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EDUCAÇÃO PARA A CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Edmerson dos Santos Reis 1 Introdução Quanto mais nós saímos do litoral brasileiro e adentramos as regiões interioranas, mais os indicadores sociais, que avaliam a educação, a saúde, a expectativa de vida ao nascer, entre tantos outros, vão se tornando aberrantes, e absurdos. Esses mesmos indicadores vão piorando ainda mais quando a avaliação atinge o campo, denunciando assim vulnerabilidade dos direitos de gerações diversas que habitam nossos municípios, onde a renda que assegura as famílias, muitas vezes não chega a um salário mínimo, pessoas que no seu dia-a-dia não tem direito de se alimentar três vezes ao dia, situação bem comum no Semiárido Brasileiro(SAB). O Semiárido abrange 11 estados brasileiros, estando presente nos 09 estados do Nordeste. No Sudeste, estende-se pelo Vale do Jequitinhonha e o norte de Minas de Minas Gerais alongando-se até o norte do Espírito Santo. A inclusão desses dois Estados do Sudeste, diz respeito à área de atuação da RESAB, do UNICEF, do Banco do Nordeste e da antiga SUDENE, pela similaridade climática da região norte desses dois estados. É dessa região compreendida como Semiárido Brasileiro, da qual iremos discorrer neste trabalho, destacando os desafios e possibilidade de se construir outro projeto de desenvolvimento, onde a educação exerce um papel ímpar. Sendo assim, todas as vezes que eu me referir à educação contextualizada, no caso específico deste artigo, estarei fazendo alusão à educação baseada nos princípios da Convivência com o Semiárido e da Educação do Campo, até porque a maioria dos nossos municípios apresenta características rurais. Só para se ter uma idéia, se fôssemos classificar os municípios brasileiros a partir dos critérios defendidos por José Lins da Veiga, teríamos que refazer uma nova demarcação, uma nova compreensão do campo brasileiro, pois nesta nova perspectiva, a maioria dos nossos municípios seria classificada como rural, mas por uma estatística e um critério adotado pelo IBGE, herança do período Varguista, a maioria dos municípios é considerada 1 Professor do Departamento de Ciências Humanas Campus III da Universidade do Estado da Bahia, Pedagogo, Mestre em Educação, Especialista em Desenvolvimento Local, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia UFBA e Membro da RESAB e da Comissão Nacional de Educação do Campo. e-mail: [email protected] .

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EDUCAÇÃO PARA A CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO:

DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Edmerson dos Santos Reis1

Introdução Quanto mais nós saímos do litoral brasileiro e adentramos as regiões interioranas,

mais os indicadores sociais, que avaliam a educação, a saúde, a expectativa de vida ao

nascer, entre tantos outros, vão se tornando aberrantes, e absurdos. Esses mesmos

indicadores vão piorando ainda mais quando a avaliação atinge o campo, denunciando

assim vulnerabilidade dos direitos de gerações diversas que habitam nossos municípios,

onde a renda que assegura as famílias, muitas vezes não chega a um salário mínimo,

pessoas que no seu dia-a-dia não tem direito de se alimentar três vezes ao dia, situação bem

comum no Semiárido Brasileiro(SAB).

O Semiárido abrange 11 estados brasileiros, estando presente nos 09 estados do

Nordeste. No Sudeste, estende-se pelo Vale do Jequitinhonha e o norte de Minas de Minas

Gerais alongando-se até o norte do Espírito Santo. A inclusão desses dois Estados do

Sudeste, diz respeito à área de atuação da RESAB, do UNICEF, do Banco do Nordeste e da

antiga SUDENE, pela similaridade climática da região norte desses dois estados.

É dessa região compreendida como Semiárido Brasileiro, da qual iremos discorrer

neste trabalho, destacando os desafios e possibilidade de se construir outro projeto de

desenvolvimento, onde a educação exerce um papel ímpar. Sendo assim, todas as vezes que

eu me referir à educação contextualizada, no caso específico deste artigo, estarei fazendo

alusão à educação baseada nos princípios da Convivência com o Semiárido e da Educação

do Campo, até porque a maioria dos nossos municípios apresenta características rurais.

Só para se ter uma idéia, se fôssemos classificar os municípios brasileiros a partir dos

critérios defendidos por José Lins da Veiga, teríamos que refazer uma nova demarcação,

uma nova compreensão do campo brasileiro, pois nesta nova perspectiva, a maioria dos

nossos municípios seria classificada como rural, mas por uma estatística e um critério

adotado pelo IBGE, herança do período Varguista, a maioria dos municípios é considerada

1 Professor do Departamento de Ciências Humanas – Campus III da Universidade do Estado da Bahia,

Pedagogo, Mestre em Educação, Especialista em Desenvolvimento Local, Doutorando em Educação pela

Universidade Federal da Bahia – UFBA e Membro da RESAB e da Comissão Nacional de Educação do

Campo. e-mail: [email protected].

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urbana, existindo por aí municípios que tem apenas uma rua calçada, e os demais serviços

básicos de atendimento à população são considerados de péssima qualidade.

