educação física brasileira: autores a atores da década de 1980
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UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
FACULDADE
DE EDUCAO FSICA
EDUCAO FSICA BRASILEIRA
AUTORES E
ATORES
DA DCADA DE 80
JOCIMAR DAOLIO
CAMPINAS
997
f-
i.H4 C.4.ifl?'
i lOTECA
Cfi. \ Tlt:At.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE
DE
EDUCAO FSICA
EDUCAO FSICA BRASILEIRA:
AUTORES E ATORES DA DCADA DE 8
JOCIMAR DAOUO
Orientador:
Prof
Dr
Wagner
W ey
Moreira
Este exemplar correspomle redao
final
da
tese de doutoramento
defendida por Jodmar Daolio e
aprovada pela comisso julgadora em
23 de Abril de 1997
Data:
Campinas
1997
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c
o
807 l
FICHA CAT ALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA- FEF UNICA\1P
D238e
Daolio, Jocimar
Educao Fsica brasileira: autores e atores da dcada de 80 Jocimar
Daolio. -- Campinas,
SP
: [s
n
], 1997.
Orientador: Wagner Wey Moreira
Tese doutorado)- Universidade Estadual de Campinas, Faculdade
de Educao Fsica.
1 Educao fsica- Discursos, ensaios e conferncias.
2
Etno
grafia.
3
Discusses e debates.
4
Educao Fsica- Brasil - 1980-.
I Moreira, Wagner Wey.
IL
Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Educao Fsica.
IH
Ttulo.
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COMISSO JULG DOR
Prof . Dra.
Maria
Beatriz Rocha
erreira
J 1 r ? K { _ , ? v . V ; ~
Prof . Dra.
Maria
Lucia Montes -------- ..--L ~ _ _ _ L - - - = - - - . . ~ -
Prof. Dr. Nelson Carvalho Marcellino
it
l
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ara
Celi Go Joo Lino Medina
Victor e Vitor que alm de toda
capacidade intelectual esprito
desbravador e originalidade so
pessoas apaixonadas e apaixonantes
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SUM RIO
RESUMO
ABSTRACT
I INTRODUO 1
II. O OLHAR ANTROPOLGICO 4
1 Pressupostos da Antropologia Social 4
2 A Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz 8
3 A Antropologia Interpretativa
no
Quadro das Antropologias 13
4
A Etnografia do Pensamento
17
4.1. Somos Todos Nativos 20
4.2. Os nativos da Educao Fsica Brasileira 24
UI A CONSTRUO DO DEBATE ACADMICO DA
EDUCAO FSICA BRASILEIRA 27
IV. OS AUTORES/ATORES DO PENSAMENTO
ACADMICO DA EDUCAO FSICA BRASILEIRA 44
1
Pressupostos Metodolgicos 44
2 Os Principais Personagens 50
2.1. Victor Matsudo 50
2.2. Joo Paulo Medina 54
2.3. Vitor Marinho de Oliveira 56
2.4. Lino Castellani Filho 59
2.5. Celi Taffarel
63
2.6. Go Tani
67
2.7. Joo Freire
70
3 Os Papis Representados 73
V
CONSIDERAES FINAIS: PERSPECTIVAS PARA
O DEBATE ACADMICO N EDUCAO FSICA
BRASILEIRA
85
VI REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 93
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RESUMO
EDUCAO FSICA BRASILEIRA: AUTORES E ATORES DA DCADA DE 8
Este trabalho props-se a analisar a construo do debate acadmico da Educao
Fsica brasileira sobretudo na dcada de 80 quando ocorreu uma proliferao de
discursos cientficos na rea. Para isso realizou uma etnografia do pensamento acadmico
proposta metodolgica do antroplogo americano Clifford Geertz. O pressuposto para
esta abordagem que o pensamento pode ser analisado no somente de forma singular
como processo caracterstico da espcie humana mas tambm na sua dimenso pblica
como produto do homem e portanto varivel e especfico.
Os discursos acadmicos da Educao Fsica brasileira na dcada de 80 foram
tomados como parte de um universo simblico que
foi
socialmente produzido e ainda
socialmente mantido.
As
formas de pensamento da Educao Fsica foram analisadas
como construes sociais representadas por um grupo de estudiosos seus autores e ao
mesmo tempo atores uma vez que desempenharam papis relevantes nessa dramaturgia
do pensamento cientfico da rea. A inteno foi desfocar a discusso de uma perspectiva
de
disputa entre
as
vrias abordagens da rea para a considerao de que todos os
discursos sobre Educao Fsica foram importantes para compor o cenrio dentro do qual
os atores envolvidos puderam desenvolver a trama da construo do pensamento
acadmico da Educao Fsica brasileira.
Aps as entrevistas com os principais personagens deste processo foi possvel
perceber que a cientificidade da rea
foi
engendrada a partir de polarizaes do tipo
progressista X reacionrio esquerda X direita social X biolgico impedindo muitas
vezes o dilogo entre as pessoas. Essa polarizao embora no exclusiva da Educao
Fsica teria levado absolutizao de tendncias na rea. Assim os representantes
de
cada pensamento tomaram-se personagens que assumiram determinados papis e
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passaram a agir como defensores de uma abordagem de Educao Fsica como se esta
fosse a melhor. Esses papis representados foram reforados por oposio pelos
representantes de outros pensamentos e por confirmao pela platia composta pelos
profissionais da rea espalhados pelos pas.
Ao realizar uma etnografia do pensamento acadmico da Educao Fsica a
inteno deste trabalho foi proporcionar um estranhamento m relao a ela que possa
levar a um repensar da rea considerando as abordagens existentes mas sem
s
limitar a
elas. Espera-se que este trabalho possa contribuir para uma melhor comunicao entre os
representantes ou seguidores de cada uma das formas de pensar a Educao Fsica
brasileira refutando uma postura preconceituosa de uma m relao
outra. Assim
acredita-se que possa ser profcuo o debate acadmico na rea.
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ABSTRACT
BRAZILIAN PHYSICAL EDUCATION: AUTHORS AND ACTORS IN THE 80 S
The
pro
posai o f this study is to analyze the development o f the academic debate on
Brazilian Physical Educaton, specally throughout the decade o the 80 s, when a
prolferaton
o
scentfic lectures on the subject occured. For this purpose,
an
ethnography
o academc thought, conssting o a methodological proposal made by the American
anthropologist Clifford Geertz, was organzed. The presuppositon for this approach is
that the thought can be analyzed, not only in it s individual form as a characterstic process
o f the human species, but also on it s public dimension, as a product o f man; therefore,
changeable and
speci:fic
The academic discourses ofBrazilian Physical Education in the 80 s were regarded
as part o a symbolic universe whch was socially made and whch
s
still socially
maintained. All types o Physical Education thought were analyzed as social constructions
represented by a group o f scholars who were considered to be the authors o as well as the
actors in these constructions, since they perform relevant roles in this dramaturgy o f ths
field o scientific thought The ntenton was to divert the discusson from the prospectve
debate among the various approaches o f the area to a different consideration: namely that
ali the discourses on Physical Education were important to the compositon o f the scenario
in whch the involved actors were able to establish the plot for the development
o
the
academic thought o f the Brazilian Physical Education.
After interviewing the most important personalities o f ths process, it was possible
to understand that the scenti:fic character o f the area was influenced by the polarization o f
the following types: progressive X reactionary, leftist X rightist, social X biologic, which
often precluded dialogue among people. Such polarizaton, even though not exclusive o
Physical Education, would have induced the tendencies o an absolute nature. Thus, the
individuais representing each area
o
thought became characters playing certain roles.
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These characters soon began to act as ardent defenders o certain approaches to Physical
Education each defining his or her own as best. The performances o these roles were
reinforced by the opposition o f those individuais representing other schools o f thought and
also by the audience which was made up o professionals
in
the area from all over the
country.
One o the aims o carrying out an ethnography o Physical Education academic
thought was to stimulate extraneous thinking
in
the area which may cause a rethinking o
the existing approach without being restricted to it W e hope that this study can contribute
to better communication among the representatives and followers o each school o
thought and also persuade each representative
o
Brazilian Physical Education to refute
any biased attitudes
in
relation to one another. Thus we believe th academic debate in
this area
t
be positive.
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I INTRO UO
Este trabalho pretende analisar a construo
do
debate acadmico da Educao
Fsica brasileira sobretudo a partir do
fin l
da dcada de 70 quando ocorreu uma
proliferao de discursos cientficos na rea. Antes desse perodo havia uma certa
aceitao de que a Educao Fsica era uma prtica escolar com objetivos de desenvolver
a aptido fsica dos alunos e de inici-los na prtica esportiva. O respaldo terico provinha
exclusivamente das cincias biolgicas.
A partir do momento
em
que se iniciaram os cursos de ps-graduao na rea os
primeiros brasileiros doutorados no exterior retornaram ao pas e vrios professores de
Educao Fsica passaram a procurar qualficao acadmica
em
outras reas sobretudo
das cincias humanas comearam a haver mais explicaes cientficas para um fenmeno
que parecia no ser somente de natureza biolgica. Essa maor qualficao profissional
levou tambm a um nmero crescente de eventos e de publicaes cientficas. Pela
primeira
v z
comeava-se a vislumbrar uma comunidade cientfica da Educao Fsica
brasileira.
Se o debate acadmico iniciado mostrou-se altamente positivo levando a uma
produo cientfica considervel tanto quantitativa quanto qualitativamente por outro
lado parece que aconteceu tambm o acirramento de determinadas posies chegando
algumas vezes a tornar impossvel a convivncia de pessoas representantes de linhas
tericas diferentes. O que era para ser um saudvel debate acadmico transformou-se
em
disputa por espao
no
terreno cientfico da Educao Fsica.
