proibição de venire contra factum proprium nulli ... · 178, todos do código tributário...

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Proibição de venire contra factum proprium nulli conceditur e os princípios da proteção da confiança e da boa-fé e suas aplicações no direito tributário. Patrícia Fernandes Fraga 1 Resumo Este trabalho tem como objetivo a análise das distinções fundamentais entre os princípios da confiança, da boa-fé e, principalmente, do venire contra factum proprium nulli conceditur e sua possível aplicação no direito tributário. O âmbito do trabalho restringe-se ao venire contra factum proprium nulli conceditur aplicado ao direito tributário, especificamente, no que respeita a mudança na linha de conduta da Administração Pública. A perspectiva de análise é, predominantemente, jurídica e dogmática em virtude do trabalho pautar-se por teorizar as aplicações do venire contra factum proprium nulli conceditur e perquirir sobre quais os requisitos e as consequências de se exigir uma vedação geral do comportamento contraditório pela Administração Pública diante do Sistema Constitucional Tributário brasileiro, trazendo, algumas contribuições da doutrina estrangeira. Tem ainda como escopo resolver a tensão entre os princípios da legalidade e da confiança, da legalidade e da boa-fé, assim como, entre a necessidade de previsibilidade, de cognoscibilidade e de continuidade dos atos administrativos diante da necessidade de mudança, de adequação, da Administração Pública. Palavras-chave: venire contra factum proprium nulli conceditur, boa-fé, confiança legítima, legalidade, administração pública. Abstract This study aims to analyze the fundamental distinctions between the principles of trust, good faith and especially the venire contra factum proprium nulli conceditur and its possible application in tax law. The scope of work is limited to venire contra factum proprium nulli conceditur applied to tax law, specifically as regards the change in the line of conduct of public administration. The analysis perspective is predominantly legal and dogmatic because of work be guided by theorizing the applications of venire contra factum proprium nulli conceditur and to assert what requirements and the consequences of requiring a general seal contradictory behavior by the Public Administration before the Brazilian Constitutional Tax System, bringing some contributions of foreign doctrine. It also has the scope to resolve the tension between the principles of legality and trust, legality and good faith, as well as between the need for predictability, of knowledgeability and continuity of administrative acts on the need for change, adaptation, Public Administration. Keywords: venire contra factum proprium nulli conceditur, good faith, legitimate expectations, legality, public administration 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de nível superior na AJES Faculdade do Vale do Juruena.

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Proibição de venire contra factum proprium nulli conceditur e os princípios da proteção

da confiança e da boa-fé e suas aplicações no direito tributário.

Patrícia Fernandes Fraga1

Resumo

Este trabalho tem como objetivo a análise das distinções fundamentais entre os

princípios da confiança, da boa-fé e, principalmente, do venire contra factum proprium nulli

conceditur e sua possível aplicação no direito tributário. O âmbito do trabalho restringe-se ao

venire contra factum proprium nulli conceditur aplicado ao direito tributário,

especificamente, no que respeita a mudança na linha de conduta da Administração Pública. A

perspectiva de análise é, predominantemente, jurídica e dogmática em virtude do trabalho

pautar-se por teorizar as aplicações do venire contra factum proprium nulli conceditur e

perquirir sobre quais os requisitos e as consequências de se exigir uma vedação geral do

comportamento contraditório pela Administração Pública diante do Sistema Constitucional

Tributário brasileiro, trazendo, algumas contribuições da doutrina estrangeira. Tem ainda

como escopo resolver a tensão entre os princípios da legalidade e da confiança, da legalidade

e da boa-fé, assim como, entre a necessidade de previsibilidade, de cognoscibilidade e de

continuidade dos atos administrativos diante da necessidade de mudança, de adequação, da

Administração Pública.

Palavras-chave: venire contra factum proprium nulli conceditur, boa-fé, confiança

legítima, legalidade, administração pública.

Abstract

This study aims to analyze the fundamental distinctions between the principles of

trust, good faith and especially the venire contra factum proprium nulli conceditur and its

possible application in tax law. The scope of work is limited to venire contra factum proprium

nulli conceditur applied to tax law, specifically as regards the change in the line of conduct of

public administration. The analysis perspective is predominantly legal and dogmatic because

of work be guided by theorizing the applications of venire contra factum proprium nulli

conceditur and to assert what requirements and the consequences of requiring a general seal

contradictory behavior by the Public Administration before the Brazilian Constitutional Tax

System, bringing some contributions of foreign doctrine. It also has the scope to resolve the

tension between the principles of legality and trust, legality and good faith, as well as between

the need for predictability, of knowledgeability and continuity of administrative acts on the

need for change, adaptation, Public Administration.

Keywords: venire contra factum proprium nulli conceditur, good faith, legitimate

expectations, legality, public administration

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de nível superior na

AJES – Faculdade do Vale do Juruena.

2

Introdução

O presente trabalho tentará examinar as distinções fundamentais entre os princípios

da confiança, da boa-fé e do venire contra factum proprium nulli conceditur e sua possível

aplicação no direito tributário, dando enfoque para a aplicação desses princípios perante uma

eventual mudança na linha de conduta da administração pública2,

O tema que será desenvolvido – a mudança administrativa e o venire contra factum

proprium nulli conceditur3 – tratado sob enfoque tributário, acaba por ganhar uma nuance

híbrida pois, necessariamente, misturam-se neste estudo assuntos derivados do direito público

e do direito privado em inevitável e peculiar relação.

O artigo foi dividido, na tentativa de sistematizar e facilitar a compreensão da

matéria, em três pontos principais.

Inicialmente, no ponto um, serão apresentadas as origens do instituto, os

pressupostos de ocorrência do VCFP4 concebidos pela doutrina, as aplicações do instituto no

direito tributário, além dos efeitos da proibição do comportamento contraditório. Nesse

tópico, tentar-se-á, basicamente, elucidar os pontos distintivos entre o VCFP e os princípios

da confiança e da boa-fé.

No ponto seguinte, ponto dois, propõe-se o estudo de mais algumas figuras, ou

fórmulas assemelhadas ao VCFP, em razão de a análise dessas figuras parecer relevante à

matéria em comento. Limitar-se-á a apresentar apenas as noções de supressio, surrectio, tu

quoque e inalegabilidade das nulidades formais (ou inadmissibilidade da alegação de

nulidades formais).

2 Por conseguinte, não se adentrará com profundidade, nem na mudança legislativa, nem na mudança

jurisprudencial, embora tais temas possam ser tangencialmente abordados. 3 Trata-se da proibição do comportamento contraditório identificada no brocardo jurídico venire

contra factum proprium nulli conceditur, ou nemo potest venire contra factum proprium, ou ainda venire contra

factum proprium non valet. 4 O brocardo, venire contra factum proprium nulli conceditur, será, doravante, sinalizado por VCFP

de forma simplificada, ou chamado, apenas, de venire.

3

Algumas dessas figuras, grosso modo, poderiam ser consideradas como

aperfeiçoamentos ou melhoramentos do próprio VCFP. São, também, qualificadas como

figuras parcelares da boa fé, ou figuras típicas do abuso de direito, e podem configurar uma

decorrência de situações de abuso de direito ou de exercício inadmissível de direito ou

posição jurídica – como gostam de referir os autores portugueses5.

No último ponto, de número três, serão, basicamente, expostos e comentados alguns

julgados dos tribunais pátrios, extraídos do sistema de busca do Superior Tribunal de Justiça6

para que se possa ter uma idéia, ainda que bem restrita, de qual o tratamento que vem sendo

dado a esse tema pela instância superior.

Antes de iniciar o primeiro tópico, faz-se oportuno gizar que o pano de fundo, o que

estará em jogo nesta análise é, essencialmente, conseguir - em situações nas quais não será

possível recorrer aos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada,

da prescrição e da decadência - resolver a tensão existente e constante entre os princípios da

legalidade e da confiança, da legalidade e da boa-fé, assim como, o conflito entre os interesses

públicos e os interesses privados, ou ainda, a tensão entre a necessidade de previsibilidade, de

cognoscibilidade e de continuidade dos atos administrativos – aqui atos administrativos em

sentido amplo – versus a necessidade de mudança, de adequação, ou melhor de atualização da

Administração Pública a novas situações ou aos seus novos interesses.

Cumpre acrescentar que nenhum dos princípios que foram citados são princípios de

caráter absoluto, isto quer dizer que a priori não há como decidir qual prevalece. Logo, para

saber da prevalência, será necessário concretizá-los, avaliá-los perante a situação concreta.

Brevemente, outra situação que se faz referência, é que no Sistema Constitucional

Tributário pátrio, nem a confiança, nem a boa-fé, são princípios expressos. Mas, embora isso

seja verdade e não impeça a aplicação desses princípios no âmbito do direito tributário,

existem, sim, algumas disposições normativas que podem fazer alusão a uma necessidade de

proteção da confiança e da boa-fé do contribuinte, evitando surpresas indesejáveis originadas

do agir do Poder Público. E, dentre essas disposições normativas, estão dos artigos 100, 146,

5 Nesse sentido: MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha. Da boa fé no direito civil,

volume II. Livraria Almedina: Coimbra, 1984, p.747-748 e FERNANDES, Magda Mendonça. O Venire contra

factum proprium. Obrigação de contratar e de aceitar o contrato nulo. Edições Almedina. Coimbra, 2008,

p. 30-31. 6 Não se logrou êxito na busca de decisões sobre venire e a mudança na linha de conduta da

administração junto ao STF - Supremo Tribunal Federal.

4

178, todos do Código Tributário Nacional e o artigo 54, da lei 9784/99, que são expostos, de

fora sucinta, como segue:

O artigo 100, especialmente no seu parágrafo único, diz que a observância

das normas complementares à legislação, designadamente os atos normativos

e as práticas reiteradas das autoridades administrativas, exclui a imposição de

penalidades, a cobrança de juros de mora e atualização do valor monetário da

base de cálculo do tributo. Tal dispositivo acaba por proteger a confiança

depositada na regulamentação e na práxis da administração fiscal.

O artigo 146 – que se encontra dentre as disposições sobre o lançamento – diz

que as modificações introduzidas nos critérios jurídicos adotados pela

autoridade administrativa, no exercício do lançamento – somente podem ser

efetivadas quanto a fato gerador ocorrido posteriormente a sua introdução –

em relação ao mesmo sujeito passivo. Também evitando surpresas aos

contribuintes.

O artigo 178 – contido nas disposições sobre isenção – se compreendido a

contrario sensu remete a uma regra, cujo teor informa que a isenção

concedida por prazo certo e em determinadas condições não pode ser

revogada ou modificada ao bel-prazer da Administração, ou seja, não poderá

se alterada unilateralmente, e a qualquer tempo pela autoridade

administrativa.

E, por fim, o artigo 54, da lei 9.784/99 – Lei do processo administrativo da

União – apresenta o prazo decadencial de cinco anos, relativo ao direito da

Administração anular atos que tenham efeitos favoráveis aos seus

destinatários. A indicação desse artigo relaciona-se à importância da

manutenção dos efeitos favoráveis aos contribuintes, que será vista em tópico

posterior, neste artigo.

É nesse panorama que se buscará dar seguimento ao estudo. Nos pontos

subsequentes, inevitavelmente, haverá de se lançar mão de elementos interdisciplinares,

trazendo ensinamentos extraídos do Direito Civil e do Direto Administrativo, mas apenas no

limite do necessário ao exame da situação de mudança na linha de conduta da Administração

Tributária nacional.

5

1. Venire contra factum proprium nulli conceditur

O brocardo jurídico venire contra factum proprium nulli conceditur, ou ainda nemo

potest venire contra factum proprium corresponde à proibição de voltar-se contra os próprios

atos. Ele é caracterizado, geralmente, quando da ocorrência de dois comportamentos, do

mesmo sujeito, diferidos (ou sucessivos) no tempo e contraditórios. Esses comportamentos

são – inicialmente – lícitos, mas quando considerados em conjunto tornam-se inadmissíveis

por gerar alguma iniquidade.

Das obras consultadas não se pôde extrair uma enquadramento pacífico para o

VCFP, pois alguns o concebem como sendo oriundo da boa-fé em sentido objetivo, outros da

confiança e outros da proibição de abuso de direito.

Anderson Schreiber7 inclui o VCFP na categoria de abuso de direito por violação da

boa-fé. Sua natureza, então, seria mista, calcada tanto na boa-fé, quanto no abuso de direito.

