Proibição de venire contra factum proprium nulli conceditur e os princípios da proteção
da confiança e da boa-fé e suas aplicações no direito tributário.
Patrícia Fernandes Fraga1
Resumo
Este trabalho tem como objetivo a análise das distinções fundamentais entre os
princípios da confiança, da boa-fé e, principalmente, do venire contra factum proprium nulli
conceditur e sua possível aplicação no direito tributário. O âmbito do trabalho restringe-se ao
venire contra factum proprium nulli conceditur aplicado ao direito tributário,
especificamente, no que respeita a mudança na linha de conduta da Administração Pública. A
perspectiva de análise é, predominantemente, jurídica e dogmática em virtude do trabalho
pautar-se por teorizar as aplicações do venire contra factum proprium nulli conceditur e
perquirir sobre quais os requisitos e as consequências de se exigir uma vedação geral do
comportamento contraditório pela Administração Pública diante do Sistema Constitucional
Tributário brasileiro, trazendo, algumas contribuições da doutrina estrangeira. Tem ainda
como escopo resolver a tensão entre os princípios da legalidade e da confiança, da legalidade
e da boa-fé, assim como, entre a necessidade de previsibilidade, de cognoscibilidade e de
continuidade dos atos administrativos diante da necessidade de mudança, de adequação, da
Administração Pública.
Palavras-chave: venire contra factum proprium nulli conceditur, boa-fé, confiança
legítima, legalidade, administração pública.
Abstract
This study aims to analyze the fundamental distinctions between the principles of
trust, good faith and especially the venire contra factum proprium nulli conceditur and its
possible application in tax law. The scope of work is limited to venire contra factum proprium
nulli conceditur applied to tax law, specifically as regards the change in the line of conduct of
public administration. The analysis perspective is predominantly legal and dogmatic because
of work be guided by theorizing the applications of venire contra factum proprium nulli
conceditur and to assert what requirements and the consequences of requiring a general seal
contradictory behavior by the Public Administration before the Brazilian Constitutional Tax
System, bringing some contributions of foreign doctrine. It also has the scope to resolve the
tension between the principles of legality and trust, legality and good faith, as well as between
the need for predictability, of knowledgeability and continuity of administrative acts on the
need for change, adaptation, Public Administration.
Keywords: venire contra factum proprium nulli conceditur, good faith, legitimate
expectations, legality, public administration
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de nível superior na
AJES – Faculdade do Vale do Juruena.
2
Introdução
O presente trabalho tentará examinar as distinções fundamentais entre os princípios
da confiança, da boa-fé e do venire contra factum proprium nulli conceditur e sua possível
aplicação no direito tributário, dando enfoque para a aplicação desses princípios perante uma
eventual mudança na linha de conduta da administração pública2,
O tema que será desenvolvido – a mudança administrativa e o venire contra factum
proprium nulli conceditur3 – tratado sob enfoque tributário, acaba por ganhar uma nuance
híbrida pois, necessariamente, misturam-se neste estudo assuntos derivados do direito público
e do direito privado em inevitável e peculiar relação.
O artigo foi dividido, na tentativa de sistematizar e facilitar a compreensão da
matéria, em três pontos principais.
Inicialmente, no ponto um, serão apresentadas as origens do instituto, os
pressupostos de ocorrência do VCFP4 concebidos pela doutrina, as aplicações do instituto no
direito tributário, além dos efeitos da proibição do comportamento contraditório. Nesse
tópico, tentar-se-á, basicamente, elucidar os pontos distintivos entre o VCFP e os princípios
da confiança e da boa-fé.
No ponto seguinte, ponto dois, propõe-se o estudo de mais algumas figuras, ou
fórmulas assemelhadas ao VCFP, em razão de a análise dessas figuras parecer relevante à
matéria em comento. Limitar-se-á a apresentar apenas as noções de supressio, surrectio, tu
quoque e inalegabilidade das nulidades formais (ou inadmissibilidade da alegação de
nulidades formais).
2 Por conseguinte, não se adentrará com profundidade, nem na mudança legislativa, nem na mudança
jurisprudencial, embora tais temas possam ser tangencialmente abordados. 3 Trata-se da proibição do comportamento contraditório identificada no brocardo jurídico venire
contra factum proprium nulli conceditur, ou nemo potest venire contra factum proprium, ou ainda venire contra
factum proprium non valet. 4 O brocardo, venire contra factum proprium nulli conceditur, será, doravante, sinalizado por VCFP
de forma simplificada, ou chamado, apenas, de venire.
3
Algumas dessas figuras, grosso modo, poderiam ser consideradas como
aperfeiçoamentos ou melhoramentos do próprio VCFP. São, também, qualificadas como
figuras parcelares da boa fé, ou figuras típicas do abuso de direito, e podem configurar uma
decorrência de situações de abuso de direito ou de exercício inadmissível de direito ou
posição jurídica – como gostam de referir os autores portugueses5.
No último ponto, de número três, serão, basicamente, expostos e comentados alguns
julgados dos tribunais pátrios, extraídos do sistema de busca do Superior Tribunal de Justiça6
para que se possa ter uma idéia, ainda que bem restrita, de qual o tratamento que vem sendo
dado a esse tema pela instância superior.
Antes de iniciar o primeiro tópico, faz-se oportuno gizar que o pano de fundo, o que
estará em jogo nesta análise é, essencialmente, conseguir - em situações nas quais não será
possível recorrer aos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada,
da prescrição e da decadência - resolver a tensão existente e constante entre os princípios da
legalidade e da confiança, da legalidade e da boa-fé, assim como, o conflito entre os interesses
públicos e os interesses privados, ou ainda, a tensão entre a necessidade de previsibilidade, de
cognoscibilidade e de continuidade dos atos administrativos – aqui atos administrativos em
sentido amplo – versus a necessidade de mudança, de adequação, ou melhor de atualização da
Administração Pública a novas situações ou aos seus novos interesses.
Cumpre acrescentar que nenhum dos princípios que foram citados são princípios de
caráter absoluto, isto quer dizer que a priori não há como decidir qual prevalece. Logo, para
saber da prevalência, será necessário concretizá-los, avaliá-los perante a situação concreta.
Brevemente, outra situação que se faz referência, é que no Sistema Constitucional
Tributário pátrio, nem a confiança, nem a boa-fé, são princípios expressos. Mas, embora isso
seja verdade e não impeça a aplicação desses princípios no âmbito do direito tributário,
existem, sim, algumas disposições normativas que podem fazer alusão a uma necessidade de
proteção da confiança e da boa-fé do contribuinte, evitando surpresas indesejáveis originadas
do agir do Poder Público. E, dentre essas disposições normativas, estão dos artigos 100, 146,
5 Nesse sentido: MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha. Da boa fé no direito civil,
volume II. Livraria Almedina: Coimbra, 1984, p.747-748 e FERNANDES, Magda Mendonça. O Venire contra
factum proprium. Obrigação de contratar e de aceitar o contrato nulo. Edições Almedina. Coimbra, 2008,
p. 30-31. 6 Não se logrou êxito na busca de decisões sobre venire e a mudança na linha de conduta da
administração junto ao STF - Supremo Tribunal Federal.
4
178, todos do Código Tributário Nacional e o artigo 54, da lei 9784/99, que são expostos, de
fora sucinta, como segue:
O artigo 100, especialmente no seu parágrafo único, diz que a observância
das normas complementares à legislação, designadamente os atos normativos
e as práticas reiteradas das autoridades administrativas, exclui a imposição de
penalidades, a cobrança de juros de mora e atualização do valor monetário da
base de cálculo do tributo. Tal dispositivo acaba por proteger a confiança
depositada na regulamentação e na práxis da administração fiscal.
O artigo 146 – que se encontra dentre as disposições sobre o lançamento – diz
que as modificações introduzidas nos critérios jurídicos adotados pela
autoridade administrativa, no exercício do lançamento – somente podem ser
efetivadas quanto a fato gerador ocorrido posteriormente a sua introdução –
em relação ao mesmo sujeito passivo. Também evitando surpresas aos
contribuintes.
O artigo 178 – contido nas disposições sobre isenção – se compreendido a
contrario sensu remete a uma regra, cujo teor informa que a isenção
concedida por prazo certo e em determinadas condições não pode ser
revogada ou modificada ao bel-prazer da Administração, ou seja, não poderá
se alterada unilateralmente, e a qualquer tempo pela autoridade
administrativa.
E, por fim, o artigo 54, da lei 9.784/99 – Lei do processo administrativo da
União – apresenta o prazo decadencial de cinco anos, relativo ao direito da
Administração anular atos que tenham efeitos favoráveis aos seus
destinatários. A indicação desse artigo relaciona-se à importância da
manutenção dos efeitos favoráveis aos contribuintes, que será vista em tópico
posterior, neste artigo.
É nesse panorama que se buscará dar seguimento ao estudo. Nos pontos
subsequentes, inevitavelmente, haverá de se lançar mão de elementos interdisciplinares,
trazendo ensinamentos extraídos do Direito Civil e do Direto Administrativo, mas apenas no
limite do necessário ao exame da situação de mudança na linha de conduta da Administração
Tributária nacional.
5
1. Venire contra factum proprium nulli conceditur
O brocardo jurídico venire contra factum proprium nulli conceditur, ou ainda nemo
potest venire contra factum proprium corresponde à proibição de voltar-se contra os próprios
atos. Ele é caracterizado, geralmente, quando da ocorrência de dois comportamentos, do
mesmo sujeito, diferidos (ou sucessivos) no tempo e contraditórios. Esses comportamentos
são – inicialmente – lícitos, mas quando considerados em conjunto tornam-se inadmissíveis
por gerar alguma iniquidade.
Das obras consultadas não se pôde extrair uma enquadramento pacífico para o
VCFP, pois alguns o concebem como sendo oriundo da boa-fé em sentido objetivo, outros da
confiança e outros da proibição de abuso de direito.
Anderson Schreiber7 inclui o VCFP na categoria de abuso de direito por violação da
boa-fé. Sua natureza, então, seria mista, calcada tanto na boa-fé, quanto no abuso de direito.
Para Véra Fradera8, a proibição do VCFP deve ser relacionada, em primeiro lugar,
com a violação da confiança, cujos fundamentos estão no princípio da segurança jurídica.
Quanto ao enquadramento do venire ora como abuso de direito, ora como exercício
inadmissível de posição jurídica - como gostam de referir os autores portugueses,
influenciados pela concepção alemã - cabe referir que essa caracterização deve-se ao fato de
poder se encontrar situações de proibição de VCFP tanto no exercício de direitos potestativos,
como de direitos subjetivos, quanto no exercício de liberdades9 (o que afastaria algumas
situações de venire do instituto do abuso de direito). Além disso, outros autores consideram
7 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da confiança e
venire contra factum próprio – 2 ed. Revista e atualizada – Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.119-120. 8 FRADERA, Véra Maria Jacob de. A vedação de venire contra factum proprium e sua relação com
os princípios da confiança e da coerência. Direito e democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas/
Universidade Luterana do Brasil. – Vol. 1, n. 1 (2000) – Canoas: Ed. Ulbra, 2000, p.130. 9 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.747-748.
6
que o VCFP enquadrar-se-á ao abuso de direito apenas em situações nas quais já se tenha
configurado o vínculo entre as partes e enquadrar-se-á no exercício inadmissível de posição,
ou situação jurídica, somente naquelas violações que não se encontrem no âmbito da
dogmática contratual10
.
A concepção mais abrangente talvez seja a de considerá-lo como uma proibição de
contradição, em virtude ou de abuso de direito ou de exercício inadmissível de posição
jurídica11
que ora pode estar amparado, precipuamente, na boa-fé e ora, precipuamente, na
proteção da confiança, como mais adiante poderá ser esmiuçado.
