educar para o mundo: experiência extensionista popular para direitos humanos e migrações

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65 Educar Para o Mundo: Experiência Extensionista Popular para Direitos Humanos e Migrações Educar Para o Mundo: Popular Academic Outreach Experience in Human Rights and Migrations RESUMO A proposta do Educar para o Mundo é repensar a forma como se estuda e se atua na área de Relações Internacionais, especialmente nos projetos de extensão da área, ins- pirados em autores que pensam criticamente sobre a forma como a área acadêmica se relaciona com a sociedade à qual pertence. A exemplo de Paulo Freire, decidimos ir além da sala de aula para nos inserirmos na realidade dos imigrantes latino-ameri- canos em São Paulo. Iniciamos nosso trabalho em uma escola pública que abrigava uma porcentagem significativa de crianças bolivianas e que tinha uma dificuldade considerável em lidar com este grupo. Após anos de uma relação profícua, porém difícil e desgastante, percebemos que o modelo de escola tradicional com que traba- lhávamos oferecia mais barreiras do que novos caminhos para expandir nossa atua- ção com os migrantes e optamos por fortalecer nossa presença nos espaços públicos e junto aos movimentos organizados de imigrantes. Entendemos que o diálogo com interlocutores ativos e dispostos oferece grandes possibilidades de realizar o traba- lho de extensão comunicativa popular. Este artigo apresenta os principais resultados alcançados por nosso coletivo em seus seis anos de existência e debate os caminhos da extensão popular para a área de Relações Internacionais. Palavras-chave: Extensão Comunicativa. Educação para Direitos Humanos. Migração. ABSTRACT Educar para o Mundo is a collective work aimed at rethinking how the area of Interna- tional Relations could be studied and acted upon, especially regarding the academic outreach initiatives in the area. It is mostly inspired by authors that think critically about how the academic area relates with the society it belongs to. Following the work of Paulo Freire, we decided to go beyond the classrooms to actively work with Coletivo Educar Para o Mundo: Allan Greicon Macedo Lima, Ana Carolina Mazzotini, Augusto Malaman, Augusto Veloso Leão, Caio Mader, Carolina Takahashi, Claudio Cavalcante, Guilherme Arosa Otero, Gustavo Pereira, Hugo Salustiano, Martin Egon Maitino, Natália Lima de Araújo e Phillip Willians Universidade de São Paulo Instituto de Relações Internacionais, São Paulo, Brasil Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 13, p.65-82, maio 2015 DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v13i0p65-82

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A proposta do Educar para o Mundo é repensar a forma como se estuda e se atua na área de Relações Internacionais, especialmente nos projetos de extensão da área, inspirados em autores que pensam criticamente sobre a forma como a área acadêmica se relaciona com a sociedade à qual pertence. A exemplo de Paulo Freire, decidimos ir além da sala de aula para nos inserirmos na realidade dos imigrantes latino-americanos em São Paulo. Iniciamos nosso trabalho em uma escola pública que abrigava uma porcentagem significativa de crianças bolivianas e que tinha uma dificuldade considerável em lidar com este grupo. Após anos de uma relação profícua, porém difícil e desgastante, percebemos que o modelo de escola tradicional com que trabalhávamos oferecia mais barreiras do que novos caminhos para expandir nossa atuação com os migrantes e optamos por fortalecer nossa presença nos espaços públicos e junto aos movimentos organizados de imigrantes. Entendemos que o diálogo com interlocutores ativos e dispostos oferece grandes possibilidades de realizar o trabalho de extensão comunicativa popular. Este artigo apresenta os principais resultados alcançados por nosso coletivo em seus seis anos de existência e debate os caminhos da extensão popular para a área de Relações Internacionais.

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    Educar Para o Mundo: Experincia Extensionista Popular para Direitos Humanos e MigraesEducar Para o Mundo: Popular Academic Outreach Experience in Human Rights and Migrations

    RESUMO

    A proposta do Educar para o Mundo repensar a forma como se estuda e se atua na rea de Relaes Internacionais, especialmente nos projetos de extenso da rea, ins-pirados em autores que pensam criticamente sobre a forma como a rea acadmica se relaciona com a sociedade qual pertence. A exemplo de Paulo Freire, decidimos ir alm da sala de aula para nos inserirmos na realidade dos imigrantes latino-ameri-canos em So Paulo. Iniciamos nosso trabalho em uma escola pblica que abrigava uma porcentagem significativa de crianas bolivianas e que tinha uma dificuldade considervel em lidar com este grupo. Aps anos de uma relao profcua, porm difcil e desgastante, percebemos que o modelo de escola tradicional com que traba-lhvamos oferecia mais barreiras do que novos caminhos para expandir nossa atua-o com os migrantes e optamos por fortalecer nossa presena nos espaos pblicos e junto aos movimentos organizados de imigrantes. Entendemos que o dilogo com interlocutores ativos e dispostos oferece grandes possibilidades de realizar o traba-lho de extenso comunicativa popular. Este artigo apresenta os principais resultados alcanados por nosso coletivo em seus seis anos de existncia e debate os caminhos da extenso popular para a rea de Relaes Internacionais.

    Palavras-chave: Extenso Comunicativa. Educao para Direitos Humanos. Migrao.

    ABSTRACT

    Educar para o Mundo is a collective work aimed at rethinking how the area of Interna-tional Relations could be studied and acted upon, especially regarding the academic outreach initiatives in the area. It is mostly inspired by authors that think critically about how the academic area relates with the society it belongs to. Following the work of Paulo Freire, we decided to go beyond the classrooms to actively work with

    C o l et i vo E d u c a r Pa r a o Mu n d o : A l l a n G r e i co n M ace d o L i m a , A n a Ca ro l i n a M a z z o t i n i , Au g u sto M a l a m a n, Au g u sto Ve l o s o L e o, Ca i o M a d e r , Ca ro l i n a Ta ka h a s h i , C l au d i o Cava l c a n t e , G u i l h e r m e A ro s a O t e ro, G u stavo P e r e i r a , Hu g o S a lu st i a n o, M a rt i n E g o n M a i t i n o, Nat l i a L i m a d e A r a j o e P h i l l i p W i l l i a n s Universidade de So Paulo Instituto de Relaes Internacionais, So Paulo, Brasil

    Rev. Cult. e Ext. USP, So Paulo, n. 13, p.65-82, maio 2015DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v13i0p65-82

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    the reality lived by Latin-American immigrants in the city of So Paulo. We have be-gun our work in a public school whose student body includes a significant number of Bolivian-origin children and faced many difficulties in dealing with this group. After years of a proficuous relationship, albeit difficult and demanding, we realised that the traditional educational model presented more barriers than pathways to expand our work with migrant groups and opted to strengthen our presence in public spaces and together with organized migrant social movements. We understand that dialog with active interlocutors offers great chances of doing a communicative outreach work. This article presents our main results in our six years of existence and debates oppor-tunities for popular outreach in the area of International Relations.

