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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIRIO DANIELLE GOMES DA ROSA. EDUCAÇÃO E SURDEZ EM DEFESA DA LÍNGUA DE SINAIS PARA A INCLUSÃO SOCIAL DOS SURDOS. RIO DE JANEIRO RJ AGOSTO/2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

DANIELLE GOMES DA ROSA.

EDUCAÇÃO E SURDEZ – EM DEFESA DA LÍNGUA DE

SINAIS PARA A INCLUSÃO SOCIAL DOS SURDOS.

RIO DE JANEIRO – RJ

AGOSTO/2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

DANIELLE GOMES DA ROSA.

Matrícula: 20072351189

EDUCAÇÃO E SURDEZ – EM DEFESA DA LÍNGUA DE

SINAIS PARA A INCLUSÃO SOCIAL DOS SURDOS.

Monografia apresentada ao curso

de Pedagogia da Universidade

Federal do Estado do Rio de

Janeiro, como requisito para a

obtenção de grau de Licenciado em

Pedagogia. Sob a orientação da

Professora Vera Regina Loureiro.

RIO DE JANEIRO – RJ

AGOSTO/2013

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Agradeço aos meus pais, Deise e Wilson, pelo apoio incondicional e pela oportunidade de prosseguir com

meus estudos e concluir minha graduação.

À minha família e aos meus amigos pelo incentivo. Ao meu namorado, Rodrigo, e à sua família, que aceitou

participar da minha pesquisa para a realização desse trabalho.

Aos professores da UNIRIO que foram importantíssimos na minha formação acadêmica, mas também na

minha formação pessoal, em especial à minha orientadora, Professora Vera Loureiro, por toda a paciência,

dedicação e por tornar possível a conclusão dessa monografia.

Agradeço à minha grande amiga, Mariana, que passou por todas as dificuldades e alegrias acadêmicas comigo.

E a Luana pelo companheirismo e incentivo durante o curso.

E, agradeço, principalmente, a Deus por suas bênçãos e por ter ajudado a manter a fé em todos os

momentos.

Obrigada. Eu amo vocês.

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“Quando é verdadeira, quando nasce da

necessidade de dizer, a voz humana não encontra

quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala

pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros. Ou

por onde for. Porque todos, todos, temos algo a

dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra

que merece ser celebrada ou perdoada pelos

demais.”

Eduardo Galeando.

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RESUMO:

O objetivo do presente trabalho é abordar a importância da Língua de Sinais para a inclusão

social do surdo, considerando como referenciais teóricos as concepções sócio-histórico-

cultural de Vygotsky e a educação bilíngue para surdos, que entende a língua de sinais como

primeira língua, reconhecida como natural para esses sujeitos e a língua portuguesa como

segunda língua. Esta monografia apresenta o estudo de caso de uma criança surda, usuária de

implante coclear que, inicialmente, não havia adquirido uma língua (seja oral ou de sinais) e

aponta o seu desenvolvimento social e cognitivo após a entrada no Instituto Nacional de

Educação de Surdos (INES). Esta monografia aborda também a questão familiar, as

dificuldades e as quebras de paradigmas de se ser uma criança surda no mundo ouvinte.

Palavras-chave: Surdez – Língua de Sinais – Educação Bilíngue.

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SUMÁRIO

1. Introdução........................................................................................................................... 7

2. Problematização.................................................................................................................. 7

3. Justificativa......................................................................................................................... 8

4. Objetivos............................................................................................................................. 9

4.1. Objetivos Gerais.............................................................................................................. 9

4.2. Objetivos Específicos...................................................................................................... 9

5. Educação de Surdos............................................................................................................. 10

5.1. História da educação de surdos...................................................................................... 10

5.2. Benefícios da língua de sinais e da educação bilíngue..................................................15

5.3 Educação de surdos: paradigmas brasileiros................................................................... 19

5.4 Em defesa da língua de sinais e da educação bilíngue em leis e números...................... 24

6. Teoria Sociointeracionista de Vygotsky.............................................................................. 25

6.1 Linguagem, aprendizagem e desenvolvimento na teoria sócio-histórica-cultural

de Vygotsky ............................................................................................................................ 25

6.2 Pensamento e linguagem................................................................................................. 29

6.3. Vygotsky e a Surdez...................................................................................................... 32

7. Metodologia......................................................................................................................... 35

8. Contexto.............................................................................................................................. 36

9. A realidade de uma criança surda no mundo ouvinte.......................................................... 37

10. Considerações Finais.......................................................................................................... 45

11. Referências Bibliográficas ................................................................................................ 48

Anexos .................................................................................................................................... 51

Anexo 1 ................................................................................................................................ 52

Anexo 2 .................................................................................................................................53

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1. Introdução

Esse trabalho tem como objetivo falar sobre a Língua de Sinais, seus benefícios para o

desenvolvimento sociocultural e cognitivo das pessoas surdas e defender o ensino da mesma

como primeira língua para os surdos. Através da língua de sinais o surdo se desenvolve

cognitiva e socialmente, com sua aquisição pode interagir com o mundo surdo, mas também

com o mundo ouvinte. A comunidade surda tem sua própria cultura, sua própria identidade e

língua, que varia de país para país, e deve se orgulhar disso, como também narrar-se como

surda e perceber que não é deficiente, apenas diferente e percebe o mundo de forma visual.

A linguagem é essencial no desenvolvimento de qualquer criança, pois a linguagem é

um instrumento de poder e aos surdos não pode ser negado o direito de usufruir dos

benefícios de uma língua, portanto, aceitar a diferença do surdo e conviver com a diversidade

humana é um desafio proposto à sociedade. A língua de sinais se torna uma ferramenta que

permite ao surdo maior mobilidade e fluidez nas formações discursivas, como também

fornece subsídios que o ajudam na constituição de suas identidades frente às imposições

culturais do ouvinte.

O tema da surdez envolve algumas questões históricas e, acredito que ainda há muito

que estudar e contribuir para educação de surdos. Portanto, trabalharei nesse projeto sobre a

história da educação de surdos, contando cada passo de todos os conceitos educacionais que já

delinearam os processos de ensino-aprendizagem destes sujeitos (oralismo, comunicação total

e educação bilíngue). Também discutirei a questão do desenvolvimento cognitivo, cultural e

identificatório do sujeito surdo por meio da interação social e da aquisição da sua língua

natural, língua de sinais, que lhe é garantida por direito, mas ainda assim pouco reconhecida

pela comunidade ouvinte, que forma a parte majoritária da nossa sociedade.

2. Problematização.

Problematizarei uma perspectiva muito discutida na história da educação dos surdos,

que é a comunidade surda vista como uma minoria linguística e cultural. Proponho a partir

dessa problemática a discussão e a reflexão das representações sociais dominantes sobre a

surdez e a língua de sinais e sobre as alternativas educacionais para os surdos.

O que é melhor para os surdos de fato, ser treinado para utilizar a língua dos ouvintes

ou adquirir a sua língua natural, com a qual ele pode se desenvolver cognitiva e socialmente?

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3. Justificativa.

Eu escolhi esse tema porque as matérias que mais me agradaram no decorrer do curso

foram relacionadas à Educação Especial, essas matérias foram: Libras, Educação e Surdez e

Desenvolvimento Humano e Inclusão Escolar. Eu gosto tanto do tema que me matriculei em

um curso de extensão de Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Minha escolha se deu porque pretendo pesquisar aspectos sobre a importância do

ensino da língua de sinais para surdos e a aquisição para a formação de sua identidade e

cultura; como também a importância para o desenvolvimento cognitivo e social dos sujeitos

surdos.

Os temas Educação e Surdez e o ensino da língua de sinais são os que eu mais gosto

de ler, escrever e que escolho como tema da minha monografia, principalmente por ser um

tema que acredito ainda haja muita coisa a se acrescentar e defender na formação de

professores.

A constituição brasileira (1988) assegura o direito de diferentes expressões culturais

no povo brasileiro, assegurando também os direitos culturais dos surdos. A constituição ainda

conta com a legislação que não legitima a exclusão, possibilitando o pleno direito à diferença.

Estas legislações estabelecem alguns fatos obrigatórios, como por exemplo, a educação

especial, a educação inclusiva que, mesmo não garantindo o acesso à cultura surda, garantem

o direito à educação.

A Lei 10.436 de 24 de abril de 2002 garantiu a língua de sinais como língua nativa da

comunidade surda. No mesmo caminho, o Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005 trouxe

importantes inovações para educação de surdos, pois identifica os surdos como aqueles que

interagem com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando, assim, sua cultura

principalmente pelo uso da língua de sinais. Essa lei garante ainda um intérprete/tradutor para

alunos surdos nas escolas onde eles se encontram, assegurando também o seu direito de ser

diferente.

No campo da pesquisa sobre as políticas voltadas para este segmento, Skliar (1998)

defende que as crianças surdas devem crescer bilíngues, sendo a primeira língua a de sinais e

a segunda língua, a originária de seu país. A aquisição da língua de sinais garante ao surdo o

desenvolvimento linguístico e, além disso, permite o desenvolvimento cognitivo, sócio-

afetivo-emocional e o desenvolvimento da identidade e da cultura surda. Behares (2000), por

sua vez, apresenta um argumento de reconstrução do processo educacional, a fim de inserir o

surdo no mundo dos ouvintes pela percepção de que eles são diferentes e não anormais ou

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deficientes. O autor propõe um projeto político e educacional que visa a criação de políticas

linguísticas, de identidade, comunitárias e culturais e que reconheça que o melhor para o

surdo é uma Educação Bilingue Bicultural, pois propõe dirigir através da identidade

bicultural da criança surda seu acesso à cultura ouvinte majoritária, tendo como enfoque a

utilização da língua de sinais da comunidade e todos os benefícios socioculturais e intelectuais

que sua aquisição proporciona para permitir o acesso rápido e natural da criança surda ao

currículo da comunidade ouvinte.

A partir dessa orientação, encaminho o projeto aqui apresentado tendo como

perspectiva de analise as concepções do mundo da surdez.

4. Objetivos.

4.1. Objetivos gerais.

Refletir sobre as representações sociais da surdez e dos sujeitos

surdos;

Analisar alternativas educacionais para os surdos;

Demonstrar a diferença linguística e cultural dos surdos;

Demonstrar a importância do ensino da língua de sinais para surdos;

4.2. Objetivos específicos.

Analisar a preparação do sujeito surdo para a socialização;

Demonstrar a importância do sujeito surdo adquirir sua língua natural para

assim ser incluído na sociedade ouvinte;

Analisar as condições de aprendizagem e desenvolvimento de uma criança

surda;

Realizar estudo de caso de uma criança surda;

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5. Educação de Surdos

5.1. História da educação de surdos

A história da educação de surdos é dividida em três grandes perspectivas. A visão

oralista, a visão da comunicação total e a educação bilíngue. A primeira, decorrente do século

XVI, e existente até meados do século XX, é a perspectiva oralista, que privava o surdo de

seu processo identificatório, de autoestima e intelectual/cognitivo. Identifica a surdez como

uma condição patológica, ou seja, uma deficiência e os profissionais responsáveis pela

aprendizagem são os fonoaudiólogos, médicos e professores. Os surdos são ensinados a falar

e a fazer leitura labial por incansáveis atendimentos de fonoaudiologia, são proibidos de

utilizar qualquer sinal gestual, chegando a ficar com as mãos amarradas para não

gesticularem, sendo reprovada também a interação com outros surdos, entendendo que estes

devem socializar com pessoas ouvintes e utilizá-las como modelos. Assim como afirma

Lacerda (1998) o proposito da educação de surdos, então, era que estes pudessem desenvolver

seu pensamento, adquirir conhecimento e se comunicar com o mundo ouvinte. Com a

imposição da oralidade, afasta-se o surdo do mundo e da cultura surda, impossibilitando-o de

adquirir sua língua natural, impedindo-o de instrumentar-se de recursos que o possibilitem ser

um ser social e pensante.

As famílias nobres com membros surdos do século XVI, época quem que surgiram os

primeiros trabalhos pedagógicos com surdos, contratavam professores para que seus entes não

fossem privados de falar e, principalmente, dos direitos legais que só eram garantidos àqueles

que pudessem verbalizar. O primeiro professor de surdos conhecido chamava-se Pedro Ponce

de Leon. As estratégias de ensino desses professores visavam sempre a língua falada, porém

oralizar quem não escuta é um tanto quanto complexo, então os docentes recorriam à língua

escrita e usavam-na como ponto de partida para seus trabalhos. “Falava-se da capacidade do

surdo em correlacionar as palavras escritas com conceitos, sem necessitar da fala” (Lacerda,

1998, p.2). O que quer dizer que a partir da leitura-escrita, esses professores buscavam

estratégias para desenvolver, posteriormente, habilidades de articulação das palavras e leitura

labial. Pode-se perceber que desde a antiguidade a busca pela fala sempre foi o principal

objetivo da educação de surdos e todas as estratégias adotadas tinham como ponto de chegada

a normalização dos surdos para que estes pudessem viver em harmonia com a sociedade

majoritária.

