educação - anísio teixeira e a escola pública

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CopyMarket.com Francisco Gilson R. Porto Júnior - Anísio Teixeira e a Escola Pública. CopyMarket.com Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem a autorização da Editora. Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000 Anísio Teixeira e a Escola Pública Gilson Pôrto Jr. José Luiz Cunha (orgs.) 2000

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Anísio Teixeira e a

Escola Pública

Gilson Pôrto Jr. José Luiz Cunha

(orgs.)

2000

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Agradecimentos Francisco Gilson R. Porto Júnior

Agradecemos aos colegas que de uma forma ou de outra nos incentivaram e acreditaram. Nossos agradecimentos especiais a Babi Teixeira, Profª. Dra. Lúcia da Franca Rocha, A todos os autores que contribuíram com suas análises e A Magnífica Reitora Inguelore Scheunemann de Souza. Aos nossos familiares pela paciência e compreensão.

Apresentação O Centenário do nascimento de Anísio Teixeira, celebrado neste ano de 2000 enseja, como motivo adicional, que sua obra venha a ser revisitada e recuperada sob a forma da edição das análises feitas por seus estudiosos e seguidores à luz do momento presente da educação no Brasil e em todo o mundo.

Nada tão atual quanto sua incansável defesa de uma educação para todos que una nos seus propósitos de possibilitar o acesso à cultura, a preparação para o trabalho e a formação para a cidadania, hoje programa de âmbito mundial levado à frente pela UNESCO.

Nada tão presente em nosso país quanto a contínua discussão e embate de forma a assegurar a destinação de recursos do estado para a educação em todos os níveis, garantindo a qualidade do processo da educação e o isonômico acesso a todos os cidadãos.

Ademais, nada tão instigante como tema por Anísio Teixeira já abordado, e tão característico deste tempo da história, qual seja o papel das universidades. Tema por ele proposto não como encruzilhada mas como a possibilidade de um concreto redimensionamento das universidades de maneira a se constituírem no âmbito fermentador das idéias e conhecimentos novos e, inclusamente também voltada ao preparo para o prático mundo do trabalho.

Nesta obra, através dos estudos de dedicados pensadores e críticos sobre educação brasileira, é retomado e recolocado o pensamento de Anísio Teixeira, expresso nas suas tantas conferências e obras como “Educação para a Democracia”, “A Educação progressiva”, “Em Marcha para a Democracia”, “A Educação e a Crise Brasileira”, “Educação não é Privilégio”, possibilitando as inevitáveis e pertinentes relações com o presente.

Profª. Dra. Inguelore Scheneumann de Souza Reitora da Universidade Federal de Pelotas

UFPel, RS

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Sumário Francisco Gilson R. Porto Júnior

Agradecimentos e Apresentação .................................................................................................................ii

Sumário..............................................................................................................................................................iii

Resumos.............................................................................................................................................................iv

1. Anísio Teixeira: A Luta pela Escola Primária Pública no País

Clarice Nunes.......................................................................................................................................................01

2. Reformar a escola, modernizar a cultura: Anísio Teixeira e a Educação Republicana

Libânia Nacif Xavier...........................................................................................................................................13

3. Anísio Teixeira: Ciência e Arte de Educar.

Carlos Otávio F. Moreira.....................................................................................................................................20

4. De John Dewey a Anísio Teixeira: o Pensar Reflexivo como Tarefa Educacional

Marcos Von Zuben..............................................................................................................................................27

5. Ciência Moderna, o Fundamento Unificador em Anísio Teixeira

Luiz Felippe Perret Serpa.....................................................................................................................................37

6. O Planejamento Nacional da Educação Brasileira

Anísio Teixeira....................................................................................................................................................48

7. Referências À Revolução na Obra de Anísio Teixeira

João Augusto de Lima Rocha...............................................................................................................................51

8. Anísio Teixeira, Reflexões do Entardecer

Marta Maria de Araújo Jader de Medeiros Britto.................................................................................................65

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Resumos

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Resumo cap. 1 (Anísio Teixeira. A luta pela Escola Primária Pública no País). À luz das questões sobre a escola fundamental no presente promove-se um retorno ao passado para verificar como Anísio Teixeira concebeu e lutou por uma escola primária pública de qualidade. A conjuntura escolhida foi a da década de cinqüenta e início dos anos sessenta, quando ele assume a condução do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP) e escreve Educação não é privilégio (1957), um dos seus livros mais importantes. É dele a iniciativa de criar uma escola primária integral, em Salvador, demonstrando a viabilidade de um ensino de melhor qualidade para a infância brasileira. Analisa-se a polêmica que provocaram algumas das suas iniciativas na tensão entre a pesquisa e a política, entre a ação da sociedade e do Estado na condução da educação no país. Resgatam-se aspectos da sua luta pela destinação de verbas públicas para as escolas públicas, traduzidas em prédios e equipamentos pedagógicos modernos, formação de professores e de especialistas em supervisão pedagógica, e o exercício de um currículo que não apenas instruísse, mas que, sobretudo fornecesse a vivência da cultura, do trabalho e da cidadania. Resumo cap.2 (Reformar a Escola Modernizar a Cultura , Anísio Teixeira e a Educação Republicana.). Ao longo de nossa história republicana, diferentes projetos de reconstrução nacional coexistiram e disputaram sua legitimidade junto ao Estado. Em alguns desses projetos, o imperativo de forjar um sistema nacional de ensino e universalizar o acesso à escola pública figurava como o núcleo a partir do qual se desenhava o projeto de reconstrução nacional. O presente artigo tem como objetivo central analisar o projeto de renovação educacional de Anísio Teixeira em sua relação com o projeto coletivo do grupo dos pioneiros da educação nova. Procuraremos demonstrar que tais projetos abarcavam dois princípios gerais: o primeiro, uma teoria que tornava conceitualmente compatíveis a existência de uma universidade voltada para a reprodução das elites e os ideais de uma sociedade mais aberta e democrática e, o segundo, a defesa de extensão do ensino público, gratuito e igual para todos. Resumo cap.5 (Ciência Moderna , o Fundamento Unificador em Anísio Teixeira). Com base em um estudo anterior sobre a concepção de História na obra de Anísio Teixeira, destacamos o caráter essencial da ciência moderna como unificadora e superadora dos dualismos, através da “atitude científica”. É esta atitude que fundará uma sociedade e um Estado democrático, disseminado para todos os indivíduos através da escola única, superando o último dos dualismos-fins práticos e fins nobres da vida. Resumo cap.7 (Referências à Revolução na Obra de Anísio Teixeira). A descoberta recente, pelo autor, de uma conferência inédita de Anísio Teixeira sobre o planejamento nacional da educação brasileira, serve de pretexto para um percurso por sua vida e obra, na perspectiva da caracterização do legado cultural que deixou, para além do cunho de liberal, com o qual é rotulado. A utilização freqüente de avaliações da realidade social e política brasileira e as referências à história e à filosofia, precedendo propostas de natureza educacional, são marcas do estilo pessoal de Anísio, aqui acompanhadas desde 1924 até o final de sua vida, com destaque para os textos em que faz referência à revolução. A utilização de extensas citações é o recurso utilizado para a compreensão dessa característica segundo a qual o princípio liberal da igualdade de oportunidades educacionais poderia, desdobrar-se em transformações profundas na sociedade, cujo caráter revolucionário estaria em poder a democracia a seu grau mais elevado grau de radicalidade. Resumo cap.8 (Anísio Teixeira - Reflexões do Entardecer). A partir de Conferências ministradas por Anísio, no período de 1967 a 1971, tratamos de apresentar sua reflexão sobre o papel do educador como intelectual e dirigente na sociedade contemporânea científica e tecnológica. Como as exigências dessa sociedade são fundamentalmente de ordem do alargamento e da mutabilidade permanente do trabalho educacional, o seu ideal pedagógico era de que os educadores brasileiros fossem, portanto, os intelectuais instituidores e instituintes de um novo projeto de Brasil justo e igualitário. Suas reflexões inconclusas do entardecer revelam a atualidade do seu pensamento educacional.

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Anísio Teixeira: A Luta pela Escola Primária Pública no País

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Clarice Nunes1

Se traçarmos, mesmo que brevemente, um panorama da escola primária pública brasileira, na atualidade, veremos que ela não é mesma pela qual Anísio Teixeira bravamente lutou.2 Mudou de nome: a antiga escola primária agora é a nossa escola fundamental. Mudou de mãos: a antiga escola primária agora é oferecida de forma ampla pela iniciativa oficial e sua universalização não chega a constituir o problema mais sério, já que nos últimos cinqüenta anos o sistema de ensino fundamental multiplicou seu número de matrículas iniciais por dez. Seu tempo de duração mudou: passou de quatro anos, nas áreas urbanas e três anos nas áreas rurais, para oito anos de escolaridade em todo o país, sendo destinada aos brasileiros na faixa etária de 7 aos 14 anos. Sua imagem mudou: não é mais sediada num prédio cuidado, como aqueles construídos nos anos trinta, ou mesmo quarenta e cinqüenta, de aparência agradável, limpos, confortáveis, seguros. Hoje é, com raríssimas exceções, uma escola maltratada: muros altos, móveis quebrados, pichações internas e externas. Seus professores não se orgulham mais da profissão que exercem. Empobreceram, sobretudo nos anos oitenta e noventa, pela queda vertiginosa dos salários.

A escola popular que se democratizou é uma escola deteriorada, do ponto de vista da limpeza, da higiene, dos conteúdos culturais e da organização pedagógica. É uma escola que assistiu aos cortes do seu pessoal de apoio (inspetores, porteiros, guardas, merendeiras, auxiliares diversos) e dos técnicos pedagógicos: supervisores e orientadores. É uma escola mergulhada na violência das grandes cidades e onde se reflete a heterogeneidade sócio-econômica-cultural da população. Alunos e professores não podem estar felizes dentro dela! O que temos hoje, diante de nossos olhos, é uma escola pública de ensino fundamental para os pobres que abriga graves problemas de evasão e repetência. Essa não é a escola que a população deseja para os seus filhos. Essa não é a escola que Anísio Teixeira lutou para ver concretizada.

Revisitar a vida e a obra deste educador é retomar o contato com uma tradição pedagógica que produziu, no plano da administração escolar e do funcionamento da escola, resultados concretos e, do ponto de vista do ensino fundamental, frutos bem diferentes do que acabamos de descrever. Alguns desses resultados palpáveis da atuação pública de Anísio Teixeiraa foram ameaçados em sua própria existência. Outros, foram extintos, como o Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas (IESAE) que, no Rio de Janeiro, nas décadas de setenta e oitenta deste século, formou mestres em educação cujas dissertações tornaram-se livros e cuja experiência na pesquisa, docência e gestão foi colocada à serviço das principais universidades brasileiras, das secretarias de educação pública e outras instituições culturais e pedagógicas no país.

O que sempre surpreende neste retorno ao legado de Anísio Teixeira é o caráter de permanente atualidade de uma obra que se consagrou pela defesa da escola pública, luta principal de sua vida como ser humano, intelectual e educador. Essa atualidade está presente na pertinência e riqueza das sugestões e iniciativas que tomou no que diz respeito aos mais diversos temas da política educacional, tais como: financiamento da educação, organização do sistema público de ensino, formação e aperfeiçoamento docente, gestão da educação pública, deveres da União e dos Estados com relação à educação, constituição da universidade pública e de sua autonomia, democratização das oportunidades de acesso e permanência na escola básica, planejamento da educação, descentralização do sistema educacional, o incentivo à pesquisa educacional, a qualidade e a avaliação dos serviços educacionais e a valorização dos cursos de pós-graduação em educação.

Para quem vem estudando o pensamento e a obra desse educador é relativamente fácil reconhecer a sua

1 Doutora em Ciências Humanas/Educação pela PUC/Rio, 1991. Professora Titular em História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (aposentada). Pesquisadora Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Centro Pedagógico Pedro Arrupe (RJ). 2 Para uma análise aprofundada das escolas públicas de ensino fundamental na atualidade consultar: Jucirema Quinteiro (org.). “A realidade das escolas nas grandes metrópoles”. Contemporaneidade e Educação. IEC, Rio de Janeiro, ano 2, n. 3, março de 1998.

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importância e atualidade. Mas torna-se hoje imprescindível demonstrá-las às novas gerações como um gesto de aposta na revalorização da política e da educação.3 Como continuador da longa tradição pedagógica iniciada, de fato ou simbolicamente, com Sócrates e que tem por objetivo a mudança das condições subjetivas de pensar e agir em sintonia com o mundo, a obra de Anísio é expressão da defesa da liberdade de preconceitos produzidos pelo temor à autoridade e pelo pensamento inadequado ou apressado; do domínio da palavra na arte da argumentação da vida política; da afirmação do horizonte democrático.4 Tudo o que produziu foi voltado para esse horizonte e o que o torna extraordinário é a intensidade da sua luta pela democracia e pela educação para a democracia, que constituiu o motivo central de devotamento da sua vida, apesar dos banimentos da vida pública a que foi submetido. Essa defesa não é apenas apaixonada. É polida por uma filosofia da educação e uma aguda compreensão da história da sociedade brasileira. É iluminada pelo que Florestan Fernandes, num belíssimo depoimento sobre Anísio, denominou de imaginação pedagógica.5 Como administrador, Anísio Teixeira ocupou os cargos de Inspetor Geral do Ensino na Bahia (anos vinte), de Diretor Geral de Instrução Pública na cidade do Rio de Janeiro (anos trinta), Secretário da Educação e Saúde em Salvador (em meados dos anos quarenta e início dos anos cinqüenta), diretor do INEP e da CAPES (nos anos cinqüenta e sessenta) e criador da UNB (anos sessenta). Em 1935 e 1964 foi afastado da administração pública e das instâncias decisórias, no primeiro caso, pelo governo autoritário de Getúlio Vargas e, no segundo, pelo governo militar. Em todos os órgãos que trabalhou a sua meta foi a de reconstruir a escola brasileira nos seus mais diversos níveis. A conjuntura que escolhemos para desenvolver o tema proposto é a dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta, período que se caracteriza como um intervalo democrático, limitado pelo fim do Estado Novo e pelo movimento político militar de 1964. Este é um dos momentos decisivos da trajetória de Anísio Teixeira, quando ele escreve Educação não é privilégio (1957), um dos seus livros mais conhecidos. 6 Nele, Anísio traça de forma contundente o drama da sociedade brasileira e mostra como a nossa incapacidade de criar realmente uma República nos impediu de cumprir a maior de todas as tarefas: a educação.

Enquanto esse livro era escrito Brasília era construída pelo presidente Juscelino Kubitschek. O rock and roll subvertia os bailinhos bem comportados de sábado à noite, onde rapazes e moças tomavam Cuba Libre ao som de Elvis Presley, Paul Anka, Bill Haley e seus Cometas e de um compositor brasileiro novato com uma batida diferente no seu violão: uma tal de bossa nova! Uma época em que a televisão chegava aos lares brasileiros e em que o país parecia crescer vertiginosamente e aparecia nas bancas de jornal pelas grandes reportagens.

Nos dourados anos cinqüenta já tínhamos claramente delineada a educação como problema governamental. Alimentava-se a idéia de que ela era, em boa parte, a solução para o aumento da produtividade e conseqüente desenvolvimento econômico, para a integração das populações marginais das grandes cidades brasileiras e instrumento de participação da vida democrática.

A rede elementar de ensino estava crescendo rapidamente, embora de modo insuficiente para absorver a demanda potencial. Esse crescimento ocorria evidenciando a interferência dos interesses políticos locais na aplicação dos recursos provenientes do Fundo Nacional do Ensino Primário, caracterizando um grande desperdício da ajuda federal. Entre 1946 e 1958 chegaram a ser construídas 15.000 unidades escolares e essa construção manteve a predominância de escolas rurais sobre os grupos escolares das zonas urbanas. Em decorrência, surgia um grande número de cargos de professores primários, disputados e negociados pelos políticos locais e ocupados por professores leigos em sua grande maioria. Esses professores leigos ganhavam experiência e, ao final de um mandato eletivo, se a oposição vencia as eleições e assumia o governo, eram demitidos e substituídos por outros professores leigos.7

A estratégia para a erradicação do analfabetismo incluiu, além da ampliação de vagas para o ensino primário a

3 É o que procuramos fazer com a pesquisa desenvolvida no momento. Clarice Nunes (coord). Resgatando a trajetória das políticas públicas de educação no país: a atualidade do pensamento e da obra de Anísio Teixeira, via INTERNET (1988-1999). Rio de Janeiro. A pesquisa conta com o apoio do CNPq e da FAPERJ. Fazem parte da equipe: Daisy Guimarães de Souza, Haydée das Graças Ferreira de Figueiredo, Liéte de Oliveira Accácio, Maria Edith Pereira Leal e Valéria de Moraes Moreira 4 Hugo Lovisolo. A tradição desafortunada: Anísio Teixeira, velhos textos e idéias atuais. Rio de Janeiro, CPDOC, 1989, p. 26-27. 5 Florestan Fernandes. “Anísio Teixeira e a luta pela escola pública” in João Augusto de Lima (org.). Anísio em movimento – a vida e as lutas de Anísio Teixeira pela escola pública e pela cultura no Brasil. Salvador, Fundação Anísio Teixeira, 1992, p. 46. 6 Reconstituímos a história desse livro: Clarice Nunes. Prioridade número um para a educação popular. in: Anísio Teixeira. Educação não é Privilégio. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1994, 5. Edição, p. 197- 250. 7 Vanilda Paiva. Educação Popular e Educação de Adultos. São Paulo, Edições Loyola, 1987, p. 144 e 149.

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implementação de campanhas de alfabetização. Com relação ao ensino secundário, surgiam as Leis de Equivalência que procuravam abrir canais de troca entre o ensino secundário geral e técnico, atenuando, embora timidamente, o dualismo nesse nível de ensino.8 Com relação ao ensino superior, a proposta do governo JK era não apenas ampliar vagas, mas superar suas deficiências qualitativas, estimulando a pesquisa científica (ainda incipiente) e melhorando os cursos voltados para a formação de profissionais liberais, ao magistério e às carreiras técnico-administrativas.

Os primeiros frutos das universidades brasileiras, criadas nos anos trinta, apareciam numa geração de intelectuais como Antonio Cândido, Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Luiz Pereira, Luiz Costa Pinto, Marialice Foracchi, dentre tantos outros que procuravam novas interpretações para o nosso desenvolvimento histórico e cuja atuação seria decisiva nos anos sessenta. A literatura sociológica e política interpreta a conjuntura em foco como a de uma democracia populista que, seria colocada em xeque não apenas pelos setores empresariais atingidos pela incapacidade estatal em oferecer solução para os seus problemas econômicos, mas pelas próprias classes trabalhadoras que, através de suas manifestações e das reações que provocaram, vão contribuindo para mostrar o caráter limitado das instituições democráticas. Os êxitos do governo Kubitschek estavam sendo acompanhados pela ampliação das desigualdades regionais, das desigualdades de renda, dos focos de tensão e dos bolsões de miséria. A Igreja procurava, nessa conjuntura, novas formas de organização ao nível hierárquico, experimentava práticas de educação personalizada muito próximas das práticas escolanovistas e já tinha uma convicção, construída no final da década de quarenta, de que o socialismo era o seu maior inimigo.9 Sua relação com o Estado, nesse período, permitiu duas leituras: a de Márcio Moreira Alves, para quem o governo utilizaria a Igreja no sentido de tornar seus projetos mais aceitáveis a certos setores das classes dominantes melindrados ante a possibilidade de serem atingidos pela modernização pretendida e a de Werneck Vianna, para quem tal pacto sinalizava nas classes trabalhadoras (e não nas classes médias e elites políticas e econômicas) o alvo da concordata celebrada. Em troca do prestígio moral que a Igreja oferecia ao governo ela solicitava liberdade de movimentos para ampliar sua influência nas áreas do ensino, saúde, assistência e comunicação. Como eram as políticas públicas de educação nessa conjuntura? Eram herança do Estado Novo, que deixara em vigor através de decretos-lei as Leis Orgânicas do Ensino que não permitiam diversificações ou adaptações em quaisquer aspectos das instituições escolares e de suas práticas pedagógicas.10 Eram, portanto, camisas de força que engessavam as escolas e afastavam delas o questionamento do trabalho pedagógico e possíveis inovações. Herança da ditadura varguista são também os aparelhos institucionais no interior do Estado que não foram desarticulados. No Congresso a discussão da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira era adiada. Só seria promulgada em 1961. Os resultados mais marcantes das políticas públicas do governo federal, nesse período, foram, sobretudo, o respaldo institucional e financeiro do ensino secundário privado, via privilegiada de acesso ao ensino superior.11 As decisões da política educacional estavam ligadas aos aparelhos executivos governamentais da União e dos Estados. Eram, portanto, centralistas na sua forma o que acarretou não apenas descontinuidade de certas propostas, mas também a utilização do setor por políticas clientelistas, como vimos com relação à utilização das verbas do Fundo Nacional do Ensino Primário. A explicação que Anísio Teixeira dá sobre as razões históricas dessa situação é a de que a manutenção de padrões patrimonialistas na sociedade brasileira fizeram privada a ordem pública e essa manutenção se deu por conta das raízes coloniais da nossa formação social. A República havia formalmente reconhecido a exigência de um ensino elementar e profissional para o povo, separado de uma formação cultural das elites, oferecida pelo ensino secundário de caráter privado e pelo ensino superior de caráter 8 As Leis de Equivalência constituíam uma proposta formal, paliativa, de reorganização do Ensino Médio e apenas articulavam legalmente o ensino secundário com os demais ramos, abrindo a possibilidade de transferência do aluno de um tipo de ensino a outro, mediante prestação de exame de adaptação, ou de um ciclo de estudo a outro mediante exame de complementação. Sobre o papel do INEP na implantação da educação complementar ver Clarice Nunes. Escola & Dependência (o ensino secundário e a manutenção da ordem). RJ, Achiamé, 1980, p. 67-71. Sobre as Leis de Equivalência ver a mesma obra, especialmente, p. 76-81. 9 O criador da Educação Personalizada é Pierre Faure que fez várias visitas ao Brasil entre 1950 e 1970. Sua proposta foi assimilada, mesmo que não totalmente, por alguns colégios católicos brasileiros, no final da década de cinqüenta, sob a denominação de “classes experimentais”. Sobre esta proposta consultar Luiz Fernando Klein, SJ, Educação Personalizada: desafios e perspectivas. SP, Loyola, 1998. 10 Nos últimos três anos do Estado Novo foram colocados em execução os seguintes Decretos-lei: Lei Orgânica do Ensino Industrial (Decreto-lei 4073, de 31/01/1942); Criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Decreto-lei 4048, de 22/01/1942); Lei Orgânica do Ensino Secundário (Decreto-lei 4244, de 9/04/1942); Lei Orgânica do Ensino Comercial (Decreto-lei 6141 de 28/12/1943); Lei Orgânica do Ensino Primário (Decreto-lei 8529 de 2/01/1946); Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-lei 8621 e 8622 de 10/01/1946); Lei Orgânica do Ensino Agrícola (Decreto-lei 9613 de 20/08/1946). Consultar Otaíza de Oliveira Romanelli. História da Educação no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1984, p. 154. 11 Marlos Bessa Mendes da Rocha. Educação conformada: a política pública de educação (1930-1945). Campinas, UNICAMP, 1990, dissertação de mestrado, p. 1-17.

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público. Ligada à privatização do ensino secundário emerge, pela primeira vez, com vigor, buscando intervir no cenário educacional, um sujeito político importante: o empresariado do ensino. O que se evidencia na conjuntura em foco é o mesmo que a análise de Marlos Bessa Mendes da Rocha apontou para os anos 30 a 45: uma dupla face da relação público/privado em matéria educacional. De um lado, a possibilidade de financiamento público às escolas privadas era justificada pela defesa do caráter público do serviço que ofereciam, de outro, a consideração de que do ponto de vista da gestão não havia possibilidade do Estado intervir, já que a natureza privada das instituições lhe impedia de fazê-lo. Em outras palavras, o que valia para o financiamento não valia para a intervenção. Nesse caso, as gestões dos estabelecimentos de ensino privado acabaram exercendo seu arbítrio sobre funcionários, professores e alunos, o que impossibilitou a formação de um segmento civil comprometido com a luta pela democratização da escola.12

Traçados esses aspectos balizadores da conjuntura podemos, então, apontar alguns elementos para refletir como Anísio Teixeira se comportou frente às políticas públicas do seu tempo. Centraremos nossas considerações sobre o exame de como Anísio Teixeira atuou, dentro do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, hoje Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP), com relação a uma das pontas do sistema educativo, aquela que neste texto mais nos interessa: a da educação popular.

A luta pela escola primária pública, direito da população brasileira

Anísio Teixeira assumiu a direção do INEP em 1952. Nessa ocasião, o INEP estava esvaziado de suas funções de estudos e pesquisas. Era um aparelho herdado da ditadura varguista. O que vigorava de fato nesse órgão era uma concepção na qual ele tinha a função primordial de distribuir verbas para os deputados construírem escolas rurais, para, em seguida, forçar o Estado a nomear as professoras por eles indicadas. Depoimento de Darcy Ribeiro afirma que:

O INEP se desdobrou em uma rede e numa concepção de que o INEP era para dar dinheirinho para fazer escola rural, que era o que mantinha o INEP. Os deputados o que queriam era escola rural, uma escola de duas salas com uma privadinha que nunca foi usada no campo, sempre fedia pra burro... eles queriam aquilo. Criada a escolinha, forçavam o Estado a nomear a professora, as meninas formadas em escola normal. Então, havia todo um complô que convertia o Ministério da Educação em construtor de más escolas rurais (apud Xavier, 1999:79).

As dificuldades da máquina administrativa levaram Anísio Teixeira a estabelecer o lançamento de uma campanha extraordinária de educação que, abarcando diferentes modalidades e níveis de ensino, pudesse realizar acordos, contratos e convênios com organizações técnicas e de ensino e com especialistas externos aos quadros do INEP e à burocracia do MEC. No primeiro semestre de 1953 foram regulamentadas duas campanhas: a Campanha de Levantamento de Inquéritos para o Ensino Médio e Elementar (CILEME) com o objetivo de dotar o MEC de um quadro descritivo e interpretativo do ensino médio e elementar em nível nacional e, como desdobramento da CILEME a Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (CALDEME), cujo objetivo era estabelecer as bases para a elaboração de manuais que funcionassem como guias para o professorado secundário, nas diferentes disciplinas do currículo do ensino de grau médio e/ou secundário. Para elaborar esse guia foram escolhidos oito professores que aliavam, em sua maioria, atividades de ensino na universidade e em escolas de ensino médio.13

Estas duas campanhas foram antecipações das atividades do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) que foi criado com o envolvimento da UNESCO, do qual Anísio tinha sido consultor nos anos quarenta e que tinha como missão ampliar as bases da educação no mundo e levar os benefícios da ciência a todos os países. Esse envolvimento da UNESCO se dá através das Conferências Internacionais de Instrução Pública que patrocinava e mais diretamente de um projeto de pesquisas sobre relações raciais e assimilação cultural no Brasil. Nesse caso, pretendia-se exibir para o mundo duas realidades consideradas exemplares do Brasil: a democracia racial e a assimilação dos índios. A realização das pesquisas não confirmou esse pressuposto, mas isto é outra história que não contaremos aqui.14

12 Idem, ibidem. 13 Idem, p. 58 e 59. 14 A UNESCO era integrada por 71 países e formada por uma Conferência Geral que a cada dois anos estabelecia um programa de atuação. Ela teve importante papel no desenvolvimento de pesquisas sociais e educacionais no Brasil e na America Latina .Idem, p. 61.

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O plano de organização do CBPE é divulgado em 1956 na Revista de Educação e Ciências Sociais e na sua criação estava prevista a cooperação e articulação entre educadores e cientistas sociais para o estudo dos problemas educacionais que não eram estudados dentro da universidade. A idéia era, através do CBPE, em articulação com pesquisadores das universidades, levar os intelectuais a lidarem com o ensino primário, conferindo-lhe dignidade acadêmica, mas mais que isso, apresentar propostas concretas de intervenção para sua melhoria. Paralelamente, o CBPE voltou-se também para um amplo programa de profissionalização dos quadros da educação, tanto no sentido de preparar pesquisadores quanto na formação e especialização de professores para atuarem no sistema público de ensino.15 A mesma estrutura, organização e objetivos do CBPE se reproduzia nos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais: o CRPE de Recife foi coordenado por Gilberto Freire; o CRPE de Belo Horizonte, foi coordenado por Mário Casasanta e Abgar Renault e se articulou com a Secretaria de Educação; o CRPE de Porto Alegre foi coordenado pela professora Elooch Ribeiro Kunz e se articulou com a Faculdade de Filosofia da universidade; o CRPE da Bahia foi coordenado por Luis Ribeiro Serra e Carmem Spínola Teixeira e articulou-se com a Secretaria de Educação; o CRPE de São Paulo foi coordenado por Fernando de Azevedo e articulou-se com a Universidade de São Paulo. Através do CRPE de Salvador, Anísio Teixeira comandou do INEP a implementação da conhecida Escola Parque ou Centro Educacional Carneiro Ribeiro, no bairro operário da Liberdade, que oferecia uma proposta de educação integral e que tinha a intenção de se constituir no primeiro centro de demonstração de ensino primário no país, esforço para recuperar a escola pública primária. Se nas escolas-classe as crianças aprendiam a ler, escrever e contar, na Escola Parque elas se revezavam em diversas práticas educativas: de trabalho (artes aplicadas industriais e plásticas), de recreação e educação física, de artes (teatro, dança e música) de extensão cultural e biblioteca (leituras, estudo e pesquisa), de socialização (grêmio, jornal, rádio-escola, banco e loja). É uma concepção de escola primária como uma espécie de universidade da infância. A análise dessa experiência foi realizada por Stella Borges de Almeida que mostra também como essa iniciativa foi reivindicada por ocasião da elaboração do Plano Educacional de Brasília, nos anos sessenta, embora com outras características, nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS) no Rio de Janeiro e nos CIACS, de Brasília, nos anos noventa.16 Esta iniciativa, internacionalmente conhecida, teve inúmeros problemas de realização, desde as dificuldades burocráticas para liberação do terreno, graças a certas pendências judiciais, até conflitos com as autoridades locais e os professores, descontentes com suas condições de trabalho, seu salário e o fato de que enquanto se providenciava a construção do Centro “as demais escolas da rede permaneciam abandonadas”. O Centro Educacional foi visto como obra demagógica de um "pseudo-intelectual" que tratava as questões sociais com "volteios de colibri". O maior problema era efetivamente o de generalização do empreendimento, justamente pelo seu elevado custo.17 Chamo a atenção para o fato de que a criação do CBPE e dos Centros Regionais criaram uma estrutura “quase” paralela à estrutura do MEC para gerenciar a educação. O caráter de instituição de pesquisas e de assessoramento técnico além da vinculação a órgãos internacionais como a UNESCO, contribuíam para que o CBPE se constituísse num organismo peculiar - nem totalmente dependente, nem totalmente autônomo do Estado. Dentro dessa estrutura Anísio Teixeira vai estabelecer uma luta feroz em defesa da escola primária pública brasileira. Através de convênios com as secretarias e departamentos de educação dos estados brasileiros, o INEP sob sua direção, oferecia-lhes auxílio financeiro sob pretexto de orientação pedagógica. Também se propôs a equipar escolas de governos estaduais que pudessem oferecer seis anos de escolaridade primária. Anísio Teixeira apontava a possibilidade do aluno concluinte do curso complementar ao ensino primário (como ficaram conhecidos esses dois anos de estudos adicionais) ingressar na terceira série do primeiro ciclo do ensino médio. Nesse sentido, valia-se da Lei n. 59 de 11/08/1947, sancionada pelo Congresso Nacional, e que autorizava a União a entrar em acordo com os estados para a melhoria do sistema escolar primário, secundário e normal. Com essas medidas, Anísio Teixeira privilegiava o uso das verbas públicas para instituições públicas e buscava ampliar a influência da escola primária sobre o aluno, aumentando em um ano a escolaridade gratuita nesse nível de ensino. Essas propostas irritaram profundamente os líderes católicos que viam na sua atuação uma verdadeira "desagregação nacional" através de uma velada e sutil restrição aos interesses da Igreja e de suas "legítimas aspirações confessionais", como esbravejava o deputado Fonseca e Silva em diversas acusações. 18 Ganhava o INEP, dessa forma, um poder de intervenção que independia da aprovação do Legislativo ou do Conselho Nacional de Educação. Transformava-se numa fortaleza de defesa do Fundo Nacional do Ensino Médio que vinha sendo, na prática, transformado em Fundo para complementar salários de professores de escolas particulares que lhes eram exclusivamente devidos pelos proprietários de colégios. 15 Idem, p. 74, 75, 76, 77. 16 Stela Borges de Almeida. O pensamento de Anísio Teixeira concretizado: Escola Parque, paradigma escolar.in: Stela Borges de Almeida (org.). Chaves para ler Anísio Teixeira. Salvador, Ed. OEA, UFBa, EGBa, 1990, p. 141-174. 17 Idem, ibidem. 18 Anísio Teixeira. Educação não é privilégio, Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1994, 5 ed., p. 207 a 209.

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Sua atuação instaurou uma polêmica nacional que incorporou o debate de vários segmentos da sociedade e dos poderes públicos em prol ou contra os interesses da escola pública. Em meados de 1958, como advertiu Frei Evaristo Arns, o "caso Anísio Teixeira" havia se transformado em problema nacional. Em resposta às acusações de Fonseca e Silva, Anísio Teixeira reafirmava não só sua discordância de uma ideologia que tinha por princípio político a ditadura de uma classe social, mas também sua repugnância à hostilização de qualquer crença religiosa. Como cidadão era certo que não defendia idéias ortodoxamente católicas. Defendia a necessidade da aplicação preferencial dos fundos públicos federais, estaduais e municipais destinados à educação em escolas públicas, o que não significava desrespeitar a iniciativa particular. Acrescentava ainda que a descentralização do ensino só favoreceria às preocupações educacionais da Igreja Católica, já que partia do suposto de que a maioria absoluta da população brasileira era católica e seus líderes poderiam, sem dúvida, estarem presentes nos conselhos municipais que viessem a ser criados. Esclarecia o caráter cooperativo do INEP aos estados em matéria de planejamento educacional, defendendo os convênios como o meio mais eficaz de cooperação do MEC sem quebrar a autonomia estadual. Concluía expondo detalhadamente seu plano de melhoria das deficiências do ensino primário brasileiro e contra-argumentando aspectos que lhe pareciam equivocados nas acusações de Fonseca e Silva.

Toda a irritação de Fonseca e Silva contra Anísio Teixeira estava sendo usada pelos proprietários de escolas particulares, confessionais ou não, que se insurgiam contra atitudes e atos concretos de constrangimento à iniciativa privada quando esta dilapidava os cofres públicos. Anísio expressava o propósito claro e deliberado de, a partir do seu raio de atuação, não privilegiar qualquer iniciativa desse tipo no âmbito educacional, muito menos o benefício discriminativo de uma religião particular. Na avaliação de Fonseca e Silva, já em dezembro de 1956, as investidas anisianas se espalhavam. Do INEP à CAPES e às Secretarias Estaduais. No início do ano seguinte Anísio publica duas conferências, uma realizada no Rio de Janeiro e outra em Ribeirão Preto em livro, a pedido de José Olympio, acompanhadas de um pronunciamento da Associação Brasileira de Educação, elaborado em fevereiro de 1957 e incluído em anexo. Em maio desse ano Educação não é privilégio aparece no mercado editorial como arma de combate, reforçando a postura da defesa da escola pública que era assumida em outros espaços de discussão. Interessa-nos destacar que a atuação de Anísio Teixeira, nesse momento, catalizou um grande debate em torno da defesa da escola pública, ao mesmo tempo em que o Substitutivo Carlos Lacerda ao projeto de Lei de Diretrizes e Bases transitava no Congresso.19 Em 1958 desencadeou-se uma verdadeira guerra contra ele que culminou com a publicação do contundente Memorial dos Bispos Gaúchos que se colocava “contra a revolução social através da escola, preconizada pelos órgãos oficiais”, acusava Anísio Teixeira de extremista e praticamente solicitava ao presidente da república a sua demissão. Em resposta, um manifesto acompanhado de um abaixo assinado no qual se encontravam alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros de diversas áreas do conhecimento saia a campo para apoiar Anísio e suas iniciativas. Essa discussão ganhou não só o Congresso Nacional, mas também as revistas pedagógicas, a imprensa, os encontros e conferências públicas, manifestos, colocando em evidência Anísio Teixeira. Ele não recuou em nenhum momento de sua posição. Pelo contrário, procurava avançar apontando, de um lado, para a possibilidade das instituições públicas passarem a controlar a formação docente (que até então ocorria preferencialmente nas Escolas Normais Particulares Católicas) através do exame de estado. De outro lado, concretizando a possibilidade de que serviços de orientação pedagógica fossem realizados junto às Escolas Normais por técnicos americanos, o que causou grande polêmica, sobretudo se lembrarmos da experiência do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE) iniciado em 1956 e que perdurou até 1964. O PABAEE foi executado pelo INEP e visava qualificar o professor primário com recursos de um acordo bilateral entre o governo do Brasil, através do seu Ministro da Educação Clóvis Salgado e do governador do estado de Minas Gerais, José Francisco Bias Fortes e o Diretor da United States Operation Mission to Brazil (USOM-B), William E. Warne. Este acordo fez parte das atividades do Ponto IV, assim chamado pela referência ao quarto ponto do discurso de posse do Presidente Truman, em 20/01/1949, no qual declarava a intenção de promover a transferência de conhecimento técnico para a promoção do desenvolvimento econômico de áreas subdesenvolvidas.20 19 Clarice Nunes. Prioridade número um para a educação popular, op. cit., p. 197-250. 20 Edil Vasconcellos e Paiva e Léa Pinheiro Paixão.O PABAEE e o ensino primário: a assistência técnica norte-americana no Brasil nos anos cinqüenta e sessenta. Rio de Janeiro,1997. Relatório de Pesquisa, (mimeo).

