educação física brasileira: autores a atores da década de 1980

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  • 7/25/2019 Educao Fsica Brasileira: Autores a Atores da Dcada de 1980

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL

    DE

    CAMPINAS

    FACULDADE

    DE EDUCAO FSICA

    EDUCAO FSICA BRASILEIRA

    AUTORES E

    ATORES

    DA DCADA DE 80

    JOCIMAR DAOLIO

    CAMPINAS

    997

    f-

    i.H4 C.4.ifl?'

    i lOTECA

    Cfi. \ Tlt:At.

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE

    DE

    EDUCAO FSICA

    EDUCAO FSICA BRASILEIRA:

    AUTORES E ATORES DA DCADA DE 8

    JOCIMAR DAOUO

    Orientador:

    Prof

    Dr

    Wagner

    W ey

    Moreira

    Este exemplar correspomle redao

    final

    da

    tese de doutoramento

    defendida por Jodmar Daolio e

    aprovada pela comisso julgadora em

    23 de Abril de 1997

    Data:

    Campinas

    1997

  • 7/25/2019 Educao Fsica Brasileira: Autores a Atores da Dcada de 1980

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    c

    o

    807 l

    FICHA CAT ALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA- FEF UNICA\1P

    D238e

    Daolio, Jocimar

    Educao Fsica brasileira: autores e atores da dcada de 80 Jocimar

    Daolio. -- Campinas,

    SP

    : [s

    n

    ], 1997.

    Orientador: Wagner Wey Moreira

    Tese doutorado)- Universidade Estadual de Campinas, Faculdade

    de Educao Fsica.

    1 Educao fsica- Discursos, ensaios e conferncias.

    2

    Etno

    grafia.

    3

    Discusses e debates.

    4

    Educao Fsica- Brasil - 1980-.

    I Moreira, Wagner Wey.

    IL

    Universidade Estadual de Campinas,

    Faculdade de Educao Fsica.

    IH

    Ttulo.

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    COMISSO JULG DOR

    Prof . Dra.

    Maria

    Beatriz Rocha

    erreira

    J 1 r ? K { _ , ? v . V ; ~

    Prof . Dra.

    Maria

    Lucia Montes -------- ..--L ~ _ _ _ L - - - = - - - . . ~ -

    Prof. Dr. Nelson Carvalho Marcellino

    it

    l

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    ara

    Celi Go Joo Lino Medina

    Victor e Vitor que alm de toda

    capacidade intelectual esprito

    desbravador e originalidade so

    pessoas apaixonadas e apaixonantes

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    SUM RIO

    RESUMO

    ABSTRACT

    I INTRODUO 1

    II. O OLHAR ANTROPOLGICO 4

    1 Pressupostos da Antropologia Social 4

    2 A Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz 8

    3 A Antropologia Interpretativa

    no

    Quadro das Antropologias 13

    4

    A Etnografia do Pensamento

    17

    4.1. Somos Todos Nativos 20

    4.2. Os nativos da Educao Fsica Brasileira 24

    UI A CONSTRUO DO DEBATE ACADMICO DA

    EDUCAO FSICA BRASILEIRA 27

    IV. OS AUTORES/ATORES DO PENSAMENTO

    ACADMICO DA EDUCAO FSICA BRASILEIRA 44

    1

    Pressupostos Metodolgicos 44

    2 Os Principais Personagens 50

    2.1. Victor Matsudo 50

    2.2. Joo Paulo Medina 54

    2.3. Vitor Marinho de Oliveira 56

    2.4. Lino Castellani Filho 59

    2.5. Celi Taffarel

    63

    2.6. Go Tani

    67

    2.7. Joo Freire

    70

    3 Os Papis Representados 73

    V

    CONSIDERAES FINAIS: PERSPECTIVAS PARA

    O DEBATE ACADMICO N EDUCAO FSICA

    BRASILEIRA

    85

    VI REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 93

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    RESUMO

    EDUCAO FSICA BRASILEIRA: AUTORES E ATORES DA DCADA DE 8

    Este trabalho props-se a analisar a construo do debate acadmico da Educao

    Fsica brasileira sobretudo na dcada de 80 quando ocorreu uma proliferao de

    discursos cientficos na rea. Para isso realizou uma etnografia do pensamento acadmico

    proposta metodolgica do antroplogo americano Clifford Geertz. O pressuposto para

    esta abordagem que o pensamento pode ser analisado no somente de forma singular

    como processo caracterstico da espcie humana mas tambm na sua dimenso pblica

    como produto do homem e portanto varivel e especfico.

    Os discursos acadmicos da Educao Fsica brasileira na dcada de 80 foram

    tomados como parte de um universo simblico que

    foi

    socialmente produzido e ainda

    socialmente mantido.

    As

    formas de pensamento da Educao Fsica foram analisadas

    como construes sociais representadas por um grupo de estudiosos seus autores e ao

    mesmo tempo atores uma vez que desempenharam papis relevantes nessa dramaturgia

    do pensamento cientfico da rea. A inteno foi desfocar a discusso de uma perspectiva

    de

    disputa entre

    as

    vrias abordagens da rea para a considerao de que todos os

    discursos sobre Educao Fsica foram importantes para compor o cenrio dentro do qual

    os atores envolvidos puderam desenvolver a trama da construo do pensamento

    acadmico da Educao Fsica brasileira.

    Aps as entrevistas com os principais personagens deste processo foi possvel

    perceber que a cientificidade da rea

    foi

    engendrada a partir de polarizaes do tipo

    progressista X reacionrio esquerda X direita social X biolgico impedindo muitas

    vezes o dilogo entre as pessoas. Essa polarizao embora no exclusiva da Educao

    Fsica teria levado absolutizao de tendncias na rea. Assim os representantes

    de

    cada pensamento tomaram-se personagens que assumiram determinados papis e

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    passaram a agir como defensores de uma abordagem de Educao Fsica como se esta

    fosse a melhor. Esses papis representados foram reforados por oposio pelos

    representantes de outros pensamentos e por confirmao pela platia composta pelos

    profissionais da rea espalhados pelos pas.

    Ao realizar uma etnografia do pensamento acadmico da Educao Fsica a

    inteno deste trabalho foi proporcionar um estranhamento m relao a ela que possa

    levar a um repensar da rea considerando as abordagens existentes mas sem

    s

    limitar a

    elas. Espera-se que este trabalho possa contribuir para uma melhor comunicao entre os

    representantes ou seguidores de cada uma das formas de pensar a Educao Fsica

    brasileira refutando uma postura preconceituosa de uma m relao

    outra. Assim

    acredita-se que possa ser profcuo o debate acadmico na rea.

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    ABSTRACT

    BRAZILIAN PHYSICAL EDUCATION: AUTHORS AND ACTORS IN THE 80 S

    The

    pro

    posai o f this study is to analyze the development o f the academic debate on

    Brazilian Physical Educaton, specally throughout the decade o the 80 s, when a

    prolferaton

    o

    scentfic lectures on the subject occured. For this purpose,

    an

    ethnography

    o academc thought, conssting o a methodological proposal made by the American

    anthropologist Clifford Geertz, was organzed. The presuppositon for this approach is

    that the thought can be analyzed, not only in it s individual form as a characterstic process

    o f the human species, but also on it s public dimension, as a product o f man; therefore,

    changeable and

    speci:fic

    The academic discourses ofBrazilian Physical Education in the 80 s were regarded

    as part o a symbolic universe whch was socially made and whch

    s

    still socially

    maintained. All types o Physical Education thought were analyzed as social constructions

    represented by a group o f scholars who were considered to be the authors o as well as the

    actors in these constructions, since they perform relevant roles in this dramaturgy o f ths

    field o scientific thought The ntenton was to divert the discusson from the prospectve

    debate among the various approaches o f the area to a different consideration: namely that

    ali the discourses on Physical Education were important to the compositon o f the scenario

    in whch the involved actors were able to establish the plot for the development

    o

    the

    academic thought o f the Brazilian Physical Education.

    After interviewing the most important personalities o f ths process, it was possible

    to understand that the scenti:fic character o f the area was influenced by the polarization o f

    the following types: progressive X reactionary, leftist X rightist, social X biologic, which

    often precluded dialogue among people. Such polarizaton, even though not exclusive o

    Physical Education, would have induced the tendencies o an absolute nature. Thus, the

    individuais representing each area

    o

    thought became characters playing certain roles.

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    These characters soon began to act as ardent defenders o certain approaches to Physical

    Education each defining his or her own as best. The performances o these roles were

    reinforced by the opposition o f those individuais representing other schools o f thought and

    also by the audience which was made up o professionals

    in

    the area from all over the

    country.

    One o the aims o carrying out an ethnography o Physical Education academic

    thought was to stimulate extraneous thinking

    in

    the area which may cause a rethinking o

    the existing approach without being restricted to it W e hope that this study can contribute

    to better communication among the representatives and followers o each school o

    thought and also persuade each representative

    o

    Brazilian Physical Education to refute

    any biased attitudes

    in

    relation to one another. Thus we believe th academic debate in

    this area

    t

    be positive.

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    I INTRO UO

    Este trabalho pretende analisar a construo

    do

    debate acadmico da Educao

    Fsica brasileira sobretudo a partir do

    fin l

    da dcada de 70 quando ocorreu uma

    proliferao de discursos cientficos na rea. Antes desse perodo havia uma certa

    aceitao de que a Educao Fsica era uma prtica escolar com objetivos de desenvolver

    a aptido fsica dos alunos e de inici-los na prtica esportiva. O respaldo terico provinha

    exclusivamente das cincias biolgicas.

    A partir do momento

    em

    que se iniciaram os cursos de ps-graduao na rea os

    primeiros brasileiros doutorados no exterior retornaram ao pas e vrios professores de

    Educao Fsica passaram a procurar qualficao acadmica

    em

    outras reas sobretudo

    das cincias humanas comearam a haver mais explicaes cientficas para um fenmeno

    que parecia no ser somente de natureza biolgica. Essa maor qualficao profissional

    levou tambm a um nmero crescente de eventos e de publicaes cientficas. Pela

    primeira

    v z

    comeava-se a vislumbrar uma comunidade cientfica da Educao Fsica

    brasileira.

    Se o debate acadmico iniciado mostrou-se altamente positivo levando a uma

    produo cientfica considervel tanto quantitativa quanto qualitativamente por outro

    lado parece que aconteceu tambm o acirramento de determinadas posies chegando

    algumas vezes a tornar impossvel a convivncia de pessoas representantes de linhas

    tericas diferentes. O que era para ser um saudvel debate acadmico transformou-se

    em

    disputa por espao

    no

    terreno cientfico da Educao Fsica.