Sendo assim, quando nos referirmos ao nosso contexto, estamos falando do Semiárido

Brasileiro. É desse espaço que iremos discorrer neste artigo e da Educação insurgente que

vem propondo outro modelo de desenvolvimento para esta região, a Educação para a

Convivência com o Semiárido.

O contexto do Semiárido como fundamento para se pensar outro projeto de

desenvolvimento regional

Entendemos que o contexto do Semiárido é uma construção humana, e assim como o

contexto, também aquilo que se fez historicamente é uma construção humana, e, portanto,

possível de ser revertida, a depender da nossa vontade política de modificar as coisas.

Na compreensão de Albuquerque Jr.(1999), a idealização e delimitação geográfica do

Nordeste Brasileiro trazem a marca de um ranço negativo, criado pela elite nordestina, com

vistas a atender apenas os seus interesses, e que vai fundamentar a criação desta região. Para

esse autor, foi esse ranço da elite nordestina, forjou a criação do Nordeste, na contramão da

história, sendo suportado inclusive, na idéia de calamidade originada no clima e

principalmente, na manifestação do fenômeno da seca.

Foi a utilização desse fator climático, que permitiu se criar a idéia de calamidade

pública que até hoje vigora na idéia e no imaginário social da população do nordeste e do

Brasil como um todo que vai compreender o Semiárido apenas pela representação

idealizada da fome, da miséria, quando na verdade existem muitas outras coisas nessa

região, que precisariam de maior visibilidade e que muitas vezes a imprensa não se

preocupa em mostrar, pois quando se fala em seca na imprensa nacional se fala exatamente

das regiões do agreste onde muitas vezes se cria o gado e logo na primeira falta de chuva, se

os criadores não possuírem reservatórios ou outras fontes de água, o gado morre.

Então, a caveira do gado que aparece na imprensa nacional não é o bode, que está

sobrevivendo, resistindo às intempéries do clima e segurando as famílias no Semiárido, mas

sim do bovino, que inapropriado para a região, continua sendo criado sem se levar em

consideração as condições climáticas e a adaptabilidade desses animais à região. É essa a

imagem que foi criada para favorecer uma elite brasileira e que é preciso envidar esforços

na tentativa de romper com esse cenário da artificialidade. É essa uma das construções

humanas que precisa ser desconstruída, pois esse ranço cultural reacionário contribui para a

fabricação de “uma identidade de inclinação despótica”.

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O que se desdobrou desta matriz regionalista foi a proliferação de “obras”

que retrataram a imagem de penúria ligada às secas e às calamidades,

produzindo uma cultura do coitado, que deve ser merecedor da pena e da

ajuda das outras regiões do país. Mas nada mais se fez em termos de

tematizações sérias em nome deste vasto e rico ecossistema, de seus biomas,

de suas potencialidades humanas. Apenas muito recentemente estamos

conhecendo estudos, especialmente desenvolvidos pela EMBRAPA, que

tem protagonizado tal reflexão. (MARTINS, 2004, p.50).

Conforme as problematizações realizadas nos espaços de discussão e nas publicações

da Rede de Educação do semiárido Brasileiro (RESAB), outro elemento desse contexto é a

caricaturização da região e dos que nela vivem. Ou seja, é uma região que é vista por uma

caricatura que criaram da gente. A imprensa nacional e os que escreveram sobre esta região,

tendo como parâmetros apenas uma época do ano, ou apenas um ângulo da região, criaram

uma caricatura do Semiárido. Os livros didáticos que circularam e circulam na nossa região

afirmaram essa caricatura da região, onde o sujeito que vive no Semiárido é visto como o

“matuto”, é um “sujeito sem saber”. É essa a imagem caricaturada que se criou do

Semiárido e que ainda está presente entre nós e que nós também que aqui vivemos,

terminamos por assumi-la e proliferá-la.

Ao absorvermos esse imaginário, nós não falamos de nós por aquilo que nós somos,

por aquilo que vivemos, por aquilo que sentimos, mas por aquilo que nos ajudaram a

inculcar que nós somos. Ou seja, cria-se e introjeta no sujeito a impossibilidade de solução

dos problemas, porque produzem o sentimento de impotência de um sujeito que não têm a

condição superar-se a si mesmo e nem de superar as condições e vulnerabilidade em que se

vive. Essa manifestação está presente e sendo reafirmada pela própria maneira reacionária

de se fazer política nessa região.

Conhecer com orgulho o extraordinário privilégio da responsabilidade, ter consciência dessa liberdade rara, desse poder sobre si e sobre seu destino, aí

está quem penetrou até as profundezas últimas de sua pessoa e que se tornou

instinto, instinto dominante – que nome lhe dará a esse instinto dominante,

supondo que sinta a necessidade de conferir-lhe um nome? Isso não oferece

dúvida alguma: o homem soberano o chamará de sua consciência...

(NIETZSCHE, 1887, p.58)

O Semiárido é um território complexo e rico que desconhecemos. Existem inúmeros

estudos que vão confirmar isso. Por exemplo, na EMBRAPA - Semiárido, em Petrolina -

PE, agora o INSA – Instituto Nacional do Semiárido2, que também pode ser outro espaço

fundamental para se pensar o desenvolvimento dessa região. Ou seja, mais uma força para –

2 É um Instituto criado recente, ligado ao Ministério das Ciências e Tecnologias, estabelecido em

Campina Grande, que construiu o seu plano estratégico de ações através de uma consulta pública, para

pensar as áreas estratégicas de atuação desse importante órgão.