Para Véra Fradera8, a proibição do VCFP deve ser relacionada, em primeiro lugar,

com a violação da confiança, cujos fundamentos estão no princípio da segurança jurídica.

Quanto ao enquadramento do venire ora como abuso de direito, ora como exercício

inadmissível de posição jurídica - como gostam de referir os autores portugueses,

influenciados pela concepção alemã - cabe referir que essa caracterização deve-se ao fato de

poder se encontrar situações de proibição de VCFP tanto no exercício de direitos potestativos,

como de direitos subjetivos, quanto no exercício de liberdades9 (o que afastaria algumas

situações de venire do instituto do abuso de direito). Além disso, outros autores consideram

7 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da confiança e

venire contra factum próprio – 2 ed. Revista e atualizada – Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.119-120. 8 FRADERA, Véra Maria Jacob de. A vedação de venire contra factum proprium e sua relação com

os princípios da confiança e da coerência. Direito e democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas/

Universidade Luterana do Brasil. – Vol. 1, n. 1 (2000) – Canoas: Ed. Ulbra, 2000, p.130. 9 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.747-748.

6

que o VCFP enquadrar-se-á ao abuso de direito apenas em situações nas quais já se tenha

configurado o vínculo entre as partes e enquadrar-se-á no exercício inadmissível de posição,

ou situação jurídica, somente naquelas violações que não se encontrem no âmbito da

dogmática contratual10

.

A concepção mais abrangente talvez seja a de considerá-lo como uma proibição de

contradição, em virtude ou de abuso de direito ou de exercício inadmissível de posição

jurídica11

que ora pode estar amparado, precipuamente, na boa-fé e ora, precipuamente, na

proteção da confiança, como mais adiante poderá ser esmiuçado.

1.1. Origens

A doutrina afirma que sinais da proibição de comportamento contraditório já podiam

ser vislumbrados em passagens do Direito Romano. Embora não houvesse teorização sobre o

VCFP, considerando que o Direito Romano possuía característica mais pragmática que

teórica, em Ulpiano (Corpus Iuris Civilis) já haveria uma ideia de proibição de conduta

contraditória. O caso de referência seria o do paterfamilias que vem alegar uma nulidade na

solenidade de emancipação da filha, depois de sua morte, com o intuito de anular o testamento

realizado por ela e obter benefícios patrimoniais. Contudo, esse pai, durante o período da

emancipação “inválida” até a morte da filha, não havia se insurgido ou alegado qualquer

nulidade, nem mesmo havia cumprido com quaisquer dos deveres decorrentes do pátrio poder

10 A autora Magda Fernandes concerta-se com os ensinamentos de Oliveira Ascensão, como se nota:

“Pode existir abuso de direito nos casos de execução do contrato (ou dissolução) em que ocorrem situações de

venire contra factum proprium, mas existirá exercício inadmissível de posições jurídicas fora da dogmática

contratual ou na fase de formação do contrato”. FERNANDES, 2008, p. 30-31. 11 Quando fora da dogmática contratual, v.g., o exercício de uma liberdade, como, no Direito Privado,

a de romper com as tratativas de um negócio.

7

que posteriormente se dispôs a reivindicar. Tal conduta aparece, então, julgada como

inadmissível, vez que a ninguém seria permitido tamanha contradição12

.

Posteriormente, a concepção de proibição de contradizer-se foi melhor desenvolvida

pelos glosadores. O próprio brocardo venire contra factum proprium nulli conceditur é

atribuído a AZO, em sua obra os Brocardia (ou Brocardica) e os pós-glosadores, BARTOLO

e BALDO, teriam adicionado, à ideia de não contradição, a proibição de beneficiar-se da

própria torpeza (tu quoque)13

.

1.2. Pressupostos

Diversos autores, como MENEZES CORDEIRO14

, MOTA PINTO15

e, mais

recentemente, MACHADO DERZI16

, quando tratam das hipóteses de aplicação, dos

12 Consoante MENEZES CORDEIRO o exemplo seria um dentre os trazidos por Erwin Riezler em

sua obra pioneira sobre venire denominada Venire contra factum proprium — Studien in Römischen,

Englischen und Deustschen Zivilrecht (1912).MENEZES CORDEIRO, 1984, p.743. Ver também: MOTA

PINTO, Paulo. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no

direito civil. Revista Trimestral de Direito Civil, n° 16, outubro/dezembro, 2003, p. 143, FERNANDES, 2008,

p.9 e SOUZA, Wagner Mota Alves de. A teoria dos atos próprios. Da proibição de venire contra factum

proprium. Salvador: Editora JusPodium, 2008, p. 23 et seq. 13 SOUZA, op. cit., p.35-36. 14 O autor expõe quatro proposições que caracterizariam o venire, como segue: “Na base da doutrina e

com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:

1.a Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da

pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.a Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em

abstracto, provocar uma crença plausível;

3.a Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de

actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.a A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao

confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor

objectivo que a tanto conduziu”(grifo nosso). MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Do abuso

8

pressupostos, ou dos elementos, que caracterizam a ocorrência do venire, fazem referência à

necessidade da adoção de um sistema móvel, ou seja, um sistema que prime pela análise das

peculiaridades de cada situação concreta.

A noção do sistema móvel, contida nos ensinamentos de CANARIS, diz respeito ao

resgate que o autor teria realizado da ideia de sistema móvel de Wilburg17

, cujos elementos,

ou forças, dessa estrutura móvel seriam, no venire:

O comportamento anterior de uma das partes;

A confiança pela outra;

Uma disposição com base na confiança;

O merecimento da proteção pelo confiante;

A imputabilidade da confiança ao agente;

Porque sistema móvel, então? Porque os elementos desse modelo não são absolutos,

devem ser avaliados conforme a ocorrência e a importância de cada elemento, caso a caso.

Não há entre os elementos, ou forças, do sistema uma hierarquia. Fora isso, a estrutura

funciona mesmo na falta de algum ou de alguns dos elementos, desde que a intensidade

assumida pelos elementos restantes “seja tão impressiva que permita, valorativamente,

compensar a falha”18

.

De modo muito semelhante, SCHREIBER19

aponta quatro pressupostos para a

aplicação da proibição de comportamento contraditório: o factum proprium (conduta inicial),

a legítima confiança de outrem (na conservação dessa conduta), o comportamento

contraditório violador da confiança e o dano ou, no mínimo, um potencial dano decorrente da

contradição.

de direito: estado das questões e perspectivas. Revista da Ordem dos Advogados de Lisboa. Artigos

Doutrinais, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005, p. 8. Disponível em: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&ida=45614

15 MOTA PINTO, 2003, p.145. 16 MACHADO DERZI, Misabel de Abreu. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário.

São Paulo: Noeses, 2010, p.345-345. 17 Os autores como MOTA PINTO e FERNANDES referem-se a obra e Claus-Wilhelm Canaris, Die

Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht (1971),reimpr. (1981), na qual o autor teria retomado a ideia de

sistema móvel de Wilburg (WILBURG, Walter. Die Elementen des Schadenrechtes, 1941). MOTA PINTO,

2003, p.145. FERNANDES, 2008, p. 30-31. 18 MENEZES CORDEIRO, 2005, p.8. 19 SCHREIBER, 2007, p. 132.

9

Quanto ao factum proprium cumpre gizar que não se trata de um fato no sentido

técnico-jurídico, mas de uma ação humano, uma conduta juridicamente relevante - o que não

significa que se adentre na seara dos negócios jurídicos20

.

Embora não se identifique a conduta inicial com uma conduta capaz por si só de

gerar vínculo entre as partes21

, ou para a parte atuante, o factum proprium tem relevância

jurídica quando analisado dentro de uma determinada relação ou situação jurídica na qual se

possa verificar sua influência e sua irradiação na esfera de interesses de terceiros22

.

Isso quer dizer que a conduta inicial quando analisada no caso concreto deve ser

aquela capaz de gerar à outra parte uma confiança, razoável, plausível23

. Assim, quanto mais

crível for o factum proprium (dentro do necessário para convencer uma pessoa normal,

20 “O factum proprium é, por definição, uma conduta não-vinculante. Torna-se vinculante apenas

porque e na medida em que, despertando a confiança de outrem, atrai a incidência do princípio de proibição do

comportamento contraditório e impõe ao seu praticante a conservação do seu sentido objetivo. O factum

proprium não consiste em ato jurídico, no sentido tradicional; passa a produzir efeitos jurídicos somente por

força da necessidade de tutelar a confiança legítima depositada por outrem. Em síntese, não é jurídico, torna-se jurídico”. SCHREIBER, op. cit., p.134.

21 Para MENEZES CORDEIRO o venire enquadra-se na tutela da confiança numa zona em que

alguém dá azo a uma situação de confiança sem que dogmaticamente seja possível se recorrer à teoria dos

negócios, vez que se a conduta inicial fosse vinculante, a segunda conduta, contraditória, seria uma violação de

um dever específico que acarretaria a responsabilização obrigacional, ou negocial, e não o venire. MENEZES

CORDEIRO, 1984, p.746. 22 Faz-se oportuno mencionar que relevante, no primeiro agir, é como ele interfere no campo de

percepção alheio, isto é, qual o sentido, qual a representação que é transmitida aos terceiros pela conduta do

agente. SOUZA, 2008, p.141. 23 Nesse sentido o acórdão do caso MC AVOY versus PARLAMENTO, T-45/91, julgado em 18 de

fevereiro de 1993, pelo Tribunal de Primeira Instância da União Europeia (à época, Tribunal de Primeira

Instância das Comunidades Europeias): “Quanto ao terceiro fundamento assente na violação do princípio da confiança legítima.

Argumentação das partes- A recorrente observa que o conceito da confiança legítima consagra o

princípio segundo o qual o funcionário deve poder confiar numa prática contínua da autoridade administrativa,

que deve suscitar um direito a um exercício do poder de apreciação em condições iguais. Acrescenta que o

Tribunal de Justiça admitiu que a autoridade administrativa não pode afastar-se, de modo arbitrário, sem se

justificar, de uma prática anterior, sob pena de infringir o princípio da igualdade de tratamento. A recorrente

observa que, no caso concreto, tendo em conta as responsabilidades profissionais que assumia desde Outubro de

1982, podia ter uma confiança legítima numa decisão da AIPN favorável à sua candidatura.

O Parlamento considera que a questão em litígio não se presta a uma aplicação do princípio da

confiança legítima. Esse conceito, em seu entender, não pode ser invocado num litígio em que apenas se

contesta o exame comparativo dos méritos de dois funcionários susceptíveis de ser promovidos. Apreciação do Tribunal - O Tribunal recorda que o direito de reclamar a protecção da confiança

legítima abrange qualquer particular que se encontre numa situação em que se verifique que a

administração comunitária fez surgir na sua espera esperanças fundadas (acórdão do Tribunal de Justiça de

19 de Maio de 1983, Mavridis/Parlamento, 289/81, Recueil, p. 1731). No caso em apreço, há que referir que

nenhum compromisso nem nenhuma garantia, que pudesse dar à recorrente esperanças fundadas de ser

promovida ao lugar em questão, lhe foi dada pela administração, nem lhe podia ter sido dada, já que a

promoção se faz exclusivamente através da escolha depois de um exame escrupuloso pela AIPN dos

méritos dos candidatos.

Assim, há que rejeitar este fundamento” (grifo nosso). T-45/91, disponível em:

http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61991TJ0045:PT:PDF

10

colocada em posição idêntica à do confiante24

, a realizar determinado investimento, ou

esforço), mais intensamente deve-se proteger a confiança depositada pela outra parte.

Consequentemente, a confiança da outra parte, também deve ser analisada,

cuidadosamente, como todos os elementos do dito sistema, ou estrutura, móvel. MOTA

PINTO chama a atenção para um exame minucioso, caso a caso, dos pressupostos ou

elementos que caracterizam o venire, neles incluída a posição do confiante25

que, porventura,

pode ter sido negligente ou, de alguma outra forma, concorrido para o próprio prejuízo.