    A anlise dos discursos acadmicos na Educao Fsica no inovadora. Vrias

    pesquisadores tm se debruado sobre este objeto de estudo. O que

    me

    move a este

    mesmo tema a possibilidade de realizar a anlise do pensamento cientfico da Educao

    Fsica sob outra perspectiva. Utilizarei para isso um referencial terico-metodolgico

    oriundo da Antropologia Social referencial este que tem se mostrado til para a anlise

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    de objetos de estudo especficos de vrias reas do conhecimento A justificativa para

    essa utilizao ser desenvolvida no prximo captulo, quando esboarei os pressupostos

    bsicos

    d

    Antropologia Social e a partir dela, da chamada Antropologia Interpretativa,

    contribuio recente do antroplogo americano Clifford Geertz. Discutirei em seguida o

    lugar desta proposta no quadro geral das Antropologias, segundo os estudos de Roberto

    Cardoso

    de

    Oliveira, at chegar chamada etnografia do pensamento cientfico.

    Trata-se de uma abordagem metodolgica que toma por objeto de anlise o

    pensamento acadmico moderno. O pressuposto que o pensamento - e o cientfico

    tambm - pode ser analisado no somente de forma singular, como um processo

    caracterstico da espcie humana, mas tambm na sua dimenso pblica como um produto

    do homem e, portanto, varivel e especfico. Assim, o pensamento pode ser analisado

    como uma construo social, que dotada de significados culturais ao se apresentar como

    vivel num determinado contexto.

    No caso especfico desta pesquisa, pretendo fazer uma etnografia do pensamento

    cientfico d Educao Fsica brasileira, principalmente na dcada de 80, quando passou a

    haver um efetivo debate acadmico na rea. Estarei considerando minha observao

    participante' nesse processo de construo do debate acadmico na Educao Fsica, no

    como autor/ator, mas como um professor recm-formado que atuava no ensino pblico de

    1 grau e que, a partir do final dos anos 70, passou a acompanhar - inicialmente, como

    ouvinte - o nascente debate acadmico na rea. Essa observao me permitir identificar

    os autores mais relevantes no perodo, bem como as tendncias que passaram a defender.

    Aps essa identificao, entrevistarei os principais autores/atores desse processo,

    procurando compreender qual o conjunto de valores, pressupostos e significados que

    deram sustentao criao de cada discurso acadmico e como eles so atualizados.

    1

    Na prpria Educao Fsica j se tem conhecimento de alguns estudos recentes que lanam mo do

    referencial antropolgico para a anlise de questes prprias da rea. Hugo Lovisolo, antroplogo de

    formao, tem utilizado o chamado olhar antropolgico para estudar a Educao Fsica. Sua publicao

    mais conhecida Educao Fsica: a arte da mediao

    Em minha dissertao de mestrado, intitulada A representao do trabalho do professor de Educao

    Fsica na escola: do corpo matria-prima ao corpo cidado, utilizei tambm uma abordagem antropolgica

    para a anlise do trabalho escolar de Educao Fsica. A dissertao foi publicada em livro, com o ttulo

    Da cultura do corpo.

    2

    Oportunamente desenvolverei os principais pressupostos da Observao Participante, um dos tipos de

    abordagem metodolgica utilizado em cincias

    humanas

    2

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    o

    entrevistar os principais autores da Educao Fsica brasileira no estou

    pretendendo avaliar sua capacidade de estruturao de um pensamento cientfico que

    contribua para a rea. Estou considerando que estes autores foram capazes de aliar um

    certo discurso cientfico a uma certa demanda dos profissionais criando uma sintonia que

    permitiu - e ainda permite - a veiculao de uma srie de valores que procuram dar

    sentido no s prpria Educao Fsica como tambm tendncia que defendem. Nesse

    sentido os autores so tambm atores que encarnam determinados personagens

    manipulam certos simbolos desempenhando assim papis altamente relevantes nessa

    contnua encenao e reencenao da Educao Fsica brasileira.

    Realizando uma etnografia do pensamento contemporneo da Educao Fsica

    brasileira pretendo considerar as diferenas e semelhanas existentes entre os vrios

    discursos acadmicos da rea. Estes dados explicitados e oferecidos comunidade da

    Educao Fsica certamente podero contribuir para uma melhor comunicao entre os

    representantes ou seguidores de cada uma das tendncias refutando uma postura

    preconceituosa de uma em relao outra. Assim acredito que possa ser profcuo o

    debate acadmico na rea.

    3

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    11 O OLH R ANTROPOLGICO

    1

    PRESSUPOSTOS

    D

    ANTROPOLOGIA SOCIAL

    A Antropologia configurou-se como cincia a partir de meados do sculo XIX,

    surgindo, inicialmente, para dar conta da compreenso

    de

    homens que viviam em regies

    longnquas e apresentavam comportamentos exticos

    em

    relao ao homem europeu. Essa

    Antropologia ficou conhecida como Evolucionista, influenciada pelos trabalhos de Charles

    Darwin, que afirmavam, em sntese, que todos os seres vivos passavam por uma evoluo

    e que o

    homem

    no foi poupado deste processo. Assim,

    os

    povos encontrados no mundo

    eram considerados num estgio de desenvolvimento anterior ao homem europeu do sculo

    XIX.

    organ

    1946), um dos prncipais representantes do pensamento evolucionista,

    chegou a classificar a humanidade como dividida em trs categorias bsicas: selvageria,

    barbrie e civilizao. As diferenas entre as trs categorias deviam-se, segundo Morgan, a

    ritmos de desenvolvimento desiguais.

    O modelo cientfico adotado era, como no poderia ser diferente em funo da

    poca, o das cincias naturais, j que a Sociologia apenas comeava a se estruturar e a

    Antropologia efetivamente social precisaria esperar a virada do sculo para se configurar

    como cincia. Assim, a Antropologia do sculo XIX colocava como seu objeto de estudo

    os homens geograficamente distantes, ou historicamente anteriores, ou culturalmente

    desiguais, evidenciando a clssica separao sujeito-objeto oriunda das cincias da

    natureza Laplantine, 1988).

    O pensamento evolucionista foi fundamental

    no

    sentido de considerar todos os

    ndivduos recm-descobertos como humanos, um

    vez

    que alguns sculos antes havia

    dvidas se os homens encontrados em regies longnquas poderiam ser considerados

    como membros da humanidade, de to exticos que eram. Entretanto, por outro lado, este

    pensamento era preconceituoso e etnocntrico, medida que considerava as diferenas

    4

  • 7/25/2019 Educao Fsica Brasileira: Autores a Atores da Dcada de 1980

    15/107

    existentes

    entre

    os homens como desigualdades, justificando ainda a prtica da

    colonizao.

    Na

    vir d do

    sculo XX, Malinowski, Boas e Rivers, entre outros, comearam a se

    preocupar

    com

    a coleta de dados in loco fato que no era considerado pelos estudiosos

    da poca,

    os

    chamados antroplogos

    de

    gabinete. Eles perceberam que por trs de

    comportamentos aparentemente estranhos das tribos encontradas, havia uma lgica que

    ordenava as

    su s

    aes. Eles comeavam a intuir

    um

    novo conceito de cultura, no apenas

    fundado nas produes de um grupo que deveriam ser reunidas, mas ligado ao prprio

    conjunto de significados que cada grupo

    d

    s suas produes.

    De

    fato, a famosa definio

    de cultura

    de

    Edward Tylor

    3

    ,

    um dos mais ilustres representantes da Antropologia

    Evolucionista, referia-se a um ( .. )

    todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte,

    leis, moral, costumes, e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem

    enquanto membro d sociedade

    (apud Mercier, 1986, p.96). Se esse todo complexo

    pudesse ser reunido, teria-se apreendido as especificidades

    de

    um certo povo, sem a

    necessidade do antroplogo se deslocar s tribos.

    Com seu trabalho de campo, Malinowski, Boas e Rivers no estavam apenas

    criando novas tcnicas de pesquisa, mas resolvendo um impasse epistemolgico da

    Antropologia: at quando se poderia continuar falando de outros homens sem ouvi-los,

    v-los e tentar compreend-los a partir de seus prprios referenciais? O que estes

    precursores estavam inferindo

    no

    incio do sculo XX era o prprio desgaste de uma

    abordagem prpria das cincias naturais

    no

    trato com os homens. Metodologicamente,

    estavam criando a etnografia, que se resume numa minuciosa e sistemtica coleta de dados

    sobre um determinado grupo humano, e que at hoje prtica costumeira de antroplogos

    ou

    de quem utiliza a Antropologia como referencial para suas pesquisas. A etnografia

    pressupe a nfase na explorao do fenmeno social particular, mais que no teste de

    hipteses; pressupe tambm o trabalho com dados no estruturados em categorias

    analticas; implica investigar um pequeno nmero de casos

    em

    detalhe e na interpretao

    dos significados e funes das aes humanas (Atkinson Hammersley, 1994).

    3

    Edward B. Tylor. Primitive culture: researches in o lhe development of mythology, philosophy, religion,

    ar custom. Gloucester, Mass., Smith, 1871.

    5

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    16/107

    Ora,

    om

    a criao da etnografia no inicio

    do

    sculo XX, no se criava apenas

    um

    mtodo de trabalho, mas

    um

    nova forma de olhar os homens, no somente aqueles que

    possuam hbitos exticos, mas todos os homens. Segundo Brando (1985), o que

    Malinowski estava criando ao conviver com os nativos das Ilhas Trobriand era uma

    atitude perante os homens. Se a etnografia introduzia a questo do significado das aes

    humanas, compreender o outro no se resumia somente

    no

    estudo

    de

    membros

    de

    sociedades distantes, mas inclua a anlise e interpretao de grupos vizinhos e

    contemporneos.

    Nas dcadas seguintes, a Antropologia passou a considerar a reflexividade. Dessa

    forma, o que era desigual

    no

    comportamento humano, passou a ser considerado como

    diferente e o conceito de cultura j no comportava mais juzos de valor como melhor ou

    pior, mais

    ou

    menos evoludo, passando a ser visto como um processo particular

    devidamente coerente, dando sentido a um grupo especfico. Assim, o comportamento

    humano pde ser analisado como expresso cultural, considerando-se a experincia

    individual como a base para a constituio

    do

    campo das representaes (Macedo, 1985).