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através do apoio à pesquisa, à ciência e à tecnologia irmos desvendando essa complexidade

que é o Semi-árido, com a sua riqueza, com as suas potencialidades e possibilidade.

O Semiárido não possui um único ecossistema; para se ter uma idéia, existem mais de

170 micro-climas, cada um com a sua diferença, com sua complexidade e que nada disso é

considerado, principalmente quando se fala de educação, de políticas de desenvolvimento

pois as políticas são sempre generalizantes e universais, não consideram as diferenças, as

particularidades, as singularidades dos fazeres e saberes que se encontram em cada um dos

lugares desta região.

Outro elemento que trago sobre esse contexto do Semiárido é o descaso histórico

parte do modus operandi da política tradicional, que precisa ser revertido com relação à

atuação nesta região condenando-a ao abandono. Não deixamos de reconhecer que nos

últimos governos muitas ações já foram desenvolvidas a partir de outra concepção de

desenvolvimento que leva em conta a idéia de convivência, principalmente no governo

Lula. São muitas as ações que vêm sendo desenvolvidas e voltadas para o Semiárido.

Parece que é o resgate e a devolução de uma dívida histórica, de um modelo de

desenvolvimento que foi centrado no eixo Sul e Sudeste do país, e que abandonou as

regiões mais necessitadas, resultando assim em um país com tantas desigualdades onde o

desequilíbrio no desenvolvimento regional se faz tão claramente.

É importante ver e ressaltar essas ações que estão sendo desenvolvidas pelo poder

público é uma tentativa de reverter o quadro de vulnerabilidade dos direitos que ainda se faz

presente no Semiárido, mas não podemos deixar de trazer para a reflexão um elemento

fundante, que é a necessidade da articulação das políticas públicas. Seria interessante

centralizar os recursos públicos e as ações, pois às vezes, em um mesmo município, existem

três, quatro ações voltadas para o mesmo objetivo e elas não dialogam entre si na

implementação no município e nem lá em Brasília, onde são pensados e construídos os

programas e projetos diversos.

Nessa perspectiva, então, é preciso potencializar a articulação das políticas para que

elas sejam mais efetivas, eficazes e de fato, relevantes para os sujeitos aos quais se

destinam. Com isso vamos potencializar os recursos ao invés de pulverizá-los, e buscar as

reais saídas para os problemas que são tão terríveis no Semiárido, investindo melhor os

recursos, para que resultem em melhorias concretas nas condições de vida da população

regional.

Somos uma região promissora, por exemplo, o pólo Juazeiro -BA e Petrolina – PE,

hoje desponta com a vocação para a vinicultura, para a ovinocaprinocultura e para a

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fruticultura irrigada. Ou seja, um novo roteiro turístico e de produção de divisas e geração

de emprego e renda vai surgindo, e isso é só uma das potencialidades. O turismo em vários

estados do Semiárido tem crescido e outras potencialidade ainda não descobertas precisam

ser reveladas, descobertas para que possam ser incentivadas pelas políticas públicas com

vistas a promoção de um projeto de desenvolvimento justo, inclusivo e sustentável para a

região, criando oportunidades de geração de emprego e renda para as pessoas das

comunidades locais, valorizando assim as potencialidades humanas do Semiárido.

A Educação para convivência como aliada do desenvolvimento regional

Quando nos referimos à Educação, perguntamos: o que tem que ver a educação com

desenvolvimento regional sustentável? Quais respostas são dadas a este questionamento? É

preciso que a Educação toque nessas questões, pois as políticas públicas precisam ser

articuladas no seu conjunto.

Do que é que a educação vem tratando no sentido de ajudar as pessoas a “saírem do

seu lugar”? E não é sair do seu lugar por meio da migração, é sair do seu lugar no que se

refere a construção de um conhecimento que lhe permita intervir no mundo em que se vive,

por meio da compreensão e da articulação dos conhecimentos e saberes diversos na

compreensão do mundo. Ou seja, é um deslocamento no campo do alargamento das idéias,

da maneira de ser e estar no seu mundo. É essa condição que a educação precisa criar.

Em desenvolvimento e em educação os principais recursos são, obviamente,

as pessoas. Onde há pessoas a ação educativa é possível e a compreensão e

transformação da realidade social podem tornar-se obra coletiva, baseada nos

princípios da endogeneidade, da globalidade e da participação. (CANÁRIO,

1997, p.18)

O SAB é uma região promissora, de um povo trabalhador, mas que pela desigualdade

construída no processo de desenvolvimento predatório implantado no Brasil, tem servido

para figurar com os piores indicadores de desenvolvimento humano nesse país, igualando-

se em alguns casos com países mais pobres da África.