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Os objetivos assinalados neste acordo de assistência técnica ao ensino primário, como advertem Edil Vasconcellos e Paiva e Léa Pinheiro Paixão, enquadravam-se nas prioridades do INEP e nas solicitações dos intelectuais do período, preocupados com os altos índices de evasão e repetência no ensino elementar e com o grande número de professores leigos. Ele apresentava dois pontos fundamentais: o treinamento dos professores de escolas normais e a produção de material didático de apoio ao ensino em escolas primárias e normais de todo o país. Para sua execução foi criado um Fundo Conjunto onde se discriminavam as contribuições do governo federal, do governo mineiro e da USOM. O governo federal, via INEP, custeava a suplementação salarial de técnicos brasileiros engajados no projeto, as passagens de ida e volta dos professores brasileiros aos EUA, bolsas de estudo e transporte aos professores participantes dos cursos do PABAEE. O governo mineiro assumiu o compromisso de dotar o Centro Piloto com um quadro completo de funcionários em regime de tempo integral e escritórios para os técnicos americanos. Ainda cedia o Instituto de Educação para o projeto e pagava o salário dos bolsistas encaminhados aos Estados Unidos. A USOM-B se encarregava do pagamento das bolsas de estudo por um ano para o grupo de bolsistas a serem enviados e de outros grupos dependendo dos recursos durante quatro anos consecutivos.21 Interessa-nos destacar que a experiência do PABAEE revestiu-se de ambigüidade, já que, apesar do seu êxito no sentido de ter concretizado um trabalho que exerceu influência em certas dimensões do ensino primário brasileiro, foi não só ignorada pelo Instituto de Educação, que não a assimilou e a apagou da sua história, como também pelo INEP, que além de ter sido responsável direto pela sua execução, incorporou sua estrutura e pessoal ao Centro Regional de Pesquisas de Belo Horizonte após 1964.22 Em linhas gerais, o PABAEE justificava a sua existência pela tentativa de resgatar a obra escolanovista de Francisco Campos em sua reforma do ensino primário (1927) e do ensino normal (1928). O que estava em pauta era a preparação eficiente dos docentes através de inovações metodológicas. Os principais responsáveis pela implantação do PABAEE em Minas foram também figuras importantes no cenário educacional dos anos vinte nesse estado, como Abgar Renault e Mário Casasanta.23

Do lado americano avaliava-se que os principais obstáculos à disseminação do ensino elementar no país devia-se à alta taxa de analfabetos, ao baixo padrão e mal equipamento das Escolas Normais, além dos baixos salários que provocavam a desistência da profissão; a centralização e a organização clássica do currículo das escolas primárias e secundárias brasileiras. Em linhas gerais, a idéia era a de que o apoio ao ensino primário constituía uma estratégia necessária ao desenvolvimento brasileiro já que a educação era vista como um dos fatores que a propiciavam. A estratégia do Programa apontava para um centro irradiador que pudesse exercer influência nacional e supunha a composição de uma equipe técnica binacional com a perspectiva de que todas as responsabilidades viriam a ser assumidas pelos brasileiros no futuro. A grosso modo, os americanos se auto-atribuíam maior competência técnica e aos brasileiros o maior domínio da realidade prática, o que significava, nesse esquema cooperativo, que os primeiros aconselhavam e os segundos executavam. Em caso de êxito previa-se a instalação de outros centros de treinamento em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belém e Manaus, o que nunca se concretizou.24 Os objetivos do Programa celebrados no acordo de 22/06/1958 eram: 1. Formar quadros de instrutores de professores de Ensino Normal para diversas das Escolas Normais mais importantes do Brasil; 2. Elaborar, publicar e adquirir textos didáticos tanto para as Escolas Normais quanto para as Elementares; 3. Enviar aos Estados Unidos, pelo período de um ano, na qualidade de bolsistas, cinco grupos de instrutores de Professores de Ensino Normal e Elementar, recrutados em regiões representativas do Brasil, que, ao regressarem, seriam contratados pelas respectivas Escolas Normais para integrarem os quadros de instrutores de professores pelo período mínimo de dois anos.25

21 Idem, p. 1-3-48 e 70. 22 Idem, p. 2, 3 e 4. 23 Idem, p. 7-9 e 65. 24 Idem, p. 54, 55, 57, 59, 61, 63 e 64. 25 Idem, p. 66.

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Dos cursos que o PABAEE ofereceu destacaram-se os de aperfeiçoamento docente, demanda das secretarias de educação de vários estados, dirigidos aos professores de metodologias de ensino e de psicologia das Escolas Normais. O relatório final de suas atividades, elaborado pelos americanos, informa que de 1959 a 1964 foram atendidos 864 bolsistas provenientes de todos os estados e territórios brasileiros, além de 8 docentes venezuelanos e 24 paraguaios. Foram também distribuídas 126 bolsas para professores realizarem seus cursos nos Estados Unidos, sendo que elas se destinaram preferencialmente para candidatos provenientes de Minas Gerais, São Paulo, Guanabara e Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul. De fato, nos anos sessenta, o PABAEE, apesar da conjuntura política hostil à presença americana em programas de assistência técnica, estava em pleno funcionamento, tinha o seu trabalho reconhecido por setores relacionados ao ensino primário e seu quadro de funcionários havia se ampliado. Nessa ocasião o PABAEE também iniciou o treinamento de supervisores de ensino e a discussão de questões curriculares numa perspectiva de planejamento de ensino, sobretudo nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Ceará e outros estados do nordeste.26 Como assinalam Edil Vasconcellos e Paiva e Léa Pinheiro Paixão, o peso da influência do PABAEE na constituição dos sistemas de supervisão dos estados ampliou-se com a criação dos Centros de Treinamento do Magistério. É comprovada a participação do PABAEE no Centro de Treinamento do Magistério de INHUMAS, no estado de Goiás, que foi estruturado em departamentos nos mesmos moldes do PABAEE e teve em seu corpo docente, nos dois primeiros anos, oito professores provenientes do Programa.27 No ano de 1962 o PABAEE atuou diretamente na formação de profissionais que comporiam os Centros de Treinamento. Esses Centros de Treinamento de Professores, que buscariam qualificar docentes em regime de tempo integral e internato, eram uma resposta aos compromissos assumidos pelo Brasil nas Conferências de Santiago do Chile e Punta del Este, assim como na IX Conferência Geral de Genebra. Nos planos do MEC esses centros seriam localizados em regiões onde existissem escolas primárias em condição de servirem como instituições de demonstração e experimentação da prática pedagógica. Pela sua experiência o PABAEE se tornaria a fonte de inspiração dessas iniciativas, uma espécie de Centro Nacional de Educação Elementar. Cogitou-se, para atender a tal finalidade, integrar o PABAEE à Universidade Federal de Minas Gerais. Em carta de 20/08/1964, ao então diretor do INEP, Carlos Pasquale, que sucedeu à Anísio Teixeira, Abgar Renault faz referências a um Centro Pedagógico, nele incluído o Centro Regional de Pesquisas de Belo Horizonte e o PABAEE como divisão de aperfeiçoamento do magistério desse Centro, uma escola parque, um jardim de infância e um grupo escolar para demonstração, além de um prédio para acomodar 300 bolsistas. Esses prédios foram construídos em área da Escola João Pinheiro no bairro da Gameleira e o PABAEE não foi assimilado pela universidade.28 Se o PABAEE teve tanta importância na qualificação docente, porque foi apagado da história do Instituto que o sediou e das próprias referências do Diretor do INEP, que era um dos seus principais condutores? Sua existência acarretou, como o demonstram as autoras da pesquisa, diversos conflitos. Provocou resistências de educadores católicos mais conservadores e dos nacionalistas. A concessão de bolsas às professoras das Escolas Normais Católicas e outras manobras hábeis de contatos e apaziguamento de ânimos nos momentos iniciais de sua implantação contornaram a situação. O mesmo porém não ocorreu com os educadores do Instituto que, a princípio, ficaram entusiasmados com a proposta, mas passaram a opor-lhe uma resistência velada e contínua quando perceberam que sua participação se confinava ao nível da execução, sendo claramente subordinada às decisões tomadas por Anísio Teixeira (INEP), Abgar Renault (Secretario da Educação) e William Hart (Diretor da Divisão de Educação da USOM). Além do que, os métodos trazidos pelos americanos entravam em confronto direto com o método global de alfabetização defendido por Lúcia Casasanta, figura de proa do Instituto. Ainda, o deslocamento do curso ginasial do Instituto para o Colégio Estadual, previsto na reforma da Escola Normal, não se realizou pela oposição das famílias das normalistas. A Associação de Professores Primários também se indignou com o filme A Escola agora é outra, elaborado pelo PABAEE, e que fazia uma avaliação negativa das escolas primárias mineiras.29

26 Idem, p. 112, 114, 133 e 137. 27Maria Paulina Arantes Bernardes. A supervisão escolar em Goiás. RJ, Fundação Getúlio Vargas, IESAE, 1983. Dissertação de Mestrado. 28 Edil Vasconcelos e Paiva e Léa Pinheiro Paixão, op. cit., p. 119, 120, 128 e 129. 29 Idem, p. 7, 32, 37, 40, 41, 44, 122 e 123.

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Com relação ao INEP, o que nos interessa de perto, o PABAEE defendia um enfoque curricular que lhe era antagônico. Enquanto o INEP discutia o currículo fundamentando-se na Filosofia da Educação e trabalhando sobretudo com autores como Dewey e Kilpatrick, o PABAEE adotou uma postura marcadamente tecnicista, modernizando pelo uso das tecnologias educacionais, a proposta escolanovista de Francisco Campos. O INEP trabalhava o currículo do ângulo da cultura, preocupado com questões que o PABAEE sequer discutia, como a evasão e a repetência da escola primária. Realizava ainda uma série de investigações sobre as comunidades urbanas com o objetivo de estabelecer as bases para o planejamento educacional. Pesquisas de Roberto Moreira, Manuel Diegues, Oracy Nogueira e Josildete Gomes, dentre outros, partiam da concepção de que a compreensão das relações pedagógicas e das relações entre a escola e as famílias se inseriam dentro de processos de socialização que necessitavam estudos mais aprofundados e soluções a longo prazo, distantes, portanto, do estilo pragmatista do governo de Juscelino Kubitschek.30 Mas retornemos às sérias dificuldades que Anísio Teixeira sofreu, como administrador do ensino, pelo confronto direto que travou com a Igreja. Em parte, como decorrência inevitável da coerência de sua prática enquanto pensador liberal. Em parte, como estrategista que usou a força do inimigo para manter acesas as atenções e provocar medidas concretas na direção da expansão e da qualidade de uma formação pública e comum de todos os brasileiros. Polemizar contra a Igreja era indiretamente acionar não só a opinião pública, mas os órgãos do legislativo, do executivo, a própria universidade e setores combativos da intelectualidade focalizando-a como prioridade. Era forçar a ajuda do seu inimigo mais poderoso à favor da sua própria causa. Sua proposta de extensão da escolaridade primária, apesar de se efetivar em Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte não conseguiu generalizar-se por uma dupla razão. Do ponto de vista psicológico, o ensino primário não alcançava o mesmo prestígio que o ensino médio. Do ponto de vista legal, a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases em 1961, viria reforçar esse desprestígio, na medida em que estabelecia como obrigatórias apenas quatro séries de escolaridade primária, apresentando o complementar facultativamente (cap. II, art. 26). Além disso, a conclusão da educação complementar não permitiria o ingresso na terceira série ginasial - como era esperado - mas apenas na segunda, mediante exame das disciplinas obrigatórias da primeira série (art. 36). Com acertos e erros não se pode ignorar toda a luta de Anísio Teixeira em defesa da escola pública. Essa luta expressa em sua obra é atual pelas questões que levantou e a clareza de propósitos e tratamento. Dentre essas questões: a do ensino primário público de qualidade para educar o brasileiro. O grave e preocupante, como afirma Jorge Hage, é que, nessa luta , concordemos ou não com suas posições, ele permaneça, ainda hoje, à frente do nosso tempo.31

Lições aprendidas? Diante do exposto é possível compreender melhor, hoje, a afirmação que Anísio Teixeira fazia de construir a melhor escola para o brasileiro: uma escola para pobres e ricos. Essa afirmação, em nossa leitura, não está apoiada no desconhecimento da clivagem de classe que ainda hoje atravessa a nossa sociedade e que se reflete na instituição escolar. Pelo contrário, Anísio tinha clareza de que para derrotar a discriminação social fora da escola era preciso vencê-la dentro da escola. Ele sabia que a criança ia para a escola pública para adquirir algo que depende, sobretudo, da formação e da disposição dos professores lhe oferecerem: uma cultura escolar. A escola primária deteriorada de hoje, é bom enfatizar, não é uma conseqüência necessária da democratização. Ela é produto de decisões políticas que se encaminharam no sentido de uma democratização sem investimento adequado, com contenção salarial e corte de pessoal, com reformas pedagógicas que não tiveram continuidade e com o total descaso na preparação dos professores. Aliás, essa formação a que tanto Anísio deu atenção, volta ao centro dos debates hoje, quando se apontam como temas centrais da escola fundamental a sua qualidade e o seu fluxo.

Talvez uma das grandes diferenças entre a luta da escola primária pública empreendida por Anísio Teixeira como homem público, ontem, e a maioria dos políticos atuais que a defendem é que o primeiro não a utilizou como bandeira político-eleitoral pensando-a como iniciativa de alto valor simbólico a baixo custo. Anísio sempre trabalhou pelo entendimento coletivo de que o ensino fundamental é dispendioso em termos econômicos e esta despesa precisa ser assumida como direito público e não como drenagem de impostos.

Afirmava ele: 30 Idem, p. 141, 143. 31 Jorge Hage: Anísio e a nova LDB: ainda as mesmas lutas? IN: João Augusto de Lima Rocha. Anísio em Movimento. Salvador, FAT, 1992, p. 83-85.

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“(...)Não se pode fazer educação barata – como não se pode fazer guerra barata. Se é a nossa defesa que estamos construindo, o seu preço nunca será demasiado caro, pois não há preço para a sobrevivência. Mas aí, exatamente, é que se ergue a grande dúvida nacional. Pode a educação garantir-nos a sobrevivência?” (Teixeira, 1994: 175-176).

Chamamos a atenção para o fato de que, hoje, mais do que nunca, o comprometimento da sociedade e dos poderes públicos com a educação fundamental é uma questão de sobrevivência, tal qual Anísio assinalou. Se no plano da retórica, as autoridades educacionais já reconhecem a necessidade de estendê-la a todos, a prática tem mostrado que a ação governamental, em certas situações, avança na contra-mão da história, regida por uma lógica binária, como por exemplo, a que apresenta como alternativas mutuamente excludentes a educação de crianças e a educação de adultos.32

Além dela, nossa tradição de cumprimento seletivo da legislação, faz com que apenas aquelas leis de interesse direto dos governantes, da alta burocracia estatal e das classes que representam sejam aplicadas com todo o rigor, enquanto as que interessam à maioria da população brasileira sejam adiadas e esquecidas ou, quando exigidas por setores que exigem o seu cumprimento, parcialmente cumpridas.

No caso da educação fundamental, as análises da proposta de recursos financeiros previstos na Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394 de 20/04/1996) e Emenda Constitucional 14 de 12/09/1996, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental de Valorização do Magistério (FUNDEF), regulamentado pela Lei 9424 de 24/12/1996 e pelo Decreto 2264 de 27/06/1997, mostram que o “marketing” do governo federal através do apelo à concretização da eqüidade, da justiça e da competência realista oculta as efetivas dimensões e alcance do FUNDEF, que infelizmente não é só esperança e acerto. É também fragilidade e frustração que tornam distante a “revolução educacional”, bandeira que o Ministério da Educação desfraldou em suas campanhas publicitárias. Como nos advertia Anísio Teixeira, para além da letra e do espírito da lei, a vontade do poder público e a mobilização da sociedade, e dos profissionais da educação em particular, são decisivas não só para sua aplicação, mas também para a fiscalização e a punição das autoridades em caso de inadimplência e irregularidades. Um dos principais obstáculos para que o cidadão comum acompanhe a aplicação das verbas do FUNDEF está na desinformação. Como ter acesso à divulgação dos governos estaduais e municipais sobre a aplicação de recursos à educação? Essa divulgação está ocorrendo como exige a lei? Quais órgãos são os fiscalizadores do cumprimento do FUNDEF? Qual a sua competência e confiabilidade?33

O retorno dos estudos e debates em torno das políticas públicas voltadas para a educação na última década de noventa mostra que, pelo menos no plano da discussão, ela ocupa um lugar de destaque. É um dos grandes desafios do próximo século. Enquanto educadores, precisamos redobrar a vigilância para discernir velhas tendências atualizadas pelas novas políticas educativas, como por exemplo, no caso brasileiro, a que recria a dualidade estrutural do ensino em duas redes de escolaridade: a da cultura geral e a da cultura profissional, tendo como pressuposto a ruptura entre o acadêmico e o tecnológico, dirigentes e especialistas; dualidade essa que Anísio Teixeira combateu duramente, já nos anos trinta, quando ousou criar as Escolas Técnicas Secundárias na cidade do Rio de Janeiro e pretendeu a equivalência do seu diploma aos diplomas do então tradicional Colégio Pedro II.34

Recolhamos da tradição democratizante que Anísio Teixeira nos deixou a sua concepção de uma política educacional que critica de forma contundente a uniformização, o descompromisso do Estado com a escola fundamental e a separação que, nele, os administradores executam entre meios e fins. Na sua concepção também está presente a tensão não resolvida entre a pesquisa e a política, entre as funções ativas da sociedade e do Estado na construção da democracia e da escola democrática.35

As mudanças vertiginosas que assistimos hoje, como país periférico no mundo capitalista globalizado, deslegitimam o Estado como provedor de políticas sociais, dentre as quais se inclui a educação. Assistimos atônitos hoje a uma espécie de 32 Ver Celso de Rui Beisiegel. “Considerações sobre a política da União para a educação de jovens e adultos analfabetos”. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, ANPEd, n. 4, jan/fev/mar/abr de 1997, p. 26-34. 33 Nicholas Davies. “Os recursos financeiros na LDB”. Universidade e Sociedade, ano VII, n. 14, outubro de 1997, p. 56-63 e o João Monlevade e Eduardo B. Ferreira. O FUNDEF e seus pecados capitais. Ceilândia/Distrito Federal, Idéa Editora Ltda., 1997. 34 Acacia Zeneida Kuenzer. “O ensino médio no contexto das políticas públicas de educação no Brasil”. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, ANPEd, n. 4, jan/fev/mar/abr de 1997, p. 77-96.

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“modernização regressiva” dos países centrais que impõe, a paises como o nosso, alternativas pobres e desprotegidas para seus habitantes.36 Estamos num período de reação na educação, na qual a escola deixa de ser vista como compromisso democrático Este compromisso vem sendo substituído pela idéia da competição do mercado. Dentro dessa lógica perde-se o cidadão, com direitos e deveres. Em seu lugar permanece o indivíduo como consumidor.

Essa lógica convive com o paradoxo de que, ao mesmo tempo, em que se constata a deslegitimação das instituições educacionais de todo tipo como reguladoras dos percursos de vida e uma crescente polarização das chances educativas e de integração no mercado de trabalho, a competição pelos serviços educativos é uma constante para a maioria da nossa população. Ainda existe, todos reconhecemos, um papel essencial para a educação. Num mundo de revolução tecnológica, cujos equipamentos e artefatos tem um alto grau de obsolescência e cujos efeitos sobre a produção do conhecimento, as relações sociais e as transformações culturais não conseguimos sequer imaginar com amplitude, são mais complexas e refinadas as exigências que se fazem à escola fundamental: formar para pensar uma massa crescente das mais diversas informações, formar para expressar-se bem em múltiplas linguagens. Com todas as mudanças conjunturais e os novos significados que elas acarretam trata-se, ainda hoje, de educar para a vida, como afirmava Anísio Teixeira. Trata-se, como ele defendia ontem, e os educadores defendem hoje, de olhar a realidade brasileira com os olhos no futuro, procurando interpretá-la corretamente e intervir na sua construção.

BIBLIOGRAFIA

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Reformar a escola, modernizar a cultura: Anísio Teixeira e a Educação Republicana

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Libânia Nacif Xavier1

Os projetos de reconstrução nacional via renovação do ensino presentes no ideário e nas ações empreendidas pelos educadores que atuaram no processo de construção do Brasil republicano articulavam-se com um conjunto de princípios e metas que orientaram a conduta do grupo e alimentavam projetos mais particulares, como os de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e outros intelectuais que ficaram conhecidos como vinculados ao grupo dos pioneiros ou escolanovistas. Refiro-me à concepção de que a atividade científica para ser frutífera devia ser desenvolvida pelas elites letradas, mas esta só teria sua eficácia garantida na medida em que promovesse uma mudança na mentalidade coletiva. Fazia parte do projeto destes agentes pioneiros promover a laicização da educação para então torná-la mais racional. Nesse sentido, era necessário trazer os parâmetros da racionalidade científica para as práticas educacionais. Esse esforço traduziu-se na luta pela constituição de um sistema de educação pública sob a responsabilidade do Estado e paralelamente, envolveu o esforço pela inserção do debate e da reflexão sobre o fenômeno educacional nas instituições de ensino superior e nos órgãos de pesquisa criados a partir da década de 30. Essa dupla empreitada presidiu a autonomização do campo educacional, na medida em que seus agentes se empenharam em impor os princípios de uma legitimidade propriamente cultural, balizada por parâmetros de racionalidade ao mesmo tempo em que procuraram romper com a ortodoxia católica, buscando a renovação e o refinamento de formas próprias de expressão. Entre os educadores atuantes neste período, a tensão entre as duas pontas do projeto de renovação educacional — a ênfase na formação das elites e o princípio da universalização do acesso à escola pública — evidenciou-se nas ações e no pensamento de seus defensores com matizes sutis. Assim, para Fernando de Azevedo, o ponto crucial do projeto de constituição de um campo cultural situava-se no ensino universitário, na medida em que, para o autor seria por meio do processo de seleção das elites e da simbiose entre elites intelectuais e Estado na condução das massas que se consumaria o projeto de construção da nação brasileira. Nesse sentido, a grande preocupação de Azevedo era com a formação dos quadros dirigentes do país, pois, na concepção do educador, os dois fatores fundamentais do processo de reconstrução nacional — a formação das elites e a educação popular — encontravam-se atrelados hierarquicamente. Ou seja, a formação de elites meritocráticas em contraposição às elites parasitárias, sem nenhuma ligação com as aspirações populares, constituíam o ponto de partida para despertar no povo a consciência de suas necessidades (Azevedo,1958).

Já para Anísio Teixeira era mister envolver a universidade e seus agentes na grande reforma educacional por meio da qual se daria a divulgação dos preceitos científicos e do pensamento racional para os professores e demais agentes atuantes nas escolas públicas de todo o país. A finalidade era formar uma mentalidade nacional (mais racional) que, incorporada aos mestres poderia ser reproduzida para as pessoas comuns, logrando alcançar horizontes mais largos para, dessa forma, mudar a face do país.

Os traços comuns que selavam a aliança entre esses dois líderes e traduziam uma ação grupal desenharam uma trajetória específica marcada pela expansão do eixo geográfico no qual atuavam; pela insistente recriação institucional e por uma linha de continuidade temporal. Com efeito, a perspectiva da reprodução de profissionais para atuarem no ensino primário e secundário bem como para exercerem as atividades de pesquisa e ocuparem postos nas universidades nos permite traçar uma linha de continuidade temporal que articula o

1 Libânia Nacif Xavier é bacharel em história pela UFRJ, e doutora em Educação Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), atuando como professora da Faculdade de Educação da UFRJ.

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conjunto de iniciativas empreendidas pelo grupo ao longo dos anos 20/30 e 40/50 . Em São Paulo, como propõe Limongi (1989), a linha de continuidade marcada pela luta destes educadores parte da Faculdade de Educação, projetada por Dória em 1920, passa pelo curso de aperfeiçoamento de professores primários de 1931 (Reforma Lourenço Filho) e pelo Instituto de Educação de 1933 (Reforma Fernando de Azevedo), para atingir seu ponto mais alto na criação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em 1934. Já no Rio de Janeiro, a trajetória de Anísio Teixeira fornece um quadro permeado pela persistência e fidelidade aos princípios que presidiram o projeto de renovação do ensino, e, em particular, as convicções deste educador. Inaugurada com a reforma do ensino no Distrito Federal, nos anos 30, o percurso do educador atinge seu ponto máximo com a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF) e com as inovações introduzidas no processo de formação de professores2, recua com a extinção da UDF e seu posterior alijamento da vida pública. Retornando, nos anos 50, ele assume a direção da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), investindo ainda na criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Por fim, paralelamente ao esvaziamento do CBPE, a atenção do educador desloca-se para o projeto de criação da Universidade de Brasília (UnB). A ocupação de cargos políticos executivos foi uma estratégia primordial por meio da qual essas lideranças procuraram estabelecer a ponte entre ciência e política, abrindo espaço para a participação dos intelectuais na burocracia estatal, estabelecendo o comprometimento deles com as formulações da esfera política e, ao mesmo tempo, condicionando a legitimação da política à validação dos cientistas. Fica clara, portanto, a estreita interação entre escolarização, cultura, ciência e política. Martins ( 1987 ) assinala que o campo cultural brasileiro tornou-se politizado antes mesmo de estruturar-se e que, desde o seu nascimento, a universidade é concebida mais como um instrumento político do que como um espaço de produção científica. Nesse quadro, o importante é que o Estado intervém no campo cultural antes que este se estruture. As estratégias mobilizadas por boa parte da intelectualidade brasileira em prol da estruturação de um campo cultural a partir da constituição de um aparato institucional envolveram recursos diversos como a participação em cargos de gestão pública, a organização de entidades civis e a atuação em congressos e nos grandes debates sobre a educação nacional. As articulações com os meios de comunicação para angariar apoio da opinião pública e a militância político-partidária, lançando mão, sempre que necessário, das relações pessoais e de parentesco incluem-se no rol de recursos utilizados no processo de estruturação de um campo cultural autônomo. No caso específico da educação, essas estratégias se efetivaram em, pelo menos, três espaços distintos, porém articulados, de atuação : as reformas do ensino nos estados, a criação de universidades com a inserção da problemática educacional no âmbito universitário e, por fim, a criação de instituições ligadas à burocracia estatal nas quais se dava prioridade ao estudo científico dos problemas nacionais e, dentro destes, das questões educacionais. No que se refere às reformas do ensino, havia a preocupação em fornecer aos professores um aparato analítico que lhes permitisse abarcar conhecimentos relativos ao homem e à sociedade, de modo coerente com a concepção de ensino do ideário renovador — que implicava atuar sobre a criança enquanto indivíduo e ser social. Com relação ao ensino universitário, em diferentes momentos, foram evidentes as preocupações de Anísio Teixeira, na Universidade do Distrito Federal, e de Fernando de Azevedo, na Universidade de São Paulo, com a formação de professores e com a articulação dessa formação com o ensino universitário. Eles criaram no interior das escolas de educação e das próprias universidades um espaço institucional para o estudo científico da educação. Dessa forma, procuravam garantir a reprodução de uma geração de intelectuais envolvidos com a problemática educacional, instrumentalizando-os para pensar tal problemática com base em parâmetros de racionalidade.

A fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) em 1956, sob a liderança de Anísio Teixeira e com o apoio da UNESCO, constitui o exemplo típico de uma terceira estratégia. Esta consistiu em abrir espaços institucionais que funcionassem como lócus da atuação de intelectuais dispostos a contribuir na implementação de projetos políticos demandados pelo poder público estatal. No que se refere à constituição das esferas de consagração e legitimação, a parceria com cientistas sociais de diferentes matizes visava não somente dotar os estudos sobre a questão educacional de uma base científica, tomando de empréstimo o arcabouço teórico das ciências sociais, como também fazer da educação objeto de pesquisa privilegiado no campo das ciências sociais.

2 Ver a respeito: Nunes (1991) e Mendonça (1993)

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Paralelamente, as atividades do CBPE voltavam-se para o desenvolvimento de um amplo programa de profissionalização dos agentes atuantes no sistema público de ensino. Em carta endereçada a Fernando de Azevedo, datada de março de 1958, Anísio Teixeira reclamava da morosidade do diretor de Centro Regional de São Paulo em encaminhar a instalação das escolas laboratório, por meio das quais se daria o aperfeiçoamento profissional do magistério. Nesta carta, Anísio Teixeira define as questões que, para ele, seriam prioritárias no projeto do CBPE. Dizia ele: (...) O problema de preparar o pessoal para o Centro parece-me ser da mais alta prioridade.(...) pois a dificuldade suprema é de pessoal realmente habilitado para o trabalho de pesquisa e planejamento educacional (...) Ora, sendo o Centro um núcleo de pesquisas aplicadas em escolas de demonstração (...) temos de preparar todo um staff de educadores capazes de conhecer a arte tradicional do ensino e renová-los por meio de estudos científicos (...) Como iremos fazer isto com os professores que temos? (...) Não vejo como formar professores para a reconstrução educacional, que dia a dia se faz mais urgente no Brasil, senão enviando-os para o exterior. O preparo no estrangeiro de professores para as escolas de demonstração, será uma condição essencial para conseguir recursos para essas escolas. Sem as escolas de demonstração, o nosso trabalho não passará de levantamentos. A pesquisa aplicada em educação não pode prescindir das escolas-laboratório.(grifos meus)3 A criação de uma Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério (DAM) na estrutura do CBPE, assim como o conjunto de atividades relativas à formação e especialização de profissionais para atuarem no campo da educação incentivados pelo CBPE, comprovam a centralidade atribuída por Anísio Teixeira à profissionalização e à reprodução de quadros para a educação. Entendemos os fundamentos que inspiraram a criação do CBPE como mais uma estratégia situada no projeto anisiano de construção do Estado Democrático com ênfase na modernização da esfera educacional. Para ilustrar a especificidade da concepção do moderno em Anísio Teixeira, Rocha (1995) destaca alguns eixos que conduzem tal concepção. Podemos indicá-los resumidamente, destacando alguma idéias centrais que constituem o projeto de modernização defendido por Anísio Teixeira. São elas, as idéias de descentralização administrativa e de autonomia (da escola e de seus agentes); o reconhecimento do educando (pela percepção de que o processo educativo é, também, um processo individual); o conhecimento da cultura regional (que se insere na própria identidade da escola); e, a atenção para a fase de desenvolvimento em que se encontrava a cultura nacional. No plano da administração pública, é patente a oposição de Anísio ao processo de racionalização administrativa calcado no modelo padronizador e centralizador montado durante o Estado Novo. Em artigo sobre o assunto, o educador critica o que ele chamou de “equívoco racionalizante” da administração pública brasileira. Ele denuncia a organização monolítica do Estado e a conseqüente centralização dos serviços, transformados em gigantescos órgãos de controle e fiscalização legal aplicáveis a todos os campos independente do conteúdo e da natureza do setor administrável, resultando na hipertrofia dos meios e processos puramente formais e em oposição aos fins mais gerais a que se destinam os diferentes setores das organizações públicas (Teixeira,1956). Para Anísio a regra de ouro da educação consistia em garantir a autonomia das instituições de ensino. Entendendo o processo educativo como individual e pessoal e, por conseguinte, tão diversificado quanto o número de alunos educados em determinada escola, Anísio condenava a aplicação de planos previamente fixados bem como as exigências de caráter meramente formal e legal. Na sua visão, a centralização dos serviços escolares — nas Secretarias de Educação nos estados e no Ministério da Educação no nível da União — teria transformado cada uma das escolas em uma só escola monstruosa e abstrata, com seções espalhadas por todo o estado. A implantação de um quadro único de pessoal e a distribuição uniforme de material, estariam, assim, destruindo a individualidade de cada escola e uniformizando o seu trabalho (controlado por órgãos administrativos e técnicos centrais), retirando-lhe a autonomia e integridade. Dessa forma, ele analisava a perda de qualidade do ensino e a ineficácia da escola pública, já patente nos anos 50, tomando como parâmetros para sua análise não a mera expansão da rede de ensino ou a ampliação do acesso escolar às classes populares com sua conseqüente massificação. Pelo contrário, apesar de considerar, como seus pares, o efeito nefasto da heterogeneidade sobre a ação prática coletiva das classes populares, e de reconhecer a importância de uma intervenção educativa que organizasse a sua dispersão, Anísio se distinguia, no entanto, por não considerar como característica intrínseca das classes populares a falta de aptidão para a coletivização. Como observou Nunes (1991:574) essa inflexão relativiza, em sua postura, a visão das classes populares urbanas como obstáculos sociais e políticos e reforça-lhe a concepção de que a educação é o instrumento de superação de uma carência que não é do indivíduo, mas da cultura erudita que lhe faz falta. Segundo a autora o projeto de Anísio Teixeira e de seus colaboradores na Reforma do Distrito Federal considerava a educação como instrumento de superação da carência de cultura

3 Vianna Filho (1990:141-2)

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erudita das classes populares, libertando-as das superstições e as tornavam incapazes de adaptarem-se à realidade de uma civilização moderna, urbana, industrial e democrática. Nestes termos, o critério de avaliação da escola seria a sua adequação à fase de desenvolvimento em que se encontrava a sociedade na qual estava inserida. Para o educador, grande parte dos problemas da escola eram expressão do momento em que a atividade educativa se complexificava, exigindo cada vez mais a produção de uma especialização profissional capaz de investigar as dificuldades dos alunos e de indicar os recursos para vencê-las. Aliás, este argumento foi desenvolvido em discurso proferido na inauguração do curso para Formação de Especialistas de Educação no CRPE de São Paulo, em 1958, ao qual retornaremos adiante4. Anísio entendia que os problemas da educação escolar estariam, naquele momento, vinculados à profunda alteração provocada pela racionalização presidida por um espírito formal e burocrático que, incapaz de distinguir os serviços meios — de controle e fiscalização — dos serviços fins — relacionados à condução de atividades próprias e autônomas como os de educação — teriam provocado uma profunda ruptura na história, na fisionomia, no caráter das escolas que, ao perderem a individualidade, tornaram-se instituições desenraizadas, imprecisas e fluidas (Teixeira, 1956:16). Assim, a descentralização administrativa constituía-se em condição para a democracia, pois, somente a autonomia e independência das organizações públicas seria capaz de restituir-lhes a integridade e identidade próprias juntamente com sua autonomia e liberdade de ação sem as quais a instituição escolar perdia a vida e mesmo que aparentemente continuasse existindo, de fato, ela passaria a não mais funcionar. Com base nesse ponto de vista é que, para Anísio, a democracia deve evitar as instituições monstruosas, aberrantes da dignidade humana, sejam elas do Estado ou do trabalho (...), propondo, como remédios democráticos, em relação ao Estado, a difusão e distribuição do poder por organizações distritais, municipais, provinciais e nacionais, em ordens sucessivas e autônomas de modo de atribuições, de forma que as ações do Estado se efetivassem com base em verdadeiro pluralismo institucional. 5 Particularmente, Anísio Teixeira concentraria amplos esforços na criação da carreira do educador profissional. Como demonstrou Nunes (1991), no decorrer de sua trajetória ele iria imprimir a esta carreira um conteúdo e uma forma peculiar, forjada no seu próprio exercício profissional. Trabalhando pela sua institucionalização, ele procuraria abrir espaços para a criação de um lócus propício ao desenvolvimento de estudos sobre educação e à sua experimentação prática.

Nesse sentido, a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), situam-se, sim , em uma linha de continuidade que engloba experiências em torno da restruturação do sistema de ensino iniciadas na Bahia, nos anos 20 e que foram aprofundadas no Distrito Federal, nos anos 30.

Na diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal, Anísio Teixeira sucedeu Fernando de Azevedo, mantendo os mesmos colaboradores em seus cargos e preservando os princípios gerais que nortearam a linha de trabalho da administração anterior. Partilhando com seus pares de um projeto mais amplo que apresentava, entre tantas outras, a ambição de se fazer da pedagogia um campo de reflexão e objeto de experimentação, Anísio criou, em 1935, o Instituto de Pesquisas Educacionais do Departamento de Educação da Prefeitura do Distrito Federal.

Aliás, este Instituto de Pesquisas Educacionais fazia parte de um conjunto de órgãos executivos utilizados como instrumento para a constituição de um sistema público de ensino que fosse capaz de aproximar a cultura erudita da cultura popular ao mesmo tempo em que condicionava a produção de conhecimentos a uma política de formação de professores. Como procuraremos demonstrar, essa política tornou-se a espinha dorsal de todo um conjunto de iniciativas às quais viria se juntar a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF) em 1935. Posteriormente, já nos 50, esses princípios seriam retomados com a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Mas, a marca particular de Anísio Teixeira se faria notar pela atenção dispensada à formação de professores, meta que vai ocupar um lugar central no projeto da UDF. Anísio se preocuparia não somente com a formação do professor universitário, mas, sobretudo, com a extensão dos frutos do conhecimento produzido no interior da universidade para os professores da rede pública de ensino. Com efeito, na UDF, a Escola de Professores — denominação que passa a assumir o Instituto de Educação — tinha como objetivo não só promover a formação do magistério em todos os graus mas, também, formar um centro de documentação e pesquisa para o desenvolvimento de estudos sobre temáticas ligadas à educação a ao ensino e, conseqüentemente, para a formação de uma cultura de nível superior no ramo (Mendonça, 1993: 64).