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Foi somente no século XVIII que surgiu a possibilidade de se pensar na língua gestual

para estes sujeitos. Com essa nova perspectiva, separou-se de vez os defensores do oralismo,

que pregavam que os surdos deveriam falar e se comportar como ouvintes, reabilitando-se da

surdez, e os gestualistas, que defendiam a fala gestual como forma de socialização e

desenvolvimento cognitivo dos sujeitos surdos. Os oralistas reprimiam quem não pudesse

falar, impunham que os surdos deveriam aprender a língua falada, ainda que com essa

estratégia os surdos não se desenvolvessem e não se integrassem socialmente. Os gestualistas

perceberam que o gestual tornaria possível o desenvolvimento dos surdos em vários âmbitos.

Dentre os defensores do gestualismo está o francês Charles M. De L’Epée, primeiro

estudioso sobre a língua de sinais e criador do primeiro método educacional que valorizasse

também a língua gestual. O método criado foi chamado de “sinais metódicos”, que consiste

em os educadores aprenderem a língua de sinais para se comunicarem com os surdos e então

utilizá-la para ensinar a língua falada e escrita da sociedade em que vivem.

Em 1775, De L’Epée fundou a primeira escola especializada, onde eram utilizados os

sinais metódicos. Diferentemente de seus antecessores, De L’Epée divulgava suas técnicas,

chegando a lançar, em 1776, um livro com seus métodos e estratégias. Alguns dos alunos de

sua escola liam e escreviam em Francês, muitos deles tornaram-se professores de outros

surdos e alguns chegaram a publicar livros contando as problemáticas da surdez. O autor

defendia que “a linguagem de sinais é concebida como a língua natural dos surdos como

veículo adequado para desenvolver o pensamento e sua comunicação.” (De L’Epée apud

Lacerda, 1998, p. 3). E afirma ainda que “o domínio de uma língua, oral ou gestual, é

concebido como instrumento para o sucesso de seus objetivos e não como um fim em si

mesmo” (De L’Epée apud Lacerda, 1998, p. 3)

Contemporâneo ao trabalho gestualista de De L’Epée existiam oralistas ferrenhos,

como o português Pereira e o alemão Heinecke, que criticavam as estratégias do francês.

Heinicke, considerado fundador do oralismo, pregava que somente através da língua oral é

possível se formular o pensamento, sendo a língua escrita secundária, devendo vir a ser

aprendida depois da aquisição da língua falada.

Os avanços nas propostas pedagógicas deram origem ao I Congresso Internacional

sobre a instrução de surdos, em 1878, em Paris. O congresso contribuiu para o avanço social

dos sujeitos surdos, como a possibilidade desses de passarem a assinar documentos. Foi o

primeiro passo, ainda que não lhes garantisse a integração social. Dois anos após, ocorreu o II

Congresso, sediado em Milão, e teve como maioria os seguidores e defensores do oralismo,

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visto que a prática voltava a ganhar cada vez mais adeptos e se estendendo a quase todos os

países europeus. Como consequência de tantos adeptos, a linguagem gestual foi banida como

forma de comunicação, sumindo junto com ela os professores praticantes do gestualismo, que

eram os responsáveis pela educação e metodologia de ensino nas escolas. A prática do

oralismo voltou a ser referencia e suas estratégias educacionais divulgadas por todo o mundo.

Os oralistas pregavam que o uso de gestos e sinais desviavam o surdo da

aprendizagem da língua falada, considerada socialmente mais importante, porém o oralismo,

que foi defendido por séculos, mostrou-se insuficiente pedagogicamente. Os surdos profundos

não aprenderam a falar satisfatoriamente, gerando então um desenvolvimento global tardio e

falho. A aprendizagem da leitura e da língua escrita também fracassou, comprovando que se

formavam sujeitos pouco preparados para o convívio social, marginalizando cada vez mais os

surdos.

O oralismo ficou em vigência até a década de 50 do século XX, sempre como

soberana abordagem educacional para surdos. Até que surgem as próteses, só que essa nova

perspectiva não rompe com a anterior, a busca pela prótese e os profissionais que incentivam

o implante continuam seguindo os preceitos educacionais do oralismo, visando a vocalização

dos sujeitos surdos. O ponto forte no oralismo é a incansável busca por alternativas que façam

dos sujeitos surdos, ouvintes. Dentre esses processos destaco o implante coclear, que consiste

em uma cirurgia para a implantação de dispositivo eletrônico, que tem por finalidade

estimular através de eletrodos as fibras neurais, possibilitando ao operado a capacidade de

perceber o som. Segundo Nussbaum (2003 apud SANTANA, 2007, p. 134) o implante

coclear possibilita ao usuário a percepção dos sons, percebendo e enviando esses sons,

transformados por sinais elétricos, ao nervo auditivo, a fim de ser decodificado pelo córtex

cerebral. Contudo os implantes não permitem a interpretação dos sons e tão pouco garantem a

que o implantado fale como um ouvinte.

O implante surgiu como a cura para surdez profunda, com a cobrança social de que os

que não falam oralmente são marginais, e quando digo marginais, me refiro àqueles que

vivem à margem da sociedade, essa mesma sociedade que impõe que a fala deve ser somente

oral. Laborit (2000, p. 115) em seu livro O voo da Gaivota demonstra todo o sentimento

quanto a essas imposições do mundo ouvinte.

Somos uma minoria, os surdos profundos de nascença. Com uma cultura

específica e uma língua específica. Os médicos, os investigadores, todos os

que querem transformar-nos a qualquer preço em ouvintes põem-me os

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cabelos em pé. Fazerem-nos ouvintes é aniquilar a nossa identidade.

Diferentemente do Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI), o implante

pretende restaurar a função auditiva em pacientes com surdez profunda, fazendo com que os

mesmos sejam capazes de perceber o som, já o aparelho amplificador ou prótese auditiva

apenas amplifica o som. Perceber o som é totalmente diferente de entender o som. Laborit

quando fala deste implante explica que este “só tem que codificar os sons para os reexpedir

em sinais ao nervo auditivo. A pessoa que o utiliza tem que aprender a decodificar.”(p.117)

Quer dizer, o implante não faz com que o surdo compreenda o mundo sonoro, mas sim ouça o

barulho advindo do mundo ouvinte, os implantados precisam aprender a decodificar os sons,

para, posteriormente, aprenderem a falar. Para Santana, (2005 apud Santana, 2010, p.141).

A linguagem envolve não apenas ouvir, discriminar, memorizar, mas um

trabalho (meta)linguístico do sujeito sobre a língua, os movimentos

enunciativos aos quais o sujeito recorre, a subjetividade que põe em

evidencia as escolhas lexicais, a construção sociocognitiva do sentido. São

esses movimentos que fazem o processamento da linguagem se realizar.

Sendo assim, a utilização da língua falada abrange conceitos de compreensão do sinal

da fala, pois ouvir não implica em compreender a fala, assim como não basta ouvir para falar,

a aquisição da linguagem é um processo que depende de interações e do uso efetivo da fala. O

implantado necessitará também de treinamento auditivo, através de um lento processo de

reeducação e reabilitação. A metodologia utilizada com crianças protetizadas1, é a de ensinar

o surdo, ainda que profundo, a ouvir e, consequentemente, a falar. A metodologia de ensino

adotada por seus defensores consiste no aprendizado da leitura labial e de palavras, ensinadas

de maneira descontextualizada a essas crianças.

Alternativa essa que é defendida pelos oralistas, quando dizem que em crianças pré-

locutivas os dados dos progressos são favoráveis, pois melhora significativamente a

capacidade de compreensão da linguagem, mas condenada pela comunidade surda. “As

associações de surdos rejeitaram a utilização por considerá-lo um atentado a cultura dos

surdos e ao seu meio de comunicação específico: a linguagem de sinais.” (Marchesi, 2010, p.

173)

1Terminologia encontrada no texto “Um pouco da historia das diferentes abordagens na educação de surdos”

de Cristina Lacerda, para se referir a surdos que utilizam AASI (próteses auditivas).

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A partir da década de 60, com Willian Stokoe o estudo da língua de sinais voltou a ser

pauta. Surgiram estudos sobre a língua de sinais adotada por comunidades surdas, afinal, à

margem do sistema os surdos sempre utilizaram seus próprio modo de comunicação por

sinais, raramente se encontrava um grupo de surdos que não utilizassem gestos e sinais,

mesmo quando ainda eram proibidos.

Os estudos iniciais sobre a língua de sinais, começados por Stokoe, demonstraram que

a linguagem de sinais preenchia os requisitos linguísticos semelhantes à linguagem oral, e é o

que faz surgir, nos anos 70, a comunicação total, que pratica o uso de sinais, leitura labial,

alfabeto digital e a língua falada. Esta ultima deixa de ser um objetivo e passa a ser mais uma

área trabalhada por essa nova estratégia pedagógica. Os surdos podem escolher suas formas

de comunicação preferidas e se comunicarem como desejarem, todas as modalidades

linguísticas são aceitas, buscando uma maior facilidade posterior na aquisição da língua

falada, escrita e também na leitura. No entanto, essa metodologia ainda apresenta falhas

consideráveis na formação social e cognitiva dos surdos. A comunicação total abriu portas

para o contato com os sinais, dando início a uma nova possibilidade educacional e cultural,

como a comunicação bilíngue, que contrapõe-se ferrenhamente ao oralismo.

Como diz Behares (2000), a comunicação total propõe “estabelecer um fluxo

comunicativo direto com a criança através de todos os recursos imagináveis ou possíveis.”

(p.11). Ou seja, qualquer forma de comunicação era válida. Fala, leitura labial, escrita,

mímica. Essa perspectiva vê o surdo como diferente e ainda tem como principal objetivo

romper com o bloqueio de comunicação, tendo como meta superar o fracasso do oralismo. Foi

um avanço se pensarmos como forma de interação com outros surdos e com o meio, mas

ainda assim era uma educação falha, que contava com profissionais, os professores ouvintes,

que tinham contato com a comunidade surda e com intérpretes. A comunicação total abrange

também o bimodalismo, que visa oralizar o surdo, utilizando desde o início da educação da

criança surda, a linguagem oral, acompanhada da sinalização da língua de sinais do seu país.

Como a criança surda tem na língua de sinais a sua linguagem natural, claro que o que elas

recebem dessa interação, é somente o gestual, ou seja, não se alcançava a oralização desta

forma, pois a língua natural fala mais alto.

Somente na década de 90 o bilinguismo surge com força total. Considerando que essa

nova corrente rompe com o conceito de deficiência e segue uma perspectiva

socioantropológica, pois percebe o surdo como diferente e possuidor também de uma cultura

e de uma identidade própria. O bilinguismo considera o canal visogestual de extrema

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importância para a aquisição de linguagem dos surdos e a língua de sinais é considerada a

língua natural desses sujeitos. A língua de sinais é adquirida pelos surdos com rapidez e

naturalidade através de interação, assim como a língua oral é para os sujeitos ouvintes. Na

educação bilíngue propõe-se que sejam ensinadas duas línguas, sendo a primeira língua, a de

sinais, e a segunda, a língua majoritária do grupo ouvinte, podendo ser escrita ou oral, numa

modalidade sucessiva, ou seja, primeiro se aprende a linguagem gestual e somente depois a

segunda língua, pois assim, sinalizando, o surdo desenvolve sua capacidade de competência

linguística, abrindo caminho para a aprendizagem e outras línguas.

A educação bilíngue encoraja o desenvolvimento da fala, mas não limita-se apenas a

ela. Essa perspectiva vê a língua de sinais em igualdade de condição com a língua oral, não

menos estruturada ou complexa. São responsáveis pela educação dos surdos, professores

igualmente surdos, servindo-lhes também de modelo identificatório. O bilinguismo tem como

filosofia o desenvolvimento cognitivo-linguístico-social e cultural do sujeito surdo. Onde

estes podem ter acesso às duas línguas, podem conviver com outros surdos, possibilitando a

formação cultural desses sujeitos.

5.2. Benefícios da língua de sinais e da educação bilíngue

Como vimos, a importância da linguagem para o desenvolvimento global do ser

humano é primordial, a linguagem intervém no processo de desenvolvimento intelectual da

criança desde o nascimento. Para Vygotsky (1998), que propõe a teoria sociointeracionista, o

ser humano já nasce inserido num meio social, que é a família, e é nela que estabelece as

primeiras relações com a linguagem na interação com os outros, é essa interação uma das

maiores responsáveis pelo desenvolvimento da criança. O processo de formação de

pensamento é despertado pela vida social e pela constante comunicação que se estabelece

entre crianças e adultos, é um processo fundamental, pois sem linguagem não há pensamento,

portanto a interação social torna-se o motor do desenvolvimento.

A aprendizagem acontece em todo lugar, e se dá exatamente por esse processo de

interação e mediação adulto/criança. A aprendizagem da criança ouvinte antecede a entrada

na escola e o aprendizado escolar produz algo novo no desenvolvimento infantil,

evidenciando as relações interpessoais. Já a criança surda não tem possibilidade de adquirir

essa aprendizagem sem o acesso à comunidade, à cultura, e à identidade surda.

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A educação bilíngue vem para romper com a concepção oralista e da comunicação

total e, nesse novo paradigma, não se discute somente a mudança metodológica, mas também

ideológica, aceitando a língua de sinais como língua natural dos surdos, sua importância no

processo educativo, assim como o convívio com surdos adultos fluentes na língua de sinais a

fim de condicionar a interação com os seus semelhantes sendo esta uma condição essencial

para a garantia de uma educação bilíngue eficaz.

