espanto à comunidade

jurídica o fato de que a sonegação de tributos tenha um tratamento absolutamente

privilegiado em relação aos crimes contra o patrimônio, como o furto, a apropriação

indébita, etc. 16 ; a falta de filtragem é tão grande que o sistema jurídico convive com o

paradoxo representado pelo fato de os crimes de estupro e atentado violento ao pudor,

elevados à condição de hediondos na década de 90, continuarem a ser considerados

"crimes de ação privada" (sic).

As mesmas carências hermenêutico­constitucionais podem ser encontradas no

campo do direito processual. Assim, v.g., embora o conteúdo garantista da Constituição

de 1988, o Código Processo Penal continua fazendo vítimas pela falta de uma adequada

interpretação que o conforme ao texto constitucional. Em pleno Estado Democrático de

Direito, o sistema jurídico convive com a quotidiana violação dos princípios da ampla

defesa (até o ano de 2004, os interrogatórios vinham sendo realizados sem a presença de

defensor), do contraditório (exames periciais feitos à revelia do réu) e do devido

processo legal (denúncias que são recebidas sem qualquer fundamentação), para citar

apenas alguns dos problemas. Se considerar que o sistema jurídico convalida,

cotidianamente, institutos como a mutattio libelli, a emendatio libelli, o poder do juiz de

15 Em termos de filtragem hermenêutico­constitucional, o problema decorrente da indevida inserção desses crimes no rol dos soft crimes pode ser resolvida por intermédio da aplicação da técnica da nulidade parcial sem redução de texto. Para tanto, ver STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais à luz da jurisdição constitucional. Caderno Jurídico. Ano 2, v. 2, n. 5. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, out/2002, p. 63­100. 16 A Lei 10.684/03, repisando matéria já sedimentada, possibilita que os sonegadores façam parcelamento (REFIS) de seus “débitos”. Com isto, extingue­se a punibilidade (sic). Antes dessa Lei, já havia casos de financiamentos que ultrapassavam os 500 anos...! Enquanto isto, em completa violação ao princípio da isonomia, ao cidadão que pratica crime contra o patrimônio não é dado qualquer possibilidade de parcelamentos e tampouco a possibilidade de extinção da punibilidade pelo ressarcimento do prejuízo! Isto mostra a dura face da crise de paradigmas que atravessa a dogmática jurídica brasileira.

20

determinar provas ex­oficcio e de decretar prisões ex­oficcio, os recursos ex­oficcio, para citar apenas alguns dos problemas decorrentes de uma baixa constitucionalidade.

Por outro lado, não é difícil constatar a baixa utilização de mecanismos como a

interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung) e a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtext Reduzierung), que

podem ser importantíssimos instrumentos para uma adequação constitucional de um

enorme contingente de leis e atos normativos. Até mesmo o entendimento acerca do

sentido e alcance desses institutos tem recebido uma interpretação self restrainting. 17

Por outro lado, se os Códigos Penal e Processual Penal sofrem de profunda

inadequação com o texto constitucional em face da distância temporal, um texto como o do Código Civil, que entrou em vigor em 2003, contrariamente ao que se poderia

pensar, veio para reforçar o principal obstáculo do constitucionalismo: o positivismo.

Com efeito, parcela considerável dos doutrinadores civilistas brasileiros trilha pelo

caminho de entender o novo Código Civil como um sistema aberto, em face,

principalmente, da adoção das cláusulas gerais. Nesse sentido, veja­se o comentário de

Miguel Reale ao então projeto do novo Código Civil, para quem o Código deve conferir

“ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando

previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou

injustável à especificidade do caso concreto”. 18 Na mesma linha, Fabiano Mencke, para

quem as cláusulas gerais são normas “que se caracterizam pela abertura e possibilidades

de criação conferida ao intérprete” e que “o esforço intelectual do operador do direito

que trabalha com normas abertas, como são as cláusulas gerais, é sobremaneira

dimensionado”, porque carecem de “complementação valorativa”, o que faz com que o

intérprete se veja “obrigado a buscar em outros espaços do sistema, ou até mesmo fora dele, a fonte que inspirará e fundamentará a sua decisão”. 19

Pensar assim é fazer uma concessão à discricionariedade positivista, o que pode ser

facilmente percebido em assertivas do tipo “a lei [o Código Civil, na parte relativa às

cláusulas gerais] confia ao intérprete­aplicador, com absoluta exclusividade e larga

margem de liberdade, a inteira responsabilidade de encontrar, diante de um modelo

17 Para tanto, consultar STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, em especial cap. 11. 18 Cf. Reale, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. www.miguelreale.com.br/artigos. 19 Cf. Mencke, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. In: Revista da AJURISano XXXIII, n. 103, setembro de 2006, pp. 69 e segs. – grifei.

