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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Eduardo Socha Tempo musical em Theodor W. Adorno São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Eduardo Socha

Tempo musical em Theodor W. Adorno

São Paulo 2015

Eduardo Socha

Tempo musical em Theodor W. Adorno

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle

São Paulo

2015

SOCHA, E. Tempo musical em Theodor W. Adorno. 2015. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

Para a Lia

Agradecimentos

Ao professor Vladimir Safatle, pela orientação e pela confiança irrestrita. A ele, devo os eventuais acertos do trabalho e a advertência para seus riscos.

Aos professores Jorge de Almeida e Ricardo Fabbrini, pela generosidade e pelo rigor crítico das considerações durante o exame de qualificação.

Ao professor Georg W. Bertram, pela supervisão e pela acolhida em seu grupo de seminários no Instituto de Filosofia da Freie Universität Berlin.

A Michael Schwarz, do Theodor W. Adorno Archiv na AdK-Berlin, pelo verdadeiro

interesse no diálogo e na sugestão de documentos à pesquisa. À FAPESP, pela concessão das bolsas de doutorado e de apoio a estágio de pesquisa

na Alemanha. Às funcionárias do Departamento de Filosofia da USP, Luciana Nóbrega, Maria

Helena Barboza, Marie Pedroso. A Igor Baggio e Lucas Vilalta, com quem tive a sorte de discutir em profundidade os

ensaios de Adorno e algumas das questões espinhosas de teoria musical. A Antonin Wiser e Marion Maurin, pelos diálogos imprevistos que se revelaram

imprescindíveis para este trabalho. Aos amigos do grupo de Teoria Estética, Silvio Carneiro, Henrique Xavier, Marilia

Pisani e Paula Martins, pelos debates sempre prazerosos sobre Adorno, Marcuse, autonomia e sorvetes.

Aos participantes dos almoços de domingo, que vêm conciliando filosofia e culinária de modo altamente festivo e produtivo. Em especial, aos amigos Fábio Franco, Ronaldo Manzi, Virginia Ferreira, Bruna Coelho, Mariana Pimentel, Rafael Gargano, Juliana Portilho.

Àqueles que contribuíram para este trabalho com sugestões e comentários: Gustavo

Pedroso, Silvana Ramos, Henry Burnett, Shierry Weber Nicholsen, Eduardo Guerreiro, Jean-Pierre Caron, Antonio Herci, Mario Videira.

Aos queridos amigos Julián, Fernanda, Guilherme, Ligia, Carioca, Gazi, pelas

jornadas e conversas diuturnas. À minha família, Marli, Sérgio, Alexandre, Andrea e Amanda, pela compreensão,

afeto e apoio incondicionais. E, especialmente, à minha companheira Lia, pelo tempo vivido de todos os dias, pela

música viva de todas as noites.

A arte é o que a arte veio a ser, para bem ou para mal: a sua figura tardo-capitalista preside à revisão crítica

do objeto, criando um modelo de discussão filosófica historicizada a partir da crise do presente

– Roberto Schwarz

Sobre Adorno (entrevista), Martinha versus Lucrécia

A vida prejudica a expressão da vida

– Bernardo Soares

Estética do Artifício, Livro do Desassossego

RESUMO

SOCHA, E. Tempo musical em Theodor W. Adorno. 2015. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. A partir da constatação dos diversos modos de formalização da experiência temporal na música do século 20, pretende-se analisar a consolidação do conceito de tempo musical no pensamento de Theodor W. Adorno. O escopo adotado será sua crítica ao serialismo pós-Webern, vinculada ao debate com os compositores da “Escola de Darmstadt” nas décadas de 1950 e 60, e sobre a qual operam seus conceitos de material e música informal. Um duplo propósito orienta a tese. Primeiramente, trata-se de esclarecer os referenciais do conceito de tempo que Adorno mobiliza em seus escritos musicais, tomando por base a reciprocidade entre categorias filosóficas e musicais que o filósofo sempre sustentou em seu percurso intelectual. História da filosofia e história da música constituem, para Adorno, campos para uma crítica convergente à progressiva espacialização e “destemporalização do tempo”. Nesse sentido, os Beethoven-Fragmente contribuem para uma primeira elucidação do conceito materialista. Já os ensaios sobre Stravinsky e sobre as relações entre música e pintura demonstram o potencial crítico e especulativo do conceito. Em um segundo momento, a tese procura descrever, em contraponto ao pensamento adorniano, as abordagens teóricas propostas por Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen sobre o problemática do tempo musical, com as quais Adorno teve contato. Identificamos, então, no encaminhamento programático de uma música informal o ponto culminante da crítica de Adorno às orientações teóricas e práticas da vanguarda serialista no pós-guerra. Notamos que sua intensa participação nos cursos de Darmstadt entre 1952 e 1966 (onde atuou como professor, crítico, conferencista e organizador de debates) esteve fortemente alinhada à sua produção ensaística e monográfica voltada à música no mesmo período. Nesse sentido, acreditamos que a confrontação com os compositores de Darmstadt viabilizou uma ocasião decisiva para que o filósofo expusesse criticamente e colocasse à prova os critérios de seu conceito de tempo musical.