    Keywords: Communicative Outreach. Education for Human Rights. Migration.

    INTRODUO

    O coletivo de extenso Educar para o Mundo (EpM) surgiu em 2009, por iniciativa conjunta dos estudantes do curso de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo, organizados no Centro Acadmico Guimares Rosa, e da professora Deisy Ventura, como um projeto de extenso para trabalhar os direitos humanos dos migrantes e a valorizao da cultura latino-americana. A experincia prvia dos estudantes e da coordenadora com o desenvolvimento de atividades de extenso comunicativa popular facilitou os primeiros momentos de criao e elaborao das atividades do coletivo e possibilitou a formao de uma estrutura que trabalhasse com bastante autonomia e mantendo a centralidade da preocupao acadmica, o que posteriormente possibilitou o surgimento do atual coletivo de extenso. Os objetivos de nossas atividades se concentram em trazer uma perspectiva concreta de prtica extensionista para o curso de Relaes Internacionais, como alternativa tendncia comum do curso em privilegiar o ensino e a pesquisa em detrimento da extenso, assim como responder falta de iniciativas para superar a distncia

    Figura 1 Oficina de grafite na Praa Kantuta

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    estabelecida entre esta rea acadmica e a sociedade em que est inserida. Ao mesmo tempo, Relaes Internacionais um curso que estabelece vnculos fortes com o poder institucional e, por vezes, acaba tornando-se pouco afeito a possibilidades de intervenes transformadoras na sociedade.

    O trabalho norteado pelo conceito de pedagogia da autonomia defendido por Paulo Freire e fundamentado eticamente pelos princpios da solidariedade e da hos-pitalidade. Estes foram os pontos de partida para decidirmos trabalhar com os temas da educao para os direitos humanos e da educao para a valorizao da cultura latino-americana, com uma perspectiva especialmente voltada para a incluso social. O tema da migrao internacional foi escolhido por ser central para as Relaes In-ternacionais contemporneas e garantiu que o coletivo encontrasse seu espao no ambiente universitrio desse campo do conhecimento. O Educar para o Mundo pas-sou, ento, a articular o conhecimento acadmico para possibilitar a construo dos instrumentos bsicos de mobilizao frente a temas que demandam engajamento da sociedade civil e nos quais os movimentos sociais desempenham papel fundamental. Por esse motivo, nosso trabalho compreende ao mesmo tempo a ao junto aos mi-grantes, especialmente os latino-americanos, um slido trabalho junto comunidade que os acolhe, assim como, a reflexo acadmica sobre a migrao e sobre a prpria atuao do coletivo.

    Desde seu incio, o EpM focou na questo dos direitos humanos dos migrantes latino-americanos na cidade de So Paulo por meio da busca do dilogo horizontal com seus interlocutores: comeamos nosso trabalho com a comunidade escolar da EMEF Infante Dom Henrique, no bairro do Canind, em So Paulo e depois expan-dimos nosso foco em busca dos espaos ocupados pelas comunidades migrantes e suas entidades. A escola foi escolhida como primeiro local de atuao porque muitos de seus alunos eram imigrantes latino-americanos. Posteriormente, visando articu-laes com maior diversidade de atores sociais, nosso campo de ao se expandiu da escola para as associaes de migrantes. A partir da, a luta por alteraes na legisla-o migratria e pela efetivao de polticas pblicas para os migrantes se tornaram os temas centrais de nossa atuao. Paralelamente, nossas atividades, no contexto da universidade, possibilitaram que discutssemos tambm a transformao da es-trutura curricular universitria, de modo a torn-la mais prxima da sociedade. Um de nossos maiores esforos trazer para a rea acadmica o aprendizado construdo em nossas experincias externas, atravs da publicao de artigos, da promoo de palestras, de debates e de exposies.

    Este artigo busca sistematizar nossas experincias e atividades ao longo dos seis anos do Educar para o Mundo, apresentando os conhecimentos que acumulamos nas aes desenvolvidas em extenso popular comunicativa e em educao no formal em direitos humanos. Apresentaremos nossos objetivos, atividades e tambm algumas avaliaes sobre nosso trabalho, buscando delinear a metodologia que utilizamos e os resultados obtidos, mesmo que muitos dos resultados sejam, na verdade, difusos e difceis de medir. Observando nosso histrico de atividades, pretendemos, ainda, demonstrar como um coletivo universitrio extensionista pode ter um papel impor-tante no dilogo poltico entre a sociedade a universidade, bem como contribuir para

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    a articulao da sociedade civil com governos e outras esferas da poltica institucional.

    O INC IO DAS AT IV IDADES

    A parceria com a Escola Municipal Infante Dom Henrique, localizada no bairro do Canind, em So Paulo, na qual cerca de 12% do corpo discente imigrante *, iniciou--se em 2009. Nosso primeiro passo foi buscar uma aproximao com o corpo docente e com a coordenao da escola por meio de reunies no espao da Jornada Especial Integral de Formao ( JEIF) e de uma discusso gerada a partir da exibio do fil-me francs Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet [8]. A discusso possibilitou as primeiras reflexes sobre os problemas enfrentados diariamente naquela escola e pudemos tambm ver quais eram as dificuldades advindas da grande quantidade de alunos imigrantes. Foi com as discusses realizadas nesses encontros que recolhemos as primeiras indicaes de como poderamos abordar o tema das migraes na escola.

    No segundo semestre de 2009, comeamos a promover oficinas diversas para de-bater a questo dos direitos humanos com os alunos, especialmente os alunos da 5 8 sries. Realizamos encontros quinzenais com atividades livres de troca de saberes e buscamos estabelecer um espao sem hierarquias e mais informal do que as aulas curriculares. Uma de nossas preocupaes era garantir que todos os participantes ti-vessem a mesma possibilidade e interesse de interveno. Nessas oficinas, buscamos atividades que facilitassem a aproximao do indivduo com os temas trabalhando, principalmente atravs do uso da arte e de elementos culturais, dois aspectos centrais para a educao popular dos direitos humanos.