    Esse referencial tem sido utilizado atualmente nas pesquisas da chamada

    Antropologia das Sociedades Complexas, que estuda grupos contemporneos, tais como

    operrios, professores, grupos religiosos (Brando, 1987). A Antropologia que se pratica

    hoje no est mais necessariamente vinculada a um espao geogrfico, cultural ou

    histrico particular, permitindo, assim, uma ampliao de seu campo de atuao (Kuper,

    1978).

    Laplantine (1988) afirma que a Antropologia constitui-se num certo olhar, num

    certo enfoque, que consiste em estudar o homem inteiro e em todas as sociedades. Esse

    olhar antropolgico implica saber que um grupo especfico possui comportamentos,

    que, por mais estranhos ou familiares que paream, fazem sentido no contexto daquele

    grupo e que a condio de pesquisador no lhe

    d

    o direito de impor suas opinies ou

    fazer de seu julgamento uma forma de preconceito. Nessa linha

    de

    pensamento, Laplantine

    (1988) pode afirmar que

    ( .. ) aquilo que os seres humanos tm

    em

    comum

    sua

    capacidade para

    se

    diferenciar uns dos outros ( . .

    (p.22). Em outros termos, o que

    caracteriza o homem menos suas similaridades biolgicas universais, e mais suas

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    diferenas culturais especficas.

    essa variabilidade que torna a humanidade plural e faz

    com que os homens, embora pertencentes todos mesma espcie, se expressem

    diferentemente em termos culturais.

    eertz (1989) afirma que o papel do antroplogo resume-se em olhar por sobre o

    ombro dos indivduos, procurando interpretar a lgica simblica e sua atuao social.

    por isso que ele afirma que a Antropologia uma leitura de segunda mo da realidade de

    um grupo, porque apenas tenta ter acesso a um conjunto de signficados que pertencem

    aos prprios indivduos membros do grupo.

    O pressuposto da pesquisa antropolgica o de que a experincia individual ou

    grupal uma expresso sinttica da cultura onde o indivduo ou o grupo vive, cabendo ao

    pesquisador o mapeamento e a reconstruo da lgica que ordena seus comportamentos.

    Como no existem comportamentos exclusivamente naturais, o pesquisador deve tentar

    decifrar, nos valores e atitudes de indivduos ou grupos, a expresso de uma construo

    social que s se compreende quando referida a aspectos globais da sociedade. Como

    afirma Durharn (1977), a noo de cultura parte

    o

    estabelecimento de uma unidade

    fundamental entre ao e representao, unidade que est dada em todo comportamento

    social. A partir da investigao do comportamento de grupos concretos, o trabalho de

    pesquisa em Antropologia procura compreender o universo de signficados que ordena e

    d

    sentido s aes humanas.

    nesse contexto que DaMatta (1978) afirma que:

    .

    .) a Antropologia Social uma disciplina da comutao e da

    mediao. E com isso quero simplesmente dizer que talvez mais do que

    qualquer outra matria devotada ao estudo do Homem, a Antropologia

    aquela onde necessariamente se estabelece uma ponte entre dois

    universos ou sub universos) de significao . .

    p.27).

    Assim, fazer pesquisa em Antropologia pressupe colocar-se no lugar do outro,

    relativizando - para utilizar um termo caro Roberto DaMatta - tanto o papel de

    pesquisador, como de seu objeto de estudo, que, nesse caso, tambm e simultaneamente,

    constitui-se em sujeito. A frmula apresentada por DaMatta (1978) para essa

    relativizao composta por uma dupla tarefa: transformar o extico em familiar e, ao

    7

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    18/107

    mesmo tempo o familiar em extico. A primeira tarefa corresponde ao movimento

    original da Antropologia, quando se buscava compreender os hbitos estranhos dos

    nativos. A segunda tarefa corresponde ao momento presente da Antropologia, que se

    volta para

    a nossa prpria sociedade, tendo que estranhar o que tradicional. A

    transformao do extico em familiar realizada pela via intelectual, por meio de

    apreenses cognitivas. J a transformao do familiar em extico implica um desligamento

    emocional, buscando o observador desacostumar-se de um hbito que lhe prprio.

    nesse movimento simultneo entre as duas tarefas que o antroplogo procura

    compreender

    os

    significados das aes humanas, confrontando subjetividades e delas

    tratando. por isso que o autor afirma que a Antropologia

    um

    mecanismo dos mais

    importantes para deslocar nossa prpria subjetividade.

    Esse referencial antropolgico, como se v, pode ser utilizado por outras reas do

    conhecimento, sobretudo nas pesquisas de cunho qualitativo, j que permite um

    deslocamento do papel e do lugar do pesquisador, abrindo a ele novas perspectivas de

    anlise

    de

    objetos diversos, possibilitando, assim, uma melhor compreenso do homem nas

    suas vrias expresses, atitudes e locais de atuao.

    2 A ANTROPOLOGIA INTERPRETATIVA DE CLIFFORD GEERTZ

    4

    Clifford Geertz ficou conhecido por ter criado a chamada Antropologia

    Interpretativa. Para

    ele

    a Antropologia no deve ser vista como uma cincia experimental

    em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa procura do significado. Para

    justificar sua procura pelo significado das aes humanas, Geertz recorre Semitica,

    4

    Clifford Geertz americano, nascido em 1926. Seus primeiros escritos datam da dcada de

    60

    mas

    seu

    trabalho mais conhecido a Interpretao das culturas, publicado em 1973 e traduzido para o portugus,

    inicialmente em 1978, e republicado em 1989, reunindo textos escritos desde 1957. Outro trabalho seu que

    tambm ficou conhecido, e

    que

    usaremos em nosso estudo, Local knowledge,

    de

    1983, ainda sem

    traduo para o portugus. Mais recentemente 1988) publicou Works and lives: lhe antropologist

    as

    author, traduzido para o espanhol em 1989.

    8

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    19/107

    inspirado

    m

    Peirce. com essa abordagem que o autor lana mo da interpretao em

    Antropologia, procurando, segundo ele, traar a curva de

    um

    discurso social, fixando-o

    numa forma inspecionvel . Partindo dos pressupostos da Semitica de Peirce (1975),

    entre

    os

    quais, um signo, de algum modo, representa algo para algum, Geertz prope-se

    a uma compreenso das formas simblicas humanas, atravs de uma leitura da cultura de

    um povo como se fosse um conjunto de textos. Dessa forma, ope-se ao estruturalismo de

    Lvi-Strauss, que

    se

    prope a decifrar os cdigos internos s aes humanas (Azzan

    Jnior, 1993). Utilizando a metfora de Max Weber, de que o homem um animal

    amarrado a teias

    de

    significados que ele mesmo teceu, Geertz assume a cultura como

    sendo essas teias e sua anlise (1989).

    O conceito de cultura de Geertz est distante tanto de uma determinada concepo

    psicolgica que toma a cultura como produto das mentes individuais, como de uma

    concepo tpica

    do

    evolucionismo que a entende como o conjunto de produes de um

    povo. Refuta tambm a definio de homem, para a qual as exterioridades culturais

    deveriam ser desvendadas na busca de um homem natural, o bom selvagem. Alm disso,

    Geertz recusa o conceito de homem oriundo da Antropologia Clssica, que buscava, a

    partir da anlise das especificidades culturais dos povos, um homem consensual (1989).

    A cultura para Geertz pblica, porque o significado o , existindo no posto

    comercial, no forte da colina, no

    pastoreio de carneiros, no mercado, na praa da cidade,

    enfim, em todo e qualquer lugar onde existam homens interagindo. Afirma ele:

    A cultura,

    esse documento de atuao, portanto pblica ( .) Embora uma ideao, no existe na

    cabea de algum; embora no-fsica, no uma identidade oculta

    (1989, p.20).

    Com essa abordagem semitica, Geertz amplia a noo de etnografia, de uma

    descrio neutra e quase assptica, para uma verdadeira busca de significados nos

    comportamentos humanos. O autor lana mo da expresso descrio densa , criada pelo

    filsofo Gilbert Ryle, para classificar a etnografia, cujo objetivo no apenas descrever,

    mas realizar uma hierarquia estratificada

    de

    estruturas significantes (1989).

    Para esclarecer o objetivo da descrio densa, Geertz utiliza um exemplo

    de

    Ryle

    no qual dois garotos esto piscando rapidamente o olho direito. Os movimentos de ambos

    so idnticos, entretanto, o primeiro possui um tique involuntrio, enquanto o segundo

    9

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    realiza uma piscadela conspiratria. O primeiro apenas contrai a plpebra, enquanto o

    segundo, ao contrair a plpebra e piscar, realiza um ato pblico.

    De

    fato, ele s realiza a

    piscadela

    porqu

    sabe que ser compreendido. H um significado pblico no seu ato

    (1989).

    O mesmo exemplo poderia ser ampliado se considerssemos, como faz Ryle um

    terceiro garoto que imita o tique

    do

    primeiro. H uma mudana de significado, j que o

    terceiro garoto no est nem realizando o tique, nem fazendo uma piscadela conspiratria.

    Poder-se-ia imaginar um quarto garoto, que ensaia em sua casa o tique

    do

    primeiro

    garoto, para depois apresentar ao grupo. E um quinto garoto, que poderia fingir uma

    piscadela conspiratria, sem no entanto possuir qualquer mensagem (1989).

    Este exemplo serve para dar a dimenso do projeto de Geertz para a Antropologia.

    Uma etnografia apenas descritiva talvez no diferenciasse os garotos piscando, porque

    objetivamente eles esto fazendo o mesmo movimento. Entretanto, quando se reporta ao

    significado de suas aes, temos cinco situaes diferentes.

    por isso que Geertz (1989)

    afirma:

    A anlise cultural ou deveria ser uma adivinhao dos significados,

    uma avaliao das conjeturas, um traar de concluses explanatrias a

    partir das melhores conjeturas e no a descoberta do Continente dos

    Significados e o mapeamento da sua paisagem incorprea (p.30-31).

