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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ ELINTON VARGAS LEMOS DO PRADO A GARANTIA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: A PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

ELINTON VARGAS LEMOS DO PRADO

A GARANTIA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: A PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA

FACTUM PROPRIUM

Rio de Janeiro 2006

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ELINTON VARGAS LEMOS DO PRADO

A GARANTIA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: A PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA

FACTUM PROPRIUM

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Profa. Dra. Rosângela Maria de Azevedo Gomes

Rio de Janeiro 2006

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VICE­REITORIA DE PÓS­GRADUAÇÃO E PESQUISA

A dissertação

A GARANTIA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: A PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA

FACTUM PROPRIUM

elaborada por

ELINTON VARGAS LEMOS DO PRADO

e [...] por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 31 de julho de 2006.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Profa. Dra. Rosângela Maria de Azevedo Gomes

Presidente e Orientadora ­ Universidade Estácio de Sá

________________________________________ Prof. Dra. Renata Braga Klevenhusen

Universidade Estácio de Sá

________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Takemi Dutra dos Santos Kataoka

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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RESUMO

Esta dissertação compreende um estudo sobre a proibição do venire

contra factum proprium como garantia da proteção de direitos fundamentais nas

relações de consumo, dentro do contexto orientado pela linha de pesquisa “Direitos

Fundamentais e Novos Direitos”. Nas relações de consumo, vivenciadas diariamente

por todos nós, podem ocorrer comportamentos contraditórios, particularmente por

parte do fornecedor, frustrando expectativas geradas pela legítima confiança

despertada pelo comportamento inicial, afetando direitos fundamentais

constitucionalmente assegurados; daí a proibição do venire contra factum proprium

(“vir contra os próprios atos”), já aplicada por alguns de nossos tribunais. Neste

contexto, são apresentadas sínteses referentes à evolução da sociedade de

consumo, à concepção jurídica oitocentista e às transformações ocorridas no século

XX. São analisados direitos fundamentais de interesse do venire e das relações de

consumo e, ainda, princípios norteadores do Código do Consumidor, de nítida

inspiração constitucional. Neste caminhar, são apresentados e analisados

fundamentos e pressupostos do venire contra factum proprium e, também, julgados

de nossos tribunais em que o venire é aplicado em demandas consumeristas. Ao

final, conclusões sobre a viabilidade, e conveniência, da proibição daquele brocardo

como garantia da proteção dos direitos fundamentais nas relações de consumo.

Palavras­chave: Direitos Fundamentais. Direito do Consumidor. Relações de

Consumo. Venire Contra Factum Proprium.

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ABSTRACT

The present study aims to scrutinize the venire contra factum proprium’s

veto whereas guarantee of fundamental rights’ protection in the consumer relations

within the context headed by de “Fundamental Rights” and “New Rights”’s line of

research. In the consumer relations, daily experienced by every person, it may be

arise conflicting behaviors, mostly from the service supplier, what frustrates

expectations given that it is caused by a genuine certitude stressed by an earlier

deed; what hassles the Fundamental Rights accomplishment, constitutionally

guaranteed for the consumer; hence as a result the venire contra factum proprium

have been barred and employed in some of our courts. Moreover, it is presented a

brief consideration about the consumer partnership’s evolution, consistent with

1800´s legal conception and the transformations, which came about in the XX

Century. The topic regards Fundamental Rights, on the subject of venire and the

consumer relations plus the guideline principles of the Code of Consumers Defense;

clearly inspired in that Constitution. Furthermore, the venire contra factum proprium´s

premises and presupposes are demonstrated and explored together with the

judgments performed by our courts in which the venire is operated in consumer’s

lawsuits. Next and as final point assumptions are exposed a propos the feasibility

and appropriateness of the brocard´s veto whereas guarantee of Fundamental

Rights’ protection in the consumer relations.

Key Words: Fundamental Rights. Consumers Right. Consumer Relations. Venire

Contra Factum Proprium.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 07

I AS RELAÇÕES DE CONSUMO................................................................................... 13

1.1 O liberalismo econômico................................................................................... 13

1.2 A concepção jurídica oitocentista ................................................................... 16

1.3 O exponencial crescimento da sociedade de consumo e a alteração da dogmática constitucional........................................................................... 18

1.3.1 O século das grandes transformações e o cenário atual ........................ 19

1.3.2 Valores e princípios constitucionais contemporâneos e as relações consumeristas: os direitos fundamentais................................................. 20

1.3.2.1 A constitucionalização das relações de consumo.................................... 23

1.3.2.2 Reflexos na técnica legislativa adotada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor............................................................................. 30

II PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS.............. 35

2.1 A boa­fé objetiva...................................................................................... 36

2.1.1 Considerações gerais.............................................................................. 36

2.1.2 As funções da boa­fé objetiva.................................................................. 38

2.1.2.1 A boa­fé objetiva como critério de interpretação...................................... 39

2.1.2.2 A boa­fé objetiva como criadora de deveres anexos............................... 41

2.1.2.2.1 Dever de informar.................................................................................... 44

2.1.2.2.2 Dever de cooperação............................................................................... 47

2.1.2.2.3 Dever de cuidado..................................................................................... 48

2.1.2.3 A boa­fé objetiva como limitadora do exercício de direitos...................... 49

2.2 A transparência........................................................................................ 52

2.3 A confiança............................................................................................... 54

2.4 A equidade contratual.............................................................................. 56

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III O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM ...................................................... 59

3.1 Considerações iniciais.............................................................................. 59

3.2 O venire, a boa­fé objetiva e o abuso do direito ...................................... 61

3.3 Fundamentos do venire contra factum proprium...................................... 67

3.4 Pressupostos do venire contra factum proprium...................................... 68

3.5 A proibição do venire contra factum proprium.......................................... 72

3.6 O venire e o direito estrangeiro ................................................................ 75

3.7 O venire e o ordenamento jurídico brasileiro ........................................... 80

IV AS RELAÇÕES DE CONSUMO E O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM 86

4.1 O Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a proibição do venire contra factum proprium............................................................................. 86

4.2 Incidência do venire contra factum proprium nas relações de consumo: análise de casos concretos...................................................................... 89

4.2.1 No cumprimento da obrigação pelo fornecedor....................................... 89

4.2.2 No recebimento das prestações do consumidor...................................... 92

4.2.3 No inadimplemento das prestações pelo consumidor.............................. 95

4.2.4 Na fase pré­contratual.............................................................................. 97

4.2.4.1 Decorrentes da publicidade de produtos e/ou serviços............................ 100

4.2.4.2 Decorrentes da oferta de produtos e/ou serviços..................................... 108

CONCLUSÃO........................................................................................................... 112

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 117

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INTRODUÇÃO

No início do século XIX, as legislações, particularmente as de origem

romano­germânica, sofreram o impacto das codificações napoleônicas, elaboradas

com base na filosofia liberal, individualista, positivista, que aflorou do movimento

revolucionário francês.

Em nosso País, as bases de tal filosofia se fizeram presentes, com

reflexos no Código Comercial de 1850 e, particularmente, no Código Civil de 1916,

por muito tempo considerado a verdadeira “Constituição do Direito Privado” do

Brasil, principalmente quando o direito público e o direito privado ocupavam

compartimentos quase que estanques.

A legislação brasileira, sob tal influência, foi elaborada de forma peculiar,

privilegiando técnicas legislativas em que imperavam conceitos determinados,

cláusulas fechadas, enumerativas. A atividade interpretativa do Judiciário era

mínima, pois a legislação, em geral, era calcada em ‘situações­tipo’, na taxatividade.

Paulatinamente, durante o Séc. XX, este cenário foi se modificando. Os

limites dos compartimentos, anteriormente ocupados pelo direito privado e pelo

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direito público, perdem sua rigidez, de forma que, atualmente, nem sempre são

identificáveis. 1

O advento da Constituição Brasileira de 1988 (CF/88) constitui um marco

nesta evolução. Mesmo sendo demasiadamente detalhista, a CF/88, ao eleger a

dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República, alterou

radicalmente a essência dogmática de nosso ordenamento jurídico, impondo uma

releitura de toda legislação infraconstitucional. Em um país sem tradição em controle

de constitucionalidade 2 , a CF/88 adquire, então, um status nunca vivenciado por

uma Constituição Brasileira.

E a legislação infraconstitucional mais recente, elaborada sob a égide de

princípios e valores fundamentais constitucionais, reflete a nova dogmática. Dentre

estes dispositivos legais, destaca­se o Código de Proteção e Defesa do Consumidor

(CPDC), elaborado por expressa determinação constitucional. Tal determinação foi

motivada pela vulnerabilidade intrínseca ao consumidor, imerso em um ambiente

caracterizado pelo crescimento espantoso da quantidade e variedade de produtos e

serviços oferecidos à população em geral, além do crédito e da propaganda

peculiares ao ambiente consumerista. Enfim, é a configuração da chamada

sociedade de consumo, em que, via de regra, o consumidor é o pólo mais fraco da

relação jurídica que se forma, é o hipossuficiente, a merecer adequada proteção

estatal.

Assim, com a promulgação do CPDC, o relacionamento entre fornecedor

e consumidor passou, necessariamente, a ser pautado por deveres de conduta

1 TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, passim. 2 “A idéia de controle de constitucionalidade está ligada (...) à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais”. MORAES, Alexandre de. Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais. São Paulo: Atlas, 2000, p. 223.

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norteados por princípios e valores emanados do texto constitucional, como a boa­fé

objetiva, a confiança, a equidade e a transparência.

Ressalte­se que as relações jurídicas de consumo proliferam, estão

presentes em nosso dia­a­dia, de forma intensa, pois consumidores somos todos

nós. E, neste contexto globalizado e mutante, o comportamento coerente nem

sempre é observado pelas partes, frustrando expectativas criadas em quem nele

confiou.

No entanto, conforme assevera Anderson Schreiber, embora o direito à

incoerência também seja merecedor de tutela, há “necessidade de tutelar as

legítimas expectativas e as fundadas esperanças daqueles sobre quem o

comportamento repercute”. Defende, aquele autor, o emprego do brocardo latino

venire contra factum proprium (vir contra os próprios atos) como um princípio de

proibição ao comportamento contraditório, a ser aplicado quando, da liberdade de

mudar de opinião e de conduta, “possa derivar prejuízo a quem tenha legitimamente

confiado no sentido objetivo de um comportamento inicial”. Em sua obra 3 , uma das

poucas, no Brasil, dedicadas ao venire, Anderson Schreiber analisou casos e

hipóteses de incidência do venire contra factum proprium em vários Institutos do

Direito. As Relações de Consumo, porém, não foram especificamente contempladas

em seu trabalho.

Emergem, portanto, desta realidade, a justificativa e a motivação para a

realização do presente estudo, realizado sob o enfoque de uma das linhas de

pesquisa do curso de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA)

– “Direitos Fundamentais e Novos Direitos”.

3 SCHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, passim.

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Na pesquisa realizada foi aplicada metodologia multidisciplinar, com

utilização de abordagens dedutivo­indutivas, e uso de técnicas a consultas

bibliográficas. Além de obras que já possuíamos, e outras que adquirimos

especificamente para o trabalho, foram utilizadas bibliotecas, inclusive da UNESA, e

livrarias comerciais para fazer anotações de interesse. Também foram utilizados

textos trabalhados nas aulas do Mestrado e, ainda, a internet, em variados sites

jurídicos.

Para o desenvolvimento do trabalho, procuramos observar a delimitação

expressa no próprio tema “A garantia da proteção dos direitos fundamentais nas

relações de consumo: a proibição do venire contra factum proprium”. Não serão

analisadas situações inerentes à dimensão coletiva das relações de consumo e,

ainda, à atividade jurisdicional.

O objetivo é verificar se a técnica legislativa adotada na elaboração do

CPDC, e seus princípios, seriam complementados, ou não, pela dimensão

dogmática da proibição do venire contra factum proprium; se existe jurisprudência,

de relações consumeristas, em que seria factível a referência ao brocardo, com

relação ao fornecedor e/ou consumidor; se, em resumo, no contexto das relações de

consumo, seria pertinente considerar o princípio de proibição do venire contra factum

proprium como garantidor de direitos fundamentais.

Para melhor compreensão do assunto, além de aspectos históricos

inerentes ao direito do consumidor e sua constitucionalização, são inicialmente

apresentadas algumas considerações sobre princípios, particularmente o da boa­fé

objetiva, cujo entendimento julgamos essencial para a compreensão global do

trabalho.

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Assim, observando diretrizes inerentes à linha de pesquisa referenciada,

o trabalho foi estruturado em quatro capítulos, além da presente introdução e da

conclusão.

No primeiro capítulo são apresentadas sínteses pertinentes às

revoluções industrial e francesa, e suas influências na concepção jurídica

oitocentista e na conformação da chamada sociedade de consumo. São

referenciadas, também, as grandes transformações ocorridas no século XX, e

analisados princípios e direitos fundamentais contemporâneos, particularmente os

inerentes à Constituição Brasileira de 1988, e o relacionamento dos mesmos com o

CPDC, inclusive com a técnica legislativa adotada pelo referido Código.

O segundo capítulo é dedicado à reflexões sobre princípios que informam

o CPDC. A boa­fé objetiva, e suas funções, a confiança, a transparência e a

equidade são princípios apresentados para que se possa, nos capítulos seguintes,

melhor compreender o conteúdo do venire contra factum proprium e sua aplicação

na proteção dos direitos fundamentais nas relações de consumo.

O terceiro capítulo é direcionado para o entendimento do brocardo latino

venire contra factum proprium, de sua essência dogmática, de sua aplicabilidade.

Com este objetivo, são apresentados os fundamentos e os pressupostos do

brocardo e considerações sobre a sua aplicação em casos concretos, e, ainda, uma

síntese do venire no direito estrangeiro e em outros institutos do ordenamento

jurídico brasileiro.

O quarto e último capítulo trata da aplicação do venire contra factum

proprium nas relações de consumo. Após considerações iniciais sobre a atitude do

CPDC em face de comportamento aparentemente contraditório, são analisados

vários julgados de nossos tribunais, inerentes a relações de consumo, uns adotando

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expressamente o venire contra factum proprium, e outros sem alusão expressa ao

brocardo, pois tratando de situações positivadas na legislação consumerista, o que

afasta, em princípio, a configuração do venire contra factum proprium, conforme

doutrina predominante.

Na conclusão do trabalho são apresentadas considerações que indicam a

validade da utilização do brocardo nas demandas consumeristas e sua progressiva

adoção pelos nossos tribunais. Enfatiza­se, ainda, a perfeita sintonia da aplicação da

proibição do venire contra factum proprium, como princípio, com a moderna técnica

legislativa adotada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor e,

particularmente, com o rol de valores e direitos fundamentais consagrados pela

Constituição Brasileira de 1988.

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CAPÍTULO I

AS RELAÇÕES DE CONSUMO

1.1 O liberalismo econômico

No decorrer dos séculos XVIII e XIX, o pensamento econômico inglês

evoluiu e refletiu as mudanças enfrentadas pela sociedade. Se no século XVI, os

mercantilistas viam na obtenção do ouro e da prata a maneira mais importante de

enriquecer o país, a própria necessidade de exportar para adquirir o metal

evidenciou aos economistas a verdadeira fonte de riqueza: a capacidade de

produzir. Escritores como Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo, dentre

outros, dedicaram­se a escrever sobre as causas da riqueza, a divisão do trabalho, a

ação do Estado, os salários, o mercado etc., conformando idéias que, a partir da

experiência da economia inglesa, vão embasar a teoria do liberalismo econômico 4 .

4 GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. São Paulo: Pioneira, 1984, passim.

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O liberalismo econômico prega, então, o fim da intervenção do Estado na

produção e na distribuição das riquezas, o fim das medidas protecionistas e dos

monopólios e defende a livre concorrência entre as empresas e a abertura dos

portos entre os países.

Para Adam Smith, ao contrário dos mercantilistas, não havia necessidade

de o Estado intervir na economia, pois ela era guiada por uma "mão invisível", isto é,

pelas leis naturais do mercado. Essas leis eram a livre concorrência e a competição

entre os produtores as quais determinavam o preço das mercadorias e eliminavam

os fracos e os ineficientes. Segundo Smith, o próprio mercado regulamentava a

economia, trazendo a harmonia social, sem a necessidade da intervenção da

autoridade pública. As funções do Estado seriam garantir a lei, a segurança e a

propriedade, além de proteger a saúde e incentivar a educação 5 .

Assim, foi consolidada a sociedade burguesa liberal capitalista, baseada

na igualdade jurídica entre os homens, na livre­iniciativa e na empresa privada. Os

indivíduos deveriam ser livres para comprar, vender, investir e fazer contratos de

acordo com seus interesses. O equilíbrio do sistema estava na concorrência entre as

empresas, que levava a constantes aperfeiçoamentos tecnológicos e ao

desaparecimento das menos aptas.

Entretanto, ao lado do aumento da riqueza e da prosperidade da

burguesia, dona do capital, cresceu o pauperismo dos trabalhadores assalariados,

no campo e na cidade. 6

5 Idéias fundamentais, como a da divisão do trabalho ou a da organização natural da vida econômica, foram particularmente aprofundadas por Adam Smith. Neste sentido, ver: SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. 2 vol. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 6 Sobre a situação da burguesia e a “desmoralização dos novos pobres industrializados e urbanos”, no início do século XIX, ver: HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789­1848. 17ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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Para os defensores do liberalismo, nada poderia ser feito por esses

trabalhadores, e, qualquer lei que objetivasse diminuir a exploração do trabalho,

seria uma interferência indevida do Estado, o que somente prejudicaria as relações

entre os homens, considerados livres e iguais.

Dentro das fábricas, mudanças importantes aconteceram: a

produtividade e a capacidade de produzir aumentaram velozmente; aprofundou­se

a divisão do trabalho e cresceu a produção em série.

Nessa época, segunda metade do séc. XIX, ocorreu o que se

convencionou chamar de Segunda Revolução Industrial. Uma das características

mais importantes desse período foi a introdução de novas tecnologias e novas

fontes de energia no processo produtivo. Pela primeira vez, tendo como pioneiros a

Alemanha e os Estados Unidos, a ciência era apropriada pelo capital, sendo posta

a serviço da técnica, ao contrário da primeira revolução industrial onde as

tecnologias eram resultados espontâneos e autônomos. Agora, empresas eram

criadas com o fim de descobrirem novas técnicas de produção. 7

Com o brutal aumento da produção, acirrou­se cada vez mais a

concorrência. Era cada vez maior a necessidade de se garantirem novos mercados

consumidores, novas fontes de matérias­primas e novas áreas para investimentos

lucrativos.

As novas tecnologias foram empregadas, principalmente, nas indústrias

metalúrgica e siderúrgica, e no transporte ferroviário. Esses setores industriais

dependiam de investimentos maiores que aqueles realizados na primeira fase da

Revolução Industrial. Era necessária a união de vários empreendedores para a

produção das novas mercadorias. Boa parte da indústria passou a contar com o

7 Para reflexões sobre a situação industrial, econômica e social, ao final do século XIX, ver: HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios: 1875­1914. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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capital bancário ou financeiro.

No final do séc. XIX, a fusão entre o capital industrial e o financeiro e,

mesmo a fusão entre indústrias, levou ao aparecimento de empresas gigantescas,

os monopólios e oligopólios (empresas de grande porte que se associam para

controlar o mercado), ocorrendo, com isso, um enfraquecimento da livre

concorrência. Pela baixa competitividade, as pequenas empresas, que não

acompanharam essa nova tendência do desenvolvimento econômico capitalista,

faliram ou foram absorvidas pelas grandes.

1.2. A concepção jurídica oitocentista

Ao final do séc XVIII, com o advento da Revolução Francesa, exigências

provenientes da nova realidade, reflexo da oposição ao antigo regime feudal, vieram

consagrar as doutrinas individualista e voluntarista, típicas do liberalismo, que

caracterizaram o Código de Napoleão (1804) que, por sua vez, inspirou as demais

codificações do Século XIX.

A filosofia do Estado Liberal exigia uma separação quase absoluta entre

o Estado e a Sociedade, que, por isso, não devia intervir nas relações obrigacionais

dos particulares. Pelo contrário, deveria permitir a liberdade contratual como reflexo

do postulado máximo da autonomia da vontade, criadora do próprio Estado

politicamente organizado. Assim, ao julgador cabia apenas um controle formal da

presença ou ausência da vontade e de um consenso isento de vícios ou defeitos,

sem controlar o conteúdo do contrato (justeza e do equilíbrio das obrigações

pactuadas). Por sua vez à lei cabia apenas uma função interpretativa ou, no máximo,

supletiva da vontade.

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Neste sentido, assinala Gustavo Tepedino:

a codificação destinava­se, assim, a proteger uma certa ordem social, erguida sob a égide do individualismo e tendo como pilares, nas relações privadas, a autonomia da vontade e a propriedade privada. O legislador não deveria interferir nos objetivos a serem alcançados pelos indivíduos, cingindo­se a garantir a estabilidade das regras do jogo, de tal maneira que a liberdade individual, expressão da inteligência de cada um dos contratantes, pudesse se desenvolver francamente, apropriando­se dos bens jurídicos, os quais, uma vez adquiridos, não deveriam sofrer restrições ou limitações exógenas. 8

Ressalte­se, portanto, que o valor fundamental, naquela época, era o

indivíduo, de matizes patrimonialistas; o direito privado regulava a atuação dos

sujeitos de direito, principalmente o contratante e o proprietário. O direito público, por

sua vez, não interferia na esfera privada, e, em conseqüência, o Código Civil

assume o papel de estatuto exclusivo, monopolizador das relações privadas,

verdadeira “Constituição do direito privado”. Foi essa filosofia que influenciou, de

forma marcante, o legislador brasileiro que, no início do Séc. XX, redigiu o nosso

Código Civil / 1916.

Entretanto, no continente europeu, ainda no século XIX, os movimentos

sociais, impulsionados por uma realidade cada vez mais cruel com os assalariados,

provocaram questionamentos contestando os fundamentos da filosofia liberal. Nos

valemos, ainda, dos ensinamentos de Gustavo Tepedino:

no entanto, na Europa, já na segunda metade do século XIX, por influência do início do processo de industrialização, a concepção exclusivamente individualista entra em declínio. Aumenta o debate sobre a propriedade face às exigências de ordem social e pela evolução econômica e tecnológica, que, de forma progressiva, acarretam transformações expressivas no conjunto de preceitos legais relacionados com os bens em geral. 9

8 TEPEDINO, Gustavo. As Relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 201. 9 TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 4.

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Paralelamente às modificações nos processos de produção, distribuição

e comercialização, surgiram novos instrumentos jurídicos – os contratos coletivos, de

massa, contratos por adesão, cujas cláusulas gerais são pré­estabelecidas

unicamente pelo fornecedor do produto ou serviço, sem qualquer participação do

consumidor. Neste contexto, o direito clássico se revelou ultrapassado, conforme

leciona Sergio Cavalieri Filho:

Os remédios contratuais clássicos também se revelaram ineficazes para dar proteção efetiva ao consumidor em face das novas cláusulas engendradas para os contratos em massa. E essa disciplina jurídica deficiente, arcaica, ultrapassada, foi o clima propício para a proliferação de todas as práticas abusivas possíveis, aí incluídas as cláusulas de não indenizar ou limitativas da responsabilidade, o controle do mercado, a eliminação da concorrência, e assim por diante, gerando insuportáveis desigualdades econômicas e jurídicas entre o fornecedor e o consumidor. 10

1.3. O exponencial crescimento da sociedade de consumo e a alteração na

dogmática constitucional

A industrialização não provocou mudanças apenas na forma de

produção, mas direcionou toda a configuração do espaço atual. Modificou as

relações sociais e territoriais, difundiu cultura e técnica, aprofundou a competição

entre os povos, concentrou a população no espaço e provocou o crescimento cada

vez maior das cidades 11 .