    Ainda em setembro de 2009, realizamos uma oficina de grafite nos muros da In-fante Dom Henrique para introduzir a questo da ocupao do espao pblico, mas tambm, como forma de romper o cinza da cidade e do cotidiano daquela regio. Acreditamos que o grafite ajudou a estimular o exerccio do direito fundamental da liberdade de expresso, especialmente ao promover a discusso sobre a identidade e auto-representao dos alunos e sobre as violaes cotidianas aos direitos huma-nos que eles viviam. Nossa percepo de que os desenhos da oficina de grafite so uma forma de concretizao visual das discusses que realizamos nos encontros e representam a maneira como os estudantes viam e viviam as violaes de direitos debatidas.

    *Dados da prpria escola poca indicavam que, em 2009, 85 dos cerca de 800 alunos eram imigrantes ou filhos de imigrantes, a grande maioria bolivianos (Inventrio EMEF Infante Dom Henrique, 2009). Em uma tendncia similar, o Censo escolar de 2010 estimava que os migrantes correspondessem a aproximadamente 41 mil alunos no Ensino Bsico em So Paulo, ou 7% do total de matrculas [17].

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    Em outra atividade, uma oficina de quadrinhos, realizamos uma discusso sobre a Declarao dos Direitos da Criana da ONU (1959). Os alunos abordaram os pro-blemas de convivncia e de discriminao na escola e no seu dia a dia, assim como as violaes dos direitos das crianas que vivenciavam a partir de histrias em qua-drinhos digitais confeccionados por eles prprios**. A terceira oficina de 2009 tra-balhou a questo da preservao da identidade com atividades de fotografia com mquinas pinhole construdas com caixa de papelo, tinta e papel fotogrfico. Com o tema Auto Retrato, os alunos registraram momentos individuais e em grupo, que foram utilizadas para suscitar o debate a respeito de suas autoimagens, da percepo de pertencimento e da identidade de grupo.

    Ao longo de 2010, trs oficinas proporcionaram um contato mais forte com gru-pos e movimentos sociais alm dos muros da escola, e tiveram o objetivo de aliar as discusses sobre educao pblica, espao pblico e suas relaes com os direitos humanos. Para a primeira oficina, sobre o acesso educao pblica, convidamos educadores do Cursinho Comunitrio Pimentas (Guarulhos-SP) para mediar um debate sobre os problemas que os alunos enfrentavam na prpria EMEF Infante Dom Henrique. Na segunda oficina, promovemos a discusso sobre os espaos pblicos prximos a eles (a escola e as praas da regio) e os espaos da USP (incluindo uma visita Universidade). O debate acabou por realar a percepo de que esses espaos no so apropriados pela comunidade do municpio e os alunos se questionaram se seriam, portanto, espaos verdadeiramente pblicos. Na terceira oficina, os alunos organizaram uma exposio das fotos que tiraram na visita USP e realizamos um debate que buscou conjugar as reflexes das duas oficinas anteriores.

    Mais um passo na diversificao das atividades do coletivo foi dado em 2011,

    ** Foram feitos dois vdeos a partir das histrias em quadrinhos. Jos Luiz Choque apresentou uma histria sobre preconceito em uma escola e Litza criou uma histria sobre discriminao de gnero em uma famlia .

    Figura 2 Oficina de Gra-fite na EMEF Infante Dom Henrique.

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    quando o Educar para o Mundo participou, junto com o corpo escolar, da elabora-o do Projeto Poltico Pedaggico da EMEF Infante Dom Henrique. A proposta era trazer para o centro das discusses escolares a questo da diversidade, foco do traba-lho do EpM e uma preocupao da nova direo da escola. A partir dessa proposta, iniciou-se o planejamento de um ciclo de formaes para a comunidade escolar, ela-borado em conjunto com os prprios professores, em que utilizamos os Crculos de Culturacomo instrumento para avaliao dos temas a serem trabalhados, visando o aprofundamento da conscincia crtica das pessoas envolvidas e o desenvolvimen-to do Projeto Poltico Pedaggico. Os temas que resultaram mais relevantes foram a questo da identidade, o direito educao e o direito cidadania. Ao mesmo tempo, em uma atividade que unia os alunos e professores do colgio, propusemos um proje-to de confeco de uma Cartilha de Direitos Humanos pelos alunos e professores dos Ciclos 1 e 2. Escolhemos cinco direitos humanos direito identidade, educao, mobilidade, ao lazer e organizao social e desenvolvemos atividades ldicas nas quais os alunos eram estimulados a vivenciar cada um desses direitos e estabelecer um novo significado para esses direitos baseando-se em suas prprias experincias.

    Na atividade sobre mobilidade, fizemos um jogo com os alunos, abordando a ques-to dos smbolos nacionais, como bandeira e hino, e problematizamos vrias situa-es que acontecem durante o trnsito de pessoas, tais como as arbitrariedades dos rgos de migrao, o maior valor dado aos documentos do que aos direitos dos seres humanos, e tambm os preconceitos e esteretipos em relao queles que migram. Na atividade sobre identidade, trabalhamos com a msica Gabriela, tratando a ques-to da identidade como um elemento fluido de nossa personalidade, alm da questo do estigma que algumas identidades sofrem e do preconceito com relao a alguns grupos humanos. O resultado foi sistematizado em uma grande colcha de retalhos formada por pedaos de tecidos pintados pelos alunos, nos quais eles retratavam a maneira como se enxergavam. Dando continuidade a esse trabalho, trouxemos os alunos para dentro da universidade, em uma roda de conversa e uma oficina com o Ncleo de Conscincia Negra da USP. Nesta atividade, os estudantes analisaram seus prprios livros didticos em busca de imagens de negros e negras, com o propsito de introduzir uma discusso sobre a imagem do negro em nossa sociedade e sobre seu papel social. A oficina sobre educao, por sua vez, abordou os limites da educa-o formal e procurou valorizar o conhecimento no formal: os estudantes compar-tilharam experincias de coisas que aprenderam fora da sala de aula, com amigos e familiares, especialmente. Os resultados foram sistematizados em um livro escolar alternativo confeccionado pelos prprios estudantes. J na oficina sobre o direito ao lazer, buscamos trabalhar a questo da apropriao do espao pblico, levando os alunos a uma praa que existe perto da escola, na qual ocorre, aos domingos, uma das maiores feiras latino-americanas da cidade de So Paulo, a Praa Kantuta. Os estu-dantes tambm elaboraram esquetes sobre o tema do direito ao lazer e escolheram os tpicos que desejavam discutir. Alguns esquetes, como, por exemplo, o que abordou a gravidez precoce e sua interferncia no lazer dos jovens, demonstra, em nossa opi-nio, o potencial de politizao e viso crtica que esses jovens puderam desenvolver.