21

vago, a decisão justa para cada hipótese levada á decisão judicial”. 20 Ora, de tudo o que

foi dito, não parece democrático delegar ao juiz o preenchimento conceitual das assim

chamadas “cláusulas gerais” 21 (a mesma crítica pode ser feita ao uso da ponderação para

a “escolha” do princípio que será utilizado para a resolução do problema causado pela

“textura aberta da cláusula”).

Em pleno paradigma do Estado Democrático de Direito, em que os princípios

resgatam a razão prática, não parece recomendável – sem um adequado “cuidado

constitucional” ­ , que o Código Civil reintroduza no direito cláusulas que autorizem o

juiz, solipsisticamente, a “colmatar lacunas” ou incompletudes legislativas, a partir da

“descoberta” de valores que estariam em uma metajuridicidade.

Por outro lado, com o advento do constitucionalismo principiológico e passados

mais de dezoito anos desde a promulgação da Constituição ­ , não há mais que falar em

“princípios gerais do Direito”, pela simples razão de que foram introduzidos no Direito

como um “critério positivista de fechamento do sistema”, visando preservar, assim, a

“pureza” e a “integridade” do mundo de regras. Nesse sentido, basta observar algumas

questões que, pelo seu valor simbólico, representam o modo pelo qual a instituição

“positivismo” assegura a sua validade mesmo em face da emergência de um novo

paradigma. É o caso de três dispositivos que funcionam como elementos de resistência

no interior do sistema jurídico, como que para demonstrar a prevalência do velho em face do novo. Vejamos: mesmo com a vigência de um novo Código Civil, desde 2003, continua em vigor a velha Lei de Introdução ao Código Civil de 1942. Um dos pilares

da Lei é o artigo 4º, que, ao lado do artigo 126 do Código de Processo Civil, funcionam

como uma espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico. Segundo o artigo 4º,

“quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Em linha similar, tem­se o artigo 3º do Código de Processo Penal, também da década de 40 do século passado, segundo o qual a lei

20 Cf. Neves, Frederico Ricardo Almeida. Conceitos jurídicos indeterminados e direito jurisprudencial. In: Processo Civil – aspectos relevantes. Bento Herculano Duarte e Ronnie Preuss Duarte (org). São Paulo, Editora Método, 2006, pp. 85 e 86. 21 As cláusulas gerais não são, entretanto, unanimidade no seio da doutrina civil e processual civil. Nesse sentido, registre­se a crítica de Humberto Theodoro Jr contra o emprego legislativo desse tipo de estratégia, muito embora admita a introdução, pelo juiz, de valores éticos na lei. In: A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista da EMERJ, v.9, n. 35, 2006, p. 15 e segs. Em linha similar, Marcus Eduardo de Carvalho Dantas, para quem “entender que o recurso às cláusulas gerais é um expediente idôneo a garantir um tratamento mais responsável das normas por parte do juiz é altamente discutível, já que não há pré­determinação da interpretação das normas, o que remete à dicotomia subjetivismo­objetivismo” (Acerca das funções sociais do contrato. In: Direito, estado e Sociedade. N. 27, jul/dez 2005. PUC­RJ – Departamento de Direito., p.108).

22

processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito. Já o artigo 335 do Código de Processo Civil, fruto do regime militar, acentua que “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a

esta, o exame pericial” . Os dispositivos, a par de sua inequívoca inspiração positivista (permitindo discricionariedades e decisionismos), e sua frontal incompatibilidade com

uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, superadora do esquema sujeito­objeto

(filosofia da consciência), mostram­se tecnicamente inconstitucionais (não

recepcionados). 22

Em termos de atuação stricto sensu dos diversos setores da justiça

constitucional, cabe registrar a postura self restrainting que a Suprema Corte assumiu nos episódios que envolveram as grandes privatizações e na discussão dos conceitos de

“urgência e relevância”, requisitos para o Poder Executivo editar medidas provisórias.