    Segundo o autor, as caractersticas de uma descrio etnogrfica so: ela

    interpretativa; o que ela interpreta o fluxo

    do

    discurso social; e, por ltimo, essa

    interpretao tenta salvar o dito num discurso do risco de extinguir-se, e fix-lo numa

    forma inspecionvel . A essas trs caractersticas, Geertz acrescenta mais uma, afirmando

    que a etnografia microscpica, no sentido de que ela realizada de forma

    contextualizada,

    ou

    seja, ela deve partir da anlise de grupos especficos em situaes

    particulares e no de grandes modelos ou sistemas para toda a humanidade.

    nesse

    sentido que Geertz afirma que a cultura, ao invs de um poder ao qual poderiam ser

    atribudas as causas de acontecimentos sociais, um contexto, dentro do qual estes

    mesmos acontecimentos podem ser descritos de forma inteligvel (1989).

    1

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    Para o autor, o que tem prejudicado essa compreenso contextualizada de cultura

    uma

    idia

    de

    homem universal e a busca de elementos comuns em todos

    os

    homens.

    Assim, Geertz refuta o que ele chamou de concepo estratigrfica da natureza do

    homem,

    segundo

    a qual os fatores biolgico, psicolgico, social e cultural estariam

    superpostos

    no

    homem. Portanto,

    para

    se chegar

    essncia universal humana, como se

    pretendia no Evolucionismo do sculo XIX, bastaria r isolando camada por camada at

    se chegar

    ao

    ncleo, onde estariam

    os

    fundamentos biolgicos. Nessa concepo, h a

    reivindicao de autonomia para cada camada, dividindo o homem e dificultando sua

    compreenso global (1989).

    Em contrapartida concepo estratigrfica, Geertz prope como prpria da

    Antropologia a concepo sinttica de homem, na qual os fatores biolgicos, psicolgicos,

    sociolgicos e culturais possam ser tratados como variveis dentro de sistemas unitrios

    de anlise.

    o

    invs de se tentar buscar caractersticas humanas universais e,

    por

    isso

    mesmo, abstratas, Geertz opta pela anlise dessas variveis em situaes culturais

    particulares. Assim, Geertz amplia a idia de cultura como um complexo de padres

    concretos de comportamentos, composto por costumes, usos, tradies, hbitos,

    preferindo trat-la como um conjunto de mecanismos de controle, composto por planos,

    receitas, regras, instrues, e que servem para governar o comportamento humano (1989).

    Ora, esses mecanismos de controle so construdos, reconstrudos e transformados

    num processo dinmico de um grupo especfico. Segundo Geertz, todos os homens

    comeam

    com

    um equipamento natural para viver milhares de espcies de vidas, mas

    acabam por viver apenas um tipo de vida culturalmente localizado. Traar uma linha

    divisria entre o que natural, universal e constante no homem, e o que convencional,

    local e varivel seria, segundo o autor, falsificar a situao humana (1989).

    Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de

    funcionar, h um vcuo que ns mesmos devemos preencher, e ns o

    preenchemos com a informao

    ou

    desinformao fornecida pela

    nossa cultura

    (Geertz, 1989, p.62).

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    Essa

    informao cultural peculiar e intrfuseca a um determinado grupo. na sua

    particularidade que cada grupo especfico desenvolve seus padres culturais, que se

    constituem em sistemas organizados de snbolos signficantes, responsveis pela vida em

    grupo dos

    homens

    (1989).

    o

    considerar um conceito semitico de cultura e se propor a interpretar os

    snbolos signficantes nas condutas humanas, Geertz estabelece um novo estatuto para a

    Antropologia, inclusive reconhecendo seus limites. Segundo ele, os textos antropolgicos

    so interpretaes de segunda e terceira mo, porque, na verdade, somente um nativo

    faz a interpretao em prneira mo. nessa linha de pensamento que o autor afirma que

    a Antropologia uma fico, no porque seja falsa, no fatual

    ou

    apenas fruto de

    experimentos do pensamento, mas porque pressupe uma construo (1989).

    Em relao amplitude

    da

    anlise antropolgica e sua capacidade de

    generalizao, Geertz afirma que no possvel generalizar atravs dos casos, mas dentro

    deles. A primeira situao - generalizar atravs dos casos - seria prpria das cincias

    naturais,

    onde

    se procura, a partir de um conjunto de observaes, estabelecer uma

    lei

    ordenadora universal. Generalizar dentro dos casos o que feito em medicina

    ou

    em

    psicologia clrica: uma inferncia, que comea

    com

    um conjunto de signficantes

    presumiveis, para, em seguida, tentar enquadr-los de forma inteligvel. Afirma Geertz

    (1989):

    No estudo da cultura, os significantes no so sintomas ou conjuntos

    de

    sintomas, mas atos simblicos ou conjuntos de atos simblicos e o objetivo no a

    terapia, mas a anlise do discurso social (p.36).

    Pelo fato de realizar urna interpretao dos signficados e de buscar a compreenso

    dos padres culturais de grupos particulares, que Geertz (1989) afirma que,

    em

    etnografia: ( .. ) o dever

    da

    teoria

    fornecer um vocabulrio no qual possa ser expresso

    o que o ato simblico

    tem

    a dizer sobre ele mesmo - isto

    ,

    sobre o papel

    da

    cultura

    na

    vida humana (p.38).

    Assn, pode-se compreender a afirmao de Geertz (1989) de que

    (

    .. ) a anlise

    cultural intrinsecamente incompleta

    e

    o que pior, quanto mais profunda, menos

    completa (p.39). Isto porque a Antropologia no est buscando as causas nutveis para

    os

    comportamentos humanos, nem pretendendo estabelecer leis invariantes para as

    2

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    condutas

    dos

    homens. A Antropologia - pelo menos a Interpretativa de Geertz - est

    compreendendo

    os

    significados, interpretando-os. Fazendo isso, ela est contribuindo,

    segundo o

    autor

    para o (

    .. )

    alargamento do universo do discurso humano (1989,

    p.24).

    3

    NTROPOLOGI INTERPRET TIV

    O

    QU DRO D S

    NTROPOLOGI S

    Parece importante saber qual o papel ocupado pela Antropologia Interpretativa no

    quadro das Antropologias. Para isso, recorrerei

    Oliveira (1988), que tem desenvolvido o

    interessante trabalho de (

    ..

    )pensar o pensamento antropolgico( ..

    )

    (p.9), segundo sua

    prpria expresso, buscando, assim, conformar a matriz disciplinar da Antropologia.

    Segundo o autor, matriz disciplinar constitui-se (

    .. )

    numa articulao sistemtica de um

    conjunto de paradigmas, condio de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada

    u ativos e relativamente eficientes (p.15). Se nas cincias naturais,

    os

    paradigmas so

    substitudos

    um

    pelo outro numa contnua sucesso, por meio das revolues cientficas

    - termo caro Thomas Kuhn -, na Antropologia e nas cincias sociais eles coexistem

    simultaneamente, sem que um novo paradigma elimine o anterior.

    Definido o seu conceito de paradigma, Oliveira (1988) destaca na histria da

    Antropologia - no s brasileira - duas tradies, a intelectualista e a empirista, cruzando

    as com duas perspectivas caracterizadas pela categoria tempo, chamando-as de sincronia e

    diacronia, delineando o quadro a seguir:

    13

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    Tradio

    INTELECTU LIST

    EMPIRIST

    Tempo

    Escola Francesa de Escola Britnica de

    SINCRONI

    Sociologia

    -

    Paradigma Antropologia

    -

    Paradigma

    racionalista e, em sua forma Estrutural-funcionalista

    moderna, estruturalista

    1)

    (2)

    Antropologia Interpretativa Escola Histrico-cultural''

    DI CRONI

    Paradigma hermenutico Paradigma culturalista

    4)

    3)

    (Oliveira, 1988)

    No espao

    de

    n.l, fruto do cruzamento da tradio intelectualista com a

    perspectiva temporal sincrnica, o autor destaca a Escola Francesa de Sociologia, cujos

    representantes m is clebres so Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl,

    e,

    mais recentemente,

    Lvi-Strauss. Os dois primeiros foram precursores da criao de uma nova disciplina, que

    no deveria se confundir nem com a Psicologia, nem com a Filosofia, abrindo espao,

    assim, para a nascente Antropologia Social. Durkheim e Mauss, como herdeiros da

    tradio intelectualista franco-germnica, privilegiam a conscincia racional e abstraem de

    seus estudos a noo de tempo histrico, motivo pelo qual Oliveira (1988) coloca a Escola

    Francesa de Sociologia na categoria sincronia no referido quadro.

    No espao

    de

    n.2, o autor coloca a Escola Britnica de Antropologia, respaldada

    pelo paradigma estrutural-funcionalista, e tendo por representantes clebres Rivers e

    Radcliffe-Brown. Este grupo - Rivers, inicialmente - caracterizava-se pela observao de

    sociedades in loco, contrariamente pesquisa antropolgica terica do sculo XIX,

    motivo que o coloca dentro da tradio empirista.

    Ao

    criticarem o pensamento

    evolucionista, que se caracterizava pela preocupao histrica, j que falava dos vrios

    grupos humanos como etapas de desenvolvimento, eles acabam por anular o fator tempo,

    14

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    motivo pelo qual se enquadram, assim como os representantes da Escola Francesa de

    Sociologia, na categoria sincronia.

    No espao de n.3, Oliveira (1988) refere-se Escola Histrico-Cultural,

    fundamentada no paradigma culturalista, surgido nos Estados

    V

    nidos no final do sculo

    XIX

    com Franz

    Boas, inicialmente, e, depois, com Kroeber, Benedict, Mead, Kluckhohn,

    Sapir e outros Como a Escola Britnica, a Escola Histrico-Cultural continua

    preocupando-se com a anlise minuciosa in lo o de outras sociedades. Entretanto, o que a

    diferencia daquela o fato de recuperar a noo de tempo, reintroduzindo a histria no

    horizonte da Antropologia. No a histria evolucionista do sculo XIX, que propunha

    grandes sequncias de desenvolvimento para a humanidade, mas a histria que realiza

    mudanas psicolgicas no indivduo. Da a alocao da Escola Histrico-Cultural na

    categoria diacronia.

    Finalmente, o espao de n.4, Oliveira (1988) reserva Antropologia

    Interpretativa, sustentada pelo paradigma hermenutica, cujos representantes so

    Heidegger, Gadamer, Dilthey e Ricoeur, sendo apropriada pela Antropologia por Geertz.