    Uma das ltimas atividades do ciclo sobre os direitos foi a exibio de

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    curtas-metragens em um momento de unio entre professores e alunos. Nessa ativi-dade, pudemos observar com muita clareza a evoluo pela qual haviam passado tanto os alunos e professores da Infante Dom Henrique quanto os integrantes do Educar para o Mundo. A maior evoluo que percebemos foi entre os alunos, que propuseram discusses muito interessantes sobre os vdeos com argumentos bastante elaborados e se mostraram muito mais vontade de manifestar suas opinies e percepes do que os docentes. Por fim, promovemos um debate sobre o direito organizao poltica a partir das mobilizaes que ocorriam na Universidade de So Paulo no fim de 2011 e que buscavam, principalmente, refletir sobre a falta de segurana dentro da USP e sobre a presena da Polcia Militar dentro do campus. A atividade surgiu do interesse manifestado pelos prprios alunos e, em nossa viso, demonstra o desenvolvimento de uma curiosidade especial sobre movimentos reivindicatrios. No debate, os es-tudantes estavam interessados em contrastar as percepes contraditrias sobre as mobilizaes, que eram muitas vezes reconhecidas como baderna. Os alunos reali-zaram, ento, uma pesquisa pela escola, perguntando aos funcionrios sobre as mo-bilizaes das quais eles haviam participado. Ao final, os estudantes analisaram que a entrevista mostrava a falta de engajamento dos funcionrios da escola em questes polticas e os estudantes demonstraram vontade em mudar essa situao, procurando envolver-se nas questes polticas da cidade.

    ARTICULAO COM MOVIMENTOS SOCIAIS E O RETORNO PARA O AMBIENTE ACADMICO

    Desde o incio de nossa atuao em extenso, procuramos criar e fortalecer iniciativas com movimentos sociais formados por imigrantes, ou que atuam com este pblico. Consideramos que essas organizaes que possuem forte potencial para construir conhecimento e trabalhos inovadores, uma vez que possuem a confiana dos imi-grantes e dialogam diretamente com eles, alm de apresentar estrutura material e organizacional que possibilitam gerir iniciativas mais elaboradas.

    Neste contexto, participamos da criao do Frum Social pelos Direitos Humanos e Integrao dos Migrantes no Brasil (FSDHIM), um grupo formado por diversas organizaes da sociedade civil e alguns coletivos. O objetivo deste frum a troca de experincias entre as entidades participantes, a construo conjunta de uma atuao poltica para efetivar a imigrao como um direito humano e fundamental, garantindo que o rol de direitos dos imigrantes seja compatvel com as obrigaes constitucionais e internacionais que o Brasil adota, e a reflexo sobre as iniciativas e as polticas de integrao de imigrantes. Em dezembro de 2012, o FSDHIM, o Instituto de Relaes Internacionais da USP (IRI-USP instituio de filiao do Educar para o Mundo) e a Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de So Paulo, organizaram o semin-rio Por uma Poltica Municipal de Migrao em Defesa da Vida e da Dignidade dos Trabalhadores Imigrantes e suas Famlias, que marcou o incio de debates constantes sobre a poltica de migrao para a cidade de So Paulo e que culminou finalmente na I Conferncia Municipal de Polticas para Imigrantes. O Educar para o Mundo e

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    o Frum atuaram ativamente na construo da Conferncia, que foi organizado por entidades da sociedade civil e pela Prefeitura Municipal de So Paulo em novembro de 2013. O Frum tambm atuou, por meio de eventos, manifestos e contato com parlamentares, para que se consolide uma mudana na legislao de migrao que amplie a proteo aos direitos humanos dos imigrantes.

    Nos ltimos anos, nossos aliados mais prximos dentro do movimento social de imigrantes so duas organizaes no governamentais: o CDHIC Centro de Di-reitos Humanos e Cidadania do Imigrante, e o CAMI Centro de Apoio ao Migran-te. No Brasil, a mobilizao poltica de imigrantes limitada pela legislao da Lei 6815/1980, que impede a organizao poltica de pessoas sem cidadania brasileira. Por causa disso, praticamente toda mobilizao poltica em torno da causa migrante realizada por ONGs de brasileiros e pelos sindicatos profissionais.

    Com o CAMI, o CDHIC e outras entidades que compem o FSDHIM, o Edu-car para o Mundo trabalhou na organizao das cinco ltimas edies da Marcha do Imigrante, que ocorre todos os anos no ms de dezembro e busca dar visibilidade para os diversos temas da causa migrante, alm de se constituir em um importante espao de luta e de formao poltica. Outro trabalho importante que o Educar para o Mundo realizou em parceria com o CDHIC foi a coordenao da Consulta Regio-nal da Sociedade Civil em preparao ao Dilogo de Alto Nvel das Naes Unidas sobre Migrao e Desenvolvimento, em junho de 2013. A Consulta foi organizada pela Rede Sul-americana Espao Sem FronteirasESF, e coordenada pelo CDHIC, com apoio do Educar para o Mundo, da Coalizo Global de MigraoCGM (da qual ESF associado), da ONG Presena da Amrica LatinaPAL, da Secretaria Nacional de Justia e do Conselho Nacional de Imigrao do Ministrio do Trabalho e Emprego. Esse evento foi um instrumento para que a sociedade civil latino-americana pudesse oferecer suas perspectivas sobre o tema da migrao para o Dilogo de Alto Nvel que ocorreu no segundo semestre na ONU, elaborando conjuntamente um documento apresentando suas demandas para o organismo internacional.

    Outra parte de nossa atuao em extenso consiste em trazer para o ambiente acadmico os conhecimentos que construmos e adquirimos junto comunidade de imigrantes em So Paulo. Para efetivar esse relacionamento de mo dupla, o Edu-car para o Mundo se dedica a ser um espao de formao para os alunos do IRI-USP, promovendo reunies semanais para discutir os temas de interesse do coletivo, alm de organizar mesas de debate e de escrever artigos que efetivem o encontro dos co-nhecimentos de migrantes e de especialistas. Desse modo, conseguimos trazer para dentro do Instituto de Relaes Internacionais da USP o tema dos direitos humanos dos imigrantes a partir de diversas perspectivas. Em nossas reunies semanais, reser-vamos um espao para fazer discusses atualizadas sobre a situao dos migrantes no Brasil e no mundo, debater as lutas polticas e de identidade de grupo que so levadas a frente pelos grupos migrantes e definir a atuao do coletivo com relao s demandas que surgem dos movimentos sociais de imigrantes e das entidades que trabalham os direitos humanos dos imigrantes.