A anlise dos discursos acadmicos na Educao Fsica no inovadora. Vrias
pesquisadores tm se debruado sobre este objeto de estudo. O que
me
move a este
mesmo tema a possibilidade de realizar a anlise do pensamento cientfico da Educao
Fsica sob outra perspectiva. Utilizarei para isso um referencial terico-metodolgico
oriundo da Antropologia Social referencial este que tem se mostrado til para a anlise
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de objetos de estudo especficos de vrias reas do conhecimento A justificativa para
essa utilizao ser desenvolvida no prximo captulo, quando esboarei os pressupostos
bsicos
d
Antropologia Social e a partir dela, da chamada Antropologia Interpretativa,
contribuio recente do antroplogo americano Clifford Geertz. Discutirei em seguida o
lugar desta proposta no quadro geral das Antropologias, segundo os estudos de Roberto
Cardoso
de
Oliveira, at chegar chamada etnografia do pensamento cientfico.
Trata-se de uma abordagem metodolgica que toma por objeto de anlise o
pensamento acadmico moderno. O pressuposto que o pensamento - e o cientfico
tambm - pode ser analisado no somente de forma singular, como um processo
caracterstico da espcie humana, mas tambm na sua dimenso pblica como um produto
do homem e, portanto, varivel e especfico. Assim, o pensamento pode ser analisado
como uma construo social, que dotada de significados culturais ao se apresentar como
vivel num determinado contexto.
No caso especfico desta pesquisa, pretendo fazer uma etnografia do pensamento
cientfico d Educao Fsica brasileira, principalmente na dcada de 80, quando passou a
haver um efetivo debate acadmico na rea. Estarei considerando minha observao
participante' nesse processo de construo do debate acadmico na Educao Fsica, no
como autor/ator, mas como um professor recm-formado que atuava no ensino pblico de
1 grau e que, a partir do final dos anos 70, passou a acompanhar - inicialmente, como
ouvinte - o nascente debate acadmico na rea. Essa observao me permitir identificar
os autores mais relevantes no perodo, bem como as tendncias que passaram a defender.
Aps essa identificao, entrevistarei os principais autores/atores desse processo,
procurando compreender qual o conjunto de valores, pressupostos e significados que
deram sustentao criao de cada discurso acadmico e como eles so atualizados.
1
Na prpria Educao Fsica j se tem conhecimento de alguns estudos recentes que lanam mo do
referencial antropolgico para a anlise de questes prprias da rea. Hugo Lovisolo, antroplogo de
formao, tem utilizado o chamado olhar antropolgico para estudar a Educao Fsica. Sua publicao
mais conhecida Educao Fsica: a arte da mediao
Em minha dissertao de mestrado, intitulada A representao do trabalho do professor de Educao
Fsica na escola: do corpo matria-prima ao corpo cidado, utilizei tambm uma abordagem antropolgica
para a anlise do trabalho escolar de Educao Fsica. A dissertao foi publicada em livro, com o ttulo
Da cultura do corpo.
2
Oportunamente desenvolverei os principais pressupostos da Observao Participante, um dos tipos de
abordagem metodolgica utilizado em cincias
humanas
2
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o
entrevistar os principais autores da Educao Fsica brasileira no estou
pretendendo avaliar sua capacidade de estruturao de um pensamento cientfico que
contribua para a rea. Estou considerando que estes autores foram capazes de aliar um
certo discurso cientfico a uma certa demanda dos profissionais criando uma sintonia que
permitiu - e ainda permite - a veiculao de uma srie de valores que procuram dar
sentido no s prpria Educao Fsica como tambm tendncia que defendem. Nesse
sentido os autores so tambm atores que encarnam determinados personagens
manipulam certos simbolos desempenhando assim papis altamente relevantes nessa
contnua encenao e reencenao da Educao Fsica brasileira.
Realizando uma etnografia do pensamento contemporneo da Educao Fsica
brasileira pretendo considerar as diferenas e semelhanas existentes entre os vrios
discursos acadmicos da rea. Estes dados explicitados e oferecidos comunidade da
Educao Fsica certamente podero contribuir para uma melhor comunicao entre os
representantes ou seguidores de cada uma das tendncias refutando uma postura
preconceituosa de uma em relao outra. Assim acredito que possa ser profcuo o
debate acadmico na rea.
3
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11 O OLH R ANTROPOLGICO
1
PRESSUPOSTOS
D
ANTROPOLOGIA SOCIAL
A Antropologia configurou-se como cincia a partir de meados do sculo XIX,
surgindo, inicialmente, para dar conta da compreenso
de
homens que viviam em regies
longnquas e apresentavam comportamentos exticos
em
relao ao homem europeu. Essa
Antropologia ficou conhecida como Evolucionista, influenciada pelos trabalhos de Charles
Darwin, que afirmavam, em sntese, que todos os seres vivos passavam por uma evoluo
e que o
homem
no foi poupado deste processo. Assim,
os
povos encontrados no mundo
eram considerados num estgio de desenvolvimento anterior ao homem europeu do sculo
XIX.
organ
1946), um dos prncipais representantes do pensamento evolucionista,
chegou a classificar a humanidade como dividida em trs categorias bsicas: selvageria,
barbrie e civilizao. As diferenas entre as trs categorias deviam-se, segundo Morgan, a
ritmos de desenvolvimento desiguais.
O modelo cientfico adotado era, como no poderia ser diferente em funo da
poca, o das cincias naturais, j que a Sociologia apenas comeava a se estruturar e a
Antropologia efetivamente social precisaria esperar a virada do sculo para se configurar
como cincia. Assim, a Antropologia do sculo XIX colocava como seu objeto de estudo
os homens geograficamente distantes, ou historicamente anteriores, ou culturalmente
desiguais, evidenciando a clssica separao sujeito-objeto oriunda das cincias da
natureza Laplantine, 1988).
O pensamento evolucionista foi fundamental
no
sentido de considerar todos os
ndivduos recm-descobertos como humanos, um
vez
que alguns sculos antes havia
dvidas se os homens encontrados em regies longnquas poderiam ser considerados
como membros da humanidade, de to exticos que eram. Entretanto, por outro lado, este
pensamento era preconceituoso e etnocntrico, medida que considerava as diferenas
4
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existentes
entre
os homens como desigualdades, justificando ainda a prtica da
colonizao.
Na
vir d do
sculo XX, Malinowski, Boas e Rivers, entre outros, comearam a se
preocupar
com
a coleta de dados in loco fato que no era considerado pelos estudiosos
da poca,
os
chamados antroplogos
de
gabinete. Eles perceberam que por trs de
comportamentos aparentemente estranhos das tribos encontradas, havia uma lgica que
ordenava as
su s
aes. Eles comeavam a intuir
um
novo conceito de cultura, no apenas
fundado nas produes de um grupo que deveriam ser reunidas, mas ligado ao prprio
conjunto de significados que cada grupo
d
s suas produes.
De
fato, a famosa definio
de cultura
de
Edward Tylor
3
,
um dos mais ilustres representantes da Antropologia
Evolucionista, referia-se a um ( .. )
todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte,
leis, moral, costumes, e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem
enquanto membro d sociedade
(apud Mercier, 1986, p.96). Se esse todo complexo
pudesse ser reunido, teria-se apreendido as especificidades
de
um certo povo, sem a
necessidade do antroplogo se deslocar s tribos.
Com seu trabalho de campo, Malinowski, Boas e Rivers no estavam apenas
criando novas tcnicas de pesquisa, mas resolvendo um impasse epistemolgico da
Antropologia: at quando se poderia continuar falando de outros homens sem ouvi-los,
v-los e tentar compreend-los a partir de seus prprios referenciais? O que estes
precursores estavam inferindo
no
incio do sculo XX era o prprio desgaste de uma
abordagem prpria das cincias naturais
no
trato com os homens. Metodologicamente,
estavam criando a etnografia, que se resume numa minuciosa e sistemtica coleta de dados
sobre um determinado grupo humano, e que at hoje prtica costumeira de antroplogos
ou
de quem utiliza a Antropologia como referencial para suas pesquisas. A etnografia
pressupe a nfase na explorao do fenmeno social particular, mais que no teste de
hipteses; pressupe tambm o trabalho com dados no estruturados em categorias
analticas; implica investigar um pequeno nmero de casos
em
detalhe e na interpretao
dos significados e funes das aes humanas (Atkinson Hammersley, 1994).
3
Edward B. Tylor. Primitive culture: researches in o lhe development of mythology, philosophy, religion,
ar custom. Gloucester, Mass., Smith, 1871.
5
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Ora,
om
a criao da etnografia no inicio
do
sculo XX, no se criava apenas
um
mtodo de trabalho, mas
um
nova forma de olhar os homens, no somente aqueles que
possuam hbitos exticos, mas todos os homens. Segundo Brando (1985), o que
Malinowski estava criando ao conviver com os nativos das Ilhas Trobriand era uma
atitude perante os homens. Se a etnografia introduzia a questo do significado das aes
humanas, compreender o outro no se resumia somente
no
estudo
de
membros
de
sociedades distantes, mas inclua a anlise e interpretao de grupos vizinhos e
contemporneos.
Nas dcadas seguintes, a Antropologia passou a considerar a reflexividade. Dessa
forma, o que era desigual
no
comportamento humano, passou a ser considerado como
diferente e o conceito de cultura j no comportava mais juzos de valor como melhor ou
pior, mais
ou
menos evoludo, passando a ser visto como um processo particular
devidamente coerente, dando sentido a um grupo especfico. Assim, o comportamento
humano pde ser analisado como expresso cultural, considerando-se a experincia
individual como a base para a constituio
do
campo das representaes (Macedo, 1985).
Esse referencial tem sido utilizado atualmente nas pesquisas da chamada
Antropologia das Sociedades Complexas, que estuda grupos contemporneos, tais como
operrios, professores, grupos religiosos (Brando, 1987). A Antropologia que se pratica
hoje no est mais necessariamente vinculada a um espao geogrfico, cultural ou
histrico particular, permitindo, assim, uma ampliao de seu campo de atuao (Kuper,
1978).