1.1. Origens
A doutrina afirma que sinais da proibição de comportamento contraditório já podiam
ser vislumbrados em passagens do Direito Romano. Embora não houvesse teorização sobre o
VCFP, considerando que o Direito Romano possuía característica mais pragmática que
teórica, em Ulpiano (Corpus Iuris Civilis) já haveria uma ideia de proibição de conduta
contraditória. O caso de referência seria o do paterfamilias que vem alegar uma nulidade na
solenidade de emancipação da filha, depois de sua morte, com o intuito de anular o testamento
realizado por ela e obter benefícios patrimoniais. Contudo, esse pai, durante o período da
emancipação “inválida” até a morte da filha, não havia se insurgido ou alegado qualquer
nulidade, nem mesmo havia cumprido com quaisquer dos deveres decorrentes do pátrio poder
10 A autora Magda Fernandes concerta-se com os ensinamentos de Oliveira Ascensão, como se nota:
“Pode existir abuso de direito nos casos de execução do contrato (ou dissolução) em que ocorrem situações de
venire contra factum proprium, mas existirá exercício inadmissível de posições jurídicas fora da dogmática
contratual ou na fase de formação do contrato”. FERNANDES, 2008, p. 30-31. 11 Quando fora da dogmática contratual, v.g., o exercício de uma liberdade, como, no Direito Privado,
a de romper com as tratativas de um negócio.
7
que posteriormente se dispôs a reivindicar. Tal conduta aparece, então, julgada como
inadmissível, vez que a ninguém seria permitido tamanha contradição12
.
Posteriormente, a concepção de proibição de contradizer-se foi melhor desenvolvida
pelos glosadores. O próprio brocardo venire contra factum proprium nulli conceditur é
atribuído a AZO, em sua obra os Brocardia (ou Brocardica) e os pós-glosadores, BARTOLO
e BALDO, teriam adicionado, à ideia de não contradição, a proibição de beneficiar-se da
própria torpeza (tu quoque)13
.
1.2. Pressupostos
Diversos autores, como MENEZES CORDEIRO14
, MOTA PINTO15
e, mais
recentemente, MACHADO DERZI16
, quando tratam das hipóteses de aplicação, dos
12 Consoante MENEZES CORDEIRO o exemplo seria um dentre os trazidos por Erwin Riezler em
sua obra pioneira sobre venire denominada Venire contra factum proprium — Studien in Römischen,
Englischen und Deustschen Zivilrecht (1912).MENEZES CORDEIRO, 1984, p.743. Ver também: MOTA
PINTO, Paulo. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no
direito civil. Revista Trimestral de Direito Civil, n° 16, outubro/dezembro, 2003, p. 143, FERNANDES, 2008,
p.9 e SOUZA, Wagner Mota Alves de. A teoria dos atos próprios. Da proibição de venire contra factum
proprium. Salvador: Editora JusPodium, 2008, p. 23 et seq. 13 SOUZA, op. cit., p.35-36. 14 O autor expõe quatro proposições que caracterizariam o venire, como segue: “Na base da doutrina e
com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:
1.a Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da
pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.a Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em
abstracto, provocar uma crença plausível;
3.a Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de
actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.a A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao
confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor
objectivo que a tanto conduziu”(grifo nosso). MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Do abuso
8
pressupostos, ou dos elementos, que caracterizam a ocorrência do venire, fazem referência à
necessidade da adoção de um sistema móvel, ou seja, um sistema que prime pela análise das
peculiaridades de cada situação concreta.
A noção do sistema móvel, contida nos ensinamentos de CANARIS, diz respeito ao
resgate que o autor teria realizado da ideia de sistema móvel de Wilburg17
, cujos elementos,
ou forças, dessa estrutura móvel seriam, no venire:
O comportamento anterior de uma das partes;
A confiança pela outra;
Uma disposição com base na confiança;
O merecimento da proteção pelo confiante;
A imputabilidade da confiança ao agente;
Porque sistema móvel, então? Porque os elementos desse modelo não são absolutos,
devem ser avaliados conforme a ocorrência e a importância de cada elemento, caso a caso.
Não há entre os elementos, ou forças, do sistema uma hierarquia. Fora isso, a estrutura
funciona mesmo na falta de algum ou de alguns dos elementos, desde que a intensidade
assumida pelos elementos restantes “seja tão impressiva que permita, valorativamente,
compensar a falha”18
.
De modo muito semelhante, SCHREIBER19
aponta quatro pressupostos para a
aplicação da proibição de comportamento contraditório: o factum proprium (conduta inicial),
a legítima confiança de outrem (na conservação dessa conduta), o comportamento
contraditório violador da confiança e o dano ou, no mínimo, um potencial dano decorrente da
contradição.
de direito: estado das questões e perspectivas. Revista da Ordem dos Advogados de Lisboa. Artigos
Doutrinais, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005, p. 8. Disponível em: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&ida=45614
15 MOTA PINTO, 2003, p.145. 16 MACHADO DERZI, Misabel de Abreu. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário.
São Paulo: Noeses, 2010, p.345-345. 17 Os autores como MOTA PINTO e FERNANDES referem-se a obra e Claus-Wilhelm Canaris, Die
Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht (1971),reimpr. (1981), na qual o autor teria retomado a ideia de
sistema móvel de Wilburg (WILBURG, Walter. Die Elementen des Schadenrechtes, 1941). MOTA PINTO,
2003, p.145. FERNANDES, 2008, p. 30-31. 18 MENEZES CORDEIRO, 2005, p.8. 19 SCHREIBER, 2007, p. 132.
9
Quanto ao factum proprium cumpre gizar que não se trata de um fato no sentido
técnico-jurídico, mas de uma ação humano, uma conduta juridicamente relevante - o que não
significa que se adentre na seara dos negócios jurídicos20
.
Embora não se identifique a conduta inicial com uma conduta capaz por si só de
gerar vínculo entre as partes21
, ou para a parte atuante, o factum proprium tem relevância
jurídica quando analisado dentro de uma determinada relação ou situação jurídica na qual se
possa verificar sua influência e sua irradiação na esfera de interesses de terceiros22
.
Isso quer dizer que a conduta inicial quando analisada no caso concreto deve ser
aquela capaz de gerar à outra parte uma confiança, razoável, plausível23
. Assim, quanto mais
crível for o factum proprium (dentro do necessário para convencer uma pessoa normal,
20 “O factum proprium é, por definição, uma conduta não-vinculante. Torna-se vinculante apenas
porque e na medida em que, despertando a confiança de outrem, atrai a incidência do princípio de proibição do
comportamento contraditório e impõe ao seu praticante a conservação do seu sentido objetivo. O factum
proprium não consiste em ato jurídico, no sentido tradicional; passa a produzir efeitos jurídicos somente por
força da necessidade de tutelar a confiança legítima depositada por outrem. Em síntese, não é jurídico, torna-se jurídico”. SCHREIBER, op. cit., p.134.
21 Para MENEZES CORDEIRO o venire enquadra-se na tutela da confiança numa zona em que
alguém dá azo a uma situação de confiança sem que dogmaticamente seja possível se recorrer à teoria dos
negócios, vez que se a conduta inicial fosse vinculante, a segunda conduta, contraditória, seria uma violação de
um dever específico que acarretaria a responsabilização obrigacional, ou negocial, e não o venire. MENEZES
CORDEIRO, 1984, p.746. 22 Faz-se oportuno mencionar que relevante, no primeiro agir, é como ele interfere no campo de
percepção alheio, isto é, qual o sentido, qual a representação que é transmitida aos terceiros pela conduta do
agente. SOUZA, 2008, p.141. 23 Nesse sentido o acórdão do caso MC AVOY versus PARLAMENTO, T-45/91, julgado em 18 de
fevereiro de 1993, pelo Tribunal de Primeira Instância da União Europeia (à época, Tribunal de Primeira
Instância das Comunidades Europeias): “Quanto ao terceiro fundamento assente na violação do princípio da confiança legítima.
Argumentação das partes- A recorrente observa que o conceito da confiança legítima consagra o
princípio segundo o qual o funcionário deve poder confiar numa prática contínua da autoridade administrativa,
que deve suscitar um direito a um exercício do poder de apreciação em condições iguais. Acrescenta que o
Tribunal de Justiça admitiu que a autoridade administrativa não pode afastar-se, de modo arbitrário, sem se
justificar, de uma prática anterior, sob pena de infringir o princípio da igualdade de tratamento. A recorrente
observa que, no caso concreto, tendo em conta as responsabilidades profissionais que assumia desde Outubro de
1982, podia ter uma confiança legítima numa decisão da AIPN favorável à sua candidatura.
O Parlamento considera que a questão em litígio não se presta a uma aplicação do princípio da
confiança legítima. Esse conceito, em seu entender, não pode ser invocado num litígio em que apenas se
contesta o exame comparativo dos méritos de dois funcionários susceptíveis de ser promovidos. Apreciação do Tribunal - O Tribunal recorda que o direito de reclamar a protecção da confiança
legítima abrange qualquer particular que se encontre numa situação em que se verifique que a
administração comunitária fez surgir na sua espera esperanças fundadas (acórdão do Tribunal de Justiça de
19 de Maio de 1983, Mavridis/Parlamento, 289/81, Recueil, p. 1731). No caso em apreço, há que referir que
nenhum compromisso nem nenhuma garantia, que pudesse dar à recorrente esperanças fundadas de ser
promovida ao lugar em questão, lhe foi dada pela administração, nem lhe podia ter sido dada, já que a
promoção se faz exclusivamente através da escolha depois de um exame escrupuloso pela AIPN dos
méritos dos candidatos.
Assim, há que rejeitar este fundamento” (grifo nosso). T-45/91, disponível em:
http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61991TJ0045:PT:PDF
10
colocada em posição idêntica à do confiante24
, a realizar determinado investimento, ou
esforço), mais intensamente deve-se proteger a confiança depositada pela outra parte.
Consequentemente, a confiança da outra parte, também deve ser analisada,
cuidadosamente, como todos os elementos do dito sistema, ou estrutura, móvel. MOTA
PINTO chama a atenção para um exame minucioso, caso a caso, dos pressupostos ou
elementos que caracterizam o venire, neles incluída a posição do confiante25
que, porventura,
pode ter sido negligente ou, de alguma outra forma, concorrido para o próprio prejuízo.
Destarte, há de se concordar que não é apenas a situação objetiva de confiança que
terá relevo no exame dos pressupostos. Diz-se isso, pois não é apenas o factum proprium, per
se, capaz de gerar a responsabilização pela quebra da confiança àquele que agiu
contraditoriamente, visto que o ânimo do confiante também releva. Para clarear essa
afirmação, quanto ao estado de espírito de quem confia, faz-se proveitoso transcrever a
seguinte passagem:
[...] o confiante deve ignorar a “instabilidade” do factum proprium sem ter
deixado de cumprir com os seus deveres de indagação que cabem no caso
concreto. Esta ideia está intimamente conectada com o requisito da
justificação da confiança.
Tanto significa que o confiante só é merecedor de tutela jurídica, se o
confiante efectivamente aderiu ao facto gerador da confiança [...] (grifo nosso)
Quanto à disposição por parte daquele que confia, deve se referir que para o Direito
Privado essa disposição, esse investimento, não necessita ter caráter pecuniário, mas deve ser
irreversível, ou seja, o confiante deve ter organizado sua vida, feito opções, planos, realizado
24 FERNANDES, 2008, p.34. 25 “Há, porém, a nosso ver, que alertar não só contra uma excessiva extensão do instituto da proibição
do comportamento contraditório, como contra a aplicação automática ao caso dos pressupostos referidos pela
doutrina e acolhidos pela jurisprudência. A proibição do comportamento contraditório é, na verdade, um
daqueles institutos jurídicos que, se não for contido dentro de limites claros, se arrisca, pela „força expansiva‟ e
pelo apelo da ideia que lhe subjaz, a invadir áreas estranhas e incluir outras figuras, quer substituindo-as [...],
quer funcionando como um „sucedâneo‟ automático [...]. O risco de uma tal „hipertrofia‟ [...] apenas pode ser
contrariado, a nosso ver, por um esforço, não só de verificação, em cada caso, dos pressupostos do venire contra
factum proprium, como das razões para considerar a posição do confiante, no caso concreto, normativamente
digna de protecção (grifo do autor). MOTA PINTO, 2003, p.157-158.