    Entre as mesas que promovemos recentemente, esto A Nova Migrao Negra no Brasil, inserida no evento Maio Cultural Sarar Crioulo: as diversas cores do negro,

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    do Centro Acadmico Guimares Rosa, do IRI-USP, a Etapa Preparatria Livre para a I Conferncia Municipal de Polticas para Imigrantesw e um debate sobre a interface possvel entre extenso e migrao. Em 2014, tambm realizamos um debate sobre o Anteprojeto de Lei de Migraes do Ministrio da Justia na mesa Nova Lei Migra-tria Brasileira, discutimos a participao dos imigrantes nos Conselhos Participati-vos da cidade de So Paulo e, por fim, trouxemos refugiados de vrias nacionalidades para um debate que visava sensibilizar para o tema do refgio no pas. A produo bibliogrfica do coletivo compreende uma srie de artigos, como o publicado na Revista Ideias, da Universidade de Campinas [16]; e o apresentado no Congresso Ibero-americano de Extenso Universitria, realizado na Argentina, e publicado na Revista Direito & Sensibilidade [14]. Atualmente, alm do EpM, o IRI-USP conta com diversas produes sobre migraes, que tema de pesquisas de graduao, mestrado e doutorado.

    A educao popular, a autogesto e os debates relacionados extenso comuni-cativa so tambm parte das discusses realizadas dentro do Educar para o Mundo. Buscamos realizar uma reflexo constante sobre nosso trabalho e de seu impacto na forma como nos relacionamos com os migrantes, com outros grupos sociais e mesmo entre os prprios integrantes do coletivo. Assim, nossas reflexes tambm envolvem a prpria estrutura e organizao do coletivo, uma vez que um de nossos objetivos que nossos membros possam se apropriar dos conceitos e da prtica da extenso comunicativa popular e utiliz-los para uma ao transformadora na sociedade. Para isso, tambm mantemos contato com outras organizaes extensionistas, como o Escritrio Piloto (Laboratrio Interdisciplinar de Extenso Universitria da Escola Politcnica da USP) e a Frente de Extenso da USP.

    ABORDANDO OS DIRE ITOS JUNTO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS DE MIGRANTES

    O Educar para o Mundo procura funcionar de maneira dialgica e realiza atividades que ofeream oportunidades de aprimoramento para a comunidade de migrantes,

    Figura 3 Mesa Extenso e Migrao.

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    que nossa principal interlocutora, e para seus prprios integrantes. Isso significa que boa parte de nossa atuao pautada pelas demandas dos prprios imigrantes, com base nas situaes que eles vivem diariamente. Ao reconhecer esse interlocutor, decidimos nos aproximar mais das organizaes envolvidas na luta pelos direitos dos imigrantes, e desenvolvemos atividades concretas de educao popular que fossem pautadas pelas demandas desses movimentos. Foi a partir dessa perspectiva que or-ganizamos oficinas sobre a legislao migratria no pas, sobre o Estatuto do Estran-geiro, bem como sobre as propostas de modificao para o Estatuto, principalmente o Projeto de Lei 5655/2009 em tramitao na Cmara dos Deputados desde 2009 e o Projeto de Lei do Senado 288/2013, apresentado em 2013.

    Comeamos a realizao dessas oficinas durante a preparao para a 6 Marcha do Imigrante em 2012, cuja pautou era o trabalho decente e a cidadania universal. Uma imigrante militante, parceira do Educar para o Mundo desde o seu incio, questionou o fato de a comunidade migrante estar lutando pelos seus direitos, e, todavia, des-conhecia quais eram os dispositivos legais que lhes asseguraria tais direitos e quais eram as leis e regulamentos causadores das restries e situaes degradantes pelas quais os migrantes e refugiados geralmente passam. Surgiu, ento, a ideia de realizar as oficinas de legislao para aumentar o entendimento e os debates sobre o tema. Optamos por trabalhar com a Lei 6815/80 a atual Lei de Imigrao Brasileira , com o Projeto de Lei 5655/09, que poder substituir a atual legislao, com o atual Cdigo Penal e com sua proposta de modificao, que cria uma seo especial para os crimes cometidos por imigrantes. O contedo das oficinas foi separado em cinco eixos criminalizao da imigrao, direito ao voto, meios de comunicao, polticas pblicas e acesso a direitos e o cdigo penal. Todos os temas so abordados funda-mentados na legislao atual e nos projetos de lei que tramitam para sua modificao.

    Nossa avaliao que esse trabalho significativo no apenas pelo tema que trata, mas tambm por ser uma demonstrao concreta das possibilidades de atuar base-ando-se na pedagogia do educador Paulo Freire. Muitas vezes, conceitos freirianos como dialogicidade e horizontalidade parecem demasiadamente abstratos, mas se tornam bastante claros com a realizao das oficinas. Baseadas na prtica exten-sionista-comunicativa, as oficinas so organizadas de modo a permitir que as inter-venes do nosso interlocutor construam um dilogo mtuo, em que o intercambio de ideias possa dar novos significados para as implicaes das leis na vida diria dos migrantes. Nesse sentido, ao invs de depositarmos informao em nossos interlo-cutores, as oficinas apresentam uma breve introduo aos temas e, usando os relatos e perguntas do pblico, apresentamos os assuntos mais profundamente, privilegiando as contribuies dos migrantes para debater a legislao migratria.