A ciência, estreitamente ligada à atividade econômica, revela­se, então,

um elemento fundamental para as empresas, pois o desenvolvimento científico e

10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 409/410. 11 Sobre as mudanças provocadas pela industrialização, ver BURNS, Edward. História da Civilização Ocidental. Vol. 2. Rio de Janeiro: Globo Editora, 2001.

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tecnológico, revertido em novos produtos e em redução de custos, permite a elas

maior capacidade de competição num mercado extremamente disputado.

1.3.1 O século das grandes transformações e o cenário atual

Neste contexto, no Séc. XX, as transformações ocorridas no mundo

foram marcantes. 12 Com impactante revolução científico­tecnológica, aquele século

contemplou espantosa evolução de uma sociedade dita de consumo, onde o tempo

entre qualquer inovação e sua difusão, em forma de produto ou serviço, tornou­se

cada vez mais imediato.

E, ainda no transcorrer do século XX, à evolução econômica, aos

movimentos sociais e aos avanços científicos e tecnológicos, extraordinariamente

crescentes, agregam­se os efeitos aterradores de duas guerras mundiais.

Em decorrência das profundas transformações sociais vivenciadas nesse

cenário, novos direitos surgiram objetivando a satisfação de necessidades da

sociedade antes sequer imaginadas pela legislação oitocentista 13 .

Tal trajetória culmina, no Brasil, com o texto constitucional promulgado

em 1988, que consagra valores que alteram, substancialmente, os fundamentos de

nosso ordenamento jurídico.

Neste início de milênio, as transformações em nossa sociedade

continuam extraordinariamente intensas, dinâmicas, incessantes. O mundo respira

globalização, internet. Os meios de comunicação minimizam distâncias, interagem

indivíduos e seus interesses, que formalizam e desfazem negócios com

impressionante rapidez; os meios de transporte movimentam pessoas e mercadorias

12 Sobre as profundas transformações ocorridas no século XX, ver: HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914­1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 13 CAVALIERI FILHO, 2002, op. cit., p. 408.

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em quantidade e condições antes inconcebíveis; as fronteiras, de qualquer natureza,

são relativizadas, assim como os anseios e as opiniões dos grupos e dos indivíduos.

Há profusão de informações, de variadas origens, de distintos matizes. Não há

posições imutáveis, rígidas, nem dos países, nem dos indivíduos. Hoje, se pensa e

se age de uma forma; amanhã, quem saberá?

No Brasil, como em outros países, grandes conglomerados industriais,

comerciais, financeiros etc., dominam e manipulam o mercado de consumo,

diversificado e globalizado. No contexto desta realidade social, a desigualdade,

econômica, cultural, jurídica etc., existente entre o consumidor brasileiro e os

fornecedores de produtos e serviços, assume proporções gigantescas, com

profundos reflexos no dia­a­dia das pessoas em geral, necessariamente

consumidoras.

Neste sentido, as palavras do eminente Ministro, do STJ, Sálvio de

Figueiredo Teixeira:

A última metade do século XX, todavia, assistiu ao crescente avanço da indústria e do comércio, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, a partir de quando os mercados se ampliaram para atingir a circulação universal da riqueza. Nos últimos cinqüenta anos, a par do surgimento dos blocos econômicos comunitários, entre os quais se destaca a União Européia, assistimos ao agigantamento dos grupos econômicos e empresariais e à concentração da produção em empresas em variados setores. E no crepúsculo do século passado, o fenômeno da globalização possibilitou ainda mais que os fornecedores de produtos e serviços se unissem em corporações internacionais de grande porte. Enquanto isso, do outro lado permaneciam os “consumidores” em sua esfera individual, como destinatários finais dessa produção. 14

1.3.2 Valores e princípios constitucionais contemporâneos e as relações

consumeristas: os direitos fundamentais

14 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A Proteção do Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro. In Revista Forense. Rio de Jameiro, vol 370, nov/dez 2003, p. 177.

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A Constituição Brasileira de 1988 consolidou a prevalência de uma série

de valores intrinsecamente ligados ao ser humano e à sua dignidade, em abismal

contraste com a filosofia oitocentista que centrava seu foco na vontade do indivíduo

como fundamento maior das relações jurídicas privadas.

Como muito bem afirma Maria Celina Bodin de Moraes:

Bem outra é a tábua axiológica trazida pelas longas constituições do século XX, elaboradas e promulgadas após o término da 2ª Guerra Mundial. No novo cenário, o valor fundamental deixou de ser a vontade individual, o suporte fático­jurídico das situações patrimoniais que importava regular, dando lugar à pessoa humana e à dignidade que lhe é intrínseca. No caso brasileiro, esta mudança de perspectiva se deu por força do art. 1º, III da Constituição Federal de 1988 e da nova ordem que ela instaura, calcada na primazia das situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial. 15

Verifica­se, de imediato, nos artigos 1º e 3º da CF/88, os valores

constitucionais fundamentais que, obviamente, devem informar todo o texto

constitucional e toda legislação infraconstitucional. São priorizadas a cidadania e a

dignidade do ser humano, fundamentos da República. Os objetivos fundamentais

estão direcionados para a solidariedade, para a erradicação da pobreza e redução

das desigualdades sociais. Dessa forma, a elaboração e a interpretação de nossa

legislação devem ser implementadas considerando, imperativamente, o novo rol de

valores emanados da Constituição.

Nesse sentido, são oportunas as palavras de Gustavo Tepedino:

A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte. 16

15 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípio da Solidariedade. In FILHO, Firly Nascimento; GUERRA, Isabella Franco; PEIXINHO, Manoel Messias (Coords.). Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 177. 16 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil­constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar 2001, p.47.

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Nesse quadro, a dignidade, fundamento constitucional, é considerada

como “qualidade intrínseca e indissociável” de todo ser humano de tal forma que a

destruição de um importa na destruição do outro. Neste sentido, assevera Ingo

Wolfgang Sarlet:

Inicialmente, cumpre salientar – retomando a idéia nuclear que já se fazia presente até mesmo no pensamento clássico – que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. 17

Por esses motivos é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa

humana configuram objetivos permanentes do Estado brasileiro.

Deve­se observar, ainda, que o século XX fez aflorar, com vigor,

certamente por influência da conscientização do imenso poder de destruição à

disposição do homem, evidenciado pelos acontecimentos da 2ª Guerra Mundial, um

sentimento que há séculos dormitava no escaninho das intenções, e agora,

redimensionado e direcionado para a preservação da dignidade do ser humano, é

chamado de solidariedade. Assim, o solidarismo, que, até pouco tempo atrás, tinha

existência nebulosa e infirmada, hoje, intrinsecamente ligado aos direitos

fundamentais do ser humano, constitui objetivo fundamental da República.

Nesta direção, são esclarecedoras as palavras de Maria Celina Bodin de

Moraes:

Este sentimento, o senso de igual dignidade para todas as pessoas humanas, é novo, não existia no passado. Ele decorre da conscientização de ‘estarmos todos no mesmo barco’. É, pode­se dizer, a semente criadora de uma nova consciência moral, de uma nova ética. As grandes

17 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 41/42.

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transformações, pois, não se deram apenas em nível tecnológico, mas também e, principalmente, no que respeita às concepções culturais: foi no decorrer deste século que os direitos das crianças, das mulheres, das minorias raciais foram globalmente difundidos, que o racismo, o preconceito e a intolerância passaram a ser mal vistos, considerados como comportamentos socialmente ‘incorretos’. 18

Atualmente, portanto, pode­se constatar que a solidariedade,

configurando um princípio fundamentado na sociabilidade latente na essência do ser

humano, representa um meio de implementar as transformações sociais e assegurar

a dignidade das pessoas, particularmente as minorias e as mais carentes.

Nesta altura, por oportuno, devemos ressaltar os dizeres de Lenio Luiz

Strek alertando que a profunda alteração na dogmática constitucional exige a

atenção de todos, principalmente do jurista, “acerca do significado da Constituição,

naquilo que ela tem de norma diretiva (dirigente) fundamental”. E prossegue, o

ilustre autor, afirmando:

Portanto, o significado de Constituição depende do processo hermenêutico que desvendará o conteúdo de seu texto, a partir dos novos paradigmas exsurgentes da prática dos tribunais encarregados da justiça constitucional. Com isso, os conceitos de soberania popular, separação de poderes, maiorias parlamentarias, cedem lugar à legitimidade constitucional, instituidora de um constituir da sociedade. Do modelo de Constituição formal, no interior da qual o direito assumia um papel de ordenação, passa­ se a revalorização do Direito, que passa a ter um papel de transformação da realidade da sociedade, superando, inclusive, o modelo do Estado Social. É para este salto paradigmático que deve estar atento o jurista. 19

1.3.2.1 A Constitucionalização das Relações de Consumo

O pensamento jurídico contemporâneo assinala que a Constituição

Federal deve incidir diretamente sobre as relações privadas. As normas

18 MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: Tendências. In Revista dos Tribunais, v. 779. São Paulo: RT, set. de 2000, p. 51. 19 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais­Sociais no Brasil. In ANDRADE, André (org.). Constitucionalização do Direito. A Constitucionalização como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 41

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infraconstitucionais devem ser interpretadas de forma coerente com os princípios 20

consagrados pela Constituição Federal de 1988 21 , como os princípios da dignidade

do ser humano, da igualdade substancial, da solidariedade, dentre outros. Neste

sentido, leciona Maria Celina Bodin de Moraes:

As normas de direito civil devem ser interpretadas como reflexo de normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (porque regulação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Em conseqüência, transforma­se o direito civil: de regulamentação da atividade econômica individual, entre homens livres e iguais, para regulamentação da vida social, na família, nas associações, nos grupos comunitários, onde quer que a personalidade humana melhor se desenvolva e sua dignidade seja mais amplamente tutelada. 22

Rogério Gesta Leal, também nesta direção, manifestando­se sobre os

Direitos Humanos e Fundamentais como elementos operativo­constitutivos do

Estado Democrático de Direito no Brasil, aborda a natureza e os significados dos

princípios constitucionais asseverando que:

os princípios constitucionais, por sua própria essência, evidenciam mais do que comandos generalíssimos estampados em normas, em normas da Constituição. Expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores éticos e sociais como fundantes de uma idéia de Estado e de

20 Os princípios “são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9 ed. Rio de Janeiro: Malheiros, 1993, p. 84. Referindo­se aos princípios com a expressão “mandado de otimização”, Robert Alexy assevera que: “Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau em que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos”. ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, Princípios Jurídicos y Razón Práctica. Doxa: Universidad de Alicante, nr. 5. 21 Sobre a Constituição Federal e os princípios constitucionais, assevera Luis Roberto Barroso: "E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade funcional brasileira, tornou­ se uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos. A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu no Brasil, a nova interpretação constitucional." BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 5/6. 22 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, nr. 65. São Paulo: RT, jul­set. 1993, p. 28.

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25

Sociedade. Os princípios não expressam somente uma natureza jurídica, mas também política, ideológica e social, como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer sistema jurídico. Contudo, expressam, uma natureza política, ideológica e social, normativamente predominante, cuja eficácia no plano da práxis jurídica deve se impor de forma altaneira e efetiva. 23

Quanto, especificamente, às relações de consumo, a Constituição de

1988 inseriu a defesa do consumidor entre os direitos e garantias fundamentais ao

determinar, em seu art. 5º, inciso XXXII, que o “Estado promoverá, na forma da lei, a

defesa do consumidor”. A seguir, em seu art. 170º, V, a Constituição incluiu a defesa

do consumidor entre os princípios gerais da ordem econômica. E, ainda, determinou,

no art. 48º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o prazo de

120 dias, a contar da promulgação da Constituição, para que o Congresso

elaborasse o Código de Proteção e Defesa do Consumidor 24 .

No Título IV da Constituição Federal, destinado à tributação e ao

orçamento, em sua Seção II, que se refere às limitações ao poder de tributar, o § 5°

do art. 150 dispõe que ''a lei determinará medidas para que os consumidores sejam

esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços'',

determinando que se ofereça o devido esclarecimento acerca dos tributos incidentes

sobre bens objeto de relações de consumo, em clara preocupação com o grau de

informação que deve receber o consumidor, o que, aliás, é a tônica do CPDC.

23 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 168. 24 Sobre a presença do Estado nas relações consumeristas, afirma Cristiano Chaves de Farias: “A proteção ao consumidor exige – e não poderia ser diferente – maior interferência do Estado nas relações privadas. É o intervencionismo estatal como forma de superação da vulnerabilidade do consumidor. (...) A tutela do consumidor, revelando­se, é de se repetir, como importante aspecto da proteção à própria pessoa humana, rompeu com a unidade sistemática do Código Civil (fruto do próprio movimento de descodificação, inspirador da criação de microssistemas jurídicos), estando assentada em princípios e normas próprias, dotada de autonomia científica e dogmática”. A Proteção do Consumidor na Era da Globalização. In Revista Forense, vol. 369. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 67.

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26

A necessidade da devida informação acerca do produto que o

consumidor venha adquirir é mais do que uma mera necessidade, mas sim um dever

que se impõe a todos os fornecedores que oferecem produtos ou serviços no

mercado consumerista. Além disso, o dever de bem informar os consumidores nada

mais é do que uma irradiação de um princípio basilar do Código de Proteção e

Defesa do Consumidor, que é o princípio da boa­fé objetiva, 25 de nítida conformação

constitucional.

Verifica­se, portanto, que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor

foi inserido em nosso ordenamento por expressa determinação constitucional,

objetivando restabelecer o equilíbrio e a igualdade nas relações de consumo,

profundamente abaladas pelo descompasso entre o social e o jurídico. Assim, a

vulnerabilidade do consumidor é a própria razão de ser do nosso Código do

Consumidor: ele existe porque o consumidor está em desvantagem técnica e jurídica

em relação ao fornecedor; ele consagrou uma nova concepção de contrato – um

conceito social, no qual a autonomia da vontade não é mais o seu único e essencial

elemento, mas também, e principalmente, os efeitos sociais que esse contrato vai

produzir e a situação econômica e jurídica das partes que o integram. 26

Podemos constatar, ainda, que uma das mais importantes realizações

legislativas dos princípios constitucionais da atividade econômica é o Código de

Proteção e de Defesa do Consumidor, que regulamenta a relação contratual de

consumo. Seu âmbito de abrangência é enorme, pois alcança todas as relações

25 A imposição do princípio da boa­fé objetiva como paradigma para as relações contratuais em geral, e não só para as relações de consumo, foi assegurada pelo art. 422, do Código Civil de 2002: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios da probidade e boa­fé”. 26 CAVALIERI FILHO, 2002, op. cit., p. 410­411.

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havidas entre os destinatários finais 27 dos produtos e serviços lançados no mercado

de consumo por todos aqueles que a lei considera fornecedores, vale dizer, dos que

desenvolvem atividade organizada e permanente de produção e distribuição desses

bens. Assim, o Código do Consumidor subtraiu da regência do Código Civil a quase

totalidade dos contratos em que se inserem as pessoas, em seu cotidiano de

satisfação de necessidades e desejos econômicos e vitais.

Conseqüência, portanto, de categórica manifestação constitucional, o

Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em vigor há mais de 15 anos, adotou,

em seu art. 4º, princípios nos quais se fundamenta.

Dentre os princípios esposados pelo Código, podemos destacar o

princípio da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CPDC). Este princípio atua

como elemento informador da Política Nacional das Relações de Consumo e é tido

como o núcleo base de onde se irradiam todos os outros princípios informadores do

sistema consubstanciado no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Ao se examinar a cadeia consumerista, constata­se que o consumidor é

o elemento mais fraco dela, por não dispor do controle sobre a produção dos

produtos, se submetendo ao poder dos detentores destes. Neste sentido, afirma

Cláudia Lima Marques:

Uma das partes é vulnerável (art. 4, I), é o pólo mais fraco da relação contratual, pois não pode discutir o conteúdo do contrato; mesmo que saiba que determinada cláusula é abusiva, só tem uma opção “pegar ou largar”, isto é, aceitar o contrato nas condições que lhe oferece o fornecedor ou não aceitar e procurar outro fornecedor. Sua situação é estruturalmente e faticamente diferente da do profissional que oferece o contrato. Este desequilíbrio de forças entre os contratantes é a justificação para um tratamento desequilibrado e desigual dos contratantes, protegendo o direito

27 Segundo a teoria finalista, consumidor é o destinatário final do produto ou serviço, aquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família; pela teoria maximalista, são consumidores todos os agentes da cadeia de consumo. Neste sentido: MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 253 e ss.

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àquele na posição mais fraca, o vulnerável, o que é desigual fática e juridicamente. 28

Assim, a vulnerabilidade é indissociável do consumidor numa relação de

consumo, não se confundindo com a hipossuficiência, que é uma característica

restrita a determinados consumidores.

O princípio da boa­fé objetiva, que traz uma carga significativa de regra

geral de comportamento, está expressamente referido no inciso III, art. 4°, sendo

que a confiança integra seu conteúdo. 29 De certa maneira, o princípio da boa­fé

objetiva encontra­se difundido em grande parte dos dispositivos do Código do

Consumidor, desde a instituição de seus direitos básicos (art. 6°), percorrendo pelo

capitulo referente à reparação por danos pelo fato do produto, e, orientando

basicamente os capítulos referentes às práticas comerciais, a publicidade, e a

proteção contratual. O inciso IV do art. 51 do Código do Consumidor, por exemplo,

considera nulas de pleno direito cláusulas contratuais que sejam incompatíveis com

a boa­fé e eqüidade. 30

A harmonia das relações de consumo e a transparência, indicadas no

caput do art. 4° como um dos escopos da Política Nacional das Relações de

Consumo, serão o resultado da conduta geral da boa­fé, que deve ser buscada

28 MARQUES, 2004, op. cit., p. 268. 29 Nesta direção, assinala o Prof. Anderson Schreiber: “Com efeito, ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela­se, em um plano axiológico­normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa­fé objetiva, mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados ao direito privado como um todo”. SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 89­90. 30 Neste sentido, assevera Gustavo Tepedino, referindo­se ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor: “Os princípios da boa­fé objetiva e do equilíbrio das prestações reduzem a importância da vontade individual, em obediência aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, que integram o conteúdo do Estado social de direito delineado pelo constituinte”. Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In TEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil­Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13.

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29

pelos dois pólos componentes das relações de consumo: consumidor e fornecedor,

mesmo que ocupem posições antagônicas frente ao conflito de seus interesses.

Sobre o princípio da informação, expresso no inciso IV do art. 4º do

Código do Consumidor, o jurista Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

esclarece que “não há sociedade sem comunicação de informação. A história do

homem é a história da luta entre idéias, é o caminhar dos pensamentos. O pensar e

o transmitir o pensamento são tão vitais para o homem como a liberdade física". 31

No mundo globalizado em que vivemos, marcado por avanços

tecnológicos impressionantes, constata­se que a informação circula com velocidade

crescente, difundida por variados meios de comunicação, fazendo com que ela,

informação, passe a ter uma relevância jurídica antes não reconhecida.

Será deste interesse jurídico, o de saber melhor no ato da decisão, "para

que o homem não seja levado a assumir comportamentos que não correspondam a

uma perfeita compreensão da realidade" 32 , que o direito de informação está

expressamente referenciado no inciso IV do art. 4º do Código de Proteção e de

Defesa do Consumidor, com o objetivo de coibir que os cidadãos sejam levados a

“consumir pela ilusão, e não através da realidade”.

Pelo exposto, podemos constatar que, nos princípios e normas

consumeristas em geral, estão sedimentados os mesmos valores que, direcionados

para a promoção da dignidade do ser humano, constituem a essência dogmática da

Constituição Federal de 1988. Daí o Código de Proteção e Defesa do Consumidor

acasalar, integralmente, a opção constitucional, privilegiando a dignidade do ser

humano, em sua roupagem diuturna de consumidor.

31 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. A Informação como Bem de Consumo. In Revista Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor. São Paulo, vol 41, jan/mar 2002, p. 255. 32 Ibidem, p. 256.

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1.3.2.2 Reflexos na técnica legislativa adotada pelo Código de Proteção e Defesa do

Consumidor

Vimos que a filosofia liberal influenciou, de forma decisiva, as

codificações elaboradas na Europa, no início do século XIX, edificadas sob a égide

do individualismo, que consagrava os postulados da liberdade absoluta e da

igualdade formal.

Nossos legisladores, na elaboração do Código Civil de 1916, foram

influenciados por tais postulados. O Código regulava toda a vida social, de maneira

completa, genérica, neutra, de forma que não havia Direito fora do Código Civil 33 .

Neste contexto, o Código Civil, de matizes patrimonialistas, estava

inserido em um sistema jurídico fechado, hermético, configurando um produto do

positivismo jurídico, que tinha por escopo a criação de um sistema jurídico que

possibilitasse maior previsibilidade e segurança.

No entanto, logo após a entrada em vigor do Código Civil de 1916, o

descompasso do mesmo com a mutante realidade sócio­econômica, a demandar

direitos e garantias, motiva o início do fenômeno da superação daquele Código. A

série de leis especiais editadas a partir da década de 1930, de forte conteúdo social,

retira o caráter de exclusividade, no Direito Privado, do Código Civil. A promulgação

da Constituição Federal de 1988, que passou a contemplar, em seu texto, diversos

institutos civilísticos, atesta o esmaecimento da fronteira entre o público e o privado,

além de motivar o surgimento de diversas leis setoriais, disciplinadoras de universos

33 Segundo Eduardo Sens dos Santos, o “direito civil passa a ser unicamente a interpretação dos termos do Código Civil e a pertinência das normas passa a ser julgada a partir de critérios formais, somente, sem qualquer consideração quanto ao conteúdo”. O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: Exame da Função Social do Contrato. In Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, abril­ junho, 2002, v. 10, p. 12.

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31

específicos, elaboradas com técnica legislativa bem mais condizente com as

incessantes transformações na sociedade 34 .

Nesta trajetória, portanto, altera­se radicalmente a concepção filosófica

de nosso legislador, que agora utiliza a técnica das cláusulas gerais 35 , de crucial

importância para a passagem do sistema jurídico fechado para um sistema aberto. O

Direito, inserido em um sistema aberto, flexível, dinâmico, permite maior

discricionariedade do juiz em cada caso, que, inclusive, pode valer­se de conceitos

extrajurídicos ou metajurídicos resgatados da Economia, Sociologia, Biologia,

Engenharia, Ciência Política, enfim, por todas aquelas ciências que, de alguma

forma, possam colaborar para uma decisão mais justa do caso concreto.

Ademais, assinale­se que a vagueza semântica da expressão ‘cláusula

geral’, diante da imprecisão e indeterminação do seu conteúdo, é de suma

importância no processo de abertura do sistema jurídico, pois possibilita a

necessária mutabilidade ao Direito.