Outra mudança ideológica é a aceitação da cultura surda – passando a ser

compreendida como uma experiência visual que ocorre em todos os tipos de produções,

representações e significações dos surdos, e não somente como uma forma de comunicação –

transformando em uma pedagogia socializada, rompendo com as práticas clínico-terapêuticas

e com a obsessão da correção do déficit, assumindo a linguagem como mediadora das

interações e da significação de mundo.

O contato com a comunidade surda é de extrema importância, como afirma Vygotsky

(apud Gesueli, 2006, p.3) “a relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada, as

ocorrências de mediação primeiramente vão emergir de outrem e depois vão orientar-se ao

próprio sujeito.” E ainda segundo Góes (1998, apud Gesueli, 2006, p. 4) “a construção da

identidade só poderá ser examinada considerando-se a dinâmica de significados e sentidos

produzidos e interpretados no jogo interativo do sujeito com outro”.

A partir do convívio com a língua de sinais e em contato com professores surdos, estes

podem perceber as diferenças das línguas, portuguesa e de sinais, e compreender que cada

uma tem seu valor e sua função. E então passam a se identificar como usuários efetivos da

língua de sinais e se integrarem política e socialmente com a comunidade surda. “Garantir o

uso da língua de sinais no contexto escolar parece primordial para que haja reconhecimento

da surdez, pois é por intermédio da linguagem que significamos o mundo e consequentemente

nos significamos” (Gesueli, 2006, p.9)

Os surdos só farão leitura de mundo através da língua de sinais, ainda que estes sejam

oralizados, pois não teria como eles se reconhecerem como parte integrante da comunidade

surda sem o domínio da língua de sinais, e tão pouco se identificar com a comunidade

ouvinte. Ainda que se assumir como integrante de um grupo minoritário e discriminado seja

um processo complexo, somente através do contato com outros surdos fluentes na língua de

sinais será possível uma educação bilíngue eficaz. Como nos aponta Gesueli (2006:290):

O surdo tem, até hoje, vivido um movimento de resistência, buscando o

reconhecimento de sua cultura, tentando fazer-se presente como minoria

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linguística, mesmo que ainda fragmentado e dividido pelo grupo que se

submete à hegemonia cultural.

O surdo possui uma identidade política própria, faz parte de uma cultura rica e tem a

sua própria língua, porém, nem todos os surdos têm acesso a sua cultura, a sua linguagem, a

sua identidade cultural, alguns por falta de conhecimento, outros por exigências familiares.

Com isso, a escola precisa estar aberta à cultura surda, precisa reconhecê-la como tal, precisa

proporcionar meios para que seus educandos não sejam vistos como deficientes auditivos,

mas como alguém que possui uma identidade cultural própria, significativa e com

características próprias. Esta instituição precisa proporcionar recursos linguísticos para que o

surdo possa se desenvolver de forma autônoma, preparando-o para enfrentar desafios, não o

vendo sob o ângulo da surdez, mas da diferença.

Considerando as discussões levantadas por Skliar (1998), percebe-se que o surdo não é

diferente porque não ouve, mas porque desenvolve potencialidades culturais diferentes das

dos ouvintes, que são baseadas na linguagem e na experiência visual. A pessoa surda vivencia

a falta de audição num mundo de sons, o que a impede de adquirir naturalmente a linguagem

oral usada pela maioria, baseando-se nessa diferença sua identidade é construída utilizando

estratégias cognitivas, comportamentais e culturais diferentes da maioria dos ouvintes.

Com relação à criança/pessoa surda, que não tem teve possibilidade de vivenciar a

cultura surda desde os primeiros meses, é pelo acesso a língua de sinais que ela vai produzir

essa interrelação e construir sua identidade em todos os seus aspectos: linguísticos, cognitivos

e sociais. Com o acesso à língua de sinais o mais cedo possível, o sujeito surdo teria assim

garantido seu direito a uma língua de fato, o que possibilita a aquisição do pensamento e, logo

assim, o seu desenvolvimento. A criança que nasce surda, ou se torna surda nos primeiros

anos de vida, apresenta dificuldades em relação à aquisição de linguagem, o que poderá

ocasionar déficit em outras áreas, nas relações sociais, por exemplo, e no “bloqueio” da parte

do cérebro responsável pela linguagem. Por não receber estímulo, essa parte se atrofia (assim

como qualquer parte do corpo), tornando quase impossível, ou bastante precária, a aquisição

de uma língua.

Seguindo ainda na visão de Vygostky (1998), a criança surda não é capaz de

estabelecer as primeiras relações sociais por meio da família. Crianças surdas filhas de pais

ouvintes são privadas dessas primeiras interações que são de grande importância para sua

cognição, pois o sujeito é interativo, adquire conhecimentos a partir de relações interpessoais

e de troca com o meio, a partir de um processo denominado mediação. Os surdos só poderão

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ter essa troca com o meio, se estiverem em contato com outras crianças e adultos surdos, pois

através dessa interação eles irão adquirir a língua de sinais e então poderão estruturar seu

pensamento e desenvolver-se cognitiva e socialmente.

As relações sociais acontecem por meio da linguagem, portanto pessoas surdas não

têm dificuldades de aquisição da linguagem, mas essa facilidade ou dificuldade vai decorrer

das possibilidades proporcionadas pelo meio social no qual estão inseridos. Crianças ouvintes

adquirem espontaneamente a linguagem. Apesar de crianças ouvintes e surdas aparentemente

serem iguais, se a criança surda não for devidamente estimulada à aquisição da língua de

sinais ocorrerá com maior dificuldade, pois essa criança ficou mais tempo sem interação com

o mundo e seus desenvolvimentos socioculturais não foram devidamente estimulados. A

relação do sujeito com a língua é que vai produzir a diferença, portanto, o vínculo do surdo

com a língua de sinais vai ser determinante e essencial. Como vimos durante o período de

fracasso da oralização e da comunicação total, e agora com o reconhecimento da língua de

sinais como língua oficial dos surdos, esse acesso vai dar possibilidade de ele vir a assumir

uma posição discursiva que não se reduza à mera reprodução.

A língua de sinais é uma ferramenta decisiva no processo de linguagem, na elaboração

das formações discursivas dos surdos e na compreensão do seu discurso, no processo de

formação da identidade e do pensamento. Percebo a linguagem como principal meio de

desenvolvimento cognitivo, pois é por meio dela que nos relacionamos com o mundo e

aprendemos e reaprendemos através da interação com o próximo, e para os surdos não poderia

ser diferente. O ensino da língua de sinais é essencial para que eles tenham acesso a uma

língua de fato e por meio dessa linguagem formem e reformem o pensamento, podendo

também através dela se relacionar com a comunidade surda e ouvinte, interagirem e por meio

da relação sociocultural se desenvolverem cognitiva e intelectualmente, evitando assim o que

era visto anteriormente com muita frequência, a segregação e exclusão dos surdos, colocando-

os à margem do mundo social, educacional e cultural, impedido-os de interagir na sociedade,

na escola e no mercado de trabalho.

A educação bilíngue parte do princípio que a língua de sinais deve ser ensinada como

primeira língua para os surdos, pois é a sua língua natural, todas as crianças surdas podem

adquirir sua língua natural, a língua de sinais, através de interações com a comunidade surda,

assim como qualquer criança ouvinte adquire sua língua através de suas interações sociais.

Língua natural não se entende como espontaneidade biológica, mas como aquela que é natural

para os indivíduos que compõe aquela sociedade, para uso específico de seus usuários.

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No processo educativo, o bilinguismo trabalha com base nas duas línguas diferentes,

oral e de sinais, respeitando a autonomia e as diferenças entre elas, elaborando uma pedagogia

que não afete a experiência sociolinguística da criança. A língua oral é ensinada depois que a

criança já adquiriu habilidades interativas e cognitivas pela experiência com sua língua

natural. Behares (2000) diz que os surdos são membros em potencial de uma comunidade

minoritária e a partir da cultura dessa comunidade podem então alcançar sua interação

consistente nessa cultura ouvinte. Ou seja, através de toda aquisição do pensamento, do

aprendizado da língua de sinais, a criança surda poderá se desenvolver na língua oral

majoritária da sociedade a qual pertence. Com seu cognitivo já estruturado, o surdo pode,

então, desenvolver a língua portuguesa como segunda língua.

Para Souza (2000:92) “No caso dos surdos, faz-se necessário franquear-lhes a palavra,

quer dizer, antes de escreverem nosso idioma, deveriam poder se narrarem em sinais, e suas

narrativas precisam ser acolhidas por uma escuta também em sinais.”

A língua portuguesa como segunda língua tem como prioridade o aprendizado da

língua escrita, chamado de letramento e não de alfabetização, pois nessa nomenclatura se

remete à relação letra/som. É valorizada a aprendizagem da escrita, pois para o surdo, o

letramento se dá de forma diferente dos ouvintes. A camada dominante da sociedade aprende

a escrever através da rota fonológica, que se dá através do grafema-fonema que é a

decodificação através do som. Já na surdez o processo ocorre pela rota lexical, que é o

reconhecimento visual das palavras, assim como ocorre com o sujeito já alfabetizado, que

consegue ler um texto mesmo que algumas letras estejam trocadas ou apagadas, pois essas

palavras já foram absorvidas pelo novo vocabulário interno.

A partir desse ensinamento da língua portuguesa como segunda língua o surdo pode,

enfim, adentrar na sociedade ouvinte, se comunicando através da linguagem escrita e da

leitura. Tendo em vista que o surdo tem acesso ao mundo através da visão essa perspectiva de

ensino da língua portuguesa deve ser respeitada, assim como a língua de sinais, que é uma

língua plena, complexa, com organização sintática, componentes gramaticais e capaz de se

expressar como qualquer outra língua falada.

5.3. Educação de surdos: paradigmas brasileiros

A partir de 2002, com a oficialização da Língua Brasileira de Sinais – Libras – os

surdos passaram a ser reconhecidos como um grupo cultural que usa uma língua minoritária, a

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língua de sinais. O bilinguismo defende que a língua de sinais deve ser ensinada desde cedo às

crianças, para que se possa garantir a efetiva comunicação simbólica, possibilitando o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores. O bilinguismo não se caracteriza por

uma metodologia de ensino vinda para substituir o oralismo ou a comunicação total, mas

como uma mudança ideológica quanto à educação de surdos.

No entanto, o Brasil é um tanto quanto atrasado no amparo desses sujeitos. Muito

surdos brasileiros não sabem a respeito da Libras, acreditam que esta e a língua portuguesa

sejam a mesma, diferenciando apenas na sua materialidade, escrita, gestual ou oral, e quando

o surdo desconhece a língua de sinais e a associa a língua portuguesa, considerando que a

primeira é a forma gestual da segunda, é que a língua de sinais fica em posição inferior à

língua portuguesa. Existem também os surdos adultos que nunca tiveram contato com a língua

de sinais e foram submetidos a práticas que tentam fazer do surdo ouvinte, com treinos e

técnicas descontextualizadas e perversas. Alguns desses surdos ainda estudaram em escola de

ouvintes, onde eles não compartilhavam ideias com os professores e com outros alunos e o

ensino de português era falho e com ênfase em regras gramaticais, ensinadas com base em

textos simples e curtos. Todos esses fatos levavam ao abandono escolar e, consecutivamente,

à marginalização dos surdos.

Fernandes e Moreira (2009) afirmam que os surdos ainda sofrem com o antagonismo

encontrado nas escolas. Ora é combatido o uso do bilinguismo, considerando o discurso da

igualdade, e em outro momento é defendido, pois o processo de ensino-aprendizagem sempre

foi cruel com os surdos, tratando-os como ouvintes. Outra dificuldade no cenário da educação

bilíngue pode ser explicada também pelo longo tempo que os surdos passam sem ter acesso a

sua língua natural, já que a grande maioria dos surdos são filhos de ouvintes, cabendo à escola

essa ação mediadora do ensino da língua de sinais.

Junto com as condições que os surdos enfrentam desde seu nascimento, sendo

privados de interação verbal, estes ainda convivem com as problemáticas educacionais do

Brasil quando se trata da educação dos surdos. Encontramos no cenário educacional brasileiro

algumas vertentes quando o assunto é a educação de surdos. O primeiro modelo é a inclusão

do aluno bilíngue em uma sala monolíngue, que o aproxima da língua portuguesa, mas o

impossibilita a interação social. E o modelo que utiliza a língua de sinais como ponte para o

ensino de língua portuguesa. Todos os modelos têm como objetivo a normalização dos

surdos, para que esses possam conviver socialmente, desvalorizando a sua língua natural e a

sua cultura. Diante dessas possibilidades educacionais que encontramos no Brasil, pode-se

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dizer que os surdos “são bilíngues por contingência e não por opção” (Fernandes e Moreira

2009: 227)

A falta de estrutura para uma educação bilíngue de qualidade gera algumas situações

para os surdos, como a imersão na língua dominante em busca da assimilação linguística, ou a

segregação, onde se ensina somente a língua materna, sem se importar com a dominante. Ou

ainda, os programas transitórios, onde a língua materna é usada como instrumento para a

substituição gradual pela língua dominante. Já a inclusão limita o bilinguismo, pois a segunda

língua é ensinada apenas para um enriquecimento limitado de conhecimento. E os programas

separatistas, que valorizam somente a língua natural, tendo pouco contato com a segunda

língua, caracterizando um bilinguismo limitado. Todas essas situações vão na contramão do

real benefício da língua de sinais para o sujeito surdo, ao invés de favorecer ao processo

educacional destes, continuam a segregá-los.