Ainda sobre o contexto do qual falamos, frisaria que reportamo-nos mais a esse

Semiárido tido como urbano, imagine como isso se faz no campo, naqueles lugares aonde

para você chegar tem que andar três, cinco, dez quilômetros para achar uma casa; onde

muitas vezes nos perguntamos como que as pessoas conseguem viver em um lugar tão

distante e tão carente. Muitas vezes, esses sujeitos não entram nos indicadores que estamos

trazendo. As estatísticas que temos não dão conta da realidade que temos no Brasil, pois

elas trabalham em uma perspectiva por amostra que não dá conta de pegar o real, apenas se

tem uma aproximação.

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Mesmo com todas essas problemáticas, ainda assim, é uma região e um povo que vêm

construindo a partir da organização de diversos atores, outras possibilidades e projetam

outras estratégias de desenvolvimento que precisam ser consideradas em um projeto de

nação.

A RESAB, por exemplo, é um desses espaços, que vem discutindo que não dá para

pensar o desenvolvimento desse país, sem se ter um projeto de nação. Pensar o campo

brasileiro num projeto de nação é definir com clareza de que lado estamos. Nós temos dois

ministérios, um que discute a agricultura, pecuária e outro que discute o desenvolvimento

agrário, mais voltado para os mais carentes que vivem no campo, enquanto que o outro

dedica-se mais ao agronegócio. Então, que projeto de país, de nação estamos construindo?

A favor de quem e de qual lado nos colocamos?

Para pensar um projeto de nação é preciso considerar também aquilo que vem sendo

construído a partir das organizações, dos diversos atores que estão na sociedade. No

Semiárido Brasileiro, por exemplo, nós temos a Articulação do Semiárido (ASA), a

RESAB, as organizações não-governamentais, muitas iniciativas do poder público que

também precisam ser potencializadas e que muitas vezes no conjunto da construção das

políticas públicas essas experiências não são levadas em conta. Ou, quando são, tentam

replicá-las da mesma forma, sem considerar exatamente o elemento do contexto. As

metodologias, as referências podem ser repensadas, não podem ser replicadas da mesma

maneira, precisam ser reconstruídas a partir de cada contexto. Como nos lembra Freire,

O que quero dizer é que uma mesma compreensão da prática educativa e uma

mesma metodologia de trabalho não operam necessariamente de forma

idêntica em contextos diferentes. A intervenção é histórica, é cultural, é

política. É por isso que insisto tanto em que as experiências não podem ser

transplantadas mas reinventadas. Em outras palavras, devo descobrir, em

função do meu conhecimento tão rigoroso quanto possível da realidade, como

aplicar de forma diferente um mesmo princípio válido, do ponto de vista de

minha opção política. (FREIRE, 2001, p.28)

O Semiárido é um espaço inclusive onde a insurgência de inúmeras iniciativas tipo a

RESAB, a ASA, o Pacto dos Governadores – um mundo para a criança e o adolescente do

Semiárido, são espaços interessantes de buscas, embora precisemos avançar muito ainda

naquilo que os governadores assumem; transformando em ações concretas os itens que são

pactuados. Tem um rol de compromissos pensados, que não foram efetivados e cada vez

que se avalia, novos elementos vão sendo propostos.

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São essas iniciativas (ASA, RESAB, Pacto dos Governadores, Selo-Unicef Município

Aprovado, Rede abelha, Rede Semente, ações nas universidade, nas ONG’s entre outras)

que vem demonstrando a possibilidade da construção de outra realidade, mas que é preciso

determinação e vontade política para que estas adentrem, como diria o companheiro

Antonio Munarin3, à “corrente sangüínea" do estado. Não se pode mais admitir que essas

experiências venham sendo premiadas anualmente pelas mais variadas organizações,

inclusive por aqueles que comandam o poder público, mas que não lhes ajudam a pensar as

próprias políticas do estado. É preciso que a aprendamos com aquilo que temos ajudado a

construir, por dentro ou por fora do estado, servindo inclusive de parâmetro para

ressignificar as nossas ações.

Pensemos por exemplo na universidade. Este é um lugar que tem que vir e abrir

espaço para esta discussão; ela precisa verdadeiramente, constituir-se num espaço de

socialização e construção de novos conhecimentos e saberes. Muitas vezes a universidade

vai lá na comunidade, na ONG, ajuda a construir um projeto excelente em uma determinada

realidade, mas ela não consegue apreender as aprendizagens desse processo e, a partir da

própria experiência que ela ajudou a construir, transformar-se por dentro.

Precisamos aprender a se exercitar essa dialética da superação de si, nas nossas

próprias práticas. Isso tem sido evidente no campo das políticas públicas. Ou seja, o

Semiárido precisa ser pensado a partir de uma estratégia articulada entre governo e

sociedade civil, tendo como inspiração as diversas iniciativas bem sucedidas que já existem

e o forjar da inovação de outras tantas quantas forem necessárias.

Não dá mais pra ficarmos presos apenas aos conceitos, a clareza destes é importante,

mas é preciso que eles avancem no campo das políticas brasileiras, e mesmo que

lentamente, temos avançado nesse campo. Mas não podemos nos prender aos avanços e

achar que já resolvemos tudo, existem inúmeros espaços coletivos de proposição e

avaliação das políticas públicas, nos quais estão presentes, diversos atores da Sociedade

Civil. Temos a Comissão Nacional de Educação do Campo (CONEC), da qual a RESAB

faz parte, que é um espaço super interessante de construção de política pública, mas que

mesmo assim, vamos percebendo que necessita de avançar mais, no sentido de fazer

acontecer os desejos e vontades dos povos que estão no campo.