Assim, inserida numa sociedade em diuturna mutação, massificada,

plural, despersonalizadora, produtora voraz de contratos de massa, inclusive de

contratos eletrônicos, da bio­genética, dentre outras realidades da sociedade

contemporânea, a cláusula geral tem sido um instrumental hermenêutico poderoso e

imprescindível, à disposição dos operadores do direito, particularmente dos

34 TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In TEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil­ Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 1 a 16, passim. 35 A noção de cláusula geral pode ser entendida como a “formulação de uma hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de casos”. Conceitualmente, contrapõe­se a uma elaboração casuística das hipóteses legais, “que circunscreve particulares grupos de casos na sua especificidade própria”. A grande vantagem da cláusula geral sobre o casuísmo está em, graças à sua generalidade e abertura, tornar possível regular um vasto número de situações, que talvez sequer pudessem ser já previstas ao tempo da edição da lei respectiva, enquanto a técnica casuística enseja o risco de uma regulação fragmentária e provisória da matéria abrangida. ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkain, 2001, p. 228/229. Sobre a técnica das cláusulas gerais, ver: PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27 e ss.

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magistrados, na proteção do contratante vulnerável e, por via reflexa, na consecução

do ideal de Justiça Social.

Neste sentido, Judith Martins­Costa leciona

que as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivaseconômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo 36 .

Em suma, com tal técnica legislativa, é conferida ao Magistrado uma

maior liberdade para solucionar a novel casuística, de maneira responsável e

prudente, ficando a seu critério a utilização de conceitos metajurídicos e

multissignificativos, de emprego geral e eficaz.

E nossa legislação infraconstitucional elaborada após a Constituição

Federal de 1988, sob o enfoque de princípios e valores fundamentais

constitucionais, caracteriza­se por ser alicerçada, igualmente, em princípios e

valores, com emprego acentuado de cláusulas gerais e conceitos indeterminados 37 ,

o que atende, em melhores condições, situações vivenciadas em um ambiente

globalizado e em constante mutação. Neste sentido, afirma Gustavo Tepedino:

As constituições contemporâneas e o legislador especial utilizam­se de cláusulas gerais convencidos que estão da sua própria incapacidade, em face da velocidade com que evolui o mundo tecnológico, para regular todas as inúmeras e multifacetadas situações nas quais o sujeito de direito se insere. Cláusulas gerais equivalem a normas jurídicas aplicáveis direta e imediatamente nos casos concretos, não sendo apenas cláusula de intenção. 38

36 MARTINS­COSTA, Judith. A Boa­Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000, p. 274. 37 Conceitos indeterminados são os que, por concreta opção do legislador, envolvam uma definição normativa imprecisa a qual se terá de dar, na fase de aplicação, uma definição específica, em face de casos concretos. São aqueles cujo “conteúdo e extensão são em larga medida incertos”. ENGISCH, 2001, op. cit., p. 208. 38 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 19.

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33

Neste contexto, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CPDC)

é, sem dúvida, reconhecidamente avançado, atual. Utiliza técnica legislativa que

privilegia conceitos indeterminados e cláusulas gerais, e se fundamenta em

princípios emanados da Constituição Federal. Nesta direção, esclarece, ainda, o

ilustre Professor Gustavo Tepedino:

Na experiência brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Cidade são bons exemplos de ampla utilização da técnica de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados associada a normas descritivas de valores. 39

Registre­se, ainda, com relação ao CPDC, que a técnica legislativa

adotada na sua elaboração revela outras mudanças significativas. Não é, o CPDC,

uma legislação geral e abstrata, como a legislação clássica; é, isto sim, uma

legislação específica, voltada para a relação entre consumidor e fornecedor. O

CPDC define objetivos concretos, fixa as diretrizes da política nacional de consumo.

A linguagem empregada pelo legislador é “menos jurídica e mais setorial”,

atendendo a “exigências específicas”. De forma coerente com o texto constitucional,

que “impõe inúmeros deveres extrapatrimoniais nas relações privadas”, objetivando,

particularmente, a tutela da dignidade do ser humano, o CPDC contempla normas

relacionadas à qualidade de vida do consumidor. O CPDC não se limita a tratar do

direito substancial, pois introduz dispositivos processuais, institui tipos penais e

estabelece princípios interpretativos 40 .

Assim, princípios como o da vulnerabilidade do consumidor, da boa­fé

objetiva, da eqüidade, da informação, dentre outros, são constantemente

39 TEPEDINO, Gustavo. Crise de Fontes Normativas e Técnica Legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. In Revista Forense. Rio de Janeiro, vol 364, nov/dez 2002, p. 115. 40 TEPEDINO, 2001, op. cit., passim.

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referenciados, pela legislação, doutrina e jurisprudência, como essenciais para o

equilíbrio buscado para as relações de consumo.

Assinale­se, ainda, inovações, adotadas pelo Código de Proteção e

Defesa do Consumidor, como: a “formulação de um conceito amplo de fornecedor,

incluindo, a um só tempo, todos os agentes econômicos que atuam, direta e

indiretamente, no mercado de consumo”; um rol de “direitos básicos dos

consumidores e instrumentos de implementação”; proteção “contra todos os desvios

de quantidade e qualidade”; ampliação das “hipóteses de desconsideração da

personalidade jurídica das sociedades”; regramento da oferta e da publicidade;

“controle das práticas e cláusulas abusivas, bancos de dados e cobrança de dívidas

de consumo”; facilitação de acesso à justiça para o consumidor; incentivo à

composição privada entre consumidores e fornecedores”, dentre outras 41 .

Deve­se ressaltar, por oportuno, que a técnica legislativa empregada no

Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ao assegurar uma maior interação do

Direito com a realidade, exige, do Judiciário em geral, um trabalho interpretativo da

lei, em face de situações concretas, consentâneo com as luzes que emanam do

texto constitucional.

Cabe indagar, então, se a técnica legislativa adotada na elaboração do

CPDC, e seus princípios, seriam complementados, ou não, pela dimensão

dogmática da proibição do venire contra factum proprium, além de questionamentos

sobre jurisprudência da proibição do brocardo nas relações consumeristas e sobre a

pertinência desta proibição com a proteção aos direitos fundamentais.

41 GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do projeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 11.

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CAPÍTULO II

PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS

O Código de Defesa do Consumidor é uma lei eminentemente

principiológica, com vasta utilização não só de princípios, mas, também de conceitos

indeterminados. De seus variados dispositivos podem ser colhidos os princípios da

boa­fé, da transparência, da equidade, da confiança, da harmonia das relações de

consumo, da vulnerabilidade do consumidor, da segurança do consumidor, da

equivalência material entre consumidores e fornecedores, da informação, de

modificação de prestações desproporcionais, de revisão por onerosidade excessiva,

de acesso à justiça, da responsabilidade solidária dos fornecedores do produto ou

do serviço, da reparação objetiva, da interpretação favorável ao consumidor, além

dos princípios basilares constitucionais. Desses princípios defluem deveres gerais de

conduta correspondentes, nas relações jurídicas de consumo. 42

42 LOBO, Paulo Luiz Netto. Deveres Gerais de conduta nas obrigações civis. Jus navegandi. Disponível em <www1.jus.com.br/doutrina>. Acesso em 21 jun. 2005.

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Para a consecução dos objetivos traçados para este trabalho,

abordaremos, no presente capítulo, os princípios da boa­fé objetiva, da

transparência, da confiança e da equidade contratual.

2.1 A boa­fé objetiva

2.1.1 Considerações gerais

A boa­fé, em si, pode ser abordada em diferentes aspectos. À noção

de boa­fé subjetiva contrapõe­se à má­fé, que pode ser entendida genericamente

como o propósito de prejudicar alguém.

Ao contrário da boa­fé subjetiva, detectada pela conduta psicológica

do indivíduo, a boa­fé objetiva, exterior a ele, preocupa­se com a conduta que o

indivíduo teria numa determinada situação, impondo­lhe um comportamento de

respeito para com o outro. E configurando­se a boa­fé objetiva no campo

obrigacional, pouca importância tem o elemento subjetivo, pois o que o

ordenamento jurídico requer é a mera obediência a um determinado padrão de

conduta 43 .

É importante salientar que o nosso direito privado codificado comportava,

expressamente, apenas o sentido subjetivo da boa­fé. Com o advento do Código de

Proteção e Defesa do Consumidor (e, posteriormente, também com o Código Civil de

2002), introduziu­se o sentido objetivo da boa­fé, como regra de conduta, relacionada com

a confiança, com a lealdade, com a reciprocidade de deveres e com a preocupação com

43 Sobre o papel da boa­fé no direito obrigacional brasileiro, ver a excelente obra: MARTINS­COSTA, Judith. A boa­fé no direito privado – sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000.

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37

os interesses do outro, encontrando, assim, repercussão concreta no ordenamento jurídico

brasileiro.

Cláudia Lima Marques, ao conceituar boa­fé objetiva, aponta nesta

direção:

Boa­fé objetiva significa, portanto, uma atuação “refletida”, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando­o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes. 44

Além disso, a boa­fé objetiva tem fundamento constitucional, pois decorre dos

princípios fundamentais da dignidade humana e da solidariedade, funcionando como um

indispensável e eficaz instrumento jurídico a ser utilizado na eliminação das

desigualdades encontradas nas relações de consumo.

A boa­fé objetiva, portanto, passou a funcionar como um dos princípios

orientadores da atividade econômica, traduzindo um conceito econômico e social

de contrato, a serviço da finalidade social que este persegue. Desta forma, a

autonomia da vontade deve estar atrelada aos efeitos sociais que o pacto irá

produzir, possibilitando o restabelecimento da igualdade e do equilíbrio entre

consumidor e fornecedor.

É o que se depreende dos esclarecedores dizeres de Tereza

Negreiros que, ao se referir à boa­fé objetiva, argui a necessidade de

buscar na normativa constitucional critérios de interpretação e densificação desta noção que a funcionalizem à proteção da pessoa, de sua dignidade – onde e para onde, em última e definitiva instância, se radicam e convergem os princípios constitucionais. 45

44 MARQUES, 2004, op. cit., p. 181/182. 45 NEGREIROS, Tereza. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa­fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 81

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Neste sentido também se manifesta o Ministro Ruy Rosado de

Aguiar Junior:

A boa­fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (l iberdade, justiça e solidariedade, conforme está na Constituição da República) numa tentativa de concreção em termos coerentes com a racionalidade global do sistema. 46

Ao positivar a boa­fé objetiva, o Código de Proteção e Defesa do

Consumidor recepcionou­a, em seu art. 4, inciso III, como princípio, e, em seu art.

51, inciso IV, como cláusula geral, positivando em todo o seu corpo de normas a

existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais. 47

2.1.2 As funções da boa­fé objetiva

Como principio jurídico concernente à efetivação da proteção do

consumidor, parte vulnerável nas relações de consumo, e da busca da justiça

contratual, a boa­fé objetiva desempenha, sobretudo, a função de regra de

interpretação e integração não só dos contratos, como também da própria lei,

suprindo lacunas. Atua, do mesmo modo, como fonte criadora de deveres aos

contratantes, tais como o dever de informar e o dever de cooperação, e, por fim,

apresenta­se como limitadora da autonomia da vontade, restringindo o

comportamento das partes em determinados momentos.

Nesta direção são os dizeres do Ministro Ruy Rosado de Aguiar:

Na relação contratual de consumo, a boa­fé exerce três funções principais: a) fornece os critérios para a interpretação do que foi avençado pelas partes, para a definição do que se deve entender por cumprimento pontual

46 AGUIAR, Ruy Rosado de. A Boa­Fé nas Relações de Consumo. In Revista de Direito do Consumidor nr 14, abr/jun.1995, p. 20 a 27. 47 MARQUES, 2004, op. cit., p.185/186.

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das prestações; b) cria deveres secundários ou anexos; e c) limita o exercício de direitos. 48

2.1.2.1 A boa­fé objetiva como critério de interpretação

“A interpretação axiológica representa a superação histórica e cultural

da interpretação literal”. 49 Nesta direção, Gustavo Tepedino, dissertando sobre a

interpretação dos negócios jurídicos e a boa­fé objetiva, nos ensina que:

A leitura da cláusula geral da boa­fé objetiva a partir dos princípios constitucionais informadores da atividade econômica privada permite desvendar o verdadeiro sentido transformador do preceito na teoria da interpretação dos negócios jurídicos. Com efeito, o dever de interpretar os negócios conforme a boa­fé objetiva encontra­se irremediavelmente informado pelos quatro princípios fundamentais para a atividade econômica privada, quais sejam: 1. A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); 2. O valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF); 3. A solidariedade social (art. 3º, I, CF); 4. A igualdade substancial (art. 3º, III, CF). Os dois primeiros encontram­se inseridos no Texto Maior como fundamentos da República, enquanto os últimos são objetivos da República. 50

Prossegue o ilustre professor, agora discorrendo sobre as relações de

consumo e a nova teoria contratual:

O exame de cláusula contratual não poderá se limitar ao controle de ilicitude, à verificação da conformidade da avença às normas regulamentares expressas relacionadas à matéria. A atividade interpretativa deverá, para além do juízo de ilicitude, verificar se a atividade econômica privada atende concretamente aos valores constitucionais, só merecendo a tutela jurídica quando a resposta for positiva. 51

Assim, a boa­fé objetiva atua como regra hermenêutica em face da

necessidade de qualificar comportamentos que não resultam de expressa

48 AGUIAR, 1995, op. cit., p. 20 a 27. 49 PERLINGIERI, 2002, op. cit., p. 73. 50 TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In Revista Forense, vol 364. Rio de Janeiro: Forense, nov/dez 2002, p.122. 51 TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 211.

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disposição legal, nem de cláusulas pactuadas, mas que são exigíveis às partes,

para que possam ser produzidos os efeitos esperados do contrato. E o melhor

instrumento para assegurar o equilíbrio e a justiça nas relações de consumo,

mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a

interpretação judicial do contrato a favor do consumidor, decorrente do princípio

da boa­fé objetiva, prevista no art. 47 do Código de Proteção e Defesa do

Consumidor.

A boa­fé objetiva, como critério hermenêutico, obriga a uma

interpretação que privilegie o sentido alicerçado na lealdade e na honestidade

entre as partes, afastando interpretações dúbias, maliciosas, direcionadas a

prejudicar a contraparte.

Interpretando­se as relações de consumo segundo os ditames da

boa­fé objetiva, chega­se à constatação de que, havendo divergência, deverá

prevalecer a vontade declarada de forma autônoma sobre a vontade interna,

prestigiando­se o sentido objetivo do contrato como forma de acautelar o

consumidor, exceto quando o destinatário puder conhecer a vontade real do

declarante, tendo noção de que a declaração não correspondia ao ideal do outro

contratante.

Dessa forma, sem se ater à mera subsunção do fato à letra da lei, o

julgador deverá preencher o conteúdo do princípio caso a caso, através de

valorações e comparações com a jurisprudência atinente, inovando em casos que,

geralmente, envolvem o desequilíbrio entre prestações contratuais. Entretanto,

encontrará limites na exigência de fundamentação de suas decisões e de sua

conformidade com o ordenamento jurídico.

Alem disso, ao interpretar o contrato de consumo de acordo com a

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41

boa­fé objetiva e, via de regra, a favor do consumidor, o aplicador deverá não só

verificar se houve ou não abuso, como também ter em mente quais eram os

deveres do fornecedor e como suas práticas e cláusulas tentaram afastar o

cumprimento deles, pois, afinal, o CPDC é norma de ordem pública e os direitos

assegurados aos consumidores são indisponíveis por contrato.

2.1.2.2 A boa­fé objetiva como criadora de deveres anexos

Na atual concepção social do contrato não é apenas o momento da

manifestação da vontade que importa, mas também, e principalmente, os efeitos do

contrato na sociedade, onde a condição social e econômica das partes envolvidas

ganha em importância. A lei limita e legitima a autonomia da vontade, procurando

valorizar a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa­fé da partes

contratantes.

Neste contexto, observa­se não somente a obrigação de prestar, mas,

também, obrigações de conduta. Estas são identificadas como deveres anexos

(segundo expressão alemã) ou, ainda, obrigações acessórias (segundo expressão

francesa) ao indicar não apenas uma obrigação principal, mas também as

obrigações acessórias que devem ser observadas.

Neste sentido são as palavras da Profa. Cláudia Lima Marques:

Passa­se a visualizar o contrato como uma relação jurídica dinâmica, que “nasce, vive e morre”, vinculando durante certo tempo, talvez mesmo anos, um fornecedor de serviços, por exemplo, o organizador do plano de seguro­ saúde ou a seguradora, e um consumidor e seus dependentes. O contrato é uma relação jurídica total e contínua, que nasce em determinada data, vinculando, por exemplo, determinado fornecedor de produto e um consumidor e desenvolvendo­se mesmo antes do implemento do termo inicial ou do vencimento da prestação principal através do nascimento, da modificação ou imposição de novos direitos e deveres para ambas as

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42

partes. (...) podemos concluir tratar­se a relação jurídica contratual em um feixe de obrigações múltiplas e recíprocas. 52

Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, esta visão dinâmica e realista do

contrato permite observar que as relações contratuais, em todas as suas etapas,

fazem nascer direitos e deveres distintos daqueles resultantes da obrigação

principal. A relação contratual (e também a extracontratual) vincula pessoas,

formaliza contatos no âmbito da sociedade, e, neste contexto, para preservar a

harmonia e o equilíbrio nas relações em geral, impõe­se a observância, por todos,

de deveres gerais de conduta em conformidade com a boa­fé e o direito. 53

Os deveres gerais de conduta, que se impõem tanto ao devedor quanto

ao credor, não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de

adimplemento; derivam diretamente de princípios normativos e irradiam­se sobre a

relação jurídica obrigacional e seus efeitos, conformando e determinando, de modo

cogente, tanto o débito como o crédito. Os deveres gerais de conduta exigem

interpretação de seus efeitos e alcances diretamente conjugada aos dos princípios

de onde fluem.

Do exposto, depreende­se que, no cenário contemporâneo das relações

contratuais de consumo, emergem, com vigor, novas obrigações com base no

princípio da boa­fé objetiva, mesmo que as partes não se refiram a elas, ou que,

mesmo formalmente, as tenham excluído.

Leonel Severo Rocha afirma que a criação de deveres jurídicos não

expressamente estipulados pelas partes é possível se entendemos o sistema

52 MARQUES, 2004, op. cit., p. 182. 53 LOBO, 2005, op. cit., passim.

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43

jurídico como uma totalidade sistêmica, “operativamente fechado para manter a sua

unidade e cognitivamente aberto para poder observar a sua diferença constitutiva”. 54

Esse tipo de sistema é definido por Gunther Teubner como um sistema

autopoiético. A clausura normativa autopoiética do sistema jurídico não implica,

necessariamente, em um isolamento sistêmico do mundo jurídico, mas funciona

justamente como uma condição de sua abertura aos eventos produzidos no meio

que o envolve. O fluxo de eventos de fora do sistema estimularia os respectivos

processos evolutivos internos ocasionando o evoluir do próprio sistema jurídico,

ainda que seu critério de relevância básico continuasse a ser definido pela sua

clausura. “O modo como as normas jurídicas se referem às normas no contexto das

chamadas cláusulas gerais (“boa­fé”, “interesse público”) é um ótimo exemplo disto

mesmo”. 55

Neste sentido também são as esclarecedoras palavras do Ministro Ruy

Rosado de Aguiar Junior:

A boa­fé é cláusula geral, que permite a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais. Porém, funciona dentro do sistema no sentido de que nele encontra sua fundamentação e dele retira o caráter juridicamente normativo de seu enunciado. Como “janela” do sistema jurídico, a boa­fé permite o conhecimento de elementos externos não positivados, ou positivados em outro sentido, que se impõem à consideração e podem levar a uma decisão para além do que estava programado (culpa post pactum finitum) ou mesmo em contrariedade (supressio; adimplemento substancial) a algum preceito expresso, que é assim reelaborado ou desconsiderado em função da atuação prevalente do princípio. A concepção de sistema aberto é, portanto, indispensável à compreensão da cláusula da boa­fé, mas, entenda­se, aberto interna e externamente. 56

54 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: CLAM, Jean, ROCHA, Leonel Severo, SCHWARTZ, Germano. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiética do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005, p. 36. 55 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1993, p. 84. 56 AGUIAR JR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2003, p. 248/249.

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Ainda segundo o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, referindo­se à

boa­fé objetiva como cláusula geral, para sua aplicação deve­se considerar que a

inter­relação humana deve pautar­se por um padrão ético de confiança e lealdade,

indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência social. A

expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente

indissociável da vida de relação, sem o qual ela mesma seria inviável. 57

Acrescenta, ainda, o ilustre Ministro, que este dever de comportar­se

segundo a boa­fé se projeta a sua vez nas direções em que se diversificam todas as

relações jurídicas: direitos e deveres. “Os direitos devem exercitar­se de boa­fé; as

obrigações têm de cumprir­se de boa­fé”. 58

Os deveres nascidos da boa­fé estão, portanto, presentes em todas as

fases do contrato e são chamados de secundários, ou anexos, convivendo com os

provenientes da vontade contratada, que são os principais. Eles têm a natureza de

deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade.

2.1.2.2.1 Dever de Informar

É o mais conhecido dos deveres anexos. Está presente desde a fase

pré­contratual, como também após a execução do contrato, face aos riscos

descobertos no produto ou serviço contratado. Consiste na obrigação,

principalmente, do fornecedor de prestar aos consumidores todas as informações

necessárias sobre o produto ou o serviço que porventura adquirirão, assim como

sobre o contrato em si, para que esses possam realmente tomar ciência do que

57 Ibidem, p. 244. 58 DIEZ­PICAZO, Luis. Prólogo a WIEACKER, Franz. El Princípio General de Buena Fé. 2. ed., Madrid, Editorial Civitas, 1986.

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45

estão contratando, protegendo, desse modo, a confiança neles despertada de

que o que contrataram vai­lhes ser realmente devido.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º., inciso

III, relaciona, entre os direitos básicos do consumidor, “a informação adequada e

clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de

quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como, sobre os

riscos que apresentam”.

O direito à informação adequada, suficiente e veraz é um dos pilares do

direito do consumidor. O acesso à informação, em especial, é indeclinável, para que

o consumidor possa exercer dignamente o direito de escolha, máxime quando as

necessidades não são apenas reais, mas induzidas pela publicidade massificada.

O direito fundamental à informação visa, portanto, à concreção das

possibilidades objetivas de conhecimento e compreensão, por parte do consumidor

típico, destinatário do produto ou do serviço. Restará “assegurado ao consumidor se

o correspectivo dever de informar, por parte do fornecedor, estiver cumprido. É o

ônus que se lhe impõe, em decorrência do exercício da atividade econômica lícita”.

Assim, cumpre­se o dever de informar quando a informação recebida

pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e

veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles

importa descumprimento do dever de informar.

Neste sentido são as palavras de Paulo Luiz Netto Lobo:

Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida. A cognoscibilidade abrange não apenas o conhecimento (poder conhecer) mas a compreensão (poder compreender). Conhecer e compreender não se confundem com aceitar e consentir. Não há declaração de conhecer. O consumidor nada declara. A cognoscibilidade tem caráter objetivo; reporta­ se à conduta abstrata. O consumidor em particular pode ter conhecido e não compreendido, ou ter conhecido e compreendido. Essa situação concreta é irrelevante. O que interessa é ter podido conhecer e podido

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46

compreender, ele e qualquer outro consumidor típico destinatário daquele produto ou serviço. A declaração de ter conhecido ou compreendido as condições gerais ou as cláusulas contratuais gerais não supre a exigência legal e não o impede de pedir judicialmente a ineficácia delas. Ao julgador compete verificar se a conduta concreta guarda conformidade com a conduta abstrata tutelada pelo direito. 59

Neste contexto, as informações prestadas por vendedores, por meio de

prospectos, manuais, marketing em geral criam expectativas nos consumidores,

consideradas legítimas por lei, e que uma vez descumpridas, caracterizarão

inadimplemento contratual. A falta de informação acarreta, também,

responsabilidade objetiva do fornecedor, pois se equipara, segundo o art. 12, caput,

do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a um “defeito” do produto ou

serviço.