Laplantine (1988) afirma que a Antropologia constitui-se num certo olhar, num
certo enfoque, que consiste em estudar o homem inteiro e em todas as sociedades. Esse
olhar antropolgico implica saber que um grupo especfico possui comportamentos,
que, por mais estranhos ou familiares que paream, fazem sentido no contexto daquele
grupo e que a condio de pesquisador no lhe
d
o direito de impor suas opinies ou
fazer de seu julgamento uma forma de preconceito. Nessa linha
de
pensamento, Laplantine
(1988) pode afirmar que
( .. ) aquilo que os seres humanos tm
em
comum
sua
capacidade para
se
diferenciar uns dos outros ( . .
(p.22). Em outros termos, o que
caracteriza o homem menos suas similaridades biolgicas universais, e mais suas
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diferenas culturais especficas.
essa variabilidade que torna a humanidade plural e faz
com que os homens, embora pertencentes todos mesma espcie, se expressem
diferentemente em termos culturais.
eertz (1989) afirma que o papel do antroplogo resume-se em olhar por sobre o
ombro dos indivduos, procurando interpretar a lgica simblica e sua atuao social.
por isso que ele afirma que a Antropologia uma leitura de segunda mo da realidade de
um grupo, porque apenas tenta ter acesso a um conjunto de signficados que pertencem
aos prprios indivduos membros do grupo.
O pressuposto da pesquisa antropolgica o de que a experincia individual ou
grupal uma expresso sinttica da cultura onde o indivduo ou o grupo vive, cabendo ao
pesquisador o mapeamento e a reconstruo da lgica que ordena seus comportamentos.
Como no existem comportamentos exclusivamente naturais, o pesquisador deve tentar
decifrar, nos valores e atitudes de indivduos ou grupos, a expresso de uma construo
social que s se compreende quando referida a aspectos globais da sociedade. Como
afirma Durharn (1977), a noo de cultura parte
o
estabelecimento de uma unidade
fundamental entre ao e representao, unidade que est dada em todo comportamento
social. A partir da investigao do comportamento de grupos concretos, o trabalho de
pesquisa em Antropologia procura compreender o universo de signficados que ordena e
d
sentido s aes humanas.
nesse contexto que DaMatta (1978) afirma que:
.
.) a Antropologia Social uma disciplina da comutao e da
mediao. E com isso quero simplesmente dizer que talvez mais do que
qualquer outra matria devotada ao estudo do Homem, a Antropologia
aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois
universos ou sub universos) de significao . .
p.27).
Assim, fazer pesquisa em Antropologia pressupe colocar-se no lugar do outro,
relativizando - para utilizar um termo caro Roberto DaMatta - tanto o papel de
pesquisador, como de seu objeto de estudo, que, nesse caso, tambm e simultaneamente,
constitui-se em sujeito. A frmula apresentada por DaMatta (1978) para essa
relativizao composta por uma dupla tarefa: transformar o extico em familiar e, ao
7
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mesmo tempo o familiar em extico. A primeira tarefa corresponde ao movimento
original da Antropologia, quando se buscava compreender os hbitos estranhos dos
nativos. A segunda tarefa corresponde ao momento presente da Antropologia, que se
volta para
a nossa prpria sociedade, tendo que estranhar o que tradicional. A
transformao do extico em familiar realizada pela via intelectual, por meio de
apreenses cognitivas. J a transformao do familiar em extico implica um desligamento
emocional, buscando o observador desacostumar-se de um hbito que lhe prprio.
nesse movimento simultneo entre as duas tarefas que o antroplogo procura
compreender
os
significados das aes humanas, confrontando subjetividades e delas
tratando. por isso que o autor afirma que a Antropologia
um
mecanismo dos mais
importantes para deslocar nossa prpria subjetividade.
Esse referencial antropolgico, como se v, pode ser utilizado por outras reas do
conhecimento, sobretudo nas pesquisas de cunho qualitativo, j que permite um
deslocamento do papel e do lugar do pesquisador, abrindo a ele novas perspectivas de
anlise
de
objetos diversos, possibilitando, assim, uma melhor compreenso do homem nas
suas vrias expresses, atitudes e locais de atuao.
2 A ANTROPOLOGIA INTERPRETATIVA DE CLIFFORD GEERTZ
4
Clifford Geertz ficou conhecido por ter criado a chamada Antropologia
Interpretativa. Para
ele
a Antropologia no deve ser vista como uma cincia experimental
em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa procura do significado. Para
justificar sua procura pelo significado das aes humanas, Geertz recorre Semitica,
4
Clifford Geertz americano, nascido em 1926. Seus primeiros escritos datam da dcada de
60
mas
seu
trabalho mais conhecido a Interpretao das culturas, publicado em 1973 e traduzido para o portugus,
inicialmente em 1978, e republicado em 1989, reunindo textos escritos desde 1957. Outro trabalho seu que
tambm ficou conhecido, e
que
usaremos em nosso estudo, Local knowledge,
de
1983, ainda sem
traduo para o portugus. Mais recentemente 1988) publicou Works and lives: lhe antropologist
as
author, traduzido para o espanhol em 1989.
8
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inspirado
m
Peirce. com essa abordagem que o autor lana mo da interpretao em
Antropologia, procurando, segundo ele, traar a curva de
um
discurso social, fixando-o
numa forma inspecionvel . Partindo dos pressupostos da Semitica de Peirce (1975),
entre
os
quais, um signo, de algum modo, representa algo para algum, Geertz prope-se
a uma compreenso das formas simblicas humanas, atravs de uma leitura da cultura de
um povo como se fosse um conjunto de textos. Dessa forma, ope-se ao estruturalismo de
Lvi-Strauss, que
se
prope a decifrar os cdigos internos s aes humanas (Azzan
Jnior, 1993). Utilizando a metfora de Max Weber, de que o homem um animal
amarrado a teias
de
significados que ele mesmo teceu, Geertz assume a cultura como
sendo essas teias e sua anlise (1989).
O conceito de cultura de Geertz est distante tanto de uma determinada concepo
psicolgica que toma a cultura como produto das mentes individuais, como de uma
concepo tpica
do
evolucionismo que a entende como o conjunto de produes de um
povo. Refuta tambm a definio de homem, para a qual as exterioridades culturais
deveriam ser desvendadas na busca de um homem natural, o bom selvagem. Alm disso,
Geertz recusa o conceito de homem oriundo da Antropologia Clssica, que buscava, a
partir da anlise das especificidades culturais dos povos, um homem consensual (1989).
A cultura para Geertz pblica, porque o significado o , existindo no posto
comercial, no forte da colina, no
pastoreio de carneiros, no mercado, na praa da cidade,
enfim, em todo e qualquer lugar onde existam homens interagindo. Afirma ele:
A cultura,
esse documento de atuao, portanto pblica ( .) Embora uma ideao, no existe na
cabea de algum; embora no-fsica, no uma identidade oculta
(1989, p.20).
Com essa abordagem semitica, Geertz amplia a noo de etnografia, de uma
descrio neutra e quase assptica, para uma verdadeira busca de significados nos
comportamentos humanos. O autor lana mo da expresso descrio densa , criada pelo
filsofo Gilbert Ryle, para classificar a etnografia, cujo objetivo no apenas descrever,
mas realizar uma hierarquia estratificada
de
estruturas significantes (1989).
Para esclarecer o objetivo da descrio densa, Geertz utiliza um exemplo
de
Ryle
no qual dois garotos esto piscando rapidamente o olho direito. Os movimentos de ambos
so idnticos, entretanto, o primeiro possui um tique involuntrio, enquanto o segundo
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realiza uma piscadela conspiratria. O primeiro apenas contrai a plpebra, enquanto o
segundo, ao contrair a plpebra e piscar, realiza um ato pblico.
De
fato, ele s realiza a
piscadela
porqu
sabe que ser compreendido. H um significado pblico no seu ato
(1989).
O mesmo exemplo poderia ser ampliado se considerssemos, como faz Ryle um
terceiro garoto que imita o tique
do
primeiro. H uma mudana de significado, j que o
terceiro garoto no est nem realizando o tique, nem fazendo uma piscadela conspiratria.
Poder-se-ia imaginar um quarto garoto, que ensaia em sua casa o tique
do
primeiro
garoto, para depois apresentar ao grupo. E um quinto garoto, que poderia fingir uma
piscadela conspiratria, sem no entanto possuir qualquer mensagem (1989).
Este exemplo serve para dar a dimenso do projeto de Geertz para a Antropologia.
Uma etnografia apenas descritiva talvez no diferenciasse os garotos piscando, porque
objetivamente eles esto fazendo o mesmo movimento. Entretanto, quando se reporta ao
significado de suas aes, temos cinco situaes diferentes.
por isso que Geertz (1989)
afirma:
A anlise cultural ou deveria ser uma adivinhao dos significados,
uma avaliao das conjeturas, um traar de concluses explanatrias a
partir das melhores conjeturas e no a descoberta do Continente dos
Significados e o mapeamento da sua paisagem incorprea (p.30-31).
Segundo o autor, as caractersticas de uma descrio etnogrfica so: ela
interpretativa; o que ela interpreta o fluxo
do
discurso social; e, por ltimo, essa
interpretao tenta salvar o dito num discurso do risco de extinguir-se, e fix-lo numa
forma inspecionvel . A essas trs caractersticas, Geertz acrescenta mais uma, afirmando
que a etnografia microscpica, no sentido de que ela realizada de forma
contextualizada,
ou
seja, ela deve partir da anlise de grupos especficos em situaes
particulares e no de grandes modelos ou sistemas para toda a humanidade.
nesse
sentido que Geertz afirma que a cultura, ao invs de um poder ao qual poderiam ser
atribudas as causas de acontecimentos sociais, um contexto, dentro do qual estes
mesmos acontecimentos podem ser descritos de forma inteligvel (1989).