Destarte, há de se concordar que não é apenas a situação objetiva de confiança que

terá relevo no exame dos pressupostos. Diz-se isso, pois não é apenas o factum proprium, per

se, capaz de gerar a responsabilização pela quebra da confiança àquele que agiu

contraditoriamente, visto que o ânimo do confiante também releva. Para clarear essa

afirmação, quanto ao estado de espírito de quem confia, faz-se proveitoso transcrever a

seguinte passagem:

[...] o confiante deve ignorar a “instabilidade” do factum proprium sem ter

deixado de cumprir com os seus deveres de indagação que cabem no caso

concreto. Esta ideia está intimamente conectada com o requisito da

justificação da confiança.

Tanto significa que o confiante só é merecedor de tutela jurídica, se o

confiante efectivamente aderiu ao facto gerador da confiança [...] (grifo nosso)

Quanto à disposição por parte daquele que confia, deve se referir que para o Direito

Privado essa disposição, esse investimento, não necessita ter caráter pecuniário, mas deve ser

irreversível, ou seja, o confiante deve ter organizado sua vida, feito opções, planos, realizado

24 FERNANDES, 2008, p.34. 25 “Há, porém, a nosso ver, que alertar não só contra uma excessiva extensão do instituto da proibição

do comportamento contraditório, como contra a aplicação automática ao caso dos pressupostos referidos pela

doutrina e acolhidos pela jurisprudência. A proibição do comportamento contraditório é, na verdade, um

daqueles institutos jurídicos que, se não for contido dentro de limites claros, se arrisca, pela „força expansiva‟ e

pelo apelo da ideia que lhe subjaz, a invadir áreas estranhas e incluir outras figuras, quer substituindo-as [...],

quer funcionando como um „sucedâneo‟ automático [...]. O risco de uma tal „hipertrofia‟ [...] apenas pode ser

contrariado, a nosso ver, por um esforço, não só de verificação, em cada caso, dos pressupostos do venire contra

factum proprium, como das razões para considerar a posição do confiante, no caso concreto, normativamente

digna de protecção (grifo do autor). MOTA PINTO, 2003, p.157-158.

11

investimentos na crença da manutenção de uma situação na qual confiara, a ponto de não mais

poder retroceder sem que lhe ocorram prejuízos26

.

Já o merecimento da confiança pelo confiante será outorgado mediante a boa-fé

daquele que acreditou no factum proprium de outrem. Isso leva a crer que a boa-fé de quem

confia, tanto no seu aspecto subjetivo, quanto em seu aspecto objetivo, estará relacionada ao

merecimento de proteção da confiança27

. Diz-se isso, pois não há outorga e proteção da

confiança para quem agiu de má-fé, realizando investimentos com o intuito de futuro

locupletamento, assim como, não há outorga de proteção da confiança depositada por aquele

que deixou de cumprir com seus deveres laterais de zelo, cautela, lealdade, cuidado, etc..

Quanto à imputabilidade da confiança ao agente, ÁVILA28

e FERNANDES29

explicam, mais precisamente, que se trata da necessidade de constatar a relação de

causalidade entre a ação inicial e a confiança gerada, quer dizer, avaliar se há relação causa-

efeito entre a situação de confiança criada por uma parte e o investimento, ou disposição de

vida, realizado pela outra. Além disso, nessa relação, deve se imputar ao agente a autoria de

ambas condutas, a inicial e a posterior30

, realizadas de forma voluntária (afastando, v.g., as

situações inquinadas de vício da vontade, de caso fortuito ou de força maior).

Vale referir que o venire, considerado como a forma de proteção extranegocial da

confiança, no âmbito do Direito Privado, atuaria de duas maneiras, segundo MOTA PINTO31

:

Com uma proteção negativa – impeditiva ou proibitiva – vedando o comportamento

contraditório injustificado;

26 FERNANDES, 2008, p.36. 27 É proveitoso, aqui, trazer à memória a diferença dos aspectos da boa-fé, quais sejam: a boa-fé

objetiva e a subjetiva. A boa-fé subjetiva – sendo entendida como sentimento de agir conforme a ordem jurídica

- e a boa-fé objetiva – entendida como cânone hermenêutico-integrativo, como norma de limitação ao exercício

de direitos subjetivos (dentre os quais se encontram as figuras típicas de abuso, ou exercício inadmissível de

posição jurídica) e também norma de criação de deveres jurídicos (fonte de obrigações) porque impõe deveres laterais ou acessórios para as partes da relação jurídica, quais sejam: deveres estes de cuidado, informação,

lealdade, clareza, proteção, coerência – podendo-se concluir que se trata de norma que busca um estado de

coisas – o comportamento leal das partes. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.

Sistemática e tópica no processo obrigacional. – 1 ed., 2 tiragem – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2000, p. 427 et seq. COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. Reimpressão – Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2007, p. 33-35. 28 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 328. 29

FERNANDES, 2008, p.36. 30 FERNANDES, 2008, p. 37. 31 MOTA PINTO, 2003, p. 142.

12

Com uma proteção positiva – impositiva – permitindo ao confiante exigir a

correspondência à confiança criada, ou melhor, colocando-o na situação

correspondente ao cumprimento do ato, ou da situação, em que confiou.

Finalizando este ponto, cumpre mencionar que pode haver duas possibilidades de

VCFP. A primeira possibilidade é aquela na qual há a intenção manifestada de não

empreender certo ato e, num momento posterior, o ato é praticado. A segunda

possibilidade é justamente o contrário: manifesta-se a intenção de praticar um ato (sem

vinculação negocial correspondente) e depois, omite-se32

.

E, sobre a consideração do venire como um princípio geral, no âmbito do Direito

Privado, parte maciça da doutrina não admite como sustentável um princípio geral da não

contradição – visto que se chocaria com o princípio da autonomia da vontade tão caro ao

Direito Privado (deve também ser protegido o direito das partes de voltar atrás, sob pena de

inviabilizar ou dificultar o tráfego negocial).

1.3. Relações entre a proibição de VCFP e os princípios da proteção da

confiança e da boa-fé e suas aplicações no Direito Tributário.

Na introdução deste tópico, sobre as aplicações da proibição de comportamento

contraditório no Direito Tributário, particularmente, quanto à mudança na linha de conduta

adotada pela administração tributária, parece ser conveniente abordar, ainda que de forma

concisa, alguns atributos dos atos administrativos que servirão de pano de fundo para o exame

das situações de venire.

Distintamente dos atos de Direito Privado, os atos administrativos sujeitam-se ao

regime jurídico de Direito Público e, em virtude dessa natureza, possuem qualidades

diferenciadas. Dentre essas qualidades estão a presunção de legitimidade, a presunção de

veracidade, a imperatividade, a auto-executoriedade, a tipicidade33

.

32MOTA PINTO, 2003, p. 157. MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 747. 33 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 182.

13

Neste artigo, serão comentados apenas os atributos da presunção de legitimidade e da

presunção de veracidade, vez que são os que mais relevam na apreciação da proteção a ser

conferida à confiança do administrado.

A presunção de legitimidade relaciona-se à conformação do ato administrativo com a

lei. Significa dizer que, até prova em contrário, os atos administrativos presumem-se emitidos

em concordância com a lei34

.

Já a presunção de veracidade dos atos administrativos relaciona-se aos fatos.

Significa dizer que se presumem verdadeiros os fatos alegados pela Administração (possuem

fé pública), quer seja em certidões, ou atestados, ou declarações, ou informações transmitidas

pela Administração Pública35

.

A presunção de legitimidade, ancorada na presunção de validade dos atos da

administração, impede que toda e qualquer atividade administrativa seja questionável pelos

administrados (o que seria obstáculo aos interesses e fins públicos) e, concomitantemente,

impõe aos administrados o cumprimento dos atos emanados pela Administração.

Quanto aos efeitos da presunção de veracidade, oportuno citar o ensinamento de DI

PIETRO:

1. enquanto não decretada a invalidade do ato pela própria

Administração ou pelo Judiciário, ele produzirá efeitos da

mesma forma que o ato válido, devendo ser cumprido;[...]

2. o Judiciário não pode apreciar ex officio a validade do ato;[...]

3. a presunção de veracidade inverte o ônus da prova;[...]36

(grifo nosso)

Soma-se a isso a constatação que as presunções de legitimidade e veracidade

alcançam todos os atos administrativos (consideradas suas peculiaridades), pois tais

prerrogativas são inerentes à atuação do Poder Público37

.

34 DI PIETRO, loc. cit. 35

DI PIETRO, loc. cit. 36 DI PIETRO, 1999, p.183-184. 37 DI PIETRO, op.cit., p. 184.

14

Rememorados os atributos dos atos administrativos, pode se entrar, agora, no estudo

das situações de VCFP gerados pela Administração tributária.

Para tanto, aclarar a atuação dos princípios da boa-fé e da confiança nas relações

entre Administração e administrado, é de suma importância.

A invocabilidade da proteção da confiança, da boa-fé objetiva e da proibição de

comportamento contraditório frente à Administração fiscal, dependerá tanto do tipo de relação

entre os sujeitos, quanto do tipo de conduta (ato) desempenhada pelo fisco.

No campo da proteção da confiança, pode ser, de certa forma, um pouco intuitiva a

noção de que a proteção da confiança no Direito Público venha ter uma abrangência maior

que a proteção da boa-fé objetiva, em razão da natureza das relações jurídicas entabuladas no

âmbito público.

Isto porque, diferentemente das relações privadas – geralmente, estabelecidas entre

sujeitos em situação de paridade (relações horizontais ou de coordenação) as quais

possibilitam aferir mais particularmente a conduta das partes – as relações jurídicas na esfera

pública podem se caracterizar tanto por uma relação entre Estado e súdito (relações verticais

ou de subordinação), quanto podem se caracterizar por relações entre Estado e cidadão38

. E,

apenas nessas relações de horizontalidade, ou de reciprocidade, que seria possível perquirir-se

sobre a boa-fé.

MAURER39

diferenciando a aplicações da confiança e da boa-fé objetiva, diz que,

diversamente da boa-fé, a confiança parte apenas da perspectiva do cidadão. Essa perspectiva

do cidadão frente ao Estado coaduna-se ao enquadramento dado pelo professor Almiro do

Couto e Silva40

e pela autora Sylvia Calmes41

, os quais dizem que a confiança é um

38 “O princípio da boa-fé só pode ser aplicado no Direito Tributário se existir uma relação recíproca

entre o Estado e o cidadão, isto é, se a relação entre o Estado e o contribuinte não puder ser mais caracterizada

como relação entre Estado e súdito, mas como relação jurídica entre Estado e cidadão” (grifo do autor). ÁVILA, 2010, p. 491.

39 MAURER, Harmut. Garantia de continuidade e proteção à confiança. In: Maurer, Hartmut.

Contributos para o direito do estado. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2007. cap. 3, p. 60. 40 COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no

direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos

administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (lei nº

9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado (RPGE), Porto Alegre, v. 27, nº 57 Supl., p. 33-76, 2003, p.

36. 41 CALMES, Sylvia. Du príncipe de protection de la confiance legitime em droit allemand,

communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001. Paris: Dalloz, 2001, p. 167-170.

15

consectário direto do princípio da segurança jurídica, mas somente no seu aspecto

subjetivo, isto é, somente visa proteger a confiança do cidadão, proteger sua crença na

validade das regulações estatais de modo a não frustrar legítimas expectativas, que geraram

disposições de vida e investimentos concretos baseados nessa confiança.

Pode se considerar, assim, a confiança como uma via de mão única. Ela não se

presta a proteção do Estado, nem por ele pode ser invocada42

. É princípio que instrumenta

o cidadão contra comportamentos contraditórios e mudanças bruscas no agir do Poder

Público43

. MAURER ainda acrescenta que a confiança possui um efeito de barreira à atuação

estatal - barreira que não é absoluta e que deve ser ponderada com outros princípios

envolvidos na atuação do Estado44

(fisco).

Já a boa-fé, grosseiramente, pode-se dizer que é uma via de mão dupla45

, tanto ela

pode ser vista da perspectiva do cidadão-contribuinte, como ela pode ser vista da

perspectiva do Estado46

. E pode ser invocada por ambos e, inclusive, será pressuposto da

proteção da confiança nas relações jurídicas concretas como se verá a seguir.

Outra distinção entre boa-fé e confiança irá se relacionar, diretamente, com o tipo de

conduta da administração que veio a criar a confiança do contribuinte. Quer dizer, que atos

de naturezas, ou características, diversas, darão margem a proteções também diversas. Em

alguns casos, poder-se-á recorrer apenas ao princípio da proteção da confiança e, em outros

casos, poder-se-á se recorrer à proteção da confiança incrementada pela boa-fé objetiva.