4 TEIXEIRA, Anísio (1958). Por que Especialistas em Educação? Educação e Ciências Sociais, III (3) 7, abril. 5 Idem, p.7

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Nos anos 40, quando esteve à frente da Secretaria de Educação da Bahia, Anísio liderou duas importantes ações para o desenvolvimento das ciências sociais e o avanço das pesquisas educacionais. A primeira delas foi o convênio firmado, em 1949 para o desenvolvimento do Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia - Colúmbia University, a ser desenvolvido pela Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia. O programa utilizava como metodologia os estudos de comunidade para analisar os processos de mudança cultural e social em várias regiões do país. A segunda iniciativa refere-se à inauguração do Centro Educacional Carneiro Ribeiro em Salvador. Este funcionou como uma espécie de escola-laboratório onde foram desenvolvidos diferentes projetos de inovação dos métodos e práticas de ensino voltados para crianças de camadas populares. Ambas as iniciativas constituíram modelos que Anísio procurou ampliar a nível nacional com a criação do CBPE. Ao assumir a direção do INEP, em 1952, Anísio Teixeira procurou revigorar a função específica de desenvolver os estudos sobre os problemas brasileiros de educação. Tendo em vista que o INEP se transformou num órgão mais legislador que de estudos e pesquisas, a criação CBPE colocou-se como a solução para os problemas do INEP no referido setor. Para tal, ele apresentou um amplo projeto que incluía uma fase de levantamentos de dados relativos à situação do ensino em todo o território nacional, a interpretação desses dados subsidiada por cientistas sociais e a formulação e divulgação para o magistério nacional de guias e manuais de ensino, prevendo, inclusive, a confecção de livros didáticos dirigidos ao professorado. É provável que as dificuldades de operacionalização de tal projeto, tanto pela carência de pessoal competente quanto pela insuficiência de recursos orçamentários por parte do INEP, tenham levado Anísio Teixeira a estabelecer como estratégia o lançamento de uma campanha extraordinária de educação que, abarcando diferentes modalidades e níveis de ensino no país, pudesse fazer acordos, contratos e convênios com organizações técnicas e de ensino e com especialistas externos aos quadros da burocracia do MEC. Na prática, esta campanha se desdobrou em duas : a CALDEME e a CILEME, que foram regulamentadas e instaladas no primeiro semestre de 1953. Através da CILEME - Campanha de Levantamentos e Inquéritos para o Ensino Médio e Elementar - ele pretendia dotar o MEC de um amplo quadro, numérico, ao mesmo tempo descritivo e interpretativo, do ensino médio e elementar em nível nacional, a fim de que profissionais e usuários pudessem apreciar as deficiências e as dificuldades de uma expansão levada a efeito, em muitos casos, com apreciável perda de padrões.6 Sempre atento à questão da diversidade e da autonomia, Anísio Teixeira destacava em sua exposição de motivos o caráter único de cada escola bem como as particularidades que revestiam sua interação com o meio social. Por esse motivo é que ele refutava o estabelecimento de um programa padronizado, preferindo adotar uma sistemática de trabalho na qual poderiam ser realizados uma série de trabalhos independentes entre si, mas coordenados de modo a cobrir progressivamente o programa geral da CILEME. Os temas prioritários deste levantamento geral se referiam a aspectos gerais da educação média e elementar, como a organização administrativa dos sistemas estaduais, o caráter do aluno, do professor e da escola de grau médio e o ensino das disciplinas nestas escolas.7 O desdobramento prático deste tipo de levantamento, resultou em uma outra campanha concomitante, a CALDEME - Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino. O objetivo desta campanha era estabelecer as bases para a formulação de manuais que funcionassem como guias para o professorado secundário, nas diferentes disciplinas constantes do currículo do ensino de grau médio ou secundário.8 Do ponto de vista institucional, a idéia de diversidade cultural e da necessidade de conhecimento desta multiplicidade, traduzia-se na cooptação de profissionais com formação diversificada (psicólogos, geógrafos, antropólogos, sociólogos, pedagogos, estatísticos entre outros) e no intenso intercâmbio entre pesquisadores nacionais e estrangeiros.

No plano da política educacional propriamente dita, como já vimos, a intenção de Anísio Teixeira era dotar o campo educacional dos recursos necessários à formulação e implementação de um plano de educação capaz de viabilizar a adequação da instituição escolar a um projeto de construção da nacionalidade que concebia a cultura brasileira como plural e diversificada.

6 Os Estudos e as Pesquisas Educacionais no MEC: Os problemas do Inep no setor de estudos e pesquisas: sua solução pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais . Educação e Ciências Sociais. I (1) 1 março / 1956, págs. 5-35. 7 A fixação destas prioridades sucedeu a realização de um seminário, em fevereiro de 1952, que reuniu os seguintes técnicos de educação: Otávio A. L. Martins, Francisco Montojos, Riva Bauzer, Luiza Contardo da Fonseca; além dos professores: Tobias Neto e Jayme Abreu, de Salvador e J. Querino Ribeiro, Raul de Moraes, Carlos Martins e Carlos Mascaro (de São Paulo). Idem, pág.23. 8 Depois registrar a dificuldade em encontrar professores de disciplinas diversas do ensino médio que aliassem competência no assunto e uma convicção segura quanto aos males do ensino verbalista bem como a disposição de colaborar na campanha em detrimento de outras atividades profissionais, o boletim do CBPE apresenta uma listagem de 8 professores com suas respectivas credenciais e áreas de competência disciplinar. A grande maioria aliava as atividades de ensino em faculdades como a UBA e a USP e a atuação em escolas de ensino médio como o Colégio Batista e o Pedro II. Idem, pág. 29.

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Por outro lado, a idéia de formação de uma consciência acerca da pluralidade cultural (que marcava a realidade nacional) encontrava ressonância internacional, especialmente em função dos efeitos perversos da disseminação da ideologia nazista. O êxodo de intelectuais europeus em decorrência da guerra contribuiria para levar aos centros universitários do Brasil, em especial para a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e para a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), os avanços alcançados na área das ciências sociais nos principais países do continente europeu e da América do Norte.

Fortemente influenciada pelas ciências sociais produzidas nos Estados Unidos, notadamente na Universidade de Chicago, a ELSP introduziu uma nova perspectiva no contexto teórico da sociologia brasileira. Sob a liderança de Donald Pierson tornou-se predominante a idéia de que mais importante que os grandes nomes que dominavam as disciplinas sociais eram os problemas, os conceitos e a metodologia que orientavam os trabalhos de investigação sociológica. Assim, como observou Oliveira (1995), a cientificidade da mesma estaria garantida se a investigação tomasse por base a pesquisa empírica. Ambas as escolas efetuaram uma significativa ampliação do temário nos estudos sociológicos e antropológicos produzidos no Brasil, ao deslocarem o foco de interesse das classes dominantes para classes dominadas. Até então, suas manifestações eram tratadas como folclore, haja vista a maneira de abordar os cultos afro-brasileiros. A partir de então, passaram a ser estudados como temas preferenciais o trabalhador urbano, o lavrador pobre, o negro marginalizado, o índio destribalizado entre outros temas.

Em suma, configurava-se na época um novo padrão de se fazer sociologia (baseada no emprego dos métodos de estudo de caso e de observação participante, da técnica de história de vida, de mapas para localizar fenômenos ecológicos, da experiência em enquetes, surveys e entrevistas) e um novo universo temático (estudo de comunidades, assimilação e aculturação, mobilidade social) advindo de uma matriz considerada na época a mais moderna e científica.

Cabe destacar uma mudança significativa, ocorrida no pós-guerra, com a fundação de organismos multilaterais de incremento ao desenvolvimento latino-americano. A Cepal tornou-se um núcleo de produção de teorias que refletiam o desejo de fazer da sociologia uma ciência voltada para a formulação e aplicação de políticas incentivadoras do desenvolvimento social e econômico dos países latino-americanos. Oliveira (1995:294) identifica na produção cepalina uma mudança conceitual importante, sobretudo em algumas análises sociológicas sobre a realidade latino-americana. Trata-se da substituição do conceito de progresso pelo de desenvolvimento. A despeito dessa noção ter assumido significados diferenciados no período, de uma maneira geral associava-se desenvolvimento, urbanização e industrialização, formando-se o tripé sobre o qual se devia assentar o processo de modernização.

Se o incremento da industrialização e da urbanização implicava em mudança econômica e social, o planejamento era tido como o instrumento por meio do qual seria possível organizar o processo de mudança que redundaria no desenvolvimento.

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Anísio Teixeira: Ciência e Arte de Educar

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Carlos Otávio F. Moreira1

1. Introdução

Ao iniciar o seu trabalho no âmbito da educação em 1924, o educador Anísio Teixeira (1900-1971) pôs em discussão três temas ou questões que desde então se tornaram importantes no processo de constituição do campo educacional no Brasil. A primeira questão foi a mudança na referência estrangeira para o campo intelectual desse país. A segunda questão foi a defesa da democratização da educação, com ênfase na construção de um sistema público de ensino e na superação da dicotomia entre educação teórica para as elites e educação para o trabalho destinada ao povo. Por fim, a visão de que a ciência e a pesquisa científica deveriam ocupar um lugar central na vida intelectual moderna (Corrêa, 1988). Este artigo tem como objetivo discutir alguns aspectos desses temas, tendo em vista ampliar a compreensão da identidade do campo educacional.

2. Uma nova filosofia

Tradicionalmente as elites brasileiras tinham até o final do século XIX apenas a Europa como referência no que diz respeito à alta cultura e à formação de seus quadros de dirigentes. Anísio Teixeira fez o curso de Direito no início da década de 20 e ocupou ainda muito jovem o cargo de diretor da Instrução Pública da Bahia, entre 1924 e 1928. Ele foi estudar nos Estados Unidos2, em Nova York, e obteve em 1929 o Master of Arts em Educação, no Teacher’s College da Columbia University, onde então trabalhava o filósofo John Dewey. Da América do Norte ele trouxe as idéias pragmatistas ou instrumentalistas de Dewey, que se tornou a referência central de suas reflexões e ações no campo da educação. Assim, Anísio Teixeira, um bacharel em Direito que iniciara sua carreira gerindo uma Secretaria de Estado, obteve nos Estados Unidos uma especialização na área de educação e voltou ao Brasil para retomar a ação no campo das políticas públicas. Com esta trajetória ele deu um passo importante no que diz respeito à profissionalização dos agentes do campo educacional, ao mesmo tempo em que punha em evidência suas afinidades com uma outra tradição cultural e política que já não vinha da velha Europa. Anísio Teixeira não era mais um diletante que apenas por arranjos políticos ocuparia cargos na administração do Estado. Tratava-se já de um “técnico” que começara a acumular conhecimentos específicos de um campo e que para isso fora fazer uma pós-graduação em Columbia com John Dewey, um intelectual que se tornou referência fundamental para a filosofia e a educação modernas.

Mas o que era esta nova filosofia que emergira nos Estados Unidos e que deixou marcas significativas nas idéias e nas ações de Anísio Teixeira? O pragmatismo pode ser definido como uma visão de mundo. Nos Estados Unidos, no final do século XIX, ela se desenvolveu tendo como autores principais Charles S. Pierce, William James, John Dewey e Herbert Mead. Trabalhando em campos de estudo próximos, ainda que especificamente distintos, eles não chegaram a constituir uma escola filosófica, daí a dificuldade de se definir com precisão o pragmatismo.

O termo pragmatismo foi utilizado inicialmente por volta de 1870 por Charles Sander Pierce (1839-1914) e teve o significado rapidamente ampliado e modificado até chegar a caracterizar a filosofia social produzida em Chicago no final do século XIX e início do século XX por Dewey, Mead e outros. Ainda que o enfoque de Pierce tenha sido epistemológico e lógico, a tradição que adotou a expressão por ele utilizada contribuiu muito para a articulação de uma ética social e para o desenvolvimento das ciências sociais nos Estados Unidos (Levine, 1997:226).

A raiz do termo foi encontrada por Pierce na Crítica da Razão Pura, de Kant. Conforme a leitura que ele fez, Kant utilizara a expressão pragmática para qualificar um tipo de crença que, embora contingente, fornece condições para a seleção de meios adequados à execução de certas ações (Levine, 1997). Pierce pôs em questão a dúvida individual

1 Carlos Otávio F. Moreira é bacharel e licenciado em Filosofia e mestre em Educação pela PUC-Rio. Este artigo foi escrito a partir de uma pesquisa sobre o pragmatismo que o autor vem desenvolvendo em seu doutorado em Educação na PUC-Rio, sob a orientação da Dra. Zaia Brandão. 2 O sociólogo Gilberto Freyre, como Anísio Teixeira, estudou na Universidade de Columbia.

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e absoluta de Descartes, desafiando o conceito central do cartesianismo. Segundo ele, uma dúvida é sempre determinada e se refere a algo. A dúvida faz com que nos esforcemos para chegar a um estado de certeza - uma idéia que se cristaliza em crença - e esta crença é traduzida em ação. A característica essencial da crença é a radicação em nós de uma regra de ação, de um hábito. O sentido da idéia/crença reside, portanto, no sentido do hábito que essa mesma idéia determinou. Isto quer dizer que diferentes crenças se distinguem a partir dos diferentes modos de ação a que dão lugar. Tudo isto conduz a uma nova teoria do significado, segundo a qual “a idéia de algo é a idéia se seus efeitos sensíveis”. Daí a máxima pragmática de Pierce: “Consideremos que efeitos práticos pensamos ser produzidos pelo objeto de nossa concepção. Então, a concepção de todos esses efeitos é a concepção completa do objeto” (Sini, 1999:26). Portanto, o significado de um conceito está diretamente relacionado aos efeitos práticos que podem resultar de se sustentar o mesmo. Nesta perspectiva, é função do pensamento estabelecer regras práticas de ação que são geradas como respostas às duvidas suscitadas pela experiência. O pragmatismo mudou a relação entre conhecimento e realidade. O conceito de crença verdadeira, por exemplo, já não se referia a uma correta representação da natureza das coisas, mas, ao invés disso, a regras que proporcionassem um aumento do poder para atuar (Rorty, 1997:94). A filosofia de Dewey, Mead e seus colegas de Chicago tem algo também da psicologia de William James (1842-1911) e compartilha com este uma orientação prática para o conhecimento, que contrasta com a ênfase dada por Pierce à teoria. É de James a idéia da mente como algo que se modifica permanentemente, expandindo-se com as novas experiências. A filosofia elaborada na Universidade de Chicago entre 1894 e 19313 representou, de uma forma geral, uma importante transformação no clássico dualismo, que considera o mundo como uma realidade externa e a mente como algo distinto, uma realidade interna. Esta abordagem reagia efetivamente à separação entre mente e matéria. Mente, pensamento e consciência foram considerados produtos de um ativo processo envolvendo agentes, e o processo que faz surgir o ser humano é justamente o social, daí os agentes serem algo essencialmente sociais:

“O conceito de indivíduo socialmente constituído é outro lado do conceito de mente como algo que recebe seu conteúdo da atividade na qual ela se constitui, ao invés de alguma fonte externa como no empirismo ou de uma super-mente como no racionalismo” (Rucker, 1969:29).

O conceito central dessa nova filosofia, que teve Dewey como sua figura nuclear, é o de atividade (activity), que é ao mesmo tempo biológica, psicológica e ética. O mundo que conhecemos é produto dessa atividade. Ela nos leva a encontrar novos problema e assim o mundo conhecido muda progressivamente. Dewey preferia utilizar o termo instrumentalismo em lugar de pragmatismo. Considerava que o pensamento era um instrumento vital, em vez de algo situado perante as coisas. O pensamento refletido ou “conhecimento” estaria vinculado à realidade e se desenvolvera a partir de situações de incerteza. Ao invés de considerá-lo como um elemento próprio para a contemplação, o pensamento era visto como um instrumento desenvolvido para resolver problemas, procurar o que falta, modificar a realidade. Um elemento fundamental das idéias de Dewey encontra-se na perspectiva aberta pela obra de Darwin. O naturalista inglês indicara que as estruturas da vida não têm formas pré-determinadas e dependem da experiência. Crescimento, adaptação e uso da inteligência para a resolução de questões são marcas da perspectiva pragmática, que deu prioridade ao processo em detrimento da forma, ao condicionado ao invés do incondicionado. Para Dewey, “a inteligência não impõe ex-nihilo uma unidade transcendente sobre os fatos, mas se integra nas condições fáticas para reconstruir seu significado e seu valor” (Esteban, 1996:29). Dewey tratou termos como “verdadeiro” e “certo” não em relação a coisas como a “vontade de Deus”, a “Lei Moral” ou a “Natureza Intrínseca da Realidade Objetiva” , mas como a expressão da solução de um dado problema. Anísio Teixeira, em um comentário sobre o pensamento de John Dewey, é muito preciso ao indicar que este rejeitava a obsessão dos filósofos por uma “realidade” superior à precariedade da contingência, apoiando-se na própria contingência e precariedade do mundo, “fundando a interpretação do homem e do seu meio e o sentido da vida humana no próprio risco e aventura do tempo e da mudança” (Teixeira, 1955:4). É importante também lembrar que certas reflexões de John Dewey serviram como respostas críticas à experiência de desajuste entre a nova realidade social gerada pela economia industrial e os ideais tradicionais da democracia americana. Neste sentido, é significativo que a educação escolar tenha ocupado um espaço vital em suas reflexões, pois a escola é um lugar privilegiado para se observar não apenas como o conhecimento ocorre nos seres humanos, mas também como os valores gerais da sociedade são incorporados pelos indivíduos. 3Estas datas se referem à formação e dissolução de um grupo de professores de filosofia, psicologia, educação e sociologia pioneiros naquela universidade (Tufts, Dewey, Mead, Angel e outros). Já em 1904 John Dewey foi lecionar na Universidade de Columbia (Nova York). Os outros continuaram trabalhando em Chicago, mas por motivos vários (transferência, falecimentos, etc.) o grupo foi sendo desfeito. A data limite (1931) é uma indicação de Darnell Rucker, em seu estudo The Chicago Pragmatists (1969) e provavelmente se refere à saída de Herbert Mead. Quando Anísio Teixeira foi estudar em Columbia em 1929, Dewey já estava lecionando nesta Universidade.

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O pragmatismo ou instrumentalismo, que tanto influenciou Anísio Teixeira, pode ser lido dentro desse contexto, em cujo vocabulário a palavra experimentalismo ganhava consistência e, com Dewey, tornara-se um certo modo de fazer filosofia. Vejamos a interpretação que Teixeira deu a essa nova filosofia ainda na década de 1930: “A volta ao concreto, por meio dos métodos de observação e experiência que caracterizam a filosofia moderna, vai permitir que, na frase de Dewey, ela recobre o seu prestígio “deixando de ser um instrumento para resolver os problemas dos filósofos e tornando-se um método, cultivado pelos filósofos, para resolver os problemas humanos” (Teixeira, s/d: 161)

Aparece aí de forma clara a perspectiva pragmática que ele apreendeu em sua viagem de estudo aos Estados Unidos. Outra não seria a trajetória de Anísio Teixeira, senão a de um típico homem de ação. Ao invés de se isolar no “claustro” do magistério, Teixeira pode conciliar a atividade docente com a reflexão e a ação política. Neste sentido, a lição de John Dewey não se expressou apenas em teoria, mas também na tentativa de resolver problemas do sistema público de educação. 3. Pesquisar para planejar

Anísio Teixeira integrou a intelligentsia brasileira que a partir da década de 20 tentou empreender reformas educacionais modernizadoras no âmbito dos estados. Estas reformas lançaram as bases de um sistema público de educação e aquele grupo de educadores ficou conhecido no Brasil como os “pioneiros da Escola Nova”. Essa intelligentsia educacional de certa forma tomara “a técnica como fundamento da definição política” (Brandão, 1999). Em parte isto se devia ao processo de especialização de profissionais que passaram a substituir a figura do intelectual-diletante. Segundo Anísio Teixeira: “As teorias sociais que desejarem sucesso longe de se fundarem nos desejos humanitários ou idealistas dos seus autores, se devem basear em rigorosas análises científicas, em diagnósticos sociais, levantados dentro da mais estrita imparcialidade. Não se trata de ganhar evidência para a tese que adotamos e amamos, mas de traçar a curva indicadora dos fatos, amáveis ou odiáveis que sejam. Arme depois o filósofo social a sua hipótese de cura ou a sua hipótese de progresso” (Teixeira, s/d, p. 109).

Tratava-se também de uma reação à permanência de praticas políticas arcaicas no Brasil quase trinta anos após a proclamação da República. Esses intelectuais tinham como projeto a “transformação da política em uma prática qualificada pela competência técnica” (Brandão, 1999). A análise da relação entre o técnico e político no campo educacional brasileiro nos leva a considerar que essa questão não pode ser reduzida à “tecnificação” ou à “desvalorização pura e simples da política”: “Boa parte dos pioneiros acreditava, como Anísio, que a abordagem técnica dos problemas criaria novos padrões para a definição das políticas setoriais; a política da educação, adequadamente encaminhada, poderia a médio e longo prazo preparar os novos cidadãos e quadros especializados que se encarregariam de renovar a sociedade” (Brandão, 1999:106).

A importância atribuída por Anísio Teixeira à ciência e à pesquisa científica como algo que deveria ocupar um lugar central na vida intelectual moderna nos ajuda a compreender como ocorreu, no Brasil na década de 50, por exemplo, a tentativa de se ultrapassar o âmbito de uma sociologia educacional, teórica e genérica, que deveria dar lugar a uma sociologia da educação, de caráter mais científico, fundamentada em pesquisas empíricas (Brandão, Mendonça et al., 1996). Outra transformação relevante, que também pode ser relacionada a Anísio Teixeira e à sua geração, é a passagem, no âmbito do Estado, de uma “política empírica da educação para uma política científica, realista e racional” (Azevedo, 1956:8). Desde o período em que ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do então Distrito Federal (atual cidade do Rio de Janeiro), entre 1931 e 1935, Anísio Teixeira percebeu a necessidade de associar a ação ao conhecimento.4 Conforme a análise de Hermes Lima,

“[ele] não sabia trabalhar no vazio, no incerto, na ignorância de condições concretas, cujo conhecimento compõe a verdadeira matéria-prima de projetos e inovações. Queria conhecer para superar e não timidamente para melhorar, pois a obra educacional recebeu sempre de suas mãos o sentido de um esforço destinado a mudar e a situar em nível mais compreensivo a tarefa educativa. A pesquisa pedagógica, fonte esclarecedora e crítica do planejamento, constituiu ponto básico das administrações que dirigiu” (Lima, 1978:44) (os grifos são meus)

Ou seja, para Anísio Teixeira era preciso que as ações no campo da educação tivessem como base o conhecimento da realidade educacional e social em que essas se efetivavam.

Entre 1947 e 1950, Teixeira dirigiu a Secretaria de Educação da Bahia e criou a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência, com um Departamento de Ciências Sociais. Para esta instituição foram convidados o norte-americano Charles 4 Nesta gestão e por sua iniciativa foi criada a Universidade do Distrito Federal (UDF), um projeto de ensino superior que tentava resgatar a idéia de universidade como algo mais do que um ajuntamento de faculdades (sobre o tema, ver o trabalho de Mendonça, 1993).

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Wagley, que já estivera no Brasil fazendo pesquisas na Amazônia, e Eduardo Galvão, ambos etnólogos. Esses cientistas sociais fariam parte, junto com o médico baiano Thales de Azevedo, de uma comissão responsável pelo planejamento de um estudo de seis comunidades ecológicas naquele estado do Nordeste brasileiro. Este estudo integrava um programa de pesquisas sociais Bahia-Columbia University, que incluía convênios com outras universidades americanas e com a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. A iniciativa de recrutar cientistas sociais e realizar levantamentos sistemáticos das questões que deveriam ser trabalhadas em termos político e administrativo no campo educacional teve continuidade, na década de 1950, de uma perspectiva nacional no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (Corrêa, 1988:19). Anísio Teixeira começou a dirigir a partir do início da década de 1950 duas agências do Estado vinculadas ao Ministério da Educação - a CAPES, Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior e o INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Já em 1952 ele articulava com o diretor do departamento de educação da UNESCO, William Beaty, a realização de um grande survey sobre a situação educacional brasileira. Foi a partir dessa idéia inicial que se organizou o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. O que seria apenas um survey foi transformado em uma instituição de pesquisa, que integrou educadores e cientistas sociais com o objetivo de fazer a investigação das “condições culturais do Brasil em suas diversas regiões, das tendências de desenvolvimento e de regressão e das origens dessas condições e forças - visando uma interpretação regional do país tão exata e tão dinâmica quanto possível” (Educação e Ciências Sociais, 1956, p. 38).

A esta visão das relações entre educação e ciência veio se juntar nessa mesma época a questão do planejamento. Tanto no Brasil como em outros países da América Latina, o planejamento passou a ser uma expressão fundamental do “idioma geral” das políticas públicas. O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que contava com mais cinco Centros Regionais (CRPE) a ele associados, foi fundado oficialmente em 1955 e estava ligado ao Ministério da Educação através do INEP, na época e até 1964 dirigido pelo próprio Anísio Teixeira. Pensado como um centro de altos estudos, o CBPE congregou pesquisadores brasileiros e estrangeiros, principalmente cientistas sociais (sociólogos e antropólogos) e educadores e foi criado com o objetivo de desenvolver pesquisas que servissem de subsídios para ações mais conscientes no campo das políticas públicas. A idéias básica era realizar pesquisas que dessem conta da diversidade social, cultural e educacional do Brasil, no sentido de acumular conhecimentos que pudessem ser úteis para o campo da educação. Associados ao CBPE estiveram, entre outros, o sociólogo inglês Bertran Hutchinson, os americanos Charles Wagley, Donald Pierson e Robert Havighurst, o francês Henry Laurentie e brasileiros como João Roberto Moreira, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Oracy Nogueira, Octávio Ianni, Aparecida Jolly Gouveia, Fernando Henrique Cardoso.

A aproximação entre educação e ciências sociais que se articulou no CBPE, sob a liderança de Anísio Teixeira, acarretou uma reordenação das pesquisas sobre educação no Brasil. Teixeira trouxe de sua experiência acadêmica nos Estados Unidos o entusiasmo pela pesquisa científica e, especificamente, por um tipo de pesquisa que se ancorava em estudos empíricos, ao invés de se sustentar na pura especulação. Quanto à orientação nos estudos sociológicos desenvolvidos no CBPE, parece que ela tinha sua maior inspiração na tradição sociológica desenvolvida na Universidade de Chicago. Essa escola representou um dos núcleos fundamentais para o desenvolvimento das ciências sociais nos Estados Unidos na primeira metade do século XX. John Dewey trabalhou naquela Universidade entre 1894 e 1904, período em que se constituiu uma conhecida tradição de pesquisas sociológicas. Para Dewey, bem como para os pragmatistas, a solução dos problemas sociais deveria passar pelo recurso às análises científicas. A influência dos pragmatistas de Chicago (Dewey, Mead e outros) sobre a tradição sociológica que ali se desenvolveu pode ser marcada, por exemplo, pela indicação de que os sociólogos abandonassem a tradição especulativa dos grandes sistemas teóricos, voltando-se para a elaboração de conhecimentos baseados em pesquisas empíricas (Cuin e Gresle, 1994; Levine, 1997; Joas, 1993). Além disso, a filosofia social (pragmatismo) e a sociologia produzida em Chicago até a década de 1930 estavam diretamente relacionadas com as transformações sociais por que passavam a América do Norte em geral e a cidade de Chicago em particular. A ligação de Anísio Teixeira e do CBPE com a tradição sociológica de Chicago pode também ser observada através de Donald Pierson. Esse sociólogo americano formado na Universidade de Chicago, e que trabalhou em São Paulo na Escola Livre de Sociologia e Política nas décadas de 30/40, defendia a idéia de que na pesquisa empírica estaria a garantia de cientificidade da sociologia. Esta perspectiva e os estudos que efetivamente realizou no Brasil contribuíram para desenvolver uma tradição de trabalho de campo (fieldwork) como atividade sistemática. Foi com a ajuda de Anísio Teixeira que Pierson esteve na Bahia, entre 1935 e 1937, fazendo uma pesquisa sobre a população negra, como parte de sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Chicago (Lippi Oliveira, 1995). A tendência a voltar-se para o trabalho de campo e para a tentativa de resolução de problemas através da ação apoiada em uma orientação multidisciplinar serve para reforçar a hipótese da filiação do projeto desenvolvido no CBPE à Escola de

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Chicago. No Brasil foram implantadas “cidades-laboratórios” como projetos-piloto para se pensar políticas de intervenção social. Procurava-se realizar uma abordagem pluralista das questões sociais, abrindo o campo da educação para uma reordenação das ciências que lhe serviam como referências. Até a década de 50 os estudos e pesquisas em educação realizados no Brasil tinham como referenciais basicamente a filosofia e a psicologia (Brandão e Mendonça, 1997). Ao organizar o CBPE Anísio Teixeira apostou em um “espírito universitário” regendo esta instituição. Ou seja, “um colégio de pessoas livres, imaginativas, abertas, estudando e documentando sobre o problema brasileiro da educação”. Mas ele sabia que o Brasil não tinha precedentes para isso, porque a universidade era uma peça da famosa “burocracia”. Ele afirmou que a burocracia brasileira era uma ideologia, que “significa sobretudo ação rígida, centralizada, contida, imposta de cima para baixo, com resultados conhecidos de toda ordem imposta: liderança sem imaginação e, em baixo, passividade, apatia...” (Teixeira apud Lima, 1978: 193). Boa parte das pesquisas financiadas pelo CBPE foram desenvolvidas por pesquisadores que estavam em universidades e que tinham projetos individuais e institucionais já definidos.5 De fato, as pesquisas de ciências sociais dominaram a produção do CBPE e deixaram marcas nesse campo bem mais visíveis e efetivas do que a herança do Centro incorporada pelo campo da educação. Se para as ciências sociais as pesquisas que ali foram desenvolvidas representou algo que deixou raízes, no campo educacional aquela tradição de pesquisa foi interrompida em 1964 e reapareceu em um outro patamar com o surgimento das pós-graduações já na década de 1970. Trata-se de um hiato que não se pode reduzir a um simples intervalo no tempo, posto que marca um processo de descontinuidade no campo do conhecimento. Para o campo educacional, trata-se realmente de uma “tradição esquecida” que tem, por exemplo, no livro de João Roberto Moreira, Educação e Desenvolvimento no Brasil (1959), a expressão de um nova sociologia da educação, mas que é também o símbolo do esquecimento de uma certa tradição de pesquisa que só recentemente começou a ser resgatada (Brandão e Mendonça, 1997). 4. Tecendo uma rede social Ao analisar a década de 50 dentro da história da antropologia brasileira, Mariza Corrêa se refere a uma “rede social” que vinculou educadores, antropólogos e sociólogos em torno da figura de Anísio Teixeira. Esta rede, que veio sendo tecida desde a década de 20, estava empenhada na criação de um aparato institucional para a educação, que incluía a participação ativas dos cientistas sociais com o objetivo de investigar a realidade social para subsidiar as ações do Estado na resolução dos problemas educacionais. A rede social, de que fala Corrêa, se constituiu a partir de dois troncos: os médicos-antropólogos, formados na Faculdade de Medicina da Bahia, e os educadores, que desde a década de 20 empreenderam as reformas modernizadoras da educação, primeiro nos estados e depois a partir da capital do país. Os médicos-antropólogos, construindo discursos a partir da ciência médica, tiveram uma participação vital na constituição do campo das ciências sociais. No caso da antropologia, eles deixaram “a marca de sua disciplina de formação nos métodos de observação e análise que utilizaram para definir os objetos até hoje privilegiados por essa disciplina (negros, loucos, criminosos, crianças, homossexuais) na sua “linhagem” urbana” (Corrêa, 1988:16). No que diz respeito a intelligentsia formada pelos educadores, foram eles os responsáveis pela introdução no Brasil da disciplina Sociologia; primeiro nas Escolas Normais, onde alguns foram professores (Fernando de Azevedo, Delgado de Carvalho, Carneiro Leão, etc.), e depois nas Faculdades de Filosofia. De forma semelhante ao que ocorrera na França com Durkheim, foi através da educação que a Sociologia chegou ao sistema escolar brasileiro. Ainda que a sociologia ministrada e “praticada” nesses cursos não passasse de noções gerais reunidas em compêndios, a percepção ainda na década de 20 da importância da sociologia para a compreensão dos fenômenos educacionais é um indício dessa aproximação entre os dois campos.

Há algo que se evidencia na análise dessa rede social. Eles faziam parte de uma elite ainda muito reduzida e que apenas ensaiava um processo de profissionalização. Quanto ao fato de se articularem médicos-antropólogos e educadores em um mesmo aparelho de estado, isto não é surpresa se lembrarmos que nas décadas de 20 e 30 no Brasil as secretarias estaduais e o ministério eram “de Educação e Saúde”. Mais curioso é que ambos os troncos dessa rede fossem integrados por muitos baianos (Corrêa, 1988:18). Anísio Teixeira era um deles, filho de um médico e político daquele importante estado brasileiro. As posições que Teixeira ocupou no âmbito da administração pública da educação servem como expressão do funcionamento dessa rede. Pioneiro no processo de profissionalização dos agentes que trabalhavam no campo educacional, ele soube fazer uso de uma perspectiva pragmática para tentar agir nos campos educacional e político, quase sempre administrados no Brasil a partir de uma perspectiva conservadora. Neste sentido, o discurso em defesa de uma análise

5 Isto quiçá também tenha contribuído para a desarticulação do CBPE. Mas poderia também agregar, como hipótese, que pelo menos dois outros fatores também contribuíram para este fato: a transferência da capital do país - com a criação da Universidade Nacional de Brasília (UNB), para onde foram trabalhar Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira - e o golpe militar de 1964, que mudou o panorama político e institucional.

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científica da realidade social - conhecer para planejar - funcionou como antídoto ao diletantismo e ao conservadorismo das elites dirigentes e terminou agindo como uma alavanca para a criação de instituições de pesquisa.

5. Educação: entre a ciência e a arte

Para Anísio Teixeira os conhecimentos produzidos pelas “ciências-fonte” da educação - a antropologia, a sociologia e a psicologia - poderiam dar bases científicas à atividade educacional em três aspectos fundamentais: seleção de material para o currículo, métodos de ensino e disciplina, e organização e administração das escolas. Não se tratava, contudo, de criar uma “ciência da educação”, algo que Teixeira descartava tendo em vista a complexidade dessa prática ou arte que é a educação. Ele foi um crítico em relação à “aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional” (Teixeira, 1957:6). Teixeira considerava que as ciências-fonte da educação proporcionariam a esta “conhecimentos intelectuais para rever e reconstruir, com mais inteligência e maior segurança” as práticas educacionais. Para isto, estas ciências-fonte deveriam alcançar primeiro um alto grau de maturidade e segurança. Contudo, ainda que as ciências-fonte estivessem completamente desenvolvidas, nem por isso teríamos automaticamente a educação renovada cientificamente:

“Nenhuma conclusão científica é diretamente transformável em regra operatória no processo de educação. Todo um outro trabalho tem de ser feito para que os fatos, princípios e leis descobertos pela ciência possam ser aplicados na prática educacional” (Teixeira, 1957:8).

Tomando como modelo a medicina, Anísio Teixeira via o desenvolvimento da pesquisa científica como algo fundamental para guiar e iluminar a observação, o diagnóstico e terapêutica. Ao mesmo tempo, ele ressaltou a diferença entre a pesquisa médica e a arte clínica, assim como entre as ciências-fonte da educação e a “arte de educar”.

O CBPE e os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais buscavam aproximar os trabalhadores das ciências-fonte da educação e os trabalhadores da educação:

“Esta aproximação visa, antes de tudo, levar o cientista especial, o psicólogo, o antropólogo, o sociólogo, a buscar no campo da “prática escolar” os seus problemas. Note-se que os problemas das ciências biológicas humanas originaram-se e ainda hoje se originam na medicina.” (Teixeira, 1957:12)

A peculiaridade desses Centros estava justamente em sublinhar um novo tipo de relação entre o cientista social e o educador. As ciências sociais, além das questões que lhes são próprias, deveriam buscar nas situações práticas da educação outras questões que lhes servissem de objeto de investigação.

Considerando o que até aqui foi discutido, penso que é possível apreender das idéias e ações de Anísio Teixeira, no que diz respeito à educação, uma tensão entre ciência e arte que me parece bastante fértil. Ela nos remete à especificidade dessa atividade, o educar, algo distinto de adestrar ou simplesmente instruir. Por outro lado, ressalta o até agora inevitável crescimento do poder do conhecimento científico. Mas a defesa do moderno método científico por parte de Anísio Teixeira pode ser associada também a uma perspectiva política. Ele foi um dos primeiros intelectuais no Brasil a tentar abolir, ainda na década de 1920, a distinção hierárquica no sistema público de educação entre escolas teóricas e escolas profissionais ou práticas. O debate em torno dos dois tipos de ensino, técnico-profissional, por um lado, e teórico, literário ou intelectualista, por outro, era para Anísio Teixeira anacrônico, pois estava baseado em dois conceitos superados:

“Nem a educação de intelectuais podia ser intelectualista, nem a educação de trabalhadores podia ser “empírica”, mas, antes, deviam ambas ter o mesmo novo caráter de educação experimental, buscasse a escola formar o cientista ou o humanista, o profissional superior ou o operário qualificado. O novo conhecimento era um só” (Teixeira, 1954:14).

Ele partia de um argumento construído com base na história da ciência para contestar uma hierarquia consolidada na história do Ocidente e que se revestiu de um caráter ainda mais discriminatório em um país onde a escravidão tornara-se, como bem afirmou Joaquim Nabuco, uma marca cruel que dificilmente seria apagada.

Sem ter que optar entre o entusiasmo cego com a ciência (do positivismo) e o ceticismo radical, Anísio Teixeira trabalhou para o desenvolvimento das ciências no Brasil, ao mesmo tempo em que, como educador por excelência, tentava ressaltar o que há de específico nessa prática social ou “arte” chamada educação.

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

De John Dewey a Anísio Teixeira: O Pensar Reflexivo como Tarefa Educacional

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Marcos Von Zuben1

Introdução

“ as escolas passam, com efeito, por transformações alarmantes. A velha autoridade dos mestres já não é a mesma, se é que existe ainda. A própria autoridade dos livros começa a ser posta em dúvida...diante de coisa alguma pára a coragem corrosiva e insolente desses pensamentos adolescentes e vivazes”2

“ a escola fundada nos “programas de lições previamente traçadas” e no regime do “aprende ou serás castigado” ignorava, antes do mais, a complexidade do ato educativo e tudo que podia realmente conseguir eram crianças hábeis no jogo da dissimulação, que procuravam cumprir - para evitar a pena ou ganhar o prêmio - com o mínimo de responsabilidade voluntária a tarefa obrigatória que lhes marcavam os mestres”3

“ Nem existe, ali, a vida no seu sentido normal de um conjunto de atividades aceitas, em que nos empenhamos com sentido de responsabilidade e de prazer, nem ali existem, propriamente, saber e ciência, por isso mesmo se perverteu em um simples esforço de repetir, pela palavra ou pela escrita, o que outros formularam em livros”4

As três notas fazem parte de um livro de Anísio Teixeira publicado, em sua primeira edição em 1934, sob o título “Pequena Introdução à Filosofia da Educação”, onde o mestre expõe seu pensamento sobre a educação, bem como as bases filosófico-educacionais do importante movimento ocorrido na educação brasileira denominado “Escola Nova”. As passagens citadas poderiam, sem muitos problemas, estar inscritas em um texto que procurasse caracterizar a educação nos dias atuais. Na primeira delas o autor fazia referências a uma situação de crise por que passava a escola; crise na relação professor-aluno, bem como crise dos materiais de ensino. Na segunda e terceira, falando da escola tradicional, ele apontava o que seriam algumas das razões de tal crise: escola baseada em lições previamente traçadas, recurso a decoração dos conteúdos, lógica do castigo e do prêmio, falta de empenho responsável e prazeroso, e, finalmente, a inexistência de saber e ciência.