Saliente­se que, antes da promulgação da EC nº 32, que alterou o art. 62, da CF, o Poder

Executivo já havia editado mais de 3.000 delas. Uma postura hermenêutica mais

incisiva do STF poderia, sem dúvida, no exame da matéria e no momento oportuno, ter

evitado este mar de MPs, que tantos prejuízos causaram à cidadania e à democracia.

Nesse sentido, aparece a importância do exercício do controle difuso de

constitucionalidade que, nestes anos todos, tem­se mostrado aquém das expectativas. 23

22 Ver, para tanto, Verdade e Consenso, op.cit. 23 Essa questão se complexiza mais ainda com o voto do Min. Gilmar Mendes – seguido pelo Min. Eros Grau – na Reclamação n. 4.335­5­AC, reitepretando os efeitos do controle difuso, isto é, os dois julgadores transformam o controle difuso em controle concentrado, uma vez que tornam, mutatis, mutandis, despicienda a função do Senado, prevista no art. 52,X, da Constituição do Brasil. Então, qual é a função do Senado (art.52,X)? Parece evidente que esse dispositivo constitucional não pode ser inútil. Veja­se: em sede de recurso extraordinário, o efeito da decisão é inter partes e ex tunc. Assim, na hipótese de o Supremo Tribunal declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, em sede de recurso extraordinário, remeterá a matéria ao Senado da República, para que este suspenda a execução da referida lei (art. 52, X, da CF). Caso o Senado da República efetive a suspensão da execução da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, agregará aos efeitos anteriores a eficácia erga omnes e ex nunc. Nesse sentido, há que se fazer uma diferença entre o que seja retirada da eficácia da lei, em sede de controle concentrado, e o que significa a suspensão que o Senado faz de uma lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso. Suspender a execução da lei não pode significar retirar a eficácia da lei. Caso contrário, não haveria diferença, em nosso sistema, entre o controle concentrado e o controle difuso. Suspender a vigência ou a execução da lei é como revogar a lei. Pode­se agregar ainda outro argumento: a suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc, pela simples razão de que a lei está suspensa (revogada), à espera da retirada de sua eficácia. Daí a diferença entre suspensão/revogação e retirada da eficácia. Sem eficácia, a lei fica nula; sendo nula a lei, é como se nunca estivesse existido. Não se olvide a diferença nos efeitos das decisões do Tribunal Constitucional da Áustria (agora adotada no Brasil), de onde deflui a diferença entre os efeitos ex tunc (nulidade) e ex nunc (revogação). Dito de outro modo, quando se revoga uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita,

23

No primeiro grau de jurisdição, ainda são poucos os magistrados que lançam mão desse

(poderoso) mecanismo, que, saliente­se, não fica restrito à (mera) rejeição (não

aplicação) de leis inconstitucionais, podendo, à toda evidência, alcançar a interpretação

conforme e a nulidade parcial sem redução de texto, para citar apenas estas duas

modalidades de decisões denominadas pela tradição de “interpretativas”. Nos tribunais,

continua reduzido o número de incidentes de inconstitucionalidade.

Esse conjunto de elementos, que traduzem um leque de inefetividades, não

decorre de indevidas ou equivocadas decisões individuais dos juristas. Para além disso,

o problema é de fundo paradigmático. Trata­se da necessidade de uma mudança no

imaginário dos juristas, que continua – mesmo depois de tantos anos – atrelado ao

positivismo. Interessante notar, nesse sentido, que aquilo que vem a ser o maior

problema do positivismo – a “delegação” em favor de discricionarismos interpretativos

– vem a transformar­se, em pleno Estado Democrático de Direito, em uma espécie de