    Alm disso, importante ressaltar que objetivo das oficinas que os membros do coletivo tambm aprendam. Alm de sermos confrontados com uma realidade que no a nossa, os migrantes sempre apresentam questionamentos que no sabemos exatamente como responder. A cada vez que repetimos a atividade, adaptamos o contedo das oficinas a partir da demanda concreta dos imigrantes: alguns assuntos que ns considervamos pertinentes no tm repercusso nos debates dos partici-pantes; ou os prprios migrantes demandam o debate de assuntos sobre os quais no

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    havamos pensado antes que estaria relacionado com a legislao migratria. Por es-ses motivos, consideramos as oficinas de legislao experincias muito ricas para as e os integrantes do Educar para o Mundo, especialmente por ser uma atividade de educao popular inteiramente formulada para um pblico adulto migrante. O pr-ximo passo nesse trabalho o aperfeioamento do material escrito das oficinas para auxiliar nos eventos futuros. De acordo com nossa proposta, o conhecimento no deve ficar restrito ao EpM e aos participantes das oficinas, e, ademais, nossos interlo-cutores podem se tornar replicadores dessas oficinas e promover novos encontros em suas comunidades, discutindo outros temas. Desse modo, mais que organizadores das oficinas, atuamos como facilitadores de conhecimentos sobre a legislao migratria e de como ela impacta a vida do imigrante.

    OUTROS ESPAOS, OUTRAS INTERVENES

    O Educar para o Mundo sempre teve em vista a necessidade de atuao em espaos geogrficos que so significativos poltica e socialmente para a nossa comunidade interlocutora. Desde o incio, o coletivo buscou intervir diretamente no espao da Praa Kantuta, importante espao de expresso cultural latino-americana no bairro do Canind, local onde vive uma grande parte da populao migrante em So Pau-lo, especialmente a de origem boliviana. Semanalmente, a praa palco de uma fei-ra cultural, com artesanato, msica e comidas tpicas de pases sul-americanos e foi nesse cenrio que decidimos realizar parte do dilogo com a comunidade migrante. Uma das nossas primeiras atividades na Praa foi uma oficina de grafite que props uma revitalizao do espao a partir da incorporao de elementos visuais andinos e da histria da imigrao latino americana no Brasil praa. Os frutos dessa inter-veno ainda podem ser observados na Kantuta e a grafitagem foi uma das primeiras oportunidades que tivemos de entrar em contato com as organizaes que ocupam aquele espao. Atuando na praa, conseguimos dar significado poltico para nossas atividades e, partindo do referencial geogrfico da Praa, nos aproximamos com as e os militantes envolvidos na questo migratria no municpio. Em 2012, o Educar para o Mundo teve a oportunidade de produzir um documentrio sobre a Praa Kantuta em cooperao com o Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mdias instituio que tem como misso promover o desenvolvimento profissional, sociocultural e pessoal de jovens por meio do audiovisual. A parceria envolveu oficinas com tcnicas bsicas de audiovisual com jovens migrantes da regio cujo propsito central era trabalhar as noes de espao pblico e identidade. Para isso, realizamos oficinas cinematogrfi-cas semanais, com a pretenso de inserir-nos gradativamente naquela comunidade e estabelecer bases de dilogo com os movimentos sociais de migrantes, sempre com a preocupao de realizar nossos trabalhos de forma horizontal e dialgica.

    A oficina, cujo ttulo era Mirando la Kantuta (em portugus, Olhares da Kantu-ta, mais tarde adotado como ttulo do documentrio produzido), acontecia duran-te a feira cultural aos domingos e propunha dois eixos de trabalho principais. No primeiro eixo, a oficina tinha um carter tcnico, visando ensinar os participantes,

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    preferencialmente descendentes de imigrantes, a manipular cmeras e demais aces-srios cinematogrficos, e foi realizado pela equipe do Instituto Criar. Concomitan-temente, o Educar para o Mundo direcionava o segundo eixo da oficina para realizar a reflexo sobre o papel da praa para a comunidade que ali residia ou circulava. O objetivo era discutir as primeiras impresses e os preconceitos sobre os migrantes, e questionar estas impresses, contrastando com a viso comum de serem os pre-conceitos imutveis. Assim, muito mais do que o espao de aprendizado tcnico, as oficinas propunham aos jovens (pblico majoritrio nas atividades) a apresentao e o questionamento de definies de identidade cultural e espao pblico. Esse jogo reflexivo entre tcnica e reflexo foi concretizado atravs da produo de dois docu-mentrio***. O primeiro, produzido pelos prprios jovens, buscou transmitir olha-res diversos sobre o espao da Kantuta. A relevncia do exerccio aumenta porque consideramos que o conhecimento no estanque, ao contrrio, constantemente modificado e substitudo. Nesse sentido, a oficina a expresso desse processo de modificao dos conceitos e do conhecimento pelo qual passaram seus participan-tes. O documentrio mostra, atravs de entrevistas com comerciantes e transeuntes, mltiplas perspectivas sobre a Praa Kantuta e seus significados para aquela comu-nidade e ajuda a ressignificar a praa para os produtores do vdeo.

    O segundo documentrio um registro sobre as atividades empreendidas pelos coletivos envolvidos, o Educar para o Mundo e o Instituto Criar. Seu foco veicular as impresses e o impacto das oficinas, tanto em termos objetivos para as duas or-ganizaes, como em termos pessoais, para seus respectivos membros. Neste docu-mentrio, so expostos os desafios e as conquistas da insero em um espao fsico e da construo de dilogos com as pessoas que ali vivem, procurando, em sintonia com a prtica extensionista, que ocorra um debate horizontal e dialgico. Dentre as

    *** O documentrio Mirando la Kantuta (Olhares da Kantuta) pode ser assistido em: [15]. A perspectiva dos facilitadores das oficinas pode ser assistido em: [7]

    Figura 4 Exibio dos docu-mentrios da oficina Mirando

    La Kantuta

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    mltiplas impresses que vieram tona durante nossa experincia e que so apre-sentadas no documentrio, destaca-se a complexidade da relao imigrante-nacional. Inicialmente, ns, os locais, procurvamos um contato com o grupo migrante e fo-rasteiro. Porm, o contato semanal com os migrantes acabou por promover a eroso de nossas preconcepes de forma a evidenciar que, na verdade, ns, ermos os fo-rasteiros e nos encontrvamos em terra estranha, uma vez que o espao pertencia de fato comunidade migrante. O impacto dessa relao foi essencial para desmitificar esteretipos e nos possibilitou entender que a relao nacional-imigrante ultrapassa as fronteiras fsicas entre os pases. Essa ressignificao do que significa ser migrante parte fundamental na construo da ponte de intercmbio de conhecimento que pretendemos desenvolver ao adotar a educao popular e a extenso comunicativa como mtodos.