11
investimentos na crença da manutenção de uma situação na qual confiara, a ponto de não mais
poder retroceder sem que lhe ocorram prejuízos26
.
Já o merecimento da confiança pelo confiante será outorgado mediante a boa-fé
daquele que acreditou no factum proprium de outrem. Isso leva a crer que a boa-fé de quem
confia, tanto no seu aspecto subjetivo, quanto em seu aspecto objetivo, estará relacionada ao
merecimento de proteção da confiança27
. Diz-se isso, pois não há outorga e proteção da
confiança para quem agiu de má-fé, realizando investimentos com o intuito de futuro
locupletamento, assim como, não há outorga de proteção da confiança depositada por aquele
que deixou de cumprir com seus deveres laterais de zelo, cautela, lealdade, cuidado, etc..
Quanto à imputabilidade da confiança ao agente, ÁVILA28
e FERNANDES29
explicam, mais precisamente, que se trata da necessidade de constatar a relação de
causalidade entre a ação inicial e a confiança gerada, quer dizer, avaliar se há relação causa-
efeito entre a situação de confiança criada por uma parte e o investimento, ou disposição de
vida, realizado pela outra. Além disso, nessa relação, deve se imputar ao agente a autoria de
ambas condutas, a inicial e a posterior30
, realizadas de forma voluntária (afastando, v.g., as
situações inquinadas de vício da vontade, de caso fortuito ou de força maior).
Vale referir que o venire, considerado como a forma de proteção extranegocial da
confiança, no âmbito do Direito Privado, atuaria de duas maneiras, segundo MOTA PINTO31
:
Com uma proteção negativa – impeditiva ou proibitiva – vedando o comportamento
contraditório injustificado;
26 FERNANDES, 2008, p.36. 27 É proveitoso, aqui, trazer à memória a diferença dos aspectos da boa-fé, quais sejam: a boa-fé
objetiva e a subjetiva. A boa-fé subjetiva – sendo entendida como sentimento de agir conforme a ordem jurídica
- e a boa-fé objetiva – entendida como cânone hermenêutico-integrativo, como norma de limitação ao exercício
de direitos subjetivos (dentre os quais se encontram as figuras típicas de abuso, ou exercício inadmissível de
posição jurídica) e também norma de criação de deveres jurídicos (fonte de obrigações) porque impõe deveres laterais ou acessórios para as partes da relação jurídica, quais sejam: deveres estes de cuidado, informação,
lealdade, clareza, proteção, coerência – podendo-se concluir que se trata de norma que busca um estado de
coisas – o comportamento leal das partes. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.
Sistemática e tópica no processo obrigacional. – 1 ed., 2 tiragem – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 427 et seq. COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. Reimpressão – Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2007, p. 33-35. 28 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 328. 29
FERNANDES, 2008, p.36. 30 FERNANDES, 2008, p. 37. 31 MOTA PINTO, 2003, p. 142.
12
Com uma proteção positiva – impositiva – permitindo ao confiante exigir a
correspondência à confiança criada, ou melhor, colocando-o na situação
correspondente ao cumprimento do ato, ou da situação, em que confiou.
Finalizando este ponto, cumpre mencionar que pode haver duas possibilidades de
VCFP. A primeira possibilidade é aquela na qual há a intenção manifestada de não
empreender certo ato e, num momento posterior, o ato é praticado. A segunda
possibilidade é justamente o contrário: manifesta-se a intenção de praticar um ato (sem
vinculação negocial correspondente) e depois, omite-se32
.
E, sobre a consideração do venire como um princípio geral, no âmbito do Direito
Privado, parte maciça da doutrina não admite como sustentável um princípio geral da não
contradição – visto que se chocaria com o princípio da autonomia da vontade tão caro ao
Direito Privado (deve também ser protegido o direito das partes de voltar atrás, sob pena de
inviabilizar ou dificultar o tráfego negocial).
1.3. Relações entre a proibição de VCFP e os princípios da proteção da
confiança e da boa-fé e suas aplicações no Direito Tributário.
Na introdução deste tópico, sobre as aplicações da proibição de comportamento
contraditório no Direito Tributário, particularmente, quanto à mudança na linha de conduta
adotada pela administração tributária, parece ser conveniente abordar, ainda que de forma
concisa, alguns atributos dos atos administrativos que servirão de pano de fundo para o exame
das situações de venire.
Distintamente dos atos de Direito Privado, os atos administrativos sujeitam-se ao
regime jurídico de Direito Público e, em virtude dessa natureza, possuem qualidades
diferenciadas. Dentre essas qualidades estão a presunção de legitimidade, a presunção de
veracidade, a imperatividade, a auto-executoriedade, a tipicidade33
.
32MOTA PINTO, 2003, p. 157. MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 747. 33 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 182.
13
Neste artigo, serão comentados apenas os atributos da presunção de legitimidade e da
presunção de veracidade, vez que são os que mais relevam na apreciação da proteção a ser
conferida à confiança do administrado.
A presunção de legitimidade relaciona-se à conformação do ato administrativo com a
lei. Significa dizer que, até prova em contrário, os atos administrativos presumem-se emitidos
em concordância com a lei34
.
Já a presunção de veracidade dos atos administrativos relaciona-se aos fatos.
Significa dizer que se presumem verdadeiros os fatos alegados pela Administração (possuem
fé pública), quer seja em certidões, ou atestados, ou declarações, ou informações transmitidas
pela Administração Pública35
.
A presunção de legitimidade, ancorada na presunção de validade dos atos da
administração, impede que toda e qualquer atividade administrativa seja questionável pelos
administrados (o que seria obstáculo aos interesses e fins públicos) e, concomitantemente,
impõe aos administrados o cumprimento dos atos emanados pela Administração.
Quanto aos efeitos da presunção de veracidade, oportuno citar o ensinamento de DI
PIETRO:
1. enquanto não decretada a invalidade do ato pela própria
Administração ou pelo Judiciário, ele produzirá efeitos da
mesma forma que o ato válido, devendo ser cumprido;[...]
2. o Judiciário não pode apreciar ex officio a validade do ato;[...]
3. a presunção de veracidade inverte o ônus da prova;[...]36
(grifo nosso)
Soma-se a isso a constatação que as presunções de legitimidade e veracidade
alcançam todos os atos administrativos (consideradas suas peculiaridades), pois tais
prerrogativas são inerentes à atuação do Poder Público37
.
34 DI PIETRO, loc. cit. 35
DI PIETRO, loc. cit. 36 DI PIETRO, 1999, p.183-184. 37 DI PIETRO, op.cit., p. 184.
14
Rememorados os atributos dos atos administrativos, pode se entrar, agora, no estudo
das situações de VCFP gerados pela Administração tributária.
Para tanto, aclarar a atuação dos princípios da boa-fé e da confiança nas relações
entre Administração e administrado, é de suma importância.
A invocabilidade da proteção da confiança, da boa-fé objetiva e da proibição de
comportamento contraditório frente à Administração fiscal, dependerá tanto do tipo de relação
entre os sujeitos, quanto do tipo de conduta (ato) desempenhada pelo fisco.
No campo da proteção da confiança, pode ser, de certa forma, um pouco intuitiva a
noção de que a proteção da confiança no Direito Público venha ter uma abrangência maior
que a proteção da boa-fé objetiva, em razão da natureza das relações jurídicas entabuladas no
âmbito público.
Isto porque, diferentemente das relações privadas – geralmente, estabelecidas entre
sujeitos em situação de paridade (relações horizontais ou de coordenação) as quais
possibilitam aferir mais particularmente a conduta das partes – as relações jurídicas na esfera
pública podem se caracterizar tanto por uma relação entre Estado e súdito (relações verticais
ou de subordinação), quanto podem se caracterizar por relações entre Estado e cidadão38
. E,
apenas nessas relações de horizontalidade, ou de reciprocidade, que seria possível perquirir-se
sobre a boa-fé.
MAURER39
diferenciando a aplicações da confiança e da boa-fé objetiva, diz que,
diversamente da boa-fé, a confiança parte apenas da perspectiva do cidadão. Essa perspectiva
do cidadão frente ao Estado coaduna-se ao enquadramento dado pelo professor Almiro do
Couto e Silva40
e pela autora Sylvia Calmes41
, os quais dizem que a confiança é um
38 “O princípio da boa-fé só pode ser aplicado no Direito Tributário se existir uma relação recíproca
entre o Estado e o cidadão, isto é, se a relação entre o Estado e o contribuinte não puder ser mais caracterizada
como relação entre Estado e súdito, mas como relação jurídica entre Estado e cidadão” (grifo do autor). ÁVILA, 2010, p. 491.
39 MAURER, Harmut. Garantia de continuidade e proteção à confiança. In: Maurer, Hartmut.
Contributos para o direito do estado. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2007. cap. 3, p. 60. 40 COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no
direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos
administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (lei nº
9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado (RPGE), Porto Alegre, v. 27, nº 57 Supl., p. 33-76, 2003, p.
36. 41 CALMES, Sylvia. Du príncipe de protection de la confiance legitime em droit allemand,
communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001. Paris: Dalloz, 2001, p. 167-170.
15
consectário direto do princípio da segurança jurídica, mas somente no seu aspecto
subjetivo, isto é, somente visa proteger a confiança do cidadão, proteger sua crença na
validade das regulações estatais de modo a não frustrar legítimas expectativas, que geraram
disposições de vida e investimentos concretos baseados nessa confiança.
Pode se considerar, assim, a confiança como uma via de mão única. Ela não se
presta a proteção do Estado, nem por ele pode ser invocada42
. É princípio que instrumenta
o cidadão contra comportamentos contraditórios e mudanças bruscas no agir do Poder
Público43
. MAURER ainda acrescenta que a confiança possui um efeito de barreira à atuação
estatal - barreira que não é absoluta e que deve ser ponderada com outros princípios
envolvidos na atuação do Estado44
(fisco).
Já a boa-fé, grosseiramente, pode-se dizer que é uma via de mão dupla45
, tanto ela
pode ser vista da perspectiva do cidadão-contribuinte, como ela pode ser vista da
perspectiva do Estado46
. E pode ser invocada por ambos e, inclusive, será pressuposto da
proteção da confiança nas relações jurídicas concretas como se verá a seguir.
Outra distinção entre boa-fé e confiança irá se relacionar, diretamente, com o tipo de
conduta da administração que veio a criar a confiança do contribuinte. Quer dizer, que atos
de naturezas, ou características, diversas, darão margem a proteções também diversas. Em
alguns casos, poder-se-á recorrer apenas ao princípio da proteção da confiança e, em outros
casos, poder-se-á se recorrer à proteção da confiança incrementada pela boa-fé objetiva.
Sendo assim, é fundamental examinar, nos casos de mudança na linha de conduta da
Administração Tributária, o ato gerador de confiança e, por óbvio, quanto mais intensos e
inequívocos sejam esses atos, mais sólidas serão as expectativas dos envolvidos e a
necessidade de proteção dessas expectativas.
42 MACHADO DERZI, 2010, p.367. 43 “Na realidade, o princípio da proteção da confiança está mais associado à exigência dirigida aos
agentes públicos de não frustrar, mediante decisões contraditórias, uma expectativa legítima daqueles que se relacionam com o Estado”. ARAÚJO, Valter. O princípio da proteção da confiança. Niterói: Impetus, 2009,
p. 36. MACHADO DERZI vai mais além: “No seio do Direito público, não obstante, o princípio de proteção da
confiança configura um direito individual fundamental, extraído da Constituição, que somente defende a
confiança das pessoas privadas, em face das ações ou omissões dos órgãos estatais” (grifo nosso).
MACHADO DERZI, 2010, p. 395. 44 MAURER, 2007, p.61. 45 Dessa opinião: MAFFINI, Rafael Da Cás. Princípio da proteção substancial da confiança no
direito administrativo brasileiro. Porto Alegre : Verbo Jurídico, 2006. 248 p. 54. 46 “A boa-fé, não obstante, é fonte de deveres e de direitos tanto para a Administração tributária como
ainda para o contribuinte”. MACHADO DERZI, 2010, p. 367.