    Oliveira (1988) defende que somente no pensamento hermenutica vai ocorrer a

    interiorizao do tempo - ou da histria -, uma vez que no ato da interpretao que o

    pesquisador hermeneuta coloca-se perante seu objeto de estudo de uma forma

    intersubjetiva. Ele no s deve admitir sua posio histrica, mas utiliz-la como condio

    do conhecimento. O prprio Geertz defende a intersubjetividade para compreender

    como o significado num sistema de expresso pode ser expresso noutro, trabalho que

    seria, segundo o autor, tarefa de uma hermenutica cultural e no de uma mecnica

    conceptual. nesse sentido que o autor fala de uma traduo cultural (no original,

    cultural translation ) como tarefa da Antropologia, buscando uma transferncia de

    sentido entre os comportamentos humanos analisados e o pesquisador. Afirma Geertz

    (1989):

    O ponto global da abordagem semitica da cultura como

    disse

    auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os

    nossos sujeitos de forma a podermos num sentido um tanto mais

    amplo conversar

    com

    eles

    (p.35).

    5

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    Oliveira (1988) afirma que a justificativa

    do

    trabalho de traduo cultural de

    Geertz o conceito de fuso de horizontes, expresso cara hermenutica, utilizada,

    inicialmente, por Gadamer, e posteriormente, por Ricoeur. Esse conceito refere-se :

    (

    ..

    ) transformao

    da

    histria exteriorizada e objetiva

    em

    historicidade, viva e vivenciada nas conscincias dos homens,

    e

    por

    certo, do antroplogo. A fuso de horizontes implica que na penetrao

    do horizonte do outro, no abdicamos

    de

    nosso prprio horizonte.

    Assumimos nossos preconceitos

    (Oliveira, 1988, p.21).

    Voltando

    ao quadro das matrizes disciplinares da Antropologia, Oliveira (1988)

    destaca um movimento circular que parte da Escola Francesa de Sociologia at a

    Antropologia Interpretativa, passando, respectivamente, pela Escola Britnica e Histrico

    Cultural.

    egundo

    ele,

    os

    trs primeiros paradigmas, o racionalista, o estrutural

    funcionalista e o culturalista, so responsveis por uma configurao da Antropologia

    dentro de uma concepo cientificista, por valorizarem as idias de razo e objetividade.

    Esses trs paradigmas priorizaram sempre a organizao social, as instituies,

    os

    grupos

    organizacionais e os padres culturais. Por isso, Oliveira (1988) define-os como

    paradigmas da

    ordem, por domesticarem e no conseguirem trabalhar direta e

    efetivamente com trs elementos essenciais: a subjetividade, o indivduo e a histria.

    Somente com o paradigma hermenutica, apropriado pela Antropologia

    Interpretativa de Geertz, que ocorre a considerao eficaz da subjetividade, do indivduo

    e

    da

    histria. Aqui, a Antropologia perde o seu carter cientificista, j que se preocupa

    com

    o sentido e com a contextualizao dos comportamentos humanos. Ao pretender a

    interpretao dos significados, Geertz prope uma Antropologia que, no dizer de Oliveira

    (1988),

    (

    ..

    )interiorizando o tempo, exorciza a objetividade

    (p.22).

    O mesmo autor mostra-nos como o paradigma hermenutica reformula

    os

    trs

    elementos domesticados pelos chamados paradigmas

    da ordem:

    ( .. ) a subjetividade

    que

    liberada

    da

    coero

    da

    objetividade,

    toma

    sua

    forma socializada, assumindo-se como inter-subjetividade; o indivduo,

    igualmente liberado das tentaes do psicologismo, toma sua forma

    personalizada (portanto o indivduo socializado) e no teme assumir

    16

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    sua individualidade; e a histria, desvencilhada das peias naturalistas

    que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente, pois dela

    se

    esperava fosse objetiva, toma sua forma interiorizada e se assume

    como historicidade (Oliveira, 1988, p.97).

    assim

    que esses trs elementos devidamente reformulados - a intersubjetividade,

    a individualidade e a historicidade - passam a atuar como fatores de desordem da

    Antropologia tradicional, circunscrevendo a nova Antropologia. Oliveira (1988) afirma

    que a introduo do problema hermenutica na disciplina veio enriquec-la, medida que

    trouxe Antropologia uma perspectiva crtica sistemtica.

    Entretanto, se o paradigma hermenutica tem contribudo nas ltimas dcadas para

    uma crtica da concepo cientificista que reinou na Antropologia, no se pode afirmar

    que ele tenha substitudo outros paradigmas. Como nos alerta Oliveira (1988), em cincias

    humanas

    os

    paradigmas coexistem simultaneamente. Essa coexistncia d-se atravs de

    tenses entre os paradigmas; tenses essas que no s devem ser levadas em conta pelos

    pesquisadores, como so extremamente saudveis para o prprio desenvolvimento de cada

    rea cientfica. O autor lembra-nos que vrios antroplogos renomados, como

    Malinowski, Evans-Pritchard, Leach e outros, no puderam ser classificados em nenhuma

    das escolas,

    por

    transitarem consciente e criticamente entre elas.

    4 A

    ETNOGR FI

    DO PENS MENTO

    Talvez o maior desenvolvimento da obra de Clifford Geertz tenha sido a proposta

    de uma etnografia do pensamento cientifico, projeto este que no somente um

    empreendimento da Antropologia, mas que, partindo dela, extrapola seus limites e torna

    se um projeto meta-disciplinar. Segundo Oliveira (1988),

    ( .. )

    se

    a experincia

    antropolgica no monopolizar o olhar d 'etnografia do pensamento', certamente ela

    constituir a

    su

    base (p.163).

    17

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    28/107

    Mas, por que a Antropologia seria responsvel pela estruturao da etnografia do

    pensamento? E por que Geertz quem estabelece contornos mais ntidos para este

    projeto?

    orque

    a etnografia, enquanto prtica metodolgica, foi criada dentro da

    Antropologia, por pesquisadores que, na virada

    do

    sculo XX, comearam a se preocupar

    em investigar as tribos nos locais onde elas estavam. Ao deixarem o papel de antroplogos

    tericos, eles passaram a reconhecer a lgica interna que rege os comportamentos de cada

    povo especfico. Esses precursores estavam rejeitando a especulao em favor de

    investigaes empricas e, ao mesmo tempo, recusando a idia de inferir a histria de um

    povo a partir de nveis evolutivos, como era comum no sculo XIX Atkinson

    Hammersley, 1994).

    Algumas dcadas aps, e culminando com os trabalhos de Geertz, a Antropologia

    comea a considerar a cultura como um processo dinmico e simblico e a funo do

    antroplogo passa a ser a de mapeador desse unverso de signficados. Ora, considerando

    a cultura pblica porque o signficado o ), Geertz pode falar da dimenso pblica do

    pensamento. Segundo ele, o pensamento pode ser analisado em dois grandes sentidos:

    como processo e como produto; ou, em outras palavras, pensamento ( .

    . o que se

    passa

    em

    nossas cabeas( .. )

    e,

    especialmente quando o colocamos em ordem, o que sai

    delas

    1983, p.148).

    Essa questo do pensamento, ao mesmo tempo como processo e produto,

    simultaneamente singular e mltiplo, diz respeito ao tema da undade e da diversidade

    no

    estudo do homem na sociedade. Por um lado, qual a essncia do comportamento

    humano? Ou, para usar uma expresso de Geertz 1989), qual o (

    .. )

    mnimo

    denominador comum da mente humana

    p.55)? Por outro lado, por que os homens,

    apesar de membros

    da

    mesma espcie, apresentam-se de maneiras to diversas em termos

    de pensamento?

    J vimos que Geertz refuta a chamada concepo estratigrfica na anlise da

    natureza humana, preferindo o que ele denominou de concepo sinttica. Isto porque,

    segundo o autor, impossvel isolar no comportamento humano o componente biolgico.

    No caso do pensamento, isso tambm se constata, no sendo possvel falar de

    um

    8

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    29/107

    processo

    cerebral

    sem considerar a manipulao de significados pblicos e a consequncia

    social

    deste

    processo. Ao contrrio dos animais, que utilizam fontes de informao

    intrnsecas para modelar suas aes, o homem depende das fontes extrnsecas, compostas

    por smbolos sociais, que, como os genes, fornecem um diagrama ou gabarito para suas

    aes.

    e

    os

    anmais inferiores possuem padres de comportamento ordenados e pouco

    variveis, o homem possui, de forma inata, capacidades de resposta muito gerais, tornando

    possvel

    uma

    grande plasticidade e complexidade de comportamentos. Por isso Geertz

    afirma que o comportamento humano seria ingovernvel se no fosse dirigido por padres

    culturais especficos. Fazendo uma comparao dos smbolos sociais com

    os

    genes, Geertz

    (1989) fala de uma hereditariedade social , mostrando como

    os

    comportamentos

    humanos so produzidos e transmitidos:

    ( .. ) o crebro humano inteiramente dependente dos recursos culturais

    para

    o seu prprio funcionamento. Assim, tais recursos no so apenas

    adjuntos, mas constituintes

    da

    atividade mental. Com efeito, o

    pensamento como

    um

    ato aberto, pblico, que envolve a manipulao

    propositada de materiais objetivos, provavelmente fundamental para

    os

    seres humanos( .) (p.90).

    Um

    pouco mais frente, e para reforar o

    j

    exposto, Geertz (1989) afirma:

    ( .. ) o intelecto humano, no sentido especfico do raciocnio orientador,

    depende

    da

    manipulao de certos tipos de recursos culturais, de

    maneira tal a produzir (descobrir, selecionar)

    os

    estmulos ambientais

    necessrios ao organismo - qualquer que seja o propsito; trata-se de

    uma busca de informao (p.92).

    Assim, ao falar do pensamento numa dimenso pblica, como um

    (

    .. ) trfico

    de

    smbolos significantes( .. ) sobre os quais os homens imprimiram significado(

    ) (p.227),

    Geertz (1989) justifica a chamada etnografia do pensamento. Para ele, esse tipo de

    etnografia s possvel porque os significados so passveis de investigao emprica

    sistemtica, atravs dos padres culturais, que, para o autor, so ( .. ) amontoados

    ordenados de smbolos significativos (p.228). Segundo Geertz (1989):

    9

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    O estudo

    da

    cultura, a totalidade acumulada

    de

    tais padres,

    ,

    portanto, o estudo da maquinaria que os indivduos ou grupos

    de

    indivduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de

    outra forma seria obscuro p.228).