É certo que, passados 63 anos de seus escritos, muitas coisas mudaram na educação brasileira, novos conceitos e novas técnicas em educação criaram novas possibilidades de compreensão da tarefa educacional e de suas possibilidades aplicativas; muita coisa mudou também no mundo que nos cerca: a revolução técnico-científica se intensificou bastante, com uma conseqüente especialização das ciências, o impulso recente em direção a globalização das economias, aperfeiçoamento das técnicas administrativas e gerenciais dos processos produtivos, a primazia do problema democrático no âmbito das relações sociais, etc. Parece-nos, no entanto, que alguns elementos fundamentais, apenas indicados nas citações acima, ainda persistem na educação e estão a exigir mudanças no sentido de tornar a prática educativa mais significativa e eficaz, tendo em vista seu objetivo mais geral de formar cidadãos intelectual e moralmente capazes de enfrentar os desafios presentes.

A aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96) abriu a possibilidade de mudanças mais significativas no sistema de ensino, bem como nas estratégias educacionais das escolas que possuem, agora, maior liberdade para organizar os seus currículos e seus programas de ensino.

Mudanças na educação, entretanto, não são tão simples, como atestam a atualidade das palavras de Anísio Teixeira. Segundo ele, questões relativas ao programa de ensino estão ligadas ao conceito de educação e a teoria geral de educação, envolvem, portanto, questões filosóficas e educacionais de relevo, para que se esteja consciente da direção que as eventuais opções de mudanças curriculares e programáticas estejam a imprimir no processo educacional. 1 Marcos von Zuben é Bacharel e Licenciado em Filosofia e Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB). 2 Teixeira(1971), p.18 3 ib., p.21 4 ib., p.70

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Diante dessas necessidades teóricas evidentes, o movimento da Escola Nova, o qual Anísio Teixeira foi um dos principais representantes, pode nos servir de um importante ponto de reflexão sobre a educação:

“A chamada teoria da educação nova é a tentativa de orientar a escola no sentido do movimento, já acentuado na sociedade, de revisão dos velhos conceitos psicológicos e sociais que ainda a pouco predominavam”5

Segundo ele, esse movimento assume explicitamente uma filiação filosófico-educacional ao pensamento do filósofo norte-americano John Dewey, cuja filosofia tem uma forte marca educacional. Ressalte-se aqui, que muitas das oposições feitas ao pensamento de Dewey, bem como à assimilação de seu pensamento no Brasil através da Escola Nova, incorreram no erro de que muito se fala e se discute e pouco se detêm na apreciação de suas palavras6. Nesse sentido, procuraremos apresentar aqui, ainda que sumariamente, sob que bases filosóficas se assentam tais perspectivas e seu significado em termos educacionais.

A Filosofia de John Dewey

A filosofia de John Dewey vincula-se à corrente de pensamento designada genericamente como pragmatismo, pensamento que sofreu fortes influências do utilitarismo de Stuart Mill, e, de forma mais tênue, de Hegel7. Do primeiro Dewey assume o pressuposto de que a experiência é o centro da vida humana e sua instância fundamental de conhecimento; do segundo ele apropria-se da idéia central da não distinção entre ser e pensar. Outra influência decisiva foi aquela recebida de Peirce, de quem Dewey fora aluno em Johns Hopkins na década de 1870:

“o que Dewey aproveitou de Peirce não foi uma doutrina mas um método, e este método ele aplicou à ciência, à arte, à lógica, à educação e a muitas outras áreas da aprendizagem”8

A sua principal característica reside em conceber o pensamento ou a capacidade racional humana como ação (pragma), pois conhecer é conhecer o significado e este não se encontra desvinculado da dimensão prática.

Para entendermos melhor o pensamento de Dewey, precisamos, antes, acompanhar o sentido da crítica desenvolvida por ele a tradição do pensamento ocidental. Para ele, a filosofia tradicional não leva em conta mudanças operadas pelos homens no campo científico, tecnológico e político:

“Os sistemas filosóficos passados são reflexo de pontos de vista pré-científico acerca do mundo natural, de um estado pré-tecnológico da indústria e de um estado pré-democrático da política”9

A revolução científica, fato novo da modernidade, trouxe consigo a idéia de que a natureza é movimento e processo; diante disso, o conhecimento humano sobre a natureza não pode pretender apreender verdades absolutas e definitivas como o queriam a tradição filosófica.

Outra contribuição fundamental da ciência, que remonta a Bacon, foi a mudança metodológica ocorrida no âmbito do conhecimento. Para Bacon, a função do método, da lógica, é auxiliar na descoberta, apontar para novas experiências, para o futuro. Isto é justamente o que faz o método científico ou experimental baseado na observação, na teoria sobre as hipóteses e na comprovação experimental, em contraposição à postura tradicional diante do método de conhecimento, que o concebia com uma função contemplativa de somente conservar o conhecimento passado, e não de transformá-lo.

O segundo aspecto diz respeito às transformações tecnológicas da industria, que colocou em relevo o caráter instrumental do conhecimento enquanto poder de transformar o mundo, onde as coisas deixam de ser coisas em si mesmas: “as coisas são o que elas podem fazer e o que com elas pode fazer-se”10.

Quanto ao terceiro aspecto, o político, Dewey afirma que a democracia reafirmou o caráter plural e, portanto, complexo da vida pública, onde esta é vista como uma forma de convivência, como um instrumento possibilitador de uma melhora e de uma constante reorganização da experiência e não como o pensamento tradicional concebia a vida pública a partir de bens e fins fixos que deviam ser conservados.

5 Ib. , p. 20 6 Cf. Jayme Abreu, citando John L. Childs, in Anísio Teixeira: pensamento e ação, p. 67 7 Tudela (1988). P.30 8 Lipman (1995), p. 157 9 Dewey (1955), p.27 10 ib., p. 179

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Diante da constatação dessas tendências do mundo moderno, Dewey observa que se por um lado alcançamos um bom desenvolvimento no campo das ciências naturais e da tecnologia, o mesmo não ocorreu quanto às questões que mais diretamente afetam os homens que são a moral a educação e a política:

“ Estas observações que faço servirão para indicar-nos o escasso progresso de nossa política, o tosco e primitivo de nossa educação, a passividade e inércia de nossa moral”11

É diante dessas debilidades que Dewey volta suas atenções para o problema educacional, propugnando a aplicação dos mesmos princípios que fundamentam o mundo científico e tecnológico à educação. Neste sentido, é sintomática a afirmação de Anísio Teixeira:

“Se a natureza da civilização do nosso tempo é a de uma civilização esteada na experimentação científica e, com tal, animada de um permanente impulso de movimento e contínua reconstrução... o ato de fé do homem moderno esclarecido não repousa nas conclusões da ciência, repousa no método científico”12

Essa primazia do método deve-se, portanto, a esses novos princípios onde o pensamento é visto como um instrumento que visa operar transformações em um mundo em constante mudança. Na medida em que o pensamento é sempre uma atividade tendo em vista fins a realizar, ele se constitui enquanto experiência e, dessa forma, a questão que se coloca é a seguinte: qual a melhor forma de experiência, e, portanto, de pensamento, no sentido de extrair-se os melhores resultados das ações humanas? É justamente o método experimental enquanto uma forma de experiência/pensamento controlada, que se utiliza da experiência passada não para reproduzi-la, mas sim para buscar uma experiência nova e mais adiantada. Como se pode notar, o pragmatismo trata os princípios racionais que o homem formula como guias da ação reconstrutiva, que são hipotéticos e nunca verdades absolutas. Esses princípios precisam realizar-se na prática e serão mantidos, corrigidos ou substituídos em função de obterem ou não o êxito, no sentido de tornarem a experiência mais frutífera.13

Dessa forma, o método experimental passa a ser, para Dewey, fator fundamental quanto a determinação da melhor forma de pensamento; é a essa forma especial de pensamento, chamado pensamento reflexivo, que ele atribui o objetivo principal do processo educativo.

Conectado e em sintonia com o objetivo de desenvolver o pensamento reflexivo, Anísio Teixeira destaca que cabe a escola prover oportunidades aos alunos, para o desenvolvimento do espírito democrático, entendido, “acima de tudo, como um modo de vida, uma expressão ética da vida”.14, onde a escola teria como finalidade preparar cada homem para ser um indivíduo que pense e que se dirija por si, em um ordem social, intelectual e industrial eminentemente complexa e mutável.

O Pensamento Reflexivo como Fim Educacional

Veremos agora qual a natureza desse pensar reflexivo. Para Dewey, existem outros sentidos que são atribuídos a palavra pensamento. Ele pode ser considerado como um fluxo desordenado de idéias, como uma corrente mental; pode também ser considerado como aquele pensamento que afirma “achar” alguma coisa, ter uma idéia de que algo seja de tal forma; e um terceiro sentido é aquele que corresponde o pensamento a uma crença. O pensamento reflexivo difere desses sentidos porque, em primeiro lugar ele não é simplesmente uma seqüência de idéias, mas uma conseqüência, onde cada idéia engendra a seguinte como uma cadeia ordenada com unidade de desenvolvimento. Ele difere também do segundo sentido na medida em que pretende ser uma representação mental de algo realmente existente, ele aspira uma conclusão, um fim. O pensamento reflexivo tampouco é uma crença baseada em fé, pois exige um bom fundamento para as certezas.

Dessa forma, o pensamento reflexivo pode ser considerado como uma corrente ordenada de idéias, com um propósito ou fim que controla e dirige esse desencadear, através de um exame pessoal de pesquisa e investigação15.

O pensar reflexivo investiga todo tipo de crença ou conhecimento a partir dos argumentos que os apoiam e das conclusões a que chega. O sentido do termo reflexão vem aqui ressaltar o aspecto autoregulador do pensamento, pois este “começa quando começamos a investigar o valor, a idoneidade de qualquer índice particular...quando experimentamos verificar sua validade”16.

11 ib., p. 189 12Teixeira (1971), p. 31 13 Dewey, (1955). P.161 14 Teixeira, (1971), p.35 15 Dewey, (1959), p.18 16 id., p. 21

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Existem dois momentos básicos do ato de pensar reflexivo. O primeiro é um estado de dúvida, hesitação, perplexidade, dificuldade mental, que incita o pensamento através de um problema; essa é a origem do ato de pensar, o fator orientador de todo mecanismo de reflexão. O problema é fundamental pois, é em função de sua natureza que se estabelece o objetivo do pensamento, o qual orienta o processo do ato de pensar. O segundo momento é o ato de pesquisa, procura, investigação; que visa resolver a dúvida e esclarecer a perplexidade: “pensar é inquirir, investigar, examinar, provar, sondar, para descobrir alguma coisa nova ou ver o que já é conhecido sob prisma diverso, enfim, é perguntar”17.

Na medida em que Dewey afirma ser o desenvolvimento do pensamento reflexivo o fim do processo educacional, precisamos verificar em que se apoia tal ponto de vista. Devemos nos perguntar porque esse tipo de pensamento é melhor que os outros a tal ponto de dever ser o objetivo maior da educação. Segundo ele, são três esses motivos: primeiro porque ele converte uma ação impulsiva, cega, em ação inteligente, que significa dirigir as atividades com previsão e planejar de acordo com fins e propósitos18. Em segundo porque ele possibilita que se antecipe conseqüências; ele instaura o autocontrole do processo de pensamento, visando eficácia nas ações. Por último, ele enriquece as coisas com um sentido, ele amplia a significação.

Nesse momento, podemos nos perguntar porque há essa necessidade de autoregulação do pensamento. Dewey acredita existirem uma série de condições que dificultam um pensar sistemático e ordenado, exigindo, assim, tal controle. Para caracterizar essas dificuldades ele cita Bacon, que apontou algumas delas. A primeira dificuldade são os métodos errôneos existentes na natureza humana, que tendem, por exemplo, a serem pouco rigorosos quando da verificação de casos ou idéias apoiadas em suas crenças. Uma segunda dificuldade provém de características peculiares dos próprios indivíduos. Um terceiro aspecto provém de problemas originados da imperfeição da comunicação e da linguagem, e, por último, aponta aquelas dificuldades que se originam do costume, da moda ou do espírito geral de uma época.19

Segundo Dewey, Locke também apontou aspectos que levam a um pensar deficiente: o pensamento que segue o exemplo dos demais; aquele que coloca a paixão em lugar da razão; aqueles que se guiam pela razão, mas sem uma visão completa de tudo o que se prende a determinada questão20.

Dewey aponta a necessidade de algumas atitudes para um bom pensar: espírito aberto, que implica em admitir todas as possibilidades, de reconhecer a probabilidade de erros próprios, e procura espontânea do que é novo, etc.; interesse sincero pelo assunto ou matéria; responsabilidade intelectual21.

Se, por um lado existem as dificuldades, inerentes ao homem e a sociedade, que dificultam o pensar reflexivo, por outro existem recursos, que Dewey considera serem inatos, para o treino do pensamento. Em primeiro lugar ele aponta a curiosidade como sendo o fator básico da ampliação da experiência, aquela sensação de que algo não está esclarecido, de que há algo atrás dos fatos a ser elucidado: “a curiosidade assume um caráter definitivamente intelectual quando, e somente quando, um alvo distante controla uma seqüência de investigações e observações, ligando-as umas as outras como meios para um fim” 22.

Um segundo recurso inato é a sugestão. Dewey a caracteriza como sendo idéias primitivas e espontâneas que referem-se a experiências passadas23. Essas sugestões, apoiadas na tendência humana à ordenação, são convertidas em ato de pensar reflexivo; a terceira tendência natural é a capacidade de estabelecer ordem enquanto consecutividade, onde uma sugestão amarra-se à outra em vista de um fim.

O papel da educação seria, então, o de desenvolver essas capacidades básicas e inatas a um pensar reflexivo, presentes no homem desde a infância. Tal desenvolvimento se daria através de um método de ensino que vise a formação de hábitos de pensamento reflexivo, estabelecendo “as condições que despertem e guiem a curiosidade; de preparar, nas coisas experimentadas, as conexões que, ulteriormente, promovam o fluxo de sugestões, criem problemas e propósitos que favoreçam a consecutividade na sucessão de idéias”24 Como se percebe aqui, a tarefa educacional deixa de ser somente uma questão de apreensão de conteúdos, para se tornar, também, uma questão de formação de hábitos de pensar reflexivo. Os objetivos educacionais tradicionalmente destacados fixam-se na importância dos conteúdos apreendidos, valorizam o produto na atividade 17 ib., P. 262 18 ib, p. 26 19 ib, p. 34 20 ib, p. 35 21 ib, p. 39 22 ib, p. 47 23 ib, p. 49 24 ib., p.63

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educativa. Dewey propõe ampliar esse objetivo para o campo metodológico, através da formação de hábitos de pensamento mais eficazes. Ele entende o pensamento não como o armazenamento de informações; para ele, “pensar é um processo de aprender, de modo consciente, os elementos comuns da matéria com as experiências da vida”25. Como bem salientou a esse respeito Anísio Teixeira:

“...fixar, compreender e exprimir verbalmente um conhecimento não é tê-lo apreendido...aprender significa ganhar um modo de agir, significa a aquisição de um determinada habilidade, aprendemos quando assimilamos uma coisa de tal jeito que, chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com o aprendido; aprender é uma forma especial de reação”26

Dewey concebe o pensar reflexivo como um processo de investigar relações, estabelecendo-se o que é comum e diferente entre coisas e fatos27. Não basta que armazenemos as informações recebidas através da memória, é preciso que as compreendamos, e compreender significa que as várias partes da informação adquirida sejam apreendidas em suas relações mútuas, o que se necessita é de uma reflexão sobre o sentido das informações. Priorizar o estabelecimento de relações como constitutivo do bem pensar, significa ressaltar e destacar a dimensão lógica do pensamento reflexivo. Lógico, aqui, não pode ser entendido como aquele pensamento com vistas a uma conclusão (sentido geral), e nem como aquele pensar que parte de premissas, cujos termos têm significados claros e definidos (sentido estrito). Para Dewey, o pensar é lógico quando regula os processos espontâneos de observação, sugestão e verificação, ou seja, quando ele é um pensar reflexivo. Esse é o sentido que tem relevância educacional.28 A esse respeito, Dewey critica duas escolas educacionais que assumem perspectivas opostas quanto a essa discussão. A primeira entende que a mente torna-se lógica somente aprendendo a conformar-se a uma matéria externa; essa escola prioriza a aquisição de conteúdos teóricos logicamente estruturados.

As palavras-chave dessa escola são: disciplina, repressão, esforço consciente, necessidade de tarefas, etc.29. A outra escola, em oposição à primeira, entende que o lógico é artificial e alheio ao processo de aprendizagem e, dessa forma, desvaloriza-o . As palavras-chave dessa escola são: liberdade, auto-expressão, individualidade, espontaneidade, jogo, interesse, desenvolvimento natural, etc30. Para Dewey, o erro básico dessas escolas é o mesmo na medida em que “ambas ignoram e negam virtualmente que as tendências para uma atividade reflexiva e verdadeiramente lógica sejam inatas e que se mostrem cedo, desde que exigidas por condições exteriores e estimuladas por curiosidade espontânea”31. É intrínseco à natureza humana uma disposição a extrair inferências e um desejo inerente de experimentar e verificar. Portanto, para Dewey, não se trata de impor externamente uma estrutura lógica já constituída e acabada e nem de considerar a educação lógica como uma tarefa alheia e estranha à natureza humana. Para ele, “o psicológico e o lógico são conexos, como estágio inicial e estágio terminal do mesmo processo”32.

Dois conceitos se acham presentes sempre que se discute concepções de educação e que por sua vez constam daquelas palavras-chave apontadas como valores básicos das escolas apreciadas. São eles a disciplina e a liberdade. Com relação à disciplina, Dewey estabelece uma diferença entre hábitos de pensar e maneiras exteriores de agir uniformes. Vinculado ao primeiro, a disciplina é positiva e construtiva, pois “é poder de controle dos meios necessários para atingir os fins e, igualmente, poder de avaliar e verificar fins”33; relacionado ao segundo sentido, a disciplina é algo negativo, processo penoso que arranca o pensamento do seu caminho natural para uma coação34.

Com relação à liberdade, ela não é, para Dewey, manter uma atividade exterior ininterrupta e desimpedida, mas sim “o poder de agir e executar, independentemente de tutela exterior”35. Liberdade é, portanto, a capacidade de agir de forma autônoma, através de um processo de reflexão pessoal. A liberdade é suprimida quando se segue impulsos inconsiderados, ou se é guiado pelas circunstâncias ou influências exteriores36.

Como pudemos notar, as diferenças entre uma educação para o pensar reflexivo e as duas escolas analisadas é a formação de hábitos de controle e autoregulação do processo do pensar em suas etapas; um controle das inferências que fazemos a base de uma prova, de uma justificação. Não há pensamento reflexivo sem inferência. A atividade reflexiva ocorre quando “defrontamo-nos com dada situação presente, da qual temos de conseguir ou concluir alguma outra coisa não presente, e esse processo de se chegar a uma idéia do que está 25 ib, p. 74 26 Teixeira (1971), p.43 27 Dewey(1959), p. 84 28 ib, p. 92 29 ib, p. 88 30 ib, p. 90 31 ib, p. 90 32 ib, p. 91 33 ib, p. 93 34 ib, p. 92 35 ib, p. 93 36 ib, p. 96

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ausente na base do que está presente é inferência”37. Prova-se, ou justifica-se uma inferência quando se comprova empiricamente ou se estabelece coerência lógico-racional da legitimidade da passagem de uma idéia conhecida para outra desconhecida, como conclusão. Para Dewey, há sempre uma situação primária, vivida, real, na qual a reflexão é originada. Às vezes, o pensamento avançou tanto em graus de abstração que isso não nos parece evidente, no entanto, remontando o desencadear do pensamento até suas origens, notaremos uma situação inicial de perplexidade, uma situação insatisfatória, sob algum aspecto, que pede solução, esclarecimento, decisão. É a partir dessa origem problemática do processo de pensamento que Dewey afirma o valor do pensamento reflexivo: “a função do pensamento reflexivo é transformar uma situação de obscuridade, dúvida, conflito, distúrbio de algum gênero, numa situação clara, coerente, assentada, harmoniosa”38.

Como se vê, o caráter pragmático do pensamento é reafirmado aqui por Dewey na medida em que o mesmo possibilita um crescimento, um progresso, em relação ao conhecimento anterior, tornando o mundo experimentado ”como diferente sob algum aspecto, porque, nele, algum objeto ganhou em claridade e ordem de disposição...o verdadeiro pensar termina por uma apreciação de novos valores”39.

Faz-se necessário, ainda, melhor determinar os componentes do processo do pensar reflexivo, na forma como o concebe Dewey. Os dois elementos básicos e fundamentais do pensar reflexivo são os dados, os fatos observáveis e as idéias, que são as sugestões, as soluções possíveis. Portanto, observa-se as condições e a natureza da situação originalmente problemática e têm-se as idéias que se constituirão em hipóteses explicativas que, ordenadas em uma série, possibilitarão uma conclusão ou uma solução da situação inicial: “haverá sempre as duas faces, simples ou complicadas, referentes ao que se deve fazer numa situação prática ou ao que se deve inferir num problema científico ou filosófico...as condições a ser computadas, tratadas e as idéias, que são os planos para tratar as condições, ou são as hipóteses de interpretação e explicação dos fenômenos”40. O pensar reflexivo constitui-se dessa interação entre dados e idéias, no qual não há uma anterioridade absoluta entre um e outro, pois, para se observar fatos precisa-se de idéias e para se ter idéias precisa-se de fatos ou teorias.

Não se dá, também, que todos os dados observáveis ou as teorias tidas como referente, bem como as idéias, produzidas no processo reflexivo de pensar, possuam o mesmo valor. O sujeito pensante realiza escolhas, formula juízos como unidades da ação reflexiva, onde não basta que estes sejam apenas certos, mas devem ser relevantes para um fim: “julgar é o ato de selecionar e pesar as conseqüências dos fatos e das sugestões como se apresentam, bem como de decidir se os fatos alegados são realmente fatos e se a idéia em uso é uma boa idéia ou uma simples fantasia”.41

Os juízos serão corretos e satisfatórios no processo reflexivo quando a solução encontrada for resultado da seleção de fatos probantes e de princípios apropriados42. Pensar é, para Dewey, um avaliar contínuo de dados e idéias43. Ele destaca que as funções do juízo são duas: a análise e a síntese. A análise é o momento onde o juízo busca esclarecimento, busca distinguir o significado dos vários elementos que compõem um fato, uma coisa, ou uma teoria; é o relevo dado aquilo que fornece um indício para elucidar uma incerteza. Na análise, as ênfases do juízo são para o discernimento, a discriminação, separar o acessório do importante, o insignificante daquilo que permite concluir44. A síntese tem, em certo sentido, uma função oposta à análise na formulação do juízo.

Ela se caracteriza pela reunião ou unificação, enquanto uma operação que fornece extensão e generalidade a uma idéia45, sua função é a de localização; localizar um fato ou qualidade em seu contexto, a partir de um relação coerente da parte com o todo, no sentido de que possibilite o desencadear do processo de inferências com vistas a uma conclusão46. Dewey adverte que o processo de análise e de síntese que constituem a formação do juízo não são etapas estanques, mas são correlativos:

“...logo que qualquer qualidade é claramente discriminada, ganhando uma significação toda sua, o espírito imediatamente busca em torno outros casos aos quais possa aplicar esse significado apreendido”47.

Dessa forma, a análise conduz a síntese e a síntese completa a análise. Para Dewey, “há uma íntima interação entre o ato de selecionar os fatos, pondo-os em evidência, e o interpretar o que foi selecionado através de um contexto”48.

37 ib, p. 100 38 ib, p. 105/106 39 ib, p. 106 40 ib, p. 110 41 ib, p. 123 42 ib, p. 125 43 ib, p. 129 44 ib, p. 133 45 ib, p. 159 46 ib, p. 133 47 ib, p. 160

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Como já foi apontado anteriormente, é do destaque ao papel do método, no processo de melhor experimentar e pensar a vida, que Dewey prescreve a sua aquisição, através da educação, enquanto hábito de pensar reflexivo. Nesse sentido, faz-se necessário precisar melhor as vantagens desse método, que, para Dewey, é um método sistemático, e seu modelo é o método científico de experimentação.

A grande vantagem do método científico, e, por conseqüência, de um pensar baseado nele, é a possibilidade de controle dos dados e das provas, por um lado, e do raciocínio e dos conceitos, por outro. Dizer que se controla os elementos de um processo de conhecimento, significa dizer que se pode verificar deliberadamente os fatos e as idéias:

“é preciso um método de natureza sistemática para salvaguardar as operações pelas quais nos movemos de fatos a idéias e de idéias a fatos que as provarão”49.

Dewey destaca o aspecto da observação experimental guiada por hipóteses, como fundamental nesse método; é a partir dela que se cria as condições para que se efetuem relações, através de comparações contrastantes entre os dados. Através do método experimental, as observações tornam-se mais claras, manifestas e precisas50. A função da observação é, também, estabelecer limites e parâmetros às idéias:

“todos os recursos da investigação indutiva colima a um só fim, regular indiretamente a função da sugestão ou a formação das idéias”51.

Além do controle de dados e provas, o método sistemático possibilita também o controle sobre os processos do raciocínio e as relações entre os conceitos; exige-se coerência no desenvolvimento dos conceitos e nas suas relações dentro de um sistema52.

Para Dewey, a dimensão da observação e suas conseqüentes relações com as teorias e as concepções em questão são comumente deixadas de lado no processo educativo. Para ele, o primeiro erro educacional é começar por definições, regras, princípios gerais e classificações, aplicando, a partir deles, considerações dedutivas sem, primeiro, “dar a conhecer os fatos particulares que criam a necessidade de definição e generalização”53. Há, segundo ele, uma falsa separação estabelecida entre fato e significação na formação dos conceitos gerais que prejudicam o objetivo maior da educação, que é a formação de hábitos de pensar reflexivo.

Entender o papel dos dados e da observação na formação das hipóteses e dos conceitos, bem como o contrário, o papel destes na escolha e controle dos dados observados, é um dos aspectos essenciais do pensamento reflexivo: “é somente quando as relações são levadas em conta que a aprendizagem deixa de ser um heterogêneo saco de retalhos”54.

Dewey destaca, em contraposição ao pensamento científico, o pensamento empírico. Este é entendido como o conhecimento adquirido através de experiências passadas regulares, que criam hábitos de expectativa. Podemos dizer que é uma associação entre fatos de forma não controlada e não articulada com conceitos ou teorias. As desvantagens do pensamento empírico são: sua tendência para falsas crenças; sua incapacidade de lidar com o que é novo; sua tendência para gerar inércia mental e dogmatismos55.

O método científico vem no sentido de superar essas deficiências do método empírico. Ele “substitui as conjunções ou coincidências repetidas de fatos separados, pela descoberta de um único fato compreensivo”56. Na medida em que a experiência é controlada, as observações são feitas em condições variadas, partindo-se de uma idéia ou de uma teoria, com isso, estabelecem-se modelos compreensivos que podem ser aplicados à situações novas. Essas aplicações podem levar a acertos ou erros. Esses erros, no entanto, não são simples erros, eles são instrutivos, porque, controlados experimentalmente através de um método, possibilitam a reconstrução da experiência a partir de bases mais amplas e seguras, dessa forma eles assumem caráter educativo57. Essa atitude experimental diante das coisas e dos fatos é que garante o progresso do conhecimento:

“a mudança de uma atitude de conservadora confiança no passado, na rotina e no costume, para uma atitude de fé no progresso, pela regulação inteligente das condições existentes, é, naturalmente, o reflexo do método científico de experimentação...graças a esse método, a idéia de progresso recebe a sanção científica”58.

48 ib, p. 134 49 ib, p. 167 50 ib, p. 176 51 ib, p. 177 52 ib, p. 179 53 ib, p. 185 54 ib, p. 184 55 ib, p. 190 56 ib, p. 193 57 ib, p. 118 58 ib, p. 197

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Podemos dizer que o método científico, enquanto melhor forma de experiência e de pensamento, transfere-se, enquanto modelo, para a tarefa primordial da educação, que é a de fixar e treinar o pensar reflexivo, para que ele se constitua enquanto hábito e supere as formas mais limitadas de pensar, quase sempre baseadas no passado, no costume e na rotina. O pensar reflexivo possibilita, ao contrário, uma emancipação e um alargamento da experiência59.

O Pensamento Reflexivo como Prática Educacional

Procuraremos agora, expor e comentar os aspectos mais aplicativos dos princípios e propósitos apresentados anteriormente. Trata-se da tarefa educativa de formação de hábitos de pensar reflexivo nas escolas.

Para Dewey, um dos principais problemas educativos é a falsa e artificial separação entre processo e produto, entre atividade e resultado, na construção do conhecimento60. Segundo ele, Platão já teria notado que o brinquedo é o principal, e quase o único, meio educativo durante a infância. Com isso, ele pretende reafirmar e revalorizar a dimensão educativa da atividade, da ação. Tem-se a tendência a separar artificialmente o brinquedo do trabalho, como se o primeiro fosse a atividade pela atividade e o segundo uma atividade em relação a um fim ou resultado: “são as noções erradas sobre utilidade e a imaginação que causam, geralmente, essa marcada oposição entre brinquedo e trabalho”61. A imaginação não se opõe à utilidade, ao contrário, ela, quando sadia, trabalha com a realização mental do que é sugerido62. A diferença é que, no brinquedo, a atividade é casual, segundo as circunstâncias, e no trabalho é em relação a um resultado. O que Dewey quer destacar é que em ambos, ação e pensamento se correspondem. É nesse sentido que ele afirma que o domínio do corpo, nos primeiros meses de uma criança tem grande valor, não só físico, mas também intelectual, bem como os desenvolvimentos posteriores no contato social e, principalmente, com a aquisição da linguagem, que possibilita um enorme desenvolvimento da vida mental.

O trabalho, não em seu sentido externo, mas mental e educativo, é “o interesse em materializar de modo adequado uma significação (sugestão, propósito, fim) em forma objetiva, por meio de materiais e processo apropriados”63.

Para Dewey, a relevância educativa da fase em que a criança se relaciona primordialmente com o brinquedo, que pode ser caracterizada como a fase pré-escolar, impõe que, já nesse momento, se introduzam habilidades que serão fundamentais na fase escolar como: precisar o conhecimento das coisas existentes, imaginar fins e conseqüências, guiar as ações, adquirir habilidades técnicas para escolher e dispor os meios para realizar fins, etc64.

As atividades na fase escolar, que são dos mais diversos tipos, devem favorecer, não só um acervo de conhecimentos práticos, mas também uma familiaridade com os métodos de investigação e de prova experimental. Isso quer dizer que a atitude científica deve ser cultivada já nos primeiros anos escolares, no âmbito das atividades propostas às crianças. Segundo Anísio Teixeira, os conhecimentos devem ser organizados de modo a que sejam utilizáveis em uma determinada aplicação. Nesse sentido ele critica a disposição dos conteúdos através de matérias e lições, totalmente descolados de seu sentido e fim aplicativo, que representam o verdadeiro sentido social necessário a perfeita compreensão dos conteúdos:

“partindo da criança e de suas necessidades, chegamos a conclusão de que o programa escolar se deve organizar em uma série de experiências reais e socializadas, e não como uma simples distribuição de matérias escolares”65

Para que os programas escolares atendam a essas exigências, devem se estruturar por meio de projetos em vez de lições, onde as matérias serão ensinadas à medida que se tornem precisas na seqüência de cada projeto. A vantagem na organização dos programas através de projetos é que se supera a dicotomia processo/produto no ato educativo; a educação passa a ser concebida como investigação, onde os alunos envolvem-se nos problemas e questionamentos por si mesmos, onde a educação não se resume à aquisição de produtos finais prontos e refinados da investigação, sem compreender o seu processo e objetivos finais.66 Essa organização do ensino através de projetos pode, a primeira vista, nos parecer estranha e complicada, no entanto, como muito bem nos lembra Anísio Teixeira:

59 ib, p. 199 60 ib, p. 210 61 ib, p. 211 62 ib, p. 212 63 ib, p. 209 64 ib, p. 211 65 Teixeira (1971), p. 68 66 Lipman (1995), p. 31

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“Houve tempo em que os professores não acreditavam em ensinar sem o castigo físico. Seria tão absurdo propor a esses educadores a supressão da chibata ou da palmatória, quanto em alguns lugares, hoje, propor a organização psicológica das matérias escolares e o ensino por projetos”67

Dewey aponta algumas condições para tornar os projetos educativos. Em primeiro lugar o interesse dos alunos. Esse interesse deve, no entanto, se voltar para coisas ou fatos a partir dos quais se possa desenvolver o pensamento. Em segundo, essa atividade, e os objetos sobre os quais ela se debruça devem ter valor educativo intrínseco. Isso significa que a atividade não pode ser trivial e passageira, ela deve sugerir o exercício de habilidades cognitivas nas crianças. A terceira condição é que a atividade “no decurso de seu desenvolvimento, apresente problemas que despertem novas curiosidades, exijam busca de informações”68. A quarta condição é que o projeto educativo tenha consecutividade, seja passível de desenvolvimento, para que se avance para novos campos do conhecimento, de forma ordenada e articulada com a atividade presente69.

Como estágio mais avançado do processo educativo temos a linguagem e seus diversos usos e funções. Para Dewey, ela é um instrumento do ato de pensar e deve ser utilizada de forma a contribuir com o desenvolvimento do pensamento reflexivo. A linguagem, na sua relevância educacional, é o veículo consciente do pensamento. Para tal, a educação deve transformar a linguagem habitual em instrumento intelectual. Para que isso aconteça é necessário: enriquecer o vocabulário da criança; tornar os termos mais exatos e precisos; faze-la adquirir o hábito de falar de modo coerente70. O enriquecimento da linguagem, no sentido educativo, significa o acesso a palavras que indiquem relações, que possibilitem aplicações mais genéricas, e a palavras que traduzam aspectos individualizados, que levem a um uso mais preciso e concreto do conhecimento71. A prática escolar tende a dificultar o desenvolvimento da linguagem com vistas a formação do pensamento reflexivo quando o professor monopoliza a palavra; quando os alunos são levados a responder perguntas fragmentadas e desconectadas do todo, que tornam-se sem sentido; e a contínua preocupação em não errar, que constrangem e tolhem as iniciativas de pensamento. Como bem salientou Dewey, “ter de dizer alguma coisa é bem diferente de ter alguma coisa a dizer”72. Deve-se reconhecer que a educação é um intercâmbio de idéias, que é conversação, que pertence a um universo voltado ao diálogo73.

Outra dimensão importante que envolve as práticas educativas refere-se ao papel da observação e da informação.

A observação não é um fim em si mesma, o que há de essencial é a questão de fim e resultado a alcançar74. Nesse sentido, ela deve voltar-se para o desconhecido, ela deve implicar em perguntas a serem respondidas, em ansiedade pelo novo, em buscar atingir um fim prático ou teórico75. O estágio mais apurado da observação é quando ela adquire natureza científica, ou seja, observa-se a fim de descobrir a espécie de problema; inventar hipóteses que possam explicá-lo e verificar as idéias assim sugeridas76.

Associado a questão da observação, encontramos o problema da transmissão de informações no âmbito educativo. Para Dewey, “não há questão pedagógica mais importante do que a de saber como tirar proveito intelectual do que as outras pessoas e os livros nos têm a transmitir”77. Para ele, a questão deve ser colocada da seguinte forma: como tratar a matéria apresentada pelo compêndio e pelo professor, para que ela se institua em material de investigação reflexiva? Algumas atitudes são importantes para que tal objetivo se realize. Em primeiro, deve-se resguardar o campo em que é possível a observação direta do estudante. Em segundo lugar, o material deve ser apresentado à maneira de estímulo, deve provocar interesse pessoal. Em terceiro, o material provido pela informação deve ser importante em relação a algum ponto vital da experiência pessoal do aluno: “o ensino de uma noção que não se adapte a algum interesse já vivo na experiência do estudante, ou que, por sua maneira de apresentação, não suscite um problema é, para fins intelectuais, algo pior que uma inutilidade”78.

Dessa forma, as informações devem servir para a organização das experiências passadas dos estudantes de forma a ampliar a sua significação.

Com relação as aulas, Dewey entende que elas têm algumas funções a cumprir79:

67 Teixeira (1971). P. 82 68 Dewey (1959), p. 216 69 ib, p. 216 70 ib, p. 237 71 ib., p.239 72 ib, p. 243 73 Lipman (1995), p. 332 74 Dewey, (1959), p. 247 75 ib, p. 249 76 ib, p. 252 77 ib, p. 254 78 ib, p. 255 79 ib, p. 259

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(1) Estimular e despertar o desejo de atividade inteligente, e incrementar o amor pelo estudo.

(2) Guiar esses interesses pelos canais que lhes permitam realizar trabalho intelectual.

(3) Auxiliar a organizar a matéria adquirida, a fim de verificar sua qualidade e quantidade, e verificar, especialmente, as atitudes e hábitos existentes, com o intuito de assegurar sua maior eficiência no futuro.

Como condições para despertar o desejo e o amor ao estudo, Dewey aponta a necessidade do professor ter interesse pela atividade mental; os compêndios devem ser usados como meios e não como fins, úteis para inspirar indagações e fornecer noções a fim de respondê-las e, por último, e mais importante, deve existir uma viva troca de idéias, experiências, informações, entre os componentes da classe. Para evitar que a discussão acabe em palavreado, é necessário que os alunos justifiquem suas sugestões80. Dewey destaca, também, quanto as aulas, o papel desempenhado pelas perguntas que devem se dirigir tanto para a observação e recordação da matéria, como para o raciocínio do sentido do material presente81.