Outra problemática encontrada na educação de surdos brasileira são as diferentes

ideologias escolares: escola regular, escola especial e escola inclusiva. A primeira tem na

língua portuguesa a única forma de interação e instrução. As escolas especiais adotam o

português como língua principal, apesar da língua de sinais ser utilizada, a falta de

conhecimento e limitação por parte do professor tornam a escola fraca do ponto de vista

bilíngue. E a escolas inclusivas onde os modelos dos alunos surdos são professores e

intérpretes sem qualificação profissional, fazendo do processo educativo algo sem

credibilidade. Esses três tipos de escola que temos acabam por fortalecer a crença de que a

língua de sinais é desqualificada e primitiva, fazendo com que a língua de sinais seja vista

como inferior à língua dominante, gerando no surdo a incapacidade de se identificar como um

grupo com cultura e identidade própria.

Os surdos continuam sendo vistos como um problema dentro da escola. No período

oralista o problema era o não falar da língua dominante e hoje por falarem uma língua que

quase ninguém conhece. O reconhecimento do direito dos surdos não deve ir de encontro

com as supostas igualdades de direitos, onde a igualdade de oportunidade é dada através da

desigualdade de condições. Por isso, defende-se tanto que os programas educacionais

bilíngues contribuam para que as características linguísticas e sócio-histórico-cultural dos

surdos sejam reconhecidas e valorizadas.

O bilinguismo surgiu para propiciar uma educação de qualidade para os sujeitos

surdos, com o reconhecimento do valor social da língua de sinais, pois esta ocupa um papel

socioideológico no processo linguístico da particularidade desses sujeitos. São defendidas

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propostas políticos-pedagógicas quanto à educação de surdos ter a língua de sinais como

primeira língua, pois consideram que o saber dessa primeira é determinante na construção dos

saberes na segunda e defendem ainda que os surdos devem adquirir a sua língua natural em

contato com outros surdos adultos usuários e fluentes na língua de sinais e somente a partir

desse contato e da aquisição da língua de sinais, ensinar a segunda língua, que deve ser

preferencialmente escrita.

A proposta bilíngue foi pensada para crianças surdas que terão desde pequenas contato

com a sua língua natural, convivendo com outros surdos adultos usuários da língua. Mas

como adotar essa proposta pedagógica quando o surdo já é adulto e viveu anos isolado da

língua de sinais e da língua portuguesa? Skutnabb-Kangas (1994, apud Lodi e Moura, 2006)

citam alguns conceitos para esse questionamento. Para se entender a língua 1 (um) é preciso

considerar alguns critérios como: origem, identificação interna e externa, competência e

função. Isso quer dizer que devemos considerar esses cinco pontos para pensarmos a língua de

maneira plural.

A origem se caracteriza pela língua que primeiro é aprendida pelo sujeito.

Identificação interna é a autoidentificação do sujeito com a língua falada por ele e a

identificação externa, como são identificados pelos outros a partir de sua língua. Competência

refere-se a qual língua o sujeito melhor domina e função é analisar a língua mais utilizada

pelo sujeito. Sendo assim a concepção de Língua 1 (um) deixa de ser estática, podendo se

alterar no decorrer da vida de cada sujeito.

Ou seja, não é porque o sujeito nunca teve contato com a língua de sinais que aquela

não seja sua língua natural, ainda que pelo critério de origem não tenha sido a primeira língua

a ser aprendida. Quanto aos outros critérios, a língua de sinais pode se tornar a língua 1 (um)

desde que seja dada a oportunidade de convívio com outros surdos usuários da língua de

sinais e, então, estes se tornam fluentes, podendo redefinir sua cultura e identidade.

Através do contato com outros surdos fluentes na língua de sinais, esses surdos que

não tiveram contato desde cedo com a língua de sinais podem ressignificar a surdez num

contexto de diversidade, sendo possível o alcance da aceitação social como sujeito surdo, a

aceitação da língua de sinais como língua de valor, tal como a língua portuguesa,

encontrando, ainda, aspectos positivos consequentes dessa aproximação com sua língua

natural e seus semelhantes, fazendo com que percebam que a língua de sinais traz consigo um

papel socioideológico, sendo importantíssima para os processos linguísticos e da

subjetividade dos surdos, como cita Bakhtim (2000, apud Lori e Moura, 2006, p. 7) “a tomada

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de consciência do eu ocorre somente quando o eu se coloca sob determinada norma social, e

que esse processo só é possível na medida em que o eu olha para si pelos olhos de outro”.

Enfim, com base nos parâmetros educacionais envolvendo a educação de surdos que

se encontra no Brasil, onde todas as escolas se defendem como humanistas, inclusivas, mas

infelizmente percebemos que em todas elas os surdos são reféns de práticas pedagógicas que

produzem sua exclusão e marginalização. Skliar (apud Loureiro, 2006) caracteriza essas

escolas como instituições que incluem o surdo na sala da aula para o convívio com os demais,

mas não lhes dá condições de se desenvolver social-cognitiva-linguística e culturalmente

como a maioria.

Precisa-se entender que o surdo faz parte de uma minoria linguística e como seria

possível a aquisição da língua de sinais por alunos surdos que ainda não a possuem? Como

interagiriam? Como seriam ministradas as disciplinas? Loureiro (2006) defende que o surdo

precisa primeiramente adquirir a sua língua natural e que uma educação inclusiva deveria

defender uma pedagogia voltada para a aprendizagem e desenvolvimento desses sujeitos,

assim como na educação bilíngue, que consiste em promover a aquisição da língua de sinais

como primeira língua. A autora afirma também que

A educação deve garantir, portanto , que toda informação sobre o mundo

chegue a criança surda na Língua de Sinais. É preciso que ela desenvolva

linguagem, isto é, capacidade de verbalização, pois esta constitui-se como

aspecto chave para seu desenvolvimento cognitivo (2006, p 17).

É importante ainda a participação de adultos surdos que utilizam a linguagem gestual

no processo educacional, como fonte de cultura e de uma imagem positiva. Deve ocorrer a

escolarização de crianças surdas desde os anos iniciais, a valorização por parte de outros

profissionais da língua de sinais e, somente após todo o desenvolvimento cognitivo-

linguístico, pode-se ensinar a 2ª língua. A educação bilíngue pretende promover as trocas

interculturais, mantendo um equilíbrio nas relações de poder entre as línguas, uma não é

melhor, mais importante ou mais complexa que a outra, ambas se completam, compreendendo

então esse bilinguismo. “Não há outra alternativa para o pleno desenvolvimento das

capacidades dos surdos que não seja a concentração de esforços no desenvolvimento da língua

de sinais” (Hyltenstam, 1994 apud Loureiro 2006, 17).

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5.4. Em defesa da língua de sinais e da educação bilíngue em leis e números

A língua de sinais foi garantida, a partir de leis, aos sujeitos surdos como língua

natural de sua comunidade. No ano de 2002 foi sancionada a lei 10.436 que “reconhece, no

artigo 1º, como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras,

e outros recursos de expressão a ela associados.” É entendida como língua brasileira de sinais

a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de

natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um

sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de

comunidades de pessoas surdas do Brasil.

A lei que entrou em vigor em 24 de abril de 2002 garante aos surdos o direito de

exercer a língua de sinais como primeira língua, para que assim interajam socialmente e

tenham direito de fato a inclusão social.

Outra lei de suma importância para a educação de surdos é o decreto 5.626, instituído

em 22 de dezembro de 2005. De acordo com o artigo 3º da lei

a Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos

de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e

superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas

e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

E para os demais cursos de educação superior e na educação profissional a Libras

constituir-se-á em disciplina curricular optativa.

Esses decretos, já em vigência, garantem aos cidadãos surdos sua integração social e o

direito de adquirirem sua linguagem natural¸ a língua de sinais, como parte da cultura surda e

da formação da identidade plena dos sujeitos surdos, para que assim abandonem os

mecanismos perversos de exclusão e possam exercer uma vida em comunidade.

O Censo de 2010 realizado pelo IBGE realizou a coleta de dados referentes às pessoas

deficientes em forma de amostragem, onde todos os dados de pessoas com deficiência foram

coletados apenas de 10 em 10 casas, ou seja, muitas pessoas com alguma deficiência

continuaram sem existir. Utilizarei o censo de 2000 para demonstrar o número de surdos

existentes no Brasil, quantos tem acesso à educação e os níveis de escolaridade que

apresentam.

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Segundo o censo demográfico de 2000, como cita o site da Federação Nacional de Educação e

Integração dos Surdos (FENEIS), existem no Brasil 5.750.805 surdos, sendo 519.460 em idade de 0 a 17 anos.

E 256.884 entre 18 e 24 anos, totalizando, na faixa etária escolar, 766.344. Os matriculados na educação

básica totalizam 56.024 e no ensino superior 344. São apenas 7% da população surda em faixa etária escolar

estudando.

Ainda assim, com todo o avanço no sistema educacional e com os direitos

conquistados, vemos que um grande número de sujeitos surdos ainda está excluído da escola.

Se as crianças e os jovens totalizam 766.344, apenas 56.368 estão estudando, ainda temos

709.976 crianças e jovens surdos excluídos do sistema escolar, o que equivale a 92% deste

grupo. Pensando assim, como podemos inseri-los no sistema escolar para eles tenham de fato

chance de uma inclusão social? E não pensar apenas em inseri-los, mas proporcionar uma

educação de qualidade para os surdos, pois não basta apenas sua inclusão escolar, mas

também que esses sujeitos consigam estudar e se formar e se incluir de fato na sociedade.

6. Teoria Sociointeracionista de Vygotsky

6.1. Linguagem, aprendizagem e desenvolvimento na teoria sócio-histórica-

cultural de Vygotsky

O desenvolvimento humano é entendido de maneiras diversas por várias perspectivas

de estudo. Para abordar linguagem, aprendizagem e desenvolvimento na teoria sócio-

histórica-cultural de Vygotsky, é preciso conhecer as outras visões desse estudo. A

perspectiva ambientalista concebe que as crianças nascem como tábulas rasas, e a

aprendizagem se dá no ambiente através de processos de imitação ou reforço. Na perspectiva

inatista, a criança já nasce pronta para o desenvolvimento, pois tudo se encontra presente em

sua estrutura biológica. Não se aprende nada no ambiente, este apenas propicia um

conhecimento já existente.

A visão de desenvolvimento humano construcionista, que tem como principal teórico

Piaget (CARRARA, 2000), caracteriza-se por perceber que o desenvolvimento é construído a

partir de uma interação entre o desenvolvimento biológico e as aquisições da criança com o

meio. A partir da visão de desenvolvimento evolucionista, compreende-se que o mesmo

ocorre no desenvolvimento das características humanas e variações individuais como produto

de uma interação de mecanismos genéticos e ecológicos, envolvendo experiências únicas de

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cada indivíduo desde antes do nascimento. Por fim, na perspectiva psicanalítica, o

desenvolvimento humano é entendido a partir de motivações conscientes e inconscientes da

criança, focando seus conflitos internos durante a infância e por todo o ciclo vital.

Vygotsky trouxe uma nova perspectiva de olhar as crianças, alguns conceitos já

abordados por Jean Piaget (CUNHA, 2004 e DAVIS, OLIVEIRA, 2010), um dos primeiros a

considerar a criança como ela própria com seus processos e não um adulto em miniatura. A

característica mais marcante do trabalho de Vygotsky é de que ele é um psicólogo

experimental. Todas as suas construções teóricas têm os experimentos como seu ponto de

partida.

O autor buscou uma abordagem que mostrasse o homem como ser biológico, histórico

e social. Para ele o homem está inserido na sociedade, sendo assim, sua abordagem sempre foi

orientada para os processos de desenvolvimento do ser humano com ênfase na dimensão

sócio-histórica. Vygotsky (REGO, 1996) acreditava que as características e atitudes

individuais estão ligadas as trocas com o coletivo, suas maiores contribuições estão nas

reflexões sobre o desenvolvimento infantil e sua relação com a aprendizagem em meio social,

e também o desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Para Vygotsky esse

desenvolvimento humano dado em relação nas trocas entre parceiros sociais, através de

processos de interação e mediação ficou conhecido como sociointeracionismo.

A perspectiva de Vygotsky é sociointeracionista (REGO, 1996 e KOHL, 2008) ou

seja, o desenvolvimento humano dá-se em relação nas trocas entre parceiros sociais, através

de processos de interação e mediação. Nessa abordagem o homem é visto como alguém que

transforma e é transformado nas relações que acontecem em uma determinada cultura. Para

ele o que ocorre não é uma somatória entre fatores inatos e adquiridos e sim uma interação

dialética que se dá, desde o nascimento, entre o ser humano e o meio social e cultural em que

se insere. Do ponto de vista de Vygotsky, o desenvolvimento humano é compreendido não

como a decorrência de fatores isolados que amadurecem, nem tampouco de fatores ambientais

que agem sobre o organismo controlando seu comportamento, mas sim como produto de

trocas recíprocas, que se estabelecem durante toda a vida, entre indivíduo e meio, cada

aspecto influindo sobre o outro.