Nesse sentido, esse contexto do qual falamos também é um espaço político, social,

cultural, econômico, ambiental, que ainda nos exige firmeza política para mexer em

3 Ex- Coordenador Nacional de Educação do Campo da SECAD/MEC e Professor da UFSC.

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questões cruciais e fundamentais na reordenação do desenvolvimento humano e sustentável

da região.

Não dá para pensar desenvolvimento no Semiárido Brasileiro sem se reportar à

questão do acesso a água, a terra assim como aos latifúndios que ainda vigoram nessa

região. Não dá para se pensar em desenvolvimento humano nessa região se não tocamos na

questão do financiamento das pequenas empresas, dos pequenos produtores, dos

agricultores. Não dá para não pensar em um desenvolvimento que não compreenda o papel

da educação nesse processo, não dá pra construir o desenvolvimento sem que ele seja

participativo, sem se contemplar a inclusão dessas questões. Se assim não for,

continuaremos a fazer a política de desenvolvimento no papel que não se efetiva na prática.

Um processo inovador e inclusivo, precisa mexer trazer soluções inovadoras e

contextualizadas, que ajudem o agricultor a sair da situação viciosa, que fica todo ano

dependendo do ciclo da safra e ou do seguro para sobreviver. A gente não emancipa o

sujeito, a gente não cria condições concretas de superação da pobreza se não tocamos nessas

questões. E aí, não dá para ficar o tempo todo repetindo as mesmas questões enquanto a

pobreza continua.

É preciso que a gente avance nessa perspectiva de tocar naquilo que é essencial e

assim fazer de fato uma educação contextualizada, comprometida com o processo de

emancipação humana. Não dá para se pensar tudo isso se não tratamos desses elementos na

escola. Todos os dias nós temos nas salas de aula milhões de crianças, jovens e adultos, e a

perguntamos: que é que a escola ajuda a construir enquanto outras formas de pensar o

mundo, a sociedade, o lugar onde se vive, o desenvolvimento sustentável, as relações de

gênero, a cultura, a moralização da política entre outras questões não menos importantes?

A educação enquanto direito subjetivo, definido pela Constituição Federal (1998) é

algo básico e essencial na vida das pessoas, estando aí outra reforma que se faz necessária.

É desse contexto do Semiárido que nos detemos a explicitar, desse lugar real, concreto,

cultural, social e político, mas é dentro do mesmo que precisamos questionar também sobre,

que proposta de educação nos ajuda a consolidar as intenções do que até então temos

tematizado.

Já que temos afirmado o compromisso com as problemáticas que envolvem os povos

do Semiárido, que tipo de Educação estamos nos propondo a defender enquanto Rede de

Educação do Semiárido, Comitês, Fóruns Estaduais de Educação do Campo, Poderes

Públicos, Organizações Não-governamentais e Universidades?

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Enquanto rede, defendemos uma educação que se opõe a todo e qualquer processo

pedagógico de descontextualização, que não respeita a condição de vida concreta das

pessoas, que não respeita as condições materiais em que elas vivem, pois não dá mais para

pensar a educação como algo distante, algo que está marcado pela descontextualização dos

conhecimentos e dos saberes.

Ao estudar, por exemplo, as dinâmicas migratórias que

constituíram a própria cidade onde vivem, as crianças tendem a

encontrar cada uma a sua origem, segmentos de sua identidade, e

passam a ver a ciência como instrumento de compreensão da sua

própria vida, da vida da sua família. A ciência passa a ser

apropriada, e não mais apenas uma obrigação escolar. (DAWBOR,

2006, p.02)

Os meninos não aprendem as coisas e não vêem sentido naquilo que aprendem, pois a

falência do atual modelo de escola a entrincheira contra si mesma, não se preocupando com

a aprendizagem e com o avanço dos seus conhecimentos dos seus alunos.

Defendemos uma Educação que compreende que o Semiárido constitui em si uma

realidade particular que merece e deve ser tematizada na escola, nas suas problemáticas e

potencialidade vendo na escola um espaço para a ampliação dos conhecimentos e saberes

diversos. Uma Educação que valoriza o seu quadro de profissionais, pois, não podemos

pensar a educação deixando de lado os seus profissionais, pois são eles que na prática

efetivam a política e a proposta pedagógica e que dão conta de fazer acontecer as políticas

públicas, muitas vezes gestadas nos gabinetes.

Temos constatado em processos avaliativos junto a inúmeras iniciativas bem

sucedidas, que não adianta a melhor das propostas pedagógicas se os educadores se

opuserem a ela, se eles não são valorizados para fazer acontecer. O educador não vai

ensinar nada além daquilo que ele já sabe, é preciso investir na sua formação intentando a

ampliar mais ainda o seu universo intelectual. Vou dar um exemplo concreto para vocês:

recentemente foi realizada uma prova nos municípios brasileiros, prova equivalente ao

conhecimento dos anos iniciais do ensino fundamental para os meninos dessa fase. Em um

determinado município, que por questões éticas não revelarei o nome, a mesma prova foi

aplicada para alunos e professores. No resultado, os alunos tiveram notas melhores que as

dos professores. É um absurdo? Pensem o cúmulo!!! O que é que estamos ensinando nas

nossas escolas?