Preocupa­se o Direito do Consumidor com a fase pré­contratual

porque é justamente nela que se constitui a atividade destinada a dar vida ao

futuro contrato. Por isso, ampliou­se a noção de oferta, estabelecida pelo art. 30

do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CPDC), para alcançar a

informação ou publicidade veiculada e assegurar o respeito à confiança nelas

depositada pelos consumidores instados a contratar.

Apesar de ser vista como eficaz instrumento de incremento de vendas,

a publicidade sempre foi considerada juridicamente neutra e encarada como

mero convite para contratar. No entanto, não mais podem ser ignorados os

efeitos da publicidade sobre a vontade e a conseqüente liberdade de escolha dos

consumidores em nossa sociedade de consumo, pois a oferta de bens ou

serviços se faz, habitualmente, por meio dela, publicidade.

E é por essa razão que a oferta passou a abranger quaisquer

59 LOBO, Paulo Luiz Netto. A Informação como direito fundamental do consumidor. Jus Navegandi. Disponível em <www1.jus.com.br/doutrina>. Acesso em 02 mar. 2006.

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47

métodos, técnicas ou instrumentos publicitários que aproximam o consumidor

dos produtos e serviços colocados a sua disposição no mercado. Acentuaram­se,

em contrapartida, as circunstâncias em que a oferta se faz e também a concreta

expectativa que gera nos destinatários de seu fiel cumprimento, elementos que

passaram a ter um papel decisivo na detecção de quando e em que medida os

deveres advindos da boa­fé objetiva foram fraudados. 60

O dever de informar pode, portanto, ser considerado como o dever

anexo mais importante, senão imprescindível, a ser observado pelos

fornecedores em suas relações com os consumidores.

E como efeitos da exigência do dever de informar encontram­se as

obrigações do fornecedor de, por exemplo, redigir o contrato de forma clara e

precisa (art. 54, § 3º do CPDC), dando destaque especial para as cláusulas

limitativas dos direitos do consumidor (art. 54, § 4 a do CPDC), sob pena de tais

cláusulas não o obrigarem (art. 46 do CPDC) e de as informações mal prestadas

poderem ser por ele exigidas (arts. 20 e 35, ambos do CPDC).

2.1.2.2.2 Dever de Cooperação

É a obrigação de colaborar durante a execução do contrato, é agir com

lealdade e não obstruir ou impedir.

Esse dever está relacionado com a manutenção do vínculo contratual e

implica, principalmente, a obrigação de ambas as partes colaborarem para o

adimplemento do contrato, mantendo­se fiéis à finalidade contratual e às

expectativas da outra parte, de maneira que seu comportamento seja coerente

60 MARQUES, 2004, op. cit., passim.

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48

com a intenção manifestada, evitando­se o elemento surpresa. Ao fornecedor,

especificamente, cabe a obrigação de não dificultar o acesso do consumidor aos

seus direitos ou de não inviabilizar a prestação devida, fazendo­se, quando possível,

uma renegociação, de forma a evitar uma ruptura brusca e inesperada da relação

de consumo. Alem disso, não deverá ele fazer exigências infundadas, cujo intento

seria só o de se beneficiar de eventual inadimplência do consumidor ou de

desmotivá­lo a exigir a prestação contratada.

Nesse sentido, nos ensina Cláudia Lima Marques:

A doutrina atual germânica considera ínsito no dever de cooperar positivamente, o dever de renegociar (neuverhandlungspflichte) as dívidas do parceiro mais fraco, por exemplo, em caso de quebra da base objetiva do negócio. Cooperar aqui e submeter­se às modificações necessárias a manutenção do vínculo (princípio da manutenção do vinculo do art. 51, § 2° do CDC) e a realização do objetivo comum e do contrato. Será dever contratual anexo, cumprido na medida do exigível e do razoável para a manutenção do equilíbrio contratual, para evitar a ruína de uma das partes (exceção da ruína aceita pelo art. 51, §2° do CDC) e para evitar a frustração do contrato: o reflexo será a adaptação bilateral e cooperativa das condições do contrato. 61

2.1.2.2.3 Dever de cuidado

Refere­se aos cuidados redobrados que os contratantes devem ter durante a

execução do contrato para não causar danos ao outro, em razão do abuso de sua posição

contratual. Preserva­se, desse modo, os contratantes de danos à sua integridade

pessoal, à sua honra, ao seu credito e patrimônio, tendo em vista que objetiva a

equivalência das prestações, de maneira que uma parte não venha a obter vantagens

exageradas em relação à outra.

Um dos reflexos do dever de cuidado está contido no art. 42 do Código de

Proteção e Defesa do Consumidor, concernente a obrigação do fornecedor de, na

61 MARQUES, 2004, op. cit., p. 198.

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cobrança de débitos, ter um cuidado redobrado ao fazê­la, respeitando o consumidor, de

forma a não expô­lo a ridículo, não lhe causar qualquer tipo de constrangimento, ou de não

lhe fazer ameaças infundadas.

A essas obrigações acrescentam­se, ainda, na fase pós­contratual, os

deveres de segredo quanto a informações obtidas durante a execução do contrato, o de

proteção à pessoa e a seu patrimônio, o de alerta, aviso e retirada ativa (art. 8 a e ss. do

CPDC), e o de garantia da fruição do resultado do contrato como, por exemplo, o

fornecedor disponibilizar para o consumidor peças para reposição de um determinado

produto ­ o "recall",muitas vezes realizado por empresas montadoras de carros.

2.1.2.3 A boa­fé objetiva como limitadora do exercício de direitos

Outra função da boa­fé objetiva é a de servir como causa limitadora da conduta,

reduzindo a liberdade de atuação dos contratantes, seja controlando a transferência dos

riscos profissionais para o consumidor ou liberando­o em face da não razoabilidade de

outra conduta. É uma função negativa, pois proíbe os contratantes de estabelecerem

livremente o conteúdo do contrato ou de exercerem ilimitadamente os direitos dele

advindos, através da imposição de um novo modelo de atuação não abusiva, baseado

em valores de lealdade, confiança e respeito mútuo.

Anderson Schreiber, referindo­se à função limitadora da boa­fé objetiva, por ele

chamada de “restritiva de direitos”, com propriedade assim se manifesta:

A terceira função geralmente atribuída à boa­fé objetiva é a de impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança que deve imperar nas relações privadas. Trata­se de uma aplicação da boa­fé em seu sentido negativo ou proibitivo: vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conformem aos standards impostos pela cláusula geral. Aqui, a doutrina utiliza freqüentemente a expressão exercício inadmissível de direitos, referindo­se ao exercício

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aparentemente lícito, mas vedado por contrariar a boa­fé. 62

A boa­fé objetiva, portanto, também se manifesta por meio da vedação do uso

abusivo da exceção de contrato não cumprido, quando o inadimplemento da outra parte, no

contexto do contrato, não o autorizar; ou do impedimento do exercício do direito de

resolução do contrato quando houver adimplemento substancial. O efeito do princípio,

nesses casos, é o de impedir que a parte que tenha violado deveres contratuais exija o

cumprimento das obrigações assumidas pela outra ou se valha do seu próprio

incumprimento para se beneficiar. E a noção que surge como justificativa para essa

proibição é a de proteção da confiança que ambos os contratantes depositaram um no

outro.

Assim, a nenhum dos contratantes é permitido o exercício de uma posição

jurídica em contradição com seu comportamento exercido anteriormente, ou seja, após

ter criado no outro, com sua conduta anterior, expectativas seguras quanto ao contrato.

Também fica, por isso, vedada a prática reiterada de certos atos que possam gerar no

beneficiário a falsa expectativa de sua continuidade.

Neste sentido, são esclarecedoras as palavras do Ministro Ruy Rosado

de Aguiar Junior:

como limitadora da conduta, a boa­fé se manifesta através da teoria dos atos próprios, proibindo o venire contra factum proprium; vedando o uso abusivo da exceptio nom adimpleti contractus, quando o inadimplemento da outra parte, no contexto do contrato, não o autorizava; impedindo o exercício do direito potestativo de resolução quando houve adimplemento substancial, ou quando o inadimplemento foi de escassa importância; afastando a exigência de um direito cujo titular permaneceu inerte por tempo considerado incompatível (suppressio); desprezando a exigência de cumprimento de preceito, feita por aquele que já o descumprira (tu quoque) etc. 63

62 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 83. 63 AGUIAR JR., 1995, op. cit., p. 20­27.

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51

Esclarece, ainda, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, que a teoria

dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium, protege uma

parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com

o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar certa expectativa, em

razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há

quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário

ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. O credor que concordou, durante

a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em tempo e

lugar diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência

literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja

univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à

conduta esperada.

Na supressio, um direito não exercido durante um determinado lapso de

tempo não poderá mais sê­lo, por contrariar a boa fé. O contrato de prestação

duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo tempo, por falta de

iniciativa do credor, não pode ser exigido, se o devedor teve motivo para pensar

extinta a obrigação e programou sua vida nessa perspectiva. Enquanto a prescrição

encobre a pretensão pela só fluência do tempo, a supressio exige, para ser

reconhecida, a demonstração de que o comportamento da parte era inadmissível

segundo o princípio da boa fé.

Já a surrectio consiste no nascimento de um direito, conseqüente à

prática continuada de certos atos. A duradoura distribuição de lucros de sociedade

comercial, em desacordo com os estatutos, pode gerar o direito de recebê­los do

mesmo modo, para o futuro.

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52

Por fim, ainda segundo o ilustre Ministro, aquele que descumpriu norma

legal ou contratual, atingindo com isso determinada posição jurídica, não pode exigir

do outro o cumprimento do preceito que ele próprio já descumprira ("tu quoque"). O

condômino que viola a regra do condomínio e deposita móveis em área comum, ou a

destina para uso próprio, não pode exigir do outro comportamento obediente ao

preceito. Quem já está em mora, ao tempo em que sobrevêm circunstâncias

modificadoras da base do negócio, não pode pretender a revisão ou a resolução

judicial. 64

O capítulo III, deste trabalho, tratará da teoria dos atos próprios, do venire

contra factum proprium, de interesse maior para o presente trabalho.

2.2. A transparência

Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser

vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações

entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré­contratual. 65

Pelo princípio da transparência, previsto no Código de Proteção e Defesa

do Consumidor, em seu artigo 4º, caput, assegura­se ao consumidor a plena ciência

da exata extensão das obrigações assumidas perante o fornecedor. Deve o

fornecedor transmitir efetivamente ao consumidor todas as informações

indispensáveis à decisão de consumir ou não o produto ou serviço.

Tal princípio fundamenta o direito básico do consumidor à informação

adequada e clara sobre os produtos e serviços e, neste sentido, está referenciado,

também, no CPDC, em seus artigos 6°, III, 8°, caput, 31, 37, §3°, 46 e 54, §§3° e 4°,

64 AGUIAR JR., 2003, op. cit., p. 254­255. 65 MARQUES, 2004, op. cit., p. 595.

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e implica assegurar ao consumidor a plena ciência da exata extensão das

obrigações assumidas perante o fornecedor.

Segundo Cláudia Lima Marques, transparência é clareza, é informação

sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis porque institui o CPDC

um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar ao consumidor não

só sobre as características do produto ou serviço, como também sobre o conteúdo

do contrato. Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao

consumidor, pois sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações

que estará assumindo, poderia vincular­se a obrigações que não pode suportar ou

que simplesmente não deseja. 66

Adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas sobre suas

qualidades e características, o consumidor pode adquirir um produto que não é

adequado ao que pretende, ou que não possui as qualidades que o fornecedor

afirma ter, ensejando mais facilmente o desfazimento do vínculo contratual.

Assim, em termos formais, não vincula o consumidor qualquer cláusula

contratual que encerre grave de vício de informação, principalmente nos casos de

pacto de adesão. O CPDC garante ao consumidor o direito ao cabal conhecimento

da realidade que envolve a relação contratual, a fim de que possa ele valorar livre e

conscientemente a conveniência da contratação. Enfim, em uma relação de

consumo, o consumidor não pode ser surpreendido em qualquer aspecto da relação.

E, além do aspecto formal, deve­se verificar o conteúdo, a justiça da cláusula e do

contrato perante o sistema, segundo o princípio da boa­fé objetiva, visto

anteriormente. 67

66 MARQUES, 2004, op. cit., passim. 67 GARCIA, José Augusto. O princípio da dimensão coletiva das relações de consumo: reflexos no “processo do consumidor”, especialmente quanto aos danos morais e às conciliações. Disponível em <www2.uerj.br/~direito/publicações/mais_artigos>. Acesso em 10 fev. 2006.

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54

2.3 A confiança

Na concepção contemporânea de contrato, o elemento social,

representado pela confiança, ganha mais significação. Em caso de divergência entre

a vontade interna e a vontade declarada, a teoria da confiança, hoje majoritária,

abraça a vontade declarada.

Neste sentido, Anderson Schreiber enfatiza que “a valorização

contemporânea da confiança abre uma brecha nas bases voluntaristas e

individualistas do direito privado”, e assinala que “a confiança, inserida no amplo

movimento de solidarização do direito, vem justamente valorizar a dimensão social

do exercício dos direitos, ou seja, o reflexo das condutas individuais sobre

terceiros”. 68

Esclarece a Profa. Cláudia Lima Marques que a teoria da confiança

pretende proteger, prioritariamente, as expectativas legítimas que nasceram no outro

contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações assumidas e no vínculo

criado através da declaração do parceiro. Protege­se, assim, a boa­fé e a confiança

que o parceiro depositou na declaração do outro contratante. A vontade declarada,

porém, não prevalecerá se o outro contratante souber ou puder saber razoavelmente

que aquela não era a vontade interna de seu parceiro. A teoria da vontade

concentrava­se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade,

concentrava­se no momento da criação do contrato; a teoria da confiança concentra­

se também em um indivíduo, qual seja o que recebe a declaração de vontade, em

sua boa­fé ou má­fé, mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e assegurar,

68 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 87­88.

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através da ação do direito, a proteção dos legítimos interesses e a segurança das

relações. 69

Nesta direção, Luiz Edson Fachin, estudando o tema da confiança

negocial na perspectiva da recentralização das relações jurídicas em torno da

pessoa, nos ensina que

um claro cenário se produz em torno da confiança: o repensar das relações jurídicas nucleadas em torno da pessoa e sua revalorização como centro das preocupações do ordenamento civil. O tema de tutela da confiança não pode ser confinado a um incidente de retorno indevido ao voluntarismo do século passado, nem é apenas um legado da Pandectística e dos postulados clássicos do Direito Privado. Pode estar além de sua formulação inicial essa temática se for posta num plano diferenciado de recuperação epistemológica. 70

Cláudia Lima Marques esclarece, ainda, que o princípio da proteção da

confiança do consumidor, instituído pelo Código de Proteção e Defesa do

Consumidor, abrange a proteção da confiança no vínculo contratual e a proteção da

confiança na prestação contratual. A proteção da confiança no vínculo contratual

tem origem nas normas cogentes que procuram assegurar o equilíbrio das

obrigações e deveres de cada parte, por meio da proibição do uso de cláusulas

abusivas e de uma interpretação sempre pró­consumidor. A proteção da confiança

na prestação contratual origina­se de normas cogentes que procuram garantir ao

69 MARQUES, 2004, op. cit., passim. 70 FACHIN, Luiz Edson. O “aggiornamento” do direito civil brasileiro e a confiança negocial. In: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 145. Por sua vez, Judith Martins Costa assinala que “contemporaneamente, modificado tal panorama, a autonomia contratual não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca­se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre outros, dos princípios de superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade (em sua face positiva) e da boa­fé em sua feição objetiva”. MARTINS­COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 3, set./dez. 1992, p. 141.

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consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim como evitar riscos

e prejuízos oriundos destes produtos e serviços 71 .

A manifestação de vontade do consumidor, portanto, é dada almejando

alcançar determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação dos

fornecedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado criam no consumidor

expectativas, também legítimas, de poder alcançar estes efeitos contratuais. No

sistema do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, normas imperativas irão

proteger a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais

especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim que

razoavelmente dela se espera, e irão proteger, também, a confiança que o

consumidor deposita na segurança do produto ou do serviço colocado no mercado.

2.4. A equidade contratual

A noção de procura de equilíbrio e equidade contratual está inserida no

princípio da boa­fé e/ou no princípio da confiança. O desequilíbrio significativo de

direitos e deveres, em detrimento do consumidor, passa a ser indício de abuso, a

clamar a ação reequilibradora do novo direito contratual em sua visão social.

Neste sentido, esclarece Gustavo Tepedino:

A vigência do Código do Consumidor, a este propósito, tem sido fecunda: os princípios da boa­fé objetiva e do equilíbrio das prestações reduzem a importância da vontade individual, em obediência aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, que integram o conteúdo do Estado social de direito delineado pelo constituinte. 72

71 MARQUES, 2004, op. cit., p. 233. 72 TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil­Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13.

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57

Concluído o contrato entre o fornecedor e o consumidor, quando o pacto

deve ser executado, “impõe a nova Lei o respeito a um novo princípio norteador da

ação das partes, é o princípio da eqüidade contratual, do equilíbrio de direitos e

deveres nos contratos, para alcançar a justiça contratual”. 73

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor trabalha com a noção de

“desvantagem exagerada” (art. 51, IV e parágrafo 1º, do CPDC): não basta o

exagero nos direitos assegurados ao fornecedor por contrato, não basta a vantagem

deste fornecedor, o importante é o prejuízo, a desvantagem irrazoável para o

consumidor, este sim, sujeito tutelado na nova noção de equilíbrio das relações

contratuais. São protegidos, no CPDC, o objetivo e o equilíbrio contratual, assim

como é sancionada a onerosidade excessiva (art. 51, parágrafo 1º, do CPDC),

revitalizando a importância da comutatividade das prestações, reprimindo excessos

do individualismo e procurando a justa proporcionalidade de direitos e deveres, de

conduta e de prestação, nos contratos sinalagmáticos.

Neste sentido, assinala Paulo Luiz Netto Lobo

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas. 74

Como leciona Cláudia Lima Marques, o princípio da equidade (do

equilíbrio contratual) é cogente, o ordenamento jurídico brasileiro não exige que a

73 MARQUES, 2004, op. cit., p. 741. 74 LOBO, 2005, op. cit., passim.

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cláusula abusiva tenha sido incluída no contrato por abuso do fornecedor. O Código

de Proteção e Defesa do Consumidor sanciona e afasta apenas o resultado, o

desequilíbrio. A cláusula pode, até, ter sido aceita pelo consumidor, de forma

consciente, “porém, se traz vantagem excessiva para o fornecedor, se é abusiva, o

resultado é contrário à ordem pública, contrária às novas normas de ordem pública

de proteção do CDC e a autonomia de vontade não prevalecerá”. 75

No desequilíbrio contratual, a proteção do consumidor vem quando o

contrato já está formalmente perfeito, e o resultado contratual ainda está

ineqüitativo.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor prevê alguns

instrumentos para assegurar o reequilíbrio contratual nas relações de consumo:

podemos destacar a interpretação judicial do contrato em favor do consumidor (o

CPDC, em seu art. 47, institui como princípio geral a interpretação pró­consumidor

das cláusulas contratuais), e, ainda, a proibição, expressa, de cláusulas abusivas

nos contratos (tanto na lista exemplificativa de cláusulas consideradas abusivas

constante do art. 51, CPDC, quanto em seu art. 53, referente aos contratos de

compra e venda a prazo, a sanção escolhida para coibir os abusos foi a de nulidade

absoluta), o que assegura uma proteção à posteriori do consumidor, através de um

efetivo controle judicial do conteúdo do contrato de consumo.

75 MARQUES, 2004, op. cit., p. 742.

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59

CAPÍTULO III

O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

3.1 Considerações iniciais

Entre tantas expressões derivadas do princípio da boa­fé, pode ser

destacado o dever de não agir contra o ato próprio. Significa dizer que a ninguém é

dado valer­se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois

voltar­se contra ele quando não mais lhe interessar.

Assevera Paulo Luiz Netto Lobo que o conteúdo desse dever é também

versado doutrinariamente sob a denominação de teoria dos atos próprios, "que

sanciona como inadmissível toda pretensão lícita, mas objetivamente contraditória

com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito". O

fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa­fé, em razão da

primeira conduta realizada. A boa­fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e

dar curso à pretensão posterior e contraditória. Essa teoria tem suas raízes no antigo

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aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém

é licito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, conduta esta

interpretada objetivamente segundo a lei, os bons costumes e a boa­fé. 76

Segundo Judith Martins­Costa, a teoria dos atos próprios tem como

escopo tutelar “situações de confiança” e vedar o comportamento contraditório

quando, pela própria conduta, despertou­se, no alter ou em terceiros, a legítima

confiança de que a palavra seria mantida ou o comportamento seguido seria

observado. Manifesta­se por meio de certas máximas, adágios e princípios que se

põem como uma constante na história dos sistemas jurídicos, tais como o adágio

turpitudinem suam allegans non auditur ou no brocardo do Direito anglo­saxão equity

must come with clean hands, hoje se traduzindo, na prática jurisprudencial, por meio

do princípio que coíbe venire contra factum proprium, ou, ainda, nos institutos da

Verwirkung, do Direito alemão, da estoppel anglo­saxã ou da supressio dos direitos

romanísticos. 77

O que todas estas expressões refletem, resume a ilustre professora, é

que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior

conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a

boa­fé, ou quando o exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a

boa­fé.

Anderson Schreiber apresenta o venire contra factum proprium como

expressão da solidariedade social, que se traduz no dever de respeito à confiança

suscitada pelo próprio comportamento. A leal consideração pela posição da

contraparte, pelas suas particularidades e seus interesses, consiste na razão do

76 LOBO, 2005, op. cit., passim. 77 MARTINS­COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. Revista Forense, v. 376. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 110 e ss.

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amplo desenvolvimento da boa­fé objetiva em um direito contemporâneo dirigido à

realização da solidariedade social, e se confunde mesmo com o seu conteúdo. 78

3.2 O venire, a boa­fé objetiva e o abuso do direito

Um grupo de juristas reunidos no Centro de Estudos Judiciários do

Conselho da Justiça Federal, para a I Jornada de Direito Civil, em setembro de 2002,

expressou suas conclusões no enunciado de nr. 37 ("a responsabilidade civil

decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta­se somente no

critério objetivo­finalístico") ao vislumbrar, no art. 187 do Código Civil de 2002, a

consagração da velha figura do abuso de direito:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê­lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa­fé ou

pelos bons costumes.”

Heloisa Carpena advoga entendimento de que o processo de construção

doutrinária resultou em um conceito de ato abusivo que não se confunde com o de

ato ilícito.

No ato ilícito, o sujeito viola diretamente o comando legal, pressupondo­se então que este contenha previsão expressa daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age no exercício de seu direito, todavia há uma violação dos valores que justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento. Diz­se, portanto, que no primeiro, há inobservância de limites lógico­formais e, no segundo, axiológico­materiais. Em ambos, o agente se encontra no plano da antijuridicidade: no ilícito, esta resulta da violação da forma, no abuso, do sentido valorativo. Em síntese, o ato abusivo está situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilícito não se confunde, tratando­se de categoria autônoma de antijuridicidade. 79

78 SCHREIBER, 2005, op. cit., passim. 79 CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código Civil de 2002 (art. 187). Relativização dos direitos na ótica civil­constitucional. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil­constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 371.