A questão central desta teoria é a aquisição de conhecimentos que acontece pela

interação do sujeito com o meio. Segundo o autor, o sujeito é interativo, pois adquire

conhecimentos a partir de relações intra e interpessoais e de troca com o meio, a partir de um

processo denominado mediação. Buscava, então, uma abordagem que agregasse a síntese do

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homem como ser biológico, histórico e social. Vygotsky sempre considerou o homem

inserido na sociedade e, sendo assim, sua abordagem sempre foi orientada para os processos

de desenvolvimento do ser humano com ênfase da dimensão sócio-histórica e na interação do

homem com o outro no espaço social. Sua abordagem sociointeracionista buscava, então,

caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de

como as características humanas se formam ao longo da história do indivíduo.

Vygotsky (REGO, 1996 e KHOL, 2008) acredita que não só as características

individuais, mas até mesmo suas atitudes individuais estão completamente repletas de trocas

com o coletivo, ou seja, mesmo o que tomamos por mais individual de um ser humano foi

construído a partir de sua relação com o outro. Sendo assim, não é suficiente ter todo o

aparato biológico da espécie para realizar uma tarefa se o indivíduo não participa de

ambientes e práticas específicas que propiciem esta aprendizagem, pois é a partir da interação

com outros indivíduos que se promove o desenvolvimento das estruturas mentais.

Os conceitos sociointeracionistas fazem-se sempre presentes para lidar com o

desenvolvimento das crianças utilizando, durante todo o processo de ensino-aprendizagem, a

interação de um mediador, ou seja, a capacidade de solucionar questões com a ajuda de um

parceiro mais experiente, sendo importante a ideia de que existirá uma troca entre o

desenvolvimento da criança com o mediador, levando em consideração os conhecimentos que

a criança já traz, interagindo diretamente com os conhecimentos trazidos pelo mediador. E

assim também com quem está mediando, somando seus conhecimentos com o conhecimento

do próximo e com o espaço social em que está inserido.

Para Vygotsky, o processo de aprendizagem não deve se focalizar no que a criança

aprendeu, mas sim no que ela está aprendendo. Nas práticas pedagógicas sempre procuramos

prever no que aquele aprendizado poderá ser útil àquela criança, não somente no momento em

que é ensinado, mas para o futuro. É um processo de transformação constante na trajetória das

crianças.

A aprendizagem é, portanto, um processo social que se realiza por meio das

possibilidades criadas pelas mediações do sujeito e dado contexto sócio-histórico que o

rodeia, pois todo individuo é membro de uma comunidade social e depende de interrelações

para moldar-se comportamental, psicológica e materialmente perante a sociedade.

O aprendizado só ocorre verdadeiramente quando o conteúdo tem significado. No caso

dos surdos, as palavras orais não compreendem significado algum, pois elas não estão

inseridas em seu mundo, em seu cotidiano. Já no caso do conteúdo gestual, que é rico em

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significado para os surdos, faz do processo de aprendizagem continuo e dinâmico. Sendo

assim, os significados e sentidos construídos são resultados de interações diversas entre quem

aprende, quem ensina e o conteúdo. O aluno é personagem principal deste processo, sendo

ativo na construção de seu conhecimento, por meio do contato com o grupo e com o

conteúdo. Quem ensina é responsável por dar direção e sentido, orientando a construção

desses significados. E o conteúdo favorece a reflexão do aprendiz.

A partir dessa perspectiva da construção do significado, Vygotsky (1998) define esse

desenvolvimento em dois pontos, desenvolvimento real e potencial. O desenvolvimento real é

quando o individuo soluciona os problemas sozinho, quando as funções já amadureceram, e o

ciclo está completo. Quanto ao desenvolvimento potencial, refere-se ao problema que ainda

não pode ser resolvido sem supervisão, colaboração e orientação de outros indivíduos. Esse

processo de desenvolvimento é chamado por Vygotsky de Zona de Desenvolvimento

Proximal (ZDP) que consiste, segundo o autor, em:

a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar

através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento

potencial determinado através da solução de problemas sob a orientação de

um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (1998, p.

112)

A ZDP é um processo dinâmico e social, ocorrendo durante diversos momentos da

vida, alimentando novos desenvolvimentos potenciais e reais, permitindo novos avanços do

indivíduo em níveis superiores do desenvolvimento. Aprendizagem e desenvolvimento são

dois processos que interagem.

A aprendizagem acontece no intervalo entre o conhecimento real e o conhecimento

potencial. Ou seja, na ZDP. Seria neste campo que a educação atuaria, estimulando a

aquisição do potencial, partindo do conhecimento da ZDP do aprendiz, para assim intervir. O

conhecimento potencial, ao ser alcançado, passa a ser o conhecimento real e a ZDP redefinida

a partir do que seria o novo potencial.

A capacidade de realizar determinada tarefa com a ajuda de outros ocorrerá dentro de

certo nível de desenvolvimento, não antes. Por exemplo, uma criança de cinco anos pode ser

capaz de construir uma torre de cubos sozinha; uma de três anos não consegue construí-la

sozinha, mas pode conseguir com a assistência de alguém; uma criança de um ano não

conseguiria realizar essa tarefa, nem mesmo com ajuda. Uma criança que ainda não sabe

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andar sozinha só vai conseguir andar com a ajuda de um adulto que a segure pelas mãos a

partir de um determinado nível de desenvolvimento. Aos três meses de idade, por exemplo,

ela não é capaz de andar nem com ajuda.

Portanto, segundo o autor, as interações têm um papel crucial e determinante. Para

definir o conhecimento real, ele sugere que se avalie o que o sujeito é capaz de fazer sozinho,

é aquele que já foi consolidado pelo indivíduo, de forma a torná-lo capaz de resolver situações

utilizando seu conhecimento de maneira autônoma. E o desenvolvimento potencial aquilo que

ele consegue fazer com ajuda de outro sujeito. Assim, determina-se a ZDP. E o nível de

riqueza e diversidade das interações determinará o potencial atingido. Quanto mais ricas as

interações, maior e mais sofisticado será o desenvolvimento.

6.2. Pensamento e linguagem

A relação entre pensamento e linguagem se modifica e evolui no decorrer das

experiências do sujeito, levando em consideração os fatores sócio-históricos. A partir de dois

anos de idade, pensamento e linguagem se encontram e o pensamento se torna verbal, a fala

transforma-se em racional, como defende Vygotsky (1999). Ou seja, a criança adquiri a

capacidade de atribuir significados devido às suas experiências anteriores. Esse é um

momento de grande importância no desenvolvimento do sujeito, já que o significado é a

integração do pensamento e da linguagem, e é também nesta integração que surge a palavra.

A linguagem é o mais completo sistema de signos da cultura humana, e através dela é possível

organizar o pensamento e entender as informações.

É a partir da percepção que a criança formula os primeiros conceitos. Os objetos são

representados pelo pensamento, através das suas características. Através da linguagem, é que

os pensamentos e os conceitos tomam forma, facilitando a transmissão das percepções de um

indivíduo. Sendo assim, a linguagem é uma forma simbólica de expressarmos os

pensamentos, facilitando a organização das percepções e formulação de conceitos a partir

delas.

Para Vygotsky (1999), os signos, têm a mesma função dos instrumentos, pois são

construções da mente humana responsáveis por mediar à relação do homem com a realidade.

Pare ele os signos são instrumentos simbólicos, fundamentais para a comunicação e

desenvolvimento da espécie humana, contribuindo também para a organização do

pensamento.

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O autor defende que a linguagem é aprendida no meio social em que o indivíduo vive.

Ele enfatiza que a linguagem é considerada como instrumento complexo que torna possível a

comunicação com a sociedade. Sem linguagem, o ser humano não é social, nem histórico nem

cultural. Através da linguagem aprendemos a pensar. Para Vygotsky a linguagem passa por

três fases: a primeira é a linguagem social, onde a sua principal função é a comunicação. A

segunda fase é a linguagem egocêntrica, onde há a transição da função comunicativa para a

intelectual, não há intenção de comunicar ou interagir, é um “falar sozinho”, consigo mesmo,

que é essencial para a organização das ideias e planejamento das ações. A terceira fase da

linguagem está ligada diretamente ao pensamento, é a linguagem interior onde as palavras

passam a ser pensadas, mesmo que não sejam faladas, como cita Marta Kohl “é uma forma

interna de linguagem, dirigida ao próprio sujeito e não a um interlocutor externo. É um

discurso sem vocalização, voltado para o pensamento, com função de auxiliar o indivíduo nas

suas funções psicológicas.” (2010, p. 51). Ou seja, é uma linguagem feita de ideias não

verbalizadas, utilizando a linguagem como instrumento de pensamento.

As contribuições de Vygotsky para a educação giram em torno da relação

sociocultural e da interação, e sugerem a análise dos seguintes fatores do desenvolvimento: a

espécie humana tem sua própria história, cada indivíduo tem sua história, o sujeito deve ser

considerado em sua relação sociocultural e o desenvolvimento do indivíduo é singular, cada

um tem seu tempo de assimilação.

A criança nasce inserida num meio social, que é a família, e é nela que estabelece as

primeiras relações com a linguagem na interação com os outros, e essa interação é uma das

maiores responsáveis pelo desenvolvimento da criança. A aprendizagem da criança antecede a

entrada na escola e o aprendizado escolar produz algo novo no desenvolvimento infantil,

evidenciando as relações interpessoais.

A aprendizagem acontece em todo lugar. O processo de formação de pensamento é

despertado pela vida social e pela constante comunicação que se estabelece entre crianças e

adultos. A linguagem intervém no processo de desenvolvimento intelectual da criança desde o

nascimento, é um processo fundamental, pois sem linguagem não há pensamento, portanto a

interação social torna-se o motor do desenvolvimento.

O conceito de desenvolvimento está ligado à evolução contínua de nós, seres

humanos, durante todo o ciclo vital. Essa evolução ocorre em diversos campos da nossa

existência. São eles: afetivo, cognitivo, social e motor. Essa contínua evolução não se

determina através apenas por processos de maturação genéticos ou biológicos. A interação

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com o meio é um fator de extrema importância para o desenvolvimento humano. Esse meio

envolve vários aspectos, tais como: cultura, sociedade, práticas e interação.

Na construção social, Vygotsky considera as crianças como sujeitos sociais que

constroem o conhecimento socialmente produzido. O desenvolvimento é a apropriação ativa

do conhecimento. Esse processo de desenvolvimento na fase escolar deve ser provocado de

fora para dentro pelo professor, que é uma figura fundamental no processo de preparação do

aluno. É imprescindível aos educadores, compreender que todo mundo é modificável através

da mediação, o professor é o organizador do ambiente social, que é o fator educativo por

excelência, é por isso que ele enfatiza a posição do aluno como aquele que dirige o seu

próprio processo de aprendizagem.

Portanto, é preciso que o educador tenha metas e objetivos, saber sobre o que se vai

ensinar, mas não se pode perder de vista para quem se está ensinando. Deve-se ter consciência

no processo ensino-aprendizagem de que se quer formar um aluno concreto, real, num

processo integrado ao contexto cultural e histórico em que se situa.

A principal influência no desenvolvimento humano é a cultura. E isso pode ser

explicado pelo fato de que os seres humanos desde o nascimento já convivem com uma

cultura, e ela se torna presente em todos os aspectos da vida. O contexto cultural é

imprescindível nas principais transformações e evoluções desde a infância até a fase adulta.

Através da interação social ocorrem a aprendizagem e o desenvolvimento. É por ela

que criamos novas formas de agir no mundo, ampliando assim nossas ferramentas de atuação

nesse contexto cultural tão complexo que atua em toda nossa existência. Na comunidade

surda, a interação social é de extrema importância para a formação da identidade surda, do

desenvolvimento social, cultural, e cognitivo de seus sujeitos. Diria, talvez, que para essa

comunidade a sociointeração é ainda mais importante do que para os ouvintes, pois,

considerando como pressuposto teórico o sociointeracionismo que entende a linguagem como

forma ou processo de interação, percebe-se o termo interação como uma ação de construção

colaborativa de conhecimentos, sendo assim, uma troca de aprendizagem mútua,

possibilitando o desenvolvimento em seus diversos âmbitos.

Sabendo-se que a interação acontece pela comunicação, pela linguagem, e em todas as

relações sociais entre indivíduos organizados em sociedade. A linguagem, portanto, pode ser

pensada como um dispositivo decisivo na formação dos processos mentais, constituindo um

fator essencial para que se desenvolvam aspectos cognitivos, sociais e emocionais,

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evidenciando a importância da aprendizagem da uma língua, sendo a língua de sinais para o

surdo.

6.3. Vygotsky e a Surdez

Vygostky, um dos pioneiros do estudo sobre a deficiência e formas de educação para

as crianças defeituosas2, defendia que a cultura é produto da vida em sociedade e da atividade

social do homem, ou seja, tudo que é cultura é social.

Com o texto traduzido tendo sido escrito entre 1924 e 1931, Vygotsky (apud KOHL,

2011, p. 863) já afirmava em seus estudos de defectologia3 que qualquer deficiência, como

por exemplo a surdez, afetava acima de tudo as relações sociais, não as relações diretas com o

ambiente físico.

O texto Defectologia traduzido por Marta Kohl, Denise Sales e Priscila Marques,

afirma que as crianças deveriam aprender e se desenvolver, podendo isso ocorrer através de

um caminho indireto, quando através do caminho direto se tornava inviável. O caminho

indireto surge apenas quando aparece um obstáculo no caminho direto, quando se esgotam

todas as possibilidades por meio natural. As autoras ainda afirmam que esses caminhos

indiretos acontecem sob pressão da necessidade. “Se a criança não tiver necessidade de

pensar, ela nunca irá pensar.” (2011, p. 866). Anteriormente os psicólogos estudavam que o

desenvolvimento cultural parte do desenvolvimento natural. Ou seja, a fala dependia de uma

função natural da criança e se desenvolvia naturalmente.