Sendo assim, é fundamental examinar, nos casos de mudança na linha de conduta da

Administração Tributária, o ato gerador de confiança e, por óbvio, quanto mais intensos e

inequívocos sejam esses atos, mais sólidas serão as expectativas dos envolvidos e a

necessidade de proteção dessas expectativas.

42 MACHADO DERZI, 2010, p.367. 43 “Na realidade, o princípio da proteção da confiança está mais associado à exigência dirigida aos

agentes públicos de não frustrar, mediante decisões contraditórias, uma expectativa legítima daqueles que se relacionam com o Estado”. ARAÚJO, Valter. O princípio da proteção da confiança. Niterói: Impetus, 2009,

p. 36. MACHADO DERZI vai mais além: “No seio do Direito público, não obstante, o princípio de proteção da

confiança configura um direito individual fundamental, extraído da Constituição, que somente defende a

confiança das pessoas privadas, em face das ações ou omissões dos órgãos estatais” (grifo nosso).

MACHADO DERZI, 2010, p. 395. 44 MAURER, 2007, p.61. 45 Dessa opinião: MAFFINI, Rafael Da Cás. Princípio da proteção substancial da confiança no

direito administrativo brasileiro. Porto Alegre : Verbo Jurídico, 2006. 248 p. 54. 46 “A boa-fé, não obstante, é fonte de deveres e de direitos tanto para a Administração tributária como

ainda para o contribuinte”. MACHADO DERZI, 2010, p. 367.

16

Diante de atos normativos da administração - caracterizados como atos gerais e

abstratos, dirigidos a um número indeterminados de situações e sujeitos (lembrando,

novamente que a legitimidade desses atos é presumida) - na medida em que esses atos

criarem razoáveis expectativas nos administrados, que resultem em efeitos concretos e

expressivos na liberdade e na propriedade dos confiantes e que depois venham a ser

suprimidos em virtude de anulação ou revogação - sem qualquer cuidado com essas

expectativas legítimas - o princípio da confiança atuará sozinho na contenção do Poder

Público, prescindindo de qualquer manifestação explícita de boa-fé dos destinatários do ato47

.

Até porque, a boa-fé sequer conseguiria ser aferida, vez que o ato não fora dirigido a sujeito

ou situação específicos48

.

Contudo, perante atos administrativos (atos ou contratos) - caracterizados como

atos individuais, concretos e pessoais (cuja legitimidade também é presumida e o

cumprimento e a manutenção esperados) que, igualmente, tenham criado fundada confiança e

tenham resultado efeitos concretos e expressivos na liberdade e na propriedade dos

contribuintes - que, posteriormente, venham a ser anulados ou revogados de forma abrupta - a

aplicação do princípio da proteção da confiança estará não só incrementada, mas

condicionada à boa-fé do administrado49

, sendo a boa-fé nesses casos pressuposto da

incidência do princípio da proteção da confiança50

.

ÁVILA apresenta os requisitos para a boa-fé do administrado ser objeto de proteção:

(1) relação entre o Poder Público e o contribuinte baseada em ato ou

contrato administrativo cuja validade seja presumida; (2) relação

concreta envolvendo uma repetição de comportamentos, de forma

continuada, uniforme e racional por uma pluralidade de agentes fiscais que

executam o ato ou contrato administrativo como se válido fosse; (3) relação

47 A professora Misabel Abreu Machado Derzi, parafraseando Roland Kreibich, aponta divergências

entre os princípios da proteção da confiança e da boa-fé dizendo que o “primeiro, por ser mais abrangente”

aplica-se “às situações gerais, abstratas e àquelas concretas; já o segundo, o princípio da boa-fé somente

alcança uma situação jurídica individual e concreta, ou seja, alcança não as leis e os regulamentos

normativos, mas apenas os atos administrativos individuais e as decisões judiciais” (grifo nosso). MACHADO DERZI, 2010, p. 379.

48 MAFFINI, 2006, p.55. 49 Um exemplo da exigência de boa-fé por parte do contribuinte encontra-se no Art. 54, da Lei

9.784/99, Lei do processo administrativo da União, que não protege com o prazo decadencial de cinco anos os

destinatários da norma que tenham agido, comprovadamente, de má-fé, in verbis: Art. 54. O direito da

Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai

em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé (grifo nosso). 50

MAFFINI, 2006, p.55, e também CALMES, 2001, p. 243: “[...] la bonne foi en constitue un

élément central qui intervient au coeur du raisonnement tenu dans le cadre du mécanisme de protection de la

confiance”.

17

de confiança envolvendo as partes e terceiros; (4) relação de causalidade

entre a confiança do e os atos praticados pelo Poder Público; (5) situação

de conflito entre o comportamento anterior e o atual por parte do Poder

Público; (6) continuidade da relação por período inversamente proporcional

à importância do ato ou contrato administrativo aplicado51

(grifo nosso).

A necessidade de uma certa continuidade (6) da situação de confiança representa que

quanto mais intensa e inequívoca a atuação da administração, maior a confiança despertada

aos contribuintes e menor transcurso de tempo exigido para a solidez da confiança.

Outrossim, quanto mais tênue e duvidosa a vinculatividade do ato administrativo

(v.g., se o ato possuía natureza provisória), menor será a confiança gerada (ao menos,

inicialmente) e maior a necessidade do transcurso do tempo para consolidar a base de

confiança.

Em resumo, a confiança no âmbito das relações entre administrado-contribuinte e

Administração tributária (vertical ou horizontal), nasce da conduta administrativa, ou melhor,

de ato administrativo (aqui em sentido amplo), cuja legitimidade e veracidade são presumidas,

bem como, o cumprimento e a manutenção são esperados pelo contribuinte (influência

também do princípio da continuidade do serviço público), o qual acaba induzido a atuar.

1.4. Modificação dos atos da Administração Pública Tributária

Nesse ponto, o que releva é tratar do direito da Administração de rever seus próprios

atos quando os atos pretéritos tenham ocasionado efeitos benéficos ao contribuinte, pois

quando os atos pretéritos tenham sido restritivos ao contribuinte (tenham apenas agravado

as obrigações) a anulação ou revogação vem em seu favor52

51 ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa do Contribuinte.

Revista Tributária e de Finanças Públicas nº42, 2002, p.105. 52 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica - Entre permanência, mudança e realização no Direito

Tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p 443.

18

Cumpre, então, delimitar o que seja um efeito vantajoso para o contribuinte, assim

como o que venha a ser um ato ilícito administrativo e como pode ocorrer mudança na

linha de conduta da Administração.

Segundo o professor Humberto Ávila53

, o ato vantajoso é aquele que cria para o

destinatário algum tipo de benefício, incluindo aqueles que condicionam a fruição do

benefício ao preenchimento de alguma obrigação.

Ilícito é o ato editado em contrariedade a regras legais formais ou materiais

vinculantes, que exigem que sejam preenchidos requisitos para atingir a finalidade legal.

Nesse sentido, meros equívocos de forma que não interfiram nessa finalidade não

deveriam ser considerados ilícitos54

.

E, a mudança administrativa poderá ocorrer em virtude da Administração, ou ter

modificado o mérito do seu entendimento sobre determinada questão fiscal, ou em virtude de

ter concluído que sua posição anterior era ilegal55

.

Sobre a possibilidade de considerar atos ilícitos como geradores de efeitos aos

particulares a jurisprudência foi evoluindo com o tempo. À época das súmulas 346 e 473, do

Supremo Tribunal Federal o entendimento que reinava era o do princípio da livre anulação

dos atos administrativos ilegais56

, pois, visto que ilícitos, não se admitia que deles

originassem direitos.57

Mas com o desenvolvimento da proteção da confiança e da boa-fé do

cidadão frente ao Estado, aos poucos, inicia-se a dar guarida às expectativas legítimas

originadas por esses atos enquanto válidos.

Dado esse rápido panorama sobre o direito da administração de rever seus próprios

atos, faz-se importante analisá-los mais especificamente.

No que tange aos atos administrativos gerais e abstratos, especificamente, quanto

aos atos normativos (como já referido, são aqueles que são de natureza geral e abstrata e

53 ÁVILA, op. cit., p. 444. 54 ÁVILA, loc. cit. 55 ÁVILA, op. cit., p. 448. 56 ÁVILA, op. cit., p.446. 57 Súmula 346, STF: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Súmula 473, STF: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem

ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,

respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (grifo nosso).

19

dirigidos a um número indeterminado de sujeitos e situações), as aplicações do VCFP aos

casos de mudança na linha de conduta da Administração, possuem algumas particularidades

que se passa a comentar.

Em que pese esses atos não tenham uma vinculatividade equiparável aos atos

normativos primários58

, não significa que esses atos não possuam vinculação externa

(podem vir a preencher conceitos indeterminados, podem ampliar o entendimento sobre

determinado assunto, etc.). Logo, a mudança administrativa nesse âmbito (anulação pelo

ilícito, ou revogação por conveniência da administração) também deve se ater ao efeito de

barreira, ou impeditivo, do princípio de proteção da confiança legítima. Trata-se, então, da

proibição do comportamento contraditório, VCFP, instruído pelo princípio da confiança e

pela aparência e presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos59

.

Noutro sentido, caso a anulação ou revogação do ato seja fortemente justificada, a

administração não deixa de ter de preservar as expectativas legítimas geradas, por meio

da criação de normas de transição, quando possível, ou pela recomposição dos prejuízos

causados por meio de compensações patrimoniais60

.

No que concerne às situações de VCFP quanto às práticas administrativas,

reputam-se passíveis de gerar confiança legítima, as práticas administrativas que, embora não

revestidas das formalidades do ato administrativo, tenham por um determinado lapso

temporal transmitido o entendimento da autoridade pública sobre determinada

matéria61

. Esses seriam casos típicos de surrectio62

em favor do contribuinte, nas quais a

conduta de uma parte consolidada pela passagem do tempo torna-se hábil para criar na

outra parte a confiança na manutenção daquela prática ou daquela abstenção. Vale

lembrar que o § único, do artigo 100, do CTN já mencionava a necessidade de proteção do

58 ÁVILA, 2011, p. 449. 59 “[...] não se pode desconhecer que esses atos normativos, pouco importa se indiretamente, têm

eficácia externa, inclusive porque o Estado não pode nem se afastar injustificadamente das suas próprias posições, nem deixar de atribuir tratamento uniforme a todos os cidadãos. Tal eficácia aumenta ainda mais

quando os atos normativos são publicados, pois não há sentido algum em dar publicidade ao conteúdo dos atos

da Administração para depois liberá-la de segui-los, Se, por exemplo, o ato normativo se reveste de uma

aparência de legalidade, se ele foi causa de disposição intensa do contribuinte, a sua anulação deve ser

afastada. Isso porque, nesse caso, a falta de um elemento (vinculatividade) é minorada pela existência de

outros (aparência de legalidade, indutividade, onerosidade)” (grifo nosso). ÁVILA, 2011, p. 450. 60 MAURER, 2007, p. 111. 61

ÁVILA, 2011, p. 452. 62 Surgimento do direito a uma das partes pela ação ou omissão da outra, por um período prolongado

de tempo. Mais adiante, no artigo, o instituto será melhor desenvolvido.

20

contribuinte que agiu em observância da prática reiterada da Administração, excluindo a

cobrança de penalidades, juros de mora e correção monetária da base de cálculo do tributo.

Já no que respeita aos atos administrativos individuais e concretos, as ocorrências

de VCFP, relativamente aos atos administrativos, que em razão da sua natureza acabam por

revelar um maior grau de proximidade das partes (vez que dirigidos à situações ou sujeitos

determinados) propiciam que o contribuinte possa, além de invocar a proteção da confiança

contra a mudança na linha de conduta da Administração, também exigir da Administração a

observância de deveres acessórios de conduta, como lealdade, informação, clareza,

coerência, etc., amparado na boa-fé em sentido objetivo63

.

Salienta-se que, igualmente, do contribuinte, será exigida a mesma conduta leal64

. E

mais, se houver comprovada má-fé do contribuinte, não há confiança digna e proteção (nem

mesmo lhe é aplicável o prazo de cinco anos de decadência do art.54, da Lei nº 9.784/99, Lei

do processo administrativo da União).