16
Diante de atos normativos da administração - caracterizados como atos gerais e
abstratos, dirigidos a um número indeterminados de situações e sujeitos (lembrando,
novamente que a legitimidade desses atos é presumida) - na medida em que esses atos
criarem razoáveis expectativas nos administrados, que resultem em efeitos concretos e
expressivos na liberdade e na propriedade dos confiantes e que depois venham a ser
suprimidos em virtude de anulação ou revogação - sem qualquer cuidado com essas
expectativas legítimas - o princípio da confiança atuará sozinho na contenção do Poder
Público, prescindindo de qualquer manifestação explícita de boa-fé dos destinatários do ato47
.
Até porque, a boa-fé sequer conseguiria ser aferida, vez que o ato não fora dirigido a sujeito
ou situação específicos48
.
Contudo, perante atos administrativos (atos ou contratos) - caracterizados como
atos individuais, concretos e pessoais (cuja legitimidade também é presumida e o
cumprimento e a manutenção esperados) que, igualmente, tenham criado fundada confiança e
tenham resultado efeitos concretos e expressivos na liberdade e na propriedade dos
contribuintes - que, posteriormente, venham a ser anulados ou revogados de forma abrupta - a
aplicação do princípio da proteção da confiança estará não só incrementada, mas
condicionada à boa-fé do administrado49
, sendo a boa-fé nesses casos pressuposto da
incidência do princípio da proteção da confiança50
.
ÁVILA apresenta os requisitos para a boa-fé do administrado ser objeto de proteção:
(1) relação entre o Poder Público e o contribuinte baseada em ato ou
contrato administrativo cuja validade seja presumida; (2) relação
concreta envolvendo uma repetição de comportamentos, de forma
continuada, uniforme e racional por uma pluralidade de agentes fiscais que
executam o ato ou contrato administrativo como se válido fosse; (3) relação
47 A professora Misabel Abreu Machado Derzi, parafraseando Roland Kreibich, aponta divergências
entre os princípios da proteção da confiança e da boa-fé dizendo que o “primeiro, por ser mais abrangente”
aplica-se “às situações gerais, abstratas e àquelas concretas; já o segundo, o princípio da boa-fé somente
alcança uma situação jurídica individual e concreta, ou seja, alcança não as leis e os regulamentos
normativos, mas apenas os atos administrativos individuais e as decisões judiciais” (grifo nosso). MACHADO DERZI, 2010, p. 379.
48 MAFFINI, 2006, p.55. 49 Um exemplo da exigência de boa-fé por parte do contribuinte encontra-se no Art. 54, da Lei
9.784/99, Lei do processo administrativo da União, que não protege com o prazo decadencial de cinco anos os
destinatários da norma que tenham agido, comprovadamente, de má-fé, in verbis: Art. 54. O direito da
Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai
em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé (grifo nosso). 50
MAFFINI, 2006, p.55, e também CALMES, 2001, p. 243: “[...] la bonne foi en constitue un
élément central qui intervient au coeur du raisonnement tenu dans le cadre du mécanisme de protection de la
confiance”.
17
de confiança envolvendo as partes e terceiros; (4) relação de causalidade
entre a confiança do e os atos praticados pelo Poder Público; (5) situação
de conflito entre o comportamento anterior e o atual por parte do Poder
Público; (6) continuidade da relação por período inversamente proporcional
à importância do ato ou contrato administrativo aplicado51
(grifo nosso).
A necessidade de uma certa continuidade (6) da situação de confiança representa que
quanto mais intensa e inequívoca a atuação da administração, maior a confiança despertada
aos contribuintes e menor transcurso de tempo exigido para a solidez da confiança.
Outrossim, quanto mais tênue e duvidosa a vinculatividade do ato administrativo
(v.g., se o ato possuía natureza provisória), menor será a confiança gerada (ao menos,
inicialmente) e maior a necessidade do transcurso do tempo para consolidar a base de
confiança.
Em resumo, a confiança no âmbito das relações entre administrado-contribuinte e
Administração tributária (vertical ou horizontal), nasce da conduta administrativa, ou melhor,
de ato administrativo (aqui em sentido amplo), cuja legitimidade e veracidade são presumidas,
bem como, o cumprimento e a manutenção são esperados pelo contribuinte (influência
também do princípio da continuidade do serviço público), o qual acaba induzido a atuar.
1.4. Modificação dos atos da Administração Pública Tributária
Nesse ponto, o que releva é tratar do direito da Administração de rever seus próprios
atos quando os atos pretéritos tenham ocasionado efeitos benéficos ao contribuinte, pois
quando os atos pretéritos tenham sido restritivos ao contribuinte (tenham apenas agravado
as obrigações) a anulação ou revogação vem em seu favor52
51 ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa do Contribuinte.
Revista Tributária e de Finanças Públicas nº42, 2002, p.105. 52 ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica - Entre permanência, mudança e realização no Direito
Tributário. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p 443.
18
Cumpre, então, delimitar o que seja um efeito vantajoso para o contribuinte, assim
como o que venha a ser um ato ilícito administrativo e como pode ocorrer mudança na
linha de conduta da Administração.
Segundo o professor Humberto Ávila53
, o ato vantajoso é aquele que cria para o
destinatário algum tipo de benefício, incluindo aqueles que condicionam a fruição do
benefício ao preenchimento de alguma obrigação.
Ilícito é o ato editado em contrariedade a regras legais formais ou materiais
vinculantes, que exigem que sejam preenchidos requisitos para atingir a finalidade legal.
Nesse sentido, meros equívocos de forma que não interfiram nessa finalidade não
deveriam ser considerados ilícitos54
.
E, a mudança administrativa poderá ocorrer em virtude da Administração, ou ter
modificado o mérito do seu entendimento sobre determinada questão fiscal, ou em virtude de
ter concluído que sua posição anterior era ilegal55
.
Sobre a possibilidade de considerar atos ilícitos como geradores de efeitos aos
particulares a jurisprudência foi evoluindo com o tempo. À época das súmulas 346 e 473, do
Supremo Tribunal Federal o entendimento que reinava era o do princípio da livre anulação
dos atos administrativos ilegais56
, pois, visto que ilícitos, não se admitia que deles
originassem direitos.57
Mas com o desenvolvimento da proteção da confiança e da boa-fé do
cidadão frente ao Estado, aos poucos, inicia-se a dar guarida às expectativas legítimas
originadas por esses atos enquanto válidos.
Dado esse rápido panorama sobre o direito da administração de rever seus próprios
atos, faz-se importante analisá-los mais especificamente.
No que tange aos atos administrativos gerais e abstratos, especificamente, quanto
aos atos normativos (como já referido, são aqueles que são de natureza geral e abstrata e
53 ÁVILA, op. cit., p. 444. 54 ÁVILA, loc. cit. 55 ÁVILA, op. cit., p. 448. 56 ÁVILA, op. cit., p.446. 57 Súmula 346, STF: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Súmula 473, STF: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem
ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (grifo nosso).
19
dirigidos a um número indeterminado de sujeitos e situações), as aplicações do VCFP aos
casos de mudança na linha de conduta da Administração, possuem algumas particularidades
que se passa a comentar.
Em que pese esses atos não tenham uma vinculatividade equiparável aos atos
normativos primários58
, não significa que esses atos não possuam vinculação externa
(podem vir a preencher conceitos indeterminados, podem ampliar o entendimento sobre
determinado assunto, etc.). Logo, a mudança administrativa nesse âmbito (anulação pelo
ilícito, ou revogação por conveniência da administração) também deve se ater ao efeito de
barreira, ou impeditivo, do princípio de proteção da confiança legítima. Trata-se, então, da
proibição do comportamento contraditório, VCFP, instruído pelo princípio da confiança e
pela aparência e presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos59
.
Noutro sentido, caso a anulação ou revogação do ato seja fortemente justificada, a
administração não deixa de ter de preservar as expectativas legítimas geradas, por meio
da criação de normas de transição, quando possível, ou pela recomposição dos prejuízos
causados por meio de compensações patrimoniais60
.
No que concerne às situações de VCFP quanto às práticas administrativas,
reputam-se passíveis de gerar confiança legítima, as práticas administrativas que, embora não
revestidas das formalidades do ato administrativo, tenham por um determinado lapso
temporal transmitido o entendimento da autoridade pública sobre determinada
matéria61
. Esses seriam casos típicos de surrectio62
em favor do contribuinte, nas quais a
conduta de uma parte consolidada pela passagem do tempo torna-se hábil para criar na
outra parte a confiança na manutenção daquela prática ou daquela abstenção. Vale
lembrar que o § único, do artigo 100, do CTN já mencionava a necessidade de proteção do
58 ÁVILA, 2011, p. 449. 59 “[...] não se pode desconhecer que esses atos normativos, pouco importa se indiretamente, têm
eficácia externa, inclusive porque o Estado não pode nem se afastar injustificadamente das suas próprias posições, nem deixar de atribuir tratamento uniforme a todos os cidadãos. Tal eficácia aumenta ainda mais
quando os atos normativos são publicados, pois não há sentido algum em dar publicidade ao conteúdo dos atos
da Administração para depois liberá-la de segui-los, Se, por exemplo, o ato normativo se reveste de uma
aparência de legalidade, se ele foi causa de disposição intensa do contribuinte, a sua anulação deve ser
afastada. Isso porque, nesse caso, a falta de um elemento (vinculatividade) é minorada pela existência de
outros (aparência de legalidade, indutividade, onerosidade)” (grifo nosso). ÁVILA, 2011, p. 450. 60 MAURER, 2007, p. 111. 61
ÁVILA, 2011, p. 452. 62 Surgimento do direito a uma das partes pela ação ou omissão da outra, por um período prolongado
de tempo. Mais adiante, no artigo, o instituto será melhor desenvolvido.
20
contribuinte que agiu em observância da prática reiterada da Administração, excluindo a
cobrança de penalidades, juros de mora e correção monetária da base de cálculo do tributo.
Já no que respeita aos atos administrativos individuais e concretos, as ocorrências
de VCFP, relativamente aos atos administrativos, que em razão da sua natureza acabam por
revelar um maior grau de proximidade das partes (vez que dirigidos à situações ou sujeitos
determinados) propiciam que o contribuinte possa, além de invocar a proteção da confiança
contra a mudança na linha de conduta da Administração, também exigir da Administração a
observância de deveres acessórios de conduta, como lealdade, informação, clareza,
coerência, etc., amparado na boa-fé em sentido objetivo63
.
Salienta-se que, igualmente, do contribuinte, será exigida a mesma conduta leal64
. E
mais, se houver comprovada má-fé do contribuinte, não há confiança digna e proteção (nem
mesmo lhe é aplicável o prazo de cinco anos de decadência do art.54, da Lei nº 9.784/99, Lei
do processo administrativo da União).
A professora Misabel Abreu Machado Derzi65
, apresenta três situações nas quais ela
vislumbra a possibilidade de aplicar os princípios da proteção da confiança e da boa-fé
objetiva (acrescenta, ainda, o princípio da irretroatividade) nas contradições da
Administração Tributária:
1. as mudanças de normas regulamentares e outras
complementares, agravadoras dos deveres dos
contribuintes e restritivas do exercício de seus direitos, sem que tenha ocorrido, para isso, alteração prévia da lei
em que se fundam;
2. as mudança de atos administrativos individuais, de
concreção e aplicação das leis, nos lançamentos, autuações
e cobranças de tributos, que onerem de forma mais intensa os contribuintes;
63 “A maior proximidade entre o Poder Público e o cidadão também instaura um compromisso entre
eles e, por consequência, gera um dever de lealdade: o descumprimento de um compromisso é causa de
deslealdade, a seu turno violadora do princípio da moralidade administrativa. Exatamente em decorrência
dessa proximidade é que se fala, no caso dos atos e dos contratos administrativos, em dever de boa-fé
administrativa: a relação de proximidade entre Estado e contribuinte cria deveres recíprocos de lealdade que
restringem ou atenuam as próprias exigências de lealdade e de previsibilidade” (grifo nosso). ÁVILA, 2011,
p.453-454. 64
“É verdade que a boa-fé subjetiva, daquele que confia, está entre os pressupostos da proteção da
confiança, pois o Direito não pode abrigar o desonesto, o desleal”. MACHADO DERZI, 2010, p. 373. 65 MACHADO DERZI, 2010, p. 479-480.