“carro­chefe” para produção de “discursos críticos”. Para tanto, de forma equivocada, os

princípios foram compreendidos como mandados de otimização, como se fossem uma

espécie de “discurso moral” adjudicativo, de cariz supra­legal, ou, ainda, sob outro viés,

como “discursos abertos”, que proporcionariam aos juízes uma maior “abertura

interpretativa” (veja­se as cláusulas gerais, etc). Observe­se, nesse diapasão, a

inadequada distinção estrutural entre casos simples e casos complexos. De forma

equivocada, pensa­se que casos simples podem ser (e são) resolvidos por intermédio de

nenhuma. Não fosse assim, bastaria que o Supremo Tribunal mandasse a lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso, ao Senado, para que os efeitos fossem equiparados aos da ação direta de inconstitucionalidade (que historicamente, seguindo o modelo norte­americano, sempre foram ex tunc). Se até o momento em que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a lei era vigente e válida, a decisão no caso concreto não pode ser equiparada à decisão tomada em sede de controle concentrado. Repetindo: a valer a tese de que os efeitos da decisão do Senado retroagem, portanto, são ex tunc, qual a real modificação que houve com a implantação do controle concentrado, em 1965? Na verdade, se os efeitos da decisão desde sempre tinham o condão de transformar os efeitos inter partes em efeitos erga omnes e ex tunc, a pergunta que cabe é: por que, na prática, desde o ano de 1934 até 1965, o controle de constitucionalidade tinha tão pouca eficácia? Desse modo, mesmo que o próprio Supremo Tribunal assim já tenha decidido (RMS 17.976), tenho que a razão está com aqueles que sustentam os efeitos ex nunc da decisão suspensiva do Senado. A discussão sobre se o Senado está ou não obrigado a elaborar o ato é outra coisa. O que está em jogo na presente discussão é a própria sobrevivência do controle difuso e os efeitos que dele devem ser retirados. Parece que a diferença está na concepção do que seja vigência e eficácia (validade). Decidir – como querem os Ministros Gilmar e Eros – que qualquer decisão do STF em controle difuso gera os mesmos efeitos que uma proferida em controle concentrado (abstrato) é, além de tudo, tomar uma decisão que contraria a própria Constituição. Lembremos, por exemplo, uma decisão apertada de 6 a 5, ainda não amadurecida. Ora, uma decisão que não reúne sequer o quorum para fazer uma súmula não pode ser igual a uma súmula (que tem efeito vinculante – registre, falar em “equiparar” o controle difuso ao controle concentrado nada mais é do que falar em efeito vinculante). E súmula não é igual a controle concentrado. De todo modo, essa discussão não está terminada, até porque, antes de tudo, há que se refletir acerca da relevante circunstância de o Brasil querer manter ou não o controle difuso.

24

raciocínios dedutivos, como se não tivesse havido qualquer alteração paradigmática no

campo da filosofia...! Como consequencia dessa inadequação teórica, pensa­se que os

casos complexos são resolvidos com apelo à abertura proporcionada pelos princípios.

Por tudo isso, a minha insistência no sentido de que, aquilo que vem sendo o

elemento alavancador de discursos que se pretendem críticos, vem a ser exatamente o

“ovo da serpente” do autoritarismo, enfraquecendo a força normativa da Constituição e

o seu caratér compromissório. Explicando melhor, isso ocorre quando, em nome de

duvidosos intentos solipsistas, os limites semânticos legais e constitucionais têm

soçobrado, a partir de atitudes hermenêuticas ainda (ou sobremodo) atreladas ao

esquema sujeito­objeto (correntes subjetivistas, axiologistas, realismos jurídicos, etc).

Dito de outro modo, ainda não se conseguiu ligar esse superado esquema sujeito­

objeto à revolução copernicana que introduziu o Estado Democrático de Direito. E essa

ligação teórico­reflexiva é tarefa primordial da comunidade jurídica (talvez, nem

mesmo tenha sido compreendida a própria “existência” da crise dos paradigmas

aritotélico­tomista e da filosofia da consciência). Também é preciso compreender que o

giro lingüístico­ontológico vai além do (simples) linguistic turn (lembremos que a pragmática mais simples é produto do linguistic turn). 24 Trata­se de compreender que o

ontologic turn (ontologische Wendung) reintroduz o mundo prático afastado pela(s) epistelomogia(s). Com isso, passa­se do fundamentar para o compreender. E as

consequencias para o direito não podem ser utilizadas apenas para vitaminar discursos

que põem na figura do juiz a tarefa de solucionar os problemas da sociedade. Quem

tiver dúvidas em relação a isso, basta verificar as mini­reformas feitas no processo civil

nestas duas décadas... (ou a ode à abertura dos princípios no âmbito do direito

constitucional e às cláusulas gerais do direito civil)!

5. Apor tes finais: razões pelas quais devemos continuar a fazer apostas

hermenêuticas.