A professora Misabel Abreu Machado Derzi65

, apresenta três situações nas quais ela

vislumbra a possibilidade de aplicar os princípios da proteção da confiança e da boa-fé

objetiva (acrescenta, ainda, o princípio da irretroatividade) nas contradições da

Administração Tributária:

1. as mudanças de normas regulamentares e outras

complementares, agravadoras dos deveres dos

contribuintes e restritivas do exercício de seus direitos, sem que tenha ocorrido, para isso, alteração prévia da lei

em que se fundam;

2. as mudança de atos administrativos individuais, de

concreção e aplicação das leis, nos lançamentos, autuações

e cobranças de tributos, que onerem de forma mais intensa os contribuintes;

63 “A maior proximidade entre o Poder Público e o cidadão também instaura um compromisso entre

eles e, por consequência, gera um dever de lealdade: o descumprimento de um compromisso é causa de

deslealdade, a seu turno violadora do princípio da moralidade administrativa. Exatamente em decorrência

dessa proximidade é que se fala, no caso dos atos e dos contratos administrativos, em dever de boa-fé

administrativa: a relação de proximidade entre Estado e contribuinte cria deveres recíprocos de lealdade que

restringem ou atenuam as próprias exigências de lealdade e de previsibilidade” (grifo nosso). ÁVILA, 2011,

p.453-454. 64

“É verdade que a boa-fé subjetiva, daquele que confia, está entre os pressupostos da proteção da

confiança, pois o Direito não pode abrigar o desonesto, o desleal”. MACHADO DERZI, 2010, p. 373. 65 MACHADO DERZI, 2010, p. 479-480.

21

3. as respostas às consultas, as informações e declarações da

Administração tributária, capazes de guiar-lhes a

conduta”.(grifo da autora).

O professor HUMBERTO amplia essa noção, relativamente à proteção da confiança,

afirmando que quanto maiores sejam a aparência de legitimidade do ato, a influência

comportamental decorrente dele (indução de conduta), quanto maior a proximidade do Estado

com o cidadão, a onerosidade gerada pela sua aplicação e a durabilidade de sua eficácia no

tempo, tanto maiores serão as razões para a manutenção do ato administrativo, em razão da

intensidade desses elementos compensarem a ilicitude do ato, ou melhor, a ilicitude, ou a

fragilidade, da base de confiança66

.

E, acrescenta, mais adiante, que se porventura o ato, agora objeto de mudança, tenha

se prestado para a realização de finalidades públicas (como a criação de empregos,

desenvolvimento de tecnologia, promoção de uma região, etc.), muito mais relevante terá de

ser a justificativa de sua modificação em virtude prejudicar o próprio interesse público. Caso

contrário, o ato deveria ser mantido67

.

Afirma também, que a modificação dos atos administrativos “não depende da sua

invalidade, mas da intensidade da atuação do contribuinte baseada na sua confiança e na

intensidade da restrição que sua modificação irá causar”68

(grifo nosso).

Para melhor explicar as situações de VCFP no âmbito dos atos administrativos

individuais e concretos, parece ser proveitoso narrar o caso célebre da “Viúva de Berlim”,

que, amparada no princípio de proteção da confiança, permaneceu recebendo uma pensão

concedida ilegalmente, como segue:

[...] a viúva de um inspetor com domicílio dentro da zona de ocupação da

antiga União Soviética na Alemanha recebeu uma pensão da Oberjustizkasse

de Berlim até 8 de maio de 1945. Em 11 de março de 1953, ela obteve uma declaração do Senator do Estado de Berlim de que teria, nos termos do que

prevê o art. 131 da Constituição da República alemã, direito a voltar a

receber sua pensão se mudasse seu domicílio para Berlim Ocidental. Por

66 ÁVILA, 2011, p. 453. 67 “Nesse aspecto, a revisão do ato, quer por anulação, quer por revogação, vai de encontro a

finalidades que o próprio Estado deve atingir e que, com a revisão do ato, ficarão prejudicadas. Nesse sentido,

quanto maior for o grau de realização das finalidades públicas, maior a protetividade da confiança do

contribuinte” (grifo nosso). ÁVILA, 2011, p. 455. 68 ÁVILA, 2011, p. 455.

22

conta desse esclarecimento, a viúva mudou-se para o território da antiga

Alemanha Ocidental e, como consequência, a pensão retornou a ser

concedida, em 23 de novembro de 1953, com efeitos a partir de 1º de setembro do referido ano. No entanto, em 10 de outubro de 1954, cerca de

um ano após o início do recebimento do benefício, a Administração alemã

editou um novo ato determinando que a pensão seria cancelada desde 31 de

outubro do mesmo ano sob o fundamento de que a pensionista não teria preenchido todos os requisitos para a sua concessão. Além disso, a

Administração alemã exigiu da pensionista a restituição de todas as quantias

indevidamente já recebidas.

Em razão do ajuizamento de uma ação pela viúva, o Tribunal Revisor de

Berlim em matéria de Direito Administrativo invalidou o ato que havia cancelado a pensão. Nas razões da decisão, o Tribunal lembrou que não se

pode extrair do princípio da legalidade uma obrigação irrestrita do

Estado de anular atos ilegais. O benefício era efetivamente indevido,

mas a pensão acabou sendo mantida judicialmente, uma vez que ela

havia modificado a vida da pensionista, de forma incisiva, com base na

confiança depositada no Estado. [...]

No caso específico, a viúva confiara na informação recebida da

Administração alemã e, com base nela, tomou medidas drásticas e

duradouras (einschneidende und dauernde) que reorganizaram todo o seu

modo de vida. A confiança por ela no Estado era tão digna de tutela que

o seu benefício ilegal, foi, inclusive, mantido para o futuro (grifo nosso)69

.

Por fim, relativamente às situações de VCFP quanto aos contratos administrativos,

cumpre realizar observações um pouco mais detalhadas.

Inicialmente, faz-se oportuna a leitura do artigo 150, da Constituição Federal,

contido na seção denominada - Das Limitações do Poder de Tributar – que estatui:

Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à

União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em

situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação

profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;[...]

§ 6º. Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo,

concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a

impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei

específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as

matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição,

69 ARAÚJO, 2009, p. 137-138.

23

sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela

Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (grifo nosso).

Diante disso, poderia se imaginar que não há base de confiança legítima quando a

administração tributária vem anular ou revogar contratos ou termos de acordo celebrados com

o contribuinte com a finalidade de conceder um benefício fiscal, sem que tivesse havido lei

anterior que o estabelecesse.

Todavia, observando a relação entre as partes, se a Administração chega ao ponto de

entabular um contrato, ou um acordo, diretamente com o contribuinte e relativo à promessa de

benefícios fiscais, ela acaba por estabelecer um vínculo formal que sequer existiu em

qualquer dos casos de VCFP cometidos pela Administração, analisados até o momento.

Fora isso, no que concerne aos contratos administrativos, a anulação, ou revogação,

em regra, vem em prejuízo do contribuinte e, não raro, a Administração para conceder os

benefícios exige do contribuinte uma contrapartida. Isso vem significar que o benefício

deixa de ser gratuito passa a ser oneroso e, também, de negócio unilateral passa a bilateral,

produzindo efeitos concretos e expressivos na liberdade e da propriedade do administrado70

.

Ainda, o fisco pode estar se valendo do acordo ( ou do contrato) para atingir

finalidades públicas. O que, no caso, a mudança administrativa, vem de encontro, isto é,

choca-se ao próprio interesse público (afora a contradição, há prejuízos sociais).

Neste ponto, faz-se proveitoso colacionar um trecho das conclusões de Humberto

Ávila:

As considerações precedentes não demonstram que benefícios fiscais podem

ser concedidos por outro instrumento que não a lei. Elas apenas visam a demonstrar que pode haver situações em que, não tendo sido o benefício

concedido por meio de lei, expressivos efeitos concretos podem ter sido

produzidos relativamente à liberdade e à propriedade do contribuinte,

que podem justificar, excepcionalmente, a manutenção passada do

benefício e, eventualmente, a instituição de regras de transição após a

postulação da sua descontinuidade. Embora o Estado tenha liberdade de

concretizar políticas públicas, uma vez tendo feito isso, passa a vincular-se

à sua atuação anterior, da qual não pode simplesmente afastar-se (grifo

nosso).

70 ÁVILA, 2011, p. 460.

24

Portanto, o comportamento contraditório da Administração, no âmbito dos contratos

administrativos, deve ser muito atentamente analisado, vez que o VCFP pode, efetivamente,

estar lesando tanto interesses privados quanto públicos71

.

Um detalhe que dificilmente é atentado pela doutrina, ao qual ÁVILA atribui a

devida atenção, é que há de se garantir ao contribuinte, além da proteção substancial da

confiança (que corresponde às situações nas quais deve ou ser mantido o ato inválido, ou

proporcionada uma indenização ao contribuinte ou, ainda, serem apresentadas normas de

transição) a proteção procedimental, adotando-se um procedimento regular, que tenha por

objetivo avaliar o benefício fiscal em todas as suas dimensões, garantindo o devido processo

jurídico, com oportunidade de audição do contribuinte72

.

E, acaso seja permitida a cobrança do tributo que deixou de ser pago em função do

benefício, não poderá o fisco impor penalidades ao contribuinte. Em razão de que não há

comportamento a punido73

.

Destarte, a proibição de voltar-se contra os próprios atos, a presunção de

legitimidade dos atos e, em alguns casos, o artigo 100, § único do CTN, impedem que a

Administração possa impor penalidades, inclusive multas, juros de mora e atualização

monetária da base de cálculo do tributo, haja vista que não se poderá penalizar o administrado

por ter confiado na continuidade, na permanência, na legitimidade dos atos administrativos

em geral. Se não há comportamento a ser punido, não há penalidade a ser imposta.

1.5. Efeitos da proibição de contradição

Faz-se oportuno trazer, antes de entrar nas demais figuras típicas do abuso de direito,

ou de exercício inadmissível de posição jurídica, os efeitos que são atribuídos à ocorrência do

venire.

71 ÁVILA, 2011, p. 460. 72 ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa do Contribuinte.

Revista Tributária e de Finanças Públicas 42: 2002, p.102 et seq. 73 “Se ele confiou [o contribuinte] na legislação vigente e se comportou exatamente de acordo com

ela, obedecendo aos comandos de seu credor, em razão dos atos indutores da confiança, praticados pelo próprio

Poder Executivo, seria ético que fossem punidos retroativamente, ou mesmo, em certas circunstâncias, não se

mantivessem aqueles atos para o passado”? MACHADO DERZI, 2010, p. 478-479.

25

Segundo Paulo Mota Pinto o principal efeito da proibição do VCFP seria a inibição

do exercício de poderes jurídicos ou direitos, em contradição com o comportamento anterior.

Mas o autor acrescenta mais um efeito, dizendo que, em virtude da proibição de

contradição, a conduta posterior torna-se ilegítima abrindo possibilidade para a constituição

do agente em uma obrigação de indemnizar, designadamente por violação de uma obrigação

(pela quebra da confiança ou frustração das legítimas expectativas)74

.

Com o intuito de demonstrar que se assemelham, embora com nuances e termos

particulares, cumpre realizar uma sucinta comparação entre os efeitos do venire no Direito

Privado e no Público75

.

Aquilo que MOTA PINTO76

, no direito privado, entende por efeito principal, ou

seja, a inibição do exercício dos direitos contraditórios, MAURER77

denomina, no Direito

Público, como a proteção da existência do ato no direito administrativo alemão.

O que MOTA PINTO78

entende por efeito secundário, a obrigação de indenizar,

MAURER79

apresenta como sendo a proteção patrimonial no direito administrativo alemão, e

adiciona, para o caso de real necessidade de alteração dos atos administrativos, mais uma

proteção aos administrados, a proteção da confiança mediante a realização de regulações

transitórias, quando possível.

Resume-se no seguinte quadro:

Direito Privado

(MOTA PINTO)

Direito Público

(MAURER)

Efeito principal inibição do exercício de

poderes jurídicos ou direitos

contraditórios

proteção da existência do ato

74 MOTA PINTO, 2003, p.167. 75 Para essa comparação apenas se utilizará das compreensões de MOTA PINTO e MAURER,

simplificando a apresentação, mas isso não significa que a doutrina não possa ser mais rica sobre os efeitos do

venire. 76 MOTA PINTO, 2003, p.167 77

MAURER, 2007. p. 60 et seq. 78 MOTA PINTO, 2003, p.167 79 MAURER, loc. cit.