21
3. as respostas às consultas, as informações e declarações da
Administração tributária, capazes de guiar-lhes a
conduta”.(grifo da autora).
O professor HUMBERTO amplia essa noção, relativamente à proteção da confiança,
afirmando que quanto maiores sejam a aparência de legitimidade do ato, a influência
comportamental decorrente dele (indução de conduta), quanto maior a proximidade do Estado
com o cidadão, a onerosidade gerada pela sua aplicação e a durabilidade de sua eficácia no
tempo, tanto maiores serão as razões para a manutenção do ato administrativo, em razão da
intensidade desses elementos compensarem a ilicitude do ato, ou melhor, a ilicitude, ou a
fragilidade, da base de confiança66
.
E, acrescenta, mais adiante, que se porventura o ato, agora objeto de mudança, tenha
se prestado para a realização de finalidades públicas (como a criação de empregos,
desenvolvimento de tecnologia, promoção de uma região, etc.), muito mais relevante terá de
ser a justificativa de sua modificação em virtude prejudicar o próprio interesse público. Caso
contrário, o ato deveria ser mantido67
.
Afirma também, que a modificação dos atos administrativos “não depende da sua
invalidade, mas da intensidade da atuação do contribuinte baseada na sua confiança e na
intensidade da restrição que sua modificação irá causar”68
(grifo nosso).
Para melhor explicar as situações de VCFP no âmbito dos atos administrativos
individuais e concretos, parece ser proveitoso narrar o caso célebre da “Viúva de Berlim”,
que, amparada no princípio de proteção da confiança, permaneceu recebendo uma pensão
concedida ilegalmente, como segue:
[...] a viúva de um inspetor com domicílio dentro da zona de ocupação da
antiga União Soviética na Alemanha recebeu uma pensão da Oberjustizkasse
de Berlim até 8 de maio de 1945. Em 11 de março de 1953, ela obteve uma declaração do Senator do Estado de Berlim de que teria, nos termos do que
prevê o art. 131 da Constituição da República alemã, direito a voltar a
receber sua pensão se mudasse seu domicílio para Berlim Ocidental. Por
66 ÁVILA, 2011, p. 453. 67 “Nesse aspecto, a revisão do ato, quer por anulação, quer por revogação, vai de encontro a
finalidades que o próprio Estado deve atingir e que, com a revisão do ato, ficarão prejudicadas. Nesse sentido,
quanto maior for o grau de realização das finalidades públicas, maior a protetividade da confiança do
contribuinte” (grifo nosso). ÁVILA, 2011, p. 455. 68 ÁVILA, 2011, p. 455.
22
conta desse esclarecimento, a viúva mudou-se para o território da antiga
Alemanha Ocidental e, como consequência, a pensão retornou a ser
concedida, em 23 de novembro de 1953, com efeitos a partir de 1º de setembro do referido ano. No entanto, em 10 de outubro de 1954, cerca de
um ano após o início do recebimento do benefício, a Administração alemã
editou um novo ato determinando que a pensão seria cancelada desde 31 de
outubro do mesmo ano sob o fundamento de que a pensionista não teria preenchido todos os requisitos para a sua concessão. Além disso, a
Administração alemã exigiu da pensionista a restituição de todas as quantias
indevidamente já recebidas.
Em razão do ajuizamento de uma ação pela viúva, o Tribunal Revisor de
Berlim em matéria de Direito Administrativo invalidou o ato que havia cancelado a pensão. Nas razões da decisão, o Tribunal lembrou que não se
pode extrair do princípio da legalidade uma obrigação irrestrita do
Estado de anular atos ilegais. O benefício era efetivamente indevido,
mas a pensão acabou sendo mantida judicialmente, uma vez que ela
havia modificado a vida da pensionista, de forma incisiva, com base na
confiança depositada no Estado. [...]
No caso específico, a viúva confiara na informação recebida da
Administração alemã e, com base nela, tomou medidas drásticas e
duradouras (einschneidende und dauernde) que reorganizaram todo o seu
modo de vida. A confiança por ela no Estado era tão digna de tutela que
o seu benefício ilegal, foi, inclusive, mantido para o futuro (grifo nosso)69
.
Por fim, relativamente às situações de VCFP quanto aos contratos administrativos,
cumpre realizar observações um pouco mais detalhadas.
Inicialmente, faz-se oportuna a leitura do artigo 150, da Constituição Federal,
contido na seção denominada - Das Limitações do Poder de Tributar – que estatui:
Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação
profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;[...]
§ 6º. Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo,
concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a
impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei
específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as
matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição,
69 ARAÚJO, 2009, p. 137-138.
23
sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (grifo nosso).
Diante disso, poderia se imaginar que não há base de confiança legítima quando a
administração tributária vem anular ou revogar contratos ou termos de acordo celebrados com
o contribuinte com a finalidade de conceder um benefício fiscal, sem que tivesse havido lei
anterior que o estabelecesse.
Todavia, observando a relação entre as partes, se a Administração chega ao ponto de
entabular um contrato, ou um acordo, diretamente com o contribuinte e relativo à promessa de
benefícios fiscais, ela acaba por estabelecer um vínculo formal que sequer existiu em
qualquer dos casos de VCFP cometidos pela Administração, analisados até o momento.
Fora isso, no que concerne aos contratos administrativos, a anulação, ou revogação,
em regra, vem em prejuízo do contribuinte e, não raro, a Administração para conceder os
benefícios exige do contribuinte uma contrapartida. Isso vem significar que o benefício
deixa de ser gratuito passa a ser oneroso e, também, de negócio unilateral passa a bilateral,
produzindo efeitos concretos e expressivos na liberdade e da propriedade do administrado70
.
Ainda, o fisco pode estar se valendo do acordo ( ou do contrato) para atingir
finalidades públicas. O que, no caso, a mudança administrativa, vem de encontro, isto é,
choca-se ao próprio interesse público (afora a contradição, há prejuízos sociais).
Neste ponto, faz-se proveitoso colacionar um trecho das conclusões de Humberto
Ávila:
As considerações precedentes não demonstram que benefícios fiscais podem
ser concedidos por outro instrumento que não a lei. Elas apenas visam a demonstrar que pode haver situações em que, não tendo sido o benefício
concedido por meio de lei, expressivos efeitos concretos podem ter sido
produzidos relativamente à liberdade e à propriedade do contribuinte,
que podem justificar, excepcionalmente, a manutenção passada do
benefício e, eventualmente, a instituição de regras de transição após a
postulação da sua descontinuidade. Embora o Estado tenha liberdade de
concretizar políticas públicas, uma vez tendo feito isso, passa a vincular-se
à sua atuação anterior, da qual não pode simplesmente afastar-se (grifo
nosso).
70 ÁVILA, 2011, p. 460.
24
Portanto, o comportamento contraditório da Administração, no âmbito dos contratos
administrativos, deve ser muito atentamente analisado, vez que o VCFP pode, efetivamente,
estar lesando tanto interesses privados quanto públicos71
.
Um detalhe que dificilmente é atentado pela doutrina, ao qual ÁVILA atribui a
devida atenção, é que há de se garantir ao contribuinte, além da proteção substancial da
confiança (que corresponde às situações nas quais deve ou ser mantido o ato inválido, ou
proporcionada uma indenização ao contribuinte ou, ainda, serem apresentadas normas de
transição) a proteção procedimental, adotando-se um procedimento regular, que tenha por
objetivo avaliar o benefício fiscal em todas as suas dimensões, garantindo o devido processo
jurídico, com oportunidade de audição do contribuinte72
.
E, acaso seja permitida a cobrança do tributo que deixou de ser pago em função do
benefício, não poderá o fisco impor penalidades ao contribuinte. Em razão de que não há
comportamento a punido73
.
Destarte, a proibição de voltar-se contra os próprios atos, a presunção de
legitimidade dos atos e, em alguns casos, o artigo 100, § único do CTN, impedem que a
Administração possa impor penalidades, inclusive multas, juros de mora e atualização
monetária da base de cálculo do tributo, haja vista que não se poderá penalizar o administrado
por ter confiado na continuidade, na permanência, na legitimidade dos atos administrativos
em geral. Se não há comportamento a ser punido, não há penalidade a ser imposta.
1.5. Efeitos da proibição de contradição
Faz-se oportuno trazer, antes de entrar nas demais figuras típicas do abuso de direito,
ou de exercício inadmissível de posição jurídica, os efeitos que são atribuídos à ocorrência do
venire.
71 ÁVILA, 2011, p. 460. 72 ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa do Contribuinte.
Revista Tributária e de Finanças Públicas 42: 2002, p.102 et seq. 73 “Se ele confiou [o contribuinte] na legislação vigente e se comportou exatamente de acordo com
ela, obedecendo aos comandos de seu credor, em razão dos atos indutores da confiança, praticados pelo próprio
Poder Executivo, seria ético que fossem punidos retroativamente, ou mesmo, em certas circunstâncias, não se
mantivessem aqueles atos para o passado”? MACHADO DERZI, 2010, p. 478-479.
25
Segundo Paulo Mota Pinto o principal efeito da proibição do VCFP seria a inibição
do exercício de poderes jurídicos ou direitos, em contradição com o comportamento anterior.
Mas o autor acrescenta mais um efeito, dizendo que, em virtude da proibição de
contradição, a conduta posterior torna-se ilegítima abrindo possibilidade para a constituição
do agente em uma obrigação de indemnizar, designadamente por violação de uma obrigação
(pela quebra da confiança ou frustração das legítimas expectativas)74
.
Com o intuito de demonstrar que se assemelham, embora com nuances e termos
particulares, cumpre realizar uma sucinta comparação entre os efeitos do venire no Direito
Privado e no Público75
.
Aquilo que MOTA PINTO76
, no direito privado, entende por efeito principal, ou
seja, a inibição do exercício dos direitos contraditórios, MAURER77
denomina, no Direito
Público, como a proteção da existência do ato no direito administrativo alemão.
O que MOTA PINTO78
entende por efeito secundário, a obrigação de indenizar,
MAURER79
apresenta como sendo a proteção patrimonial no direito administrativo alemão, e
adiciona, para o caso de real necessidade de alteração dos atos administrativos, mais uma
proteção aos administrados, a proteção da confiança mediante a realização de regulações
transitórias, quando possível.
Resume-se no seguinte quadro:
Direito Privado
(MOTA PINTO)
Direito Público
(MAURER)
Efeito principal inibição do exercício de
poderes jurídicos ou direitos
contraditórios
proteção da existência do ato
74 MOTA PINTO, 2003, p.167. 75 Para essa comparação apenas se utilizará das compreensões de MOTA PINTO e MAURER,
simplificando a apresentação, mas isso não significa que a doutrina não possa ser mais rica sobre os efeitos do
venire. 76 MOTA PINTO, 2003, p.167 77
MAURER, 2007. p. 60 et seq. 78 MOTA PINTO, 2003, p.167 79 MAURER, loc. cit.
26
Efeito secundário obrigação de indenizar proteção patrimonial ou, quando
necessário e possível, proteção da
confiança mediante a realização de
regulações transitórias, resguardando as
legítimas expectativas
Percebe-se, destarte, que a proibição de VCFP tem efeitos que discrepam somente
naquilo que é necessário e fundamental à proteção da confiança legítima em cada campo de
atuação.
2. Demais figuras decorrentes do abuso de direito ou do exercício inadmissível de
posições jurídicas
Limitar-se-á, neste ponto, ao estudo das figuras da surrectio, da supressio, do tu
quoque e da inalegabilidade das nulidades formais, visto que tais fórmulas parecem se
coadunar mais diretamente como o tema do venire na mudança administrativa tributária,
embora outras figuras também existam e tenham igualmente grande valor jurídico80
.