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62

Neste contexto, o abuso “supõe um direito subjetivo lícito atribuído a seu

titular, que, ao exercê­lo, o torna antijurídico”. E o ilícito, “por ser contrário à

disposição legal, mostra­se previamente reprovado pelo ordenamento, não

comportando controle de abusividade. Os conceitos de ilícito e de abuso, por

conseguinte, excluem­se mutuamente”. 80

Heloisa Carpena afirma, ainda, que “pode­se identificar na teoria do

abuso do direito o fundamento da proibição de clausular abusivamente, tendo como

foco de atenção a legislação de proteção ao consumidor no Brasil”, reconhecendo,

no entanto, que tal posicionamento não encontra apoio unânime na doutrina. 81

Judith Martins­Costa, referindo­se ao art. 187 do Código Civil de 2002,

afirma que considera estampado no texto “as balizas do exercício inadmissível de

posição jurídica, cujo suporte fático não exige, necessariamente, ação culposa do

agente e cuja eficácia é, prima facie, a cominação de ilicitude ao ato ou negócio” e,

secundariamente, “havendo dano, o nascimento do dever de indenizar”. Nessa

perspectiva, o “art. 187 – sedes materiae do venire contra factum proprium no

Ordenamento brasileiro –, apontando para um renovado conceito de ilicitude civil,

enseja referência, ainda que brevíssima, ao tormentoso tema do controle da

admissibilidade do exercício dos direitos subjetivos”. 82

A principal distinção de ordem prática entre o abuso de direito e o

exercício inadmissível de posição jurídica, afirma aquela autora, está em que esse

último “prescinde da culpa como elemento do suporte fático da regra”. Observa,

ainda, a propósito do art. 187 do Código Civil, referenciando Maria Cláudia Mércio

Chaparruz:

80 Ibidem, p. 372. 81 CARPENA, Heloisa. Abuso do Direito nos Contratos de Consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 117. 82 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 124.

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O ilícito como fonte de obrigações civis passa a ter um espaço de incidência mais amplo, capaz de abranger não apenas a contrariedade a direito decorrente de culpa imputável a alguém, mas toda e qualquer conduta que possa estar em contradição ao Direito por se sujeitar à necessidade de composição de liberdades humanas na sociedade. 83

Trata­se, afirma Judith Martins­Costa, de uma ilicitude situada, derivada

dos meios (ou do modo) pelos quais é o direito subjetivo exercido. A ilicitude é

objetiva, porque – em contraponto à ilicitude subjetiva – não perquire a

voluntariedade do ato, mas atém­se à desconformidade com a norma legal que

determina a verificação, in concreto, da concordância, ou não, entre o ato

(comportamento) e certos valores ou finalidades tidos como relevantes pelo

Ordenamento, tais como a conduta segundo a boa­fé, a adstrição ao fim econômico­

social do negócio jurídico ou a obediência aos bons costumes.

Em outras palavras: se o direito subjetivo é atribuído com certas

configurações (que modelam e modulam o dever­ser), não haverá licitude, mas

concreta antijuridicidade (rectius: ilicitude) se o direito for exercido em manifesta

desconformidade com aquelas configurações.

Assevera, ainda, Judith Martins­Costa, que, não menos importante que a

qualificação da norma do art. 187 como sede da vedação ao exercício inadmissível

de posição jurídica, produtor de ilicitude objetiva, será perceber que o emprego do

termo “abuso” para qualificar a fattispecie ali contida pode conotar, equívoca e

indevidamente, a “abusividade” prevista nas regras do Código de Proteção e Defesa

do Consumidor ou fazer confundir o tratamento que demos à matéria no Código Civil

com o que lhe foi conferido em Portugal.

83 CACHAPUZ, Maria Cláudia Mércio. A proteção à intimidade e à vida privada orientada no discurso jurídico: contribuição de leitura ao novo Código Civil. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

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64

Tanto no Código Civil português quanto no Código de Proteção e Defesa

do Consumidor, o abuso (e a abusividade) é tratado no plano da validade do ato,

assim ensejando, por lógica conseqüência, a nulidade. Já no Código Civil brasileiro,

o tema é tratado no plano da eficácia (ilicitude). Portanto, não há que falar, no

âmbito de incidência do art. 187, de “nulidade por abuso de direito”.

A conseqüência mais comum da ilicitude será o nascimento do dever de

indenizar. Porém, essa não será a única ou exclusiva conseqüência: só o será

quando à ilicitude somar­se, por relação de causa e efeito, a ocorrência de um dano

ressarcível. Há, porém, hipóteses de ilicitude civil sem dano, como a ameaça a

direito de personalidade, ou a ocorrência de atos enquadráveis no enriquecimento

sem causa.

Para a perspectiva tradicional, assinala Judith Martins­Costa, a ilicitude

era não apenas examinada, mas era verdadeiramente construída, conceitualmente,

a partir do seu efeito mais corriqueiro e geral, qual seja, a obrigação de indenizar por

dano ao patrimônio. As conseqüências dessa conexão, por assim dizer automática,

foram grandes: em primeiro lugar, a ilicitude civil era vista, tradicionalmente, de

forma amarrada à culpa, ao dano e à conseqüência indenizatória.

Por esse viés, não apenas confundia­se a ilicitude com o elemento

subjetivo (culpa) quanto a própria idéia de ilicitude restava limitada às hipóteses de

“ilicitude de fins”, seja na violação aos direitos do parceiro contratual, seja na

violação a direitos absolutos, pouco espaço restando para a chamada “ilicitude de

meios”, que é a ilicitude dos meios ou dos modos utilizados no exercício dos direitos

subjetivos.

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65

Em segundo lugar, essa concepção não deixava espaço à percepção dos

variados casos em que ocorre o nascimento do dever de indenizar

independentemente da prática de um ato ilícito.

É justamente essa “lógica”, assinala aquela autora, que vem rompida

pelo novo Código Civil, abrindo um amplo espaço para a recepção dos casos de

venire contra factum proprium como condutas prima facie ilícitas, a serem

sancionadas ou pela tutela ressarcitória (quando decorrer dano da conduta

contraditória e desleal), ou pelas “tutelas de remoção do ilícito”, ou tutelas de

inibição.

Assim, revela Judith Martins­Costa, como categoria integrante dos atos

ilícitos, o venire estará apto para, funcionalmente, ser invocado na forma ativa e na

defensiva, isto é, como ação para fundar a existência de um direito, inclusive (mas

não exclusivamente) o direito à indenização, como exceção substancial de ilicitude,

ou como meio de defesa de uma posição ou situação jurídica. 84

Anderson Schreiber, mesmo sem conflitos incontornáveis com relação

aos posicionamentos doutrinários das ilustres professoras Heloisa Carpena e Judith

Martins­Costa, analisa a questão ressaltando outros aspectos. Considera que, no

âmbito dos meios de controle judicial da autonomia privada, a boa­fé objetiva

apresenta uma feição mais moderna e mais intensa que a do abuso do direito.

Dentre as inúmeras razões apontadas para “o ocaso do abuso do direito, desponta

em importância o desenvolvimento da cláusula geral de boa­fé objetiva”. Afirma, no

entanto, que não se pode ignorar o “esforço doutrinário mais recente em recuperar o

amplo papel do abuso do direito”. 85

84 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 124­129. 85 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 104 e ss.

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Analisando o nosso Código Civil, particularmente o contido no art. 187,

Anderson Schreiber assevera ser necessário cotejar as noções de boa­fé e de

abuso do direito, que, ao invés de se anularem, devem coexistir. Assinala que não

pode haver dúvida, ao menos à luz do ordenamento jurídico brasileiro, que a boa­fé

funciona como um dos critérios axiológico­materiais para a verificação do abuso do

direito. Em outras palavras, o exercício de um direito será considerado abusivo, e,

portanto, vedado, quando se verificar ser contrário à boa­fé objetiva. Ora, aqui nada

mais se tem que aquela terceira função que a dogmática germânica atribui à boa­fé:

a de impedir ou inadmitir o exercício de um direito que lhe seja contrário.

Sob outro ângulo, contudo, a boa­fé é mais ampla que o abuso, porque

não apenas impede o exercício do direito que lhe seja contrário, mas também impõe

comportamentos e serve de critério hermenêutico­interpretativo nas relações

negociais. É possível, portanto, concluir, ainda, repita­se, à luz do direito positivo

brasileiro, que boa­fé objetiva e abuso do direito são conceitos autônomos, figuras

distintas, mas não mutuamente excludentes, círculos secantes que se combinam

naquele campo dos comportamentos tornados inadmissíveis (abusivos) por violação

ao critério da boa­fé. Entre nós, portanto, afirma Anderson Schreiber, é possível falar

em abuso do direito por violação à boa­fé, sem que aí se esgotem todas as espécies

de abuso, ou todas as funções da boa­fé.

O venire contra factum proprium inclui­se exatamente nesta categoria:

um abuso do direito por violação à boa­fé, afirma aquele autor. E não há que se

discutir se sua natureza jurídica se enquadra numa ou noutra figura. O

comportamento contraditório é abusivo, no sentido de que é um comportamento que,

embora aparentemente lícito, se torna ilícito, ou inadmissível. E isto justamente

porque seu exercício, examinado em conjunto com um comportamento anterior,

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67

afigura­se contrário à confiança despertada em outrem, o que revela, no âmbito

normativo, contrariedade à boa­fé objetiva.

3.3 Fundamentos do venire contra factum proprium

Anderson Schreiber afirma que “é a tutela da confiança o fundamento

contemporâneo do nemo potest venire contra factum proprium”. No entanto,

assevera aquele autor que, como a tutela da confiança não vem expressamente

prevista no ordenamento jurídico brasileiro, “o fundamento normativo geralmente

apontado para o nemo potest venire contra factum proprium é a cláusula geral de

boa­fé objetiva, consagrada no art. 422 do novo Código Civil”:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão

do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa­fé.”

Embora a comum referência à boa­fé objetiva como fundamento

normativo do nemo potest venire contra factum proprium, Anderson Schreiber

ressalta que a proibição ao comportamento contraditório é expressão direta do

princípio da solidariedade social.

Aquele autor considera, ainda, que o princípio da solidariedade social,

consagrado como objetivo da República no artigo 3º da Constituição Brasileira de

1988, impõe a consideração da posição alheia também na atuação privada. O nemo

potest venire contra factum proprium, concebido como uma vedação ao

comportamento incoerente dirigida à tutela da confiança, não é outra coisa senão

um instrumento de realização deste valor constitucional. Há, em outras palavras,

direta vinculação entre a solidariedade social e o princípio de proibição ao

comportamento contraditório.

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Assim, a proibição ao comportamento contraditório emerge, também,

como expressão do princípio constitucional da solidariedade social, de forma direta

ou por quaisquer meios que lhe sirvam de expressão mais concreta, como os

princípios da igualdade e da moralidade administrativa.

Igualmente a boa­fé objetiva tem fundamento constitucional e, justamente

por isto, se indicou como mais acertada a orientação segundo a qual sua aplicação

não se deve restringir a relações contratuais ou mesmo a relações privadas,

devendo se infiltrar por todos os ramos do direito. Entretanto, a falta de

regulamentação positiva do nemo potest venire contra factum proprium, uma vez

admitido o princípio, acaba por lhe facilitar a expansão mesmo naqueles campos em

que a aplicação da cláusula geral da boa­fé não é inteiramente aceita, como na

esfera extracontratual e em face da Administração Pública.

Anderson Schreiber considera, ainda, que a tutela da confiança atribui ao

venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma

proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura

da confiança, da legítima confiança depositada por outrem, em consonância com a

boa­fé, na manutenção do comportamento inicial. 86

3.4 Pressupostos do venire contra factum proprium

A Profa. Judith Martins­Costa esclarece que nem toda conduta

contraditória constitui requisito suficiente para a invocação do princípio, nem há um

dever de coerência absoluta que possa ser apreciado in abstracto. A coibição é à

deslealdade impregnada no ato contraditório e o telos é a proteção da parte que

86 Ibidem, p. 95 e ss.

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confiou fundamentadamente na primeira conduta (o factum). Se a parte lesada tem

ciência que a primeira conduta (factum proprium) pode ser contrariada, ou se há

permissão legal para a contraditoriedade (como ocorre com as regras permissivas

da revogação de declarações negociais, por exemplo), ou se as circunstâncias

sociais de conhecimento de ambos os figurantes levam à aceitabilidade da

contradição, não há deslealdade, pois não terá havido a confiança fundada da parte

que alega o prejuízo. 87

Também não será caso de invocar­se o venire se a conduta prévia é

antijurídica, ou contra legem, ou inválida ou sancionada pela lei, como ocorre, por

exemplo, com a possibilidade de revogar­se testamento ou mandato, ou arrepender­

se, em certo prazo, de negócios pactuados. Por isso mesmo, constitui requisito

inafastável – nuclear à própria existência do instituto – a contraditoriedade da

conduta quando implicar deslealdade à parte que confiou na ação primitiva. Por isso

mesmo, não estão entre os requisitos da coibição o dolo, a má­fé ou mesmo a culpa

pelo procedimento contraditório.

A inadmissibilidade do venire é produzida objetivamente, prescindindo do

grau de consciência ou conhecimento que tenha tido o agente ao atuar, pois a

proteção é a quem confiou, fundadamente, na primeira conduta, caracterizadora do

factum proprium. Afirma, citando Ana I. Piaggi, que “lo decisivo es la desarmonia

objectiva con el standard de conducta concretado” 88 , e que uma tal desarmonia pode

decorrer de palavras, atos, gestos, omissões, silêncios ou de quaisquer formas de

comportamentos concludentes, bastando que tenham valor de declaração.

87 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 122 e ss. 88 PIAGGI, Ana I. Reflexiones sobre los princípios basilares del Derecho: la buena fé y los actos propios. In CORDOBA, Marco; CORDOBERA, Lídia Garrido e KLUGER, Viviana (org.). Tratado de la Buena Fé em el Derecho. Buenos Aires, La Ley, 2004, p. 112.

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A Profa. Judith Martins­Costa, neste contexto, afirma que, além da

existência de duas condutas (ou comportamentos concludentes) de uma mesma

pessoa (ou de quem a represente ou suceda), a segunda contrariando a primeira, é

preciso que:

a) haja identidade de partes, ainda que por vínculo de sucessão ou representação;

b) a situação contraditória se produza em uma mesma situação jurídica ou entre

situações jurídicas estreitamente coligadas;

c) a primeira conduta (factum proprium) tenha um significado social minimamente

unívoco, a ser averiguado segundo as circunstâncias;

d) o factum proprium seja suscetível de criar fundada confiança na parte que alega o

prejuízo, confiança essa a ser averiguada segundo as circunstâncias, os usos

aceitos pelo comércio jurídico, a boa­fé, os bons costumes ou o fim econômico­

social do negócio;

e) o caráter “vinculante” do factum proprium, no sentido de ser um comportamento

ocorrido no âmbito de determinada situação jurídica que afete uma esfera de

interesses alheia, de tal modo que tenha induzido (ou possa ter induzido) a outra

parte a confiar em que tal conduta fosse “índice ou definição de uma certa atitude do

seu parceiro frente a essa mesma situação jurídica”. 89

Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, são requisitos do venire contra factum

proprium:

a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz;

b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa

devida à contradição existente entre as duas condutas;

89 PUENTE Y LAVALLE, Manuel de. La doctrina de los actos propios. In Estúdios de Derecho Civil, Obligaciones y Contratos. Libro em Homenage a Fernando Hinestrosa – 40 años de Rectoria 1963­ 2003. Universidad Externado de Colômbia, 2004, tomo I.

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c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas condutas. 90

Anderson Schreiber assinala que os pressupostos de aplicação de uma

norma jurídica, qualquer que seja, são os componentes da situação fática sobre a

qual a norma incide, e que a função do nemo potest venire contra factum proprium é

a tutela da confiança. Os pressupostos de sua aplicação devem, portanto, ser

informados por este fim. O que se exige do factum proprium não é que seja

vinculante, nem que seja juridicamente relevante ou eficaz, mas que possa, sob o

ponto de vista fático e objetivo, repercutir na esfera alheia, gerando legítima

confiança.

À luz destas considerações, aquele autor indica quatro pressupostos para

a aplicação do princípio de proibição ao comportamento contraditório:

a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial;

b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta;

c) um comportamento contraditório com este sentido objetivo (e, por isto mesmo,

violador da confiança); e

d) um dano, ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição. 91

Anderson Schreiber, ao contrário dos demais autores citados, considera

não ser necessário referir­se à “identidade de sujeitos” (por ele chamada de

“identidade de centros de interesse”) emissores da conduta como pressuposto

autônomo do princípio da proibição ao comportamento contraditório, já que a idéia

encontra­se contida no pressuposto relativo à contradição ao factum proprium.

Somente se pode falar em contradição de um ato próprio se ao emissor de um

segundo comportamento puder se imputar, em alguma medida, também a conduta

inicial, no sentido de que a confiança na coerência desta conduta o abrangia. Com

90 LOBO, 2005, op. cit., passim. 91 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 124.

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profundo respeito às posições dos demais autores, nos alinhamos com as assertivas

de Anderson Schreiber.

Acrescenta, ainda, Anderson Schreiber, que um ato ilícito em sentido

estrito não constitui, a rigor, venire contra factum proprium. Havendo ilicitude não se

faz necessária a aplicação do princípio de proibição ao comportamento contraditório,

por se tratar de ato combatido, com maior propriedade, pelas normas específicas

que o sancionam. O venire contra factum proprium consiste em uma conduta

aparentemente lícita, que se torna abusiva ou, na dicção do artigo 187 do Código

Civil, ilícita, apenas no sentido em que viola, por força da própria contradição, a

confiança legítima de outrem e a boa­fé.

3.5 A proibição do venire contra factum proprium

Judith Martins­Costa 92 nos ensina que, no direito contratual, são

inúmeras as hipóteses em que podem ser cogitadas a incidência do venire:

exemplificadamente, “no contrato de seguro, o fato de a seguradora aceitar

repetidos atrasos no pagamento e vir, repentinamente, buscar a resolução do

contrato, alegando o inadimplemento que até então tolerara sem reclamar”; o fato de

a parte dar ao contrato determinada interpretação, “comunicar à contraparte, por

palavras ou comportamentos, tal atribuição de sentido e, posteriormente, agir ou

buscar interpretação diversa e contraditória com a primeira”; no fornecimento de

bens, seria incongruente o comportamento do contratante que “pede, pouco antes

do vencimento do contrato, quantidades excessivas do produto (fazendo crer na

prorrogação do ajuste) e depois o tem por extinto no prazo”.

92 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 124.

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Também tem cabimento, afirma a Profa. Judith Martins­Costa, invocar­se

o venire na “fase pré­negocial, quando o comportamento de um dos partícipes das

negociações induz o outro a crer, justificadamente, segundo as circunstâncias, que o

contrato seria firmado”. Do mesmo modo incide na responsabilidade civil, para coibir

o pedido de indenização por lesão física sofrida por quem participa de jogos

esportivos perigosos, cabendo observar que “quem pratica, voluntariamente,

atividade notoriamente de risco ou segue hábitos também notoriamente perigosos à

saúde, como o hábito de fumar, não pode exigir indenização sem recair em palmar

contradição”.

O que se visa impedir com o nemo potest venire contra factum proprium

é que uma pessoa, que legitimamente confiou na conservação do sentido objetivo

de um comportamento inicial, venha a sofrer um prejuízo a partir da ruptura desta

confiança pela adoção de um comportamento contraditório. Disto se extrai que a

aplicação do princípio de proibição do comportamento contraditório somente se

justifica na presença de um dano, ou de uma ameaça de dano, a outrem.

É isto, em outras palavras, que se pretende com o nemo potest venire

contra factum proprium: prevenir ou reparar danos, protegendo aquele que

legitimamente confiou na coerência alheia. Não se exige um dano efetivo; o mero

potencial lesivo já é suficiente, porque, sendo bem sucedido em seu efeito

primordial, o nemo potest venire contra factum proprium impedirá mesmo a produção

de qualquer prejuízo, obstando o comportamento contraditório. Se, todavia, o

comportamento contraditório não puder ser obstado a tempo, e dano se verificar,

assumirá o princípio um efeito reparatório, impondo o desfazimento da conduta

posterior ou o ressarcimento pecuniário dos danos, conforme o caso.

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Os danos, potenciais ou efetivos, decorrentes do venire contra factum

proprium incluem geralmente despesas efetuadas por conta das expectativas

despertadas e outras espécies de danos emergentes, além de lucros cessantes

como a não­realização de certa atividade rentável, e assim por diante. É de se notar,

entretanto, que os danos decorrentes do venire contra factum proprium não serão

sempre patrimoniais. Embora a ruptura da legítima confiança não possa ser

considerada por si só um dano moral, como reflexo da frustração de relevantes

expectativas sobre atributos da personalidade humana, como a honra e a

integridade psicofísica. O mais freqüente é que isto aconteça em situações

existenciais (não­patrimoniais), nas quais também incide o nemo potest venire contra

factum proprium.

Segundo Paulo Luiz Netto Lobo, a aplicação da teoria é ampla em

situações variadas; no direito das obrigações podem ser referidas:

a) quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que tal forma não é

necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde,

pretende amparar­se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação;

b) quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se

beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá­la;

c) quando um fornecedor oferece bonificações nas prestações ajustadas,

cancelando­as sem aviso prévio;

d) quando uma parte aceita receber reiteradamente as prestações com alguns dias

após o vencimento, sem cobrança de acréscimos convencionados para mora,

passando a exigi­los posteriormente. 93

93 LOBO, 2005, op. cit., passim.

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O dano eventualmente causado por um venire contra factum proprium

deve ser ressarcido. De fato, sendo o comportamento contraditório violador da

confiança tomado como um comportamento abusivo, a vítima está, exatamente por

esta razão, habilitada a obter indenização. Vale dizer: não terá o prejudicado por um

comportamento contraditório o ônus de provar a culpa ou o dolo de outrem, o que

seria exigido na hipótese de ato ilícito em sentido estrito. Basta­lhe provar que seu

prejuízo deriva de um comportamento contraditório, em lesão à sua legítima

confiança, e tal prova já basta para que o comportamento referido seja tido como

abusivo.

Como modalidade de “exercício inadmissível de posição jurídica”, ou de

“abuso do direito por violação à boa­fé objetiva”, a invocação do nemo potest venire

contra factum proprium tem geralmente o propósito de evitar a prática do

comportamento contraditório, prevenindo danos, o que é mais eficaz que repará­los.

Porém, assevera Anderson Schreiber, “não se pode negar ao princípio de proibição

ao comportamento contraditório um efeito complementar, reparatório, destinado a

aplacar os prejuízos gerados pela contradição”, motivando uma indenização e/ou o

desfazimento do ato incoerente, “independentemente de demonstração dos

pressupostos de um ato ilícito em sentido estrito”. 94

3.6 O venire no direito estrangeiro

Judith Martins­Costa assinala que, atualmente, a idéia da

inadmissibilidade da prática de ato que desminta ou contrarie ato anterior, embora

não sistematizada no Direito legal, tem larga aplicação em tribunais de diferentes

94 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 273­274.