26

Efeito secundário obrigação de indenizar proteção patrimonial ou, quando

necessário e possível, proteção da

confiança mediante a realização de

regulações transitórias, resguardando as

legítimas expectativas

Percebe-se, destarte, que a proibição de VCFP tem efeitos que discrepam somente

naquilo que é necessário e fundamental à proteção da confiança legítima em cada campo de

atuação.

2. Demais figuras decorrentes do abuso de direito ou do exercício inadmissível de

posições jurídicas

Limitar-se-á, neste ponto, ao estudo das figuras da surrectio, da supressio, do tu

quoque e da inalegabilidade das nulidades formais, visto que tais fórmulas parecem se

coadunar mais diretamente como o tema do venire na mudança administrativa tributária,

embora outras figuras também existam e tenham igualmente grande valor jurídico80

.

2.1. Surrectio

80 Para ver mais sobre: MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 719 et seq.

27

Surrectio, ou surgimento (equiparável à Erwirkung do direito alemão), pode ser

definida como a aquisição de um direito em consequência da prática continuada81

de certos

atos, na qual releva a passagem do tempo. Pode ser uma ação, ou abstenção, por longo

período de tempo que venha a gerar a confiança em terceiros na manutenção daquela conduta

pelo agente.

Consequentemente, a parte que confiou pode se tornar titular de um direito mesmo

que, inicialmente, não regularmente constituído, em virtude da passagem do tempo e da

legítima confiança despertada.

Aclarando o sentido do instituto, Wagner Mota Alves de Souza explica que

Um exemplo nítido de surrectio pode ser haurido da jurisprudência alemã.[...] Durante mais de vinte anos, em uma dada sociedade, foi

realizada, com anuência unânime dos sócios, a repartição dos lucros de

modo diferente do quanto avençado no contrato social, sem que as necessárias alterações do mesmo fossem realizadas. Instado a obrigar a

observância do contrato social, o tribunal entendeu que a distribuição não

oficial deveria ser mantida para o futuro82

.

Prossegue o autor, salientando que o tribunal, mesmo diante de uma afronta expressa

ao contrato social, reconheceu o surgimento do direito em razão da passagem do tempo

(vinte anos) e da prática continuada de distribuição de lucros fora dos percentuais do contrato

empresarial.

O transcurso de tempo necessário para consolidar a base de confiança, aproxima

o caso da “distribuição de lucros83

” mais a uma ocorrência de surrectio do que de a uma

ocorrência de venire.

81 Para Magda Mendonça Fernandes a surrectio corresponde a um instituto que permite a constituição

de direitos pelo decurso do tempo, ou melhor, “a aquisição de um direito derivado de um comportamento

contraditório, resultante do decurso do tempo. Estes casos a doutrina alemã apelida de “Erwirkung” ou de

surrectio”(grifo da autora) . FERNANDES, 2008, p.15. 82 SOUZA, 2008, p.88. 83 Esse mesmo caso é citado também em MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 822, que se transcreve:

“Em BGH 17-Jan.-1966 discutia-se a situação criada por, numa sociedade, durante mais de vinte anos se ter,

com o acordo unânime de todos os sócios, procedido a uma distribuição de lucros não correspondente ao pacto

social. Este só poderia ser alterado com certas formalidades, o que nunca foi feito. O BGH, atentas as

circunstâncias, entendeu que a distribuição não oficial deveria ser mantida para o futuro”.

28

2.2. Supressio

Supressio, ou neutralização (equiparável à Verwirkung do direito alemão), pode

ocorrer quanto o titular do direito deixa passar longo tempo sem o exercer e com base nesse

decurso de tempo e em outras condutas do titular (ou outras circunstâncias) a contraparte

chega à convicção justificada de que aquele direito já não será exercido e passa a orientar sua

vida, tomar medidas, ou adotar planos de ação com base nessa confiança. Em consequência,

o exercício tardio e inesperado do direito em questão lhe acarretará agora uma

desvantagem maior do que o exercício do mesmo direito no tempo devido84

.

A supressio teria se consagrado dogmaticamente após a Primeira Guerra Mundial,

em virtude de perturbações econômicas, como a inflação. Registravam-se alterações

imprevisíveis nos preços e dificuldades no fornecimento de certas mercadorias, o que fez com

que o exercício retardado de alguns direitos sobre esses bens acabassem por gerar situações de

desequilíbrio inadmissível entre as partes85

.

Portanto, a evitar o exercício inadmissível de direito ou posição jurídica, a

Verwirkung, ou supressio, torna-se a “neutralização‟ de um direito que durante muito tempo

se não exerceu, tendo-se criado a legítima expectativa de que, dado o decurso do tempo, tal

direito não viria a ser exercido”86

(grifo nosso).

Tanto na surrectio, quanto na supressio, o elemento temporal, a passagem do

tempo, tem mais relevância do que nas situações qualificadas meramente como VCFP87

.

2.3. Tu quoque

84 MOTA PINTO, 2003, p. 160. 85 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.801. 86 FERNANDES, 2008, p. 15. 87

No dizer de Paulo Mota Pinto, na supressio há “uma relevância autónoma do elemento temporal

que a caracteriza especificamente e que a autonomiza em face da proibição de conduta contraditória [...]”.

MOTA PINTO, 2003, p. 172. Também MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 809.

29

Tu quoque, é também entendido como sinônimo do brocardo turpitudinem suam

allegans non auditur, que significa a proibição de invocabilidade da própria torpeza88

, ou

melhor explicado: a pessoa que viola uma regra jurídica não pode invocar a mesma regra

a seu favor89

.

A figura do tu quoque é conhecida graças à expressão que dizem ter sido proferida

por Júlio César ao perceber que seu protegido, Brutus, estava dentre os seus traidores. Júlio

César teria dito: "- Tu quoque, Brutus, tu quoque, file mili?"; cuja tradução seria: "- Até tu,

Brutus, até tu, meu filho?". Tu quoque, assim, além de denotar uma surpresa, remete, também

a uma idéia de decepção90

.

Na noção de tu quoque também pode estar subentendia uma distorção dos deveres

contratuais por uma das partes – que estaria adotando dois pesos e duas medidas91

– conduta

nitidamente violadora da boa-fé objetiva e da confiança. Portanto, o tu quoque apresenta a

ideia de vínculo jurídico, diferentemente das outras figuras (tu quoque contratual)92

.

Distintamente do venire, o tu quoque é usado para as situações nas quais foi

quebrado o equilíbrio sinalagmático, isto é, numa relação contratual na qual ambas as partes

tem direitos e deveres recíprocos há uma quebra nessa reciprocidade, já pelo primeiro

comportamento violador (também considerado ilícito por alguns autores) de uma das partes

que, posteriormente, vem a exigir da outra a plena a realização contratual, ou, então, a sua

rescisão, em razão do vício que ela mesma deu causa93

.

Conquanto ambos, venire e tu quoque, estejam inseridos no rol de comportamentos

incoerentes que ferem a lealdade e a confiança. O que os difere, entretanto, é o fato de que no

venire nenhuma das condutas, separadamente vistas, apresenta anormalidade, a

ilegitimidade da última conduta se constata somente quando confrontadas uma a outra.

No tu quoque percebe-se a irregularidade já no primeiro ato violador, ou ilícito, praticado,

que ainda é acrescido pela conduta incompatível posterior.

88 Paulo Mota Pinto também equipara o tu quoque ao princípio inglês “he who want equity must come

with clean hands”. MOTA PINTO, 2003, p.144, nota 34. 89 SOUZA, 2008, p. 89. 90 SCHREIBER, 2007, p. 182. 91

SCHREIBER, op.cit., p. 183. 92 SOUZA, 2008, p. 90-91. 93 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.851.

30

Destarte, o tu quoque entendido por alguns como sendo consectário da boa-fé

objetiva94

, define-se pela conduta de alguém que, após violar a norma jurídica, tenta em um

segundo momento, valendo-se de sua própria torpeza, aproveitar a situação por ela ensejada,

logrando um benefício de forma indevida. É verdadeiramente inaceitável que aquele que não

cumpriu com sua obrigação, violando regra legal ou contratual, venha, posteriormente,

refugiar-se na ilicitude anteriormente cometida e obter vantagem sobre o outro.

2.4. Inalegabilidade das nulidades formais95

A alegação de nulidades formais por uma parte, com o intuito de deixar de cumprir

obrigação assumida, será tida por abusiva nos casos em que a parte contrária, obrando de boa-

fé subjetiva - quanto à existência da nulidade - e objetiva - quanto ao dever lateral de

diligência, tenha sua confiança afrontada pela nulidade do vínculo e experimente prejuízos .

No entender de Wagner Mota Alves de Souza96

, a parte contratante que suscita a

inalegabilidade não poderia conhecer a existência do vício no momento da celebração do

negócio jurídico.

A solução para esse caso seria a manutenção do ato anulável por vício, meramente,

de forma, quando possível, ou a indenização nos casos em que a parte obrou de má-fé.

Contudo, considerando que no âmbito do Direito Administrativo, pode se tornar

impossível a manutenção do ato ou negócio jurídico eivado de nulidade formal (quando

insanável), poderá a consequência do reconhecimento do abuso, ou do exercício inadmissível

de direito, ficar limitada à indenização.

Sobre as fórmulas típicas do abuso ou do exercício inadmissível de direitos, há ainda

muito o que ser dito. Poderia se falar do Estoppel, exceptio doli, da teoria dos atos próprios

(desenvolvida na doutrina argentina e espanhola), mas acabaria por estender demais temas

colaterais à compreensão do venire.

94 SCHREIBER, 2007, p. 185.

95 Ou “inadmissibilidade da alegação das nulidades formais”. 96 SOUZA, 2008, p. 83.

31

3. A posição da jurisprudência.

Os casos que serão analisados foram coletados por meio de pesquisa de

jurisprudência no sítio do Superior Tribunal de Justiça97

na internet, com o termo “venire

contra factum proprium”. As observações a seguir serão bastante concisas, apenas no intuito

de tentar confrontar o julgado com o enquadramento dogmático.

O primeiro caso a ser analisado é o do RESP 1144982/PR, que se transcreve:

TRIBUTÁRIO. ITR. INCIDÊNCIA SOBRE IMÓVEL. INVASÃO DO

MOVIMENTO "SEM TERRA". PERDA DO DOMÍNIO E DOS

DIREITOS INERENTES À PROPRIEDADE.

IMPOSSIBILIDADE DA SUBSISTÊNCIA DA EXAÇÃO TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO

PROVIDO.

97 http://www.stj.jus.br/SCON/

32

1. Conforme salientado no acórdão recorrido, o Tribunal a quo, no exame da

matéria fática e probatória constante nos autos, explicitou que a recorrida

não se encontraria na posse dos bens de sua propriedade desde 1987.

2. Verifica-se que houve a efetiva violação ao dever constitucional do Estado

em garantir a propriedade da impetrante, configurando-se uma grave

omissão do seu dever de garantir a observância dos direitos fundamentais da Constituição.

3. Ofende os princípios básicos da razoabilidade e da justiça o fato do

Estado violar o direito de garantia de propriedade e,

concomitantemente, exercer a sua prerrogativa de constituir ônus

tributário sobre imóvel expropriado por particulares (proibição do

venire contra factum proprium).

4. A propriedade plena pressupõe o domínio, que se subdivide nos poderes

de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa. Em que pese ser a propriedade um dos fatos geradores do ITR, essa propriedade não é plena quando o

imóvel encontra-se invadido, pois o proprietário é tolhido das faculdades

inerentes ao domínio sobre o imóvel.

5. Com a invasão do movimento "sem terra", o direito da recorrida ficou

tolhido de praticamente todos seus elementos: não há mais posse, possibilidade de uso ou fruição do bem; consequentemente, não havendo a

exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de

renda ou de benefícios para a proprietária.

6. Ocorre que a função social da propriedade se caracteriza pelo fato do

proprietário condicionar o uso e a exploração do imóvel não só de acordo

com os seus interesses particulares e egoísticos, mas pressupõe o condicionamento do direito de propriedade à satisfação de objetivos para

com a sociedade, tais como a obtenção de um grau de produtividade, o

respeito ao meio ambiente, o pagamento de impostos etc.