    Conclui o autor que o pensamento constitui-se, basicamente, num ato aberto

    conduzido

    em

    termos materiais objetivos da cultura comum e secundariamente, num

    assunto privado. Assim, Geertz 1989) pode dizer que

    ( ..)no sabemos o que pensamos

    enquanto no vemos o que dizemos

    p.90). Porque, segundo ele, os processos mentais

    do homem ocorrem no banco escolar, no campo de futebol, no estdio, no assento do

    caminho, n estao de trem, no tabuleiro de xadrez ou na poltrona do juiz.

    Geertz 1983) alerta que a etnografia do pensamento no se traduz num

    empreendimento apenas antropolgico, mas na confluncia de vrias reas. A etnografia

    do pensamento, para o autor:

    ( .. )

    um empreendimento histrico, sociolgico, comparativo,

    interpretativo, qualquer coisa como um corpo-a-corpo, cuja finalidade

    tornar inteligveis questes obscuras, provendo-lhes

    de

    um contexto

    esclarecedor

    p.152).

    Ora, se o pensamento pode ser analisado etnograficamente numa dimenso pblica,

    tambm possvel fazer uma anlise do pensamento acadmico moderno, j que os

    intelectuais de uma rea acadmica constituem uma comunidade, atuam num determinado

    territrio profissional, utilizam um certo vocabulrio e expressam determinados valores

    Corra, 1987).

    4.1. Somos Todos Nativos

    Afirmando que Somos todos nativos agora, e quem no for um de ns um

    extico p.l51), Geertz 1983) sugere o estudo etnogrfico tambm em relao ao

    20

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    31/107

    pensamento acadmico

    5

    , ampliando os limites da Antropologia tradicional e propondo

    para esta tarefa uma abordagem multidisciplinar. Afirma ele:

    O que parecia antes ser uma questo de descobrir se os selvagens

    poderiam distinguir fatos de fico, agora parece ser uma questo

    e

    descobrir como outros, do outro lado

    o

    mar ou

    o

    corredor,

    organizam seu mundo e significados

    p.l51).

    A

    im

    de justificar a anlise metodolgica do pensamento acadmico moderno,

    Geertz prope a considerao de trs aspectos: os dados convergentes, as classificaes

    lingusticas e o exame do ciclo de vida. O primeiro aspecto - dados convergentes - diz

    respeito ao fato da comunidade cientfica de uma certa rea formar uma rede, ou, no dizer

    de Geertz,

    aldeias intelectuais

    p.157). Assim, h uma srie de dados comuns a cada

    um dos integrantes do grupo de intelectuais da mesma rea, e esses dados podem ser

    elucidativos da forma como pensam, uma vez que as relaes entre eles so, no apenas

    intelectuais, mas tambm polticas, morais e pessoais. Algo que se descobre sobre um

    individuo pode revelar tambm algo sobre outro, j que sendo reciprocamente conhecidos

    por muito tempo, ( .. ) uns so personagens nas biografias dos outros Geertz, 1983,

    p.157).

    O segundo tema metodolgico proposto por Geertz refere-se ao tipo de

    vocabulrio utilizado por uma rea acadmica e que pode constituir-se numa via de acesso

    aos tipos de mentalidades dos intelectuais que nela trabalham, j que as palavras so

    dotadas de significados pblicos que expressam determinadas vises de mundo, de

    sociedade e da prpria rea. De fato, h um conjunto de termos e expresses que s so

    compreensveis s pessoas que circulam naquela rea, tornando-a, muitas vezes, hermtica

    a membros de outras reas cientficas 1983).

    O terceiro tema metodolgico sugerido por Geertz para a anlise etnogrfica do

    pensamento acadmico refere-se ao ciclo de vida especfico que cada rea cientfica impe

    aos seus componentes. O autor no se refere, obviamente, aos aspectos de natureza

    biolgica ou biogrfica de cada indivduo, mas s caractersticas da carreira, aos ritos de

    5

    Esta proposta de Geertz est explicitada no livro Local knowledge 1983), especificamente em seu

    stimo captulo, intitulado The way we tbink now: toward an ethnograpby

    o

    modem tbougbt.

    2

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    32/107

    passagem, os papis sexuais e de idade, s relaes entre os membros do grupo, que

    definem um tipo de ciclo vital no qual os intelectuais esto inseridos, e a partir do qual

    compreendem sua rea cientfica 1983 .

    A etnografia do pensamento acadmico, analisada atravs dos temas

    metodolgicos propostos por Geertz, permite o entendimento de cada uma das disciplinas

    cientficas, ou at mesmo cada uma das tendncias

    ou

    linhas dentro de uma rea, como

    formas particulares de pensar o mundo, j que pensar consiste numa manipulao de

    significados pblicos. Segundo Geertz 1983):

    ( .. ) s vrias disciplinas das cincias humanas, naturais, soczazs que

    compem o discurso fragmentado

    da

    academia moderna so mais

    do

    que pontos privilegiados

    de

    observao intelectual, sendo maneiras

    de

    estar no mundo, para invocar

    uma

    frmula

    de

    Heidegger, formas

    de

    vida, para usar

    uma de

    Wittgenstein,

    ou

    variedades

    da

    experincia

    cognitiva, para adaptar uma de James. Tanto quanto os Papua ou os

    nativos da Amaznia habitam o mundo que imaginam, do mesmo modo

    o fazem os fsicos das altas energias ou os historiadores do

    Mediterrneo da poca de Felipe l i p.155).

    Se o pensamento , ao mesmo tempo, singular como processo e mltiplo como

    produto, uma anlise precipitada concluiria que uma etnografia do pensamento estaria

    contribuindo para uma proliferao desenfreada de smbolos significantes, o que tornaria a

    comunicao entre grupos diferentes quase impossvel. Entretanto, para Geertz 1983), a

    etnografia do pensamento, como qualquer outro tipo de etnografia,

    ( .. ) no uma

    tentativa de exaltar a diversidade, mas de tom-la a srio

    em si

    mesma como

    um

    objeto

    de descrio analtica e de reflexo interpretativa

    p.154). O autor entende a etnografia

    do

    pensamento acadmico como um projeto imperativo, no como uma tarefa tcnica,

    mas com um enfoque cultural, a im de que a comunicao entre as reas acadmicas - e

    pode-se incluir as tendncias dentro de uma mesma rea acadmica - seja viabilizada. Para

    isso, segundo Geertz 1983):

    ( .. ) o primeiro passo certamente o

    de

    aceitar a profundidade das

    diferenas; o segundo, o

    de

    entender quais so essas diferenas,

    e

    o

    terceiro, o de construir uma espcie de vocabulrio no qual elas

    possam ser publicamente formuladas - no qual econometristas,

    22

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    arquelogos, citoqutmtcos e iconlogos possam oferecer

    um

    viso

    plausvel

    de si mesmos aos outros p.l61).

    Ao propor uma etnografia do pensamento, e principalmente, ao enderear esta

    proposta academia, Geertz est contribuindo para uma pertinente discusso que ocorre

    hoje nas cincias, que a fragmentao do conhecimento e a consequente soberania do

    discurso cientfico. Hoje, somente um seleto grupo de intelectuais pode discorrer sobre um

    determinado tema e esse discurso torna-se soberano devido

    ao

    seu hermetismo. Ora, ao

    colocar o pensamento acadmico como passvel de uma anlise etnogrfica, Geertz acaba

    por relativizar o prprio saber cientfico. No que ele no tenha valor, mas seu

    desenvolvimento est diretamente relacionado ao prprio conjunto de signficados que do

    sentido a

    um

    certa rea acadmica e, consequentemente, aos seus membros. Se antes

    pensava-se que a produo acadmica de um intelectual era consequncia apenas de uma

    mente iluminada, agora pode-se pensar que o seu trabalho, de certa forma, est de acordo

    com um conjunto de signficados que d referncias e sustenta a prpria rea na qual se

    localiza este intelectual.

    por

    isso que Geertz 1983) afirma que

    (

    .. )

    os papis que pensamos exercer,

    transformam-se

    em

    mentes que descobrimos possuir

    p.155). Em outros termos, o

    pensamento no apenas processo, mas tambm produto do prprio meio onde se vive,

    no caso desta pesquisa, uma determinada rea do conhecimento cientfico ou uma

    tendncia dentro desta rea.

    Parece que a maior contribuio de Geertz ao propor uma etnografia do

    pensamento acadmico expor as diferenas entre as reas cientficas, no para acirrar

    disputas entre elas, nem para torn-las menos diferentes, mas para propiciar a

    interpretao de seus simbo los signficantes, contribuindo assim para maior comunicao

    entre elas. Alis, essa tarefa de lidar com as diferenas fez parte do prprio

    desenvolvimento da cincia antropolgica, que teve que se deparar com os mais diversos

    tipos de comportamentos humanos. A diferena entre o empreendimento antropolgico ao

    longo dos sculos XIX e XX e a proposta mais recente de Geertz, que, no primeiro

    caso, os estudiosos observavam os nativos de vrias localidades, e agora ele considera que

    somos todos nativos.

    23

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    4.2. Os nativos da Educao Fsica Brasileira

    esta agora desenvolver esse referencial terico-metodolgico em direo ao meu

    objeto de

    estudo

    especfico. Minha inteno fazer uma etnografia dos pensamentos

    cientficos

    que

    existem atualmente

    na

    Educao Fsica brasileira. Esse empreendimento

    no seria inovador no fosse pela forma de sua realizao: ouvir dos prprios

    autores/atores dos pensamentos cientficos da Educao Fsica brasileira contempornea

    como participaram da construo desse pensamento como construram seus discursos

    cientficos

    na

    rea e qual a lgica interna de seus pressupostos e de seus contedos lgica

    esta que fornece organizao e coerncia cada um dos discursos acadmicos. No

    pretendo eleger o discurso mais coerente ou mais operacionalizvel mas apresentar a

    forma como cada um deles constri determinados conceitos que esto relacionados a

    valores mais gerais como viso de mundo papel da cultura objetivos do homem modelo

    de sociedade atravs de uma teia de signficados - para usar o termo cunhado por Geertz -

    constantemente atualizada e expressa por cada tendncia dando assim sentido a ela.

    A anlise etnogrfica do pensamento cientfico na Educao Fsica brasileira

    justifica-se nesse momento devido proliferao de discursos ocorrida na rea a partir dos

    anos 80. Essa multiplicidade de discursos embora a princpio salutar proporcionou - e

    ainda tem proporcionado - intensos debates e rancorosos preconceitos motivados pelo

    hbito de considerar as opinies divergentes como desiguais ao invs de diferentes. A

    consequncia disso parece ter sido o deslocamento do debate de um nivel pblico para o

    mbito pessoal

    e

    portanto mais restrito onde

    os

    representantes de cada discurso da

    Educao Fsica procuram mostrar as vantagens das idias que defendem muitas vezes em

    detrimento da considerao que todos merecem.