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76

países. Constituindo, na tradição cultural do Ocidente, como que uma máxima

universal, a vedação à contraditoriedade desleal encontra ressonâncias em

institutos, regras e princípios que, mesmo encerrando diferenças de forma e de

procedimento, apresentam um fundo similar: embora não se possa eliminar, da

condição humana, a contradição, pode o Direito regrá­la, sancionando, em certas

hipóteses, os seus efeitos danosos na esfera jurídica alheia. A ilustre professora

analisa, neste sentido, algumas manifestações, que passamos a sintetizar. 95

No Direito anglo­saxão a jurisprudência desenvolveu a figura da estoppel,

que admite diversas configurações, entre elas a estoppel by conduct, cuja eficácia é

similar a algumas das funções desempenhadas pelo venire do Direito continental. De

maneira geral, a estoppel significa um princípio processual integrante das regras de

prova (rules of evidence) que impede, em virtude de uma presunção iuris et de iure,

uma pessoa de afirmar ou negar a existência de um fato determinado se antes

exercitara um ato, fizera uma afirmação ou formulara uma negativa em sentido

precisamente oposto. Como observa Puig Brutau:

Nadie puede contradecir lo dicho o lo hecho por él mismo o por aquel de quien se derive su derecho, de un modo aparente y ostensible, con perjuicio de un tercero que, fiado en esas apariencias, producidas intencional o negligentemente por el responsable de ellas, contrae una obligación o sufre un perjuicio en su persona o en su patrimonio. 96

Na Alemanha, doutrina e jurisprudência se têm ocupado do tema desde o

fundamental trabalho de Riezler, que traçou os quadros dessa proposição nos

Direitos romano, inglês e alemão, mencionando ainda o Direito canônico, os

glosadores, conciliadores e a evolução posterior, até a Pandectística 97 . A doutrina

subseqüente desenvolveu as proposições de Riezler, afirmando Lehmann que o

95 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 113 e ss. 96 BRUTAU, José Puig. Estudios de Derecho Comparado. La doctrina de los actos propios. Barcelona, Ariel, 1951, p. 104. 97 RIEZLER, Erwin apud MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 114.

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venire contra factum proprium poderia ser transposto numa fórmula dupla: ninguém

pode fazer valer um poder em contradição com o seu comportamento anterior,

quando este comportamento, à luz da lei, dos bons costumes ou da boa­fé se deva

entender como renúncia concomitante ao poder ou quando o exercício posterior do

poder contunda com a lei, os bons costumes ou a boa­fé 98 .

Como assinala Antonio Manuel Menezes Cordeiro:

Na primeira proposição, reúnem­se os casos em que um comportamento determinado é, de antemão, inconciliável com a manutenção de um poder – casos ditos, com impropriedade, renúncia tácita; na segunda, ordenam­se as hipóteses de argüição de nulidade de um negócio, depois de se ter patenteado a sua validade, de actuação da realidade, depois de se ter criado uma aparência e de comportamentos que apenas pelas suas conseqüências se vêm a apresentar como contraditórios. 99

Porém, o verdadeiro desenvolvimento do venire contra factum proprium,

na Alemanha, ocorreu por volta da década de 1970, com as construções que

lograram associá­lo ao princípio da boa­fé objetiva. Desde então, passou­se a

perceber a circunstância de o comportamento contraditório configurar­se como um

“atentado contra expectativas fundamentais de continuidade da auto­

representação”, 100 ou seja, das virtudes da lealdade, da legítima confiança

despertada no alter e da constantia que tornam incompatível a contradição própria

com a responsabilidade jurídica. Daí estabelecer­se a relação entre o venire e a boa­

fé objetiva, isto é, a boa­fé ética ou “regra de conduta leal”, que prescinde da

atenção aos aspectos psicológicos, não pressupondo, necessariamente, a errônea

crença, nem a má­fé ou a negligência culpável como elementos da expectativa

criada na contraparte. Como esclarece Franz Wieacker:

98 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit.,, p. 114 99 CORDEIRO, Antonio Manuel Menezes. Da boa­fé no Direito Civil. Coimbra, Almedina, 1984, p. 744 100 Ibidem, p. 750.

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La exigencia de confianza no es obligación de veracidad subjetiva, sino – como en la moderna teoría de la validez de la declaración de voluntad – el no separarse del valor de significación que a la propia conducta, puede serle atribuido por la otra parte. 101

Nessa perspectiva, o princípio não consubstancia uma específica

proibição da má­fé e da mentira, mas, verdadeiramente, uma aplicação do princípio

da confiança no tráfico jurídico, sendo, por isso, associado ao instituto da

Verwirkung, criação jurisprudencial que abrange várias hipóteses, mas cujo efeito

geral consiste na paralisação do exercício de um direito como meio sancionatório da

deslealdade e da torpeza. Como esclarece Gustav Bohemer: “La Verwirkung opera

con eficacia negativa: deniega la existencia de un derecho al impedir que se realice

a pesar de que todavía subsiste según las normas legales.” 102

Assim sendo, mesmo que o direito subjetivo exista, segundo as regras

legais, o seu exercício é vedado, paralisado, pois alegar a norma legal quando se

agiu torpe ou deslealmente importa atentar contra a boa­fé e lesar a confiança no

tráfico jurídico. O seu fundamento, esclarece ainda Bohemer: “Aparece como un

atentado contra la buena fe (Vestoss gegen Treu und Glauben) en vista de la

situación concreta de que se trata y, por lo tanto, como un abuso de una disposición

legal fundada en una valoración sólo justificada in abstracto.” 103

Em Portugal, tratou excelentemente do tema Antonio Manuel Menezes

Cordeiro. Segundo o autor, o venire contra factum proprium modela­se como a

tradução do “exercício de uma posição jurídica em contradição com o

comportamento exercido anteriormente pelo exercente”, sendo requisito para a sua

configuração a existência de dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e

101 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fé. Tradução de Jose Luis Carro, Madrid, Civitas, 1982, p. 61. 102 BOHEMER, Gustav. El derecho a través de la jurisprudência – su aplicación y creación, Tradução espanhola de Jose Puig Brutau, Barcelona, Bosch, 1959, p. 247. 103 Ibidem, p. 247.

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diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) contrariado pelo

segundo. 104

Na Argentina, por sua vez, a obra fundamental de Alejandro Borda

demonstra, à exaustão, a aplicação jurisprudencial do princípio, pelo qual, “las partes

no pueden contradecir em juicio sus propios actos anteriores, deliberados,

juridicamente relevantes y plenamente eficaces, como asimismo que devienen

inadmisibles las pretensiones que ponen a la parte en contradicción con sus

comportamientos anteriores jurídicamente relevantes”, como já decidiu o Judiciário

daquele país. 105 Mais recentemente, Ana I. Piaggi alude tanto à “função vital” do

princípio que implica um limite à conduta quanto ao seu status como “derivação

necessária e imediata do princípio da boa­fé”. 106

Anderson Schreiber assinala que a análise histórica revela, ao longo dos

tempos, o contínuo flerte dos juristas com um princípio de proibição do

comportamento contraditório; e que um rápido olhar sobre os diversos ordenamentos

jurídicos contemporâneos descobre, em todos eles, alusões a um “princípio

implícito”, a uma “teoria geral” ou a uma “doutrina” de repressão à incoerência.

Entretanto, não se pode deixar de notar que, em nenhuma parte, este princípio

chegou a ser enunciado expressamente em lei. Afirma aquele ilustre autor que, se o

fato das grandes codificações oitocentistas terem sido indiferentes ao venire pode

ser explicado pela ideologia liberal e individualista que as inspiravam, o mesmo

argumento não pode ser aplicado às codificações recentes (incluindo o nosso

Código Civil brasileiro), que também não trataram do assunto. Em uma análise livre

104 CORDEIRO, 1984, op. cit., p. 742­745. 105 BORDA, Alejandro. La teoria de los actos propios, 3ª ed. Buenos Aires, Abelardo­Perrot, 2000, p. 53. 106 PIAGGI, Ana I. Reflexiones sobre los princípios basilares del Derecho: la buena fé y los actos propios. In CORDOBA, Marco; CORDOBERA, Lídia Garrido e KLUGER, Viviana (org.). Tratado de la Buena Fé em el Derecho. Buenos Aires, La Ley, 2004, p. 111.

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das amarras positivistas, isto não é certamente razão para se abandonar em

absoluto o nemo potest venire contra factum proprium, mas vem exigir uma

investigação profunda acerca da validade científica desta proibição ao

comportamento contraditório e de seu fundamento jurídico.

A tal investigação, declara Anderson Schreiber, somente se pode

proceder à luz de um sistema jurídico determinado, sob pena de se perder a tarefa

em divagações totalmente dissociadas de um mínimo conteúdo normativo.

3.7 O venire e o ordenamento jurídico brasileiro

Mesmo sem previsão expressa no Código Civil de 1916, os Tribunais

brasileiros já vinham acolhendo o venire (ou o princípio que o brocardo expressa)

seja diretamente, seja pela invocação da boa­fé, dos bons costumes.

Do levantamento feito por Judith Martins­Costa 107 , podemos constatar

que o leading case 108 está em acórdão do STF, da lavra do culto Ministro Leitão de

Abreu, tendo sido objeto, a partir do final da década de 1980, de extenso

desenvolvimento jurisprudencial. Foram contempladas situações de contradição

desleal no Direito de Família, no Direito Contratual, no Direito Societário, no Direito

Tributário, no Direito Administrativo e no Direito Processual. 109

Vejamos os casos encontrados na jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

O leading case, acima referido, está no Direito de Família (caso em que

uma parte, que casara no Uruguai, quando vigorante no Brasil a proibição do

107 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., passim. 108 STF, RE nr. 86.782­2/RS, rcte.: Antônio Mardini; rcda.: Ambrosina de Moraes Mardini, Rel. Min. Leitão de Abreu, julg. em 20.10.1978, unânime, não publicada. 109 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 116 e ss.

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divórcio, mas que não tinha impedimento legal para casar no Brasil, vem,

posteriormente, alegar a nulidade daquele matrimônio).

No Direito Contratual são muitos, e variados, os casos levados à

apreciação judicial. Além do “caso da loja de vestuário” 110 (quando vendedora

concede benefício ao comprador, mas, depois, retira imotivadamente a situação de

vantagem que lhe concedera, comprometendo a finalidade econômico­social do

contrato), há o “caso do contrato não­registrado” 111 (no qual a esposa deixa de

assinar compromisso de compra e venda, admite, pacificamente, durante anos, a

validade do contrato preliminar e depois se recusa a dar a escritura definitiva,

alegando que não assinara o compromisso); o “caso da venda dos jazigos” 112

(quando o comportamento concludente das partes serviu para integrar lacuna

contratual); o “caso da venda do bem inalienável que não foi sub­rogado” 113

(impedindo­se que a parte que requerera o alvará, e alienara o bem, deixando,

todavia, de promover a necessária sub­rogação, viesse, ao depois, postular a

anulação do negócio); e o “caso da vendedora só aparentemente tolerante” 114 (pois

tolerava atrasos e dispensava a correção monetária, mas, posteriormente, e contra o

seu comportamento anterior, veio a exigir muito mais que o pactuado). 115

Judith Martins­Costa 116 assinala que o Direito Societário recobre com

traços particulares o dever de respeitar a confiança em razão da affectio societatis

que potencializa os deveres de confiança. Por isso mesmo o venire aí incide com

110 TJRS, Ap. Civ. nr. 589.073.956, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des Ruy Rosado de Aguiar Jr., julg. em 19.12.1989, in Jurisprudência­TJRS, C. Cíveis, 1989, vol. 1, tomo 17, pp. 231­237, RJTJRS 145/320. 111 STJ, REsp. nr. 95.539/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. em 3.9.1996, in DJ de 14.10.1996, p. 39.015, e LEX­STJ 91/267. 112 TJRS, Ap. Civ. nr. 70.008.000.275, 20ª Câmara Cível, Rel. Dês. Armínio José Abreu Lima da Rosa, julg. em 3.3.2004. 113 STJ, REsp. nr. 37.859/PR, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. em 11.3.1997, in DJ em 28.4.1997, p. 15.874 e LEX­STJ 97/103. 114 TJRS, Ap. Civ. nr. 70.007.283.435, 20ª Câmara Cível, General Câmara, Rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa, julg. em 22.10.2003, in Revista Julgados do TJRS, nr. 229 – abril/2004. 115 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., p. 116/117. 116 Ibidem.

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intensidade particular, mormente na relação intra­societária. Porém, também se

manifesta nas relações externas da empresa. O Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul apreciou caso em que o interessado, sócio de várias empresas, não se

insurgiu contra o seqüestro de bens de uma delas, judicialmente determinado, vindo,

após, contestar a medida. 117 A omissão primitiva, seguida pela ação em sentido

contrário ao que o silêncio inicial parecia indicar, caracterizou o venire.

O Direito Administrativo e o Direito Tributário constituem, nos esclarece,

ainda, Judith Martins­Costa, férteis campos de aplicação do venire contra factum

proprium, uma vez que a Administração, valendo­se (por vezes de forma

inadmissível) de sua posição de superioridade e da presunção de legalidade dos

atos administrativos, fere direitos subjetivos dos particulares ou atropela as legítimas

expectativas dos particulares que confiaram, justamente, naquela presunção de

legalidade. O STJ julgou, em bom direito, o “caso dos loteamentos irregulares” 118 e o

“caso dos títulos de propriedade equivocadamente concedidos”. 119

No primeiro deles, a Administração Pública promovera a venda de lotes

para moradia. Posteriormente (e já tendo recebido parcela do preço por um

comprador), quis retornar sobre seus passos, alegando a irregularidade do

loteamento e, portanto, a nulidade da venda. A mesma alegação de nulidade foi

esgrimida, no segundo caso, em razão da venda de terrenos situados em zona de

proteção ambiental. Ocorre que a Administração efetivamente vendera a particulares

os terrenos. Se é certo que o meio ambiente equilibrado – “bem de uso comum do

povo e essencial à sadia qualidade de vida”, como reza o art. 225 constitucional –

deve ser especialmente protegido, também é certo que os particulares, fraudados

117 TJRS, AI nr. 70.001.175.330, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, julg. em 21.9.2000. 118 STJ, REsp nr. 141.879/SP, 4ª Turma, Rel. Min Ruy Rosado de Aguiar Jr.,julg. em 17.3.1998, in DJ de 22.6.1998, p. 90, e LEX­STJ 111/187. 119 STJ, REsp nr. 47.015/SP, 2ª Turma, julg. em 16.10.1997, in DJ de 9.12.1997, p. 64.655.

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em suas legítimas expectativas, devem ser indenizados pelo dano à confiança. É

evidente que o Poder Público não está coagido a manter os planos que anuncia,

podendo voltar sobre os seus próprios passos se assim o recomenda o interesse

público, porém, produzida a legítima confiança na esfera do particular, pode vir a ter

o dever de indenizar pelo dano à confiança.

Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em exemplar julgado

(“caso da mudança da jurisprudência sobre o lançamento”), não acolheu a pretensão

do Fisco que, em razão da mudança no entendimento jurisprudencial acerca do fato

gerador de tributo, queria fazer retroagir a jurisprudência nova para fatos ocorridos

no passado, em detrimento da confiança dos cidadãos que haviam confiado no

entendimento até então seguido. 120

Não menos fértil área de incidência do venire é o Direito Processual, seja

no emprego de remédios processuais específicos, seja no que diz respeito à

conduta geral dos litigantes no curso do processo. Já se decidiu, no “caso da falsa

invocação de fraude à execução”, 121 que o credor que aceita a alienação de certo

bem, por seu devedor, age contraditoriamente se vem, depois, a questioná­la,

apelando, para tal fim, indevidamente, à fraude à execução. Por outro lado, o

consorciado que silencia sobre as provas apresentadas pela empresa não pode,

após, alegar que a mesma não se desincumbira do onus probandi, pois sua conduta

será contraditória. 122 No “caso do litigante renitente”, 123 enfim, a parte que ingressara

com todos os recursos e medidas disponíveis no aparato processual – inclusive

agindo com dolo – veio, posteriormente, a reclamar da demora processual a que

120 TJRS, Ap. Civ. nr. 70.005.342.373, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, julg. em 12.3.2003. 121 TJRS, Ap. Civ. nr. 70.008.720.641, 20ª Câmara Cível, Rel. Des. Armínio Jos 122 TJRS, Embs. Infr. Nr. 70.008.138.398, 7º Grupo de Câmaras Cíveis, Rel. Rogério Gesta Leal, julg. em 7.5.2004. 123 TARS, Embs. de Decl. Nr. 197.703.176, 2ª Câmara Cível, Rel. Juiz Roberto Expedito da Cunha Madrid, julg. em 13.5.1997.

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dera causa com sua própria ação. E, em similitude funcional à Verwirkung alemã,

nosso Direito opera com a idéia de preclusão lógica (perda da faculdade de praticar

determinado ato processual porque o ato é logicamente incompatível com outro

praticado anteriormente), que nada mais constitui do que a tradução, no campo do

Direito Processual do princípio do venire contra factum proprium. 124

Nessa linha, o STJ, interpretando o disposto no art. 473 do Código de

Processo Civil, confirmou a impossibilidade de o Direito proteger a coexistência de

atos contraditórios que representam uma ruptura de comportamento ético das

partes, pois, “(...) opondo­se o autor ao ingresso de outrem nos autos, no pólo

passivo, não pode, em sede de embargos declaratórios a acórdão e, posteriormente,

de recurso especial, pretender o contrário. Caso de preclusão lógica.” 125

Judith Martins­Costa ressalta que, mesmo com expressivo corpus

jurisprudencial, não se formou, porém, da casuística nele contida, uma disciplina e,

por isso, a fixação do venire ainda carece de limites e do estabelecimento de certos

requisitos que impeçam o recurso indiscriminado à figura.

Anderson Schreiber afirma que o exame da jurisprudência indica uma

crescente conscientização acerca das potencialidades do princípio de proibição ao

comportamento contraditório, que, embora nascente no Brasil, já alcança os

tribunais superiores e os tribunais estaduais de diversas regiões do país. Da análise

das decisões jurisprudenciais, revela a imensa variedade de situações sobre as

quais o princípio de proibição ao comportamento contraditório pode se aplicar, e

atesta que o direito brasileiro está de portas abertas a esta aplicação. Afirma, ainda,

aquele autor, que, não apenas a construção dogmática do nemo potest venire contra

factum proprium conforma­se perfeitamente com o nosso sistema jurídico, como

124 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., passim. 125 STJ, 3ª Turma, Resp. nr. 20.001­9/SP, Rel. Min. Cláudio Santos,julg. em 17.11.1992, DJU de 7.12.1992.

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também seus fundamentos normativos encontram­se atualmente em fase de

consolidação na atual ordem civil­constitucional brasileira. Sua intensa vinculação ao

valor da solidariedade social, constitucionalmente assegurado, garante ao princípio

de proibição ao comportamento contraditório uma aplicação tão vasta quanto

possível. 126

126 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 275/276.

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CAPÍTULO IV

AS RELAÇÕES DE CONSUMO E O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

4.1 O Código de Proteção e Defesa do Consumidor e a proibição do venire

contra factum proprium

O Código de Proteção e de Defesa do Consumidor (CPDC) não contém

qualquer norma expressa de proibição do venire contra factum proprium. Aliás, o

ordenamento jurídico brasileiro em geral não abriga norma com tal referência.

Porém, a exemplo do Código Civil de 2002 (CC/2002), 127 o CPDC contém artigos

que espelham uma indisfarçável repressão a um comportamento contraditório

característico do venire contra factum proprium. No entanto, o mesmo CPDC admite,

127 Anderson Schreiber, analisando a proibição do comportamento contraditório, afirma que “não se poderia esperar que o novo Código Civil brasileiro inovasse trazendo uma norma geral expressa de proibição ao comportamento contraditório. Repetiu, contudo, aquelas diversas normas casuísticas – passadas do direito romano às codificações européias e daí ao Código Civil de 1916 –, que parecem revelar uma subjacente repressão legislativa ao comportamento incoerente”. SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 65.

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em algumas situações, a adoção de determinadas condutas, aparentemente

contraditórias, julgadas razoáveis em certos contextos.

Assim, podemos verificar que o artigo 49, caput, do CPDC, permite que o

consumidor desista de um contrato firmado fora do estabelecimento comercial,

particularmente quando a negociação é concretizada por telefone, internet 128 , em

domicílio etc., desde que a desistência ocorra no prazo de sete dias a contar de sua

assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço. É o chamado “prazo de

arrependimento”:

“Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos ou serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou em domicílio”.

Esta norma não prestigia comportamento contraditório, mas representa,

isto sim, uma exceção a regra que regula a formação de contratos nas relações de

consumo. Ela beneficia o consumidor principalmente em dois tipos de situação, nos

quais as lesões são muito freqüentes. A primeira situação se configura quando o

consumidor é induzido a comprar produtos vendidos pelo sistema de telemarketing,

internet, reembolso postal etc. Não tendo contato direto com o produto, o

consumidor acaba se surpreendendo negativamente quando este chega à sua casa.

A segunda situação reside nas práticas agressivas de venda, como é o

caso das vendas porta a porta, em que o consumidor, mesmo não estando

predisposto a comprar, acaba sendo convencido por vendedores bem treinados

neste tipo de negócio.

128 O Código Civil de 2002, em seu artigo 428, I, considera “também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante”; já os arts. 428, II e III, e 434, regulam a proposta e aceitação de contratos entre ausentes.

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Por outro lado, o art. 30 do CPDC, implicitamente, coíbe o venire contra

factum proprium ao obrigar o fornecedor a pautar­se por um comportamento

coerente com as informações e publicidade suficientemente precisas utilizadas para

oferecer ou apresentar o produto ou serviço ao consumidor:

“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados obriga o fornecedor que a fez veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.

Podemos verificar que a norma consumerista, permissiva do

comportamento aparentemente contraditório, não traduz nenhuma situação ilícita ou

abusiva. Espelha uma preocupação do legislador em observar princípios que fluem

do texto constitucional para proteger a figura do consumidor e promover o equilíbrio

e harmonia das relações de consumo.

Dessa forma, não é a coerência, por si só, que é tutelada pelo Código de

Proteção e Defesa do Consumidor. A coerência é protegida por razões que

transcendem o seu desenho fático, sendo sua proteção implementada com fulcro na

boa­fé objetiva, que, dentre outras funções, veda o exercício de direitos em

contraposição à confiança e lealdade recíprocas que devem imperar nas relações de

consumo. 129

129 Só haverá antinomia real se, após a interpretação adequada das normas, a incompatilidade entre elas perdurar; caso contrário, a antinomia será aparente. Neste sentido, ver: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1994.

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4.2 Incidência do venire contra factum proprium nas relações de consumo:

análise de casos concretos

No Brasil, o nemo potest venire contra factum proprium é ainda uma

novidade 130 . Com maior razão, podemos adotar tal afirmação ao enfocar o direito do

consumidor, positivado há pouco mais de quinze anos.

No entanto, alguns de nossos tribunais, principalmente os do sul do País,

e particularmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, já se valem, com certa

freqüência, em seus julgados inerentes às relações de consumo, da proibição do

venire contra factum proprium. A jurisprudência do Tribunal do Rio de Janeiro

também contempla, com relação ao direito consumerista, o emprego do brocardo,

embora isto ocorra mais por parte de uma de suas Câmeras.

Vejamos, portanto, a jurisprudência encontrada inerente às relações de

consumo em situações passíveis de aplicação do venire.