Palavras-chave: Adorno, estética, música, filosofia, tempo musical, escola de Darmstadt, vanguarda, Boulez, Stockhausen

ABSTRACT

SOCHA, E. Musical time in Theodor W. Adorno. 2015. (Doctoral dissertation) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. This dissertation concerns the concept of musical time in Adorno’s philosophy and emphasizes his critique of post-Webern serialism, noticeable in his frequent interventions in the context of the Kranichstein-Darmstadt Summer Courses and the radio debates during the 1950s and 60s. These include controversial essays like Das Altern der neuen Musik, Die Funktion des Kontrapunkts in der neuen Musik, Kriterien der neuen Musik – as well as his later related programmatic notion of informal music presented in the Darmstadt lecture Vers une musique informelle (1961). In these interventions, Adorno insists – whether explicitly or not – on the conservancy of a specific way of structuring inner temporal relationships between musical events. This type of formalization and perception of time became eluded with the advance of avant-garde compositional procedures. The dissertation has two parts and a dual purpose. First, it examines the references to the specific notion of time that Adorno develops in his musical thought, contemplating the reciprocity between philosophical and musical categories held by his historical-materialist approach. This philosophical framework ascribes a progressive “rationalization” or “detemporalization” of time in Western culture through the advance of Enlightenment, which would also be recognizable in the history of musical forms. Hence, for Adorno, “detemporalization of time” (title of an important sub-chapter of Negative Dialektik) in philosophy resulted from a symmetrical thrust that imposed a progressive “spatialization of musical time” (a central claim from Philosophie der neuen Musik). The late published Beethoven-Fragmente offers a great deal of elucidation about his concept of musical time; whereas his Stravinsky critique and the essays on the relationship between music and painting clearly shape the critical singularity of the concept. Secondly, this dissertation describes, as a counterpoint to Adorno’s concept, the theoretical approaches proposed by Pierre Boulez and Karlheinz Stockhausen on musical time. It is shown why the notion of informal music can be considered the epitome of Adorno’s musical reflection after Philosophie der neuen Musik (1949), considering his ambivalent criticism of these post-war avant-garde orientations. In short, one observes that Adorno’s regular attendance of the Darmstadt Summer Courses, from 1950 until 1966, is closely linked to his publications and thoughts on music aesthetics of the same period. We argue that these reflections on the directions of the avant-garde provided him the opportunity to better present and confront the elements of his concept of musical time.

Key Words: Adorno, aesthetics, music, philosophy, musical time, Darmstadt school, avant-garde, Boulez, Stockhausen

Lista de abreviações

GS – Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften in 20 Bänden (obras completas).

Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986; Berlin: Directmedia-Surkhamp, 2003

(CD-ROM, Digitale Bibliothek). (a referência às páginas [PP] corresponde à dos volumes impressos [VV] da coleção e segue o formato “GS VV, PP”)

FNM – Philosophie der neuen Musik (in GS 12)

Wagner – Versuch über Wagner (in GS 13)

Das Altern – Das Altern der neuen Musik (in Dissonanzen. Musik in der verwalteten

Welt, GS 14)

Mahler – Mahler. Eine musikalische Physiognomik (in GS 13)

QUF – Quasi una fantasia (in GS 16)

Beethoven – Beethoven, Philosophie der Musik: Fragmente und Texte. Organizado por

Rolf Tiedemann. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993. Nachgelassene Schriften I/1. (a indicação dos fragmentos será precedida por §)

Traduções mais consultadas (ver lista completa na bibliografia):

DE – Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido de Almeida. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

PNM – Philosophie de la nouvelle musique. Trad. Hans Hildenbrand; Alex Lindenberg.