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Para o autor, o que tem prejudicado essa compreenso contextualizada de cultura
uma
idia
de
homem universal e a busca de elementos comuns em todos
os
homens.
Assim, Geertz refuta o que ele chamou de concepo estratigrfica da natureza do
homem,
segundo
a qual os fatores biolgico, psicolgico, social e cultural estariam
superpostos
no
homem. Portanto,
para
se chegar
essncia universal humana, como se
pretendia no Evolucionismo do sculo XIX, bastaria r isolando camada por camada at
se chegar
ao
ncleo, onde estariam
os
fundamentos biolgicos. Nessa concepo, h a
reivindicao de autonomia para cada camada, dividindo o homem e dificultando sua
compreenso global (1989).
Em contrapartida concepo estratigrfica, Geertz prope como prpria da
Antropologia a concepo sinttica de homem, na qual os fatores biolgicos, psicolgicos,
sociolgicos e culturais possam ser tratados como variveis dentro de sistemas unitrios
de anlise.
o
invs de se tentar buscar caractersticas humanas universais e,
por
isso
mesmo, abstratas, Geertz opta pela anlise dessas variveis em situaes culturais
particulares. Assim, Geertz amplia a idia de cultura como um complexo de padres
concretos de comportamentos, composto por costumes, usos, tradies, hbitos,
preferindo trat-la como um conjunto de mecanismos de controle, composto por planos,
receitas, regras, instrues, e que servem para governar o comportamento humano (1989).
Ora, esses mecanismos de controle so construdos, reconstrudos e transformados
num processo dinmico de um grupo especfico. Segundo Geertz, todos os homens
comeam
com
um equipamento natural para viver milhares de espcies de vidas, mas
acabam por viver apenas um tipo de vida culturalmente localizado. Traar uma linha
divisria entre o que natural, universal e constante no homem, e o que convencional,
local e varivel seria, segundo o autor, falsificar a situao humana (1989).
Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de
funcionar, h um vcuo que ns mesmos devemos preencher, e ns o
preenchemos com a informao
ou
desinformao fornecida pela
nossa cultura
(Geertz, 1989, p.62).
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Essa
informao cultural peculiar e intrfuseca a um determinado grupo. na sua
particularidade que cada grupo especfico desenvolve seus padres culturais, que se
constituem em sistemas organizados de snbolos signficantes, responsveis pela vida em
grupo dos
homens
(1989).
o
considerar um conceito semitico de cultura e se propor a interpretar os
snbolos signficantes nas condutas humanas, Geertz estabelece um novo estatuto para a
Antropologia, inclusive reconhecendo seus limites. Segundo ele, os textos antropolgicos
so interpretaes de segunda e terceira mo, porque, na verdade, somente um nativo
faz a interpretao em prneira mo. nessa linha de pensamento que o autor afirma que
a Antropologia uma fico, no porque seja falsa, no fatual
ou
apenas fruto de
experimentos do pensamento, mas porque pressupe uma construo (1989).
Em relao amplitude
da
anlise antropolgica e sua capacidade de
generalizao, Geertz afirma que no possvel generalizar atravs dos casos, mas dentro
deles. A primeira situao - generalizar atravs dos casos - seria prpria das cincias
naturais,
onde
se procura, a partir de um conjunto de observaes, estabelecer uma
lei
ordenadora universal. Generalizar dentro dos casos o que feito em medicina
ou
em
psicologia clrica: uma inferncia, que comea
com
um conjunto de signficantes
presumiveis, para, em seguida, tentar enquadr-los de forma inteligvel. Afirma Geertz
(1989):
No estudo da cultura, os significantes no so sintomas ou conjuntos
de
sintomas, mas atos simblicos ou conjuntos de atos simblicos e o objetivo no a
terapia, mas a anlise do discurso social (p.36).
Pelo fato de realizar urna interpretao dos signficados e de buscar a compreenso
dos padres culturais de grupos particulares, que Geertz (1989) afirma que,
em
etnografia: ( .. ) o dever
da
teoria
fornecer um vocabulrio no qual possa ser expresso
o que o ato simblico
tem
a dizer sobre ele mesmo - isto
,
sobre o papel
da
cultura
na
vida humana (p.38).
Assn, pode-se compreender a afirmao de Geertz (1989) de que
(
.. ) a anlise
cultural intrinsecamente incompleta
e
o que pior, quanto mais profunda, menos
completa (p.39). Isto porque a Antropologia no est buscando as causas nutveis para
os
comportamentos humanos, nem pretendendo estabelecer leis invariantes para as
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condutas
dos
homens. A Antropologia - pelo menos a Interpretativa de Geertz - est
compreendendo
os
significados, interpretando-os. Fazendo isso, ela est contribuindo,
segundo o
autor
para o (
.. )
alargamento do universo do discurso humano (1989,
p.24).
3
NTROPOLOGI INTERPRET TIV
O
QU DRO D S
NTROPOLOGI S
Parece importante saber qual o papel ocupado pela Antropologia Interpretativa no
quadro das Antropologias. Para isso, recorrerei
Oliveira (1988), que tem desenvolvido o
interessante trabalho de (
..
)pensar o pensamento antropolgico( ..
)
(p.9), segundo sua
prpria expresso, buscando, assim, conformar a matriz disciplinar da Antropologia.
Segundo o autor, matriz disciplinar constitui-se (
.. )
numa articulao sistemtica de um
conjunto de paradigmas, condio de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada
u ativos e relativamente eficientes (p.15). Se nas cincias naturais,
os
paradigmas so
substitudos
um
pelo outro numa contnua sucesso, por meio das revolues cientficas
- termo caro Thomas Kuhn -, na Antropologia e nas cincias sociais eles coexistem
simultaneamente, sem que um novo paradigma elimine o anterior.
Definido o seu conceito de paradigma, Oliveira (1988) destaca na histria da
Antropologia - no s brasileira - duas tradies, a intelectualista e a empirista, cruzando
as com duas perspectivas caracterizadas pela categoria tempo, chamando-as de sincronia e
diacronia, delineando o quadro a seguir:
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Tradio
INTELECTU LIST
EMPIRIST
Tempo
Escola Francesa de Escola Britnica de
SINCRONI
Sociologia
-
Paradigma Antropologia
-
Paradigma
racionalista e, em sua forma Estrutural-funcionalista
moderna, estruturalista
1)
(2)
Antropologia Interpretativa Escola Histrico-cultural''
DI CRONI
Paradigma hermenutico Paradigma culturalista
4)
3)
(Oliveira, 1988)
No espao
de
n.l, fruto do cruzamento da tradio intelectualista com a
perspectiva temporal sincrnica, o autor destaca a Escola Francesa de Sociologia, cujos
representantes m is clebres so Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl,
e,
mais recentemente,
Lvi-Strauss. Os dois primeiros foram precursores da criao de uma nova disciplina, que
no deveria se confundir nem com a Psicologia, nem com a Filosofia, abrindo espao,
assim, para a nascente Antropologia Social. Durkheim e Mauss, como herdeiros da
tradio intelectualista franco-germnica, privilegiam a conscincia racional e abstraem de
seus estudos a noo de tempo histrico, motivo pelo qual Oliveira (1988) coloca a Escola
Francesa de Sociologia na categoria sincronia no referido quadro.
No espao
de
n.2, o autor coloca a Escola Britnica de Antropologia, respaldada
pelo paradigma estrutural-funcionalista, e tendo por representantes clebres Rivers e
Radcliffe-Brown. Este grupo - Rivers, inicialmente - caracterizava-se pela observao de
sociedades in loco, contrariamente pesquisa antropolgica terica do sculo XIX,
motivo que o coloca dentro da tradio empirista.
Ao
criticarem o pensamento
evolucionista, que se caracterizava pela preocupao histrica, j que falava dos vrios
grupos humanos como etapas de desenvolvimento, eles acabam por anular o fator tempo,
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motivo pelo qual se enquadram, assim como os representantes da Escola Francesa de
Sociologia, na categoria sincronia.
No espao de n.3, Oliveira (1988) refere-se Escola Histrico-Cultural,
fundamentada no paradigma culturalista, surgido nos Estados
V
nidos no final do sculo
XIX
com Franz
Boas, inicialmente, e, depois, com Kroeber, Benedict, Mead, Kluckhohn,
Sapir e outros Como a Escola Britnica, a Escola Histrico-Cultural continua
preocupando-se com a anlise minuciosa in lo o de outras sociedades. Entretanto, o que a
diferencia daquela o fato de recuperar a noo de tempo, reintroduzindo a histria no
horizonte da Antropologia. No a histria evolucionista do sculo XIX, que propunha
grandes sequncias de desenvolvimento para a humanidade, mas a histria que realiza
mudanas psicolgicas no indivduo. Da a alocao da Escola Histrico-Cultural na
categoria diacronia.
Finalmente, o espao de n.4, Oliveira (1988) reserva Antropologia
Interpretativa, sustentada pelo paradigma hermenutica, cujos representantes so
Heidegger, Gadamer, Dilthey e Ricoeur, sendo apropriada pela Antropologia por Geertz.
Oliveira (1988) defende que somente no pensamento hermenutica vai ocorrer a
interiorizao do tempo - ou da histria -, uma vez que no ato da interpretao que o
pesquisador hermeneuta coloca-se perante seu objeto de estudo de uma forma
intersubjetiva. Ele no s deve admitir sua posio histrica, mas utiliz-la como condio
do conhecimento. O prprio Geertz defende a intersubjetividade para compreender
como o significado num sistema de expresso pode ser expresso noutro, trabalho que
seria, segundo o autor, tarefa de uma hermenutica cultural e no de uma mecnica
conceptual. nesse sentido que o autor fala de uma traduo cultural (no original,
cultural translation ) como tarefa da Antropologia, buscando uma transferncia de
sentido entre os comportamentos humanos analisados e o pesquisador. Afirma Geertz
(1989):
O ponto global da abordagem semitica da cultura como
disse
auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os
nossos sujeitos de forma a podermos num sentido um tanto mais
amplo conversar
com
eles
(p.35).