2.1. Surrectio
80 Para ver mais sobre: MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 719 et seq.
27
Surrectio, ou surgimento (equiparável à Erwirkung do direito alemão), pode ser
definida como a aquisição de um direito em consequência da prática continuada81
de certos
atos, na qual releva a passagem do tempo. Pode ser uma ação, ou abstenção, por longo
período de tempo que venha a gerar a confiança em terceiros na manutenção daquela conduta
pelo agente.
Consequentemente, a parte que confiou pode se tornar titular de um direito mesmo
que, inicialmente, não regularmente constituído, em virtude da passagem do tempo e da
legítima confiança despertada.
Aclarando o sentido do instituto, Wagner Mota Alves de Souza explica que
Um exemplo nítido de surrectio pode ser haurido da jurisprudência alemã.[...] Durante mais de vinte anos, em uma dada sociedade, foi
realizada, com anuência unânime dos sócios, a repartição dos lucros de
modo diferente do quanto avençado no contrato social, sem que as necessárias alterações do mesmo fossem realizadas. Instado a obrigar a
observância do contrato social, o tribunal entendeu que a distribuição não
oficial deveria ser mantida para o futuro82
.
Prossegue o autor, salientando que o tribunal, mesmo diante de uma afronta expressa
ao contrato social, reconheceu o surgimento do direito em razão da passagem do tempo
(vinte anos) e da prática continuada de distribuição de lucros fora dos percentuais do contrato
empresarial.
O transcurso de tempo necessário para consolidar a base de confiança, aproxima
o caso da “distribuição de lucros83
” mais a uma ocorrência de surrectio do que de a uma
ocorrência de venire.
81 Para Magda Mendonça Fernandes a surrectio corresponde a um instituto que permite a constituição
de direitos pelo decurso do tempo, ou melhor, “a aquisição de um direito derivado de um comportamento
contraditório, resultante do decurso do tempo. Estes casos a doutrina alemã apelida de “Erwirkung” ou de
surrectio”(grifo da autora) . FERNANDES, 2008, p.15. 82 SOUZA, 2008, p.88. 83 Esse mesmo caso é citado também em MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 822, que se transcreve:
“Em BGH 17-Jan.-1966 discutia-se a situação criada por, numa sociedade, durante mais de vinte anos se ter,
com o acordo unânime de todos os sócios, procedido a uma distribuição de lucros não correspondente ao pacto
social. Este só poderia ser alterado com certas formalidades, o que nunca foi feito. O BGH, atentas as
circunstâncias, entendeu que a distribuição não oficial deveria ser mantida para o futuro”.
28
2.2. Supressio
Supressio, ou neutralização (equiparável à Verwirkung do direito alemão), pode
ocorrer quanto o titular do direito deixa passar longo tempo sem o exercer e com base nesse
decurso de tempo e em outras condutas do titular (ou outras circunstâncias) a contraparte
chega à convicção justificada de que aquele direito já não será exercido e passa a orientar sua
vida, tomar medidas, ou adotar planos de ação com base nessa confiança. Em consequência,
o exercício tardio e inesperado do direito em questão lhe acarretará agora uma
desvantagem maior do que o exercício do mesmo direito no tempo devido84
.
A supressio teria se consagrado dogmaticamente após a Primeira Guerra Mundial,
em virtude de perturbações econômicas, como a inflação. Registravam-se alterações
imprevisíveis nos preços e dificuldades no fornecimento de certas mercadorias, o que fez com
que o exercício retardado de alguns direitos sobre esses bens acabassem por gerar situações de
desequilíbrio inadmissível entre as partes85
.
Portanto, a evitar o exercício inadmissível de direito ou posição jurídica, a
Verwirkung, ou supressio, torna-se a “neutralização‟ de um direito que durante muito tempo
se não exerceu, tendo-se criado a legítima expectativa de que, dado o decurso do tempo, tal
direito não viria a ser exercido”86
(grifo nosso).
Tanto na surrectio, quanto na supressio, o elemento temporal, a passagem do
tempo, tem mais relevância do que nas situações qualificadas meramente como VCFP87
.
2.3. Tu quoque
84 MOTA PINTO, 2003, p. 160. 85 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.801. 86 FERNANDES, 2008, p. 15. 87
No dizer de Paulo Mota Pinto, na supressio há “uma relevância autónoma do elemento temporal
que a caracteriza especificamente e que a autonomiza em face da proibição de conduta contraditória [...]”.
MOTA PINTO, 2003, p. 172. Também MENEZES CORDEIRO, 1984, p. 809.
29
Tu quoque, é também entendido como sinônimo do brocardo turpitudinem suam
allegans non auditur, que significa a proibição de invocabilidade da própria torpeza88
, ou
melhor explicado: a pessoa que viola uma regra jurídica não pode invocar a mesma regra
a seu favor89
.
A figura do tu quoque é conhecida graças à expressão que dizem ter sido proferida
por Júlio César ao perceber que seu protegido, Brutus, estava dentre os seus traidores. Júlio
César teria dito: "- Tu quoque, Brutus, tu quoque, file mili?"; cuja tradução seria: "- Até tu,
Brutus, até tu, meu filho?". Tu quoque, assim, além de denotar uma surpresa, remete, também
a uma idéia de decepção90
.
Na noção de tu quoque também pode estar subentendia uma distorção dos deveres
contratuais por uma das partes – que estaria adotando dois pesos e duas medidas91
– conduta
nitidamente violadora da boa-fé objetiva e da confiança. Portanto, o tu quoque apresenta a
ideia de vínculo jurídico, diferentemente das outras figuras (tu quoque contratual)92
.
Distintamente do venire, o tu quoque é usado para as situações nas quais foi
quebrado o equilíbrio sinalagmático, isto é, numa relação contratual na qual ambas as partes
tem direitos e deveres recíprocos há uma quebra nessa reciprocidade, já pelo primeiro
comportamento violador (também considerado ilícito por alguns autores) de uma das partes
que, posteriormente, vem a exigir da outra a plena a realização contratual, ou, então, a sua
rescisão, em razão do vício que ela mesma deu causa93
.
Conquanto ambos, venire e tu quoque, estejam inseridos no rol de comportamentos
incoerentes que ferem a lealdade e a confiança. O que os difere, entretanto, é o fato de que no
venire nenhuma das condutas, separadamente vistas, apresenta anormalidade, a
ilegitimidade da última conduta se constata somente quando confrontadas uma a outra.
No tu quoque percebe-se a irregularidade já no primeiro ato violador, ou ilícito, praticado,
que ainda é acrescido pela conduta incompatível posterior.
88 Paulo Mota Pinto também equipara o tu quoque ao princípio inglês “he who want equity must come
with clean hands”. MOTA PINTO, 2003, p.144, nota 34. 89 SOUZA, 2008, p. 89. 90 SCHREIBER, 2007, p. 182. 91
SCHREIBER, op.cit., p. 183. 92 SOUZA, 2008, p. 90-91. 93 MENEZES CORDEIRO, 1984, p.851.
30
Destarte, o tu quoque entendido por alguns como sendo consectário da boa-fé
objetiva94
, define-se pela conduta de alguém que, após violar a norma jurídica, tenta em um
segundo momento, valendo-se de sua própria torpeza, aproveitar a situação por ela ensejada,
logrando um benefício de forma indevida. É verdadeiramente inaceitável que aquele que não
cumpriu com sua obrigação, violando regra legal ou contratual, venha, posteriormente,
refugiar-se na ilicitude anteriormente cometida e obter vantagem sobre o outro.
2.4. Inalegabilidade das nulidades formais95
A alegação de nulidades formais por uma parte, com o intuito de deixar de cumprir
obrigação assumida, será tida por abusiva nos casos em que a parte contrária, obrando de boa-
fé subjetiva - quanto à existência da nulidade - e objetiva - quanto ao dever lateral de
diligência, tenha sua confiança afrontada pela nulidade do vínculo e experimente prejuízos .
No entender de Wagner Mota Alves de Souza96
, a parte contratante que suscita a
inalegabilidade não poderia conhecer a existência do vício no momento da celebração do
negócio jurídico.
A solução para esse caso seria a manutenção do ato anulável por vício, meramente,
de forma, quando possível, ou a indenização nos casos em que a parte obrou de má-fé.
Contudo, considerando que no âmbito do Direito Administrativo, pode se tornar
impossível a manutenção do ato ou negócio jurídico eivado de nulidade formal (quando
insanável), poderá a consequência do reconhecimento do abuso, ou do exercício inadmissível
de direito, ficar limitada à indenização.
Sobre as fórmulas típicas do abuso ou do exercício inadmissível de direitos, há ainda
muito o que ser dito. Poderia se falar do Estoppel, exceptio doli, da teoria dos atos próprios
(desenvolvida na doutrina argentina e espanhola), mas acabaria por estender demais temas
colaterais à compreensão do venire.
94 SCHREIBER, 2007, p. 185.
95 Ou “inadmissibilidade da alegação das nulidades formais”. 96 SOUZA, 2008, p. 83.
31
3. A posição da jurisprudência.
Os casos que serão analisados foram coletados por meio de pesquisa de
jurisprudência no sítio do Superior Tribunal de Justiça97
na internet, com o termo “venire
contra factum proprium”. As observações a seguir serão bastante concisas, apenas no intuito
de tentar confrontar o julgado com o enquadramento dogmático.
O primeiro caso a ser analisado é o do RESP 1144982/PR, que se transcreve:
TRIBUTÁRIO. ITR. INCIDÊNCIA SOBRE IMÓVEL. INVASÃO DO
MOVIMENTO "SEM TERRA". PERDA DO DOMÍNIO E DOS
DIREITOS INERENTES À PROPRIEDADE.
IMPOSSIBILIDADE DA SUBSISTÊNCIA DA EXAÇÃO TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO
PROVIDO.
97 http://www.stj.jus.br/SCON/
32
1. Conforme salientado no acórdão recorrido, o Tribunal a quo, no exame da
matéria fática e probatória constante nos autos, explicitou que a recorrida
não se encontraria na posse dos bens de sua propriedade desde 1987.
2. Verifica-se que houve a efetiva violação ao dever constitucional do Estado
em garantir a propriedade da impetrante, configurando-se uma grave
omissão do seu dever de garantir a observância dos direitos fundamentais da Constituição.
3. Ofende os princípios básicos da razoabilidade e da justiça o fato do
Estado violar o direito de garantia de propriedade e,
concomitantemente, exercer a sua prerrogativa de constituir ônus
tributário sobre imóvel expropriado por particulares (proibição do
venire contra factum proprium).
4. A propriedade plena pressupõe o domínio, que se subdivide nos poderes
de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa. Em que pese ser a propriedade um dos fatos geradores do ITR, essa propriedade não é plena quando o
imóvel encontra-se invadido, pois o proprietário é tolhido das faculdades
inerentes ao domínio sobre o imóvel.
5. Com a invasão do movimento "sem terra", o direito da recorrida ficou
tolhido de praticamente todos seus elementos: não há mais posse, possibilidade de uso ou fruição do bem; consequentemente, não havendo a
exploração do imóvel, não há, a partir dele, qualquer tipo de geração de
renda ou de benefícios para a proprietária.
6. Ocorre que a função social da propriedade se caracteriza pelo fato do
proprietário condicionar o uso e a exploração do imóvel não só de acordo
com os seus interesses particulares e egoísticos, mas pressupõe o condicionamento do direito de propriedade à satisfação de objetivos para
com a sociedade, tais como a obtenção de um grau de produtividade, o
respeito ao meio ambiente, o pagamento de impostos etc.
7. Sobreleva nesse ponto, desde o advento da Emenda Constitucional n.
42/2003, o pagamento do ITR como questão inerente à função social da propriedade. O proprietário, por possuir o domínio sobre o imóvel, deve
atender aos objetivos da função social da propriedade;
por conseguinte, se não há um efetivo exercício de domínio, não seria razoável exigir desse proprietário o cumprimento da sua função social, o que
se inclui aí a exigência de pagamento dos impostos reais.