Esse texto aponta para a importância da educação social das crianças e o

desenvolvimento potencial das mesmas. Partindo da perspectiva da importância do

desenvolvimento social, Vygotsky acreditava que “entre os seres humanos e seu mundo físico

coloca-se seu ambiente social, o qual refrata e transforma suas ações recíprocas com o

mundo” (VALSINER e VAN DER VEER, 1996, p.75). Ou seja, o problema social resultante

de um “defeito” físico é o principal problema e, para o autor, uma educação social baseada em

proporcionar as relações sociais e interações sociais diminuiria a percepção dos defeitos

físicos, fazendo-os cair para segundo plano, o que tornaria a vida dos defeituosos mais

satisfatória.“Participando da vida social em todos os aspectos as crianças iriam, em sentido

metafórico, superar sua cegueira e sua surdez” (idem., 1996, p.76). Ou seja, integrar o tanto

2Terminologia utilizada no início do século XX, período em que Vygotsky produziu seus textos.

³ Nomenclatura utilizada na tradução do texto de Vygostsky, feita pelas autoras Marta Kohl, Denise Sales e Priscila Marques.

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quanto possível em sociedade, para conviverem com pessoas normais é importante para o

desenvolvimento social, cultural dessas crianças.

Atualmente, novos estudos seguem as tendências expostas por Vygotsky e mostram

que a cultura influencia no comportamento natural da criança, criando novos rumos de

desenvolvimento, onde a assimilação transforma as funções naturais das crianças. Através da

cultura, das relações culturais, a criança adquire conhecimento também. Esses novos estudos

deram um salto nos princípios da educação das “crianças anormais.” Naturalmente, a criança

surda não irá aprender a falar, não por problemas no aparelho fonador, mas por se privada da

percepção auditiva, criando-se então artifícios culturais, sistema especial de signos ou

símbolos culturais, que proporcionam a organização psicofisiológica da criança anormal.

Vygotsky defendia que a cegueira era pior que a surdez, mas concorda que a surdez

gera consequências mais graves por privar do contato e experiências sociais. Não se trata

apenas de se privar da comunicação, mas também do pensamento, pois sem a fala não há

consciência. Inicialmente, ele defendia o ensino da língua oral, pois acreditava ser a única que

levaria ao desenvolvimento abstrato. Os professores não deveriam permitir mímica ou língua

de sinais, e a língua oral deveria ser introduzida de maneira natural, através de jogos e

brincadeiras, pois dessa forma criaria-se uma atmosfera em que a criança sentiria necessidade

de falar.

Apesar de inovações de métodos de ensino da linguagem oral, as crianças preferiam

ainda assim, a língua de sinais ou a mímica como instrumento de ação mútua social, e essas

crianças desenvolvem espontaneamente uma fala particular. Língua essa, diferente de todas as

línguas humanas contemporâneas existentes, criada não para surdos, mas pelos próprios

surdos.

Mesmo privada de qualquer instrução, a criança ingressa no caminho do

desenvolvimento cultural; em outras palavras, é no desenvolvimento

psicológico natural da criança e no seu meio circundante, na necessidade de

comunicação com esse meio, que se encontram todos os dados necessários

para que se realize uma espécie de autoignição do desenvolvimento cultural,

uma passagem espontânea da criança do desenvolvimento natural ao

cultural. (KOHL, 2011, p. 868)

Anteriormente a ideia de defeito partia do menos, falta de alguma coisa e o

desenvolvimento da criança se dava pelo ângulo da perda. “Toda psicologia da criança

anormal foi construída, em geral, pelo método da subtração das funções perdidas em relação à

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psicologia da criança normal.” (KOHL, 2011, p.869). Na nova perspectiva, ‘deficiência’

produz dupla influência em seu desenvolvimento. A deficiência ocasiona falhas, obstáculos e

dificuldades e é exatamente por essa percepção que surgem caminhos alternativos de

desenvolvimento, servindo de estimulo ao desenvolvimento de caminhos indiretos que

buscam compensar a deficiência conduzindo o sistema “defeituoso” a uma nova ordem.

Segundo as autoras, o defeito não passa de uma avaliação social, pois se em uma

determinada sociedade o defeito fosse valorizado, o mesmo não seria um fato social, criando

assim um novo mundo para as crianças deficientes. Elas defendem que se criasse uma nova

forma de educação para essas crianças. Educação que possibilitasse o desenvolvimento e a

interação social, ou seja, procurar outros instrumentos para execução de atividades

importantíssimas para vida em sociedade e surge, então, a primeira ideia de mediação.

Todos os instrumentos culturais são fundamentalmente meios sociais, e o mais

importante é a fala. Valsiner e Van der Veer (1996) defendem que todo o desenvolvimento

cultural da criança é determinado pela capacidade dela nominar a palavra como principal

instrumento psicológico. Isso quer dizer que o domínio desses instrumentos se dá para origem

social das funções. A fala, por exemplo, tem função interpessoal como instrumento de

comunicação social e também para função intrapessoal para formulação de pensamento

abstrato, da memória lógica, formação de conceitos, etc. O domínio desses instrumentos

externos e internos proporciona o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Quando não ocorre esse desenvolvimento externo e interno acontece o primitivismo

infantil, ou seja, uma criança que não se desenvolveu culturalmente, incapaz de usar certos

instrumentos culturais. No casa da fala, a criança primitiva é capaz de usá-la como meio de

comunicação, mas não como meio de pensamento.

Então, a partir dessas novas perspectivas, as autoras afirmam que o potencial de

desenvolvimento das crianças defeituosas deveria ser buscado na área de funções psicológicas

superiores, pois as funções psicológicas inferiores dependem diretamente de fatores

orgânicos.

Portanto o primitivismo infantil pode ser superado, ensinando as crianças métodos

para que possam produzir suas relações sociais, interpessoais e então intrapessoais. No caso

do surdo, pela língua de sinais que restaura a comunicação e possibilita a criança surda levar

uma vida normal, satisfatória, possibilitando o desenvolvimento social, cultural, cognitivo,

etc.

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Surge, então, para a educação dos surdos, o alfabeto manual, substituindo o signo

sonoro das crianças ouvintes. A criança surda lê com os olhos e fala com as mãos. Essas

crianças surdas podem ainda compreender a língua falada através da leitura labial,

substituindo o som da fala por imagens visuais. Comprovando que a fala não está ligada ao

aparelho fonador, podendo sim ser substituída por sistemas diferentes de signos, como a

língua de sinais.

7. Metodologia

O desenvolvimento desse trabalho se deu a partir do meu interesse sobre a surdez e a

escolha do objeto de pesquisa aconteceu através da convivência com uma criança surda,

implantada, mas que atualmente não utiliza mais o implante coclear e está estudando no

Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). A escolha do objeto se deu quando percebi

as dificuldades e o preconceito da família em lidar com a surdez.

Optei por uma pesquisa com abordagem qualitativa, que se caracteriza por

envolver a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a

situação pesquisada, como defendem Bogdan e Biklen. (1982 apud LÜDKE e ANDRÉ, 1986,

p. 13). A pesquisa qualitativa caracteriza-se por não ser mensurável, como ocorre na

quantitativa, pois o sujeito e a realidade são elementos indissociáveis. Sendo assim, é uma

forma de pesquisa que considera os traços subjetivos e particulares do seu objeto de estudo.

Dentre as diversas formas de pesquisa existentes, realizei um estudo de caso,

utilizando instrumentos de pesquisa como: observação e entrevista. O primeiro possibilitou-

me um contato pessoal maior com o fenômeno pesquisado e, segundo LUDKE e ANDRÉ

(1986) “a observação permite a coleta de dados em situações em que é impossível outras

formas de comunicação” (p. 26), assim como decorre com o meu objeto de estudo, pois se

trata de um menino surdo.

Nos estudos de variações de papel e propósito de estudo me portei como observadora

participante, pois observei e participei ao mesmo tempo das situações da família, segundo os

preceitos de Buford Junker (1971 apud LÜDKE e ANDRÉ, 1986), e todos os membros

familiares sabiam do meu estudo sobre a surdez. Nas observações descrevi as atividades que

participei, o meu comportamento perante as situações e reconstruí diálogos.

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Inicialmente planejei realizar entrevistas gravadas com algumas pessoas da família,

dentre elas a mãe e do pai de Pietro, uma prima e uma tia fonoaudióloga, porém a família

começou a se esquivar de encontros onde pudessem acontecer a gravação, acho que por receio

de ver seu filho como objeto de estudo. É uma pena, pois a entrevista gravada possibilitaria

uma maior interação entre as partes (pesquisador e pesquisado), uma maior dinâmica e troca

de informações riquíssimas. Enviei por e-mail, então, algumas perguntas (Anexo 1) sobre a

criança, o diagnóstico da surdez, comportamento familiar, metodologias de ensinos que

buscaram, conhecimento da língua de sinais e histórico escolar da criança. A entrevista

realizada por e-mail permitiu analisar a criança em seus aspectos sociais, emocionais,

linguísticos e cognitivos.

Escolhi essa metodologia, pois acredito que ela possibilita a investigação do fenômeno

dentro de seu contexto real, proporcionando-me proximidade com o caso e o aprofundamento

das questões levantadas e de obtenção de novas e úteis hipóteses.

8. Contexto

Pietro Oliveira4, nascido em 22 de novembro de 2004, atualmente com 8 anos, é o

segundo filho de uma família de dois irmãos. O primogênito se chama Caio4 e tem 15 anos. O

pai, José4, tem 60 anos e é aposentado. A mãe, Lucia

4, 51 anos, é secretária. A família mora

no Andaraí e se considera classe média.

Pietro foi diagnosticado com surdez profunda com um ano e meio, através de diversos

exames como: Avaliação auditiva e neuropsicológica e o Exame do Potencial Evocado

Auditivo do Tronco Encefálico (BERA), que avalia a integridade funcional das vias auditivas

nervosas desde a orelha interna até o córtex cerebral. As suspeitas surgiram por parte da

professora da creche onde Pietro estudava desde os cinco meses de idade.

Após o diagnóstico a reação familiar foi de tristeza e incertezas sobre o futuro da

criança, afinal era o primeiro caso de surdez na família. Os pais, seguindo auxilio de uma

parente fonoaudióloga, procuraram primeiramente um atendimento clínico-terapêutico e o

mantiveram na escola regular. Posteriormente, recorreram a cirurgia de implante coclear,

realizada aos 4 anos e meio de idade e a busca pela língua de sinais e por uma escola com

4 Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos sujeitos pesquisados.

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educação para surdos veio um pouco mais tarde, quando Pietro estava com 5 anos de idade,

assim que perceberam que não respondia ao estímulo dos tratamentos fonoaudiólogicos.

Está no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) desde 2012 e hoje não faz

mais uso do implante, mas não foi feita nenhuma reversão da cirurgia, apenas não ligam o

aparelho externo. O pai e a mãe também estão fazendo curso no INES para aprender a língua

de sinais. Pietro sempre foi um menino bastante agitado e muito carinhoso e a família acredita

que a partir da sua entrada no INES seu comportamento melhorou significativamente.

9. A realidade de uma criança surda no mundo ouvinte.

Meu primeiro contato com o Pietro foi em 19/02/2011, aniversário do meu sogro em

uma pizzaria. Assim que chegamos, meu namorado avisou que tinha um primo pequeno que

não falava e que era muito bagunceiro e agitado, e que era para eu não me incomodar com

qualquer coisa que ele fizesse. Coincidentemente, eu tinha acabado de assistir algumas aulas

de Língua Brasileira de Sinais (Libras) no curso de férias da UNIRIO, ia acompanhando uma

amiga que estava fazendo a disciplina, e tinha me dito que era legal. Como eu ia cursar a

disciplina no semestre que estava por começar, me interessei e participei de algumas dessas

aulas.

Na pizzaria o menino ficou sentado o tempo todo, a mãe lhe deu comida na boca,

aliás, ela o trata como um bebê. Quando fomos para casa para cantar parabéns, percebi que ele

queria mexer em tudo, sempre muito inquieto e emitindo sons, mas a mãe sempre o

repreendia, mexia negativamente com a cabeça, ele respondia emitindo alguns sons, como se

tentasse falar, então vinha na direção da mãe, dava um beijo nela, um abraço e voltava a tentar

mexer nas coisas. Essa situação se repetiu algumas vezes. Minha sogra resolveu cantar

parabéns logo e depois eles foram embora.

Acredito que o Pietro seja uma criança agitada por ser uma criança surda que não

convivia com outras crianças surdas e, portanto, todas as suas angústias, frustações, alegrias e

agitações não podiam ser compartilhadas, ele não podia interagir com ninguém, pois não

possui uma língua. Outro ponto que favorece essa agitação é o fato dele ter um implante

coclear e até a sua entrada no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) ele sempre

estava usando o implante.

O implante coclear estimula o nervo auditivo através de pequenos eletrodos que são

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colocados dentro da cóclea, através de ato cirúrgico, e o nervo leva estes sinais para o cérebro.