A Formação continuada não existe em muitos dos nossos municípios. Os estados

possuem uma política mais concreta para a formação dos seus educadores, mas em muitos

municípios, as jornadas pedagógicas, quando existem, resumem-se a um planejamento

realizado por assessorias que chegam com tudo pronto, reúnem o professorado uma vez no

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início do semestre, passam a receita e vão embora, não demonstrando qualquer

compromisso com a mudança da educação. Com essa “política de formação” os nossos

educadores não evoluem, não conseguem ultrapassar o limite do conhecimento que

possuem.

Convencer-se e vibrar com um indicador de quatro e meio do atual Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), numa escala que vai de zero a dez, eu não

consigo. Na minha concepção, temos que evoluir muito, nesse sentido também. Se estamos

na defesa de uma educação que valorize seu quadro de funcionários e que investe

dignamente os recursos desse setor na melhoria e superação dos indicadores negativos, não

dá para pensar a educação sem metas, sem plano estratégico daquilo que se pretende

alcançar com vista à qualidade, à relevância do ensino e à aprendizagem dos alunos.

Defendemos uma educação que traz nas suas práticas educativas o desafio de

exercitar a contextualização e interdisciplinaridade como estratégia para contrapor-se aos

males da pedagogia moderna que se pautou pelos princípios da neutralidade, da formalidade

abstrata e da universalidade dos saberes e das práticas, como bem defende Martins (2004).

Foi assim que sempre se fez nesse país e no mundo, uma educação pautada nos princípios

europeus que a gente nem sequer sabe por que estudamos isso ou aquilo, ou seja, uma

educação universalista que precisava chegar a todos os lugares do mesmo jeito como se as

pessoas fossem exatamente da mesma forma. Então não dá para pensar e defender um

modelo de educação que se paute pela formalidade abstrata, em uma única perspectiva

universalizante. A Universalidade não considera o contexto, a particularidade, não dialoga

com os atores locais e com os seus saberes, porque estes são considerados menores e não

devem entrar na escola.

Defendemos uma educação que compreende que “todo saber é singularizado em

cada sujeito a partir de suas referências e que, portanto, todo saber é local”. Os sujeitos

constroem os seus conhecimentos a partir da rede que eles vão tecendo no dia-a-dia, e que é

nessas redes de conhecimentos, de trocas, nesses encontros, que os saberes e os

conhecimentos são tecidos e reconstruídos. Isso precisa ser considerado pela escola.

É dentro dessa escola, é dentro dessa perspectiva de educação que a RESAB e que

todos aqueles que têm compromisso com uma educação emancipadora, se colocam e que

vem sendo construída com muito embate, principalmente nos movimentos de sociais. Não

dá para pensar uma educação que desconsidera a questão agrária, que torna-se “neutra”

diante dos conflitos sociais e que não traz isso para a tematização na escola.

Fazemos opção por uma educação que fundamenta–se no contexto, como ponto de

partida e de chegada dos conhecimentos e saberes diversos, mas que, no entanto, não o isola

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ao próprio local. E aí há algo importante, pois quando advogamos por uma educação que

tem no contexto o ponto de partida e de chegada dos conhecimentos, não estamos dizendo

que este é o lugar da cerca que se cria em torno do sujeito e que o aprisiona juntamente com

o conhecimento, mas falamos de uma educação que busca a extrapolação do conhecimento.

Optamos por atuar em uma perspectiva de educação insurgente, que compreende o

contexto implicado em uma teia de muito mais ampla de referências, fluxos, conexões e

sentidos que extrapolam o recorte espacial de um território local, que compreende que os

conhecimentos não são isoláveis e nem isolados na realidade, mas que os sujeitos precisam

ampliar cada vez mais, a dimensão daquilo que já conhecem.

Uma educação que precisa fazer sentido na realidade vivida pelas pessoas, no lugar

onde elas vivem, pois se a educação não está a favor de um modelo de desenvolvimento

sustentável e integrado ela desconsidera todas as particularidades locais. Mas, se ela está a

favor desse modelo de desenvolvimento, ela tem que tornar-se uma ferramenta fundamental

para que as pessoas se libertem, se emancipem, que a partir do local elas saibam atuar

melhor sobre o meio em que vivem e possam assim, viver mais felizes.

É essa educação que vem sendo gestada pelos movimentos sociais, pela sociedade

civil, e por algumas iniciativas governamentais que também precisam ser consideradas

como prioritárias em um projeto de nação, em outro projeto de desenvolvimento humano,

sustentável e integrado para o Semiárido Brasileiro. São inúmeras as experiências que já

mostram boas saídas aos problemas presentes na escola tradicional. Porém, mais uma vez

pergunto: o essas iniciativas têm ensinado? O que temos aprendido com elas para que

possamos rever as nossas políticas e práticas educacionais?