8. Na peculiar situação dos autos, ao considerar-se a privação antecipada da
posse e o esvaziamento dos elementos de propriedade sem o devido êxito do
processo de desapropriação, é inexigível o ITR diante do desaparecimento da base material do fato gerador e da violação dos referidos princípios da
propriedade, da função social e da proporcionalidade.
9. Recurso especial não provido.
(REsp 1144982/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 15/10/2009) (grifo nosso).
33
Em que pese haver uma contradição no comportamento da Administração, no
julgado sobre a incidência de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) em um
imóvel objeto de invasão pelo “Movimento Sem Terra”, parece ser mais adequada a
ocorrência da figura do tu quoque em vez da figura do venire, consoante aos termos da
decisão.
Diz-se isso, pois no trecho “[...]o fato do Estado violar o direito de garantia de
propriedade [...]” denota que o primeiro comportamento da Administração já era violador.
Portanto, afasta-se o ocorrido da figura do venire, considerando que no venire a primeira
conduta, isolada, não é violadora do Direito, diferentemente do tu quoque.
Assim, mais concorde com a doutrina das figuras típicas, seria o enquadramento do
ocorrido em uma hipótese de tu quoque, porquanto não pode o Estado beneficiar-se da própria
torpeza, cobrando impostos sobre direitos de propriedade que se eximiu de proteger.
O segundo caso, que se passa a analisar, diz respeito a um oficial da Policial Militar
que se matriculara no Curso de Formação mediante uma liminar posteriormente cassada.
Em virtude da inércia da Administração o oficial permaneceu na academia, formou-
se e, ainda, foi promovido, situação que criou a convicção no administrado que o problema
relativo ao seu ingresso na carreira militar estava resolvido. É o julgamento de um recurso em
Mandado de Segurança, RMS 20.572/DF, como segue:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO. MATRÍCULA POR FORÇA DE LIMINAR.
MÉRITO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO NA
ACADEMIA, INGRESSO E PROMOÇÃO NA CARREIRA POR ATOS DA ADMINISTRAÇÃO POSTERIORES À CASSAÇÃO DA DECISÃO
JUDICIAL. TRANSCURSO DE MAIS DE CINCO ANOS.
ANULAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA E BOA-FÉ OBJETIVA
VULNERADOS. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONSTATAÇÃO DE QUE O CANDIDATO
PREENCHIA O REQUISITO CUJA SUPOSTA AUSÊNCIA IMPEDIRA
SUA ADMISSÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. ATENDIMENTO AOS
PRESSUPOSTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PARA INGRESSO E EXERCÍCIO DO CARGO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR.
1. Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium),
impedem que a Administração, após praticar atos em determinado
sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações
34
jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de
direito que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período
de tempo transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos
administrados.
2. À luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verifica-se
que o Recorrente, em sentido material, preenchia os requisitos editalícios para admissão no Curso de Formação, inclusive aquele cuja ausência formal
constituíra obstáculo inicial à sua matrícula e que ensejou o ajuizamento da
ação judicial em cujo bojo obteve a liminar.
3. Hipótese em que, embora a liminar que autorizara a matrícula do
Recorrente no Curso de Formação tivesse sido cassada, expressamente, em 18 de fevereiro de 1997 e não houvesse nenhum outro título judicial que
determinasse sua permanência na carreira militar, não tomou a
Administração nenhuma atitude no sentido de afastá-lo. Pelo contrário, além
de permanecer matriculado até a conclusão do Curso de Formação, findada em 05 de dezembro de 1997, ingressou na carreira e, ainda, foi promovido,
em 05 de outubro de 1998, à patente de 2º Tenente, vindo a ser anulados
esses atos tão-somente em 21 de maio de 2002.
4. A ausência de atos administrativos tendentes a excluir o Recorrente das
fileiras militares após a cassação da liminar, corroborada pela existência de atos em sentido contrário (manutenção no Curso, promoção), além da
instauração de processo administrativo, pela Academia de Polícia Militar, de
ofício, para tornar definitiva a matrícula que fora efetivada, inicialmente, em
razão de liminar, fez criar uma certeza de que a questão do seu ingresso
na carreira militar estava resolvida.
5. Os atos de admissão e promoção do Recorrente praticados pela Administração, bem como o longo tempo em que eles vigoraram,
indicavam, dentro da perspectiva da boa-fé, que o seu ingresso na
carreira militar já havia se incorporado, definitivamente, ao seu
patrimônio jurídico, pelo que sua anulação, com base em fato anterior à
prática dos atos anulados (cassação da liminar), feriram os princípios da
segurança jurídica e da boa-fé objetiva, tendo sido infringida a cláusula
venire contra factum proprium ou da vedação ao comportamento contraditório.
6. Hipótese concreta que não cuida da aplicação da teoria do fato consumado para convalidar ato ilegal, o que é rechaçado por esta Corte, mas de fazê-la
incidir, juntamente com os princípios da segurança jurídica e boa-fé, para
tornar sem efeito atos praticados com ofensa aos princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
7. Recurso ordinário provido para conceder a segurança e anular o ato que
cassou a promoção do Recorrente à patente de 1º Tenente, bem como o ato que determinou sua exclusão dos quadros da Polícia Militar, determinando
seu imediato retorno à função ocupada, com todos os consectários jurídico-
financeiros dele decorrentes.
(RMS 20.572/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,
julgado em 01/12/2009, DJe 15/12/2009) (grifo nosso).
35
Do julgado pode se extrair que, realmente, há possibilidade de enquadrar a conduta
da Administração como contraditória, conquanto, ela seja melhor classificada como um caso
de supressio.
Justifica-se tal classificação pelo “longo período de tempo transcorrido”, fazendo
com que o instituto da supressio do direito da Administração de anular seu próprio ato pareça
ser mais adequado a esse caso concreto.
Somando-se à conduta contraditória, há a “neutralização‟ de um direito que durante
muito tempo se não exerceu, tendo-se criado a legítima expectativa de que, dado o decurso do
tempo, tal direito não viria a ser exercido98
”, exemplo típico de supressio do direito da
Administração Pública.
Ademais, a exclusão do oficial dos quadros da Polícia Militar passados mais de cinco
anos da cassação da liminar que permitira sua matrícula, levando-se em consideração que a
Administração atuou no sentido de corroborar com a manutenção do oficial nos seus quadros
(mediante processo administrativo para regularizar sua matrícula, além de sua promoção à
patente de 2ºTenente), causaria, agora, na vida do administrado, uma desvantagem maior do
que se a Administração tivesse exercido seu direito no tempo devido.
Por fim, será examinada a decisão dos Embargos de Declaração, em uma questão de
exclusão de um contribuinte do PAES -Parcelamento Especial, que é rica em informações
para a análise da proteção da confiança e da proibição de comportamento contraditório. Segue
ementa:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (TRIBUTÁRIO. PROCESSO
ADMINISTRATIVO FISCAL. PAES.
PARCELAMENTO ESPECIAL. DESISTÊNCIA INTEMPESTIVA DA
IMPUGNAÇÃO ADMINISTRATIVA X PAGAMENTO TEMPESTIVO
DAS PRESTAÇÕES MENSAIS ESTABELECIDAS POR MAIS DE QUATRO ANOS SEM OPOSIÇÃO DO FISCO.
DEFERIMENTO TÁCITO DO PEDIDO DE ADESÃO. EXCLUSÃO DO
CONTRIBUINTE.
IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DO COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM).). MANIFESTO INTUITO INFRINGENTE. MULTA POR
98 FERNANDES, 2008, p. 15.
36
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROCRASTINATÓRIOS (ARTIGO
538, DO CPC). APLICAÇÃO.
1. O inconformismo, que tem como real escopo a pretensão de reformar o
decisum, não há como prosperar, porquanto inocorrentes as hipóteses de
omissão, contradição, obscuridade ou erro material, sendo inviável a revisão
em sede de embargos de declaração, em face dos estreitos limites do artigo 535, do CPC.
2. A pretensão de revisão do julgado, em manifesta pretensão infringente, revela-se inadmissível, em sede de embargos, quando o aresto recorrido
assentou que: "1. A exclusão do contribuinte do programa de parcelamento
(PAES), em virtude da extemporaneidade do cumprimento do requisito formal da desistência de impugnação administrativa, afigura-se ilegítima na
hipótese em que tácito o deferimento da adesão (à luz do artigo 11, § 4º, da
Lei 10.522/2002, c/c o artigo 4º, III, da Lei 10.684/2003) e adimplidas as
prestações mensais estabelecidas por mais de quatro anos e sem qualquer oposição do Fisco.
2. A Lei 10.684, de 30 de maio de 2003 (em que convertida a Medida Provisória 107, de 10 de fevereiro de 2003), autorizou o parcelamento
(conhecido por PAES), em até 180 (cento e oitenta) prestações mensais e
sucessivas, dos débitos (constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa, ainda que em fase de execução fiscal) que os contribuintes tivessem
junto à Secretaria da Receita Federal ou à Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional com vencimento até 28.02.2003 (artigo 1º).
3. O aludido diploma legal, no inciso II do artigo 4º, estabeleceu que: "Art.
4o O parcelamento a que se refere o art. 1o: (...) II – somente alcançará
débitos que se encontrarem com exigibilidade suspensa por força dos incisos III a V do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, no caso de o
sujeito passivo desistir expressamente e de forma irrevogável da impugnação
ou do recurso interposto, ou da ação judicial proposta, e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundam os referidos
processos administrativos e ações judiciais, relativamente à matéria cujo
respectivo débito queira parcelar;
(....)" 4. Destarte, o parcelamento tributário previsto na Lei 10.684/03
somente poderia alcançar débitos cuja exigibilidade estivesse suspensa por
força de pendência de recurso administrativo (artigo 151, III, do CTN) ou de deferimento de liminar ou tutela antecipatória (artigo 151, incisos IV e V, do
CTN), desde que o sujeito passivo desistisse expressamente e de forma
irrevogável da impugnação ou recurso administrativos ou da ação judicial proposta, renunciando a quaisquer alegações de direito sobre as quais se
fundassem as demandas intentadas.
5. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e a Secretaria da Receita Federal expediram portarias conjuntas a fim de definir o dies ad quem para
que os contribuintes (interessados em aderir ao parcelamento e enquadrados
no artigo 4º, II, da Lei 10.684/03) desistissem das demandas (judiciais ou administrativas) porventura intentadas, bem como renunciassem ao direito
material respectivo.
6. A Portaria Conjunta PGFN/SRF 1/2003, inicialmente, fixou o dia
29.08.2003 como termo final para desistência e renúncia, prazo que foi
37
prorrogado para 30.09.2003 (Portaria Conjunta PGFN/SRF 2/2003) e, por
fim, passou a ser 28.11.2003 (Portaria Conjunta PGFN/SRF 5/2003).
7. Nada obstante, o § 4º, do artigo 11, da Lei 10.522/2002 (parágrafo
revogado pela Medida Provisória 449, de 3 de dezembro de 2008, em que foi
convertida a Lei 11.941, de 27 de maio de 2009), aplicável à espécie por
força do princípio tempus regit actum e do artigo 4º, III, da Lei 10.684/03, determinava que: "Art. 11. Ao formular o pedido de parcelamento, o devedor
deverá comprovar o recolhimento de valor correspondente à primeira
parcela, conforme o montante do débito e o prazo solicitado.
(...) § 4º Considerar-se-á automaticamente deferido o parcelamento, em caso
de não manifestação da autoridade fazendária no prazo de 90 (noventa) dias, contado da data da protocolização do pedido.
(...)" 8. Consequentemente, o § 4º, da aludida norma, erigiu hipótese de
deferimento tácito do pedido de adesão ao parcelamento formulado pelo contribuinte, uma vez decorrido o prazo de 90 (noventa) dias (contados da
protocolização do pedido) sem manifestação da autoridade fazendária, desde
que efetuado o recolhimento das parcelas estabelecidas.
9. In casu, consoante relatado na origem: "... o impetrante apresentou, em
janeiro de 2001, impugnação em relação ao lançamento fiscal referente ao processo administrativo nº 11020.002544/00-31 (fls. 179 e ss.), tendo
posteriormente efetuado pedido de inclusão de tal débito no PAES, em
agosto de 2003 (fl.