Como o direito é um saber prático que deve servir para resolver problemas e

concretizar as promessas da modernidade que ganharam espaço nos textos

constitucionais, a superação dos obstáculos que impedem o acontecer do

24 Nesse sentido, veja­se minha crítica à Marcelo Dascal em Verdade e Consenso, 2 ª edição, op.ct..

25

constitucionalismo de caráter transformador estabelecido pelo novo paradigma do

Estado Democrático de Direito pressupõe a construção das bases que possibilitem a

compreensão do estado da arte do modus operacional do direito, levando em conta um texto constitucional de nítida feição compromissória e dirigente, e que, passadas quase

duas décadas, longe está de ser concretizado em nosso país. Na base dessa inefetividade,

para além do problema relacionado à configuração política e econômica da sociedade

brasileira (democracia em consolidação, alternando longos espaços de ausência de

estado de direito, a histórica desigualdade social, a cultura patrimonialista, o regime

presidencialista que se mantém com governabilidade ad hoc, etc.), encontra­se

solidificada uma cultura jurídica positivista que coloniza a operacionalidade (doutrina e

jurisprudência) e o processo de elaboração das leis, a partir de um processo de

reatroalimentação sistêmica.

O problema da inefetividade da Constituição – e tudo o que ela representa

enquanto implementação das promessas incumpridas da modernidade (por isto o Brasil

é um país de modernidade tardia) – não se resume a um confronto entre modelos de

direito. O confronto é, pois, paradigmático. E nesse confronto paradigmático, as velhas

teses acerca da interpretação – subsunção, silogismo, individualização do direito na

“norma geral”, a partir de “critérios puramente cognitivos e lógicos”, liberdade de

conformação do legislador, discricionariedade do poder Executivo, o papel da

Constituição como estatuto de regulamentação do exercício do poder – dão lugar – ou

deveriam dar ­ a uma hermenêutica que não trata mais a interpretação jurídica como um

problema (meramente) “lingüístico de determinação das significações apenas textuais

dos textos jurídicos” 25 . Trata­se, efetivamente, de aplicar o grande giro hermenêutico ao

direito e, portanto, à Constituição.

Interessante notar que a tese da Constituição dirigente é boa ou má, dependendo

dos interesses em jogo. Como bem lembram Bercovici e Massonetto, os mesmos setores

que consideram a tese da Constituição dirigente retrógrada ou “jurássica” naquilo que

esta tem de compromissória no plano dos direitos fundamentais­sociais, aplaudem o

“dirigismo constitucional” no que tange às políticas de estabilização e a supremacia do

orçamento monetário sobre as despesas sociais (políticas ortodoxas de ajuste fiscal e de

isolamento da Constituição financeira relativamente à Constituição econômica)

Segundo os autores, há uma inversão ideológica do discurso acerca da Constituição

25 Veja­se, a propósito, a contundente crítica de CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 287 e segs.

26

dirigente. Com efeito, os críticos da Constituição dirigente dizem que esta conduz à

ingovernabilidade e que o “dirigismo das políticas públicas e dos direitos sociais” é

prejudicial aos interesses do país. No fundo, dizem os autores, trata­se da tese da

“Constituição dirigente invertida”, isto é, a Constituição dirigente das políticas

neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e a confiança

do país junto ao sistema financeiro internacional: “esta, a Constituição dirigente

invertida, é a verdadeira constituição dirigente, que vincula toda a política do Estado

brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de

riqueza privada”. 26

O novo constitucionalismo, nascido da revolução copernicana do direito público,

traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à margem da discussão

pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais

historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem

feitas no e a partir do direito. Afinal, direito constitucional é direito político (H. P. Schneider).

Tais perspectivas ficam nítidas a partir de um constitucionalismo

compromissório e (ainda) dirigente, mormente em países em que as promessas da

modernidade nunca foram cumpridas (razão pela qual venho propondo a necessidade de

uma teoria da Constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia). E a

materialidade das Constituições institucionaliza­se a partir da superação dos três pilares

nos quais se assenta(va) o positivismo jurídico (nas suas variadas formas e facetas): o

problema das fontes (a lei), a teoria da norma (o direito é um sistema de regras em que não há espaço para os princípios) e as condições de possibilidade para a compreensão

do fenômeno, isto é, a questão fulcral representada pela interpretação, ainda fortemente calcada no esquema sujeito­objeto, d’onde permanece o modelo subsuntivo, como se a

realidade fosse acessível a partir de raciocínios causais­explicativos.