7. Sobreleva nesse ponto, desde o advento da Emenda Constitucional n.

42/2003, o pagamento do ITR como questão inerente à função social da propriedade. O proprietário, por possuir o domínio sobre o imóvel, deve

atender aos objetivos da função social da propriedade;

por conseguinte, se não há um efetivo exercício de domínio, não seria razoável exigir desse proprietário o cumprimento da sua função social, o que

se inclui aí a exigência de pagamento dos impostos reais.

8. Na peculiar situação dos autos, ao considerar-se a privação antecipada da

posse e o esvaziamento dos elementos de propriedade sem o devido êxito do

processo de desapropriação, é inexigível o ITR diante do desaparecimento da base material do fato gerador e da violação dos referidos princípios da

propriedade, da função social e da proporcionalidade.

9. Recurso especial não provido.

(REsp 1144982/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,

SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 15/10/2009) (grifo nosso).

33

Em que pese haver uma contradição no comportamento da Administração, no

julgado sobre a incidência de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) em um

imóvel objeto de invasão pelo “Movimento Sem Terra”, parece ser mais adequada a

ocorrência da figura do tu quoque em vez da figura do venire, consoante aos termos da

decisão.

Diz-se isso, pois no trecho “[...]o fato do Estado violar o direito de garantia de

propriedade [...]” denota que o primeiro comportamento da Administração já era violador.

Portanto, afasta-se o ocorrido da figura do venire, considerando que no venire a primeira

conduta, isolada, não é violadora do Direito, diferentemente do tu quoque.

Assim, mais concorde com a doutrina das figuras típicas, seria o enquadramento do

ocorrido em uma hipótese de tu quoque, porquanto não pode o Estado beneficiar-se da própria

torpeza, cobrando impostos sobre direitos de propriedade que se eximiu de proteger.

O segundo caso, que se passa a analisar, diz respeito a um oficial da Policial Militar

que se matriculara no Curso de Formação mediante uma liminar posteriormente cassada.

Em virtude da inércia da Administração o oficial permaneceu na academia, formou-

se e, ainda, foi promovido, situação que criou a convicção no administrado que o problema

relativo ao seu ingresso na carreira militar estava resolvido. É o julgamento de um recurso em

Mandado de Segurança, RMS 20.572/DF, como segue:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO. MATRÍCULA POR FORÇA DE LIMINAR.

MÉRITO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO NA

ACADEMIA, INGRESSO E PROMOÇÃO NA CARREIRA POR ATOS DA ADMINISTRAÇÃO POSTERIORES À CASSAÇÃO DA DECISÃO

JUDICIAL. TRANSCURSO DE MAIS DE CINCO ANOS.

ANULAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA E BOA-FÉ OBJETIVA

VULNERADOS. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO

CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONSTATAÇÃO DE QUE O CANDIDATO

PREENCHIA O REQUISITO CUJA SUPOSTA AUSÊNCIA IMPEDIRA

SUA ADMISSÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. ATENDIMENTO AOS

PRESSUPOSTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PARA INGRESSO E EXERCÍCIO DO CARGO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR.

1. Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium),

impedem que a Administração, após praticar atos em determinado

sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações

34

jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de

direito que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período

de tempo transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos

administrados.

2. À luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verifica-se

que o Recorrente, em sentido material, preenchia os requisitos editalícios para admissão no Curso de Formação, inclusive aquele cuja ausência formal

constituíra obstáculo inicial à sua matrícula e que ensejou o ajuizamento da

ação judicial em cujo bojo obteve a liminar.

3. Hipótese em que, embora a liminar que autorizara a matrícula do

Recorrente no Curso de Formação tivesse sido cassada, expressamente, em 18 de fevereiro de 1997 e não houvesse nenhum outro título judicial que

determinasse sua permanência na carreira militar, não tomou a

Administração nenhuma atitude no sentido de afastá-lo. Pelo contrário, além

de permanecer matriculado até a conclusão do Curso de Formação, findada em 05 de dezembro de 1997, ingressou na carreira e, ainda, foi promovido,

em 05 de outubro de 1998, à patente de 2º Tenente, vindo a ser anulados

esses atos tão-somente em 21 de maio de 2002.

4. A ausência de atos administrativos tendentes a excluir o Recorrente das

fileiras militares após a cassação da liminar, corroborada pela existência de atos em sentido contrário (manutenção no Curso, promoção), além da

instauração de processo administrativo, pela Academia de Polícia Militar, de

ofício, para tornar definitiva a matrícula que fora efetivada, inicialmente, em

razão de liminar, fez criar uma certeza de que a questão do seu ingresso

na carreira militar estava resolvida.

5. Os atos de admissão e promoção do Recorrente praticados pela Administração, bem como o longo tempo em que eles vigoraram,

indicavam, dentro da perspectiva da boa-fé, que o seu ingresso na

carreira militar já havia se incorporado, definitivamente, ao seu

patrimônio jurídico, pelo que sua anulação, com base em fato anterior à

prática dos atos anulados (cassação da liminar), feriram os princípios da

segurança jurídica e da boa-fé objetiva, tendo sido infringida a cláusula

venire contra factum proprium ou da vedação ao comportamento contraditório.

6. Hipótese concreta que não cuida da aplicação da teoria do fato consumado para convalidar ato ilegal, o que é rechaçado por esta Corte, mas de fazê-la

incidir, juntamente com os princípios da segurança jurídica e boa-fé, para

tornar sem efeito atos praticados com ofensa aos princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

7. Recurso ordinário provido para conceder a segurança e anular o ato que

cassou a promoção do Recorrente à patente de 1º Tenente, bem como o ato que determinou sua exclusão dos quadros da Polícia Militar, determinando

seu imediato retorno à função ocupada, com todos os consectários jurídico-

financeiros dele decorrentes.

(RMS 20.572/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,

julgado em 01/12/2009, DJe 15/12/2009) (grifo nosso).

35

Do julgado pode se extrair que, realmente, há possibilidade de enquadrar a conduta

da Administração como contraditória, conquanto, ela seja melhor classificada como um caso

de supressio.

Justifica-se tal classificação pelo “longo período de tempo transcorrido”, fazendo

com que o instituto da supressio do direito da Administração de anular seu próprio ato pareça

ser mais adequado a esse caso concreto.

Somando-se à conduta contraditória, há a “neutralização‟ de um direito que durante

muito tempo se não exerceu, tendo-se criado a legítima expectativa de que, dado o decurso do

tempo, tal direito não viria a ser exercido98

”, exemplo típico de supressio do direito da

Administração Pública.

Ademais, a exclusão do oficial dos quadros da Polícia Militar passados mais de cinco

anos da cassação da liminar que permitira sua matrícula, levando-se em consideração que a

Administração atuou no sentido de corroborar com a manutenção do oficial nos seus quadros

(mediante processo administrativo para regularizar sua matrícula, além de sua promoção à

patente de 2ºTenente), causaria, agora, na vida do administrado, uma desvantagem maior do

que se a Administração tivesse exercido seu direito no tempo devido.

Por fim, será examinada a decisão dos Embargos de Declaração, em uma questão de

exclusão de um contribuinte do PAES -Parcelamento Especial, que é rica em informações

para a análise da proteção da confiança e da proibição de comportamento contraditório. Segue

ementa:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (TRIBUTÁRIO. PROCESSO

ADMINISTRATIVO FISCAL. PAES.

PARCELAMENTO ESPECIAL. DESISTÊNCIA INTEMPESTIVA DA

IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA X PAGAMENTO TEMPESTIVO

DAS PRESTAÇÕES MENSAIS ESTABELECIDAS POR MAIS DE QUATRO ANOS SEM OPOSIÇÃO DO FISCO.

DEFERIMENTO TÁCITO DO PEDIDO DE ADESÃO. EXCLUSÃO DO

CONTRIBUINTE.

IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DO COMPORTAMENTO

CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM).). MANIFESTO INTUITO INFRINGENTE. MULTA POR

98 FERNANDES, 2008, p. 15.

36

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROCRASTINATÓRIOS (ARTIGO

538, DO CPC). APLICAÇÃO.

1. O inconformismo, que tem como real escopo a pretensão de reformar o

decisum, não há como prosperar, porquanto inocorrentes as hipóteses de

omissão, contradição, obscuridade ou erro material, sendo inviável a revisão

em sede de embargos de declaração, em face dos estreitos limites do artigo 535, do CPC.

2. A pretensão de revisão do julgado, em manifesta pretensão infringente, revela-se inadmissível, em sede de embargos, quando o aresto recorrido

assentou que: "1. A exclusão do contribuinte do programa de parcelamento

(PAES), em virtude da extemporaneidade do cumprimento do requisito formal da desistência de impugnação administrativa, afigura-se ilegítima na

hipótese em que tácito o deferimento da adesão (à luz do artigo 11, § 4º, da

Lei 10.522/2002, c/c o artigo 4º, III, da Lei 10.684/2003) e adimplidas as

prestações mensais estabelecidas por mais de quatro anos e sem qualquer oposição do Fisco.

2. A Lei 10.684, de 30 de maio de 2003 (em que convertida a Medida Provisória 107, de 10 de fevereiro de 2003), autorizou o parcelamento

(conhecido por PAES), em até 180 (cento e oitenta) prestações mensais e

sucessivas, dos débitos (constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa, ainda que em fase de execução fiscal) que os contribuintes tivessem

junto à Secretaria da Receita Federal ou à Procuradoria-Geral da Fazenda

Nacional com vencimento até 28.02.2003 (artigo 1º).

3. O aludido diploma legal, no inciso II do artigo 4º, estabeleceu que: "Art.

4o O parcelamento a que se refere o art. 1o: (...) II – somente alcançará

débitos que se encontrarem com exigibilidade suspensa por força dos incisos III a V do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, no caso de o

sujeito passivo desistir expressamente e de forma irrevogável da impugnação

ou do recurso interposto, ou da ação judicial proposta, e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundam os referidos

processos administrativos e ações judiciais, relativamente à matéria cujo

respectivo débito queira parcelar;

(....)" 4. Destarte, o parcelamento tributário previsto na Lei 10.684/03

somente poderia alcançar débitos cuja exigibilidade estivesse suspensa por

força de pendência de recurso administrativo (artigo 151, III, do CTN) ou de deferimento de liminar ou tutela antecipatória (artigo 151, incisos IV e V, do

CTN), desde que o sujeito passivo desistisse expressamente e de forma

irrevogável da impugnação ou recurso administrativos ou da ação judicial proposta, renunciando a quaisquer alegações de direito sobre as quais se

fundassem as demandas intentadas.

5. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e a Secretaria da Receita Federal expediram portarias conjuntas a fim de definir o dies ad quem para

que os contribuintes (interessados em aderir ao parcelamento e enquadrados

no artigo 4º, II, da Lei 10.684/03) desistissem das demandas (judiciais ou administrativas) porventura intentadas, bem como renunciassem ao direito

material respectivo.

6. A Portaria Conjunta PGFN/SRF 1/2003, inicialmente, fixou o dia

29.08.2003 como termo final para desistência e renúncia, prazo que foi

37

prorrogado para 30.09.2003 (Portaria Conjunta PGFN/SRF 2/2003) e, por

fim, passou a ser 28.11.2003 (Portaria Conjunta PGFN/SRF 5/2003).

7. Nada obstante, o § 4º, do artigo 11, da Lei 10.522/2002 (parágrafo

revogado pela Medida Provisória 449, de 3 de dezembro de 2008, em que foi

convertida a Lei 11.941, de 27 de maio de 2009), aplicável à espécie por

força do princípio tempus regit actum e do artigo 4º, III, da Lei 10.684/03, determinava que: "Art. 11. Ao formular o pedido de parcelamento, o devedor

deverá comprovar o recolhimento de valor correspondente à primeira

parcela, conforme o montante do débito e o prazo solicitado.

(...) § 4º Considerar-se-á automaticamente deferido o parcelamento, em caso

de não manifestação da autoridade fazendária no prazo de 90 (noventa) dias, contado da data da protocolização do pedido.

(...)" 8. Consequentemente, o § 4º, da aludida norma, erigiu hipótese de

deferimento tácito do pedido de adesão ao parcelamento formulado pelo contribuinte, uma vez decorrido o prazo de 90 (noventa) dias (contados da

protocolização do pedido) sem manifestação da autoridade fazendária, desde

que efetuado o recolhimento das parcelas estabelecidas.