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Oliveira (1988) afirma que a justificativa
do
trabalho de traduo cultural de
Geertz o conceito de fuso de horizontes, expresso cara hermenutica, utilizada,
inicialmente, por Gadamer, e posteriormente, por Ricoeur. Esse conceito refere-se :
(
..
) transformao
da
histria exteriorizada e objetiva
em
historicidade, viva e vivenciada nas conscincias dos homens,
e
por
certo, do antroplogo. A fuso de horizontes implica que na penetrao
do horizonte do outro, no abdicamos
de
nosso prprio horizonte.
Assumimos nossos preconceitos
(Oliveira, 1988, p.21).
Voltando
ao quadro das matrizes disciplinares da Antropologia, Oliveira (1988)
destaca um movimento circular que parte da Escola Francesa de Sociologia at a
Antropologia Interpretativa, passando, respectivamente, pela Escola Britnica e Histrico
Cultural.
egundo
ele,
os
trs primeiros paradigmas, o racionalista, o estrutural
funcionalista e o culturalista, so responsveis por uma configurao da Antropologia
dentro de uma concepo cientificista, por valorizarem as idias de razo e objetividade.
Esses trs paradigmas priorizaram sempre a organizao social, as instituies,
os
grupos
organizacionais e os padres culturais. Por isso, Oliveira (1988) define-os como
paradigmas da
ordem, por domesticarem e no conseguirem trabalhar direta e
efetivamente com trs elementos essenciais: a subjetividade, o indivduo e a histria.
Somente com o paradigma hermenutica, apropriado pela Antropologia
Interpretativa de Geertz, que ocorre a considerao eficaz da subjetividade, do indivduo
e
da
histria. Aqui, a Antropologia perde o seu carter cientificista, j que se preocupa
com
o sentido e com a contextualizao dos comportamentos humanos. Ao pretender a
interpretao dos significados, Geertz prope uma Antropologia que, no dizer de Oliveira
(1988),
(
..
)interiorizando o tempo, exorciza a objetividade
(p.22).
O mesmo autor mostra-nos como o paradigma hermenutica reformula
os
trs
elementos domesticados pelos chamados paradigmas
da ordem:
( .. ) a subjetividade
que
liberada
da
coero
da
objetividade,
toma
sua
forma socializada, assumindo-se como inter-subjetividade; o indivduo,
igualmente liberado das tentaes do psicologismo, toma sua forma
personalizada (portanto o indivduo socializado) e no teme assumir
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sua individualidade; e a histria, desvencilhada das peias naturalistas
que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente, pois dela
se
esperava fosse objetiva, toma sua forma interiorizada e se assume
como historicidade (Oliveira, 1988, p.97).
assim
que esses trs elementos devidamente reformulados - a intersubjetividade,
a individualidade e a historicidade - passam a atuar como fatores de desordem da
Antropologia tradicional, circunscrevendo a nova Antropologia. Oliveira (1988) afirma
que a introduo do problema hermenutica na disciplina veio enriquec-la, medida que
trouxe Antropologia uma perspectiva crtica sistemtica.
Entretanto, se o paradigma hermenutica tem contribudo nas ltimas dcadas para
uma crtica da concepo cientificista que reinou na Antropologia, no se pode afirmar
que ele tenha substitudo outros paradigmas. Como nos alerta Oliveira (1988), em cincias
humanas
os
paradigmas coexistem simultaneamente. Essa coexistncia d-se atravs de
tenses entre os paradigmas; tenses essas que no s devem ser levadas em conta pelos
pesquisadores, como so extremamente saudveis para o prprio desenvolvimento de cada
rea cientfica. O autor lembra-nos que vrios antroplogos renomados, como
Malinowski, Evans-Pritchard, Leach e outros, no puderam ser classificados em nenhuma
das escolas,
por
transitarem consciente e criticamente entre elas.
4 A
ETNOGR FI
DO PENS MENTO
Talvez o maior desenvolvimento da obra de Clifford Geertz tenha sido a proposta
de uma etnografia do pensamento cientifico, projeto este que no somente um
empreendimento da Antropologia, mas que, partindo dela, extrapola seus limites e torna
se um projeto meta-disciplinar. Segundo Oliveira (1988),
( .. )
se
a experincia
antropolgica no monopolizar o olhar d 'etnografia do pensamento', certamente ela
constituir a
su
base (p.163).
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Mas, por que a Antropologia seria responsvel pela estruturao da etnografia do
pensamento? E por que Geertz quem estabelece contornos mais ntidos para este
projeto?
orque
a etnografia, enquanto prtica metodolgica, foi criada dentro da
Antropologia, por pesquisadores que, na virada
do
sculo XX, comearam a se preocupar
em investigar as tribos nos locais onde elas estavam. Ao deixarem o papel de antroplogos
tericos, eles passaram a reconhecer a lgica interna que rege os comportamentos de cada
povo especfico. Esses precursores estavam rejeitando a especulao em favor de
investigaes empricas e, ao mesmo tempo, recusando a idia de inferir a histria de um
povo a partir de nveis evolutivos, como era comum no sculo XIX Atkinson
Hammersley, 1994).
Algumas dcadas aps, e culminando com os trabalhos de Geertz, a Antropologia
comea a considerar a cultura como um processo dinmico e simblico e a funo do
antroplogo passa a ser a de mapeador desse unverso de signficados. Ora, considerando
a cultura pblica porque o signficado o ), Geertz pode falar da dimenso pblica do
pensamento. Segundo ele, o pensamento pode ser analisado em dois grandes sentidos:
como processo e como produto; ou, em outras palavras, pensamento ( .
. o que se
passa
em
nossas cabeas( .. )
e,
especialmente quando o colocamos em ordem, o que sai
delas
1983, p.148).
Essa questo do pensamento, ao mesmo tempo como processo e produto,
simultaneamente singular e mltiplo, diz respeito ao tema da undade e da diversidade
no
estudo do homem na sociedade. Por um lado, qual a essncia do comportamento
humano? Ou, para usar uma expresso de Geertz 1989), qual o (
.. )
mnimo
denominador comum da mente humana
p.55)? Por outro lado, por que os homens,
apesar de membros
da
mesma espcie, apresentam-se de maneiras to diversas em termos
de pensamento?
J vimos que Geertz refuta a chamada concepo estratigrfica na anlise da
natureza humana, preferindo o que ele denominou de concepo sinttica. Isto porque,
segundo o autor, impossvel isolar no comportamento humano o componente biolgico.
No caso do pensamento, isso tambm se constata, no sendo possvel falar de
um
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processo
cerebral
sem considerar a manipulao de significados pblicos e a consequncia
social
deste
processo. Ao contrrio dos animais, que utilizam fontes de informao
intrnsecas para modelar suas aes, o homem depende das fontes extrnsecas, compostas
por smbolos sociais, que, como os genes, fornecem um diagrama ou gabarito para suas
aes.
e
os
anmais inferiores possuem padres de comportamento ordenados e pouco
variveis, o homem possui, de forma inata, capacidades de resposta muito gerais, tornando
possvel
uma
grande plasticidade e complexidade de comportamentos. Por isso Geertz
afirma que o comportamento humano seria ingovernvel se no fosse dirigido por padres
culturais especficos. Fazendo uma comparao dos smbolos sociais com
os
genes, Geertz
(1989) fala de uma hereditariedade social , mostrando como
os
comportamentos
humanos so produzidos e transmitidos:
( .. ) o crebro humano inteiramente dependente dos recursos culturais
para
o seu prprio funcionamento. Assim, tais recursos no so apenas
adjuntos, mas constituintes
da
atividade mental. Com efeito, o
pensamento como
um
ato aberto, pblico, que envolve a manipulao
propositada de materiais objetivos, provavelmente fundamental para
os
seres humanos( .) (p.90).
Um
pouco mais frente, e para reforar o
j
exposto, Geertz (1989) afirma:
( .. ) o intelecto humano, no sentido especfico do raciocnio orientador,
depende
da
manipulao de certos tipos de recursos culturais, de
maneira tal a produzir (descobrir, selecionar)
os
estmulos ambientais
necessrios ao organismo - qualquer que seja o propsito; trata-se de
uma busca de informao (p.92).
Assim, ao falar do pensamento numa dimenso pblica, como um
(
.. ) trfico
de
smbolos significantes( .. ) sobre os quais os homens imprimiram significado(
) (p.227),
Geertz (1989) justifica a chamada etnografia do pensamento. Para ele, esse tipo de
etnografia s possvel porque os significados so passveis de investigao emprica
sistemtica, atravs dos padres culturais, que, para o autor, so ( .. ) amontoados
ordenados de smbolos significativos (p.228). Segundo Geertz (1989):
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O estudo
da
cultura, a totalidade acumulada
de
tais padres,
,
portanto, o estudo da maquinaria que os indivduos ou grupos
de
indivduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de
outra forma seria obscuro p.228).
Conclui o autor que o pensamento constitui-se, basicamente, num ato aberto
conduzido
em
termos materiais objetivos da cultura comum e secundariamente, num
assunto privado. Assim, Geertz 1989) pode dizer que
( ..)no sabemos o que pensamos
enquanto no vemos o que dizemos
p.90). Porque, segundo ele, os processos mentais
do homem ocorrem no banco escolar, no campo de futebol, no estdio, no assento do
caminho, n estao de trem, no tabuleiro de xadrez ou na poltrona do juiz.