    Este trabalho ao estudar os discursos existentes na Educao Fsica brasileira e

    tendo como referencial terico a proposta de Geertz de anlise etnogrfica do pensamento

    cientfico pretende contribuir no sentido de explicitar a especificidade de cada discurso no

    contexto da construo do debate acadmico da dcada de 80. Para isso ouvir dos

    24

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    principais personagens deste debate como atuaram nesse perodo, construindo formas de

    pensar cientificamente a Educao Fsica.

    Considerando a etnografia da cincia como o olhar antropolgico sobre o saber

    cientfico, tomando-o como fato cultural Oliveira, 1988), sero destacados os discursos

    acadmicos

    da

    Educao Fsica da dcada de 80 como parte de um universo simblico que

    foi socialmente produzido e ainda socialmente mantido. As formas de pensamento da

    Educao Fsica brasileira sero olhadas como construes sociais representadas por um

    grupo de estudiosos, seus autores

    e

    ao mesmo tempo, atores, uma vez que

    desempenharam papis relevantes nessa dramaturgia do pensamento cientfico

    da

    rea.

    O pressuposto para essa anlise, conforme foi visto, que o pensamento

    incluindo o cientfico - uma construo social, que utiliza significados culturais ao se

    apresentar

    como

    vivel para o desenvolvimento da rea. Isso porque o discurso cientfico

    consequncia de um pensamento, que pode tambm ser analisado na sua dimenso

    pblica Geertz, 1983). Quando me proponho a uma anlise etnogrfica dos vrios

    pensamentos cientficos da Educao Fsica brasileira, estou considerando o pensamento e

    o discurso

    de

    um grupo de intelectuais como um comportamento pblico, tanto na sua

    produo - porque ele surge a partir de um conjunto de valores que o autor representa -,

    como

    na

    recepo e repercusso dentro da prpria rea - porque transmitido e

    incorporado por um grupo de pessoas.

    orra

    1987), que, juntamente com Oliveira 1988), vm realizando o trabalho de

    anlise da construo do pensamento da Antropologia brasileira, referindo-se proposta

    de Geertz de uma etnografia do pensamento acadmico, afirma:

    .. ) uma vez que os intelectuais contemporneos vivem

    em

    bandos,

    conhecem-se razoavelmente bem uns aos outros, empregam uma

    linguagem comum e

    tem

    uma carreira determinada por certas regras,

    por que no estud-los o mesmo modo que os antroplogos estudaram

    osAzande ou os Zulu? p.13).

    Este trabalho, inicialmente, procurar deter-se nas ltimas duas dcadas, quando

    passou a ocorrer uma proliferao de publicaes, encontros de professores e discursos na

    rea, e a consequente construo do que estamos denominando de debate acadmico na

    25

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    Educao Fsica. Nesse momento, j se poder detectar algumas linhas tericas, bem

    como destacar alguns nomes relevantes nesse processo de criao do pensamento

    cientfico na Educao Fsica. Isso s se torna possvel a partir do momento em que

    ocorre

    na

    rea a multiplicao de discursos, pois, antes disso, havia uma certa coeso em

    torno das vises esportiva e da aptido fsica, com suporte terico originrio unicamente

    das cincias biolgicas.

    A segunda fase da pesquisa constituir-se- na tarefa principal deste estudo: ouvir

    os

    principais personagens da Educao Fsica brasileira no que se refere produo

    cientfica.

    ero

    entrevistados

    os

    elementos considerados de destaque neste processo de

    construo

    do

    debate cientfico da Educao Fsica a partir de

    fins

    dos anos 70, seus

    atores principais. Pretende-se, com as entrevistas, detalhar o universo simblico que

    sustentou e ainda

    sentido aos discursos de cada um dos principais atores desse enredo

    do pensamento cientfico da Educao Fsica brasileira.

    Dessa forma, pretendo contribuir para a explicitao dos pressupostos e valores

    sociais que respaldam os diferentes pensamentos existentes hoje na Educao Fsica

    brasileira. Para isso, estarei seguindo a proposta de Clifford Geertz de realizar uma

    etnografia do pensamento cientfico, considerando os principais nativos da Educao

    Fsica no Brasil. Assim fazendo, estarei exercitando e propondo uma postura perante o

    debate acadmico entre estes discursos que considere e respeite as diferenas, esperando

    contribuir para uma melhor comunicao entre eles, ao invs de se continuar numa postura

    passional e preconceituosa, onde u tenta se sobrepor ao outro.

    26

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    III A CONSTRUO O DEBATE ACADMICO DA EDUCAO

    FSIC

    BRASILEIRA

    Pretendo agora discorrer sobre as formas de pensar a Educao Fsica brasileira

    construdas a partir do final da dcada de 70 e durante os anos 80. Mesmo consciente de

    que a cientificidade da Educao Fsica tenha sido fruto de um processo histrico que

    remonta h tempos anteriores, destaco esse perodo recente devido proliferao de

    discursos so re o objeto de estudo da Educao Fsica e sua aplicao escolar. A

    multiplicidade de discursos ocorrida no perodo mostrou-se extremamente relevante, tanto

    em termos de quantidade de proposies quanto na sua qualidade. A consequncia, como

    ser apresentada, foi o surgimento de vrias formas de pensar a Educao Fsica, levando

    ao intenso debate entre os representantes de cada uma delas.

    Farei urna breve descrio de alguns fatos que caracterizaram a construo do

    debate cientfico na Educao Fsica brasileira, levantando alguns nomes que contriburam

    para o delineamento de alguns discursos. Seguindo

    os

    preceitos da abordagem

    antropolgica, esta descrio no pretende comparar tendncias, muito menos analis-las

    visando a eleio da melhor,

    ou

    da mais coerente. Pretendo, nesse momento, unicamente

    apresentar as vrias formas de pensar a Educao Fsica brasileira atual. Este

    procedimento justifica-se devido ao prximo passo metodolgico, que se constituir em

    entrevistas com

    os

    elementos responsveis pelo processo de construo do pensamento

    cientfico na Educao Fsica brasileira no perodo. Estarei agora apenas delineando o

    cenrio da rea, dentro do qual

    os

    principas atores estaro posteriormente manifestando

    seu posicionamento na Educao Fsica.

    Com o regresso dos primeiros brasileiros doutorados no exterior, pde-se perceber

    o incremento da discusso da Educao Fsica como disciplina acadmca. O clssico

    artigo de Henry, de 1964, trouxe ao debate a necessidade da Educao Fsica ser tomada

    como disciplina. O autor encerrava seu artigo afirmando que, anda que no exstisse a

    disciplina acadmica da Educao Fsica, ela deveria ser inventada Henry, 1964).

    27

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    Alm dos brasileiros doutorados no exterior, colaboraram para o surgimento de

    novas idias, reflexes e propostas metodolgicas na Educao Fsica brasileira, a criao

    dos primeiros cursos de ps-graduao no pas, a busca de parte de profissionais de

    Educao Fsica por cursos de ps-graduao em outras reas, sobretudo das cincias

    humanas, o aumento do nmero de publicaes especializadas e a realizao de vrios

    congressos, encontros, seminrios e cursos na rea.

    interessante observar o contedo das publicaes da rea antes e depois desse

    perodo. s poucas publicaes anteriores referiam-se principalmente s modalidades

    esportivas de forma tcnco-ttica, aos tratados de fisiologia esportiva, e manuais de

    preparao fsica. As obras que se seguem a esse perodo comeam a refletir sobre a

    Educao Fsica no somente como uma atividade tcnca ou biolgica, mas a encaram

    como

    um fenmeno psicolgico e social. Devido prpria carncia de referencial terico

    dentro

    d

    rea, difundiu-se tambm uma viso interdsciplinar, a partir da qual as cincias

    historicamente constitudas ofereceriam base terica para o estudo da Educao Fsica, do

    corpo e do movimento humanos, destacando-se dentre estas a Psicologia, a Histria, a

    Sociologia e a Pedagogia. Como exemplo, pode-se citar o livro Conversando sobre o

    corpo , organizado por Heloisa Turini Bruhns. Lanado em 1985, com grande aceitao

    pelos profissionais da rea, este livro resultado de um ciclo de palestras realizado em

    1984, para o qual foram convidadas pessoas de vrias reas para dscorrerem sobre o

    corpo.

    Caparroz (1996) afirma que o movimento de crtica que surgiu na Educao Fsica

    na dcada

    de

    80 foi decorrente de dois fatores marcantes. m deles foi o momento

    histrico scio-poltico da sociedade brasileira a partir de final dos anos 70,

    com

    o

    processo de redemocratizao. O outro fator

    foi

    a necessidade da prpria rea de se

    qualificar academcamente a fim de suprir as necessidades colocadas pelo mercado de

    trabalho nas instituies de ensino superior.

    Bracht (1996) lembra que foi o contato com o debate pedaggico brasileiro das

    dcadas de 70 e 80, e no com as cincias do esporte, que fez com que profissionais da

    Educao Fsica construssem objetos de estudo a partir do vis pedaggico. E que,

    28

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    independentemente das matrizes tericas utilizadas, todos foram orientados pelas cincias

    humanas e sociais.

    Oliveira 1994) fala de um salto qualitativo da Educao Fsica nos anos 80. Se na

    dcada de 7 foram incorporados rea elementos da Pedagogia, ainda que em sua verso

    tecnicista,

    os

    anos 80 viram surgir a perspectiva da Educao Fsica como prtica social.

    Alm

    da

    perspectiva de consenso que era predominante na rea, foi includa Educao

    Fsica na dcada de 80 a perspectiva de conflito. Segundo o autor, a gerao que

    despontou

    no

    perodo passou a denunciar o estabelecido, assumindo posies de crtica

    social.