No entanto o aparelho capta todos os sons do ambiente, sendo ele uma criança implantada,

mas que não decodifica os sons que recebe e tão pouco sabe falar, ficar escutando barulhos de

um ambiente cheio de pessoas, conversando em grupos e cantando parabéns deve ser

angustiante e perturbador. Laborit (2000), que utilizou um aparelho a fim de fazê-la falar e

ouvir, explica:

não sei o que é barulho. Nem silêncio. São duas palavras sem sentido. A não

ser dentro de mim, onde o silêncio não existe. Ouço assobios, muito agudos.

Suponho que virão de outro lado, do exterior, do meu lado de fora, mas não,

são ruídos meus, que só eu escuto. [...] Cansavam-me aqueles sons tão

intensos, sons sem qualquer significado, que não conduziam a nada. Tirava o

aparelho para dormir, o barulho angustiava-me. Um ruído alto sem nome,

sem qualquer ligação, deixava-me nervosa. (p. 15)

O Pietro fazia sons em quanto mexia nas coisas, algumas vezes ele gritava, outras os

sons eram quase imperceptíveis. Laborit (2000), surda, que usou aparelho monofônico e que

passou por todas as angústias e aflições de ser surda filha de pais ouvintes, justifica em seu

livro O Voo da Gaivota, de onde vem o seu apelido, gaivota, pois ela gritava muito, como

uma ave marinha, pontificando que “devia gritar para tentar distinguir a diferença entre o meu

grito e o silêncio. Para compensar a ausência de todas aquelas palavras que eu via mexer nos

lábios da minha mãe e do meu pai, cujo sentido ignorava” ( p.7)

Podemos pensar que as atitudes do Pietro se assemelham as da autora. Para se

comunicar, a criança tenta de alguma forma chamar a atenção dos pais. Ocorre-me também a

ideia de que essa atitude de gritar possa ser para demonstrar tamanho desconforto com o

implante, que funciona amplificando os sons de um ambiente, e nessa situação um ambiente

cheio e, portanto, ainda mais barulhento.

Assim como os pais de Laborit, os pais de Pietro buscaram, primeiramente, a

“normalização” do filho, pois vivem em uma sociedade ainda muito preconceituosa, que vê o

diferente como anormal, defeituoso, incapaz, ainda que na verdade o surdo seja apenas

diferente, pois percebe o mundo de maneira visual e faz parte de uma minoria linguística, e

essa linguagem é tão bem estruturada quanto a língua falada.

Em uma segunda situação, 17/09/2011, em um churrasco de aniversário de José, pai de

Pietro, cheguei com meus sogros, minha cunhada e meu namorado por volta das 19horas.

Reparei que estavam todos da família na varanda, menos o Pietro. Durante a conversa

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perguntei por ele e me responderem que ele estava no quarto, que não iria sair por causa de

uma tia de idade que estava lá e ela sempre reclama da agitação e da bagunça dele.

Quando foi por volta das 22horas ele veio para comer, mas pegava a carne com os

convidados e corria de volta para dentro de casa. A mãe pedia, através de um sinal, para ele

ter calma. Fazia o sinal e falava com ele: “calma”, mas não adiantava muito e lá ia ele

correndo de volta para dentro de casa. Foi então que começou o assunto sobre o

comportamento dele, que ele nunca parava quieto, que ele estava sempre agitado, ainda mais

quando havia muitas pessoas em casa.

Perguntei se Pietro estava estudando e me responderem que sim. Ele estudava na

época em uma escola para surdos no Grajaú, mas que esta estava falindo e ele não iria

continuar no ano seguinte. Então eu comentei sobre a FENEIS, que lá tinha aula de Libras

para os surdos e para as famílias também. Quando chamei o menino de surdo, todo mundo

ficou me olhando como se eu tivesse dito a pior coisa do mundo, menos o pai do Pietro, que é

mais participativo e fala com naturalidade da surdez do filho e da diversidade vivida pelos

surdos. Ele também estava aprendendo Libras nessa escola no Grajaú e não se importou muito

com o meu comentário.

Minha sogra, que é fonoaudióloga e indicou desde cedo alguns especialistas que ela

conhecia, acha que ele tem que falar oralmente e acredita que ele tenha algum outro problema

que ninguém consegue descobrir, afinal, como ela mesma diz: “ele não consegue falar nada

além de mamãe mesmo com todos os anos de tratamento e do implante coclear. Ele escuta, a

gente sabe porque ele olha quando chamamos seu nome, mas não reproduz nenhuma outra

palavra.” Logo depois encerramos o assunto.

De acordo com todos os teóricos e textos estudados, acredito que a família isola o

menino por conta da dificuldade da família ouvinte compreender um membro surdo como seu

semelhante. Eles têm dificuldade de lidar com a diversidade linguística e cultural do sujeito

surdo, consideram que o surdo é diferente, mas no sentido pejorativo da palavra, consideram o

surdo como deficiente, incompleto, incapaz. Subestimam a capacidade intelectual dos surdos,

quando de fato só precisam entender que a diferença é na forma de comunicação, pois os

ouvintes falam através da voz e os surdos através de sinais, da língua gesto-visual.

A comunicação é necessidade humana e o surdo que nasce numa família ouvinte sofre

com essa falta de interação. Percebo algumas vezes que os pais preferem isolar o Pietro a

colocá-lo para interagir com a família, pois a língua de sinais é usada apenas por eles e pouco

conhecida pela família, que acredita que a língua seja apenas mímica, uma língua sem

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prestigio, que parece servir apenas para chamarem a atenção do menino, para dar um recado,

e não como uma linguagem que possibilita a interação social dele.

Atualmente os pais estão fazendo curso de Libras no INES e já concluíram o 1º nível

do curso, mas na frente dos familiares, eles não utilizam muitos sinais além de “não”, “sim”,

“para”, e “olha pra mim”. Sinais que chamem a atenção do menino. Não sei se por vergonha,

ou por saber que ninguém da família vai entender, e preferem excluir a fala dele do que

excluir a família do assunto, até porque os encontros não são frequentes. O pai me parece

sempre mais solicito e vê o filho como diferente, a mãe nunca demonstra muito seus

sentimentos quanto à diferença dele, o que é indiscutível é o carinho deles com o menino.

A linguagem exerce papel principal na constituição dos sujeitos já que é através dela

que estabelecemos nossas relações socioafetivas, formulamos nosso pensamento, interagimos

com o mundo, ou seja, nos desenvolvemos social, cultural, intelectual e psicologicamente,

como afirma Rabelo (2001, p. 369) a ausência de instrumento comunicativo eficaz impede

que se realizem, satisfatoriamente, as funções básicas de linguagem – fator de interação

social, de transmissão cultural e construtivo do conhecimento e do próprio ser humano.

Concluo sabendo que o preconceito ainda está muito impregnado na sociedade ouvinte

e na família, mas, da mesma forma, considero importante ressaltar que o isolamento só trará

consequências desfavoráveis ao Pietro. Portanto, se a participação da família no processo

educativo e na formação social de qualquer criança é importante, com a criança surda não se

faz diferente. Isolando-a do convívio familiar por ela não falar a língua da maioria trará

consequências gravíssimas ao desenvolvimento. A família deve interagir com ele, se

interessar em conhecer e aprender a língua de sinais. É importante que se respeite e reconheça

a singularidade do Pietro como sujeito surdo.

Em um outro momento, uma tia do meu namorado fez um churrasco em um sábado à

tarde em Jacarepaguá. Eu fui com meu namorado, minha cunhada e meu cunhado e o filho

dele, Antônio, de 4 anos. Os adultos ficaram no quintal conversando e as crianças estavam

dentro de casa, havia duas meninas brincando na sala e o Pietro estava deitado no quarto

vendo televisão. Meu cunhado levou o Antônio para o quarto para ficar vendo televisão junto

com o Pietro. O quarto tinha uma janela que dava para a varanda, onde estávamos.

Depois de um tempo começamos a escutar o Antônio falar e aos poucos ir

aumentando a voz, olhei e vi que o Pietro estava assistindo o desenho e não prestava atenção

no Antônio. Ele começou a cutucar chamando o Pietro, que olhava e dizia que não com a

cabeça e se voltava de novo para a televisão. Logo depois aparece o Antônio com cara de

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triste, chorando na varanda. Ele vai direto ao pai e fala que estava chamando o Pietro, pois

queria brincar e que o Pietro não queria falar com ele. Todos se entreolharam e ficaram sem

graça de explicar. Minha cunhada ficou vermelha de vergonha, o namorado dela riu meio sem

graça. Eu, então, falei pro Antônio que o Pietro era um menino que não escutava e, por isso,

ele não respondia, mas se ele pegasse algum brinquedo e mostrasse para ele, eles iam

conseguir brincar juntos e que gritar com o Pietro não iria adiantar. Minha cunhada resolveu ir

para o quarto com Antônio para brincar. Logo depois o Pietro se juntou e começou a

participar da brincadeira de tirar foto fazendo careta.

A surdez perante a família é considerada uma deficiência e não uma diferença cultural,

que traz consigo a diferença linguística. O tema é um tabu e pouco abordado, por vezes sendo

escondido como nesse caso com a criança, onde só foi ser levantado o assunto, após a queixa

de estar sendo “ignorado”. Essa concepção da surdez como deficiência, segue o modelo

médico, que tem sido responsável, em grande parte, pela resistência da sociedade em aceitar

as diferenças. A definição da surdez como patologia define as pessoas surdas como anormais

e as pessoas ouvintes como normais. No decorrer do trabalho vimos inúmeros

questionamentos sobre a marginalização dos surdos devido à visão patológica da surdez.

É notório que nessa família existe uma resistência em aprofundar o conhecimento

sobre o tema, o que indica a dificuldade de lidarem com o fato de terem uma criança em

condições culturais e linguísticas adversas. Evitar o assunto, mudar o foco da conversa é uma

forma de se defender da dor cotidiana de ter um ente querido com desenvolvimento atípico.

Behares (2000) afirma que a criança surda que nasce em um meio ouvinte enfrenta,

desde o nascimento, uma rede de construções identificatórias, prefiguradas pelas expectativas

de seus pais, os quais, naturalmente, esperam que ela também seja ouvinte.

Para o autor, o processo de socialização da criança surda com pais ouvintes é

complicado desde seu início, afinal, pais e filho são privados de interação por fazerem parte

de grupos culturais e linguísticos diferentes. Os pais ainda convivem com o longo processo de

confirmação de um diagnóstico e, posteriormente enfrentam um período de frustação, para

somente depois começarem a aceitar essa criança, aceitar que ela seja diferente do que foi

imaginado.

E é durante todo esse processo que vai ser construída a imagem social do que é a

surdez e do que é a criança surda para os pais, para os familiares e para a própria criança. E

por isso é importantíssimo o apoio e o reconhecimento da surdez por outros membros da

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família, respeitando, valorizando e incentivando a língua e a cultura das pessoas surdas,

repensando suas crenças e imagens em relação ao sujeito surdo.

No aniversário de 15 anos do Caio, irmão de Pietro, em 05/05/2013, fomos à casa dele

pois haveria um bolinho. O Pietro ficou no quarto até a hora do parabéns. Depois de

cantarmos, deles assoprarem a vela juntos, minha cunhada pegou o celular para tirar foto com

o aniversariante. O Pietro ficou em cima dela querendo mexer no celular, mas ninguém

deixou. Quando eu fui mexer no meu celular, ele veio perto de mim, pediu um pedaço de

bolo, ele me cutucava, apontava para o bolo e apontava pra boca dele, me deu um beijo e

bateu na tela do celular e apontou o dedo pra ele como se dissesse: “Deixa eu mexer?” Eu

deixei e todo mundo começou a falar “cuidado, cuidado!”, “pode quebrar, não deixa na mão

dele, não”, “Você é maluca? Um celular na mão desse menino?” Eu respondi que não tinha

problema, que ele não iria quebrar. Meu afilhado tem 5 anos e mexe melhor do que eu. Meu

namorado tentando tranquilizar as pessoas comentou: “É verdade, essas crianças de hoje em

dia sabem tudo de celular, tablet.”.

Eu ainda completei dizendo que era capaz dele mexer melhor até do que as outras

crianças da idade dele, pois o mundo dele é visual. O pai confirmou dizendo que ele mexe em

tudo, ele ganhou um iPad e já vence em todos os jogos, até do irmão em alguns. Ele ficou

mexendo no meu celular durante um tempo, brincou, já conhecia todos os jogos instalados.

Depois me deu um beijo e voltou para o quarto.

O preconceito quanto à capacidade dos sujeitos surdos é histórico, como aponta

Moores (1978, apud LACERDA, 1998): “Durante a Antiguidade e por quase toda a Idade

Média pensava-se que os surdos não fossem educáveis, ou que fossem imbecis” (p.2). Nesse

período, sombrio para a educação dos surdos, acreditava-se que somente curas ou atividades

sobrenaturais poderiam fazer com que os surdos convivessem socialmente. A concepção do

surdo como deficiente os designa o papel de desamparo e de coitados, sempre dependentes do

cuidado de outras pessoas.

Esses sujeitos são historicamente taxados de inúteis, imbecis e inválidos. As crianças

surdas nascidas em família ouvinte estão condenadas a enfrentar o preconceito familiar,

quando estes não estão solícitos a reconhecê-la como diferente, mas sim como deficiente. A

sociedade está impregnada da crença de que a deficiência está no surdo e não na nossa mente

fechada para a diversidade, o que vem ocasionando rigorosamente a discriminação do sujeito

surdo.