Nós não podemos nos dar ao luxo de continuar tendo ilhas de prosperidades para

alguns, enquanto a maioria das nossas crianças e adolescentes está em escolas sem as

mínimas condições, inclusive de acesso a água. Em muitas escolas do Semiárido as crianças

têm acesso à água que nem a animal se deveria servir. Então é preciso que revolucionemos

um monte de coisas que ainda se mantém por aí.

Vamos defender também, uma educação onde o campo não seja compreendido como

uma continuidade do urbano, nem compreendido como um recurso a ser explorado, mas

como possibilidade de respeito e valorização dos sujeitos que aí vivem, que seja

instrumento de qualificação para a vida e fundamento de outro projeto de desenvolvimento

sustentável do campo brasileiro. Lembramos que existem tantos campos quanto são as

singularidades dos mesmos. O campo do Semiárido é um, o do Litoral é outro, o das

pessoas que vivem nas ilhas é outro, o dos pescadores é outro, mas ainda assim, com toda

essa diversidade estão unidos do mesmo interesse da valorização dos seus espaços, das suas

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singularidade e por isso mesmo devem estar incluídos em um projeto de nação para o

campo brasileiro.

Nesse sentido, é preciso levar em consideração essas questões e a compreensão da

educação enquanto elemento de qualificação dessas pessoas para que elas, a partir do acesso

ao conhecimento e bens e serviços a que têm direito, melhorem cada vez mais as suas

condições de vida.

Fazer uma educação nessa perspectiva, em que essa idéia de contexto seja o ponto de

partida e de chegada, no espaço da escola urbana, ou mais especificamente, na educação do

campo e na educação do Semiárido brasileiro, não é tão fácil de se concretizar, pois urge o

desprendimento de várias questões e signos que estão arraigados nos sistemas e nos

educadores.

Às vezes falamos da educação do campo, dando a entender que a educação da cidade

vai às mil maravilhas e não é bem assim. Os meninos da cidade vão visitar as iniciativas de

educação do campo inovadoras e eles saem de lá dizendo: como eu gostaria de estudar em

uma escola dessas! A escola não me ensina a pensar sobre o mundo em que eu vivo!

Isso é um desafio, porque para se pensar uma educação no contexto do Semiárido, no

contexto do campo brasileiro é preciso que passemos a assumir no movimento, as

dificuldades presentes na própria gestão do que é o sistema público, o que muitas vezes

emperra o acontecer e torna muito lento os processos.

Um exemplo bem concreto: as Escolas das Famílias Agrícolas têm mais de quarenta

anos no Brasil; elas fazem educação pública não–estatal, mas existe um empecilho legal que

impede o governo de apoiar essa iniciativa da família agrícola. Esse é um problema da

própria gestão do público que precisamos repensar. Claro que repensar com cuidado,

porque muitas vezes podemos abrir uma portinha e de repente você abre uma porteira onde

muitos outros que não tem compromisso com o público possam estar passando pela brecha

da lei. Mas não podemos desconsiderar, pois isso é um fato que precisa ser repensado nesse

país.

Então, precisamos assumir aquilo que vem sendo constituído tensitivamente pelos

movimentos sociais para qualificar a gestão do sistema público, aquilo que vem sendo

produzido na construção coletiva, no apoio da gestão compartilhada da educação no SAB.

Como é que isso pode ser assumido pelo estado no sentido de estar qualificando

melhor nosso sistema público, principalmente nos municípios onde as coisas podem

acontecer ou não?

Outro um exemplo vem de um município que conhecemos, que também por questões

éticas não revelaremos o nome. Pois bem, nesse município, a professora se achou no direito

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de fazer das suas práticas e ações aquilo que ela bem entendesse. Como não tem o

monitoramento das práticas, pois o sistema não consegue dar conta de saber quem é que

está em cada sala de aula; o que cada professor vem fazendo; então as coisas acontecem a la

vonté. Em uma dessas situações, a professora, porque tinha apenas vinte alunos na sala de

aula, e desses, dez estavam bem à frente nos conhecimentos, a mesma se achou no direito

de liberá-los para irem para casa. Ou seja, a velha idéia do mais forte e do mais fraco. Se o

educador não tem a capacidade para dar conta de uma sala com essa diversidade, o sistema

tem a obrigação de criar as condições para que ele dê conta disso, mas ele não tem o direito

de negar os dias letivos e de aprendizagem aos seus alunos.

Isso é um vício de um sistema que não está bem organizado e que termina permitindo

que essas aberrações aconteçam. Não estou culpando o professor, pois este é uma peça

fundamental, mas muitas vezes, se o sistema permite, ele se acomoda. Então é preciso que o

sistema dê conta de ser mais efetivo, acompanhe as práticas que vem acontecendo e consiga

mapear as suas competências para cumprir melhor com as suas atribuições, e não

transformar a educação em faz-de-conta.

Forjar uma educação de qualidade é também investir na construção de um currículo

descolonizado e contextualizado. Descolonizar o currículo passa por romper com o seu

caráter preconceituoso, que desconsidera o negro, que apresenta o índio como símbolo da

preguiça, que fundamenta livros os didáticos em produto do mercado e não de facilitador da

aprendizagem e de acesso ao conhecimento. Sendo assim, é preciso descolonizar essas

idéias e essas imagens que estão dentro do livro didático.