4.2.1 No cumprimento da obrigação pelo fornecedor

O primeiro caso a ser analisado se refere ao evento noticiado nos autos

da Ap Civ nr. 70008863672, do TJRS 131 , alusivo a um acidente de trânsito ocorrido

em Porto Alegre­RS, em março de 2003.

A autora, trafegando em seu automóvel, colidiu com veículo do segurado,

primeiro demandado. Este, ao se manifestar em sede de contestação, reconheceu

seu proceder culposo e, ainda, que a autora entrou em contato com ele, primeiro

130 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 187. 131 Disponível em <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 12 abr 2006.

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demandado, tendo sido encaminhada para atendimento pela companhia seguradora

para que seu veículo pudesse ser consertado.

A seguradora, segunda demandada e apelante, emitiu autorização para

conserto do veículo da autora. Posteriormente, no entanto, com fundamento em uma

“suposta declaração firmada pelo segurado”, na qual o mesmo afirmava não ter

obrado com culpa na ocorrência do evento danoso, a seguradora emitiu uma contra­

ordem, desautorizando o conserto do veículo da autora. “Estranhamente, tal

documento em momento algum veio aos autos, tornando, no mínimo, duvidosa a

afirmativa lançada pela apelante”.

Não tendo sido efetivado o conserto de seu veículo, a autora intentou

ação ordinária de indenização e ressarcimento contra a seguradora.

A companhia seguradora foi condenada em parte, no juízo monocrático,

quanto aos pedidos deduzidos pela autora. Interpôs recurso de apelação atribuindo

a culpabilidade, pelo sinistro, à autora.

Os Magistrados integrantes da 12ª. Câmara Cível do TJRS,

unanimemente, negaram provimento ao recurso de apelação e ao recurso adesivo,

mantendo a sentença monocrática.

Em seu voto, o Des Marcelo Cezar Muller, relator, declara que

a contra ordem emitida pela segunda demandada caracteriza comportamento contrário a sua atitude anterior o qual pode ser denominado ‘venire contra factum proprium’, o que opera uma das mais relevantes violações do princípio da boa­fé objetiva, inerente às relações contratuais.

Já o evento noticiado nos autos da RTH nr. 71000752485, da Primeira

Turma Recursal Civel, do TJRS 132 , se refere à cirurgia autorizada por empresa de

plano de saúde que posteriormente negou a cobertura.

132 Disponível em <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 22 mai 2006.

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Trata­se de consumidora que, na condição de beneficiária de plano de

saúde, de que é titular seu marido, solicitou autorização prévia ao plano de saúde

para a extirpação de tumor verificado na mama através de exame de ecografia.

Obtida a autorização da empresa (plano de saúde), a cirurgia foi realizada, tendo o

médico que realizou o procedimento cirúrgico declarado que “durante o ato cirúrgico

retirei extenso tecido mamário da mama esquerda, o que ocasionou uma assimetria

mamária importante, sendo necessário que se realizasse cirurgia reparadora na

mama direita, ficando, assim, as mamas com o mesmo tamanho”.

A empresa do plano de saúde, alegando que a cirurgia realizada foi

distinta da que foi autorizada, recusou o pagamento da mesma. O Hospital onde foi

feita a cirurgia, não havendo pagamento de seus serviços, fez a inscrição do nome

da consumidora no SERASA.

Daí a ação movida pela consumidora contra a empresa de plano de

saúde, cujo pleito, preliminar, de ilegitimidade passiva, foi rejeitado, pois “em que

pese tenha a inscrição sido procedida pelo Hospital, tal conseqüência decorreu

diretamente da falta de pagamento das despesas que assumira a suplicada quando

autorizou o procedimento cirúrgico”.

No julgamento, o relator da Turma Recursal afirma que o procedimento

cirúrgico descrito pelo médico em nada confirma as conclusões apresentadas pela

Empresa. O fato de ter o tumor extirpado da mama esquerda da autora se revelado

benigno, quando tal possibilidade já poderia ser vislumbrada através do exame

ecográfico entregue à ré, não autoriza a demandada a concluir que tenha a

beneficiária feito procedimento cirúrgico distinto do autorizado. A cirurgia reparadora

na mama direita foi realizada apenas para que ficasse com o mesmo tamanho da

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outra de que retirado o tumor, conforme explicitada na declaração médica transcrita

nos autos. Assinala, ainda, o relatório do julgamento que

A conduta da ré, de recusar o pagamento após tê­lo autorizado, com base em cláusula contratual de exclusão de cobertura, afronta o disposto no art. 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, porque viola o princípio da boa fé objetiva do contrato. Tendo em vista o princípio da boa­fé objetiva, não se pode tolerar o “venire contra factum proprium”, ou seja, a conduta contraditória da empresa de Plano de Saúde que, após autorizar a cirurgia, vem posteriormente a negar a cobertura, devendo prevalecer, mesmo que não se adeque perfeitamente às condições gerais do plano, a autorização prévia concedida.

Como podemos verificar, nos dois julgados apresentados, o TJRS

reprimiu, expressamente, o venire contra factum proprium consubstanciado na

mudança de atitude de seguradora em prejuízo de segurado, cuja legítima confiança

foi alicerçada na atitude inicial da demandada. Presentes, portanto, os pressupostos

caracterizadores do venire contra factum proprium: a conduta inicial, autorizadora do

conserto do veículo, no primeiro caso, e da realização da cirurgia, no segundo; a

legítima confiança que a atitude da seguradora, em ambos os casos, despertou na

autora; o comportamento contraditório da seguradora, nos dois casos, afrontando a

confiança que despertou na autora com a recusa de cumprimento do prometido; e,

ainda, a ocorrência de dano, o que motivou a solicitação de indenização.

4.2.2 No recebimento das prestações do consumidor

A proibição do venire contra factum proprium também encontra, aqui,

referências expressas em nossa jurisprudência. É o caso da Apelação Cível

00.005904­8, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). 133

133 Disponível em <www.tj.pr.gov.br>. Acesso em 13 abr 2006.

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Trata­se de ação de indenização por dano moral aforada por uma

consumidora contra uma Sociedade Empresária, julgada procedente pela sentença

monocrática. Irresignada, a vencida apelou, argumentando que o recebimento e o

repasse dos valores das prestações, efetuadas em outra empresa de propriedade

dos mesmos sócios da apelante, se deu por mera liberalidade desta, e que,

portanto, a apelada pagou mal, dando ensejo à colocação do seu nome no cadastro

do SPC, sendo indevida qualquer indenização.

O TJPR, por votação unânime, negou provimento ao recurso.

Dos autos, verifica­se que a autora (apelada) assumiu junto à empresa

Cia. Center Armazém da Moda Ltda. (apelante) um débito proveniente da compra de

uma mercadoria, dividido em quatro prestações, as quais foram pagas na loja Pittol

Calçados Ltda., empresa de propriedade dos mesmos sócios da recorrente. As três

primeiras parcelas pagas foram repassadas à Cia. Center Armazém da Moda Ltda.,

sem que esta manifestasse qualquer objeção pelo fato de estarem sendo quitadas

em loja diversa daquela onde foi adquirida a mercadoria. Somente quando da

quitação da quarta parcela, que, por motivo alheio à vontade da apelada, não foi

devidamente repassada, insurgiu­se a apelante, determinando a inclusão do nome

da apelada no cadastro de maus pagadores ­ SPC.

A afirmação da apelante de que a recorrida executou a quitação das

prestações de forma incorreta ao efetuar o pagamento em outra empresa, não foi

acolhida pelo Tribunal. Aceitando o repasse dos valores pagos à Pittol Calçados

Ltda., e, portanto, não se opondo a que eles assim fossem adimplidos, a recorrente

fez surgir na apelada uma certeza de estar agindo corretamente, principalmente por

ser de conhecimento público que as empresas Cia. Center Armazém da Moda Ltda.

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e Pittol Calçados Ltda. são de propriedade dos mesmos sócios, fato, inclusive,

incontroverso.

Adotando esta postura e criando na apelada esta confiança justificada, o

Tribunal considerou que a apelante não pode, posteriormente, atuar de forma

diametralmente oposta, posto que, “segundo Fernando Noronha, ‘o exercício de um

direito é inadmissível quando dessa forma se põe em contradição com o sentido que

razoavelmente, segundo a boa­fé, se podia inferir da sua conduta anterior’ (O direito

dos contratos e seus princípios fundamentais ­ autonomia privada, boa­fé, justiça

contratual, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 183)”.

Neste contexto, assinala o relator, Des Silveira Lenzi:

A proibição do venire contra factum proprium (proceder contra fato próprio), que corresponde a dois comportamentos, ambos lícitos que se contradizem no tempo, tem seu fundamento na doutrina da confiança, e esta ficou patente nos autos, visto que a apelada não encontrou obstáculos para efetuar o pagamento de todas as parcelas, ou seja, repetiu o procedimento por quatro vezes, tempo mais do que suficiente para criar a certeza de que agia de forma correta. A boa­fé da apelada, também denominada por Fernando Noronha de "boa­fé crença" (op. cit., p. 132), por outro lado, não foi elidida pela recorrente.

Verifica­se, portanto, mais uma aplicação da proibição do venire contra

factum proprium, nas relações de consumo, por um de nossos Tribunais. Novamente

estão presentes os pressupostos caracterizadores do venire contra factum proprium:

a conduta inicial, caracterizada pela tácita aquiescência em receber prestações em

determinado local; a legítima confiança que a atitude despertou na autora, que

continuou realizando pagamento no mesmo local em que efetivou pagamentos

anteriores, sem qualquer contestação da empresa ré; o comportamento contraditório

do fornecedor, afrontando a confiança que despertou na consumidora, alegando não

ser aquele o local de pagamento, mesmo tendo recebido todas as prestações

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anteriores naquele local; e, ainda, a ocorrência de dano moral, o que motivou a

solicitação de indenização por parte da consumidora.

4.2.3 No inadimplemento das prestações pelo consumidor

Novamente encontramos, em nossos Tribunais, referências expressas à

proibição do venire contra factum proprium.

Como exemplo, temos a Apelação Cível 2005.001.06880 do Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro, julgada em 14 de junho de 2005. 134

Trata de ação de indenização por danos morais c/c obrigação de fazer

impetrada em razão de negativação do nome do autor no SERASA. Alega o mesmo

que a dívida já se encontrava quitada, requerendo, ainda, a retirada de seu nome do

cadastro de emitente de cheque sem fundos.

A sentença de primeiro grau julgou procedente, em parte, o pedido da

exordial, condenando a ré a manter o nome do autor fora dos cadastros restritivos,

sob pena de multa a ser eventualmente fixada pelo Juízo, afastando o pedido de

danos morais. Julgou, ainda, extinto, sem mérito, o pedido de devolução dos

cheques.

O recurso de apelação do autor pugnou pela reforma parcial da sentença,

a fim de condenar o réu no pagamento de danos morais. Afirmou que, em função de

contrato de financiamento junto à apelada, emitiu três cheques, os quais, em razão

de dificuldades financeiras, não foram honrados, acarretando a inclusão de seu

nome e do CPF no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos – CCF. Alegou,

ainda, que em setembro de 2003 aderiu a um acordo ofertado pela apelada para

134 Disponível em <www.tj.rj.gov.br>. Acesso em 13 abr 2006.

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quitação da dívida e que, mesmo após o pagamento da dívida, a apelada manteve

seu nome negativado por 215 dias, o que gerou, para o apelante, uma série de

transtornos.

O relator, em seu voto, revela que o próprio apelante afirma que emitiu

três cheques, os quais não foram honrados, e devolvidos em 09.12.1999,

22.12.1999 e 25.01.2000, respectivamente, o que ensejou a negativização de seu

nome no CCF e no SERASA. A prova dos autos demonstra que a apelada

encaminhou proposta de acordo para quitação da dívida, optando o apelante pelo

pagamento da quantia de R$ 62,59, com vencimento em 25.09.2003 que, no

entanto, somente foi paga em 30.09.2003. Em 06.10.2003, o nome do apelante foi

retirado do SERASA, em data anterior à declaração de quitação dada pela apelada,

ocorrida em 16.02.2004. O mesmo raciocínio aplica­se em relação aos cheques. O

relator, ainda, ressalta a inércia do apelante no cumprimento das obrigações

assumidas, afirmando inexistir o alegado dano moral.

Por oportuno, transcreve­se parte do voto do Des Roberto Abreu, relator,

onde o mesmo se refere, objetivamente, à violação do venire contra factum

proprium:

Assim, não pode o apelante utilizar fato próprio – inadimplência das prestações contratuais ­, para levar vantagem financeira, em prejuízo do credor, violando o princípio venire contra factum proprium, em abuso de direito, tendo em vista a sua opção de financiamento, por vontade própria ou circunstâncias da vida, quando poderia evitar custos e encargos, se honrasse o pagamento do débito no prazo pactuado, inclusive, o acordo que aderiu, que foi quitado fora do prazo estabelecido.

Tais razões conduziram os Desembargadores da Nona Câmara Cível do

TJRJ a negar, de forma unânime, provimento ao recurso.

Interessante realçar, mesmo sendo aparentemente óbvio, que a proibição

contida no brocardo vale para fornecedores e consumidores. No julgado

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referenciado, presentes os pressupostos caracterizadores do venire contra factum

proprium: a conduta inicial do consumidor, caracterizada por contumaz

inadimplência, e seu posterior comportamento, contraditório, pleiteando indenização

por danos morais por ter sido inscrito no SERASA, quando ele próprio, consumidor,

deixou, sem justa causa, de honrar compromissos que assumiu. A confiança,

frustrada, diz respeito ao comportamento de uma pessoa normal, que honra os

compromissos assumidos, conduta esta não observada pelo consumidor.

É importante ressaltar que o emprego, nas demandas de consumo, da

proibição do venire contra factum proprium, como princípio, revela a paulatina

compreensão e adesão de nossos magistrados a preceitos normativos mais

abrangentes, impregnados de valores e princípios constitucionais.

4.2.4 Na fase pré­contratual

Na fase de formação dos contratos de consumo, não é pacífico o

entendimento sobre a incidência do venire.

A jurisprudência compulsada sobre casos concretos ocorridos na fase

pré­contratual não se refere, especificamente, ao brocardo e, ainda, os pressupostos

do venire, no entender da maioria dos autores pesquisados, conforme se depreende

do exposto anteriormente, não caracterizam a incidência do brocardo quando a

situação considerada é revestida de ilicitude.

O artigo 30, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor,

expressamente declara que toda informação ou publicidade, suficientemente

precisa, veiculada por qualquer forma ou meio, obriga o fornecedor que a fizer

veicular e integra o contrato que vier a ser celebrado.

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Assim, em princípio, não incidiria, nos casos concretos fundados em

oferta e/ou publicidade de produtos ou serviços não cumpridas pelo fornecedor,

hipótese de incidência do brocardo. No entanto, como veremos a seguir, podemos

entrever discordâncias doutrinárias na aplicação singela deste entendimento.

Na fase pré­contratual das relações de consumo ganha relevância o

dever de informar, pois as informações disponibilizadas pelo fornecedor são

essenciais para a decisão do consumidor. Informações sobre preço, qualidade,

prazos, garantia, riscos, assistência técnica etc. do produto ou serviço serão vitais

para a decisão de aceitação, ou não, do negócio por parte do consumidor. A

transparência e a boa­fé constituem, neste contexto, princípios básicos a orientar as

condutas dos contraentes.

Fundado na confiança que tais informações inspiraram no consumidor, e

que motivaram a aceitação da oferta, a sua não observação possibilita caracterizar

(positivar) a incidência do venire contra factum proprium, conforme se depreende

das palavras de Cláudia Lima Marques ao se referir à fase pré­contratual dos

contratos de consumo:

Aqui as informações são vitais para a decisão do consumidor... e não deve haver indução ao erro, qualquer dolo ou falha na informação por parte do fornecedor ou promessas vazias, uma vez que as informações prestadas passam a ser juridicamente relevantes, integram a relação contratual futura e, portanto, deverão ser cumpridas na fase de execução do contrato, positivando a antiga noção da proibição do venire contra factum proprium. 135

No entanto, considerando que as informações prestadas integram a

relação contratual, a maioria dos autores consultados discorda da caracterização,

positivada, do venire contra factum proprium na hipótese mencionada pela Profa.

Claudia Lima Marques.

135 MARQUES, 2004, op. cit., p. 188.

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Neste sentido, Judith Martins­Costa assinala que “não será caso de

invocar­se o venire se a conduta prévia é antijurídica, ou contra legem, ou inválida”.

Complementa, aquela autora, assinalando que

constitui requisito inafastável – nuclear à própria existência do instituto – a contraditoriedade da conduta quando implicar deslealdade à parte que confiou na ação primitiva. Por isso mesmo, não estão entre os requisitos da coibição o dolo, a má­fé ou mesmo a culpa pelo procedimento contraditório. 136

Também neste sentido, leciona Paulo Luiz Netto Lobo:

A informação insuficiente ou deficiente (informação não explícita) não pode ser óbice à vinculação obrigacional do fornecedor, em benefício do consumidor. Em outras palavras, a informação obriga, ainda que não esteja explicitada, pouco importando que essa omissão seja intencional ou involuntária. A informação não explícita, que vincula, é toda aquela necessária ao conhecimento e compreensão do consumidor típico, e no seu interesse, emergente da natureza do produto ou do serviço. Nesse sentido, também integra o contrato de consumo. As regras técnicas aplicáveis à segurança de determinado produto, por exemplo, integram a informação como nelas estivessem. Do mesmo modo, as características de qualidade utilizadas em produtos e serviços similares, pelos demais fornecedores. Se assim não fosse, estar­se­ia a admitir, por via transversa, conduta fundada em venire contra factum proprium. A falta do dever de informar constitui não apenas violação ao direito do consumidor à informação mas ao direito­dever de concorrência, pois estaria em indevida posição de vantagem, que a ordem econômica constitucional rejeita (artigo 170, IV, da Constituição brasileira). 137

Anderson Schreiber, igualmente, considera que “a violação a uma

estipulação contratual, por exemplo, não configura em nosso sistema jurídico um

venire contra factum proprium, mas inadimplemento contratual em sentido estrito.” 138

Os tribunais, via de regra, não têm se referido, expressamente, ao

brocardo nos casos concretos em que a oferta e/ou publicidade não foram

observadas pelo fornecedor. Neste sentido, vejamos alguns julgados de nossos

tribunais.

136 MARTINS­COSTA, 2004,op. cit., p. 122. 137 LOBO, 2006, op. cit., passim. 138 SCHREIBER, 2005, op. cit., p. 94.

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4.2.4.1 Decorrentes da publicidade de produtos ou serviços

Publicidade pode ser definida como “o conjunto de comunicações

controladas, identificáveis e persuasivas, transmitidas através dos meios de difusão,

com o objetivo de criar demanda de um produto ou produtos e contribuir para a boa

imagem da empresa”. 139

A publicidade, via de regra, é paga e identifica seu patrocinador.

O fornecedor não está obrigado a anunciar seus produtos e serviços. A

legislação não lhe impõe este dever. No entanto, mesmo sendo um direito, o

fornecedor, ao se utilizar da publicidade, deve observar o que estabelece o CPDC,

particularmente quanto à não utilização da publicidade enganosa. 140

Devemos considerar, ainda, que, nas relações de consumo, a

publicidade, enquanto informação prestada ao consumidor, pode ter outros efeitos

jurídicos. Estes efeitos aflorariam não da contemporânea noção de oferta, mas sim

do dever de informar corretamente sobre as qualidades do produto.

Neste contexto, podemos analisar hipóteses de possível incidência do

venire contra factum proprium ao considerarmos que a informação contida na

publicidade, despertando confiança no consumidor, poderá ser afrontada por um

139 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos (et al). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 306. 140 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, ao discorrer sobre a aplicação do sistema do direito de informação à informação publicitária, e o tratamento do CPDC, assevera que “transpondo­ se estes dois princípios éticos, liberdade e verdade, para a publicidade, temos, como resultado, uma pauta de quatro condutas para toda e qualquer publicidade: 1. direito do consumidor conhecer o produto e de compará­lo ao que foi enunciado; 2. exigência da verdade entre o que foi enunciado e o que é efetivamente oferecido; 3. respeito à pluralidade e à indeterminação das pessoas que receberão o anúncio e as diferentes formas de recebe­lo, observando­se, assim, as minorias e todos os seres humanos que não sejam capazes de discernimento, por qualquer que seja a situação em que estiverem envolvidos (a criança, o enfermo que quer por fim à vida, o marginal que nutre a vaidade com a violência etc.); 4. o direito de o consumidor saber que está recebendo informação publicitária. Estes são os elementos éticos que a publicidade deve respeitar diante de um novo sistema de direito de informação, inspirado no ordenamento constitucional e no direito do consumidor”.Direito de Informação e Liberdade de Expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 70.

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posterior comportamento, incoerente, do fornecedor. A jurisprudência de nossos

tribunais condena tais procedimentos, mesmo sem mencionar o venire contra factum

proprium.

A primeira referência a ser feita nos remete ao Superior Tribunal de

Justiça (STJ), Recurso Especial 341.405­DF, julgado em 03 de setembro de 2002. 141

Os recorrentes ao STJ propuseram ação de conhecimento sob o rito

ordinário em face do recorrido, Grupo de Construções e Incorporações, com o

objetivo de ver declarada a nulidade de termo aditivo de contrato de compra e venda

de bem imóvel firmado entre as partes.

Eles, consumidores, tinham celebrado, com o recorrido, pacto de compra

e venda de unidades residenciais de determinado empreendimento imobiliário,

destinado à população de baixa renda. Acordaram, as partes, que parte do preço do

imóvel seria paga em 30 parcelas, a título de poupança (condição para entrega das

chaves), e posterior financiamento do saldo devedor.

Afirmaram que, através de publicidade amplamente divulgada, e no

momento da assinatura do contrato, o recorrido assegurou­lhes que o saldo devedor

seria financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF) pelo sistema de equivalência

salarial, motivo preponderante para que aderissem ao contrato.

Após a quitação total das parcelas tidas como poupança, o recorrido

obteve o "habite­se" quase um ano após o prazo fixado para a entrega das unidades

residenciais e condicionou a entrega das chaves à efetivação do financiamento.

Aduziram que, não tendo a CEF financiado a totalidade do saldo devedor, viram­se

obrigados à assinatura de "Termo Aditivo de Re­ratificação de Contrato de Venda e

141 Disponível em <www.stj.gov.br>. Acesso em 13 abr 2005.

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Confissão de Dívida", sob pena de não lhes ser concedida a posse dos imóveis e de

ser rescindido o contrato, o que lhes ocasionaria a perda dos valores já adimplidos.

Defenderam a nulidade do termo aditivo em função de sua abusividade e

da coação de que foram vítimas, bem como do seu descompasso com a publicidade

veiculada e com a proposta inicial, que previa o financiamento total do saldo devedor

pela CEF. Afirmaram que o contrato com a CEF seria com base no plano de

equivalência salarial e prazo de pagamento em vinte anos, ao passo que o termo

aditivo previu reajustes mensais pela variação da taxa referencial (TR), juros

capitalizados de 1% ao mês e prazo de pagamento em quatro anos.

Ao final, pugnaram pela declaração de nulidade do termo aditivo e pela

condenação do recorrido ao financiamento do saldo devedor remanescente nas

mesmas condições e prazos de financiamento concedidos pela CEF com esteio no

plano de equivalência salarial, em razão da oferta publicitária veiculada e da

declaração constante do recibo de sinal. Requereram também o abatimento no saldo

devedor das quantias já pagas, a partir de seu desembolso e acrescidas de juros de

mora de 1,0% ao mês.