    HORIZONTE FORMAL DE INTEGRAO ESTADO SOCIEDADE C IV IL UNIVERSIDADE

    Uma das aes mais recentes do Educar para o Mundo a participao em um projeto em parceria do IRI-USP com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cida-dania de So Paulo de acompanhamento para a criao e implementao da poltica migratria municipal junto aos atores sociais e governamentais. O projeto, chamado So Paulo Cosmpolis, coordenado tambm pela Profa. Deisy Ventura, visa a pro-mover a interao de trs pblicos: a comunidade acadmica; a comunidade migrante e os movimentos sociais de imigrantes; e os rgos governamentais envolvidos com a produo de polticas pblicas migratrias.

    O Cosmpolis planeja aes especficas para cada um desses pblicos. Com a comunidade acadmica planejamos criar uma disciplina optativa multidisciplinar de graduao sobre mobilidade humana, migraes e refgio, com o acompanhamento da Comisso de Graduao, Cultura e Extenso do IRI, a fim de associar diretamen-te ensino e extenso. Alm disso, pretende-se formar um grupo de estudos, aberto aos alunos de graduao e ps-graduao da USP, e em particular do IRI, para revi-so da literatura sobre mobilidade humana e direitos dos imigrantes. Est planeja-da a organizao de um evento acadmico internacional sobre mobilidade humana, com o acompanhamento da Comisso de Ps-Graduao do IRI, a fim de entrelaar iniciativas de pesquisa e de extenso. Alm disso, as e os estudantes envolvidas(os) no projeto realizaram o mapeamento e diagnstico da dinmica entre a populao migrante e os servios pblicos (onde esto mais presentes, quais dificuldades que enfrentam, quais pontos precisam melhorar, etc.), juntamente com a Coordenadoria de Polticas para Migrantes da Prefeitura de So Paulo e apresentaram os resultados na I Conferncia Municipal de Polticas para Imigrantes.

    Com as comunidades de migrantes e refugiados, planeja-se a organizao de cur-sos de curta durao sobre mobilidade humana e direitos, construdos junto s co-munidades de migrantes e refugiados, similares aos que j realizamos em 2012. Alm disso, planeja-se desenvolver parcerias com organizaes sociais e comunidades de

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    imigrantes para realizar atividades de educao para os direitos humanos de crianas e adultos migrantes.

    Para os servidores pblicos municipais e outros atores governamentais e sociais que lidam diariamente com migrantes internacionais organizaremos cursos de capa-citao para qualificar o atendimento a esta populao, visando difundir as normas vigentes sobre imigrao e melhorar o acolhimento de migrantes na cidade. A primei-ra oficina do tipo ocorreu dentro do curso de formao para guardas civis municipais da Prefeitura de So Paulo, chamado Mediao de Conflitos e a Promoo dos Direitos Humanos, com o tema Mediao de Conflitos Envolvendo Migrantes. Na oficina, o de-bate girou em torno de dados de imigrao no Brasil e em So Paulo, dos principais direitos dos imigrantes e dos conflitos mais comuns que ocorrem com migrantes. O objetivo era discutir e capacitar os guardas civis municipais para atuarem na garantia dos direitos humanos dos imigrantes que se envolvem em conflitos. A questo do preconceito e da xenofobia foi tambm um dos assuntos debatidos a partir das expe-rincias dos participantes da oficina.

    Ainda na dimenso de integrao entre Estado, Sociedade Civil e Universidade, o Educar para o Mundo participou da I Conferncia Nacional de Imigrao e Refgio (Comigrar), que ocorreu no incio de 2014, com uma delegao de representantes para a discusso das propostas de polticas para imigrantes. No evento, o EpM ofere-ceu uma oficina sobre Polticas Municipais para Migrantes. A oficina debateu a expe-rincia da Prefeitura de So Paulo com a Coordenadoria de Polticas para Migrantes e a experincia de outros municpios e estados. Os temas principais foram as formas de participao poltica nos Conselhos Municipais com representantes de migran-tes, maneiras de garantir a aplicao de polticas pblicas voltadas para imigrantes e o compartilhamento de experincias entre os participantes, muitos deles represen-tantes de governos municipais com interesse no tema.

    O Educar para o Mundo tambm buscou promover a valorizao da cultura mi-grante e sua integrao com a cultura brasileira por meio do Sarau do Glicrio, uma noite de apresentaes culturais organizadas para os migrantes e com a participao dos migrantes que residiam no Abrigo Municipal do Glicrio, em Junho de 2014. A atividade foi importante para promover um intercmbio inicial entre as culturas mi-grantes e brasileira, para oferecer um momento de boas vindas e descontrao para os abrigados, e para estabelecer contatos entre o EpM e novos grupos migrantes na cidade, como os refugiados haitianos, que formavam a maioria dos abrigados, segui-dos de ganeses, senegalenses e congoleses.

    Figura 5 Sarau do Glic-rio no Abrigo Municipal do Glicrio

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    CONCLUSO

    Neste artigo, atravs da descrio das atividades realizadas pelo Educar para o Mundo nos seus seis anos de existncia e da apresentao de seus projetos futuros, buscamos discutir possibilidades para a prtica extensionista em Relaes Internacionais. Pro-curamos demonstrar algumas especificidades de projetos de extenso baseados no dilogo com seus interlocutores e debater a importncia da adaptao do projeto s demandas que surgem deste dilogo. Em nosso caso, o projeto de extenso se localiza entre a comunidade migrante em So Paulo e a comunidade acadmica.

    Os espaos pblicos ocupados por migrantes, bem como seus espaos de articu-lao, se mostram diversos, assim como devem ser diversas nossas formas de abor-dagem. Ainda que princpios freirianos de educao popular em direitos humanos e posies polticas do coletivo tornaram-se denominadores comuns em nosso traba-lho, cada espao ocupado e o perfil de cada um de nossos interlocutores exigem de ns a capacidade de ressignificar a extenso universitria em suas diversas dimenses.

    A atuao na escola nos demandou entender e questionar a realidade do (filho do) migrante no ambiente escolar. O fato de lidarmos com vrios estudantes, muitos de-les no-migrantes, nos levou a focar os debates na interao do estudante migrante com os estudantes brasileiros e fez com que nossa atuao se expandisse para alm dos direitos diretamente ligados migrao, resultando em oficinas sobre direitos hu-manos em uma concepo mais ampla. No curso do projeto, encontramos algumas barreiras com a estrutura formal do sistema educacional, que nos fizeram optar por redirecionar nossa atuao para espaos onde pudssemos estar mais diretamente envolvidos com movimentos sociais dos migrantes.