Geertz 1983) alerta que a etnografia do pensamento no se traduz num
empreendimento apenas antropolgico, mas na confluncia de vrias reas. A etnografia
do pensamento, para o autor:
( .. )
um empreendimento histrico, sociolgico, comparativo,
interpretativo, qualquer coisa como um corpo-a-corpo, cuja finalidade
tornar inteligveis questes obscuras, provendo-lhes
de
um contexto
esclarecedor
p.152).
Ora, se o pensamento pode ser analisado etnograficamente numa dimenso pblica,
tambm possvel fazer uma anlise do pensamento acadmico moderno, j que os
intelectuais de uma rea acadmica constituem uma comunidade, atuam num determinado
territrio profissional, utilizam um certo vocabulrio e expressam determinados valores
Corra, 1987).
4.1. Somos Todos Nativos
Afirmando que Somos todos nativos agora, e quem no for um de ns um
extico p.l51), Geertz 1983) sugere o estudo etnogrfico tambm em relao ao
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pensamento acadmico
5
, ampliando os limites da Antropologia tradicional e propondo
para esta tarefa uma abordagem multidisciplinar. Afirma ele:
O que parecia antes ser uma questo de descobrir se os selvagens
poderiam distinguir fatos de fico, agora parece ser uma questo
e
descobrir como outros, do outro lado
o
mar ou
o
corredor,
organizam seu mundo e significados
p.l51).
A
im
de justificar a anlise metodolgica do pensamento acadmico moderno,
Geertz prope a considerao de trs aspectos: os dados convergentes, as classificaes
lingusticas e o exame do ciclo de vida. O primeiro aspecto - dados convergentes - diz
respeito ao fato da comunidade cientfica de uma certa rea formar uma rede, ou, no dizer
de Geertz,
aldeias intelectuais
p.157). Assim, h uma srie de dados comuns a cada
um dos integrantes do grupo de intelectuais da mesma rea, e esses dados podem ser
elucidativos da forma como pensam, uma vez que as relaes entre eles so, no apenas
intelectuais, mas tambm polticas, morais e pessoais. Algo que se descobre sobre um
individuo pode revelar tambm algo sobre outro, j que sendo reciprocamente conhecidos
por muito tempo, ( .. ) uns so personagens nas biografias dos outros Geertz, 1983,
p.157).
O segundo tema metodolgico proposto por Geertz refere-se ao tipo de
vocabulrio utilizado por uma rea acadmica e que pode constituir-se numa via de acesso
aos tipos de mentalidades dos intelectuais que nela trabalham, j que as palavras so
dotadas de significados pblicos que expressam determinadas vises de mundo, de
sociedade e da prpria rea. De fato, h um conjunto de termos e expresses que s so
compreensveis s pessoas que circulam naquela rea, tornando-a, muitas vezes, hermtica
a membros de outras reas cientficas 1983).
O terceiro tema metodolgico sugerido por Geertz para a anlise etnogrfica do
pensamento acadmico refere-se ao ciclo de vida especfico que cada rea cientfica impe
aos seus componentes. O autor no se refere, obviamente, aos aspectos de natureza
biolgica ou biogrfica de cada indivduo, mas s caractersticas da carreira, aos ritos de
5
Esta proposta de Geertz est explicitada no livro Local knowledge 1983), especificamente em seu
stimo captulo, intitulado The way we tbink now: toward an ethnograpby
o
modem tbougbt.
2
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passagem, os papis sexuais e de idade, s relaes entre os membros do grupo, que
definem um tipo de ciclo vital no qual os intelectuais esto inseridos, e a partir do qual
compreendem sua rea cientfica 1983 .
A etnografia do pensamento acadmico, analisada atravs dos temas
metodolgicos propostos por Geertz, permite o entendimento de cada uma das disciplinas
cientficas, ou at mesmo cada uma das tendncias
ou
linhas dentro de uma rea, como
formas particulares de pensar o mundo, j que pensar consiste numa manipulao de
significados pblicos. Segundo Geertz 1983):
( .. ) s vrias disciplinas das cincias humanas, naturais, soczazs que
compem o discurso fragmentado
da
academia moderna so mais
do
que pontos privilegiados
de
observao intelectual, sendo maneiras
de
estar no mundo, para invocar
uma
frmula
de
Heidegger, formas
de
vida, para usar
uma de
Wittgenstein,
ou
variedades
da
experincia
cognitiva, para adaptar uma de James. Tanto quanto os Papua ou os
nativos da Amaznia habitam o mundo que imaginam, do mesmo modo
o fazem os fsicos das altas energias ou os historiadores do
Mediterrneo da poca de Felipe l i p.155).
Se o pensamento , ao mesmo tempo, singular como processo e mltiplo como
produto, uma anlise precipitada concluiria que uma etnografia do pensamento estaria
contribuindo para uma proliferao desenfreada de smbolos significantes, o que tornaria a
comunicao entre grupos diferentes quase impossvel. Entretanto, para Geertz 1983), a
etnografia do pensamento, como qualquer outro tipo de etnografia,
( .. ) no uma
tentativa de exaltar a diversidade, mas de tom-la a srio
em si
mesma como
um
objeto
de descrio analtica e de reflexo interpretativa
p.154). O autor entende a etnografia
do
pensamento acadmico como um projeto imperativo, no como uma tarefa tcnica,
mas com um enfoque cultural, a im de que a comunicao entre as reas acadmicas - e
pode-se incluir as tendncias dentro de uma mesma rea acadmica - seja viabilizada. Para
isso, segundo Geertz 1983):
( .. ) o primeiro passo certamente o
de
aceitar a profundidade das
diferenas; o segundo, o
de
entender quais so essas diferenas,
e
o
terceiro, o de construir uma espcie de vocabulrio no qual elas
possam ser publicamente formuladas - no qual econometristas,
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arquelogos, citoqutmtcos e iconlogos possam oferecer
um
viso
plausvel
de si mesmos aos outros p.l61).
Ao propor uma etnografia do pensamento, e principalmente, ao enderear esta
proposta academia, Geertz est contribuindo para uma pertinente discusso que ocorre
hoje nas cincias, que a fragmentao do conhecimento e a consequente soberania do
discurso cientfico. Hoje, somente um seleto grupo de intelectuais pode discorrer sobre um
determinado tema e esse discurso torna-se soberano devido
ao
seu hermetismo. Ora, ao
colocar o pensamento acadmico como passvel de uma anlise etnogrfica, Geertz acaba
por relativizar o prprio saber cientfico. No que ele no tenha valor, mas seu
desenvolvimento est diretamente relacionado ao prprio conjunto de signficados que do
sentido a
um
certa rea acadmica e, consequentemente, aos seus membros. Se antes
pensava-se que a produo acadmica de um intelectual era consequncia apenas de uma
mente iluminada, agora pode-se pensar que o seu trabalho, de certa forma, est de acordo
com um conjunto de signficados que d referncias e sustenta a prpria rea na qual se
localiza este intelectual.
por
isso que Geertz 1983) afirma que
(
.. )
os papis que pensamos exercer,
transformam-se
em
mentes que descobrimos possuir
p.155). Em outros termos, o
pensamento no apenas processo, mas tambm produto do prprio meio onde se vive,
no caso desta pesquisa, uma determinada rea do conhecimento cientfico ou uma
tendncia dentro desta rea.
Parece que a maior contribuio de Geertz ao propor uma etnografia do
pensamento acadmico expor as diferenas entre as reas cientficas, no para acirrar
disputas entre elas, nem para torn-las menos diferentes, mas para propiciar a
interpretao de seus simbo los signficantes, contribuindo assim para maior comunicao
entre elas. Alis, essa tarefa de lidar com as diferenas fez parte do prprio
desenvolvimento da cincia antropolgica, que teve que se deparar com os mais diversos
tipos de comportamentos humanos. A diferena entre o empreendimento antropolgico ao
longo dos sculos XIX e XX e a proposta mais recente de Geertz, que, no primeiro
caso, os estudiosos observavam os nativos de vrias localidades, e agora ele considera que
somos todos nativos.
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4.2. Os nativos da Educao Fsica Brasileira
esta agora desenvolver esse referencial terico-metodolgico em direo ao meu
objeto de
estudo
especfico. Minha inteno fazer uma etnografia dos pensamentos
cientficos
que
existem atualmente
na
Educao Fsica brasileira. Esse empreendimento
no seria inovador no fosse pela forma de sua realizao: ouvir dos prprios
autores/atores dos pensamentos cientficos da Educao Fsica brasileira contempornea
como participaram da construo desse pensamento como construram seus discursos
cientficos
na
rea e qual a lgica interna de seus pressupostos e de seus contedos lgica
esta que fornece organizao e coerncia cada um dos discursos acadmicos. No
pretendo eleger o discurso mais coerente ou mais operacionalizvel mas apresentar a
forma como cada um deles constri determinados conceitos que esto relacionados a
valores mais gerais como viso de mundo papel da cultura objetivos do homem modelo
de sociedade atravs de uma teia de signficados - para usar o termo cunhado por Geertz -
constantemente atualizada e expressa por cada tendncia dando assim sentido a ela.
A anlise etnogrfica do pensamento cientfico na Educao Fsica brasileira
justifica-se nesse momento devido proliferao de discursos ocorrida na rea a partir dos
anos 80. Essa multiplicidade de discursos embora a princpio salutar proporcionou - e
ainda tem proporcionado - intensos debates e rancorosos preconceitos motivados pelo
hbito de considerar as opinies divergentes como desiguais ao invs de diferentes. A
consequncia disso parece ter sido o deslocamento do debate de um nivel pblico para o
mbito pessoal
e
portanto mais restrito onde
os
representantes de cada discurso da
Educao Fsica procuram mostrar as vantagens das idias que defendem muitas vezes em
detrimento da considerao que todos merecem.