Quanto a prova ou avaliação, Dewey fixa objetivos bem mais amplos do que o comumente verificado nas escolas. Para ele, “é um erro supor que a necessidade de verificação seja apenas preenchida pelas provas da capacidade de reproduzir o assunto confiado à memória, tal objetivo é incidental”82. O importante é verificar :

(1) o progresso na compreensão da matéria

(2) a capacidade de usar o aprendido como instrumento de ulterior estudo e aprendizagem

(3) a melhoria dos hábitos e atitudes gerais, que são o substrato do pensamento: curiosidade, ordem, aptidão para rever, para resumir, para definir, franqueza e honestidade de espírito e outros83.

Finalmente, quanto ao papel do professor, Dewey afirma ser ele “o líder intelectual de um grupo social”84. Ressalta, também, a necessidade de preparação das aulas, momento em que o prefessor deve fazer uma série de perguntas a si próprio: que bagagem de experiência e estudo anterior trazem os alunos ao assunto atual? Como auxiliá-los a traçar conexões, a fazer relações? Que necessidade, mesmo não reconhecida por eles, constituirá a alavanca que lhes imprimirá à mente a direção desejada? Como individualizar o objeto de aula, isto é, como tratá-lo para que cada aluno lhe possa trazer alguma contribuição particular e para que, por sua vez, a matéria se adapte às deficiências e gostos peculiares de cada um? Fazendo-se essas perguntas, e buscando respondê-las no próprio planejamento de suas aulas, o professor estará dando passos importantes para transformar a educação em algo significativamente relevante para os alunos, de forma a superar a dicotomia, normalmente observada, entre a vida e o que se estuda na escola:

“ensinamos o aluno a viver em dois mundos diversos: um o mundo da experiência fora da escola; outro, o mundo dos livros e das lições. Depois, nós admiramos, estultamente, de que tão pouco valha na vida o que se estuda na escola”85.

Anísio Teixeira tinha a esperança, quando escrevia o seu livro “Pequena Introdução à Filosofia da Educação”, em 1934, de que “dentro de 10 ou 20 anos, ninguém mais tentará o ensino por lições, nem a organização do currículo em matérias escolares, nem a coação intelectual de hoje”86. Reiteramos nós, aqui, as suas palavras; sem tanto otimismo, entretanto em um momento mais complexo e de grandes transformações por que passam o Brasil e o mundo.

Para finalizar, gostaríamos de ressaltar o caráter apreciativo que atribui Dewey à atividade intelectual. Apreciar é atribuir valor. A atividade intelectual, na medida em que implica o pensar reflexivo, atribui valor ao objeto ou ao fato de forma a ampliar substancialmente a sua significação. Dewey quer desfazer a separação existente entre pensar e realizar, entre pensamento e ação, entre pensamento e apreciação pessoal. Ele está preocupado com a separação do homem em duas partes, uma emocional, outra friamente intelectual, uma positiva, outra imaginativa. A proposta metodológica que ele assume como a melhor, e que procuramos expor nessas páginas, visam, acima de tudo, superar essa dicotomia:

80 ib, p. 261 81 ib, p. 262 82 ib, p. 264 83 ib, p. 264 84 ib, p. 269 85 ib, p. 256 86 Teixeira (1971), p. 82

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“Inata e normalmente a personalidade age como um todo. A integração do caráter e mente não se efetua senão pela fusão do intelectual com o emocional, da significação com o valor, do fato com a evasão imaginativa para além do fato, para o reino das possibilidades desejadas”87.

BIBLIOGRAFIA

Abreu, Jayme.Anísio Teixeira e a Educação na Bahia, in Anísio Teixeira: Pensamento e Ação, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1ª ed., 1960.

Dewey, John. La Reconstruccion de la Filosofia, Buenos Aires, Aguilar, 3ª ed., 1955.

Dewey, John.Como Pensamos, São Paulo, Ed. Nacional, 2ª ed., 1959.

Lipman, Matthew. O Pensar na Educação, Petrópolis,RJ, Ed. Vozes, 1995

Teixeira, Anísio.Pequena Introdução à Filosofia da Educação,São Paulo, Ed. Nacional, 6ª ed., 1971

Tudela, Jorge P. El Pragmatismo Americano: Acción Racional y Reconstruccion del Sentido, Madrid, Editorial Cincel, 1ª ed., 1988.

87 Dewey (1959), p. 274

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Ciência Moderna, o Fundamento Unificador em Anísio Teixeira

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Luiz Felippe Perret Serpa1 1. Introdução

Anísio Teixeira e sua obra têm sido fontes inesgotáveis de estudos e análises que já fazem parte da literatura educacional brasileira.

Os trabalhos que se ocupam de Anísio Teixeira, sob os pontos de vista pessoal, acadêmico e profissional, e aqueles que realizam um levantamento de sua produção no campo educacional, apresentam uma relativa consistência ao destacar a sua presença no cenário da intelectualidade brasileira e, particularmente, na área de educação.

Os trabalhos a partir da década de 80, originários dos programas de pós-graduação e de pesquisas em diversas instituições, já não apresentam a relativa consistência dos anteriores. A característica fundamental do conjunto desses trabalhos é a pluralidade de conclusões sobre Anísio Teixeira.

Do conjunto de sua obra, selecionamos aqueles trabalhos em que aparecem mais explicitamente as concepções do autor sobre a história do pensamento.

Em relação à história do pensamento, escolhemos os trabalhos “A Universidade e a liberdade humana”2 e “O espírito científico e o mundo atual”3

A partir desses textos e segundo algumas categorias de análise determinadas pelos próprios textos, apresentamos a concepção de ciência moderna como fundante da obra de Anísio Teixeira.

Em seguida, fazemos uma análise dessa concepção, procurando mostrar as conseqüências principais para o todo da obra.

2. A concepção de Ciência Moderna como fundante.

Anísio Teixeira coloca a importância da história, como perspectiva de compreensão dos problemas e das crises do presente: Muito da ansiedade e sentimento de perigo de nossa época decorre de não querermos ver os problemas e crises do presente dentro da perspectiva histórica, como etapas de um desenvolvimento contínuo da espécie, na sua lenta adaptação ao novo tipo de tradição, que a formulação racional do pensamento vem, há dois mil e quatrocentos anos, procurando implantar e que, a despeito dos rápidos períodos de afirmação, está longe ainda de ser a generalizada e universal tradição da humanidade.4

Em todas as suas reflexões está presente a premissa do evolucionismo no processo histórico, com ênfase mais nas continuidades do que nas mutações: Com efeito, se de muito parece estar encerrada a evolução biológica do homem, a sua evolução como animal racional está apenas iniciada5. A analogia do progresso humano com evolução biológica está presente: Como na evolução biológica, o progresso humano, intelectual e social, não é algo de sempre contínuo e fluente, mas um processo também de saltos e mutações. As fases de seu desenvolvimento constituem superações às condições dominantes, que abrem novos horizontes e novas visões. A superação ao prolongado estágio de marcha ao compasso da tradição veio, afinal a processar-se, quando uma civilização material mais brilhante deu ao homem a parcela de segurança indispensável ao começo de libertação de seu poder mental. Esta nova segurança levou-o a questionar a tradição.6

A procura da gênese do funcionamento do cérebro humano, desde sua origem, e, ao mesmo tempo, a ênfase da importância do pensamento e de sua ligação com a liberdade humana, leva o autor a introduzir o conceito de dualismo.

1 Luiz Felippe Perret Serpa é Professor-adjunto da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 2 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO, São Paulo: Nacional, 1977, 2ª edição, p. 125-148. 3 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.89-114. 4 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.125. 5 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.125. 6 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.90.

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Desde as épocas imemoriais, pode-se admitir, no homem, um como duplo funcionamento do cérebro, levando-o já a ajustamentos realísticos com o meio, já a transfigurações de certos aspectos do meio para uma adaptação simbólica à existência. Para o ajustamento realístico dispunha do saber prático ou empírico; para o ajustamento simbólico ou espiritual, do saber mítico ou religioso. Pelo conhecimento prático, o seu cérebro modificava o meio em que vivia; e pelo conhecimento mítico; por um lado, o romantizava, para melhor suportá-lo e, por outro, dele, de certo modo, se evadir.7 Esse dualismo, do prático e do mítico, tem a possibilidade de superação pela via do racionalismo, por volta de 500 a 400 anos antes da era cristã: Somente por volta de quinhentos a quatrocentos anos antes da era cristã é que duas tentativas intelectuais marcam o aparecimento da possibilidade racional de organização da vida humana – a de Confúcio, na China, e a de Péricles, na Grécia. São dois momentos, entretanto, já de tamanha altura, representando, por certo, o desabrochar um tanto súbito de flor em séculos de germinação silenciosa e invisível vinham preparando, que, se a humanidade fosse algo de uniforme e homogêneo, a civilização, como a compreendemos hoje, teria ganho, desde então, a aceleração a que somente nos últimos três séculos estamos assistindo.8 Para o autor, é o surgimento da arte de pensar, através da tradição ocidental nascida na Grécia, a fonte do racionalismo: Na realidade, este progresso decorria do aparecimento de uma nova arte, da grande arte descoberta para a tradição ocidental pelos gregos, a arte de pensar, de reformular os objetivos humanos, de criticar-lhes as premissas, de especular sobre os pressupostos em que estas se apoiavam e deduzir as conclusões, a arte a que se destinava a criar um novo homem e a fazer das civilizações não o resultado do jogo mais ou menos cego de acidentes históricos, mas a conseqüência do exercício lúcido dos seus recursos mentais, na melhor utilização dos recursos naturais. O problema da liberdade humana, isto é, do livre desenvolvimento do homem só então se ergue ante a sua consciência.9 Em suas reflexões, é explícita a relação entre racionalismo e pensamento grego e a não consideração de outros processos civilizatórios: Na Suméria, no Egito, na Babilônia, ou mais para o Oriente, o homem não sabia se era livre ou tiranizado, aceitando a “organização” imposta à vida, do mesmo modo que aceitavam o sol ou a lua.10 A distinção entre os gregos e as outras civilizações se faz entre explicar a vida e abrir nova perspectiva para o homem: Se quisermos ir mais longe, poderemos dizer que toda a herança do Oriente, inclusive, de certo modo, até de Confúcio, a de Buda e a dos hebreus, nunca passou da fase explanatória e não indagadora, buscando antes explicar por que a vida era assim, do que abrir-lhe uma perspectiva nova.11 Assim, o autor associa, inexoravelmente, aos gregos, a criação do conhecimento racional, a gênese do racionalismo: Descobrindo a razão e formulando o conhecimento racional, os gregos criaram uma nova fonte de direção para o comportamento humano, independente, de certo modo, do determinismo dos costumes e dos hábitos e das condições imediatamente naturais, por isto que todas essas limitações passaram a sofrer a análise da mente humana e a serem traduzidas em idéias e modos deliberados de conduta e ação.12

Com os gregos, referencia os fundamentos de toda a sua produção, racionalismo (ciência) e liberdade (democracia): A contribuição grega consistiu em descobrir um critério para avaliar e sistematizar esse saber conceitual: o critério racional. Tal critério, antes de tudo estético, de proporção, harmonia, medida, constitui, na realidade, o traço que ainda ligaria os gregos a toda tradição do espírito humano – antes poético e mítico, que prático ou realístico.13 Enfatiza a independência; a tradição do pensamento grego é a afirmação da independência do espírito humano:

Se tomarmos Tales, de Mileto, como precursor da nova atitude do homem em face de sua própria mente, veremos que a especulação intelectual de uma classe de estudiosos, desligada de vínculos sacerdotais, isto é, do propósito de guardar e conservar cegamente a herança social, tanto quanto da necessidade de trabalhar materialmente, em pouco mais de duzentos anos, dá-nos Sócrates e Platão, este a erguer, ante o espírito humano, uma hipótese de interpretação do universo do homem, cuja a independência da tradição só é superada pela própria amplitude e que ofusca as precedentes criações místicas da mente humana, como um jorro de luz apaga as incertezas e sombras da obscuridade. Com ele, a independência do espírito humano se afirma. O processo contínuo de criação da mente, tomando consciência de si mesmo, faz-se intencional, voluntário, especulativamente experimental, e se critica e se revê nas suas hipóteses e tentativas.14

Ressalta o nascimento de uma nova força de organização associada ao pensamento grego e que independe de força bruta:

7 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.89. 8 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.126. 9 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.126. 10 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.127. 11 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.127. 12 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.127. 13 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.90. 14 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.91.

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Nascera, na vida humana, uma nova força de organização, independente da força bruta, independente da tradição estabelecida, que são as vicissitudes que são a nova força e de sua luta para fundar um regime de liberdade humana que vão constituir a história da espécie nestes últimos vinte e quatro séculos.15 Descreve a produção dos gregos como a disciplinação do arbítrio, do inconseqüente e do obscuro na história da mente humana:

A disciplinação do poder conceitual, assim obtida, mesmo como pura experiência especulativa, era a disciplinação do que havia de mais arbitrário, mais inconseqüente, mais obscuro na história da mente humana. Os gregos, por meio de seus jogos intelectuais com as figuras geométricas e as relações matemáticas, descobriram que certas proporções e certas medidas, achadas em suas manipulações com aquelas figuras e com os números, existiam no que lhes parecia belo e composto, e fundaram, na equivalência encontrada, as suas generalizações de harmonia, simetria e sistema. Por outro lado, as especulações lógicas desvendaram as relações semânticas e proposicionais e lhes permitiram formular a lógica do discurso, com os seus processos dedutivos e indutivos.16 Na análise da produção intelectual dos gregos, tem-se como referência à ciência da modernidade, quando coloca as limitações de senso comum:

A observação continuava, em verdade, com as graves deficiências do passado. A ênfase estava na concepção, na descoberta de certas fórmulas matemáticas e lógicas de interpretação da realidade. A observação era utilizada tal qual existia no senso comum da espécie.17 Atribui uma dupla função no curso da História da contribuição grega: dar direção ao pensamento como agente supremo da liberdade humana, mas também como fonte dos desvios paralisantes:

Se essa foi a grande contribuição da Grécia, obtida graças à sua análise do pensamento, pela qual tomou o pulso e deu direção a este mesmo pensamento, mostrando que podia ele iniciar e determinar a ação, e não apenas se seguir à ação, - daí o lhe reconhecermos a função sem par de agente supremo da liberdade humana – também aí é que se encontra a fonte de todos os desvios paralisantes sofridos pela humana capacidade de pensar no seguinte curso da História.18 Anísio Teixeira limita a ação dos gregos à impossibilidade de eles questionarem o próprio senso comum: Não chegaram à revisão do processo especulativo da mente humana e o reajuste à observação do senso comum. Não chegaram à revisão do processo de observação; mas aí não chegaram porque não lhes poderia ocorrer ainda questionar o próprio senso comum.19 É interessante a interpretação a respeito da transformação intelectual na Grécia, atribuída a uma “mutação”, e ao mesmo tempo do processo histórico que se seguiu à civilização grega, apresentado como uma perda do “tom” do pensamento grego: Não se pode negar, com efeito, a existência de saber antes da idade de ouro helênica e de estudiosos e cultores do saber. Todos, porém, eram de uma espécie muito mais velha e que se havia de revelar bem mais forte e resistente do que o novo tipo surgido com a “mutação” intelectual ocorrida na Grécia.20 Ao identificar no subseqüente processo histórico a influência dos gregos, ressalta a perda da tolerância e da independência: `Sob a influência helenística, com os romanos, se elaboraram a moral estóica, os rudimentos de ciência latina, certas técnicas de construção civil, o Direito romano, a interpretação paulina do cristianismo e, com Santo Agostinho, renasce a flama criadora nas suas especulações platônicas sobre a “doutrina da Graça”. Mas, perdera-se o tom do pensamento grego, a sua independência e a sua tolerância, aquela extraordinária tolerância grega...21

Anísio Teixeira mantém a concepção da continuidade histórica, apesar das “paradas”, “parênteses” e “divagações” e faz uma periodização, na qual a referência básica é a modernidade. Por essa razão, só considera a “retomada” do elo perdido a partir do meio para o fim da Idade Média:

De qualquer modo, chegamos, com os gregos, ao que já podemos considerar as origens do nosso mundo moderno. Começa, então, o homem a formular intelectualmente a sua experiência em uma filosofia e uma ciência, cujo desenvolvimento, a despeito de paradas, de parênteses e divagações, no fundo não mais se interrompe e vem, de estágio em estágio que menos se negam do que se superam, reconstruindo a visão do mundo e dirigindo a civilização humana.22

O reencontro com a cultura helênica, após um hiato de quase dois mil anos, o autor vai identificá-lo no século XVII:

15 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.128. 16 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.92. 17 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.93. 18 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.129. 19 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.92. 20 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.130. 21 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.130. 22 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.96.

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Mais de dois milênios hão de transcorrer, com efeito, até que pudéssemos assistir, no século dezessete, ao início de um novo período, que lembra o poder criador helênico. O renascimento ainda não fora esse período. O renascimento é apenas o reencontro com o pensamento helênico e deste o eco. Já não é mera reprodução acadêmica, mas ainda é imitação de limitado alcance. A nova fase criadora vem, depois, com os pensadores dos séculos dezessete e dezoito e a função definitiva da ciência, como a concebemos hoje.23

Introduz um conceito de desaceleração do processo histórico, através dos cristãos e sua teologia, apoiado no dualismo do absoluto e contingente: Deste modo substituíram os gregos, é certo, a linhagem cabalística, mítica e ritual dos sacerdotes, dos profetas e dos magos, mas para criar, não ainda a dos cientistas, como os entendemos hoje, e sim a dos escolásticos, antecessores dos nossos professores de hoje. A nova classe intelectual, já destacada do sacerdotal, está interessada no conhecimento pelo conhecimento; é uma nova espécie de contemplativos, cheios de curiosidade, no sentido alto da palavra, mas de curiosidade pelo reino do absoluto, do imutável e do eterno, e de desdém pelo mundo contingente, mutável e fruto dos mortais. (Um novo sacerdócio, o cristão, viria apoiar nesse dualismo a sua teologia, e, por mais alguns séculos, retardar a marcha da inteligência humana, mumificando a filosofia e ciência dos gregos como algo definitivo e perene, de que o espírito humano não mais pudesse nem devesse libertar-se)24 Ressalta, nessa trajetória histórica pós-helênica, o conflito entre instinto e razão como fator de desaceleração do processo:

A experiência intelectual grega, com efeito, a despeito da formulação magistral de Platão e Aristóteles, a princípio como que se esconde, refugiando-se na escola de Alexandria, e deixando de exercer a influência efetiva e maciça que se poderia dela esperar. A realidade é que o homem só gradualmente poderia evoluir do seu estágio de integração instintiva para o novo estágio de pensamento racional e de integração bem mais difícil, em virtude dos conflitos criados entre o instinto e a razão. A organização monolítica do hábito e da força continua, assim, a dominar e, salvo a obra de governo e de Direito que o poder romano produz, só viemos a reencontrar algo de novo, já do meio para o fim da Idade Média, com a instituição de organizações sociais independentes do poder dominante e destinadas a normalizar e, pelas normas, controlar as relações humanas, à margem do exclusivismo dos poderes senhoriais propriamente políticos, fossem profanos ou divinos.25

Enfatiza a pluralidade de instituições independentes e corporativas na Idade Média, aos quais atribui a origem do Estado moderno: A Idade Média se caracteriza pelo feudalismo, pelas corporações, pelas universidades e pela Igreja, isto é, um extraordinário contexto de instituições independentes e variadas, a dar-nos a primeira civilização corporativa da História. Cada uma dessas instituições era uma forma nova de organização das “liberdades” humanas. Certos conjuntos de interesses ou de objetivos logravam “reconhecimento” e obtinham, em face desse reconhecimento, a “liberdade” de se auto-organizarem. A Igreja, como se constituíra antes, nem sempre é considerada como uma das “corporações”, mas, na realidade, nada mais é do que a maior de todas elas, fornecendo o primeiro exemplo da pluralidade de forças organizadoras, a que a Idade Média iria dar origem.26 Anísio Teixeira atribui à Universidade medieval a corporação que retomava a tradição do “saber racional”:

A corporação era, como sugerimos, uma “liberdade” organizada. Na sociedade de artesãos e mercadores, que veio a configurar, por último, a Idade Média, as unidades corporativas eram o comércio e os ofícios (indústria), que se baseavam nas atividades e artes empíricas e tradicionais da espécie. O conhecimento artesanal não era “racional” ou “científico”, mas de tirocínio, e se transmitia pelo aprendizado direto. E as atividades comerciais nem disso precisavam.

A universidade, entretanto, era a corporação das artes liberais, isto é, das artes baseadas no conhecimento racional conscientemente elaborado. Esta corporação é a que retraduzia, em linguagem medieval, a escola de Atenas e de Alexandria, e retomava a tradição do “saber racional”, e o reinstalava nas condições de independência que o regime da Idade Média acabou por permitir ao mesmo consagrar.27

Associa o pluralismo de instituições à organização da liberdade humana e seu controle:

A maior contribuição da Idade Média ao Estado moderno consistiu em haver originado a experiência do pluralismo de instituições destinadas a organizar a liberdade humana e, por este modo, a controlá-la.28

O surgimento da ciência moderna é apreciado pelo autor através da legendária experiência de Galileu, ao qual atribui a criação do “critério da experimentação”. Por outro lado, indaga sobre a permanência do dualismo prática/teoria, empírico/racional, manual/intelectual, ação/pensamento e útil/espiritual, para responder através da dificuldade de mudar os hábitos humanos:

23 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.133. 24 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.97. 25 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.131. 26 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.133. 27 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.134. 28 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.138.

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A realidade é que a ciência, como a concebemos hoje, somente pôde surgir, e em verdade surge, com a vitória dos métodos da observação sobre os métodos da pura especulação, de que se faz símbolo a famosa e legendária experiência de Galileu na torre de Pisa. Nesse dia, encerram-se os “infindos debates” da Idade Média , a que se refere Whitehead, e, assim como os gregos criaram o “critério racional”, para a avaliação e a crítica das nossas idéias e intuições, Galileu cria o “critério da experimentação”, para guiar a nossa observação e rever as nossas intuições, conceitos, idéias e julgamentos.29

O caráter de complementaridade para a superação do dualismo é atribuído às obras dos gregos e de Galileu:

Se os gregos deram ao nosso modo intuitivo de conceber o Universo ou à Ordem Conceptual, as suas leis matemáticas e lógicas, Galileu e seus sucessores deram à Ordem da Observação os seus métodos, os seus instrumentos, a sua gradual e crescente exatidão. Nenhuma das duas Ordens poderia mais existir sozinha frutuosamente. Enquanto estiverem ou estejam isoladas, a observação não passa, entre os antigos, do nível do senso comum, isto é, é grosseira, defeituosa e inexata; e, entre os modernos, misteriosa acumulação de fatos; e a especulação conceptual, por seu lado, de racionalizadora e não analítica, embora muitas vezes, bela e harmoniosa. A aliança entre as duas Ordens é que irá tornar ambas fecundas e produzir o progresso acelerado em que começamos a entrar do século XVI em diante, até os dias quase sem fôlego de hoje.30

Relaciona o método experimental à essência do processo de obter conhecimento:

Estabelecido o método experimental, identificado em sua essência, o processo de obtermos conhecimento e o saber com método empírico, sistematizada, purificada e refinada, e sempre conduzida toda a ação prática humana e a aquisição pelo homem de suas artes seus modos de viver, - por que se mantém até hoje a distinção (na realidade, o dualismo), entre a prática e a teoria, o empírico e o racional, o manual e o intelectual, a ação e o pensamento, o útil e o espiritual? É que os hábitos humanos são difíceis de mudar.31

A associação entre o Estado e a Ciência na modernidade é explícito na concepção do processo histórico. Na base do raciocínio estão a liberdade e o racionalismo:

O Renascimento, o Humanismo e a Reforma iniciaram, o instrumento, logo depois, o período de intensa e consciente revisão, em que o indivíduo ligado e religado na rede de instituições que lhe organizavam a vida e que se haviam tornado decadentes, na época medieval, se sente não libertado mas tolhido e empreende as suas jornadas libertárias, que culminam com a revolução inglesa, americana e a francesa, todas baseadas em certo absolutismo individualista, que, entretanto, corrigiria o seu inevitável anarquismo por meio do ávido recurso criado pela descoberta rousseauniana da idéia de “contrato social”. O individualismo da época é, sob certo aspecto, um retrocesso, pois permite a volta ao poder absorvente dos governos. Mas, temos, daí por diante, o homem cada vez mais consciente dos seus esforços deliberados de organização social, chegando, mais tarde, a querer reduzir a atos de vontade a própria criação do Estado. A revolução americana, por exemplo, é a afirmação eloqüente dessa nova força das idéias sobre a tradição, os hábitos e os costumes, plasmando uma nação e logo um Estado, por ato expresso de um conjunto de vontades individuais.32

Atribui, como essencial, à liberdade no Estado moderno a independência das instituições que promove o saber humano: A condição essencial para liberdade do Estado moderno está com efeito, acima de tudo na independência das instituições que guardam, aplicam e promovem o saber humano, isto é, as profissões chamadas liberais e a universidade, em face do Estado, ao qual cabe velar por elas, mas jamais interferir em sua área de ação ou na consciência profissional de seus agentes.33

É através do saber e da ciência que o homem obtém o poder e o põe em ação por meio das instituições sociais:

O saber organizado constitui, verdadeiramente, a nova fonte do poder humano, dirigindo a ação e a conduta do homem, por intermédio das instituições sociais de sua criação. Pelo saber, pela ciência, obtém o homem poder para a concepção dos seus objetivos vitais e o põe em operação por meio das instituições sociais, cujo progresso promove por meio desse mesmo saber, autonomamente organizado e em condições de independência suficiente para se elaborar e renovar constantemente.34 A inteligência cultivada é a base do poder de organização que leva a emancipação humana: As considerações até aqui feitas visam, mais do que tudo, a sublinhar a emancipação humana da completa submissão aos instintos, costumes e tradições, pelo poder de organização obtido pela inteligência cultivada, a acentuar o caráter dinâmico adquirido pela civilização, desde que passou a ser o resultado do progresso do pensamento racional e científico.35

29 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.98. 30 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.99. 31 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.99. 32 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.134. 33 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.135. 34 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.135. 35 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.136.

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A crença na continuidade histórica leva-o a afirmar que se os gregos continuassem suas especulações acabariam chegando à ciência moderna. São os grandes descobrimentos; após um longo período de interrupção, que reabrem os horizontes e permitem a retomada do pensamento grego:

É de crer que, se houvessem podido os gregos continuar as suas especulações, acabassem por chegar ao conhecimento científico, como o concebemos hoje, para sobre ele basear o novo conceito de certeza e de segurança. Mas, a queda de sua civilização, o período romano conseqüente, mais de dominação de que liberdade e toda a segurança e confusão relativamente prolongadas da Idade Média não permitiram que se renovasse condições propícias à continuação da sua vigorosa aventura de inteligência. Somente com os grandes descobrimentos, reabrem-se os horizontes humanos e retomam os renascentistas o pensamento grego para lhe continuarem a carreira interrompida.36

Ao analisar a modernidade, Anísio Teixeira elabora uma periodização, na qual os séculos XVI, XVII e XVIII, sob o ponto de vista da ciência moderna, ainda mantém o espírito de interpretação do universo:

Toda a ciência dos séculos XVI, XVII e XVII ainda mantém o seu espírito de interpretação do universo, de busca da sua Realidade Verdadeira e não o da procura deliberada dos meios de o controlar. A vida do espírito, a vida do saber ainda são a contemplação, já agora da “natureza” concebida como algo de seguro, de definitivo, de permanente...37

O autor identifica na teoria da evolução de Darwin no século XIX e na teoria da relatividade em Einstein no inicio do século XX, os pontos que originaram as idéias contemporâneas.

O dualismo primordial do cérebro humano permanece em face do mundo e do próprio homem:

Continuamos, na realidade, em plena fórmula grega: saber é o conhecimento do definitivo, do absoluto, agora transferido à própria natureza – cujos segredos o homem desvenda para melhor compreender a Realidade e aí encontrar a segurança absoluta por que anseia o seu espírito. A outra segurança, a relativa, a obtida pelo domínio das condições do meio, continua entregue às artes – práticas, liberais e sociais – que, ainda como na Grécia, não são plenamente ciência nem saber.

O dualismo, pois, perdura e responde a atitudes ancestrais do homem, em face do mundo e de si mesmo...

A teoria da evolução, no século XIX, e a teoria da relatividade, já no século XX, pontos altos, talvez os mais altos no desenvolvimento que estamos encarando, é que vêm, afinal, dar-nos as idéias modernas de hoje, pelas quais passamos a compreender o universo e o homem como processo dinâmico de criação permanente, em que natureza e homem não se distingue, mas são partes do mesmo processo. Nesse processo, há começos, continuidades, repetições, terminações – constantes e variáveis – que permitem plano e previsão. E isto é tudo que agora resta das idéias gregas de sistema, de harmonia, de acabado e de perfeito. De posse, afinal, o conhecimento científico das relações e inter-relações dos processos do mundo físico e do mundo biológico, entramos a produzir voluntariamente, as condições necessárias para pô-los mais do que nunca a nosso serviço.

E, então, a ciência deixa de ser apenas a explicação do universo para se fazer o instrumento do seu possível e progressivo controle. A velha profecia de Bacon em que o saber era poder fez-se realidade.38

Em relação às liberdades e ao Estado moderno, reitera sua argumentação baseada no pluralismo:

Quando o século XVIII julgou poder pulverizar todas as corporações, para um retorno ao indivíduo, vimos como a universidade resistiu, um tanto inexplicavelmente, ao impacto e emergiu para a civilização contemporânea, guardando muito do seu caráter e, no mundo anglo-saxônio, guardando-o quase em sua totalidade, e salientando quanto foi isso significativo para a redução do mito da soberania absoluta e a constituição do pluralismo institucional do Estado moderno, sobretudo na área de tradição anglo-saxônia, pluralismo que nos parece essencial para os aspectos de liberdade que estamos analisando.39

Reafirma a importância do racionalismo como instrumento para o homem atingir a sua maturidade:

O desenvolvimento do saber aumentará constantemente a área da direção dos homens pela razão, constituindo-se, desse modo, o instrumento pelo qual ele virá atingir a sua esperada maturidade.40 Associa a razão à função primordial das instituições sociais: A universidade, como guardiã, transmissora do saber e da experiência, as igrejas e as profissões, como corpos autônomos de aplicação do saber, as uniões ou sindicatos, como sistema de defesa de interesses legítimos do trabalho, e o governo, como força vigilante, para que todo mecanismo institucional funcione, sob a égide da lei, 36 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.101. 37 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.101. 38 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.102. 39 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.138. 40 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.140.

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em cuja elaboração se deve levar em conta ser vedado ao Estado e seu governo, interferir no campo já conquistado do saber e da consciência profissional, - tal será o regime livre e progressivo, que devemos buscar, para implantação gradual e cada vez mais ampla da razão na vida humana.41 Desenvolvendo as questões contemporâneas, reitera a concepção de dualismo e vê como perspectiva a superação através da ciência: Os dualismos entre saber mítico e saber empírico, depois entre o saber racional e o saber prático, entre saber teórico e saber usual, encontram-se, por certo, em fase de desaparecimento, mas não sem choque, pois o espírito humano resiste muito à perda de hábitos milenares.

A sobrevivência dos dualismos agora, por exemplo, se insinua, de forma sutil, do dualismo entre saber científico (o dos fatos) e o saber moral e social, isto é, dos valores, fins e objetivos da vida humana. Costumamos dizer que a ciência nos dá os meios, o poder; mas nada pode dizer em relação aos fins com que aplicamos esses meios. Na realidade, ainda é a concepção do homem como algo de estranho à natureza ou ao universo. Quando muito se aceita que certos fins, como saúde, conforto, segurança física, os fins chamados práticos da vida, podem ser e são resolvidos pela ciência. Mas, os fins tidos como altos, nobres, superiores, sobre estes nada pode dizer a ciência...

Esta é a última forma que assume o velho dualismo, produzindo, como conseqüência, o progresso das técnicas chamadas materiais e a estagnação dos costumes sociais, morais e políticos.42

Com este raciocínio, enfatiza a neutralidade da ciência e se propõe a estender o “critério da experimentação” à ciências sociais:

A ciência da eletricidade não nos manda fazer uma lâmpada ou motor elétrico, habilita-nos a fazê-los. E se os fazemos é para atender a uma necessidade humana. Ora, as necessidades humanas são também fatos que podem ser estudados, como são estudados no mundo físico. A ciência ou as ciências dos fatos sociais, econômico, políticos e morais irão habilitar-nos como as ciências do mundo físico, a realizar os fins humanos.43 Anísio crê que dessa forma se vencerá o dualismo entre “fins materiais da vida” e os “fins superiores ou espirituais”: Do mesmo modo que damos como certos e seguros os fins mais óbvios da vida: saúde, alimentação, casa, vestuário, etc. - os chamados “fins materiais da vida” -, também haveremos de chegar a dar segurança e controle aos chamados fins superiores ou materiais: o do governo da liberdade humana, o da realização da fraternidade e o da felicidade pessoal e coletiva.44 Reivindica a integração do mundo físico e do mundo moral, através de um só corpo de crença:

Identificado o processo do saber prático e do saber científico, temos de elaborar uma filosofia que realmente os integre em um só corpo de crenças, relativas ao mundo físico e ao mundo moral, capaz de nos conduzir e guiar nesta etapa conjunta a que chegamos de nosso desenvolvimento.45 A perspectiva contemporânea de Anísio Teixeira contempla a neutralidade da ciência, a íntima relação entre a ciência e a liberdade, a partir de uma concepção evolucionista de continuidade histórica: A etapa de hoje será a definitiva consagração da visão prática da vida, em que o homem, integrado em seu mundo, busque a sua segurança e a sua certeza, não já em um outro mundo, seja a razão absoluta dos gregos, seja o do sobrenatural da teologia, mas nos controles científicos que lhe permitem dirigir o mundo material e lhe comecem a dar efetivamente o controle do mundo social e moral.46 Para alcançar essa integração, reitera a continuidade histórica no plano de periodização de intervalos distintos: Com efeito, a nossa espécie existe, digamos, há um milhão de anos, mas somente há pouco mais de seis mil anos descobriu a agricultura. Há apenas uns dois mil e quinhentos anos, descobriu a sua própria inteligência e criou a filosofia. Apenas há uns trezentos anos atrás, descobriu propriamente a ciência, como a concebemos hoje. E somente há uns cento e cinqüenta47 anos, aproximadamente, entrou a aplicá-la à vida, sob a forma de tecnologia e em substituição às práticas e artes empíricas das lentas civilizações anteriores.

Atribui o autor à ciência a superação da crise contemporânea:

Confesso que contemplo toda essa impaciência não sem alguma apreensão, - seja dos capitalistas que julgam que a riqueza lhes vai escapar das mãos, seja dos comunistas, que julgam necessário impôr à força o progresso material, - mas, não consigo que minha apreensão obscureça a crença em que estou de que o homem superará mais esta crise e se habituará à posse da ciência, saindo da fase de alquimia econômica e social, não para nenhum milênio, mas para enfrentar adequadamente os problemas bem mais interessantes que o esperam, quando o problema material básico (este terrível problema em que se vem esvaindo) ficar, afinal, resolvido, e, na

41 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.140. 42 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.103. 43 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.104. 44 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.104. 45 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.106. 46 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.107. 47 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.107.

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progressiva e nova estabilidade em que ingressar, volte o homem a cuidar dos problemas da distinção humana, não já de uma classe nem de alguns indivíduos, mas de todos e cada um dos indivíduos componentes da sociedade.48

Como perspectiva histórica enfatiza a evolução para uma civilização industrial e democrática, reivindicando uma nova cultura para um novo homem:

... a vida evoluiu para a civilização industrial e democrática dos tempos modernos, com seus inúmeros problemas de crescimento, desajustamentos e deslocamentos de toda ordem. Estamos a ser desafiados por esses problemas, que somente se resolverão pela criação de uma nova cultura adaptada às condições novas de nossa época. Nenhum dos modelos passados de cultura de classe, ou, em rigor, de cultura aristocrática, pode servir de padrão à cultura que nos cumpre criar para os tempos democráticos de hoje, não uma classe, mas cada indivíduo deva adquirir a distinção que lhe for própria.49

Relaciona o progresso material à aplicação da ciência moderna independente dos sistemas sociais e políticos:

Os Estados Unidos ou a União Soviética somente são o que são, em virtude do avanço tecnológico a que ambos chegaram. Tanto é isto verdade que os sistemas sociais e políticos são diversos ou até opostos, mas os resultados são semelhantes, - o que faz pensar, se não prova, que, para o progresso material, não importa tanto aqueles sistemas, quanto a aplicação maior ou menor da ciência...50

Enfatiza o desbalanceamento entre os êxitos no mundo material e aquele no campo social e moral:

Até o presente momento, os êxitos do mundo material têm obscurecido os seus ainda pequenos êxitos no campo social e moral. Tudo nos leva, entretanto, a crer que o homem venha na segunda metade, já em curso deste nosso século, a atingir a maturidade necessária para experimentar em sua vida social e emocional os métodos com o que vem transformando a vida material, ou métodos de eficiência e alcance equivalentes.51

Finalmente, levanta a questão da relação entre ciência e poder no mundo contemporâneo, defendendo a relação íntima entre democracia e ciência:

Mesmo no estado democrático, as condições de vida do homem são as de submissão a uma ordem que ele já não controla, dada a amplitude de seu alcance e aos detalhes de sua ingerência. Se essa ordem se fizer injusta e inumana, haverá meio de poder o homem dela se libertar ou de modificá-la pela sua atuação voluntária? Ou, não lhe restará outro meio senão submeter-se como se vem submetendo-se?52

Enfatiza a democracia como método para corrigir a concentração de poder material:

O governo democrático é o método para corrigir os perigos da concentração de poder material e de poder econômico da vida moderna. Mas o governo democrático para se desenvolver democrático e se aperfeiçoar como tal, exige cuidados especiais dos governantes e dos governados. Exige, primeiro, a mais extrema divisão do poder político, por meio de um regime da maior descentralização possível. Tudo que puder ser confiada à responsabilidade local e à cooperação voluntária dos indivíduos, lhes deve ser confiado. E o regime eleitoral, por outro lado, deve ser de ordem a dar ao indivíduo o sentimento de que seu voto conta.53

Para sedimentação de uma sociedade democrática, o autor reivindica a fecundidade da “atitude científica”:

... nenhuma atitude será mais fecunda do que a atitude científica. Tal atitude significa, em essência, a negação de qualquer dogmatismo e a permanente confiança nos métodos organizados de usar a inteligência, tais como se apresentam no mundo da ciência; capazes de progresso e de perene auto-correção. A idéia de causalidade e o método de tudo julgar à luz das conseqüências constituem, na realidade, uma regra de confiante vigilância, que nos pode levar, na vida política, na vida social e na vida moral, aos mesmos progressos a que já nos levaram na vida material.54

E é a generalização do espírito científico a forma como se apresenta a ciência moderna em Anísio Teixeira como fundante: A generalização do espírito científico a todos os aspectos da vida é, nos dias de hoje, o mais seguro penhor do progresso político, social e moral do homem, e, em verdade, seu melhor guia, seu melhor conselheiro e seu melhor viático.55

3. Análise e Conseqüências da Ciência Moderna como fundante Necessitamos, antes de empreender a análise, explicitar, sucintamente, as concepções de História, necessariamente relacionadas com as concepções do conhecimento.