    Nossas atividades extensionistas em Relaes Internacionais com os movimentos sociais dos migrantes consistem, essencialmente, em nossa participao no Frum Social pela Integrao e Direitos Humanos dos Migrantes, assim como nas Cpulas Sociais do Mercosul, na construo de Marchas do Migrante, na realizao de oficinas sobre legislao migratria brasileira e na articulao com os governos municipal e federal pela promoo dos direitos dos migrantes no Brasil. Em nosso trabalho, procu-ramos reconhecer que as demandas nesses espaos se referem a dilemas e dificuldades concretas que os migrantes vivem em seu dia a dia e com as quais o meio acadmico costuma lidar de maneira superficial, ou secundria. Envolver-se com essas questes traz a tona novas perspectivas sobre as migraes e sobre o impacto que a integrao e as polticas pblicas tm no cotidiano dos imigrantes e cria novas possibilidades de pesquisa e de abordagem terico-metodolgicas para o campo.

    O retorno oferecido para a Universidade e a comunidade acadmica permite valo-rizar a viso dos imigrantes sobre as tenses e problemas de pesquisa que so analisa-dos pelos pesquisadores e multiplicar os pontos de vista sobre a questo da imigrao. O espao de formao do estudante e pesquisador tanto na temtica da imigrao, quanto nas questes relacionadas com a extenso comunicativa, o dilogo horizontal como mtodo e os debates sobre autogesto e educao popular desenvolvem habi-lidades pessoais e profissionais que permitem uma viso crtica sobre a realidade e aumentam a possibilidade de uma atuao transformadora na sociedade.

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    Finalmente, gostaramos de concluir com a defesa do papel que um coletivo uni-versitrio extensionista pode ter na sociedade, incidindo de fato no meio em que est inserido e o alterando significantemente. Reconhecemos que, alm da importncia da extenso comunicativa no dilogo poltico que se pretende estabelecer entre a socie-dade civil e a universidade, o trabalho com a extenso popular apresenta uma contri-buio para a articulao com governos e outras esferas da poltica institucional, trans-formando a relao e os conceitos previamente estabelecidos para esta articulao.

    REFERNCIAS

    [1] ASSEMBLEIA Geral da Organizao das Naes Unidas. Declarao dos Di-reitos da Criana da ONU Adotada em 1959.

    [2] BENEVIDES, M. V. Educao para a democracia. Lua Nova. Revista de Cul-tura e Poltica, v. 38, p. 223-237, 2004.

    [3] BRANDO, C. R. Refletir, discutir, propor: as dimenses de militncia intelec-tual que h no educador. In: BRANDO, Carlos R. (org.) O educador: vida e morte. So Paulo, Editora Graal, 1982, pp. 71-89.

    [4] BRASIL, Cmara dos Deputados. (1980) Lei 6815/1980, Disponvel em:

    [5] BRASIL, Cmara dos Deputados. (2009) Projeto de Lei 5655/2009, Dispo-nvel em:

    [6] CANDAU, V. M. Direitos Humanos, Educao e Interculturalidade: as tenses entre igualdade e diferena. Revista Brasileira de Educao, v. 13, n. 37. 2008

    [7] DOCUMENTRIO KANTUTA. Oficina Olhares da Kantuta(organizadores). Org.: Educar para o Mundo, e Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mdias. Brasil: 2012. Video disponibilizado na internet (6min 3seg): son., color. Port.

    [8] ENTRE les Murs. Direo de Laurent Cantet. Produo de Caroline Benjo e Carole Scotta. Frana: 2008.

    [9] ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL INFANTE DOM HENRIQUE. Inventrio da presena migrante na EMEF Infante D. Hen-rique (mimeo). So Paulo, 2009.

    [10] FREIRE, P. Extenso ou comunicao? 10. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

    [11] _______. Educar. O sonho possvel. In: BRANDO, Carlos R. (org.) O edu-cador: vida e morte. So Paulo, Editora Graal, 1982, pp. 89-103.

    [12] _______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.[13] MAGALHES, G. M. Fronteiras do direito humano educao: um estudo

    sobre os imigrantes bolivianos nas escolas pblicas de So Paulo. Disser-tao (Mestre em Educao) Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

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    [14] MASTELARO, C.; OTERO, G. A. P.; BRAGA, R. S., FIRBIDA, T. P., SAN-TOS, T. H. Extenso em relaes internacionais: por uma nova prxis. Revista Direito & Sensibilidade v.1, n.1, 2011. Disponvel em:

    [15] MIRANDO LA KANTUTA. Oficina Olhares da Kantuta(participantes). Org.: Educar para o Mundo, e Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mdias. Brasil: 2012. Video disponibilizado na internet (3min 51seg): son., color. Port.

    [16] MORAES, I. Educar para o Mundo. Extenso em Relaes Internacionais: Direitos Humanos e Imigrao em So Paulo. Revista Ideias. v. 1, n. 5, 2012. Disponvel em < http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/1039/737> Acessado em: 30 jun. 13

    [17] PIMENTEL, C.; TAMI, J. A chegada dos imigrantes. Revista Educao, edi-o 174. So Paulo: Editora Segmento, out. 2011.

    EDUCAR PARA O MUNDO (EPM) um coletivo de extenso universitria do Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) que atua com educao popular em Direitos Humanos, junto populao migrante de So Paulo e-mail: [email protected] blog:

    ALLAN GREICON MACEDO LIMA graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP)e atua no EpM desde 2011 e-mail: [email protected]

    ANA CAROLINA MAZZOTINI graduanda em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2012 e-mail: [email protected]

    AUGUSTO MALAMAN graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2012 e-mail: [email protected]

    AUGUSTO VELOSO LEO doutorando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2010 e-mail: [email protected]

    CAIO MADER graduanda em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2012 e-mail: [email protected]

    CAROLINA TAKAHASHI graduanda em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected]

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    CLAUDIO CAVALCANTE graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected] AROSA OTERO graduado em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da USP e Assessor da Coordenao de Polticas para Migrantes da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de So Paulo. Atua no EpM desde 2009 e-mail: [email protected]

    GUSTAVO PEREIRA graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected]

    HUGO SALUSTIANO graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected]

    MARTIN EGON MAITINO graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected]

    NATLIA LIMA DE ARAJO graduanda em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2011 e-mail: [email protected]

    PHILLIP WILLIANS graduando em Relaes Internacionais no Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo (IRI-USP) e atua no EpM desde 2013 e-mail: [email protected]

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