Em contestação, o recorrido asseverou, preliminarmente, a ausência de

prévia interpelação judicial pelos recorrentes, haja vista tratar­se de contrato com

cláusula resolutiva expressa e a falta de sua legitimidade para a propositura da

ação; meritoriamente, que não poderia e nem jamais se comprometera a garantir o

financiamento dos imóveis pela CEF.

O Juízo a quo julgou procedente o pedido dos autores, inclusive

confirmou deferimento do pedido liminar formulado em ação cautelar.

Inconformado, o recorrido apelou ao Tribunal de Justiça do Distrito

Federal. O acórdão do TJDF restou assim ementado:

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"Processual civil e civil. Despersonificação de pessoa jurídica para atingir outra do mesmo grupo econômico. Ofensa aos artigos 20 do CC e 472 do CPC. Código de Defesa do Consumidor. Compromisso de compra e venda de imóvel. Referência a financiamento por agente financeiro em folheto de publicidade. Falta de especificidade. 1 ­ Não vinga a despersonificação de pessoa jurídica para abranger outra do mesmo grupo econômico­financeiro que não foi parte no processo. Inteligência dos artigos 20 do CC e 472 do CPC. 2 ­ Mera inteligência, em folheto de publicidade, à possibilidade de financiamento de parte do preço de bem imóvel por determinado agente financeiro não se configura em obrigatoriedade para o promitente vendedor. Falta de especificidade e alcance da pessoa estranha ao negócio jurídico celebrado. Apelação provida."

Interpostos embargos declaratórios pelos recorrentes, restaram

rejeitados. Irresignados, interpuseram recursos especiais, com fulcro no art. 105, inc.

III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, sob os fundamentos de ofensa aos

arts. 30, 35, I, e 51, IV, §1.º, III, do CPDC, e de dissídio jurisprudencial.

Sustentaram que a oferta publicitária, veiculada pelo recorrido, contendo

a expressão "Financiamento Caixa Econômica Federal" é suficientemente precisa e

tem o condão de obrigá­lo a firmar o contrato nos moldes anunciados. Alegaram,

ainda, que essa oferta foi decisiva para a assinatura do contrato, o que não teria

ocorrido caso tivessem conhecimento de que o saldo devedor não seria inteiramente

financiado pela CEF.

Transcreve­se, a seguir, parte do voto da Ministra Nancy Andrighi,

relatora do REsp:

...................................................................................................................... A questão posta a desate pelos recorrentes consiste em aferir se a oferta publicitária veiculada pelo recorrido reveste­se de força vinculativa, nos termos preconizados pelo Código de Defesa do Consumidor. ........................................................................................................................ A publicidade realizada pelo fornecedor tem o objetivo de divulgar seus produtos e/ou serviços e ofertá­los aos consumidores. A oferta, nesse caso, difere da oferta a que faz alusão o art. 1080 do CC. Porquanto destinada à sociedade de consumo, fez­se necessário atribuir à publicidade certo valor contratual, ainda que não fosse instrumento do contrato e tivesse mero conteúdo indicativo. Atento à possibilidade de que a veiculação desvirtuada da publicidade viesse a prejudicar os consumidores, o legislador assegurou a tutela da

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sociedade de consumo através do preceito legal insculpido no art. 30 do CDC, verbis : "Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Trata­se do princípio da vinculação, um dos princípios informadores do marketing , que se aplica não somente à oferta, mas também à publicidade. .......................................................................................................................... No caso sub examen, consta do recibo de sinal firmado pela recorrente Nádia Maria Lima Pereira que o financiamento do valor restante a ser pago pelo imóvel será financiado pela CEF, nos seguintes termos: "Declara ainda concordar que o saldo restante seja financiado pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL ­ Filial de Brasília [grifo no original], cujo valor será utilizado para amortização do seu saldo devedor junto à CEF, bem como os recursos utilizados do FGTS, quando da apresentação do traslado da escritura, devidamente registrada no RGI competente." (fl. 44 dos autos da ação cautelar) Consta também do panfleto veiculado pelo recorrido a mesma afirmação, o que vem a corroborar o fato de que efetivamente houve publicidade no sentido do financiamento exclusivo pela CEF. Confira­se à fl. 244 dos autos da ação cautelar que, além da destacada expressão "FINANCIAMENTO CAIXA ECONÔMICA FEDERAL", utilizando­se, inclusive, da logomarca da aludida empresa pública, ainda ressalvou­se: "financiamento garantido". Verifica­se, pois, que a oferta foi suficientemente precisa, sem qualquer exagero ou absurdidade, e chegou ao conhecimento dos recorrentes que, seguros da possibilidade de adquirirem um imóvel nos moldes preconizados pelo recorrido, firmaram contrato de compra e venda das unidades residenciais. Isso certamente não teria ocorrido se tivessem conhecimento de que apenas parte do financiamento seria concedido pela CEF. Outrossim, é de se ressaltar que o fornecedor, quando da divulgação de publicidade atinente aos produtos e/ou serviços que comercializa, deve agir com o mínimo de prudência, de modo a clarificar para o consumidor em que condições reais o negócio se realizará. ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ Dada a força vinculativa da oferta divulgada pelo recorrido, aplica­se ao caso em análise o art. 35, I, do CDC, nos termos do pedido formulado pelos recorrentes na petição inicial (fls. 02/17). Forte em tais razões, CONHEÇO dos presentes recursos especiais pelas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, e DOU­LHES PROVIMENTO para julgar procedentes os pedidos formulados pelos recorrentes, restabelecendo­se a r. sentença. Deverá o recorrido financiar o restante do saldo devedor dos imóveis adquiridos nas mesmas condições e prazos de financiamento concedidos pela CEF, inclusive no que diz respeito ao plano de equivalência salarial, desde que os mutuários preencham os requisitos estabelecidos pela CEF, entre esses o de possuir renda compatível com o financiamento. As parcelas já pagas devem ser abatidas do saldo devedor a ser financiado pelo recorrido, devendo a sua atualização acompanhar a mesma regra de atualização do saldo devedor remanescente. .......................................................................................................................

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105

Um outro julgamento que podemos referenciar diz respeito ao Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), Apelação Cível 70006280390, julgada em 19

de maio de 2004. 142

O autor, pessoa física, firmou com a demandada, uma editora, em julho

de 2001, contrato de assinatura anual de revistas, motivado por campanha

publicitária veiculada pela mídia. Ao adquirir a assinatura, o autor deveria receber,

também, passagens aéreas de ida e volta para Manaus podendo, inclusive, retirar os

bilhetes junto à Transbrasil. No entanto, o autor alegou que os aviões daquela

empresa não alçavam vôo desde dezembro de 2001, impossibilitando sua viagem.

Postulou indenização por danos morais, em face da frustração que sofreu, bem

como por danos materiais por inadimplemento parcial do contrato.

Contestando a ação, suscitou a editora­ré, preliminarmente, a

ilegitimidade passiva, entendendo que não podia ser responsabilizada pelo fato de a

Transbrasil ter suspendido seus vôos. No mérito, asseverou que o autor recebeu

pelo correio um vale que seria trocado pela referida passagem aérea, portanto a sua

parte na contratação restou inteiramente cumprida, em tempo hábil. Argumentou,

ainda, que o valor da assinatura não compreendia os bilhetes, sendo estes, brindes

promocionais. Mencionou, ainda, que no anúncio da promoção estava claramente

especificado que a empresa aérea que executaria os vôos era a Transbrasil.

Argumentou não ter dado causa ao cancelamento das viagens. Rechaçou, por fim, a

existência do dano postulado, moral e material.

Vencida na 1ª instância, a Editora­ré, inconformada, apelou da decisão.

No julgamento pelo TJRS, foi destacado que o Código de Defesa do Consumidor

consagrou a oferta como declaração unilateral de vontade, vinculando o fornecedor

142 Disponível em <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 12 abr 2006.

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106

e permitindo ao consumidor exigir o seu cumprimento regular, conforme dispõe o art.

30 do CDC. Foi ressaltado, ainda, que a ré, ao veicular sua mídia, ofertou uma

viagem, com duas passagens, ida e volta, a algumas cidades brasileiras (dentre as

quais o autor escolheu Manaus). Utilizando­se de mecanismo de convencimento

psíquico, garantiu ao consumidor final a oportunidade de realizar uma viagem de

uma forma fácil e gratuita e ter a informação de revistas de renome nacional, por um

preço único. O autor assinou as revistas certamente porque ganharia uma viagem.

Neste sentido, a fundamentação da sentença de 1ª instância, transcrita

pelo Des Cacildo de Andrade Xavier em seu relatório:

A empresa demandada confirma que o autor, através da promoção “Assinou, Viajou” adquiriu o direito a um voucher para trocar por uma passagem aérea de ida e volta para um dos lugares então operados pela empresa Transbrasil, tendo o autor escolhido a cidade de Manaus – AM. Registre­se que a promessa era de viagem de ida e volta e não restou cumprida pela demandada, perante o consumidor, apenas com a entrega do referido voucher. A oferta do valioso brinde foi inegavelmente o argumento de marketing que atraiu o autor para assinatura de duas revistas editadas pela ré. na verdade o brinde ofertado foi até desproporcional, em tese, considerando­se o valor da assinatura, o que revela o fortíssimo apelo promocional para convencer os consumidores. Embora a desativação da empresa Transbrasil tenha impossibilitado as viagens na forma originalmente ofertadas, isso não afasta a responsabilidade da ré pelo compromisso que assumiu com seu cliente, de o mesmo viajar, ida e volta, para a cidade de Manaus, como brinde promocional. Afinal, a escolha da empresa aérea, para operar a promoção foi exclusivamente da demandada, tendo assim responsabilidade quanto a sua opção. O anunciante é responsável por aquilo que anuncia, mormente em se tratando de campanha publicitária para atrair clientes, como da hipótese dos autos a teor do artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor, toda a informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado. Mencione­se que a demandada sequer referiu ter tentado contratar as passagens promocionais com outra companhia aérea, em substituição à Transbrasil. Na verdade, a ré nenhuma alternativa trouxe aos autos para a solução do problema, vale dizer o seu descumprimento relativamente à promoção ofertada aos clientes. Nesses termos, não prospera a ilegitimidade passiva ad causam suscitada pela ré, pois esta é a responsável pelo prejuízo causado ao autor. Se assim entender, poderá a ré demandar regressivamente contra a empresa de aviação.

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Por unanimidade, foi dado provimento em parte à apelação (a sentença

de 1º. grau foi considerada ultra petita, pois determinou à editora­ré o fornecimento

de passagens ao autor, e não indenização, como havia sido solicitado). A editora­ré

foi condenada a pagar ao autor o valor equivalente a duas passagens aéreas para

Manaus, nos moldes em que ajustado na promoção.

Como vimos, nos dois julgados descritos não há qualquer menção

expressa ao venire contra factum proprium. No entanto, observando a linha de

entendimento expresso por Cláudia Lima Marques, anteriormente referida,

poderíamos considerar positivados e presentes, nos dois julgados descritos, os

pressupostos caracterizadores do venire contra factum proprium: a conduta inicial,

por meio de campanha publicitária, fazendo promessas aos consumidores,

relacionadas ao produto oferecido; a legítima confiança que as promessas

despertaram nos consumidores, levando­os a adquirir o produto ofertado; o

comportamento contraditório dos fornecedores, afrontando a confiança que

despertaram nos consumidores com a recusa de cumprimento do prometido; e,

ainda, a ocorrência de dano, o que motivou a solicitação de obrigação de fazer, no

primeiro caso, e a de indenização, no segundo, por parte dos consumidores lesados.

O entendimento majoritário, no entanto, entende que não é o caso de se

invocar a proibição do venire contra factum proprium, pois a conduta prévia, nos dois

julgamentos citados, integra os contratos firmados. O não cumprimento dos

mesmos, por si só, afasta a incidência de um comportamento apenas contraditório,

ensejador do venire.

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4.2.4.2 Decorrentes da oferta de produtos ou serviços

Considera­se oferta, ou proposta, a manifestação inicial de vontade

direcionada à realização de um contrato. Há necessidade da iniciativa de proposição

do negócio por um dos futuros contraentes.

“A oferta do CPDC tem sentido e abrangência muito maior do que a

proposta do art. 427, do Código Civil”.

Nelson Nery Junior revela que o Código Civil não considera proposta, por

exemplo, o comportamento direcionado a uma gama indeterminada de pessoas, por

faltar a vontade de contratar, como os anúncios publicitários por meio de jornal,

revista, catálogos etc., isto é, tudo aquilo que o Código de Proteção e Defesa do

Consumidor considera como oferta, elemento que impõe ao devedor o dever de

prestar. 143

Nelson Nery assinala, ainda, que outra diferença entre a proposta do

Código Civil (CC/02) e a oferta do Código de Proteção e Defesa do Consumidor

(CPDC) se relaciona aos efeitos do seu não cumprimento.

O não cumprimento indevido da oferta, no Código Civil de 2002, resolve­

se em perdas e danos. Já no CPDC, se o fornecedor não cumprir a oferta, o

consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha, conforme especificado

em seu art. 35, “exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta,

apresentação ou publicidade; aceitar outro produto ou prestação de serviço

equivalente; rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente

antecipada, monetariamente atualizada, e perdas e danos”.

143 NERY JUNIOR, Nelson (et al). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 505/508.

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Ressalta, aquele autor, que o art. 84, § 1º, do CPDC, afirma que “a

conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas

optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático

correspondente”. A regra, portanto, é a execução específica da obrigação de fazer (e

não a resolução em perdas e danos) regulada pelo art. 84, e parágrafos, do CPDC.

A oferta é, portanto, uma declaração de vontade a qual o direito impõe

efeitos jurídicos, o da vinculabilidade e condicional irrevogabilidade, para proteger a

segurança dos negócios.

Muitas vezes, como nos contratos de massa, a oferta é genérica, não

sendo dirigida a pessoas determinadas, mas sim a todos os indivíduos, enquanto

integrantes da coletividade. Esta oferta genérica, e, principalmente, a publicidade e

outras informações prestadas não vinculavam o fornecedor, sendo consideradas

apenas um convite para a oferta por parte do consumidor.

Na ótica do CPDC este poder de vinculação, destinada ao consumo, é

multiplicado. O art. 30 do CPDC, como vimos, modifica e amplia consideravelmente

a noção de oferta no direito brasileiro ao assinalar que toda a informação, mesmo a

publicidade, suficientemente precisa constitui uma oferta (uma proposta contratual),

vinculando o fornecedor. E o contido no art. 48 praticamente regula a fase pré­

contratual ao afirmar:

Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré­contratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos.

Como referência, podemos citar julgado da 2ª. Turma Recursal dos

Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e

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dos Territórios, que, em face da Apelação Cível de nr. 2004.01.1.115152­6, 144

manteve sentença vergastada que condenou Empresa de Automóveis ao

pagamento de determinada importância à autora em razão de débito oriundo do

IPVA de 2003, prometido à recorrida como gratuito, por ocasião da venda de

veículo, mas que não fora pago.

Considerou, a Turma Recursal, que o Código de Proteção e Defesa do

Consumidor dispõe, em seu art. 35, inciso I, que “a oferta vincula o fornecedor,

podendo o consumidor exigir o cumprimento forçado da obrigação nos termos

ofertados.” Outrossim, o “fornecedor do produto é solidariamente responsável pelos

atos de seus prepostos ou representantes autônomos”, conforme previsto no art. 34

do CPDC.

Assim, demonstrado, nos autos, que preposto da empresa ré prometeu o

pagamento do IPVA, deve a empresa cumprir as condições por ele ofertadas,

reembolsando a autora do montante por ela despendido para o adimplemento do

referido tributo.

Como nos casos pertinentes à publicidade, se observarmos linha de

entendimento expresso por Cláudia Lima Marques, podemos entender presentes os

pressupostos do venire contra factum proprium: a conduta inicial da empresa,

ofertando gratuitamente o pagamento do IPVA; a confiança incutida no consumidor

com relação ao cumprimento da oferta feita pelo fornecedor; a conduta contraditória

do fornecedor, negando­se a cumprir a oferta que fez, e o dano causado ao

consumidor, consolidada na importância que teve de desembolsar para pagar o

IPVA.

144 Disponível em <www.tjdf.gov.br>. Acesso em 12 abr 2006.

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No entanto, corrente majoritária entende que se trata, basicamente, de

não cumprimento de contrato (a oferta integra o contrato), o que afasta a incidência

do venire.

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CONCLUSÃO

O homem, neste início de milênio, vivencia um modelo de associativismo

inexistente no século XIX, e em parte do século XX: é a sociedade de consumo,

imersa num mundo globalizado, interativo, caracterizada por uma quantidade

crescente de produtos e serviços, e pela presença dominante do crédito e do

marketing.

A sociedade de consumo não trouxe apenas benefícios para seus atores.

Se, no início do século XIX, fornecedor e consumidor encontravam­se em uma

posição de relativo equilíbrio, agora, com a sociedade de consumo, o fornecedor

(fabricante, produtor, construtor, importador, comerciante...) se reveste de força na

relação de consumo, ditando as regras da mesma. Avulta­se, neste ambiente, a

vulnerabilidade do consumidor. No Brasil, esta realidade motivou o nascimento e

desenvolvimento do Direito do Consumidor, como disciplina jurídica autônoma, com

a elaboração, determinada pela Constituição Federal de 1988, do atual Código de

Proteção e Defesa do Consumidor (CPDC).

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A legislação de proteção ao consumidor objetiva reequilibrar a relação de

consumo, tendo em vista a vulnerabilidade intrínseca ao consumidor. A

vulnerabilidade do consumidor tem várias causas, não podendo o Direito proteger a

parte vulnerável da relação consumerista apenas com relação a alguns aspectos

relacionados ao mercado de consumo. Com o CPDC, busca­se uma proteção

integral, sistemática e dinâmica do consumidor, visando, em última análise, a

almejada harmonia das relações de consumo.

O CPDC é uma legislação moderna, atual, e utiliza técnica legislativa que

privilegia a utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que permitem

a inserção, no ordenamento jurídico, de normas de conduta e de princípios

valorativos expressos ou não expressos legislativamente, proporcionando melhores

condições para o acompanhamento, pelo Direito, da realidade social, sob o enfoque

dos valores e princípios consagrados pelo texto constitucional.

O ambiente globalizado em que vivemos, e o rápido e incessante fluxo de

pessoas, produtos, serviços e informações, favorecem a mudança de opinião das

pessoas, de suas convicções e comportamentos. Conforma a sociedade de

consumo, igualmente caracterizada pela massificação dos contratos e da produção,

e pela diversidade e complexidade dos produtos e serviços oferecidos aos

consumidores.

Neste contexto, o antigo brocardo venire contra factum proprium ganha,

atualmente, no Direito em geral, e, especialmente, nas relações de consumo,

significativa relevância.

Esta relevância, sem dúvida, aflora da correta compreensão do

fundamento dos negócios jurídicos, ou dos motivos pelos quais a ordem jurídica

confere efeitos de vinculação/sanção a determinados comportamentos humanos

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manifestados sob a forma de declarações ou atividades negociais. Esse

fundamento, tradicionalmente abrigado sob o enfoque da teoria da vontade,

imperante desde o século XIX até meados do século XX, ao término da 2ª Guerra

Mundial, hoje encontra sua racionalidade na teoria da confiança.

Como conseqüência desse entendimento, nesse mundo globalizado, com

fronteiras, de qualquer natureza, relativizadas, abrigando uma sociedade cada vez

mais “de consumo”, há necessidade da valorização jurídica do “comportamento

integralmente considerado”.

Nas relações de consumo, habituais no dia­a­dia de qualquer cidadão, o

que se consubstancia na declaração, ato ou atividade projetados exteriormente ao

sujeito é o que chega ao alter, gerando sua expectativa em certa conduta. Assim, se

há tutela à justa expectativa, é porque os negócios jurídicos são atos sociais, por

isso comumente atingindo, direta ou reflexamente, a esfera de nossos parceiros e de

terceiros, razão pela qual se impõe a valoração séria e ponderada da confiança que

suscitamos nos outros.

Daí por que se renovam, contemporaneamente, figuras como o venire,

agora já no quadro de uma Teoria do Negócio (e da declaração negocial) afastada

das raízes voluntaristas que subjaziam também – por necessária conexão – às

doutrinas da ilicitude civil fundada na culpa e do abuso de direito, ancorado no

mesmo fundamento. 145

Para o Direito do Consumidor, por regular situações vivenciadas

diariamente por todas as pessoas, em relações nas quais um dos pólos se

caracteriza pela vulnerabilidade em relação ao alter, o renascer da proibição do

venire contra factum proprium é extremamente significativo. Resultante da boa­fé

145 MARTINS­COSTA, 2004, op. cit., passim.

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objetiva e da solidariedade social, direcionado pela teoria da confiança, o venire se

identifica com a nova concepção de contrato e com a essência dogmática intrínseca

à Constituição Brasileira de 1988, base fundante do Código de Proteção e Defesa do

Consumidor (CPDC).

O venire também se identifica com a técnica legislativa adotada pelo

CPDC, que emprega, de forma significativa, cláusulas gerais e conceitos

indeterminados tendo em vista a impossibilidade, do direito clássico, de regular as

inúmeras situações jurídicas inerentes às relações de consumo, inseridas em um

ambiente globalizado, em contínuas mutações.

A análise de casos concretos solucionados com base na aplicação da

proibição do venire contra factum proprium revela justamente esta sua utilidade

como parâmetro relevante na avaliação dos comportamentos contraditórios

violadores da boa­fé objetiva. Ressalte­se, neste ponto, que a incidência do venire

contra factum proprium pode ocorrer tanto no comportamento do fornecedor (a

esmagadora maioria dos casos examinados) como em comportamento do

consumidor. Em qualquer hipótese, a proibição do venire vem sendo aplicada, pelos

Tribunais consultados, sempre que, da liberdade de mudar de opinião e de conduta,

possa advir prejuízo a quem legitimamente tenha confiado no sentido objetivo de um

comportamento inicial.

Não apenas a construção dogmática do nemo potest venire contra factum

proprium conforma­se perfeitamente com o nosso sistema jurídico, como também

seus fundamentos normativos encontram­se atualmente em fase de consolidação na

atual ordem civil­constitucional brasileira. Sua intensa vinculação ao valor da

solidariedade social, constitucionalmente assegurado, atribui, ao princípio de

proibição do venire contra factum proprium, papel preponderante na proteção dos

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direitos fundamentais nas relações de consumo e uma aplicação tão vasta quanto

possível.

O exame da jurisprudência indica, ainda, uma crescente conscientização

acerca das potencialidades do princípio de proibição ao comportamento

contraditório, que, embora nascente no Brasil, já alcança os tribunais superiores e os

tribunais estaduais de diversas regiões do país. A variedade de relações de

consumo, sobre as quais o princípio de proibição ao comportamento contraditório

pode incidir, atesta que o direito do consumidor está de portas abertas a esta

aplicação.

Nesse contexto, podemos vislumbrar a importância do princípio da

proibição do venire contra factum proprium como garantidor dos direitos

fundamentais nas relações de consumo. De matizes constitucionais, moldado pela

boa­fé objetiva e pela solidariedade, o venire vem ao encontro dos princípios

norteadores do Direito do Consumidor, voltados para a harmonização da autonomia

individual e da solidariedade social, repensando a teoria contratual não mais do

ponto de vista puramente jurídico, porém crescentemente afinado com os valores

sociais os quais, via de regra, compete ao intérprete identificar.

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