48 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.108. 49 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.144. 50 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.109. 51 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.106. 52 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.111. 53 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.112. 54 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.113. 55 TEIXEIRA, Anísio. IN: EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. Op. Cit., p.114.

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O processo de conhecimento pode ser reduzido a três modelos56, a partir da relação sujeito-objeto. O primeiro modelo propõe que o objeto do conhecimento atua sobre o aparelho perceptível do sujeito, que é um agente passivo. O conhecimento então é o produto do processo e supõe-se que é a cópia do objeto. Esse modelo é uma construção mecanicista da teoria do reflexo. O conhecimento seria análogo ao resultado da impressão da radiação, refletida no objeto, e registrada em uma placa sensível. Associado a esse modelo, desenvolveu-se concepção positivista da História, a qual afirma que o conhecimento histórico é possível como reflexo fiel dos fatos do passado, sem nenhum fator subjetivo. Nessa concepção, o historiador e o objeto histórico não mantém nenhuma interdependência. Assim, admite-se que a história existe não só objetivamente, no sentido ontológico, mas também como estrutura gnoseológica. O segundo modelo do conhecimento propõe o oposto do primeiro. Na relação sujeito-objeto, a atenção nesse modelo está centrada sobre o sujeito. Assim, o conhecimento é o resultado da atividade do sujeito que constrói o objeto. Enfatiza-se o fator subjetivo do processo cognitivo. Em algumas filosofias, supõe-se até a não existência do objeto sob o ponto de vista ontológico. Nesse modelo, sob o ponto de vista gnoseológico, o sujeito constrói o objeto do conhecimento a partir de sua atividade. Considerando-se a metáfora da fotografia, o conhecimento não seria o resultado da impressão da radiação, refletida no objeto, e registrada em uma placa sensível, como na concepção positivista, e, sim, o resultado da ação do fotógrafo, mediado pela máquina. Temos então uma construção idealista do conhecimento. Relacionado a esse modelo há uma concepção de História – o presentismo – que considera a história como uma projeção do pensamento e dos interesses presentes sobre o passado. Assim, o conhecimento histórico é resultante da atividade do historiador e da época em que vive. Admite-se que a história eqüivale ao pensamento sobre a história.

Uma das variantes do presentismo foi formulada pelo filósofo americano J. Dewey:

Toda a construção histórica é necessariamente seletiva.

Como o passado não pode ser reproduzido in totun e ser objeto de uma nova experiência, este princípio pode parecer demasiado evidente para merecer ser qualificado de importante. No entanto, tem a sua importância porque a sua aceitação obriga-nos a reparar no fato que na elaboração da história, tudo depende precisamente do princípio em virtude do qual controlamos os fatos e selecionamos os acontecimentos. Este princípio decide a importância que se deve atribuir aos acontecimentos passados, o que se deve aceitar e o que se deve rejeitar; decide igualmente o modo de interligação dos fatos selecionados.

Além disso, se a seleção é reconhecida como um fato primário e fundamental, devemos admitir que toda a história é necessariamente escrita do ponto de vista do presente e constitui – o que é inevitável – não só a história do presente, mas também a história do que o presente julga ser importante no presente.57

O terceiro modelo do conhecimento é a proposta de Marx, que admite a existência do objeto sob o ponto de vista gnoseológico, mas considera o conhecimento como resultante da atividade do sujeito, compreendido ele mesmo como um conjunto de relações sociais. Assim, sujeito-objeto formam uma unidade de contradição, cuja superação é o conhecimento. Esse modelo, denominado materialismo histórico dialético, contém a concepção da História. Esta é conceituada pelo movimento da unidade de contrários sujeito-objeto, dado pela dinâmica das múltiplas relações materialmente determinadas. Todo conhecimento é histórico e dialético. Nesse modelo, a fotografia é a resultante da unidade de contrários fotógrafo-fotografado, definida pelas múltiplas relações materialmente determinadas.

Assim, na concepção do materialismo histórico dialético, a história além de ser objetiva, é a ciência fundamental.

Anísio Teixeira insere-se no segundo modelo.

Em Anísio Teixeira, o que o presente julga ser importante no presente é uma determinada compreensão da ciência moderna, o que a torna a referência fundamental para toda a obra desse educador.

Do ponto de vista evolucionista a potencialidade do desenvolvimento da ciência está localizada em épocas imemoriais, ao admitir o duplo funcionamento do cérebro humano: ajustamentos realísticos com o meio e adaptação simbólica à existência. É óbvio o conceito mediador do dualismo nesse caso: o prático e o mítico.

A possibilidade racional de organização da vida surge com Confúcio, na China e com Péricles, na Grécia. No entanto, o autor não considera o processo chinês, e sim que a gênese do racionalismo vem através da tradição

56 SCHAFF, Adam. HISTÓRIA E VERDADE, São Paulo: Martins Fontes, 1986. 57 DEWEY, J. THE THEORY OF INQUIRY, Nova York, 1949 APUD SCHAFF, Adam. Cap. 1, Parte II in História e Verdade, p. 118.

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ocidental nascida na Grécia. O evolucionismo toma essa direção, porque a referência básica é a ciência moderna, a qual se afirmou historicamente no Ocidente.

A opção da gênese do racionalismo a partir da civilização grega se dá então em função da referência da ciência moderna.

O processo histórico é suposto contínuo. A transformação intelectual na Grécia, atribuída a uma “mutação’’, é considerada contínua, porém com a perda de ‘’tom’’ do pensamento grego.

A atribuição da perda de ‘’tom’’ a esse processo contínuo deve-se, mais uma vez, à referência presentista da ciência moderna.

Essa perda de ‘’tom’’ pode ser considerada como anacronismo.

É na periodização do espaço-tempo histórico que demonstra com mais ênfase a referência à ciência do presente. Espacialmente, como já dissemos, optando pelo Ocidente como o lócus da gênese do racionalismo. Temporalmente, demarcando quatrocentos a quinhentos anos antes de Cristo como a referência temporal do racionalismo. Após os gregos, considera que houve um hiato de quase dois mil anos e o reencontro desse racionalismo somente no século XVII. O elemento mediador para a compreensão desse hiato ainda é o conceito de dualismo. Apoiado na questão do absoluto e contingente, introduz a hipótese de desaceleração do processo histórico. Recorre ainda ao dualismo do instinto e da razão.

Desaceleração em relação a que? Evidentemente, em relação ao processo histórico contínuo e evolucionista na direção da ciência moderna. As categorias de continuidade e de evolucionismo são tão marcantes, a ponto de supor que se os gregos continuassem suas especulações acabariam chegando à ciência moderna.

Em relação ainda à periodização, mesmo identificando a gênese da ciência moderna com Galileu no século XVII, considera os séculos XVI, XVII e XVIII com o espírito de interpretação do Universo. Somente o século XIX, com a teoria da evolução de Darwin, e o século XX, com a teoria da relatividade de Einstein, são para o autor a demarcação da ciência como instrumento do possível e progressivo controle do universo.

Mais uma vez, utiliza o conceito de dualismo para explicar a periodização, ao afirmar que a fórmula grega permanece: o saber é o conhecimento do definitivo, do absoluto, enquanto o domínio das condições do meio continua entregue às artes plásticas, liberais e sociais. Assim o dualismo permanece, respondendo a atitudes ancestrais do homem em face do mundo e de si mesmo.

Compreende o autor, citando Whitehead, que o trabalho de Galileu é a criação do ‘’critério da experimentação’’, assim como os gregos criaram o ‘’critério racional’’. É evidente o caráter cumulativo, contínuo e evolucionista do processo histórico.

A nova ciência de Galileu é a retomada do ‘’critério racional’’ dos gregos, associada ao ‘’critério da experimentação’’, e é a aliança entre essas duas ordens, conceitual de observação, que irá tornar ambas fecundas. A superação do dualismo encontra-se na evolução do conhecimento científico, ratificando a ciência moderna como o que o presente julga importante no presente.

Chega a traçar como perspectiva histórica à superação do dualismo através da generalização do ‘’critério da experimentação’’, reivindicando a integração do mundo físico e do mundo moral em um só corpo de crença, extraído dessa generalização.

Esta perspectiva está baseada em um processo histórico contínuo, cumulativo e evolucionista, através do qual a ciência moderna é a referência fundamental para todo o processo.

As conseqüências principais decorrentes dessa análise são:

a) A referência fundamental do que o autor julga como importante no presente é a ciência moderna, compreendida como formada em um processo histórico contínuo e evolucionista, tendo sua gênese no racionalismo grego e sua complementaridade no ‘’critério da experimentação’’.

b) A liberdade humana associada ao racionalismo tem sua realização através da generalização dos critérios da ciência moderna; esta generalização fundará uma sociedade e um Estado democráticos.

c) A sociedade democrática é entendida como a superação do último dos dualismos – valores materiais e valores morais – através da generalização da ‘’atitude científica’’.

d) O Estado democrático é compreendido através da pluralidade de instituições sociais, com total independência para aquelas que lidam com o conhecimento científico; em particular, a Universidade.

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e) É a ‘’atitude científica’’ o fundamento para se superar o último dos dualismos – fins práticos e fins nobres – disseminando-a para todos os indivíduos através da escola única.

Em conseqüência, pode-se inferir que a concepção de ciência moderna é o fundante em toda a obra de Anísio Teixeira.

BIBLIOGRAFIA

DEWEY, J. THE THEORY OF INQUIRY, Nova York, 1949 APUD SCHAFF, Adam. Cap. 1, Parte II in História e Verdade, p. 118.

TEIXEIRA, Anísio.EDUCAÇÃO E O MUNDO MODERNO. São Paulo: Nacional, 1977, 2ª edição.

SCHAFF, Adam. HISTÓRIA E VERDADE, São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

O Planejamento Nacional da Educação Brasileira1

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Anísio Teixeira

Confesso que uma reunião como esta me comove muito mais do que se poderia imaginar. Tinha a impressão que à medida que envelhecesse diminuísse a minha capacidade emotiva; venho verificando que será talvez o contrário; cada vez me sinto mais sensível ao terrível drama educacional brasileiro. Peço aos meus colegas um pouco de paciência, porque vou preceder as considerações e observações que desejo fazer, com duas citações, uma delas extremamente remota. Há 180 anos, o grande historiador inglês, William Gibbon, autor do “Declínio e Queda do Império Romano”, encerrava a sua magnum-opus, levantando uma questão. Esta parte do seu livro deve ter sido escrita em 1785 e publicada em 1787, dois anos antes da Revolução Francesa. E vejam o que William Gibbon, que representava o que de melhor havia no pensamento liberal da Europa, perguntava: - Poderia a civilização vir jamais a sofrer novamente colapso igual ao do Império Romano? A sua resposta, que ilustra, admiravelmente, o estado de espírito da Europa, naquele tempo, foi a seguinte: “Esta horrível revolução, - a queda do Império Romano - poderá ser utilmente aplicada na proveitosa instrução da era presente. É dever do patriota preferir e promover o interesse exclusivo e de glória de seu país natal, mas um filosofo pode se permitir a liberdade de alargar a sua visão e considerar a Europa como uma grande república, cujos diversos habitantes atingiram quase o mesmo nível de polidez e de cultura. O equilíbrio das forças continuará a flutuar e a prosperidade de nosso próprio reino ou dos reinos vizinhos será, alternadamente, exaltada ou abatida. Mas tais acontecimentos parciais não podem ferir, na essência, o nosso estado geral de felicidade. O sistema de artes, de leis e costumes distingue, vantajosamente, acima do resto da humanidade, o mundo europeu e as suas colônias; as nações selvagens do Globo são os inimigos comuns das sociedades civilizadas. E podemos indagar com ansiosa curiosidade, se a Europa está ainda ameaçada de um repetição das calamidades que vieram outrora ferir de morte as armas e as instituições de Roma. Talvez as mesmas reflexões possam ilustrar a queda daquele poderoso império e explicar as causas prováveis da nossa atual segurança. Os romanos viviam na ignorância da extensão do seu perigo e do número dos seus inimigos; além do reino do Danúbio estavam os países do norte da Europa e da Ásia, repletos de tribos de inumeráveis caçadores e de pastores, fortes, vorazes e turbulentos, atrevidos nas armas e impacientes por arrebatar os frutos da industria. O mundo bárbaro estava agitado pelo febril impulso da guerra e a paz das Gálias e da Itália era abalada pelas revoluções distantes da China. Os hunos, que fugiam perseguidos pelo inimigo vitorioso, dirigiam sua marcha para o oeste, e a torrente se avolumava com o acréscimo gradual de cativos e de aliados. As tribos em fuga, que se rendiam aos hunos, assumiam, por sua vez, o espírito de conquista. A coluna sem fim de bárbaros carregou, por fim, sobre o Império Romano, com todo esse peso acumulado. Se os primeiros eram destruídos, o espaço vazio se enchia imediatamente com novos assaltantes. Tais formidáveis emigrações que já não iriam fruir do norte. O longo repouso que tem sido imputado à diminuição da população, é a feliz conseqüência do progresso das artes e da agricultura. Ao invés de umas rudes aldeias, tenuamente dispersas pelas suas florestas e pântanos, a Alemanha apresenta hoje uma cadeia de 2300 cidades fortificadas; estabeleceram-se, sucessivamente, os reinos cristãos da Dinamarca, da Suécia, e da Polônia. Os mercadores hanseáticos, com os cavaleiros teutônicos, estenderam suas colônias do Golfo do Báltico, até o Golfo da Finlândia; e do Golfo da Finlândia até o Oceano Oriental, a Rússia assume, agora, a forma de um poderoso e civilizado império. O arado, o tear e a forja são introduzidos nas margens do Volga, do Obi e do Lena e as mais ferozes das hordas tártaras aprenderam a tremer e a obedecer.

1 Texto inédito de Anísio Teixeira, possivelmente de um pronunciamento feito em 1962 ou em 1963 cedido pelo profº. João Augusto de Lima Rocha, Professor Adjunto IV da Escola Politécnica da UFBA, Doutor em Engenharia de Estruturas. Coordenador do projeto do Instituto Anísio Teixeira, do Governo da Bahia, que resultou na publicação do “Catálogo de Correspondências Inéditas de Anísio Teixeira”, encontradas na casa natal do educador, em Caetité-Ba., em 1987. Organizador e primeiro Diretor Executivo (1989-92) da Fundação Anísio Teixeira, instalada na Bahia, em 1989. Organizador da coletânea: Anísio em movimento: as lutas de Anísio Teixeira pela educação e pela cultura no Brasil. Salvador: Fundação Anísio Teixeira, 1992, 296 p.

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O império de Roma estava firmemente estabelecido pela singular e perfeita civilização de seus membros, mas essa união era conseguida à custa da perda da liberdade nacional e do espírito militar. E as províncias, servis e destituídas de vida e movimento esperavam a sua segurança de governadores e tropas mercenárias, dirigidas por ordens de uma corte distante. A felicidade de centenas de milhões de criaturas humanas, eram os súditos do Império Romano, dependia do mérito pessoal de um ou dois homens, talvez crianças, cujos espíritos eram corrompidos pelo luxo, pelo poder de posse e pela educação. A Europa está hoje dividida - vejam a Europa do século XVIII - em doze reinos poderosos, embora desiguais; três respeitáveis repúblicas e vários estados menores, embora independentes. As possibilidades de talento entre reis ou ministros estão multiplicadas, no mínimo, pelo número de seus governantes. Um Juliano, Frederico, “o Grande”, da Prússia; o Semíramis, Catarina, “A Grande”, da Rússia, pode reinar ao norte, enquanto Arcades e Honório, Luís XVI, na França, e Carlos III, na Espanha dormitam de novo nos tronos da casa de Bourbon. Os abusos da tirania soam restringidos pela múltipla influência do receio e da vergonha; as repúblicas adquiriram ordem e estabilidade; as monarquias embeberam-se dos princípios de liberdade ou, pelo menos, de moderação. E certo senso de honra e de injustiça foi introduzido, mesmo nas mais defeituosas constituições, pelos costumes gerais do tempo. Na paz, o progresso do saber e da indútria é acelerado na emulação de tantos rivais ativos. Na guerra, as forças européias são exercitadas em competições moderadas e indecisas. Quantos gostariam de voltar a essa época! Que um conquistador selvagem irrompesse dos desertos da Tartária, teria ele de vencer, sucessivamente os robustos camponeses da Rússia, os numerosos exércitos da Alemanha, os galantes nobres da França e os intrépidos homens livres da Britânia, os quais talvez se unissem numa confederação para a defesa comum. Pudessem os bárbaros, vitoriosos, levar a escravidão e a desolação tão longe quanto o Oceano Atlântico, e dez mil navios transportariam para além de sua perseguição os remanescentes da sociedade civilizada, e a Europa reviveria e floresceria no mundo americano que se acha repleto das suas colônias e instituições. O frio a pobreza e uma vida de perigos e fadigas fortalecem o vigor e a coragem dos bárbaros. Em todos os tempos, eles têm oprimido as nações polidas e pacíficas da China, da Índia, da Pérsia, que negligenciaram, e ainda negligenciam, equilibrar esses poderes naturais com os recursos da arte militar. Os estados guerreiros da antigüidade, a Grécia, a Macedônia e Roma, educaram uma raça de soldados, exercitaram seus corpos, disciplinaram a sua coragem, multiplicaram as suas forças por evoluções regulares e converteram o ferro que possuíam em armas fortes e úteis. Mas essa superioridade, insensivelmente, decaiu com as suas leis e costumes e a Carta Política de Costantino e seus sucessores armou e instruiu as ruínas do Império no rude valor dos bárbaros mercenários. A arte militar transformou-se com a invenção da pólvora e habilitou o homem a comandar os dois mais poderosos agentes da natureza: o aço e o fogo. A matemática, a química, a mecânica, a arquitetura foram aplicadas ao serviço da guerra e as partes adversárias opunham, umas às outras, os mais elaborados efeitos de ataque e defesa.

Os historiadores podem, indignadamente, observar que os preparativos de um sítio bastariam para a fundação e manutenção de uma nova colônia, de uma florescente colônia. Todavia, como nos poderemos aborrecer pelo fato de constituir a destruição de uma cidade, trabalho de custo e dificuldade? Nem nos devem agradar as circunstâncias que permitem que um povo industrioso seja protegido por aquelas artes que sobrevivem e suprem a decadência da virtude militar. O canhão e as fortificações foram agora uma barreira inexpugnada contra o cavalo tártaro, e a Europa está segura, seguríssima, contra qualquer futura irrupção de bárbaros; antes que possam eles conquistar, devem cessar de ser bárbaros.”

E termina, então este trecho que ora citamos dizendo que se não bastam estas conjecturas, poderemos ainda consolar-nos com a crença no progresso indefinido da natureza humana e a capacidade de virtude e aperfeiçoamento do homem.

Assim falava, em 1787, um pensador cujo sentimento do passado de tal modo dominava, que o impedia de ver e sentir o futuro. Creio que podíamos dividir os homens exatamente entre aqueles que assim tem a capacidade de sentir o passado, chegando a admitir que algo aconteça de diferente do que vinha acontecendo no passado, e os que são capazes de sentir e prever o futuro.

Quando William Gibbon, na sua admirável segurança, imagina que jamais outra invasão de bárbaros poderia vir a acontecer, dormitava naqueles próprios reinos, felizes e seguros, um outro barbarismo, o barbarismo da pobreza que, dois anos após iria ensangüentar a Europa na sua maior Revolução. Nada disso podia sentir nem imaginar um dos homens mais inteligentes e cultos da época.

Outro homens são os que tem o sentido do futuro e vêem o que esta para acontecer, não o que já aconteceu. O meu maior mestre, John Dewey, recebeu, aos 70 anos de idade, uma grande homenagem de aniversário. E, no pequenino discurso que fez, assim se exprimiu:

“Nada mais quis ser do que um homem de certo modo sensível às coisas em torno de mim. Capaz de certo sentimento a respeito das coisas que estava passando e iam morrer e das coisas que estavam nascendo e iam crescer. E nesta base previ certas coisas que iam acontecer no futuro. Ao completar os meus 70 anos oferecem meus amigos uma festa de aniversário em que vêm dar-me crédito por haver previsto as coisas que iam acontecer e que agora começam a passar.”

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Deste modo, reconhecia ele que, embora um profeta para sua época, também suas idéias iriam passar pelo mesmo declínio e outras iriam sucedê-las. A segunda citação é de um outro, como William Gibbon, também um conservador. Trata-se do professor Geoffrey Barraclough, que embora nada tenha de revolucionário tem uma estranha sensibilidade para o que está acontecendo e o que vai acontecer e, em dezembro de 1960, escreveu uma página que vou procurar resumir: Considerando que jamais a educação se defrontou com desafios iguais aos que irá defrontar nestas últimas quatro décadas do nosso século; considerando que as mudanças em curso excedem incomensuravelmente tudo o que tenha ocorrido no Renascimento, na época das grandes descobertas e no período posterior a Revolução Industrial, e se processarão com tal velocidade que todos os processos conhecidos de lenta adaptação da educação às mudanças estão superados; que as mudanças em 1945 e 1960 foram apenas o começo do que esta por vir e já exigiram reajustamentos consideráveis, a questão hoje é: “ Como, dentro do curto período que separa a ignorância infantil da ignorância adulta, poderá a educação enfrentar as explosivas novas dimensões que, se viermos a sobreviver - sente-se que ele não está tão seguro quanto Gibbon,- moldarão as nossas vidas no último quartel do século XX ”. Traça, então, o quadro não do mundo governado pela tecnologia, -dizer isso já seria uma banalidade - mas de um mundo governado pela automação, em que o trabalho humano sobre o qual sempre repousou a civilização, mais do que sobre as armas de Gibbon, será uma atividade em declínio, em que o corrente credo de produtividade estará superado e força decisiva será a eletrônica. Os computadores substituirão o cérebro humano e o pensamento e as decisões, mesmo nos grandes problemas da paz e da guerra, serão resultados dos impulsos elétricos daqueles computadores. Mas, além dessas mudanças, que afetarão a vida cotidiana de cada um de nós, e que ainda não se fizeram óbvias, já estamos todos conscientes da grande revolução demográfica, pela qual a gravitação do mundo passará da dominação da raça branca para a dos povos de cor, inclusive a das populações mistas da América Latina, concluindo com esta afirmação: “ A questão tão ansiosamente debatida quinze anos atrás - quero dizer, em 1945 - de saber se iria o mundo cair sobre o tacão da URSS ou dos EUA ou se repartido entre as duas superpotências, perdeu seu sentido. Hoje, podemos ver na linha do horizonte o surto dos novos centros de influência - Pequim, Nova Délhi, talvez, eventualmente, Brasília - os quais, na medida em que o século corra para o seu final, estarão esperando deslocar Moscou e Washington, como Washington e Moscou deslocaram Paris e Londres. Ao mesmo tempo a África e o mundo árabe vêem-se sacudidos por nacionalismos potencialmente tão sequiosos de sangue como os que lançaram a Europa no melting-pot de 1914. O mundo à nossa frente tem potencialidades que jamais foram vistas - pois não é o que o homem logrou afinal o velho sonho de conquistar os céus?- mas apresenta também sub-correntes de violência e irracionalidade mais cruas e apocalípticas de que tudo que mesmo Blake poderia imaginar. Neste mundo explosivo, composto, como sempre, de forças divinas e forças satânicas, se a educação quiser conservar a sua missão de força de reajustamento e equilíbrio terá de livrar-se de todo o passado e abraçar esse mundo novo com ambos os braços”. Trouxe essas duas citações que me parecem profundamente típicas. De um lado, um pensador sensível ao futuro, do outro lado um pensador sensível só ao passado. Aqui no Brasil, temos muitos William Gibbon; somos, talvez, até umas das pátrias privilegiadas dos Gibbon. Somos muitos, o que nos faz sentir seguros e tranqüilos, calmamente convencidos de que não temos senão de repetir o que já foi feito, sendo possível fazer, se antes não já o houvermos feito. Insusceptíveis de prever o que possa acontecer, são sempre tomados de surpresa ante o que vem a acontecer. E, curiosamente, logo que o novo acontece fazem-se conservadores desse novo. Já agora é mais uma tradição que dificilmente há de mudar. Sejamos contudo razoáveis. Já há muitos entre nós que sentem o futuro e, como Barraclough, julgam que temos de esquecer o passado e, abraçar com ambas as mãos o futuro. Pois não é verdade que o país está mudando e mudando aceleradamente? A partir de 1945, fizemos a nossa revolução política. Mas, uma coisa seria levar a efeito essa revolução de métodos políticos, nos sossegos do século XIX, com uma ordem econômica tranqüila e uma sociedade que, embora ao tempo julgada tumultuária, hoje parece-nos acadêmica e requintada como uma edição popular do século XVIII, e outra concretizar, como estamos concretizando, o governo representativo, o voto livre e verdadeiro, em plena efervescência social, com a transformação econômica, a súbita participação de todos nos benefícios da civilização e a eclosão de seções novas, populares e inesperadas, na conjunção de forças em operação na vida do país. A verdade é que estamos em pleno processo de integração social, já não bastando a mudança de estrutura política mas impondo-se à mudança de estrutura econômica e da estrutura social. E a essas mudanças terão de suceder as mudanças de estrutura agrária, de estrutura tributária e de estrutura educacional. Apesar de havermos estabelecido a federação, só muito modestamente demos começo a uma melhor distribuição da renda tributária do país. A responsabilidade de administrar as populações brasileiras está com os municípios e os estados, mas estes pouco recebem para dar cumprimento às suas funções e deveres. A União continua com parcela agigantada da arrecadação total do país, deixando aos estados e, sobretudo, aos municípios parcelas diminutas. Deste modo, não foi possível aproveitar-se a descentralização federativa e a Nação continua lembrando antes um império, com suas colônias, do que uma real federação de estados.

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Por isso mesmo, é que é de suma importância o fato de termos afinal aprovado a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Esta lei não é apenas uma lei de educação, mas a reforma de base de nossas estruturas educacionais para nos adaptarmos às forças novas que estão integrando e unificando a Nação.

O plano, assim, que aqui viemos debater não é propriamente um plano pedagógico, nem um simples plano administrativo, mas um plano político de descentralização e de reconhecimento do estado de integração de nossa sociedade, para o cumprimento de suas tarefas básicas.

Sobretudo é um plano diretor para todos os 22 governos estaduais e mais os 3 300 governos municipais e, em especial, para todo o povo brasileiro dividido entre as lideranças de todos esses governos. Com efeito, a base de operações para o plano é o município, já que não pode ser o distrito municipal. É ali que está a população a ser convocada para a tarefa de emancipação educacional. A Lei de Diretrizes e Bases prevê a chamada da classe de sete anos, na área do governo municipal. Este é um ponto de contato legal entre o governo do município e o governo estadual, que já não pode ser afastado, e que exigirá um núcleo administrativo estadual de educação em cada município. Esses dois órgãos – a direção do ensino municipal e a direção, no município, do ensino estadual – vão trabalhar juntos em uma tarefa comum. Depois, o órgão de direção geral da educação estadual e os órgãos da direção federal, por sua vez, só irão se encontrar no plano nacional.

A máquina propulsora do plano é, pois, complexa e envolve as três ordens de governo. Por isto mesmo, o plano de educação se terá de fazer por município. Que será esse plano? Em essência um plano de oferta de oportunidades educacionais crescentes à população do município. As suas etapas seriam as seguintes: um centro de educação em cada vilarejo de menos de 500 habitantes, com uma escola primária, os agentes postais de correio, telefone ou telégrafo, o agente social rural e um começo de biblioteca; uma escola primária organizada por séries escolares, em todas as localidades de mais de 500 até 1 000 habitantes, para dar educação até a quarta série, e constituir-se também em um centro social, com biblioteca e sala de reuniões para os adultos; escolas primárias de seis séries em todas as localidades de mais de 1 000 até 2 000 habitantes; centros educacionais, com escolas primárias de seis anos, escola-parque e ginásios em todas as cidades de mais de 2 000 até 5 000 habitantes; escola primária de seis séries, escola-parque, ginásios e colégios em todas as cidades de mais de 5000 habitantes; sistemas escolares completos em toadas as capitais. Esse o conjunto do sistema escolar propriamente dito e que oferecerá em cada povoado, em cada vila, em cada cidade, as oportunidades locais de educação.

O plano se completa com o sistema de bolsas. O sistema de bolsas é o sistema de mérito que se deverá, agora, introduzir-se sistematicamente em todo o país. Em cada povoado haverá a oportunidade para que uma criança pobre mas excepcionalmente bem dotada para os estudos possa prosseguir seus estudos na cidade vizinha e, depois, na cidade vizinha dessa cidade vizinha e, depois, na capital. E se a capital não tiver ensino superior, na cidade de outro estado. Além das oportunidades locais, pois, a criança excepcionalmente inteligente terá todo sistema a seu dispor.

Esse será o plano que cada estado organizará, à luz dos planos de cada município. E com esse plano estadual é que o governo do estado se dirigirá ao governo federal para assinar o convênio de cooperação educacional.

E qual será o plano federal? Na realidade um plano de assistência financeira, de assistência técnica e de assistência política, para que se tornem possíveis os planos financeiros de empréstimos para levar avante a tarefa.

Com efeito, será impossível colocar todos os ônus atuais imediatos desse grande plano sobre os ombros dos brasileiros que pagam impostos em cada ano. Precisamos dividir esses encargos por uma série de anos. Daí poder correr a manutenção dos serviços de ensino, com a receita de cada ano, mas os ônus da implantação do sistema, dos vários milhares de terrenos a serem adquiridos para escolas, dos milhões de metros quadrados a construir, das dezenas de milhares de metros quadrados a reparar, deverão correr à conta de empréstimos por quinze, vinte e trinta anos. O governo federal terá de ser o fiador desse empréstimos nacionais e internacionais.

Os planos de financiamento obedecerão às seguintes normas:

1) Os orçamentos serão baseados no custo individual do aluno;

2) Esse custo será calculado pela forma prevista de salário do professor (70%) e despesas materiais de manutenção e administração (20%) e despesas do prédio e sua conservação (10%);

3) Os 10% desse custo do aluno (municipal e estadual) junto com os 10% do auxílio federal constituirão o fundo para empréstimos, tornando possível a negociação dos mesmos em bases nacionais e internacionais.

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Com o plano de construções em operação e, ligado a ele, o da expansão de matrículas se articulará o plano de preparo de professores. É indispensável chamar a atenção especial para esse plano. Até hoje pensamos reformar a educação por meio de leis. São elas, sem dúvida, necessárias para tornar possível a reforma, mas leis não fazem a reforma.

As reformas se fazem pela mudança de estrutura da sociedade que está em marcha, queiramos ou não queiramos, e pelo preparo e aperfeiçoamento do professor.

Até ontem preparávamos os professores nas escolas normais, que foram atingidas pela voragem da expansão do ensino médio. Por outro lado, percebemos, agora, que o preparo profissional faz-se melhor depois de uma boa educação geral e, tanto quanto possível, pela prática, acompanhada de cursos intensivos.

No nível de assistência técnica federal elaborou-se, então, um plano de treinamento e aperfeiçoamento do magistério, mediante a instalação de 40 centros, dois, no mínimo por estado, destinados a formar 16 000 professores por ano e 128 000 nos próximos oito anos.

Assim justificou o Brasil esse plano em Santiago do Chile:

“ Todas as reformas e desenvolvimentos em marcha estão, entretanto, a depender fundamentalmente da adequada formação dos professores.

Será nesse setor que residirá um dos esforços maiores do Ministério da Educação, sua nova fase, como órgão de propulsão dos 21 sistemas educacionais dos estados, que a Lei de Diretrizes e Bases veio ampliar aos três níveis de ensino (antes, somente o ensino primário estava sob o controle dos estados) e como administrador do sistema federal de ordem apenas supletiva.

Ao lado do auxílio financeiro pelo qual a União buscará restabelecer o equilíbrio entre os contrastes econômicos das diversas regiões do país, cogita ela de ampliar os seus serviços de assistência técnica dando ênfase à preparação do magistério.

Como as chamadas escolas normais e os cursos de regentes vêm sendo transformados, cada vez mais, em cursos de nível médio, para o que concorreu sobremodo a adoção dos ginásios secundários como seu primeiro ciclo, torna-se possível a criação de novas modalidades de formação de magistério, com a instalação de centros de treinamento destinados aos que tenham concluído os estudos do segundo nível no primeiro ou segundo ciclo, e desejem devotar-se ao magistério.

Estes centros seriam substancialmente centros de demonstração de ensino, desde o nível de jardim de infância até a última série do segundo nível, com jardins de infância, escolas primárias e escolas de segundo nível nos quais grupos de estagiários, entre 200 e 300 viriam residir como internos, para tratar e estudar as artes do magistério infantil, primário e médio.

Os estudos seriam rigorosamente articulados com essa prática direta do ensino. As escolas - funcionando como hospitais de clínicas nas escolas de medicina - existiriam em três modalidades: escolas de demonstração, escolas experimentais e escolas de prática. Dado o volume de professores a preparar e aperfeiçoar, tais escolas devem ter a amplitude necessária para permitir treino individual. Ao lado das escolas de demonstração e experimentais, que poderão ser razoavelmente pequenas, haverá escolas de prática, com classes em número suficiente para o treinamento individual, aproveitando-se as próprias escolas do sistema escolar vizinho.

Estes centros deverão, com efeito, ser localizados de preferência em cidades ou próximos a cidades que ofereçam tais oportunidades. A criação de 40 desse centros nos 21 estados brasileiros representaria a cooperação específica do Governo Federal na sua obra de assistência técnica aos governos dos estados. Representaria isto, entretanto, tamanho investimento que seria de crer pudessem vir a contar com auxílio internacional, à maneira de certos tipos de ajuda que tanto o Ponto IV quanto a UNESCO vêm oferecendo em esforços mais modestos, tais como os do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (UNESCO) e o do Centro de Belo Horizonte (PABAE –Ponto IV).

Já nos referimos anteriormente ao problema do magistério e à extraordinária proporção de mestres desprovidos de preparo pedagógico, tanto na escola primária quanto na escola média.

Nas condições atuais do ensino, entretanto, já não se trata apenas de aumentar o número de professores diplomados pelas atuais escolas normais, mas de modificar profundamente essas próprias escolas normais, lançando as bases de um tipo novo de formação de magistério. ”

Os gérmens desses centros já se encontram nos Centros de Pesquisas Educacionais instalados em 1955 no Ministério.

Vejamos, em resumo, pois, em que consiste o Plano Nacional de Educação, em vias de desenvolver-se:

1) Ataque maciço ao problema de educação de todos os brasileiros, na área de cada município, pelo levantamento individual da população a educar;

2) Marcha da educação dos núcleos mais avançados para os mais retardados;

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3) Compreensão da chamada educação rural, como educação comum limitada pelas condições rurais. Em oposição ao conceito de educação rural para a vida rural: o rural vai se fazer rurbano. O Centro Rural de Educação se poderia chamar: Centro Rurbano;

4) Orçamento de educação baseado no custo do aluno;

5) Sistema de bolsas, pelo qual o sistema local se ligará ao sistema estadual e ao sistema nacional. As bolsas serão como pontes e permitirão a articulação de todo sistema - local, estadual e federal;

6) Sistema de preparação do Magistério, com candidatos possuidores da educação geral ministrada pelos Estados, em centros regionais, mantidos, em cada estado, pelo Governo Federal, com residência para 800 bolsistas, recrutados proporcionalmente pelos municípios. Aí se formará a força de trabalho do sistema escolar de cada estado. O recrutamento dos alunos pelos municípios é fator fundamental desse plano. Como tais centros serão altamente dispendiosos, podendo comparar-se, à sombra da Medicina, com os respectivos hospitais de clínicas, ficarão eles a cargo do Governo Federal; 7) Política de auxílio financeiro federal pelo qual se vá, gradualmente, visando certa equalização de recursos para a educação em todos os estados da Federação Brasileira;

8) Revisão da estrutura educacional para uma educação para a produção e não apenas para o consumo, com a instituição de um sistema contínuo e integrado, no qual estejam superadas todas as divisões do passado entre educação geral e especial, humanista e científica, prática e teórica e se busque em todas as instituições educacionais todos esses valores, que apenas se distinguem por ênfase e não por separações.

São estes os esclarecimentos que me cabe trazer, no momento em que os educadores brasileiros se reúnem para uma tomada de consciência dessa nova etapa educacional, em que vamos entrando com a Lei de Diretrizes e Bases.

Antes de concluir, permitam-me ainda sublinhar a grandeza da tarefa:

1) Na evolução da educação entre os países desenvolvidos pode-se perceber, claramente, três períodos:

Séc. XIX - ensino primário para todos; Séc. XX - a partir da Primeira Guerra Mundial, ensino secundário para todos; Séc. XX - a partir da Segunda Guerra Mundial, ensino universitário em alta expansão; 2) Cada um desses períodos corresponde a uma reestruturação da educação: Séc. XIX - educação prática e universal, primária e seletiva e técnica para poucos; Séc. XX - a partir de 1914, educação universal e prática secundária para todos; Séc. XX - a partir de 1945, reestruturação e expansão do ensino superior, pelo reconhecimento da interdependência entra as ciências e a sociedade e a educação como supremo instrumento. O Brasil tem de realizar as três tarefas nestas próximas décadas do século XX. É uma corrida entre elas e a sobrevivência. Não estamos reunidos para um debate acadêmico mas para o planejamento de uma batalha. Não há batalha sem planos. O nosso plano é uma série de decisões sobre a estratégia e a tática dessas batalhas. Possamos fazê-la e vencê-la.