Também faz parte dessa opção de educação, a efetividade do direito à formação

inicial e continuada dos nossos quadros, o que constitui-se em outro grande desafio, pois

esse é um direito que vem sendo negligenciado, sendo que muitas vezes os nossos

educadores têm que desembolsar para pagar sua formação já que o sistema não tem

garantido e o que chega para ele são os cursos dos finais de semana das universidades

particulares ou das empresas de eventos, que muitas vezes não dão as mesmas condições de

formação para os educadores dos cursos regulares. Se nós quisermos mudar a educação

precisamos investir nisso também.

Democratizar a gestão e os espaços da educação é algo inadiável, pois a escola não

pode ser um espaço do diretor, precisa ser um espaço da comunidade educativa, ser um

espaço do qual os pais e alunos sintam-se partes dela, porque senão ela passa a figurar

apenas como um prédio que não significa nada para aquela comunidade.

Investir em materiais autóctones para a região, que tragam as suas trajetórias

históricas, as suas formações culturais, as suas possibilidades, as suas gentes. A RESAB

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teve uma experiência com o Livro Didático - Conhecendo e Semiárido - volumes I e II, o

Piauí construiu recentemente um material próprio “Conhecendo o Semiárido Piauiense”,

que está sendo utilizado pelos seus educadores; o Ministério da Educação vem apoiando

iniciativas nesse sentido, mas é preciso mais proposição, é preciso que nós tenhamos mais

capacidades instaladas, o que é outro grande desafio dos municípios, principalmente quando

se fala de propor políticas públicas.

Outro elemento a destacar é que, mesmo quando há compromisso político para se

repensar a educação, se não temos nos municípios a capacidade instalada, as políticas não

acontecem. Um exemplo disso tem sido a dificuldade e burocracia para se elaborar um

projeto para o MEC! Essa dificuldade contribui para que a cada ano, os recursos que são

destinados para apoio a projetos retornem, sejam remanejados, porque os projetos não

chegam, e quando chegam, muitos deles não conseguem sequer receber a denominação de

projetos, pois não atendem as exigências. Elaborar um projeto para quaisquer dos

ministérios é um problema enorme, é um deus-nos-acuda, sem se levar em conta que

muitos municípios desconhecem estas outras fontes e caminhos de financiamento, pois

vivem apenas das transferências constitucionais.

Ao se discutir uma política para as classes multisseriadas, os especialistas de gabinete

acham-na a melhor coisa do mundo, mas vá perguntar para o professor que está na sala

multisseriada o que ele acha de estar nesse ou em outro formato ou organização do espaço e

do tempo da sua turma para ver o que ele responde. Eu particularmente, nunca achei entre

aqueles e aquelas aos quais fiz esse questionamento, um que fosse favorável. Mas se é uma

realidade, uma problemática, a gente tem que buscar as melhores saídas. Isso é somente

para ilustrar como são pensadas as políticas que não tocam nesse contexto e, é preciso que

elas dialoguem com aqueles que vivem e fazem a educação.

O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do

indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o

conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no

modo como configura uma personalidade, um caráter, uma

sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de

estar no mundo que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-

se) e uma estética (um estilo). Por isso também o saber da

experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer,

ninguém pode aprender da experiência de outro a menos que essa

experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.

(BONDIA, p. 03, 2008)

Não da para replicar as experiências se não reconstruirmos o caminho de novo, onde

a coisa está chegando, levando em conta as próprias dinâmicas locais, porque sem isso,

faremos de novo a reprodução, um neo-colonialismo.

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Considerações finais

Portanto, a Educação Contextualizada e para a Convivência com o Semiárido

Brasileiro, não pode ser entendida como o espaço do aprisionamento do conhecimento e do

saber, ou ainda na perspectiva de uma educação localista, mas como aquela que se constrói

no cruzamento cultura – escola – sociedade - mundo. A contextualização neste sentido não

pode ser entendida como a inversão de uma lógica curricular construtora e produtora de

novas excludências.

Com isso, não se está propondo apenas trocar a uva pela maçã ou a caixa d’água pela

cisterna ou pelo o que quer que seja. É o sentido e a significação daquilo que está colocado

nos livros didáticos; não é você trocar a pêra pelo umbu, não é isso. Mas é o sentido e o

significado que o umbu tem na vida das pessoas, na relação daquele fruto com o meio

ambiente, daquela árvore no ecossistema e na cadeia produtiva local e muito mais. Isso é

construção do conhecimento e não somente substituição de imagens e ou textos, porque se

fosse assim, estaríamos investindo na mesma perspectiva, construindo o mesmo processo de

exclusão, só que agora, a partir do contexto.

É esta a concepção de educação que vem sendo materializada em inúmeras práticas

educativas realizadas pelos movimentos sociais, pelas ONG´s, pelas pastorais, pela RESAB,

pelo poder público e por muitos educadores que se encontram espalhados pelo Semiárido

Portanto, não somente nessa região, mas em todo o Brasil, a Educação somente será

um direito subjetivo efetivo, quando cada um de nós, no lugar onde nos encontramos puder

contribuir com a nossa parte nesse caminho em direção à transformação do atual estado das

coisas.

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