    Na dcada de 70 houve

    um

    esforo de agrupamento de uma ainda incipiente

    comunidade cientfica. Liderados pelo mdico Victor Keiban Rodrigues Matsudo, um

    grupo de profissionais interessados principalmente na Fisiologia do Esforo e na

    Antropometria fundaram em 1974 o CELAF1SCS, Centro de Estudos do Laboratrio de

    Aptido Fsica de So Caetano do Sul, na cidade do mesmo nome, no Estado de So

    Paulo. O CELAF1SCS sempre primou pela intensa produo cientfica do seu grupo, pela

    formao de pesquisadores e pela regularidade de seus simpsios e bienais. Ainda em que

    pese

    sua

    preferncia pela pesquisa quantitativa de cunho fisiolgico

    ou

    antropomtrico,

    nunca excluiu interessados em realizar pesquisas com outros referenciais tericos, tendo,

    inclusive, convidado muitos destes pesquisadores para participarem dos seus eventos

    CELAFISCS, 1986; Matsudo, 1987).

    Na verdade, parte desse grupo do CELAF1SCS atuava na Federao Brasileira de

    Medicina Desportiva FBMD) e pelo fato dos profissionais de Educao Fsica no

    possurem, no interior desta associao, o mesmo

    st tus

    que

    os

    mdicos, no tendo,

    inclusive, direito voto, acabaram saindo da FBMD para criarem o Colgio Brasileiro de

    Cincias do Esporte CBCE), em 1978. De fato, o primeiro presidente do CBCE foi

    Victor Keiban Rodrigues Matsudo, sua sede inicial foi em So Caetano do Sul e o

    primeiro congresso da entidade CONBRACE) ocorreu tambm na mesma cidade, em

    1979 Paiva, 1994).

    Se por um lado o grupo que se congregou em torno do CELAF1SCS e das

    primeiras gestes do CBCE passou a sistematizar uma produo cientfica, constituindo-se

    9

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    numa nascente comunidade da rea, ainda no houve nessa poca o debate com outras

    correntes, at porque as poucas pessoas preocupadas com a pesquisa em Educao Fsica,

    se no eram desse grupo, estavam ainda dispersas.

    Na rea pedaggica da Educao Fsica, uma das primeiras referncias a ganhar

    destaque entre os profissionais foi a Psicomotricidade, por meio das tradues das

    primeiras

    obr s

    de Jean e Boulch e de sua vinda ao Brasil em 1978. Segundo Resende

    (1992 e 1995), os fundamentos da Psicomotricidade foram defendidos em contraposio

    s perspectivas terico-metodolgicas direcionadas automatizao e ao rendimento

    motor, expressos no modelo didtico oficial da desportivizao da Educao Fsica.

    nesse momento que ganha fora a preocupao com a educao motora, principalmente

    nas sries escolares iniciais.

    Talvez a perspectiva da Psicomotricidade no tenha se consolidado como uma

    tendncia d Educao Fsica pelo fato dela se confundir com outras reas. A

    Psicomotricidade nunca foi de uso exclusivo da Educao Fsica, mas tambm da

    Pedagogia, da Psicologia e da Psicopedagogia, sem falar do incio de formao de

    psicomotricistas, iniciada na mesma poca.

    Alm disso, a Psicomotricidade, de certa forma, contribuiu para a negao de

    contedos at ento tidos como prprios da Educao Fsica, principalmente o esporte.

    Ao valorizar a formao integral da criana, o discurso da Psicomotricidade, centrado na

    educao pelo movimento , fez com que a Educao Fsica se tornasse meio para outras

    disciplinas escolares, perdendo, assim, sua especificidade. A Psicomotricidade acabou por

    substituir o contedo de natureza esportiva, at ento predominante na Educao Fsica

    (Soares, 1997, no prelo).

    e qualquer modo, a Psicomotricidade parece ter contribudo com a Educao

    Fsica na medida em que mostrou a importncia do desenvolvimento e aprimoramento das

    estruturas psicomotoras de base, e o consequente envolvimento do professor de Educao

    Fsica com as responsabilidades escolares (Resende, 1992 e 1995; Soares, 1997, no prelo).

    Isso talvez explique o seu sucesso entre os professores de Educao Fsica, que perdura

    at hoje.

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    utrainfluncia do debate psicolgico e pedaggico da dcada de 70 sobre a

    Educao Fsica brasileira foi a perspectiva humanista, cujo referencial principal foi a

    contribuio

    de

    Carl Rogers. O debate pedaggico na poca era polarizado em Rogers,

    por um lado, defensor de uma atuao, tanto pedaggica quanto clnica, no diretiva e,

    por

    outro

    lado, em Skinner, representante do comportamentalismo e defensor de um

    procedimento pedaggico diretivo (Milhollan Forisha, 1978).

    Na Educao Fsica, deve-se registrar o trabalho do professor Vitor Marinho de

    Oliveira (1985), intitulado Educao Fsica humanista , que trouxe para a rea o debate

    diretividade X no-diretividade. A proposta do autor, segundo Resende (1992 e 1995),

    opunha-se viso fragmentada do comportamento humano, mecanizao e

    automatizao de movimentos, expressos na nfase

    ao

    ensino esportivo assumido pela

    Educao Fsica na dcada de 70

    e,

    mais especificamente, aos seus fundamentos

    psicolgicos baseados no comportamentalismo.

    Vale destacar que em 1984 o professor Inezil Penna Marinho, percebendo a

    ampliao do campo de atuao da Educao Fsica que se delineava, props uma nova

    denominao para ela e para seu profissional: cinesiologia e cinesilogo, nos mesmos

    moldes da Psicologia e do psiclogo. Segundo ele, se a Psicologia se dedica ao estudo dos

    fenmenos psquicos, a cinesiologia teria por objetivo o estudo dos fenmenos do corpo

    em movimento. O autor afirmava que a denominao Educao Fsica era socialmente

    pejorativa e profissionahnente estigmatizante (Marinho, 1984). Em que pese a falta de

    cientificidade da proposta do autor e a ingenuidade em achar que uma nova denominao

    poderia por si s transformar a Educao Fsica, importante ressaltar que sua

    contribuio considerava a ampliao da viso que se tinha sobre a rea, e que sua

    denominao tradicional expressava menos do que ela poderia realizar.

    Um outro autor que ganhou destaque nos anos 80

    foi

    o professor Joo Batista

    Freire. Resende (1992 e 1995) classifica sua produo como uma vertente da pedagogia

    humanista, devido nfase dada pelo autor infncia, individualidade da criana, ao

    estmulo criatividade e liberdade individual.

    Ao criticar o papel alienado e alienante da Educao F JSica ao longo da histria,

    Freire prope uma redescoberta do corpo, onde a Educao Fsica seria o carro chefe de

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    uma educao conscientizadora. Diz o autor:

    A Educao Fsica poderia deixar de ser a

    tcnica de adestrar homens, para se tornar a tcnica que permitisse ao homem realizar,

    com arte, cada movimento

    (Freire, 1987, p.54 .

    A educao da motricidade de que fala Freire se constituiria numa educao das

    habilidades motoras que permitem ao homem expressar-se. Se pela motricidade que o

    homem se expressa e se realiza, a educao da motricidade implicaria ao mesmo tempo

    uma educao dos sentidos e dos snbolos. Em relao primeira, o autor enfatiza a

    necessidade d criana ser estimulada a explorar seus sentidos. Em relao segunda, o

    autor ressalta em sua proposta a importncia do jogo e do brinquedo, que, para ele, se

    constituem numa fbrica de smbolos (Freire, 1992b e 1995).

    Valorizando o conhecimento espontneo de jogos, brincadeiras e atividades

    motoras que a criana possui, o autor faz uma crtica contundente escola, comparando-a

    s prises. O autor afirma que a escola muitas vezes nega a cultura infantil, oferecendo

    uma educao pouco significativa criana, roubando, assim, sua individualidade e

    impedindo sua liberdade (Freire, 1992a). nesse sentido que Freire (1989) prope uma

    educao de corpo inteiro, onde no s a cabea da criana seja matriculada na escola,

    mas tambm seu corpo, conforme sua prpria expresso.

    Talvez o sucesso de Joo Batista Freire na Educao Fsica brasileira seja devido

    ao seu livro Educao de corpo inteiro , publicado em 1989, que se constitui numa

    proposta terico-prtica de Educao Fsica escolar, sobretudo nas sries iniciais. Este

    livro tornou-se manual para muitos professores, tanto de Educao Fsica como de outras

    reas, sendo at hoje muito vendido. O autor tornou-se conhecido tambm por ter

    assessorado a Secretaria de Educao do Estado de So Paulo em sua proposta de

    Educao Fsica para o 1 grau, proposta esta que vigora at hoje.

    na proposta de Educao Fsica do Estado de So Paulo que h uma definio

    da linha terica adotada como sendo a construtivista-interacionista, baseada nos estudos

    de Piaget e Ferreiro. Segundo esta teoria, a inteno a construo do conhecimento por

    parte do aluno, a partir da interao do sujeito com o mundo, numa relao que extrapola

    o simples exerccio de ensinar e aprender (So Paulo, 1991). A partir da, Freire passou a

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    ser visto na rea como defensor

    do

    construtivismo, embora nos textos do autor

    consultados no tenha sido possvel esta explicitao.

    Dois livros, publicados coincidentemente no ano de 1983, foram determinantes no

    sentido de marcarem o incio de reflexo e debates na Educao Fsica brasileira, com

    referenciais oriundos das cincias humanas e preocupaes voltadas para a transformao

    da sociedade. Ambos foram responsveis por grande vendagem, o que confirma a

    demanda

    dos

    profissionais da rea, na poca, por trabalhos que analisassem criticamente a

    Educao Fsica. Vitor Marinho de Oliveira publicou O que Educao Fsica , livro

    introdutrio que tem por preocupao uma caracterizao da rea. O autor afirma que a

    Educao Fsica se ressente de uma orientao filosfica que a conduza em direo s

    suas finalidades. Afirma tambm que a Educao Fsica, enquanto cincia, aquela que

    estuda o homem em movimento. Quando indica leituras, sugere quase exclusivamente

    obras de autores estrangeiros, j que ainda no havia nessa poca uma produo brasileira

    (Oliveira, 1983).

    Joo Paulo Medina publicou no mesmo ano A Educao Fsica cuida do corpo

    e . .'mente ', livro que, aps dois meses de seu lanamento, j partia para a segunda

    edio. O sugestivo ttulo pressupunha que o objetivo da Educao Fsica era algo mais

    que adestrar corpos. Nesse livro o autor afirmava que a Educao Fsica precisaria

    urgentemente passar por uma crise de identidade, e que essa crise seria benfica para o

    desenvolvimento da rea.

    A obra de Medina possui um referencial terico com preocupaes sociais. Como

    base para anlise dos valores veiculados pela Educao Fsica, o autor lana mo dos

    estudos