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Referências à Revolução na Obra de Anísio Teixeira Francisco Gilson R. Porto Júnior

João Augusto de Lima Rocha1 1 Introdução O que ensejou a elaboração deste artigo foi a descoberta, na Bahia, em 1999, do texto (aqui divulgado em primeira mão) de uma conferência pronunciada por Anísio Teixeira, acredita-se que no ano de 1962, quando buscava apoio para a construção de sua proposta do I Plano Nacional de Educação. A razão para estimar-se que a conferência tenha sido pronunciada no ano de 1962, decorre do fato de que o momento foi, certamente, depois da entrada em vigor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (dezembro de 1961) e antes da aprovação do Plano Nacional de Educação (setembro de 1962). Há, nessa conferência, uma extensa parte inicial dedicada a referências históricas, da qual constam duas longas citações: a primeira, do historiador William Gibbon, trata da situação da Europa dois anos antes da Revolução Francesa, quando erra redondamente ao avaliar que a estabilidade da Europa está longe de qualquer risco, e a segunda, de Geoffrey Barraclough, diz respeito ao impacto da educação no desenvolvimento social e econômico no século XX. Essa característica de Anísio, de valorizar bastante a referência histórica em seus textos sobre educação, inspirou a idéia, de analisar-se sua contribuição à formação cultural do Brasil, a partir das referências de caráter histórico-socológico com que ele fundamenta as propostas educacacionais, em grande parte de seus artigos e pronunciamentos, nos quais é muito freqüente referir-se, de modo muito peculiar, ao conceito de revolução. O exame que aqui apenas se inicia, da correspondência entre essas referências e a atuação pública do educador, em diversas fases de sua vida, tem o intuito de buscar uma caracterização mais precisa da intervenção de Anísio na vida cultural brasileira, que certamente vai além da simples caracterização de educador liberal, com a qual costuma ser rotulado. Embora na estrita precisão do termo liberal isso não esteja longe da verdade, a conotação atual desse termo é, sem dúvida, diferente daquela que prevalecia na época em que o educador atuou. Naquela época, liberal significava o oposto de conservador, e o liberal mais radical era tomado até mesmo por comunista, adjetivo com o qual foi taxado, e que interferiu duramente em sua carreira de educador, na medida em que isso, entre outras perseguições, o obrigou a afastar-se por dez anos da vida pública brasileira, entre 1935 e 1945. Outra razão, esta atualíssima, para achar-se impreciso o enquadramento do conjunto da contribuição cultural de Anísio Teixeira, simplesmente como tendo um caráter liberal, vem por conta do surgimento do termo neoliberal que, embora filologicamente sugira uma evolução de liberal, significa exatamente o contrário, isto é, conservador. E se o atual governo neoliberal brasileiro afirma estar aplicando a obra de Anísio, baseado no aproveitamento parcial das idéias de sua autoria (plano nacional de educação, FUNDEF, etc.), é conveniente que se afirme, veementemente, que a obra de Anísio nada tem de neoliberal! Por tudo isso, considera-se mais adequado interpretar-se o sentido da contribuição de Anísio, a partir do conceito que Florestan Fernandes emitiu sobre ele: “...foi um homem de seu tempo. Mas, dentro de seu tempo, o seu pensamento não defendia meia revolução, defendia toda a revolução.” (ROCHA, 1992:52). Embora, na conferência inédita, Anísio faça uso de citações históricas como um recurso, visando defender sua proposta de um plano nacional de educação, o tema central em que nela se ocupa é mesmo o do planejamento educacional. Aí destaca a idéia de organizar, centralmente, mas de forma integrada, entre as três esferas do poder público, todo um conjunto de ações visando a oferta da oportunidade de educação de qualidade a todos os brasileiros. Os textos conhecidos2 do autor sobre planejamento em educação guardam uma estreita relação com essa conferência. No entanto, em nenhum deles o poder de convencimento, em busca de adesão, ganha tanto 1 Professor Adjunto IV da Escola Politécnica da UFBA, doutor em Engenharia de Estruturas. Coordenador do projeto do Instituto Anísio Teixeira, do Governo da Bahia, que resultou na publicação do “Catálogo de Correspondências Inéditas de Anísio Teixeira”, encontradas na casa natal do educador, em Caetité-Ba., em 1987.

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destaque quanto o representado pelo recurso às duas referidas citações históricas. No mais, a conferência é uma verdadeira síntese de todo o pensamento educacional de Anísio, maturado em sua vida de filósofo, planejador e executivo da educação pública: na Bahia, em 1924-28 e 1947-51; no Rio de Janeiro-DF, em 1931-35; na CAPES e no INEP, como diretor, e como criador e mentor do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e dos Centros Regionais do INEP (CRINEP’s), de 1951 a 1964.

O texto inédito revela, pois, as qualidades do planejador e do administrador escolar, que integra questões gerais de natureza filosófica, política e histórica com minúcias do funcionamento dos sistemas locais de educação, manifestando a habilidade e o cuidado do estadista, que acredita ser a educação a base fundamental para a revolução capaz de conduzir a sociedade brasileira a um regime verdadeiramente democrático. Não relega a um plano inferior, no entanto, a tarefa política de con(vencer), acerca de seus propósitos, aqueles que, de fato, são os detentores do poder.

A despeito de sua natureza acadêmica, o presente trabalho não trai a perspectiva política de enfatizar o conteúdo, em certo sentido revolucionário, da obra cultural de Anísio de Teixeira, dentro da reflexão elaborada por Florestan Fernandes que, com precisão, completa sua síntese sobre o educador:

“ ... ele era incapaz de usar a imaginação pedagógica sem ligar essa imaginação às duas vertentes, a teórica e a histórica, para que a prática resultante fosse uma prática imbricada no avanço necessário e nas possibilidades concretas.” (ROCHA ,1992: 48)

“E ele compreendeu que a Revolução Brasileira tinha de resgatar a educação. Tinha de ser, principalmente uma revolução da educação. Portanto, é na esfera prática, na ação cotidiana do educador que nós encontramos a encarnação mais viva e mais alta do defensor da escola pública.” (ROCHA,1992: 49).

É com essa perspectiva, portanto, que se busca recuperar a contribuição educacional e cultural de Anísio Teixeira, explorando, principalmente, as referências de caráter histórico-sociológico presentes em sua obra, desde o momento em que foi nomeado Inspetor Geral do Ensino da Bahia, em abril de 1924, até a fase final de sua vida, encerrada precocemente em março de 1971.

2 Da Primeira Gestão Na Bahia, À Formulação Dos Princípios Da Escola Nova

Em abril de 1924, aos vinte e três anos de idade, o bacharel em direito Anísio Teixeira recebe o convite do recém-empossado Governador Góes Calmon, da Bahia, para ocupar o cargo de Inspetor Geral da Instrução Pública. Dizendo-se ignorante no assunto, recebe do governador um exemplar do livro do educador belga Omer Buyse, Métodos Americanos de Ensino, em francês, que ele deveria ler e depois mandar traduzir, e também um conselho para que ouvisse Carneiro Leão e Afrânio Peixoto. Assim começa a carreira do jovem educador, que logo pensa em reformar a educação baiana e o faz através de uma inovadora, embora prolixa, lei de 268 artigos (Lei no 1846, de 1925). Em virtude dessa lei, seu cargo passa a ser designado Diretor Geral da Instrução.

Comissionado pelo governo baiano, viaja à Europa, em 1925, onde fica por três meses, examinando os sistemas educacionais, principalmente da Bélgica e da França. Aproveita também para ir a Roma, onde participa das comemorações do Ano Santo, com o companheiro de viagem, o Arcebispo Primaz do Brasil D. Álvaro Augusto, Cardeal da Silva, da Bahia. Católico fervoroso, e então admirador do movimento católico reacionário Action Française, Anísio assim se pronunciou, quando de sua volta à Bahia, em artigo publicado no jornal “A Tarde”, intitulado: Paris é um filho espiritual de Roma:

“No dia em que deixei Paris, 11 de novembro [1925], data do armistício, Philipe Barrès, Jacques d’Arthnis e Georges Vallois haviam convidado os franceses para uma grande reunião, onde se iam lançar as bases do Faisceau.”

“O Faisceau francês, como o fascio italiano, é um apelo a todas as velhas forças tradicionais da raça e do país e a sua mobilização em partido de guerra para a conquista das verdades essenciais de que nenhuma sociedade pode prescindir para viver.” (ROCHA, 1992:248).

Vê-se que aí revela simpatia pelo movimento fascista, num momento em que ainda era influenciado pelo reacionário catolicismo ultramontano, advindo do estreito contato mantido com os jesuítas, no período de sua formação escolar.

Mas essa influência começa a diminuir a partir de 1927, quando, após consolidar a implantação da reforma educacional na Bahia, vai conhecer os sistemas educacionais dos EUA, e lá se encontra com Monteiro Lobato, de quem se torna grande amigo. Entusiasmado com a vida nos EUA, Lobato, que também estava em missão de

2 São os seguintes: (TEIXEIRA, 1953), (TEIXEIRA, 1961a), (TEIXEIRA, 1961b), (TEIXEIRA, 1962), (TEIXEIRA, 1963a), (TEIXEIRA, 1964), (TEIXEIRA et al., 1968a: 9) e (TEIXEIRA, 1994:138-148).

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governo, coloca rapidamente o amigo em contato com a dinâmica realidade norte-americana, gerando nele um grande entusiasmo, que traz de volta para a Bahia.

Ainda na condição de dirigente da educação pública na Bahia, volta aos EUA, em 1928, onde cumpre um programa de pós-graduação no Teachers College da Columbia University, concluído em 1929. Na ocasião conhece John Dewey, filósofo do pragmatismo, o educador que mais iria exercer influência sobre sua vida. De volta à Bahia, nesse mesmo ano, traz um novo plano educacional, mas o governo baiano, já na gestão Vital Soares, não lhe dá apoio e ele se demite. Do relatório produzido por Anísio sobre a parte da gestão situada no governo Góes Calmon (1924-28), citado em (ABREU et al, 1960: 21), destacam-se:

“O próprio critério de educação popular estava deturpado. Efetivamente, nesses adiantados princípios do século vinte, o serviço de educação pública ainda estava jungido à velha orientação colonial de educação para uma classe fina da sociedade.”3

"O disparate entre nossa aristocracia cultivada e diretora das atividades nacionais e a grande massa popular analfabeta, não constitui somente um caso revoltante de ausência de consciência democrática e humana no país, mas, poderá muito cedo refletir-se em conflitos e incompatibilidades capazes de complicar as nossas grandes mas singelas questões, em problemas de crítica e complexa solução."4

Ao analisar a contribuição dos educadores que, com Anísio Teixeira, fizeram parte do movimento pela escola nova, Florestan Fernandes observa:

“Hoje há uma controvérsia a respeito da posição desses educadores, que são acusados de educadores vinculados ao pensamento pedagógico burguês. De fato, estiveram vinculados ao pensamento pedagógico burguês, embora Anísio Teixeira tenha sido acusado de marxista, tendo sido defendido pela Associação Brasileira de Educação dessa acusação, que naquele momento era terrível e representava o ostracismo. Mas essa pedagogia burguesa era uma pedagogia avançada, e nós, até agora, por tinturas socialistas ou marxistas autênticas, não fomos muito além, a não ser na reflexão de caráter abstrato.” (ROCHA, 1992: 52).

No mesmo ano (1932) do lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, do qual Anísio é um dos signatários, aparece uma de suas obras fundamentais: Educação progressiva – uma introdução à filosofia da educação. Mais conhecida que a primeira edição dessa obra, é a segunda, de 1934, na qual encontra-se a seguinte observação sobre o significado de escola nova5:

“A designação escola nova, necessária, talvez, em início de campanha, para marcar violentamente as fronteiras dos campos adversos, ganharia em ser abandonada. Por que não escola progressiva, como já vem sendo chamada nos Estados Unidos?

E progressiva, por que? Porque se destina a ser a escola de uma civilização em mudança permanente (Kilpatrick) e porque, ela mesma, como essa civilização, está trabalhada pelos instrumentos de uma ciência que ininterruptamente se refaz. Com efeito, o que chamamos de escola nova não é mais que uma escola transformada, como se transformam todas as instituições humanas, à medida que lhes podemos aplicar conhecimentos mais precisos dos fins e dos meios a que se destinam” (TEIXEIRA, 1934: 22).

Convém lembrar que, mais tarde, essa obra de grande repercussão, uma das poucas escritas por Anísio na forma de livro, e não como simples reunião de artigos isolados, reunidos posteriormente, como é quase todo o restante de sua produção, torna-se o centro da ação contra ele desencadeada pela Igreja. Para que se tenha idéia do nível do ataque que sofreu, por parte de certo setor da hierarquia católica, basta observar o que informa o Frei Evaristo P. Arns, em um bem elaborado artigo de contestação sistemática às idéias de Anísio: “Desejaríamos que todos os intelectuais, católicos ou não, lessem esse capítulo6. Por mais calejados que fossem, indignar-se-iam contra o método e a leviandade extrema do autor em julgar o passado. Mas pelo C. I. C., cânon 1399, 2o, a leitura da obra Educação Progressiva, ipsa religionis fundamenta nitens, está ipso iure proibida.” (ARNS, 1958a: 492).

3 (TEIXEIRA, 1928), apud (ABREU, J. et al, 1960: 21) 4 (TEIXEIRA, 1928), apud (ABREU, J. et al, 1960: 22) 5 Registra-se, antes, em 1930, o lançamento de um livro de M. B. Lourenço Filho, com o título Introdução ao estudo da escola nova ( Biblioteca de Educação, volume XI, São Paulo, Comp. Melhoramentos, 235 p.). No prefácio da 6a edição dessa obra, de 1948, o autor faz um retrospecto da difusão da proposta da escola nova no Brasil, mas não cita a obra Educação Progressiva de Anísio Teixeira. 6 Trata-se do V Capítulo de Educação Progressiva, intitulado: “A conduta humana, em face do movimento de educação progressiva”.

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Diante dessa inaceitável postura inquisitorial, mas sem explicitar qualquer posição de confronto, Anísio, muda, mais tarde, o nome da obra, de Educação progressiva, para Pequena introdução à filosofia da educação, incluindo algumas simples alterações nos títulos e subtítulos, e uma ligeira justificativa, à guisa de Nota do Autor, porém mantendo o conteúdo integral da obra censurada. Contribuía, assim, para que os católicos pudessem lê-la sem qualquer sentimento de pecado! (TEIXEIRA, 1968).

3 No Rio de Janeiro-DF, Anuncia-se o Estadista da Educação

Nomeado Diretor Geral de Instrução Pública do Rio de Janeiro – DF, pelo Prefeito Pedro Ernesto, em 1931, Anísio partiria para consolidar, em nível nacional, o prestígio que começara a adquirir na administração baiana, na qual firmou convicção de que seria um educador profissional, abandonando de vez o direito, a religião e a tentação da carreira política. A partir da tese de doutorado de Clarice Nunes, que estuda Anísio Teixeira entre 1900-1935 (NUNES, 1991), com destaque para o período em que esteve à frente da educação carioca (1931-35), inicia-se uma promissora fase no estudo do legado cultural de Anísio Teixeira.

O exaustivo esforço de pesquisa por ela empreendido, visando situá-lo no contexto histórico da realidade em que viveu, torna mais justo o julgamento do homem, e daquilo que pode ser considerado atual em sua obra. É necessário que isto também se faça, particularmente para os Pioneiros da Educação Nova, para que sua contribuição seja corretamente avaliada, com o objetivo de recuperar-se um útil conjunto de elementos iniciais, de reflexão e de experiência prática, capaz de contribuir para a continuidade da luta, sempre atual, em defesa da implantação da escola pública, universal e gratuita em nosso país.

Clarice Nunes apresenta, pois, uma síntese do que foi período de Anísio à frente da educação pública no Rio de Janeiro: “A reforma do ensino do Distrito Federal na gestão de Anísio constituiu um processo de reinvenção do espaço escolar (e social) cuja direção se fez no sentido de: empurrar a escola para fora de si mesma, ampliando sua área de influência na cidade; atravessar o espelho da cultura européia e norte-americana para elaborar um conhecimento instrumental sobre a realidade e a educação brasileiras; retirar o problema do governo da educação da tutela da Igreja e do Estado; construir representações sobre a escola e a sociedade, criando saberes e definindo prioridades; lutar contra os destinos escolares, procurando quebrar as barreiras hierárquicas impostas por uma rígida divisão social, o que criou conflitos em vários níveis: no nível governamental, entre as iniciativas do governo municipal e as exigências do governo central; no nível ideológico, entre as propostas do governo municipal e provenientes de grupos católicos e esquerdistas; e ao nível das próprias escolas em funcionamento, o que é indicativo do caráter polêmico dessa gestão.” (NUNES, 1991: 230-231).

Merece destaque, nesse período, a contribuição de Anísio para a renovação da Universidade Brasileira, representada pelo movimento que liderou, e que parece ter dado lugar não somente à criação da Universidade do Distrito Federal, instalada em 1935, mas também à Universidade de São Paulo, instalada um pouco antes, em 1934. Embora pouco explorado, do ponto de vista dos estudos acadêmicos, há claros indícios de que os dois projetos foram montados de forma articulada, haja vista a aproximação pessoal entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. Tidos como os principais líderes do movimento pela educação nova7, estiveram à frente, também dos respectivos movimentos de renovação universitária, no Rio e em São Paulo. Em comum aos dois projetos, está a inclusão de uma escola de filosofia, ciências e letras, que visava, tanto a formação de professores, quanto, e principalmente, a criação de um espírito de pesquisa (dita desinteressada) na universidade, deslocando-a do papel estrito de formação dos tradicionais profissionais demandados pelo mercado (médicos, advogados e engenheiros). Tanto a UDF quanto a USP trouxeram eminentes professores estrangeiros para nelas ensinar, e a informação de Antonio Houaiss, que foi aluno da primeira turma da UDF, dá uma indicação de que, pelo menos nesse aspecto, a articulação existia:

“Dessa Universidade, quero ressaltar o fato de que nela lecionou uma equipe de grandes professores franceses e italianos, alguns revezando-se entre o Rio de Janeiro e São Paulo, naquele então. Esse processo foi, creio, de uma fecundidade impressionante.” (ROCHA, 1992: 54).

A eclosão do movimento da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, interferiu para o afastamento de Anísio da direção da educação carioca, levando-o a um longo exílio no interior da Bahia. Sobre o episódio do afastamento, diz um dos seus mais importantes biógrafos, Hermes Lima:

7 A indicação, por Fernando de Azevedo (que partiu para dirigir a educação paulista), do nome de Anísio Teixeira para substituí-lo à frente da educação carioca, parece ter obedecido à estratégia de ocupação dos espaços principais, na busca da implantação de seu projeto nacional comum, da educação nova.

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“Certo, havia, antes de tudo, um sacrifício ritual a executar: o afastamento de Anísio Teixeira. Nesse ano de 35, ele estivera sob o fogo concentrado do clero e da liderança católica na discussão sobre a escola pública e na campanha pela Universidade do Distrito Federal. Apesar de todas as pressões, o Prefeito mantivera-o por quatro anos à frente da Secretaria da Educação e quem viveu aquele tempo sabe como isto pesa a favor de Pedro Ernesto. O sacrifício de Anísio correspondia à prioridade da política clerical longamente mobilizada contra sua presença na liderança do sistema educativo carioca. No contexto dos acontecimentos, pura ilusão pensar que esse sacrifício salvaria o Prefeito. Assoalharam que Anísio era conselheiro político de Pedro Ernesto. Nos domínios da Secretaria da Educação jamais se abrigou qualquer atitude participante de conspiração golpista. Pedro Ernesto jamais consultou Anísio sobre suas preocupações políticas. Nunca ocorreu a Anísio a iniciativa de debater com ele problemas de organização política. Havia uma Constituição em vigor e conduzir-se dentro de seus parâmetros era o caminho que a todos enlaçaria no exercício do poder. Em Anísio nada estaria mais longe de sua concepção da vida pública que a cumplicidade conspirativa.” (LIMA, 1978: 138). Segue-se um longo período em que Anísio esteve afastado da educação, atuando em negócios que evoluíram, desde 1936 até 1945, da venda de dormentes para estradas de ferro, à importação de carros e locomotivas importadas, e à exportação de manganês. Além de traduções que realizou para a Compania Editora Nacional, pouco se conhece da produção intelectual de Anísio nesse período. Um texto escrito em 1945, encontrado em seu arquivo organizado pelo CPDOC e intitulado ‘1935-1945’, é uma raridade desse período. Parecendo interessado em definir uma alternativa para sua reinserção na vida pública, faz uma síntese política do final daquele período: “Restabelece-se, presentemente, a liberdade do pensamento e com ela voltam à cena as figuras liberais mais representativas do Brasil. E com as figuras liberais, os representantes da chamada esquerda brasileira. Como em 1934 e 1935, há uma aparente intenção de fazer crer em uma aliança e fusão de objetivos na luta política que se inicia. Mas, sob essa aparente fusão, o que há de real, e sobretudo da parte da esquerda, é o desejo de cada tendência de utilizar a outra, com a secreta intenção de a destruir assim que seja possível.” (ROCHA, 1992: 250). E adiante: “Não tenho dúvida em admitir que, pouco a pouco, os partidos de esquerda irão crescendo de prestígio no país, até algum dia conquistarem o poder e introduzirem, então, reformas mais radicais na estrutura política e econômica da nação. Mas isto só se dará se eles souberem conservar-se, no princípio, como partidos de esclarecimento e de vigilância, devotando-se a um lento trabalho de pesquisa dos problemas brasileiros e de educação da consciência nacional, para o que estão particularmente aparelhados por não estarem presos nem a preconceitos nem a interesses.” (ROCHA, 1992: 252). 4 Retorno à Vida Pública: da Unesco a um Novo Período à frente da Educação Baiana A partir de 1946, após a passagem de um ano por Londres e Paris, na condição de conselheiro da recém-criada UNESCO, abandona a vida privada e volta a trabalhar integralmente no setor público. Aceita o convite do Governador Otávio Mangabeira, para o cargo de Secretário de Educação e Saúde do Estado da Bahia, que ocupa de 1947 a 1951. Nesse período, implanta um ousado plano de construções escolares em todo o estado da Bahia, além de descentralizar o ensino secundário na capital, criando colégios em vários bairros de Salvador. Em 1947, apresenta uma original proposta à Assembléia Constituinte Baiana, de autonomia para a educação, que pode ser considerada a base para as idéias que desenvolveria por todo o curso dos anos seguintes, e que iria culminar no Plano Nacional de Educação, em 1963. Conseguiu que o princípio da autonomia para a educação fosse incluído na Constituição Baiana, aprovada nesse ano, embora a regulamentação só viesse a ser concluída dezesseis anos depois, com o. nome de Lei Orgânica do Ensino (Lei 1962 A, de 20 de setembro de 1963). Segundo essa lei, a direção da educação pública seria atribuída ao Conselho Estadual de Educação e Cultura, formado por sete membros, cujas decisões seriam finais, não podendo ser contestadas por qualquer outra instância de poder do estado. O secretário da educação, segundo a lei, seria o executor das decisões do Conselho, e não um auxiliar do governador! (LIMA Jr., 1965: 319). No discurso à Constituinte Baiana, assim Anísio fundamenta essa original proposta de autonomia para a educação: “A democracia é, assim, o regime em que a educação é o supremo dever, a suprema função do Estado. Seria vão querermos equipará-la às funções de polícia ou de viação ou mesmo de justiça, porque a de educação constitui a única justiça que me parece suficientemente ampla e profunda para apaziguar a sede de justiça social dos homens. Todos falamos em regime de justiça social porém haveis de me permitir sublinhar o sentido de justiça social da democracia. Nascemos diferentes e desiguais ao contrário do que pensavam os fundadores da própria democracia. Nascemos biologicamente desiguais. Se a democracia pode constituir-se para nós um ideal, um programa para o desenvolvimento indefinido da própria sociedade humana é que a democracia resolve o problema dessa dilacerante desigualdade. Oferecendo a todos e a cada um oportunidades iguais para defrontar o mundo e a sociedade e a luta pela vida, a democracia aplaina as desigualdades nativas e cria o saudável ambiente de emulação em que ricos e pobres se sentem irmanados nas

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mesmas possibilidades de destino e de êxito. Esta, a justiça social por excelência da democracia. A educação é, portanto, não somente a base da democracia, mas a própria justiça social.” (ROCHA, 1992: 27). Após uma profunda análise da evolução histórica brasileira, que estaria a justificar tão singular proposta, quase que significando a introdução de um novo poder, o poder educacional, no conjunto dos três tradicionais poderes da República, conclui: “Caso seja votado o Capítulo de Educação e Cultura, os serviços de ensino e cultura ganharão preeminência só comparável aos três poderes do Estado. Teremos feito o que deviam ter feito cem anos atrás. A responsabilidade da educação que se perdia na irresponsabilidade omnímoda do Governo, define-se e localiza-se. A educação passa a ser servida por um aparelhamento paralelo ao do Governo do Estado. É a grande obra permanente do regime democrático. A obra de longo alcance. Ao lado dela, a função do governo parece próxima e imediata. Pela educação, forma-se o homem, e mais conquista-se a justiça social. É saudável, portanto, que essa obra se faça sem os atropelos da obra do Governo, sem abalos políticos, mas com espírito de permanência que sua relativa segregação assegura.” (ROCHA, 1992: 43)

Percebe-se que nessa nova etapa de sua vida, superada a fase religiosa, Anísio mostra-se aberto à discussão sobre as transformações políticas no plano internacional marcadas pelo conflito entre as superpotências, URSS e os EUA, que emergiram polarizadas da Segunda Guerra Mundial. Torna-se mais freqüente a palavra revolução em seus textos e pronunciamentos, nos quais a vincula com a educação, na perspectiva da construção de um efetivo regime democrático, que comporte em seu bojo a necessidade da transformação social. No discurso que pronunciou na solenidade de abertura de um congresso da UNE, realizado em julho de 1949, na Bahia, abre uma polêmica a respeito da interpretação sobre as possibilidades democráticas, tanto do capitalismo quanto e do socialismo no mundo: “Não estamos preparando, não estamos esperando, nem estamos evitando a revolução. Estamos em plena revolução social e estamos nela desde, pelo menos, os fins da década anterior a trinta. Nosso problema não é, pois, o de fazer a revolução, mas o de dirigi-la e orientá-la para o maior bem do mundo e o menor sofrimento social. Como a revolução industrial de ontem, não se faz pela vontade dos homens mas pela eclosão de forças acima do controle humano.” (ROCHA, 1992: 202). “Mas se a revolução é inevitável, não é inevitável a forma que pode ela assumir. Aí é que se abrem as alternativas que estão sob o controle da vontade humana. Pode a revolução assumir a forma totalitária ou democrática. A forma totalitária foi esmagada no último grande embate violento da guerra e todos esperamos que jamais ressurja, e a forma democrática se dividiu em duas modalidades, a das democracias populares do oriente e a das democracias socialistas ou pré-socialistas do ocidente. O entendimento entre estes dois estilos democráticos parece difícil mas não de todo impossível. Estamos a viver, agora mesmo, um momento de esperança, com a diminuição das tensões entre o leste e o oeste.” (ROCHA, 1992: 204). O tradicional jornal “A Tarde”, da Bahia, que publica o discurso na íntegra, toma a decisão de responder, em três editoriais, à supostamente escandalosa afirmação de Anísio de que o regime soviético poderia ser considerado democrático, afirmando: “E quando um homem da qualidade do Sr. Anísio Teixeira, dos seus altos atributos espirituais, fala aos moços uma linguagem que permite situar aquele quadro monstruoso dentro da democracia, cabe à imprensa, como a nossa, realmente servida em todo o curso de sua já longa vida por velhos e provados democratas, o dever de preservar o regime de todas as liberdades legais, de um conceito que o lança na parceria da mais feroz ditadura que o mundo já conheceu.” (ROCHA, 1992: 217). Na réplica precisa e imediata, Anísio reafirma corajosamente suas posições: “Julgaria fútil ou, perverso, lembrar-lhe o sofrimento - de que sei tão pouco - das massas do oriente, quando o meu dever era o de chamar a atenção para o sofrimento, ainda tão grande, de nossas massas urbanas e rurais, para toda essa imensa população nacional que vive, em plena pseudo-democracia cristã, em nível semelhante ao dos animais, pedindo e clamando não por direitos, que não sabem o que é isso, mas por assistência. Quando se tem, meu caro redator, em casa, demônios tão perigosos como este do nosso país, não precisamos mobilizar ninguém contra os demônios de fora. A mobilização de vontades, de inteligências e de consciências, cuja necessidade proclamo, deve ser para nos erguermos à altura do desafio que nos lança o Brasil.” (ROCHA, 1992: 222). Culmina sua gestão de Secretário de Educação e Saúde com a construção do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, a mais importante experiência brasileira em educação integral.

Afirmando estar certo de que vencera, afinal, “os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito...”, sintetiza a experiência política do Governo Mangabeira, em entrevista concedida a Odorico Tavares:

“O que foram esses quase quatro anos? Você sabe tanto quanto eu.. Não fizemos tudo, nem mesmo fizemos muito. Mas que prazer e que alegria trabalhar, como trabalhamos, em um governo notável pelo que fez e realizou de palpável e concreto, mas sobretudo excepcional pelo que realizou de invisível: a justiça, a liberdade e a confiança! Foi este clima que tornou o período Otávio Mangabeira na Bahia um dos grandes períodos de governo em qualquer parte da terra.” (ROCHA, 1992: 196).

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5 No Plano Federal, afirma-se o Estadista da Educação Após o final de seu mandato de Secretário de Educação e Saúde, na Bahia, em 1951, Anísio vai para o Ministério da Educação e Cultura, no novo Governo Vargas, a convite do Ministro Ernesto Simões Filho que, curiosamente, era o dono do jornal “A Tarde”, o mesmo com o qual aquela dura polêmica fora travada! Começa aí mais importante fase do educador, na qual exercita com plenitude a vocação de estadista, quando se torna o principal mentor da política educacional brasileira, daí até 1964, quando seria aposentado compulsoriamente pelo regime militar. Em 1951, participa, com Rômulo Almeida, do processo de organização da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal do ensino Superior (CAPES), de importância decisiva na modernização da universidade brasileira, com a ênfase na introdução da atividade preparação dos docentes para a pesquisa e na implantação da pós-graduação na Universidade Brasileira. Secretário Geral da CAPES, assume também, a partir de 1952, a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Ao destacar o papel das ciências auxiliares da educação (sociologia, psicologia e antropologia), incentiva bastante a pesquisa nessas áreas, por considerá-las essenciais para o aperfeiçoamento da infraestrutura educacional do país. Cria importantes incentivos à publicação de livros nessas áreas, através do instrumento da co-edição, sob o patrocínio do INEP, e instala o Centro Brasileiro de Pesquisas em Educação, associado a uma rede de centros regionais estaduais com o mesmo objetivo. Com Darcy Ribeiro, participa do processo do projeto de organização da Universidade de Brasília, retomando e atualizando as idéias com as quais contribuiu, pioneiramente, para a modernização do ensino superior no país, ao criar a Universidade do Distrito Federal, em 1935. Acumulando com os dois cargos anteriores, assume, a partir de 1962, a Reitoria da Universidade de Brasília. A participação no mais importante projeto da intelectualidade brasileira, representado pela construção da Universidade de Brasília (UNB), a partir do final dos anos 1950, deu a Anísio a condição de recolocar as idéias da UDF, de 1935, em um contexto novo, no qual muito contribuiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que, na época do início do projeto da UNB, era por ele presidida 8. A propósito do projeto da Universidade de Brasília, há um artigo em Anhembi, com a opinião de três ilustre personalidades do mundo cultural brasileiro, que dão sua opinião sobre o projeto da UNB. Aí, Anísio Teixeira afirma ter se posicionado, inicialmente, segundo uma posição de princípio: “Não fui, de início, entusiasta de uma Universidade em Brasília. Fundamentalmente contrário à idéia de Metrópole, nunca achei que a Capital de uma República devesse necessariamente possuir uma Universidade. Brasília deveria ser apenas a sede do governo.” (TEIXEIRA et al., 1961). Mas abre mão do princípio, convencido por Darcy Ribeiro da relevância cultural do projeto: “Se a essa estrutura imaginada para cooperação e a interpenetração juntamos as demais instituições planejadas para a vida em comum dos estudantes e dos professores, não será difícil perceber que a Universidade de Brasília deverá transformar-se no primeiro marco da integração universitária no Brasil. Ao invés da atual organização ganglionar senão pulverizada, a nova Universidade será verdadeiramente a unidade na diversidade. Pelo menos uma vez vamos ser fieis à semântica.” (TEIXEIRA, 1961c). Já o terceiro parceiro do artigo de Anhembi, F. H. Cardoso, dá uma opinião sobre o projeto da UNB da qual, pelo visto, parece também já ter se esquecido: “Acredito, entretanto, que é preciso tomar medidas complementares que, sem desnaturar a intenção que norteia o plano da Universidade, dêem as garantias necessárias ao professor, ao cientista e ao técnico, como homem e como criador de cultura. Assim, é preciso manter as conquistas sociais correntes que abrangem tanto a estabilidade do professor (não pelo mero decurso do tempo, mas a partir de critérios que considerem o currículo), quanto a viabilidade de uma carreira universitária à qual o trabalhador intelectual se possa dedicar na certeza de que terá amparo na velhice e de que sua família estará assegurada no caso de morte...” Ainda a respeito da UNB, Darcy Ribeiro dá um depoimento no qual responsabiliza Anísio pela antevisão de que a salvação da Universidade Brasileira estaria na generalização dos estudos de pós-graduação: “Houve, a propósito, na ocasião da organização da Universidade de Brasília, um debate em torno de um depoimento de Anísio feito no Senado, em que ele valorizava muito o quarto nível: mestrado e doutorado. Anísio chegou a ter a idéia, insistentemente, de que a Universidade de Brasília deveria ser só de quarto nível, deveria ser só mestrado e doutorado. ...Terminamos por construir a Universidade de Brasília com cursos de graduação também mas, graças a Anísio, ela nasceu fazendo graduação e pós-graduação simultaneamente; ela teve curso de mestrado no primeiro dia em que funcionou.” (ROCHA, 1992: 65). 8 A respeito da passagem, pouco estudada, de Anísio pela Presidência da SBPC, vale a citação: “O presidente da SBPC entre 1955 e 1959, Anísio Teixeira, que era também presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP), do Ministério da Educação, era uma figura controvertida, considerada ‘perigosamente esquerdista’ pelos círculos católicos conservadores dos anos 50 ( e seria mais tarde cassado pelo regime militar)”(FERNANDES, 1990: 56)

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Envolvido intensamente com as várias frentes de trabalho que acumula, sacrificando assim, a possibilidade de sistematizar a sua própria obra, tão raras vezes fala de si mesmo que, por curioso, vale a pena essa citação, de 1954: “Em toda a minha vida, jamais procurei formar discípulos. A minha própria filosofia, assistemática, não comporta mesmo a idéia de ter discípulos. Para ela, para mim o pensamento humano está em permanente reconstrução. Busco, humildemente, participar ou, pelo menos, acompanhar essa reconstrução. Geralmente, no meu contato com os outros, antes procuro avivar-lhes o sentido de revisão e estimulá-los a se criticarem, do que formá-los ou convencê-los, catequizando-os. E assim é que, freqüentemente, talvez perturbo mais do que educo.” (TEIXEIRA, 1954: 3). Em setembro de 1956, Anísio pronuncia uma conferência no Congresso Estadual de Educação do Estado de São Paulo, em Ribeirão Preto, que iria ter grande repercussão na vida nacional, pois é ela que dá os fundamentos para uma grande campanha pela escola pública, que ganharia toda a Nação, mas serviria de pretexto, mais uma vez, para um duro ataque da Igreja contra o educador, visando eliminar toda sua influência no governo federal. Nessa histórica conferência, assim Anísio caracteriza a instabilidade da situação política brasileira: “Se juntarmos ao vigor do tradicionalismo brasileiro assim renascido o despreparo da geração hoje dominante no país para a própria ideologia democrática, teremos as duas razões circunstanciais que tornam tão difícil, em nossa atual conjuntura, configurar de forma lúcida e convincente o problema da formação democrática do brasileiro. Às duas referidas circunstâncias veio ainda somar-se uma terceira e das mais importantes: a luta contra o comunismo, que se reabriu, logo após a segunda guerra mundial, durante a qual muitos chegaram a admitir certa atenuação, descontando-se a coexistência pacífica de dois mundos à parte... O caráter difuso da luta reaberta e quiçá exacerbada concorre para que dela se aproveitem certas forças reacionárias do capitalismo e do obscurantismo e se crie um clima pouco propício à afirmação do sentido revolucionário da democracia.” (TEIXEIRA, 1956: 17). Diante dessa circunstância, coloca-se à disposição para a tarefa de avaliação política das possibilidades de mudança, e defende a primazia da educação no processo, que deveria fundamentar-se em um programa claro de ação, baseado na obrigatoriedade do Estado de conceder oportunidades iguais a seus cidadãos, o mínimo dessas oportunidades não podendo deixar de incluir a educação pública, assim caracterizada: “Obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la confiada a particulares, pois estes somente podiam oferecê-la aos que tivessem posses (ou a ‘protegidos’) e daí operar antes para perpetuar as desigualdades sociais, que para removê-las. A escola pública, comum a todos, não seria, assim, o instrumento de benevolência de uma classe dominante, tomada de generosidade ou de medo, mas um direito do povo, sobretudo das classes trabalhadoras, para que, na ordem capitalista, o trabalho (não se trata, com efeito, de nenhuma doutrina socialista, mas do melhor capitalismo) não se conservasse servil, submetido e degradado, mas, igual ao capital na consciência de suas reivindicações e dos seus direitos. A escola pública universal e gratuita não é doutrina especificamente socialista, como não é socialista a doutrina dos sindicatos e do direito de organização dos trabalhadores, antes são estes os pontos fundamentais por que se afirmou e possivelmente ainda se afirma a viabilidade do capitalismo ou o remédio e o freio para os desvios que o tornariam intolerável. A sobrevivência do capitalismo, em grande parte do mundo, não se explica senão por estes dois recursos ou instrumentos de defesa contra a desigualdade excessiva que o capitalismo provocaria e provoca, sempre que faltem ao povo escola pública e sindicato livre.” (TEIXEIRA, 1956: 6). O embate com a Igreja durou cerca de dois anos, mobilizando amplamente ambos os lados, mas não foi suficiente para afastá-lo de novo da educação, como ocorrera em 1935. A repercussão dessa vitória de Anísio lhe dá o apoio político suficiente para iniciar a implantação da escola publica e gratuita em escala nacional, que tem início com um ambicioso plano de construção escolar cuja execução avança bastante no início dos anos 1960, interrompendo-se, porém, definitivamente, em 1964, com o advento do militarismo e a conseqüente derrota das lutas de interesse popular no Brasil.