08), com o recolhimento da primeira parcela em 28-08-2003 (fl. 25),
mantendo-se em dia com os pagamentos subseqüentes até a impetração do
presente mandamus, em outubro de 2007 (fls. 25/41 e 236).
Ocorre que, em julho de 2007, a Secretaria da Receita Federal notificou o
requerente de que haveria a compensação de ofício dos valores a serem restituídos a título de Imposto de Renda com o aludido débito (fl. 42),
informando que o contribuinte não teria desistido da impugnação
administrativa antes referida (fl. 03).
Buscando solucionar o impasse, formulou pedido de desistência e requereu a
manutenção do parcelamento, ao que obteve resposta negativa, sob a
justificativa da ausência de manifestação abdicativa no prazo previsto no art. 1º da Portaria Conjunta PGFN/SRF nº 05, de 23-10-2003 (fl. 43).
(...) Não obstante tenha o impetrante, por lapso, desrespeitado tal prazo,
postulou a inclusão do débito impugnado no PAES e efetuou o
pagamento de todas as prestações mensais no momento oportuno, por
mais de quatro anos, de 28-08-2003 (fl. 25) a 31-10-2007 (fl. 236),
formulando, posteriormente, pleito de desistência (fl. 43), todas atitudes
que demonstram a sua boa-fé e a intenção de solver a dívida, depreendendo-se ter se resignado, de forma implícita e desde o início do
parcelamento, em relação à discussão travada no processo administrativo nº 11020.002544/00-31.
Além disso, saliente-se que a Administração Fazendária recebeu o pedido de homologação da opção pelo parcelamento em agosto de 2003 (fl. 08) e sobre
ele não se manifestou no prazo legal, de 90 dias, a teor do art. 4º, inciso III,
da Lei nº 10.684/03, c/c art. 11, § 4º, da Lei nº 10.522/02, o que implica considerar automaticamente deferido o parcelamento. Frise-se, ainda, que
38
recebeu prestações mensais por mais de quatro anos, sem qualquer
insurgência, além de ter deixado de dar o devido seguimento ao processo
administrativo nº 11020.002544/00-31.(...)" 10. A ratio essendi do parcelamento fiscal consiste em: (i) proporcionar aos contribuintes
inadimplentes forma menos onerosa de quitação dos débitos tributários, para
que passem a gozar de regularidade fiscal e dos benefícios daí advindos; e
(ii) viabilizar ao Fisco a arrecadação de créditos tributários de difícil ou incerto resgate, mediante renúncia parcial ao total do débito e a fixação de
prestações mensais contínuas.
11. Destarte, a existência de interesse do próprio Estado no parcelamento
fiscal (conteúdo teleológico da aludida causa suspensiva de exigibilidade
do crédito tributário) acrescida da boa-fé do contribuinte que,
malgrado a intempestividade da desistência da impugnação
administrativa, efetuou, oportunamente, o pagamento de todas as
prestações mensais estabelecidas, por mais de quatro anos (de
28.08.2003 a 31.10.2007), sem qualquer oposição do Fisco, caracteriza
comportamento contraditório perpetrado pela Fazenda Pública, o que
conspira contra o princípio da razoabilidade, máxime em virtude da
ausência de prejuízo aos cofres públicos.
12. Deveras, o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé
objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes, sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de conduta
a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação
obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação,
proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre
ambos.
13. Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido
teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara
(excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma
determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre
em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra
factum proprium.
14. Outrossim, a falta de desistência do recurso administrativo, conquanto
possa impedir o deferimento do programa de parcelamento, acaso
ultrapassada a aludida fase, não serve para motivar a exclusão do parcelamento, por não se enquadrar nas hipóteses previstas nos artigos 7º e
8º da Lei 10.684/2003 (inadimplência por três meses consecutivos ou seis
alternados; e não informação, pela pessoa jurídica beneficiada pela redução do valor da prestação mínima mensal por manter parcelamentos de débitos
tributários e previdenciários, da liquidação, rescisão ou extinção de um dos
parcelamentos) (Precedentes do STJ: REsp 958.585/PR, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 17.09.2007; e REsp 1.038.724/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em
17.02.2009, DJe 25.03.2009).
15. Consequentemente, revela-se escorreito o acórdão regional que
determinou que a autoridade coatora mantivesse o impetrante no PAES e
considerou suspensa a exigibilidade do crédito tributário objeto do parcelamento." 3. Deveras, os argumentos esposados pelo embargante não
infirmam o entendimento exarado no âmbito de recurso especial
representativo da controvérsia, revelando-se manifestamente protelatórios os
39
embargos de declaração, à luz do disposto no artigo 538, parágrafo único, do
CPC (Precedente da Primeira Seção, aplicável mutatis mutandis: Questão de
Ordem no REsp 1.025.220/RS, que versou sobre a aplicação de multa por agravo infundado, ex vi do disposto no artigo 557, § 2º, do CPC).
4. Embargos de declaração rejeitados, com a condenação da embargante ao
pagamento de 1% (um por cento) a título de multa, pelo seu caráter procrastinatório (artigo 538, parágrafo único, do CPC).
(EDcl no REsp 1143216/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/08/2010, DJe 25/08/2010) (grifo nosso).
Realmente, o contribuinte não havia cumprido com todos os requisitos para se
beneficiar do Parcelamento Especial, pois deveria ter desistido, expressamente e
tempestivamente, da impugnação administrativa que havia realizado no prazo previsto pela
Fazenda Nacional.
Mas, por outro lado, a Administração Fazendária também não realizou dentro do
prazo que lhe cabia - de 90 (noventa) dias - qualquer manifestação contrária ao pedido de
inclusão no Parcelamento Especial pelo contribuinte que - no silêncio da Administração -
seguiu realizando pagamentos mensais, reiteradas vezes, sem óbices, por mais de quatro
anos.
Embora a Administração tivesse pleno direito de negar o parcelamento ao
contribuinte, o fato de ter exercido seu direito de forma retardada e ter recebido mensalmente
os pagamentos realizados pelo contribuinte, fez com que o exercício desse direito deixasse de
prevalecer frente ao direito do contribuinte de continuar incluso no Parcelamento Especial.
Fora isso, a insurgência da Administração vem de encontro com o próprio interesse
público, vez que o fisco recebia mensalmente os valores parcelados do contribuinte e não teve
prejuízos em função da ação do contribuinte.
Adiciona-se a isso, o fato do contribuinte por mais de quatro anos ter confiado no
deferimento do Parcelamento Especial e ter organizado sua vida na crença da sua manutenção
no PAES.
Deduz-se, outrossim, que a decisão acerca do Parcelamento Especial pode também
ser considerada como uma ocorrência de surrectio, ou seja, “como a aquisição de um direito
40
derivado de um comportamento contraditório, resultante do decurso do tempo99
”, que acabou
por gerar a confiança no contribuinte na manutenção daquela conduta pelo agente
administrativo.
Cumpre, ainda, comentar que no parágrafo 12 (doze) da decisão está afirmado que
“[...] o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé
objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes,
sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de
conduta a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação obrigacional,[...]
Oportuno, então, frisar que considerar a confiança como consectário da “cláusula
geral de boa-fé objetiva” não parece ser o mais correto dogmaticamente. Diz-se isso, pois o
princípio da confiança não corresponde a um dever de conduta. Confiar não é um dever. A
confiança digna de proteção pelo direito é baseada em condutas plausíveis que levam o
confiante a crer em um determinado resultado e realizar disposições de vida em função do seu
confiar.
A apreciação dos casos de venire pela jurisprudência pátria não se esgota nesses
breves exemplos. Muito mais já foi construído e cabe ser analisado, o que não se conseguirá
neste artigo, vez que estenderá por demais o objeto de análise.
99 FERNANDES, 2008, p.15.
41
Considerações Finais
Do que foi comentado, pôde se concluir, sem qualquer pretensão de esgotar
discussões sobre o tema, que o princípio da proteção da confiança e o princípio da boa-fé
(tanto no aspecto objetivo, quanto no aspecto subjetivo) possuem aplicações distintas no
Direito Tributário e não se confundem com o instituto da proibição de venire contra factum
proprium. Outrossim, tem-se a impressão que as situações de VCFP têm uma ligação muito
mais íntima com a teoria da confiança, pois sem confiança não há venire, do que com a
boa-fé, embora a ausência de boa-fé possa afastar a dignidade da proteção da confiança e por
consequência afastar os efeitos do venire.
Distintas também são as formas de aplicação da proibição de VCFP consoante ao
tipo de ato administrativo. Se relativa a atos administrativos gerais e abstratos, a proibição de
VCFP é amparada pelo princípio da proteção da confiança, limitadora do poder estatal e, se
42
relativa a atos administrativos individuais e concretos, a proibição de VCFP é amparada pela
proteção da confiança e pelo princípio da boa-fé em seu duplo aspecto.
Conclui-se, ainda, sem esconder algum receio, que contrariamente ao tratamento
dado pelo Direito Privado, o VCFP no Direito Público, Administrativo e Tributário, pode ser
considerado como um princípio geral de não-contradição - no sentido de ser uma norma
que busca um estado de coisas, qual seja: o comportamento coerente da Administração
Pública evitando a quebra das expectativas legítimas. Esse princípio geral estaria justificado
pela confluência de outros princípios como os da presunção de legitimidade e veracidade dos
atos administrativos, da continuidade do serviço público, da proteção da confiança, da
moralidade administrativa, da segurança jurídica, da boa-fé (quando diante de individuais e
concretos da administração tributária), dentre outros.
Especificamente no que tange a mudança na linha de conduta da administração há
que se avaliar todos os aspectos do dito sistema móvel, isto é, todos os critérios ou elementos
que permitirão a proibição do VCFP, além de sopesar todos os interesses envolvidos,
compreendendo que quanto maior for a intensidade desses elementos maior terá de ser a
justificativa para a alteração da conduta administrativa.
Quanto às demais figuras decorrentes do abuso ou do exercício inadmissível de
direito ou posição jurídica, cumpre aduzir que tais elementos foram trazidos ao estudo
somente na tentativa de propiciar uma maior especificidade aos casos de comportamento
contraditório, ou, pode se dizer, na tentativa de reduzir a fluidez das situações comumente
designadas por venire, evitando que se acabe por inflar o instituto do VCFP quando seja
possível se recorrer a outras figuras mais adequadamente.
Nessa mesma linha de raciocínio, cumpre fazer alguns questionamentos sobre a
situação dos benefícios fiscais concedidos por prazo certo e mediante condições, sem lei
específica:
Considerando que não se trata de relação Estado versus súdito e, sim, de Estado
versus cidadão;
Considerando que se trata de violação de vínculo contratual;
Considerando que a atuação do fisco fere a boa-fé objetiva nos seus deveres de
lealdade, cooperação, coerência e parece ferir, também, por consequência, o princípio da
43
moralidade administrativa, em virtude da conduta contraditória (nesses casos de benefícios
fiscais onerosos);
Considerando que tal relação jurídica também poderia estar amparada pelos
princípios da teoria dos contratos, como o pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as
partes);
Sendo assim, a anulação ou a revogação de benefício fiscal, por prazo certo e
mediante condições, não amparado por lei específica, porventura, não poderia ser considerada
uma ocorrência de tu quoque estatal?
Não estaria, nessa situação específica, a Administração alegando uma nulidade de ela
própria deu causa? Ou, por acaso, não estaria agindo ilegalmente, v.g., concedendo benefícios
apenas mediante contrato, para depois alegar justamente essa ilegalidade para se esquivar do
cumprimento do pacto?
Não se tem presunção de consolidar qualquer parecer sobre esses questionamentos,
vez que aparenta ser tema para um estudo futuro mais aprofundado. Mas a questão já está
posta para debate.
A última conclusão que se ousa extrair é a de que não haveria justificativa para
penalizar (incluindo multas, juros e correção da base de cálculo) o contribuinte que, diante de
base sólida de confiança na Administração Tributária, pautou o seu proceder.
44
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