Este trabalho ao estudar os discursos existentes na Educao Fsica brasileira e
tendo como referencial terico a proposta de Geertz de anlise etnogrfica do pensamento
cientfico pretende contribuir no sentido de explicitar a especificidade de cada discurso no
contexto da construo do debate acadmico da dcada de 80. Para isso ouvir dos
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principais personagens deste debate como atuaram nesse perodo, construindo formas de
pensar cientificamente a Educao Fsica.
Considerando a etnografia da cincia como o olhar antropolgico sobre o saber
cientfico, tomando-o como fato cultural Oliveira, 1988), sero destacados os discursos
acadmicos
da
Educao Fsica da dcada de 80 como parte de um universo simblico que
foi socialmente produzido e ainda socialmente mantido. As formas de pensamento da
Educao Fsica brasileira sero olhadas como construes sociais representadas por um
grupo de estudiosos, seus autores
e
ao mesmo tempo, atores, uma vez que
desempenharam papis relevantes nessa dramaturgia do pensamento cientfico
da
rea.
O pressuposto para essa anlise, conforme foi visto, que o pensamento
incluindo o cientfico - uma construo social, que utiliza significados culturais ao se
apresentar
como
vivel para o desenvolvimento da rea. Isso porque o discurso cientfico
consequncia de um pensamento, que pode tambm ser analisado na sua dimenso
pblica Geertz, 1983). Quando me proponho a uma anlise etnogrfica dos vrios
pensamentos cientficos da Educao Fsica brasileira, estou considerando o pensamento e
o discurso
de
um grupo de intelectuais como um comportamento pblico, tanto na sua
produo - porque ele surge a partir de um conjunto de valores que o autor representa -,
como
na
recepo e repercusso dentro da prpria rea - porque transmitido e
incorporado por um grupo de pessoas.
orra
1987), que, juntamente com Oliveira 1988), vm realizando o trabalho de
anlise da construo do pensamento da Antropologia brasileira, referindo-se proposta
de Geertz de uma etnografia do pensamento acadmico, afirma:
.. ) uma vez que os intelectuais contemporneos vivem
em
bandos,
conhecem-se razoavelmente bem uns aos outros, empregam uma
linguagem comum e
tem
uma carreira determinada por certas regras,
por que no estud-los o mesmo modo que os antroplogos estudaram
osAzande ou os Zulu? p.13).
Este trabalho, inicialmente, procurar deter-se nas ltimas duas dcadas, quando
passou a ocorrer uma proliferao de publicaes, encontros de professores e discursos na
rea, e a consequente construo do que estamos denominando de debate acadmico na
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Educao Fsica. Nesse momento, j se poder detectar algumas linhas tericas, bem
como destacar alguns nomes relevantes nesse processo de criao do pensamento
cientfico na Educao Fsica. Isso s se torna possvel a partir do momento em que
ocorre
na
rea a multiplicao de discursos, pois, antes disso, havia uma certa coeso em
torno das vises esportiva e da aptido fsica, com suporte terico originrio unicamente
das cincias biolgicas.
A segunda fase da pesquisa constituir-se- na tarefa principal deste estudo: ouvir
os
principais personagens da Educao Fsica brasileira no que se refere produo
cientfica.
ero
entrevistados
os
elementos considerados de destaque neste processo de
construo
do
debate cientfico da Educao Fsica a partir de
fins
dos anos 70, seus
atores principais. Pretende-se, com as entrevistas, detalhar o universo simblico que
sustentou e ainda
sentido aos discursos de cada um dos principais atores desse enredo
do pensamento cientfico da Educao Fsica brasileira.
Dessa forma, pretendo contribuir para a explicitao dos pressupostos e valores
sociais que respaldam os diferentes pensamentos existentes hoje na Educao Fsica
brasileira. Para isso, estarei seguindo a proposta de Clifford Geertz de realizar uma
etnografia do pensamento cientfico, considerando os principais nativos da Educao
Fsica no Brasil. Assim fazendo, estarei exercitando e propondo uma postura perante o
debate acadmico entre estes discursos que considere e respeite as diferenas, esperando
contribuir para uma melhor comunicao entre eles, ao invs de se continuar numa postura
passional e preconceituosa, onde u tenta se sobrepor ao outro.
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III A CONSTRUO O DEBATE ACADMICO DA EDUCAO
FSIC
BRASILEIRA
Pretendo agora discorrer sobre as formas de pensar a Educao Fsica brasileira
construdas a partir do final da dcada de 70 e durante os anos 80. Mesmo consciente de
que a cientificidade da Educao Fsica tenha sido fruto de um processo histrico que
remonta h tempos anteriores, destaco esse perodo recente devido proliferao de
discursos so re o objeto de estudo da Educao Fsica e sua aplicao escolar. A
multiplicidade de discursos ocorrida no perodo mostrou-se extremamente relevante, tanto
em termos de quantidade de proposies quanto na sua qualidade. A consequncia, como
ser apresentada, foi o surgimento de vrias formas de pensar a Educao Fsica, levando
ao intenso debate entre os representantes de cada uma delas.
Farei urna breve descrio de alguns fatos que caracterizaram a construo do
debate cientfico na Educao Fsica brasileira, levantando alguns nomes que contriburam
para o delineamento de alguns discursos. Seguindo
os
preceitos da abordagem
antropolgica, esta descrio no pretende comparar tendncias, muito menos analis-las
visando a eleio da melhor,
ou
da mais coerente. Pretendo, nesse momento, unicamente
apresentar as vrias formas de pensar a Educao Fsica brasileira atual. Este
procedimento justifica-se devido ao prximo passo metodolgico, que se constituir em
entrevistas com
os
elementos responsveis pelo processo de construo do pensamento
cientfico na Educao Fsica brasileira no perodo. Estarei agora apenas delineando o
cenrio da rea, dentro do qual
os
principas atores estaro posteriormente manifestando
seu posicionamento na Educao Fsica.
Com o regresso dos primeiros brasileiros doutorados no exterior, pde-se perceber
o incremento da discusso da Educao Fsica como disciplina acadmca. O clssico
artigo de Henry, de 1964, trouxe ao debate a necessidade da Educao Fsica ser tomada
como disciplina. O autor encerrava seu artigo afirmando que, anda que no exstisse a
disciplina acadmica da Educao Fsica, ela deveria ser inventada Henry, 1964).
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Alm dos brasileiros doutorados no exterior, colaboraram para o surgimento de
novas idias, reflexes e propostas metodolgicas na Educao Fsica brasileira, a criao
dos primeiros cursos de ps-graduao no pas, a busca de parte de profissionais de
Educao Fsica por cursos de ps-graduao em outras reas, sobretudo das cincias
humanas, o aumento do nmero de publicaes especializadas e a realizao de vrios
congressos, encontros, seminrios e cursos na rea.
interessante observar o contedo das publicaes da rea antes e depois desse
perodo. s poucas publicaes anteriores referiam-se principalmente s modalidades
esportivas de forma tcnco-ttica, aos tratados de fisiologia esportiva, e manuais de
preparao fsica. As obras que se seguem a esse perodo comeam a refletir sobre a
Educao Fsica no somente como uma atividade tcnca ou biolgica, mas a encaram
como
um fenmeno psicolgico e social. Devido prpria carncia de referencial terico
dentro
d
rea, difundiu-se tambm uma viso interdsciplinar, a partir da qual as cincias
historicamente constitudas ofereceriam base terica para o estudo da Educao Fsica, do
corpo e do movimento humanos, destacando-se dentre estas a Psicologia, a Histria, a
Sociologia e a Pedagogia. Como exemplo, pode-se citar o livro Conversando sobre o
corpo , organizado por Heloisa Turini Bruhns. Lanado em 1985, com grande aceitao
pelos profissionais da rea, este livro resultado de um ciclo de palestras realizado em
1984, para o qual foram convidadas pessoas de vrias reas para dscorrerem sobre o
corpo.
Caparroz (1996) afirma que o movimento de crtica que surgiu na Educao Fsica
na dcada
de
80 foi decorrente de dois fatores marcantes. m deles foi o momento
histrico scio-poltico da sociedade brasileira a partir de final dos anos 70,
com
o
processo de redemocratizao. O outro fator
foi
a necessidade da prpria rea de se
qualificar academcamente a fim de suprir as necessidades colocadas pelo mercado de
trabalho nas instituies de ensino superior.
Bracht (1996) lembra que foi o contato com o debate pedaggico brasileiro das
dcadas de 70 e 80, e no com as cincias do esporte, que fez com que profissionais da
Educao Fsica construssem objetos de estudo a partir do vis pedaggico. E que,
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independentemente das matrizes tericas utilizadas, todos foram orientados pelas cincias
humanas e sociais.
Oliveira 1994) fala de um salto qualitativo da Educao Fsica nos anos 80. Se na
dcada de 7 foram incorporados rea elementos da Pedagogia, ainda que em sua verso
tecnicista,
os
anos 80 viram surgir a perspectiva da Educao Fsica como prtica social.
Alm
da
perspectiva de consenso que era predominante na rea, foi includa Educao
Fsica na dcada de 80 a perspectiva de conflito. Segundo o autor, a gerao que
despontou
no
perodo passou a denunciar o estabelecido, assumindo posies de crtica
social.
Na dcada de 70 houve
um
esforo de agrupamento de uma ainda incipiente
comunidade cientfica. Liderados pelo mdico Victor Keiban Rodrigues Matsudo, um
grupo de profissionais interessados principalmente na Fisiologia do Esforo e na
Antropometria fundaram em 1974 o CELAF1SCS, Centro de Estudos do Laboratrio de
Aptido Fsica de So Caetano do Sul, na cidade do mesmo nome, no Estado de So
Paulo. O CELAF1SCS sempre primou pela intensa produo cientfica do seu grupo, pela
formao de pesquisadores e pela regularidade de seus simpsios e bienais. Ainda em que
pese
sua
preferncia pela pesquisa quantitativa de cunho fisiolgico
ou
antropomtrico,
nunca excluiu interessados em realizar pesquisas com outros referenciais tericos, tendo,
inclusive, convidado muitos destes pesquisadores para participarem dos seus eventos
CELAFISCS, 1986; Matsudo, 1987).