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A surdez é simplesmente uma diferença e pessoas surdas formam uma minoria

linguística e cultural, ela não é doente e/ou inválida. A principal diferença entre surdos e

ouvinte é a linguagem. A língua natural dos surdos é a língua de sinais que é uma linguagem

gesto-visual e, portanto, o campo visual é para o surdo tão importante quanto o campo

auditivo para o ouvinte. É através da visão que eles recebem as informações. Ou seja, a visão

é como uma alternativa positiva e eficiente para o canal auditivo, portanto a sua habilidade

visual é mais desenvolvida do que a de um ouvinte qualquer.

Deve-se quebrar esse paradigma de que o surdo é insuficiente e incapaz. Deve-se

possibilitar para a criança a condição de desenvolvimento de suas habilidades e capacidades e,

assim, acelerar o processo de sua integração social.

Observando crianças surdas e ouvintes a partir de 6 anos percebe-se que é

característico da faixa etária uma maior interação com outras crianças, pois é nesse período

que as crianças começam a formar os seus grupos de amigos. Nessa idade também percebo as

crianças com maior aptidão e anseio de contar aos adultos suas histórias. As crianças também

começam a mostrar algum grau de abstração. É nessa época também que a criança começa a

ver-se e a conhecer-se e assim firma as bases para a sua autovalorização que culminará e

amadurecerá por volta dos 7 e 8 anos de idade.

Na perspectiva em que se encontra o Pietro, esses desenvolvimentos não podem ser

observados, dado que ele começou a ter acesso a uma língua há 3 anos, quando entrou na

escola no Grajaú. Antes dessa experiência escolar, ele fazia tratamento clinico-terapêutico,

que não o favorecia em nada, pois como já foi abordado antes, essa metodologia trabalha com

palavras descontextualizadas, que representam apenas sons vazios, sem significado nenhum

para ele.

Qualquer característica dessa faixa etária se dá através do desenvolvimento da criança

desde os anos iniciais quando, segundo a concepção de Vygotsky, através da interação com

outros adultos, as relações sociais despertam e intensificam o pensamento. As relações,

interpessoais transformam-se em intrapessoais, assim o processo de desenvolvimento da

linguagem da criança acontece por intermédio da interação e das trocas interpessoais. Ou

seja, a linguagem tem um papel central na constituição dos sujeitos, pois é através dela que o

sujeito pode estabelecer relações com o mundo, modificando-o ao mesmo tempo em que é por

ele modificado. A linguagem é responsável pela organização da atividade mental, é através

dela que se constrói o pensamento.

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Pietro, durante os anos iniciais de sua vida, foi privado de interação social, os pais,

inexperientes, não sabiam sobre a importância da língua de sinais para o surdo e buscaram

através do implante coclear e do tratamento fonoaudiológico a cura para a surdez do filho

caçula. Com isso, o menino teve seu desenvolvimento social, cultural e cognitivo

prejudicados. Para Vygotsky o indivíduo não nasce pronto, mas é influenciado pelo ambiente

externo em que vive e pelas interações sociais ali presentes.

Rego (1999) explica a concepção vygostkiana:

a estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato, não é suficiente para

produzir o individuo humano, na ausência do ambiente social. As

características individuais (modo de agir, de pensar, de sentir, valores,

conhecimentos, visão de mundo, etc.) dependem da interação do ser humano

com o meio (p.57)

Ou seja, todo homem se constitui como ser humano pelas relações que estabelece com

os outros. Desde o nosso nascimento somos socialmente dependentes dos outros. Somos seres

ontologicamente sociais, construímos a nossa história só e exclusivamente com a participação

de outros indivíduos. É a partir dessa concepção que Vygotsky formula a teoria

sociointeracionista, que entende que o conhecimento ocorre através da interação do sujeito

com o meio em que está inserido. O desenvolvimento continua a ocorrer durante toda a vida

do indivíduo, pois mantemos nossas relações.

Essa interação é possível por meio da linguagem, que é o mais completo sistema de

signos da cultura humana e através dela organizamos e expressamos nossos pensamentos.

Sem ela não seriamos seres sociais, históricos ou culturais. A aprendizagem precede

experiência escolar, mas com a criança surda, essa entrada na escola possibilitará o seu

desenvolvimento social, cognitivo, cultural. Cabe a escola, ao adulto surdo presente na sala de

aula o papel mediador, no sentido de mobilizar o grupo para as interações, possibilitando o

contado desse grupo com a língua de sinais, já que sabemos que a língua é imprescindível

para o desenvolvimento e a formulação do pensamento.

REILY (2004) afirma que o homem não age sem ser por meio de veículo sígnico, onde

estão inseridos o modo de viver, as invenções, as crenças e as formas de se comunicar

herdados de seu grupo social. Isto explica a importância da língua de sinais para a criança

surda quanto à formação do seu pensamento, como também para a formação da sua

identidade, pois mediante suas relações sociais e o acesso aos conceitos de sua comunidade,

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poderá alcançar a formação de uma maneira de pensar, de agir e de ver o mundo,

característicos da cultura da comunidade surda.

Durante a entrevista por e-mail com a família, uma situação me chamou a atenção.

Quando perguntei sobre a mudança comportamental de Pietro após o ingresso no INES e um

contato maior com outros surdos, os pais me responderam que o acesso a cultura surda fez

muito bem ao menino em todos os aspectos: sociais, comportamentais, emocionais. Os pais

afirmaram que o Pietro demonstra estar muito feliz com o convívio com outras crianças e a

possibilidade de interagir com elas. E, segundo eles, Pietro consegue estabelecer um canal de

comunicação com mais facilidade no dia-a-dia, proporcionando também uma maior interação

com os pais.

A mudança de visão da família com a língua de sinais foi perceptível nesses anos em

que acompanhei o Pietro, hoje os pais participam das festas e projetos no INES e o menino

não é visto, ainda que só pelos pais, como um incapaz, tanto que para testemunhar que

consideram o Pietro uma criança diferente e não anormal, o pai respondeu a ultima pergunta

da entrevista (Anexo 2) com letra em caixa alta “É IMPORTANTE RESSALTAR QUE

PIETRO É UM MENINO MUITO CARINHOSO E DE GRANDE SOCIABILIDADE. POR

ELE SER MUITO EXPRESSIVO, FICA FÁCIL ENTENDER O QUE ELE QUER

QUANDO TENTA ESTABELECER UM “CANAL DE COMUNICAÇÃO” CONOSCO”.

Sabemos essa mudança de visão dos pais, vai proporcionar na família uma nova

abertura para discussão do tema e até para aceitação, por parte de todos, da diferença

linguística e cultural de Pietro, rompendo com o preconceito e com o estereótipo de coitado e

de deficiente.

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10. Considerações finais

A produção desse trabalho me proporcionou a oportunidade de conviver e ter contato

real com todas as questões estudadas teoricamente. Pude participar, socializar e ver as

aflições e angústias de uma criança surda sem língua no mundo ouvinte. Pude também

vivenciar e comprovar o preconceito dos ouvintes com relação ao surdo, a sua cultura e a sua

língua natural. Muitas das situações das quais experimentei me afligiram muito, a intolerância

e discriminação com a diferença de Pietro, por exemplo.

No entanto ao findar esse trabalho, tive a felicidade de ver que a visão da família está

mudando quanto à aceitação da surdez, da língua de sinais como língua natural dos sujeitos

surdos e a valorização do desenvolvimento das habilidades da criança, assim como o

reconhecimento do quão encantador é o Pietro.

Como sabemos que através da aquisição de uma língua e da interação com o meio e

com nossos pares podemos nos desenvolver, de maneira satisfatória, social, cultural, cognitiva

e emocionalmente, assim como discutido durante todo o trabalho, as desvantagens desse

atraso na apresentação de uma forma comunicativa interativa provocam estruturas de

isolamento psicológico nas crianças surdas, podendo levar a graves consequências no seu

desenvolvimento, pois sabemos que é a partir da aquisição de uma língua, no caso dos surdos

da língua de sinais, e da interação possibilitada pela língua que se dará o processo de

formação linguística e sociocultural do sujeito surdo.

Hoje o Pietro pode formar seu grupo de amigos e brincar com eles, já que está inserido

na comunidade surda, está tendo a possibilidade de interagir socialmente, de aprender a sua

língua natural, formular seu pensamento, aprender e se desenvolver. Contar histórias ainda

não lhe é garantido em 100% dos casos, ainda mais no âmbito familiar, onde só quem tem

acesso à língua de sinais são os pais, e os outros parentes desconhecem a língua. Como é

característico dessa idade o autoconhecimento, através dessa interação com outros surdos e

com surdos adultos ele poderá se reconhecer como parte integrante da comunidade,

provocando também o seu desenvolvimento cultural.

Sabemos que a falta de convívio com outros surdos desde cedo prejudicou a aquisição da

linguagem no período adequado para a elaboração do pensamento, prejudicando também o seu

desenvolvimento, mas com a entrada no INES, a participação dos pais no processo de

aprendizagem da língua de sinais, e a interação com surdos da sua idade e adultos, que servirão

como exemplo, ele poderá se desenvolver satisfatoriamente.

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Pretendo a partir desse estudo me aprofundar sempre mais, para que num futuro

próximo possa contribuir para a educação dos surdos, defendendo seus direitos de se

comunicarem através de sua linguagem natural, que é a língua de sinais, que possam de fato,

estudar sob uma perspectiva bilíngue e que através de sua cultura e identidade, do seu

desenvolvimento cognitivo pleno, possam ocupar seus lugares na sociedade e não apenas

viver a sua margem.

Acredito que ainda há muito a ser estudado com relação a educação, e quem sabe um

dia consigamos evoluir e conquistar o reconhecimento da língua de sinais como uma língua

de fato com toda a sua estrutura e complexidade, que seja respeitada como tal. Pensando um

pouco mais na frente, talvez um dia, a Libras seja a terceira língua mais falada no Brasil,

assim como a ASL é nos Estados Unidos, e que os surdos possam se perceber como parte

integrante da sociedade como um todo e não somente na comunidade surda.

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ANEXOS

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Entrevista (Anexo 1)

Roteiro da Entrevista para Familiares:

Profissão dos pais?

Qual a idade da criança?

Data da Nascimento da criança:

Idade da criança quando feito o diagnóstico de surdez/ Deficiência auditiva?

Por parte de quem houve suspeita de algum problema? Alguém suspeitou de um

possível problema?

Como foi feito o diagnóstico? (exames? Quais? Anamnese? Avaliação auditiva?

Avaliação neuropsicológica?)

Qual a sua reação inicial? E a de outros membros da família?

Os médicos apontaram alguma causa para a surdez? Qual a causa?

E vocês, acreditam em alguma possível causa?

Quais atendimentos ocorreram a partir do diagnóstico? .

A criança usa e/ou usou algum tipo de AASI (aparelho de amplificação sonora)?

Incluindo implante coclear? Desde que idade?

Desde que idade a criança frequenta a escola?

Vocês, pais, aprendem Libras?

O que foi observado depois que a criança começou a aprender Libras? Houve

mudanças no comportamento? Quais?

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Anexo 2

Entrevista com pais/responsáveis realizada: 04/08/2013

Profissão dos pais?

Secretária/Aposentado

Qual a idade da criança?

8 anos

Data de nascimento da criança:

22/11/04

Idade da criança quando feito o diagnóstico de surdez/ Deficiência auditiva?

1 ano e meio

Por parte de quem houve suspeita de algum problema? Alguém suspeitou de um

possível problema?

A professora da creche onde Vinicius estudava

Como foi feito o diagnóstico? (exames? Quais? Anamnese? Avaliação auditiva?

Avaliação neuropsicológica?)

Na clinica SEPTO foi confirmada a deficiência auditiva através de todos os exames de

avaliação auditiva feitos, inclusive o BERA.

Qual a sua reação inicial? E a de outros membros da família?

A reação inicial de todos foi de tristeza, imaginando como seria dali pra frente. Era uma

situação nova na família pois não havia histórico anterior de parentes.

Os médicos apontaram alguma causa para a surdez? Qual a causa?

Não

E vocês, acreditam em alguma possível causa?

Não

Quais atendimentos ocorreram a partir do diagnóstico?

Atendimento médico e fonoaudiólogo, implante coclear e a Língua de Sinais.

A criança usa e/ou usou algum tipo de AASI (aparelho de amplificação sonora)?

incluindo implante coclear? Desde que idade?

Usa implante. Desde 4 anos e meio.

Desde que idade a criança frequenta a escola?

Desde os 5 meses e escola especializada desde 5 anos.

Vocês, pais, aprendem Libras?

Sim.

O que foi observado depois que a criança começou a aprender Libras? Houve

mudanças no comportamento? Quais?

Foi a melhor coisa para o Vinicius. O comportamento melhorou significativamente, sentimos

que ele está muito feliz atualmente. Consegue estabelecer um canal de comunicação com mais

facilidade conosco no dia-a-dia. É IMPORTANTE RESSALTAR QUE O VINICIUS É UM

MENINO MUITO CARINHOSO E DE GRANDE SOCIABILIDADE. POR ELE SER

MUITO EXPRESSIVO, FICA FÁCIL ENTENDER O QUE ELE QUER QUANDO TENTA

ESTABELECER UM “CANAL DE COMUNICAÇÃO” CONOSCO.