Não se pode menosprezar o papel do positivismo ainda nos dias atuais. E para

tanto é necessário compreender a diferença entre a regra (positivista) e o princípio

(constitucional); o princípio atravessa a regra e resgata o mundo prático (obnubilado

pelo positivismo). E, na medida em que o mundo prático não pode ser dito no todo –

porque sempre sobra algo – o princípio traz à tona o sentido que resulta desse ponto de

26 Cfe. BERCOVICI, Gilberto e MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição Dirigente Invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição Econômica. In: Boletim de Ciências Econômicas da Universidade de Coimbra n. XLIX (2006), pp. 19 e segs.

27

encontro entre texto e realidade, em que um não subsiste sem o outro (aqui, o antidualismo entra como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno).

Em reduzida síntese: parece não haver dúvida de que o positivismo –

compreendido lato sensu – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas conseqüências no plano

da doutrina e da jurisprudência. Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de

que uma resposta mínima pode e deve ser dada a essas perplexidades: o

constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissória e dirigente – não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades

interpretativas.

Isto é, contra o objetivismo do texto (posturas normativistas­semânticas) e o

subjetivismo (posturas axiológicas que desconsideram o texto) do intérprete, cresce o

papel da hermenêutica de cariz filosófico, que venho trabalhando sob a denominação de

uma Crítica Hermenêutica do Direito, com a denominação inicial de Nova Crítica do Direito. 27 Embora o avanço e a importância das teorias do discurso para o enfrentamento das demandas de um universo de direito pós­positivista, em que a

jurisdição assume especial relevância, pela necessidade de controlar a

indeterminabilidade das normas que não conseguem – por impossibilidade filosófica –

abarcar as diversas hipóteses de aplicação, a hermenêutica de cariz filosófico pretende ir

além dos discursos prévios de fundamentação trazidos pelas teorias discursivas como

solução para o problema da subjetividade (e, portanto, da

discricionariedade/arbitrariedade) do juiz.

Daí a tarefa fundamental de qualquer teoria jurídica nesta quadra da história:

concretizar direitos, resolvendo problemas concretos. Nitidamente, ainda há uma

resistência à viragem hermenêutico­ontológica, instrumentalizada em (e por) uma

dogmática jurídica 28 (que continua) refratária a uma reflexão mais aprofundada acerca

do papel do direito no século XX. A compreensão das duas grandes revoluções

copernicanas ocorridas no direito e na filosofia é tarefa primordial dos juristas. Para

27 Ver, para tanto, STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit.; e, também, STRECK, Jurisdição Constitucional, op. cit. 28 A crítica à dogmática jurídica não significa, à toda evidência, qualquer pregação no sentido de que a dogmática jurídica seja despicienda. A dogmática jurídica pode ser crítica. E deve ser crítica. Afinal, não há direito sem dogmática, como bem assevera Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. É exatamente a partir de uma dogmática jurídica consistente e crítica que se pode construir as condições para evitar – ou minimizar – os decisionismos e as discricionariedades. Ver, nesse sentido, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Crítica à dogmática, n. 3, Porto Alegre, 2005, p. 37­44.

28

tanto, há que se ter claro, primeiro, que o neoconstitucionalismo veio para superar o positivismo; segundo, que tal circunstância acarreta conseqüências, como a

institucionalização da moral no direito, isto é, o território inexpugnável do mundo das

relações privadas do positivismo foi invadido pelo direito público, que passa a

atravessar todas as relações privadas, a partir da horizontalização dos direitos

fundamentais; terceiro, que, quando falamos da invasão da filosofia pela linguagem, tal

circunstância tem um fundo paradigmático, balizando o modo­de­ser dos juristas; por

que o direito ficaria imune a uma ruptura paradigmática ocorrida no campo da

filosofia?;

quarto, que é incompatível com a democracia pensar que os princípios – que

vieram para superar o mundo das regras do positivismo – promovam um abertura

interpretativa (lembremos o debate – talvez o mais importante do século XX, entre

Dworkin e Hart); quinto, que, na verdade – como de há muito venho afirmando ­, princípios