9. In casu, consoante relatado na origem: "... o impetrante apresentou, em

janeiro de 2001, impugnação em relação ao lançamento fiscal referente ao processo administrativo nº 11020.002544/00-31 (fls. 179 e ss.), tendo

posteriormente efetuado pedido de inclusão de tal débito no PAES, em

agosto de 2003 (fl.

08), com o recolhimento da primeira parcela em 28-08-2003 (fl. 25),

mantendo-se em dia com os pagamentos subseqüentes até a impetração do

presente mandamus, em outubro de 2007 (fls. 25/41 e 236).

Ocorre que, em julho de 2007, a Secretaria da Receita Federal notificou o

requerente de que haveria a compensação de ofício dos valores a serem restituídos a título de Imposto de Renda com o aludido débito (fl. 42),

informando que o contribuinte não teria desistido da impugnação

administrativa antes referida (fl. 03).

Buscando solucionar o impasse, formulou pedido de desistência e requereu a

manutenção do parcelamento, ao que obteve resposta negativa, sob a

justificativa da ausência de manifestação abdicativa no prazo previsto no art. 1º da Portaria Conjunta PGFN/SRF nº 05, de 23-10-2003 (fl. 43).

(...) Não obstante tenha o impetrante, por lapso, desrespeitado tal prazo,

postulou a inclusão do débito impugnado no PAES e efetuou o

pagamento de todas as prestações mensais no momento oportuno, por

mais de quatro anos, de 28-08-2003 (fl. 25) a 31-10-2007 (fl. 236),

formulando, posteriormente, pleito de desistência (fl. 43), todas atitudes

que demonstram a sua boa-fé e a intenção de solver a dívida, depreendendo-se ter se resignado, de forma implícita e desde o início do

parcelamento, em relação à discussão travada no processo administrativo nº 11020.002544/00-31.

Além disso, saliente-se que a Administração Fazendária recebeu o pedido de homologação da opção pelo parcelamento em agosto de 2003 (fl. 08) e sobre

ele não se manifestou no prazo legal, de 90 dias, a teor do art. 4º, inciso III,

da Lei nº 10.684/03, c/c art. 11, § 4º, da Lei nº 10.522/02, o que implica considerar automaticamente deferido o parcelamento. Frise-se, ainda, que

38

recebeu prestações mensais por mais de quatro anos, sem qualquer

insurgência, além de ter deixado de dar o devido seguimento ao processo

administrativo nº 11020.002544/00-31.(...)" 10. A ratio essendi do parcelamento fiscal consiste em: (i) proporcionar aos contribuintes

inadimplentes forma menos onerosa de quitação dos débitos tributários, para

que passem a gozar de regularidade fiscal e dos benefícios daí advindos; e

(ii) viabilizar ao Fisco a arrecadação de créditos tributários de difícil ou incerto resgate, mediante renúncia parcial ao total do débito e a fixação de

prestações mensais contínuas.

11. Destarte, a existência de interesse do próprio Estado no parcelamento

fiscal (conteúdo teleológico da aludida causa suspensiva de exigibilidade

do crédito tributário) acrescida da boa-fé do contribuinte que,

malgrado a intempestividade da desistência da impugnação

administrativa, efetuou, oportunamente, o pagamento de todas as

prestações mensais estabelecidas, por mais de quatro anos (de

28.08.2003 a 31.10.2007), sem qualquer oposição do Fisco, caracteriza

comportamento contraditório perpetrado pela Fazenda Pública, o que

conspira contra o princípio da razoabilidade, máxime em virtude da

ausência de prejuízo aos cofres públicos.

12. Deveras, o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé

objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes, sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de conduta

a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação

obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação,

proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre

ambos.

13. Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido

teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara

(excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma

determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre

em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra

factum proprium.

14. Outrossim, a falta de desistência do recurso administrativo, conquanto

possa impedir o deferimento do programa de parcelamento, acaso

ultrapassada a aludida fase, não serve para motivar a exclusão do parcelamento, por não se enquadrar nas hipóteses previstas nos artigos 7º e

8º da Lei 10.684/2003 (inadimplência por três meses consecutivos ou seis

alternados; e não informação, pela pessoa jurídica beneficiada pela redução do valor da prestação mínima mensal por manter parcelamentos de débitos

tributários e previdenciários, da liquidação, rescisão ou extinção de um dos

parcelamentos) (Precedentes do STJ: REsp 958.585/PR, Rel. Ministro

Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 17.09.2007; e REsp 1.038.724/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em

17.02.2009, DJe 25.03.2009).

15. Consequentemente, revela-se escorreito o acórdão regional que

determinou que a autoridade coatora mantivesse o impetrante no PAES e

considerou suspensa a exigibilidade do crédito tributário objeto do parcelamento." 3. Deveras, os argumentos esposados pelo embargante não

infirmam o entendimento exarado no âmbito de recurso especial

representativo da controvérsia, revelando-se manifestamente protelatórios os

39

embargos de declaração, à luz do disposto no artigo 538, parágrafo único, do

CPC (Precedente da Primeira Seção, aplicável mutatis mutandis: Questão de

Ordem no REsp 1.025.220/RS, que versou sobre a aplicação de multa por agravo infundado, ex vi do disposto no artigo 557, § 2º, do CPC).

4. Embargos de declaração rejeitados, com a condenação da embargante ao

pagamento de 1% (um por cento) a título de multa, pelo seu caráter procrastinatório (artigo 538, parágrafo único, do CPC).

(EDcl no REsp 1143216/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/08/2010, DJe 25/08/2010) (grifo nosso).

Realmente, o contribuinte não havia cumprido com todos os requisitos para se

beneficiar do Parcelamento Especial, pois deveria ter desistido, expressamente e

tempestivamente, da impugnação administrativa que havia realizado no prazo previsto pela

Fazenda Nacional.

Mas, por outro lado, a Administração Fazendária também não realizou dentro do

prazo que lhe cabia - de 90 (noventa) dias - qualquer manifestação contrária ao pedido de

inclusão no Parcelamento Especial pelo contribuinte que - no silêncio da Administração -

seguiu realizando pagamentos mensais, reiteradas vezes, sem óbices, por mais de quatro

anos.

Embora a Administração tivesse pleno direito de negar o parcelamento ao

contribuinte, o fato de ter exercido seu direito de forma retardada e ter recebido mensalmente

os pagamentos realizados pelo contribuinte, fez com que o exercício desse direito deixasse de

prevalecer frente ao direito do contribuinte de continuar incluso no Parcelamento Especial.

Fora isso, a insurgência da Administração vem de encontro com o próprio interesse

público, vez que o fisco recebia mensalmente os valores parcelados do contribuinte e não teve

prejuízos em função da ação do contribuinte.

Adiciona-se a isso, o fato do contribuinte por mais de quatro anos ter confiado no

deferimento do Parcelamento Especial e ter organizado sua vida na crença da sua manutenção

no PAES.

Deduz-se, outrossim, que a decisão acerca do Parcelamento Especial pode também

ser considerada como uma ocorrência de surrectio, ou seja, “como a aquisição de um direito

40

derivado de um comportamento contraditório, resultante do decurso do tempo99

”, que acabou

por gerar a confiança no contribuinte na manutenção daquela conduta pelo agente

administrativo.

Cumpre, ainda, comentar que no parágrafo 12 (doze) da decisão está afirmado que

“[...] o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé

objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes,

sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de

conduta a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação obrigacional,[...]

Oportuno, então, frisar que considerar a confiança como consectário da “cláusula

geral de boa-fé objetiva” não parece ser o mais correto dogmaticamente. Diz-se isso, pois o

princípio da confiança não corresponde a um dever de conduta. Confiar não é um dever. A

confiança digna de proteção pelo direito é baseada em condutas plausíveis que levam o

confiante a crer em um determinado resultado e realizar disposições de vida em função do seu

confiar.

A apreciação dos casos de venire pela jurisprudência pátria não se esgota nesses

breves exemplos. Muito mais já foi construído e cabe ser analisado, o que não se conseguirá

neste artigo, vez que estenderá por demais o objeto de análise.

99 FERNANDES, 2008, p.15.

41

Considerações Finais

Do que foi comentado, pôde se concluir, sem qualquer pretensão de esgotar

discussões sobre o tema, que o princípio da proteção da confiança e o princípio da boa-fé

(tanto no aspecto objetivo, quanto no aspecto subjetivo) possuem aplicações distintas no

Direito Tributário e não se confundem com o instituto da proibição de venire contra factum

proprium. Outrossim, tem-se a impressão que as situações de VCFP têm uma ligação muito

mais íntima com a teoria da confiança, pois sem confiança não há venire, do que com a

boa-fé, embora a ausência de boa-fé possa afastar a dignidade da proteção da confiança e por

consequência afastar os efeitos do venire.

Distintas também são as formas de aplicação da proibição de VCFP consoante ao

tipo de ato administrativo. Se relativa a atos administrativos gerais e abstratos, a proibição de

VCFP é amparada pelo princípio da proteção da confiança, limitadora do poder estatal e, se

42

relativa a atos administrativos individuais e concretos, a proibição de VCFP é amparada pela

proteção da confiança e pelo princípio da boa-fé em seu duplo aspecto.

Conclui-se, ainda, sem esconder algum receio, que contrariamente ao tratamento

dado pelo Direito Privado, o VCFP no Direito Público, Administrativo e Tributário, pode ser

considerado como um princípio geral de não-contradição - no sentido de ser uma norma

que busca um estado de coisas, qual seja: o comportamento coerente da Administração

Pública evitando a quebra das expectativas legítimas. Esse princípio geral estaria justificado

pela confluência de outros princípios como os da presunção de legitimidade e veracidade dos

atos administrativos, da continuidade do serviço público, da proteção da confiança, da

moralidade administrativa, da segurança jurídica, da boa-fé (quando diante de individuais e

concretos da administração tributária), dentre outros.

Especificamente no que tange a mudança na linha de conduta da administração há

que se avaliar todos os aspectos do dito sistema móvel, isto é, todos os critérios ou elementos

que permitirão a proibição do VCFP, além de sopesar todos os interesses envolvidos,

compreendendo que quanto maior for a intensidade desses elementos maior terá de ser a

justificativa para a alteração da conduta administrativa.

Quanto às demais figuras decorrentes do abuso ou do exercício inadmissível de

direito ou posição jurídica, cumpre aduzir que tais elementos foram trazidos ao estudo

somente na tentativa de propiciar uma maior especificidade aos casos de comportamento

contraditório, ou, pode se dizer, na tentativa de reduzir a fluidez das situações comumente

designadas por venire, evitando que se acabe por inflar o instituto do VCFP quando seja

possível se recorrer a outras figuras mais adequadamente.

Nessa mesma linha de raciocínio, cumpre fazer alguns questionamentos sobre a

situação dos benefícios fiscais concedidos por prazo certo e mediante condições, sem lei

específica:

Considerando que não se trata de relação Estado versus súdito e, sim, de Estado

versus cidadão;

Considerando que se trata de violação de vínculo contratual;

Considerando que a atuação do fisco fere a boa-fé objetiva nos seus deveres de

lealdade, cooperação, coerência e parece ferir, também, por consequência, o princípio da

43

moralidade administrativa, em virtude da conduta contraditória (nesses casos de benefícios

fiscais onerosos);

Considerando que tal relação jurídica também poderia estar amparada pelos

princípios da teoria dos contratos, como o pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as

partes);

Sendo assim, a anulação ou a revogação de benefício fiscal, por prazo certo e

mediante condições, não amparado por lei específica, porventura, não poderia ser considerada

uma ocorrência de tu quoque estatal?

Não estaria, nessa situação específica, a Administração alegando uma nulidade de ela

própria deu causa? Ou, por acaso, não estaria agindo ilegalmente, v.g., concedendo benefícios

apenas mediante contrato, para depois alegar justamente essa ilegalidade para se esquivar do

cumprimento do pacto?

Não se tem presunção de consolidar qualquer parecer sobre esses questionamentos,

vez que aparenta ser tema para um estudo futuro mais aprofundado. Mas a questão já está

posta para debate.

A última conclusão que se ousa extrair é a de que não haveria justificativa para

penalizar (incluindo multas, juros e correção da base de cálculo) o contribuinte que, diante de

base sólida de confiança na Administração Tributária, pautou o seu proceder.

44

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