Na verdade, parte desse grupo do CELAF1SCS atuava na Federao Brasileira de
Medicina Desportiva FBMD) e pelo fato dos profissionais de Educao Fsica no
possurem, no interior desta associao, o mesmo
st tus
que
os
mdicos, no tendo,
inclusive, direito voto, acabaram saindo da FBMD para criarem o Colgio Brasileiro de
Cincias do Esporte CBCE), em 1978. De fato, o primeiro presidente do CBCE foi
Victor Keiban Rodrigues Matsudo, sua sede inicial foi em So Caetano do Sul e o
primeiro congresso da entidade CONBRACE) ocorreu tambm na mesma cidade, em
1979 Paiva, 1994).
Se por um lado o grupo que se congregou em torno do CELAF1SCS e das
primeiras gestes do CBCE passou a sistematizar uma produo cientfica, constituindo-se
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numa nascente comunidade da rea, ainda no houve nessa poca o debate com outras
correntes, at porque as poucas pessoas preocupadas com a pesquisa em Educao Fsica,
se no eram desse grupo, estavam ainda dispersas.
Na rea pedaggica da Educao Fsica, uma das primeiras referncias a ganhar
destaque entre os profissionais foi a Psicomotricidade, por meio das tradues das
primeiras
obr s
de Jean e Boulch e de sua vinda ao Brasil em 1978. Segundo Resende
(1992 e 1995), os fundamentos da Psicomotricidade foram defendidos em contraposio
s perspectivas terico-metodolgicas direcionadas automatizao e ao rendimento
motor, expressos no modelo didtico oficial da desportivizao da Educao Fsica.
nesse momento que ganha fora a preocupao com a educao motora, principalmente
nas sries escolares iniciais.
Talvez a perspectiva da Psicomotricidade no tenha se consolidado como uma
tendncia d Educao Fsica pelo fato dela se confundir com outras reas. A
Psicomotricidade nunca foi de uso exclusivo da Educao Fsica, mas tambm da
Pedagogia, da Psicologia e da Psicopedagogia, sem falar do incio de formao de
psicomotricistas, iniciada na mesma poca.
Alm disso, a Psicomotricidade, de certa forma, contribuiu para a negao de
contedos at ento tidos como prprios da Educao Fsica, principalmente o esporte.
Ao valorizar a formao integral da criana, o discurso da Psicomotricidade, centrado na
educao pelo movimento , fez com que a Educao Fsica se tornasse meio para outras
disciplinas escolares, perdendo, assim, sua especificidade. A Psicomotricidade acabou por
substituir o contedo de natureza esportiva, at ento predominante na Educao Fsica
(Soares, 1997, no prelo).
e qualquer modo, a Psicomotricidade parece ter contribudo com a Educao
Fsica na medida em que mostrou a importncia do desenvolvimento e aprimoramento das
estruturas psicomotoras de base, e o consequente envolvimento do professor de Educao
Fsica com as responsabilidades escolares (Resende, 1992 e 1995; Soares, 1997, no prelo).
Isso talvez explique o seu sucesso entre os professores de Educao Fsica, que perdura
at hoje.
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utrainfluncia do debate psicolgico e pedaggico da dcada de 70 sobre a
Educao Fsica brasileira foi a perspectiva humanista, cujo referencial principal foi a
contribuio
de
Carl Rogers. O debate pedaggico na poca era polarizado em Rogers,
por um lado, defensor de uma atuao, tanto pedaggica quanto clnica, no diretiva e,
por
outro
lado, em Skinner, representante do comportamentalismo e defensor de um
procedimento pedaggico diretivo (Milhollan Forisha, 1978).
Na Educao Fsica, deve-se registrar o trabalho do professor Vitor Marinho de
Oliveira (1985), intitulado Educao Fsica humanista , que trouxe para a rea o debate
diretividade X no-diretividade. A proposta do autor, segundo Resende (1992 e 1995),
opunha-se viso fragmentada do comportamento humano, mecanizao e
automatizao de movimentos, expressos na nfase
ao
ensino esportivo assumido pela
Educao Fsica na dcada de 70
e,
mais especificamente, aos seus fundamentos
psicolgicos baseados no comportamentalismo.
Vale destacar que em 1984 o professor Inezil Penna Marinho, percebendo a
ampliao do campo de atuao da Educao Fsica que se delineava, props uma nova
denominao para ela e para seu profissional: cinesiologia e cinesilogo, nos mesmos
moldes da Psicologia e do psiclogo. Segundo ele, se a Psicologia se dedica ao estudo dos
fenmenos psquicos, a cinesiologia teria por objetivo o estudo dos fenmenos do corpo
em movimento. O autor afirmava que a denominao Educao Fsica era socialmente
pejorativa e profissionahnente estigmatizante (Marinho, 1984). Em que pese a falta de
cientificidade da proposta do autor e a ingenuidade em achar que uma nova denominao
poderia por si s transformar a Educao Fsica, importante ressaltar que sua
contribuio considerava a ampliao da viso que se tinha sobre a rea, e que sua
denominao tradicional expressava menos do que ela poderia realizar.
Um outro autor que ganhou destaque nos anos 80
foi
o professor Joo Batista
Freire. Resende (1992 e 1995) classifica sua produo como uma vertente da pedagogia
humanista, devido nfase dada pelo autor infncia, individualidade da criana, ao
estmulo criatividade e liberdade individual.
Ao criticar o papel alienado e alienante da Educao F JSica ao longo da histria,
Freire prope uma redescoberta do corpo, onde a Educao Fsica seria o carro chefe de
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uma educao conscientizadora. Diz o autor:
A Educao Fsica poderia deixar de ser a
tcnica de adestrar homens, para se tornar a tcnica que permitisse ao homem realizar,
com arte, cada movimento
(Freire, 1987, p.54 .
A educao da motricidade de que fala Freire se constituiria numa educao das
habilidades motoras que permitem ao homem expressar-se. Se pela motricidade que o
homem se expressa e se realiza, a educao da motricidade implicaria ao mesmo tempo
uma educao dos sentidos e dos snbolos. Em relao primeira, o autor enfatiza a
necessidade d criana ser estimulada a explorar seus sentidos. Em relao segunda, o
autor ressalta em sua proposta a importncia do jogo e do brinquedo, que, para ele, se
constituem numa fbrica de smbolos (Freire, 1992b e 1995).
Valorizando o conhecimento espontneo de jogos, brincadeiras e atividades
motoras que a criana possui, o autor faz uma crtica contundente escola, comparando-a
s prises. O autor afirma que a escola muitas vezes nega a cultura infantil, oferecendo
uma educao pouco significativa criana, roubando, assim, sua individualidade e
impedindo sua liberdade (Freire, 1992a). nesse sentido que Freire (1989) prope uma
educao de corpo inteiro, onde no s a cabea da criana seja matriculada na escola,
mas tambm seu corpo, conforme sua prpria expresso.
Talvez o sucesso de Joo Batista Freire na Educao Fsica brasileira seja devido
ao seu livro Educao de corpo inteiro , publicado em 1989, que se constitui numa
proposta terico-prtica de Educao Fsica escolar, sobretudo nas sries iniciais. Este
livro tornou-se manual para muitos professores, tanto de Educao Fsica como de outras
reas, sendo at hoje muito vendido. O autor tornou-se conhecido tambm por ter
assessorado a Secretaria de Educao do Estado de So Paulo em sua proposta de
Educao Fsica para o 1 grau, proposta esta que vigora at hoje.
na proposta de Educao Fsica do Estado de So Paulo que h uma definio
da linha terica adotada como sendo a construtivista-interacionista, baseada nos estudos
de Piaget e Ferreiro. Segundo esta teoria, a inteno a construo do conhecimento por
parte do aluno, a partir da interao do sujeito com o mundo, numa relao que extrapola
o simples exerccio de ensinar e aprender (So Paulo, 1991). A partir da, Freire passou a
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ser visto na rea como defensor
do
construtivismo, embora nos textos do autor
consultados no tenha sido possvel esta explicitao.
Dois livros, publicados coincidentemente no ano de 1983, foram determinantes no
sentido de marcarem o incio de reflexo e debates na Educao Fsica brasileira, com
referenciais oriundos das cincias humanas e preocupaes voltadas para a transformao
da sociedade. Ambos foram responsveis por grande vendagem, o que confirma a
demanda
dos
profissionais da rea, na poca, por trabalhos que analisassem criticamente a
Educao Fsica. Vitor Marinho de Oliveira publicou O que Educao Fsica , livro
introdutrio que tem por preocupao uma caracterizao da rea. O autor afirma que a
Educao Fsica se ressente de uma orientao filosfica que a conduza em direo s
suas finalidades. Afirma tambm que a Educao Fsica, enquanto cincia, aquela que
estuda o homem em movimento. Quando indica leituras, sugere quase exclusivamente
obras de autores estrangeiros, j que ainda no havia nessa poca uma produo brasileira
(Oliveira, 1983).
Joo Paulo Medina publicou no mesmo ano A Educao Fsica cuida do corpo
e . .'mente ', livro que, aps dois meses de seu lanamento, j partia para a segunda
edio. O sugestivo ttulo pressupunha que o objetivo da Educao Fsica era algo mais
que adestrar corpos. Nesse livro o autor afirmava que a Educao Fsica precisaria
urgentemente passar por uma crise de identidade, e que essa crise seria benfica para o
desenvolvimento da rea.
A obra de Medina possui um referencial terico com preocupaes sociais. Como
base para anlise dos valores veiculados pela Educao Fsica, o autor lana mo dos
estudos