A luta pela escola pública desenvolvida no final dos anos 1950, e que se projetou pelos anos 1960 como tendo sido vencida pelos setores populares, mobilizados contra a posição da Igreja em defesa da liberdade de ensino9, foi a oportunidade para a emergência do estadista da educação Anísio Teixeira, na feliz expressão de Hermes Lima. Os lances da disputa com a Igreja em torno do tema, levaram à escolha do Frei Evaristo P. Arns, pela cúpula da Igreja, como o filósofo escalado para responder à competente argumentação de Anísio. Mas, avaliar a derrota de suas hostes, ocorrida no episódio do Memorial dos bispos10, chega a elaborar uma argumentação um tanto quanto frágil e simplista a respeito do que seria o ensino livre, defendido pela Igreja: 9 Uma apresentação sistemática do significado preciso dessa expressão, do ponto de vista da Igreja, à época, pode ser encontrada em (OTÃO, J. , 1958: 681) 10 O Memorial dos bispos gaúchos ao presidente da República sobre a Escola Pública Única, foi um documento organizado pelo Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, D. Vicente Scherer, de 29 de março de 1958 que, devido a seu caráter estreito, precipitou a derrota da Igreja, à

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“Ora, todos que conferimos estatísticas sobre o ensino sabemos que as escolas públicas gastam duas, quatro e outras tantas vezes mais com a formação de um aluno do que os institutos particulares. Logo, é um ensino caro para o Brasil. Não seria mais lógico que o governo distribuísse as verbas do ensino sobre os institutos particulares e vigiasse apenas o bom emprego delas?” (ARNS, 1958b: 461).

Após o embate com a Igreja, cresce o movimento pela escola pública, gratuita e universal. Com a entrada de Jânio Quadros na Presidência da República, depois a sua renúncia e a posse tumultuada de João Goulart, configura-se uma situação de grande instabilidade, na qual, por um lado o movimento popular se amplia e radicaliza, em defesa das reformas de base( incluindo a educacional), e por outro os setores reacionários, no qual a Igreja recicla-se, assumindo um novo e importante papel, o de organizar grandes marchas, “com Deus e a família, pela liberdade”, contra o comunismo. Por trás de tudo isso, sabe-se melhor hoje, o apoio logístico do governo norte-americano. Sobre esse período, Anísio escreve um editorial da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em 1963, um artigo intitulado: Revolução e educação, no qual analisa o momento político: “Não se pode, pois, dizer que haja luta de classes no país. Enquanto existir a massa de ineducados, não se caracteriza a luta de classes. O ineducado é candidato ao ingresso num dos grupos privilegiados. Dentro deles é que poderia haver luta de classes, mas isto também não existe porque o grupo precisa de unidade para a garantia de sua própria e privilegiada situação e daí não haver luta entre seus membros contra a ascensão da massa indiscriminada.” “Não é outro, parece-nos, o motivo da resistência nacional a qualquer expansão séria e em massa da educação. Tal expansão é que viria quebrar a tranqüila viabilidade dos sistemas de privilégio. A expansão desordenada, ineficaz, marcada pelo signo do acidente e da sorte, é a única expansão tolerada. Daí escolas primárias de pilhéria, pobres e ineficientes, ginásios improvisados e inoperantes e ensino superior confuso e verbalístico. Para tudo isto, o apoio é manifesto e os recursos – aliás modestos - não faltam.” (TEIXEIRA, 1963b: 4) Com o advento do golpe militar de 1964, a luta pela escola pública sofre um duro revés, que se aprofunda cada vez mais, até os dias atuais, passando até mesmo dos limites que a própria Igreja esperava não ver ultrapassados. A derrota dos interesses populares faz com que o Plano Nacional de Educação, de 1962, obra meticulosamente construída, passo a passo, por Anísio Teixeira, seja interrompido, logo após a estréia, no ano de 1963. Uma vez mais, e agora definitivamente, Anísio é afastado da educação em conseqüência da situação política, como que a provar que sua trajetória de educador é incompatível com os regimes de exceção. Aposentado compulsoriamente do serviço público, em abril de 1964, é submetido a um inquérito policial militar, mas nada consegue ser provado contra ele. Daí em diante continua a ser consultado, nacional e internacionalmente, em assuntos de sua especialidade, particularmente no que diz respeito ao ensino superior. Passa alguns períodos fora do país, a convite de universidades do continente americano, inclusive como consultor, o caso Chile. A Universidade Latino-Americana é tema de alguns de seus artigos dessa época, em um dos quais trata da questão da autonomia universitária: “Não se encontra, assim, entre as universidades da Europa e do mundo anglo-saxão o ‘problema’ da autonomia. Esta era sempre algo de constitucionalmente adquirido no ato mesmo de criação da universidade e condição de seu funcionamento. As circunstâncias que tornam a autonomia universitária um ‘problema’ e, por vezes, crítico, na América Latina, originam-se mais da própria instabilidade e insegurança da sociedade latino-americana do que da universidade propriamente dita. (TEIXEIRA, 1967b: 56). A reforma da Universidade Brasileira, de 1968, mereceu a reflexão de Anísio, contida basicamente em um longo depoimento que apresentou a uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, em 8 de maio de 1968, o qual é iniciado com a apresentação de um completo painel sobre o desenvolvimento da universidade no mundo, no qual chama a atenção para a natureza essencialmente dinâmica de sua evolução, comporta altos e baixos, a exigir dos planejadores um cuidadoso acompanhamento do fluir da histórica e uma afinada sintonia com a realidade nacional onde o projeto de universidade se insere. A propósito, vale citá-lo: “A instituição universitária é realmente medieval. Foi na Idade Média que ela de fato realizou a verdadeira unificação da cultura chamada ocidental. A cultura da Europa foi unificada por essa universidade medieval que surgiu nas alturas dos séculos XI e XII, e que elaborou realmente um trabalho extraordinário de unificação intelectual do pensamento humano naquela época. Essa universidade, que chega a seu clímax, a seu ápice no século XIV, entra depois num período de consolidação tão rígida e tão uniforme que verdadeiramente se torna uma das grandes forças conservadoras do mundo. Ela não aceitou completamente nem o Renascimento nem a Reforma e, durante os séculos XV, XVI, XVII e XVIII, prosseguiu num extraordinário isolamento dentro da sociedade. Era então a velha universidade medieval defendendo-se completamente dessas forças exteriores que se encaminhavam para transformá-la.” (TEIXEIRA, 1968c: 21) “O aparecimento da universidade representou uma extraordinária inovação. Quando o crescimento intelectual da nossa cultura chamada ocidental entra em consolidação, o aparecimento da universidade, como corporação de professores e de estudantes, era uma

medida que muitos membros do clero, inclusive o Arcebispo Primaz do Brasil, D. Augusto Álvaro, Cardeal da Silva, da Bahia, saíram em defesa de Anísio. O texto integral do Memorial encontra-se no número de maio de 1958, da revista Vozes, p. 362.

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total novidade, que foi facilitada pela obra da Igreja, que deu as cartas necessárias para a criação dessa universidade. Essa universidade, segundo a organização ao tempo da Idade Média, era uma corporação de professores e alunos, entregues à sua tarefa de descobrir a verdade, de descobrir o conhecimento. Podemos datar o verdadeiro período de florescimento da universidade medieval, da Universidade de Paris. Esta Universidade realizou o extraordinário trabalho de juntar a Teologia à Filosofia e, com ambas, fazer a obra intelectual dos séculos XII, XIII e XIV. Começa, no século XV, a decair, só vindo a renascer, verdadeiramente renascer, nos princípios do século XIX.” (TEIXEIRA, 1968c: 22). Mesmo após o momento de seu afastamento da educação, em 1964, retoma sempre o tema da revolução, articulando-o com a questão da escola pública, através de sua conexão com conjuntura política e social do país. Apresenta-se, abaixo, uma citação retirada do discurso que pronunciou em dezembro de 1967, na condição de paraninfo dos concluintes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, que isso ilustra. O título que dá ao pronunciamento é A longa revolução de nosso tempo: “A circunstância de estarmos, como país em desenvolvimento, vivendo as fases pregressas da revolução simultaneamente com a fase atual de conhecimento humano, torna impossível reproduzir os períodos históricos por que passaram os países desenvolvidos. Estamos mergulhados no momento histórico presente e, desse modo, nossos problemas se vêem agravados pela contradição entre a nossa situação material pré-industrial e a consciência histórica do momento, em rigor, correspondente ao período em que iremos viver mas em que ainda não vivemos. Aí está, no meu ver, a grande dificuldade de país, como o nosso, em desenvolvimento. Nossas condições são as de cem anos atrás e temos de lutar pela sua adaptação aos conhecimentos e ao instrumental de hoje. Não só isto, mas ao estado de espírito de hoje.” (TEIXEIRA, 1968: 18). 6 À Guisa de Conclusão Com o painel aqui apresentado, espera-se ter contribuído para a indicação de elementos, não somente da obra como da vida de Anísio Teixeira, que individualizam sua trajetória como a de um educador avançado, para além da simples caracterização de liberal. O que orientou essa busca, apenas parcial, não foi o propósito faccioso de forçar o entendimento de que Anísio defendia a revolução social, nos moldes em que passou-se a entender esse processo após o advento da Revolução Socialista de 1917, na URSS. Embora dizendo-se sentir incompleto, segundo o testemunho de familiares e amigos, por não ter conseguido se assenhorar das categorias do marxismo, Anísio adota, de fato, a perspectiva de uma revolução que a original doutrina liberal propõe como um direito da sociedade. Embora na vida poucos tenham tão bem exercitado a dialética quanto ele, sua perspectiva de revolução, através da educação, é, em certo sentido, oposta à verificada nos processos revolucionários de caráter socialista desencadeados - alguns com sucesso - no correr do século XX: enquanto a proposta de Anísio coloca a implantação da educação pública e gratuita como pré-condição para a revolução social, qualquer que seja o seu caráter (democrática ou socialista), as revoluções de caráter socialista realizadas no século XX provaram exatamente o contrário, isto é, que, enquanto dura, a revolução social consegue levar avante, e rapidamente, a tarefa de extinguir o analfabetismo e de elevar o nível da educação de todo o povo. Outro propósito do artigo é enfatizar que, mais do que um educador, Anísio foi um homem de cultura e, nesse particular, o conjunto de suas ações revela que contribuiu, em todos os campos nos quais atuou, para se dividir o calendário em dois períodos: antes e depois de Anísio Teixeira. Sem falar na óbvia importância do educador, sua contribuição cultural para além da educação, que ainda está para ser aferida, vale somente pelo incentivo que deu à indústria editorial brasileira, particularmente no que se refere à divulgação de textos ligados às Ciências do Homem, através do esquema de coedição do INEP.

Embora tenha afirmado não ter a pretensão de formar discípulos, sua vida, sobretudo revolucionária, tem gerado exatamente o contrário: é preciso saber-se quem, ao conhecer o conjunto de sua obra, não busque, de alguma forma, tornar-se seu discípulo!

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Título: Anísio Teixeira e a Escola Pública Autor: Francisco Gilson R. Porto Júnior Editora: CopyMarket.com, 2000

Anísio Teixeira, Reflexões do Entardecer

Francisco Gilson R. Porto Júnior

Marta Maria de Araújo1

Jader de Medeiros Britto 2

Impregnado da filosofia socrática de pôr em questão o conhecimento estabelecido, reformulando a cada passo sua própria percepção do real, Anísio Teixeira não poderia tornar-se persona grata aos regimes autoritários. Conforme se verifica em seus registros biográficos, ele foi descartado de funções que exercia, com zelo inexcedível, na administração pública da educação e no magistério, precisamente por governos incompatíveis com a prática da liberdade. De modo que 1964 reproduz 1935. Regimes políticos autoritários, a serviço de interesses oligárquicos ou privatistas, não poderiam incluir, em seus quadros dirigentes, intelectuais empenhados na transformação estrutural da sociedade, buscando soluções para problemas crônicos, como o do acesso aos estratos menos favorecidos aos bens da cultura e da educação pública laica, e igualitária para todos.

Apesar da iniciativa e do caráter burguês (Germano, 1993), o Golpe de Estado de 1964 coube às Forças Armadas sua intervenção executiva, resultando num controle militar do Estado Brasileiro durante 21 anos, implicando uma determinada forma de violência ditatorial e, por conseguinte, a perseguição política a setores intelectuais brasileiros. A violência produzida, nesses anos ditatoriais, como mostra Vasconcelos (1998:25), não deixava de ser marcada simbolicamente pela exclusão, interdição discursiva, negação de identidade, perda de relações afetivas, cujo fundamento ideológico provinha da Doutrina de Segurança Nacional, engendrada na Escola Superior de Guerra – ESG.

Nesse Brasil autoritário, Anísio fora um dos intelectuais perseguidos pelo regime de 1964, e, segundo Lima (1978), isso não poderia deixar de acontecer. Fora afastado, em 1935, do cargo de Diretor da Instrução Pública no Distrito Federal. Ainda no início de 1935, juntamente com o próprio Hermes Lima, teve a ousadia de esboçar um programa para organização do Partido Socialista no Distrito Federal.3 Desde o primeiro momento da tramitação do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Congresso Nacional, em 1948, por defender, veementemente, uma educação pública, laica, única, universal, gratuita e de qualidade, enfrentou discriminações diversas entre as quais a dos Bispos gaúchos, em 1958, apoiados, no mesmo ano, pela Conferência Nacional dos Bispos.

Em 1964, foi afastado dos cargos públicos de Secretário-Geral da então Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (1951-1964), de Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP (1952-1964) e Reitor interino da Universidade de Brasília (1963-1964), tendo sido submetido a dois Inquéritos Policiais Militares (IPMs). O processo indiciara-o, como mostra Lima (1978), ao mesmo tempo em que lhes chegavam os convites4 - um da Columbia University para, na qualidade de Visiting Scholar e Consultant do Teacher’s College, ministrar um curso; outro, no mesmo sentido, da Universidade da Califórnia - onde em abril de 1965, dentro da série da Conferência Anual Sir John Adams, discorreu sobre Democracy And Its Creative Achievement In Education.

1 Marta Maria de Araújo é Doutora em Educação e Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte –UFRN. 2 Jader de Medeiros Britto é Pesquisador Associado do Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade – PROEDES/FE –UFRJ. 3 A respeito do envolvimento da Anísio Teixeira juntamente com o amigo Hermes Lima consultar Nunes (1991) e Mendonça (1996). Cita Nunes (p.438) o seguinte trecho do programa escrito por Anísio: Temos que considerar o sentido radical e revolucionário de nossa obra pública, dar-lhe definitivamente o apoio de princípios básicos de ordem política e desenvolver-lhe o programa largo e radical de suas reivindicações. Diz Mendonça que para Anísio a disputa pela “direção da sociedade” pressupunha a participação no processo político estrito senso e a conquista do Estado. 4 Mostra Lima (1978) que a viagem de Anísio aos Estados Unidos somente foi possível dada a autorização do Presidente Castelo Branco.

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No período de abril de 1965 a março de 1971, esteve sempre atento às nossas realidades, analisando suas contradições pela recorrência da lógica argumentativa, especialmente as da educação, visualizando-as no quadro das transformações sócio-culturais do processo histórico5. Em vez do exílio voluntário ou do trabalho no exterior, optou por ficar no Brasil, desenvolvendo atividades intelectuais diversas, como a de consultor da Editora Nacional, no Rio de Janeiro, exercendo, ainda, o mandato de seis anos no Conselho Federal de Educação, concluído e não renovado em 1968, proferindo conferências, colaborando com o Centro de Estudos Treinamento e Recursos Humanos da Fundação Getúlio Vargas, escrevendo para a Folha de São Paulo, editando, sobretudo, pela Companhia Editora Nacional através da Coleção Cultura, Sociedade, Educação, sua produção dispersa em conferências, discursos, estudos, além de outras.

O presente texto articula-se em torno das reflexões de Anísio, no período de 1967 a 1971, e que apesar de muito pouco analisadas pela historiografia da educação, vale a pena reexaminá-las, tendo especialmente, nas conferências por ele ministradas, a matéria prima desse estudo, cujo objeto trata de levantar o que discutira sobre o papel do educador como intelectual e dirigente na sociedade contemporânea científica e tecnológica.

Em dezembro de 1967, convidado para Paraninfo da turma de concluintes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, discorre em Conferência A Longa Revolução de Nosso Tempo6. Apresentando-se como tendo a mesma idade do século XX,7 olhava-o como sendo o século da mudança e da velocidade. Pelo imenso tempo vivido e espectador atento às então transformações em curso, dizia-se está mais em estado de aumentar as suas dúvidas do que a guardar as suas possíveis certezas (p.11). Pelas frestas que acompanhava a evolução do tempo percebia havendo um desencontro entre os que os homens querem o que acontece (p.11). Isto porque, historicamente, os poderosos aparentemente retardam e dificultam imensamente o que poderia acontecer para todos.

Ao conceder primazia a uma certa filosofia da história, Anísio mostrava que em fins do século XVIII, havia sido marcado por um movimento de idéias democráticas quase simultâneas ao processo de industrialização que se inseriram na sociedade mercantilista em dinâmica renovação, por conseguinte, o movimento democrático – revolucionário no sentido da direção e da significação da vida humana; enquanto o outro, revolucionário apenas no sentido da mudança das condições de produção e da organização social (p.15) e, em rigor, indiferente a qualquer mudança no sentido dos valores sociais humanos. Nesses anos e adentrando no século XIX, mostrava Anísio - em Conferência intitulada Mudar: Característico da Cultura Contemporânea, realizada em dezembro de 1959, na condição de paraninfo da turma de professores da Faculdade Nacional de Filosofia - que a humanidade viveu, com efeito, uma verdadeira liberdade de pensamento, possivelmente a maior da História.

Enquanto o século XIX, pela difícil coexistência desses dois movimentos, provocava uma produção do pensamento social crítico relativo aos aspectos político, econômico, religioso, estético e propriamente social tendo como alvo à própria sociedade humana existente. Esse pensamento social, de certo modo, para Anísio, influiu sobre o desenvolvimento industrial, mas, em rigor, não o dirigiu nenhuma mudança substancial no então quadro social conservador. Acreditaram os intelectuais liberais do século XIX que as idéias, uma vez expostas, tinham, por si mesmas, o poder de se efetivarem, quando, para isso, necessário se fazia sua incorporação às intervenções instituídas, para fins de conduzir a mudança social (p.15). Aliás, as suas reflexões não deixavam de primar pela rememoração dos acontecimentos históricos, comprovando, assim, uma postura filosófica socrática.

Ao tecer essas argumentações, ele almejava o desenvolvimento da sociedade contemporânea, e, em particular, do mundo ocidental capitalista em que a fábrica, a organização mecânica do trabalho, a produção em massa e o lucro, fizeram-se símbolo de todo o novo modo de viver individual e coletivamente. Aliás, a globalização do processo industrial em curso no século XX, fulcro dessa sua reflexão, e por conseguinte, a extensão dos seus efeitos a todos os aspectos da vida social, vinha impondo nas palavras de Anísio, uma interdependência que se faz imperativa para todas as nações pequenas e relativamente manipulável apenas pelas grandes nações (p. 15). Ao fazer essa conferência, cabe salientar que a hegemonia americana estava em processo de consumar-se.

5 O depoimento de Jader Britto é elucidativo nesse sentido: “Convidado por ele, em 1967, para colaborar como assistente de pesquisa em survey sobre as universidades brasileiras, patrocinado pelo BID, tive o privilégio de conviver com o intelectual Anísio, vendo-o aplicar a lógica argumentativa em análises sócio-educacionais, mas também em questões mais simples do dia-a-dia”. 6 A presente Conferência foi publicada posteriormente na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos de jan./mar. 1968. 7 Anísio Spínola Teixeira nasceu em Caetité (BA) a 12 de julho de 1900.

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A longa e interrompida revolução do tempo contida de negações, aceitações, conformismos e inconformismos, a despeito dessas contradições, estava marcada aos olhos de Anísio (p. 23), por mudanças da natureza do conhecimento agora utilizável, no comportamento do homem novo que as condições atuais gerava, na difusão da informação e na forma de conhecimento entre os homens, implicando a alteridade do trabalho pedagógico do educador e na exigência da educação escolar para todos. Desta perspectiva, a revolução na educação era sobretudo de conhecimento e método de ensino. E a exigência de um novo tipo de educador começava a se impor.

Aos concluintes do curso de Filosofia, indiscutivelmente futuros educadores e dirigentes, Anísio alertava que, naquele momento, o conhecimento já não era, apenas, necessário para compreensão da vida, mas instrumental para o trabalho moderno dotado de cientificidade e tecnicamente qualificado. Quaisquer que sejam as formas de produção, todas elas requerem treino escolar e o saber fazer tanto intelectual como técnico. E em face de um processo global de desenvolvimento complexo e contraditório, o grande desafio pedagógico dos educadores seria, fundamentalmente, fazer com que a educação escolar tenha como princípio educativo o trabalho – ou seja - ensinar a trabalhar desde nível primário ao superior (p.24). Detendo-se sobre o papel do intelectual em momento de mudança social, Anísio tinha a compreensão de que a ele consistia descobrir idéias capazes de dar direção às transformações da época e às vindouras.

Já, na Conferência de 1959, mostrava que a civilização industrial fundada na ciência que mudava de dia para dia se criando uma “tradição” de mudança, caberia aos educadores transmitir não a tradição mas revisão da tradição. Restabelecer a “tradição” de rebeldia e de inconformidade dos pensadores do século XVIII e XIX na arte de pensar e saber, mas avançando na marcha desse pensamento baseado em novos métodos e referências, sendo então não apenas os guardiães do passado (...), mas intelectuais antecipadores do futuro e, no final de contas, os seus promotores (p.121e 122). Seja como for, cabia a eles a ousadia de serem os intelectuais promotores através da arte de pensar e de praticar a instauração de uma sociedade, quiçá, sem miséria e subdesenvolvimento. Para Anísio, as exigências da sociedade industrial, substituta da agrícola, eram fundamentalmente de ordem do alargamento e da mutabilidade do trabalho pedagógico do educador.

No entanto, e apesar de todos os obstáculos vencendo o nosso subdesenvolvimento, apostava que é a educação, é a escola, é a descoberta, a formulação e a difusão da cultura brasileira, e a ação dos educadores enquanto intelectuais, mediante os quais poderia pôr sob controle a transformação social em curso e consolidar a nação brasileira (p.25). Recordava que a nação francesa, profundamente envolvida com a constituição dessa longa revolução, designou seus professores primários de instituteurs, ou seja, os instituidores da nação. O seu ideal pedagógico era que os educadores brasileiros fossem, portanto, os intelectuais instituidores de um novo projeto de Brasil justo e igualitário.

Em novembro de 1970, Anísio Teixeira em Conferência proferida na Fundação Getúlio Vargas, a um auditório de documentalistas do curso de Teoria e Prática da Microfilmagem, a última realizada antes de sua morte, em março de 1971, discorrendo sobre Cultura e Tecnologia, sublinhava a gravidade de estarem as tecnologias limitando, se não destruindo, a inerente natureza transcendente e crítica do pensamento humano (p.5). Desde meados dos anos 60, familiarizara-se com o que denominava de O Pensamento Precursor de McLuhan (1970), especialmente com A Galáxia de Gutemberg (1972), em que traduziu juntamente com Leônidas Gontijo de Carvalho. Apresentando a obra, fazia uma menção como sendo o livro fundamental daquele pensador, baseado em sua identificação das tecnologias com extensões do indivíduo, dos seus sentidos, das suas formas existenciais, o que fazia de certos dirigentes da cultura tipográfica e moderna, com um saber-poder não atingido por qualquer outro dirigente.

O pensador, o professor, o intelectual dirigente, enfim, o habitante da referida galáxia, consciente do papel relevante do livro, da biblioteca, do documento na formação da cultura e na elaboração do conhecimento serve-se da oportunidade para colocar, uma vez mais, suas indagações e perplexidades da afluência do saber técnico sobre o saber humano. E indaga se a produção do conhecimento está voltando apenas para a busca do saber-poder, e este limitando-se ao saber extrínseco ao homem (p.5-6). A indagação aqui se faz eco das raízes gregas de sua formação, de um saber especulativo, metafísico e carregado de subjetividade.

Recordando a trajetória do conhecimento científico e da sua compartimentalização em material e espiritual, objetivo e subjetivo, de meios e de fins, detendo-se no papel da ciência com a sociedade industrial em que se fez a fonte do novo poder humano sobre a natureza e as condições materiais de existência (p.7), advertia que este, aliado ao sistema econômico dominante, desenvolveu tecnologias que transformaram materialmente o mundo (...) que por sua vez, o moldaram para a fácil conformação às condições do sistema econômico que acabou por assimila-la (p.9). Justamente nessa linha de pensamento, se refere à Cultura significando o esforço humano por controlar o desenvolvimento em que nos lançam as extensões tecnológicas em nossos sentidos e poderes (p. 10). É então por meio da educação que o homem compreende e

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controla essas extensões tecnológicas em constantes revisões e reformas. Mas a filosofia antes mestra da compreensão da vida, com base no método científico, deve fazer-se estudiosa dos usos da ciência e dos valores humanos (...), a fim de fazer compreender os decálogos do comportamento e da sociedade humanos, da “arte de viver” (p.11). Estender o método científico aos problemas humanos e ao uso humano da ciência não deixava de ser o problema da sociedade presente automatizada, por assim dizer automática, na assimilação das novas tecnologias. À luz dessa perspectiva, caberia aos pensadores sociais, enquanto intelectuais, voltarem-se ao estudo do processo cultural no espaço e no tempo, envolvendo não apenas o ser humano, mas ele e o mundo construído pelas tecnologias, visando ao seu conhecimento e ao seu controle e à correspondência entre meios e fins a que se destinam. Como educador, ou melhor, à maneira socrática, a sua exposição revestia-se de um esclarecimento, de um diálogo vivo e amistoso, com base no pensamento de Marshall McLuhan, quanto aos efeitos das tecnologias consideradas como sistema de extensão dos sentidos e faculdades humanas (...), os quais alteram o ambiente cultural e passa a comandar a percepção, a ação e o sentimento do homem, lançando-o em processo de mudança de natureza automática (...), impedindo a conscientização dessa modificação (p. 21). E, deste modo, torna o ser humano impotente para apreensão das mudanças culturais ocorrentes.

O seu afã de fazer com que pensadores sociais, educadores, e, porque não os próprios documentalistas, se voltarem para os aspectos negativos e também positivos das novas tecnologias que delas resultavam novas formas de experiência humana e, conseqüentemente, de organização da vida existencial, material e social - incidia agora fazer orientado pelos problemas práticos concretos da vida humana, sob os efeitos culturais da tecnologia em face da era da automação.

No parecer de Anísio, a “secularização” global de vida humana e material, os meios de comunicação simultâneos e universais, a eletrônica substituindo a mecânica e a tipográfica da extinta era moderna, indiscutivelmente, operava-se uma reconfiguração da Galáxia de Gutenberg, fazendo com que, mais uma vez, o ser humano na travessia para uma nova era mundializada esteja acometido de perplexidades, incertezas, dúvidas existências e contestações. E a documentação é o material básico de investigação, exame e interpretação da história da cultura em permanente alteridade. Essa recomendação não deixava de ser uma atitude filosófica explicável em Anísio, pois tinha a ver com o ethos da atuação pedagógica daqueles profissionais. Certamente a Anísio, a especulação em torno do que chamava da nossa entrada numa uma nova era tribal de aldeia global, não deixava de trazer uma reflexão oportuna da consciência de cada um de si próprio num mundo então dominado por múltiplas tecnologias limitadoras do pensamento filosófico crítico. Daí o mal-estar profundo da humanidade.

Quando em agosto de 1963, em Conferência proferida em Sessão do Conselho Internacional de Educação para o Ensino, reunido no Rio de Janeiro, Anísio discorre sobre Mestres de Amanhã (1969), não é mais do que uma preocupação com a formação do educador da escola primária e secundária em sintonia com a moderna sociedade industrial e tecnológica. Na profunda coerência com que enxergava a transformação de uma sociedade agrária na moderna sociedade urbano-industrial com o seu inevitável lastro de inovações no setor trabalho, comunicação, conhecimento e tecnologia, Anísio invocava uma nova formação para o educador em que lhe possibilitasse saber operar com recursos tecnológicos, e através deles ensinar basicamente as disciplinas do pensamento científico, ou seja, do pensamento matemático, experimental, biológico, e a do pensamento das ciências sociais (p.158). De par com a premissa de que aos novos mestres caberá ser os iniciadores do método científico na escola do que os simples adaptadores das escolas às sociedades afluentes dominadas no todo ou em parte pelo progresso científico e tecnológico, impunha-se o esforço de se avançar num tipo de escola condizente com a sociedade moderna que ela representa e de um novo tipo de educador.

À luz dessa perspectiva, a escola deverá estar mais para uma oficina, um laboratório, uma estação de televisão do que para a escola do passado e ainda do presente. A uma nova organização do ensino e da escola implicará um novo tipo de educador que venha através dos recursos tecnológicos disponíveis iniciar a criança e o adolescente na arte de pensar objetiva e cientificamente, de utilizar os conhecimentos que a pesquisa lhe está a trazer constantemente (...), e a despeito da complexidade e a confusão moderna, ensinar também a arte de vida pessoal numa sociedade extremamente impessoal (p.160). Mas, Anísio, certamente se empenharia em buscar realizar na prática a reflexão pedagógica sobre uma nova formação do professor, suspensa na década de 1960. Em janeiro de 1971, dois meses antes de sua morte trágica, Anísio apresentava como membro da Comissão instituída pelo Presidente da Fundação Getúlio Vargas, uma primeira proposição para criação de um Centro de Estudos de Pós-Graduação em Educação, através de documento denominado Caráter Experimental dos Estudos Avançados dos Problemas Brasileiros da Educação. Essa proposição, portanto, serviu de projeto para criação institucional do Mestrado do Instituto de Estudos Avançados em Educação – IESAE, da Fundação Getúlio Vargas em 1972.

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Indubitavelmente, a reflexão pedagógica educacional, antes desenvolvida, aqui, ganha foro de proposição, aplicação. Perscrutando os problemas estruturais brasileiros, decorrentes de um processo de urbano-industrialização fragmentado, localizado, apenas, em certas áreas desenvolvidas, processo esse culturalmente dependente da importação ou transplantação de “produtos” tecnológicos, Anísio não deixava de recordar que essa dependência constituía entrave para a verdadeira autonomia cultural da nação brasileira. O Brasil, por sua condição de país subdesenvolvido, deverá, para Anísio, refazer o que os desenvolvidos fizeram há cinqüenta, cem anos, ou seja, criar as matrizes de métodos, formas e hábitos de pensar, que constituem as bases do conhecimento científico e dos conhecimentos tecnológicos, como resultado de sua aplicação, e fazer isto quando os ‘produtos’ dessa tecnologia já lhe invadiram a vida de forma avassaladora, dando-lhe o ilusório sentimento de que a ‘cultura’ pode ser ‘importada’, quando, na realidade, tem de ser ‘re-criada’ (p.3). Tal formulação revela a preocupação de Anísio com a constituição de um projeto cultural de nação, isento de traços colonialistas. No entanto, essa reflexão crítica e negativa da nação brasileira é indicativa de sua insistente defesa da necessidade da criação de novos modelos de educação de base científica e tecnológica, condizentes com a sociedade urbana e industrializada e um novo tipo de intelectual encarnado na figura do professor e do dirigente educacional. Pode-se afirmar, inclusive, que Anísio sobreleva a educação como sendo o caminho para a recriação de matrizes científicas e tecnológicas, a partir das próprias condições de cultura, de lugar, e de tempo (...), com as particularidades e as inovações inevitáveis de um processo de re-assimilação, sob aspecto original, novo e criador (p.4). Assim sendo, carecia pensar um projeto de pós-graduação para a formação intelectual do professor, para o magistério, e, para as funções de dirigente educacional. Mas seria impossível expor, como Anísio pensou, essa formação do professor, sem levar em conta a sua descrição sobre o estado precaríssimo da educação no Brasil. Apresentava como i) repetência da grande massa de alunos da escola primária; ii) improvisação do ensino secundário; iii) deficiência de formação técnica no nível profissional; iv) expansão do ensino superior sem os cuidados necessários de preparação de seu magistério. Esse estado decorrente da ineficiência de todo o sistema e da expansão avassalante e irreprimível deste, tornava aos olhos de Anísio o problema da formação do professor, não somente o problema fundamental que é em qualquer sistema escolar, mas o problema de maior urgência e mais alta prioridade (p.6). De fato – reconhecia ele de forma otimista – com a vastidão, a variedade e a especialização do saber e a necessidade de ensinar não somente o saber em si mesmo, mas o saber aplicado, e, também a sua tecnologia, para a imensa variedade de ocupações especializadas e semi-especializadas, as quais conjugam saberes especializados com os interdisciplinares, tudo isto tornava a atividade de ensinar extremamente complexa e objeto de estudo e pesquisa educacionais em nível de pós-graduação (p.7). A proposição de um Instituto de Estudos Avançados em Educação a ser levado a cabo pela Fundação Getúlio Vargas deveria vir acompanhada pelo pressuposto de uma organização e reorganização ad-hoc do saber a ser ministrado, melhores estratégias e métodos de fazê-lo e de medir-lhe a eficiência, para melhor adaptação dos currículos à variedade dos cursos e àqueles a que se destinam (p. 7). Nessa direção, apresentava como sendo seus objetivos: i) estudar a educação brasileira, com vistas a formular seus problemas gerais e específicos de desenvolvimento; ii) encaminhar, mediante tais estudos a solução desses problemas (...), recomendando planos experimentais de ação; iii) formar especialistas de educação e professores em nível de pós-graduação destinados a liderar e conduzir, no nível da administração e da formação de professores, o processo de análise e gradual reconstrução da situação educacional brasileira. Além do mais, o Instituto deveria visar, primordialmente, a estudar e a pesquisar para descobrir os fatos e interpretá-los, a fim de cooperar no planejamento dos sistemas, na organização e no desenvolvimento das escolas, na construção de seus currículos, na formação do professorado e na medida e avaliação do esforço educacional (p.8). Pela investigação da problemática educacional em nível nacional e regional e suas possíveis soluções, constituiriam o programa de estudo e pesquisa do Instituto. Acoplada a idéia de criar uma atitude de investigação e de experiência da problemática educacional vem a sua intenção última de formação de um centro de pensamento para uma nova abordagem dos problemas da educação, conforme a do systems analysis, projetos do gênero Projects to Advance Creativity in Education – PACE e do National Assessment of Education Progress, da Carnegie Carnegie Corporation, desenvolvidos nos Estados Unidos, embora não se constituindo de modo algum transplante, importação, mas formulação particular coerente com as condições nacionais brasileiras. Um Instituto de Estudos Avançados em Educação destinado à formação do professor em nível de mestrado, se constituiria o locus por excelência de formação de um novo tipo de intelectual para pensar, planejar e dar uma direção à educação brasileira, adequada à cultura contemporânea baseada na ciência e na tecnologia.

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É certo que, como pensador, Anísio procurava combinar formulações que são próprias de escolas de pensamento, especialmente as do liberalismo e do pragmatismo de cunho humanista. Chaves (1999:86-7), baseada no conceito de afinidade eletiva esboçado por Michel Löwy, mostra que as idéias de Anísio parte integrante de uma tradição que não se limita a John Dewey, mas se estende a Francis Bacon e John Stuart Mill. Seja como for, o pensamento Anísio pode ser visto, conforme a Autora, como fazendo parte de um elo de uma corrente onde também se situam os de Dewey, Bacon, Charles Peirce, e porque não incluir Sócrates entre outros; como se aquele, por meio de uma escolha, fosse buscar um ancoradouro, ou melhor, daquilo com o qual se identificasse, para (...), construir as suas próprias idéias.

Além do mais, as exigências de soluções científicas e tecnológicas para os problemas contemporâneos de ordem educacional mas também social ou humana, material e econômica estariam a exigir estratégia de ação de um novo intelectual, capaz de exercer a direção intelectual e mesmo política da sociedade. O papel do intelectual, como educador e dirigente no processo de reconstrução da sociedade brasileira, não somente presidiu a atuação político-administrativa de Anísio à frente da Secretária de Educação do Distrito Federal, de 1931 a 1935, como mostra Mendonça (1996), mas também informou toda sua atuação nos cargos públicos que exerceu e o ideário educacional que formulara sempre aberto a reformulações e avanços8. Suas reflexões inconclusas do entardecer revelam, pois, a atualidade do seu pensamento educacional.

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8 Conforme testemunho de Jader Britto, Anísio chegou a dizer algumas vezes que não tinha compromisso com suas idéias. Numa tarde de verão no Rio de Janeiro, um mês antes de sua morte foi indagado pelo mesmo: “Como o senhor explicaria essa afirmação?” “Suponhamos que eu faça alguma afirmação com base num determinado esquema de referência que eu adotei e daqui a cinco minutos, você me apresenta um esquema de referência melhor do que aquele em que eu me baseei para fazer tal afirmação, não terei dúvidas em adotar seu esquema de referência e abandonar o meu”.