“fecham” a interpretação, proporcionando as condições para a construção de respostas

corretas em direito; sexto, que as posturas que “delegam” para o juiz o papel de resolver “casos

difíceis” são positivistas (portanto, na contramão do neoconstitucionalismo); sétimo, que a insistência em “reformas que objetivam efetividades quantitativas”

apenas reforçam o “caos” no sistema jurídico, porque desloca a problemática da

aplicação do direito para o plano da validade (veja­se as súmulas vinculantes),

perdendo­se a dimensão da concretude do direito; oitavo, que não se pode confundir hermenêutica com teoria da argumentação

jurídica, isto é, hermenêutica (filosófica) não é similar a nenhuma teoria da

argumentação (e suas derivações); portanto, não é possível com ela (con)fundir – por mais sofisticadas e importantes que sejam – as teses de Alexy, Atienza e Günther, para falar apenas destas; 29 também não é possível sustentar que a ponderação (feita em

29 De ressaltar o que parece evidente: a tese habermasiana é bem mais sofisticada que a teoria da argumentação stricto sensu. Portanto, as críticas à teoria argumentação não podem ser estendidas, tabula rasa, à teoria do discurso. As críticas à teoria do discurso assumem outra perspectiva. Mas, ao dizer que os participantes de uma situação discursiva tematizam uma pretensão de validade que se tornou problemática e verificam, num enfoque hipotético e apoiados apenas em argumentos, se a pretensão do oponente tem fundamento, parece que para Habermas a obtenção da resposta estará dependente da obediência da forma da argumentação, podendo soçobrar a conteudística, problemática que assume

29

etapas ou não) seja uma “atividade hermenêutica”, uma vez que o círculo hermenêutico

aponta exatamente para a superação de qualquer atividade interpretativa ligada ao

esquema sujeito­objeto, rejeitando, ipso facto, toda e qualquer possibilidade de subsunções ou deduções;

nono, que quando se fala na invasão da filosofia pela linguagem, mais do que a

morte do esquema sujeito­objeto, isso quer dizer que não há mais um sujeito que

assujeita o objeto (subjetivismos/axiologismos que ainda vicejam no campo jurídico) e

tampouco objetivismos; também por isso não é mais possível falar em subsunções ou

deduções e dualismos (cisões) entre regra e princípio, casos simples e casos difíceis;

décimo, que é um equívoco sustentar que o texto jurídico (mormente em tempos de neoconstitucionalismo, em que o direito aponta para a transformação das relações

sociais) é apenas “a ponta do iceberg” e que a tarefa do intérprete é a de revelar o que está “submerso”, isto porque, pensar assim, é dar azo à discricionariedade e ao

decisionismo, características básicas do positivismo; décimo­primeiro, que a fundamentação de decisões (pareceres, acórdãos, etc) a

partir de verbetes proto­lexicográficos e ementas jurisprudenciais sem contexto (além, é

claro, das súmulas) apenas reafirma o caráter positivista da interpretação jurídica, pois

esconde a singularidade dos “casos concretos”; décimo­segundo, é preciso ter em mente que a reprodução de ementas e verbetes

sem contexto apenas enfraquece a reflexão crítica, fenômeno que pode facilmente ser

constatado nas práticas tribunalícias (decisões que tão­somente reproduzem

ementários), retroalimentadas pela doutrina (“cultura” dos manuais), que vem

assumindo, dia­a­dia, um conceitualismo que a joga de volta ao realismo filosófico.

Numa palavra final e voltando ao início destas reflexões: em tempos (duros) de

pós­positivismo, definitivamente não é mais possível pensar na efetividade do direito

sem compreender as duas grandes revoluções copernicanas que atravessaram o direito e

a filosofia no século XX.

especial relevância quando se tratar da discussão de direitos fundamentais prestacionais. E, com isso, pode soçobrar a Constituição. Observe­se que, a “substituição” da tese do consenso por uma “praxis argumentativa”, conforme Habermas em Verdade e Justificação, implica colocar toda a ênfase na argumentação, que “permanece o único meio disponível para se certificar da verdade”, porque não há outra maneira de examinar pretensões de verdade tornadas problemáticas. Tal circunstância permite uma aproximação da teoria do discurso habermasiana da teoria da argumentação, pela qual, ao fim e ao cabo, somente é verdadeiro um enunciado se estiver em conformidade com um determinado

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procedimento, isto é, os procedimentos que regram a argumentação (em Habermas, a resposta estará dependente da obediência da forma da argumentação).