Paris: Gallimard, 1979

DN – Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

TE – Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008

Obs: a não ser quando indicadas, as traduções das citações foram livres, realizadas por mim

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................... 11!Notas avulsas sobre a questão do tempo em Adorno ..................................................................................... 16!Estrutura da tese ............................................................................................................................................. 25!

PARTE I .................................................................................................................................... 37!Introdução ........................................................................................................................... 38!

Tempo musical como tempo histórico refletido ............................................................................................. 38!1. Beethoven: paradigma do tempo musical ....................................................................... 45!

Os fragmentos e a teoria dos tipos ................................................................................................................. 45!1.1 Tipo intensivo ou dramático ..................................................................................................................... 55!1.2 Tipo extensivo ou épico ........................................................................................................................... 83!1.3 Estilo tardio .............................................................................................................................................. 94!

2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical ........................................................ 101!2.1 Os gestos de Wagner: “aqui o tempo vira espaço” ................................................................................ 102!2.2 Choque e dissociação do tempo em FNM .............................................................................................. 108!2.3 Pseudomorfoses ...................................................................................................................................... 121!2.4 O ensaio “Stravinsky, um retrato dialético” ........................................................................................... 128!

3. Arte do tempo e arte do espaço .................................................................................... 143!3.1 Lessing: limites da pintura e da poesia .................................................................................................. 147!3.2 Os ensaios de 1950 e 1965 sobre música e pintura ................................................................................ 155!3.3 Convergência, imbricação e rejeição de uma síntese sistemática das artes ........................................... 167!3.4 Nominalismo. Sentidos para a espacialização do tempo ....................................................................... 174!

PARTE II ................................................................................................................................. 178!Introdução ......................................................................................................................... 179!

“Escola de Darmstadt”: panorama histórico ................................................................................................ 179!Adorno em Darmstadt e o incidente de 1951 ............................................................................................... 188!

4. Boulez: sistema racional de tempo ............................................................................... 193!4.1 Derivando estruturas de Messiaen e Webern ......................................................................................... 193!4.2 Ângulo de audição a posteriori e o “sistema racional de tempo” .......................................................... 207!

5. “Envelhecimento da nova música” .............................................................................. 223!5.1 Um falso precursor ................................................................................................................................. 224!5.2 Teimosa racionalização .......................................................................................................................... 228!5.3 O debate com Metzger ........................................................................................................................... 242!

6. Stockhausen: morfologia do tempo musical ................................................................. 254!6.1 “como o tempo passa” ............................................................................................................................ 254!6.2 “A unidade do tempo musical” .............................................................................................................. 262!6.3 A ambivalência de Adorno sobre a teoria de Stockhausen .................................................................... 267!

7. Depois do serialismo .................................................................................................... 283!7.1 Musique informelle: metateoria de Filosofia da nova música? ............................................................. 283!7.2 Forma, cor e tempo: os últimos escritos musicais .................................................................................. 299!

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 312!ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................................................... 322!BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 323!

11

APRESENTAÇÃO

A música não é somente assunto dos músicos, na medida em que ela não tem por elemento exclusivo e fundamental o som. Ela torna perceptível um conjunto de forças não sonoras, que podem ser mais ou menos revolucionárias, mais ou menos conformistas, como a organização do tempo (…) Na filosofia, trata-se de tornar pensável forças que não são pensáveis por elas mesmas.

DELEUZE, Pourquoi nous, non musiciens? conferência de 1978, IRCAM

Evidenciar a centralidade da música na filosofia de Adorno seria um exercício

supérfluo ou cabotino, não fosse comum encontrarmos trabalhos excelentes de

comentadores que tendem a descuidar do estatuto propriamente cognitivo atribuído às

obras de arte pelo autor. Longe de ser o espaço subsidiário, ilustrativo ou alegórico para

a construção de modelos empenhados na metacrítica à teoria do conhecimento ou na

exposição dialética da reversão da razão em mito, o pensamento musical de Adorno

fornece coordenadas para a posição especulativa de problemas que excedem os limites

tradicionalmente definidos pela “filosofia da arte”. Em geral, o que prevalece, no

entanto, é a circunscrição da reflexão musical adorniana a um setor no loteamento do

saber filosófico, à guisa de uma “teoria estética musical”, um apêndice ou excurso de

sua matéria conceitual filosófica. Como se Adorno tivesse encontrado na estética

musical o campo fértil para a prática de um mandarinato cultural afetado, em que a

análise imanente das obras serviria, no melhor dos casos, para a elaboração de

considerações dúbias que poderiam igualmente incidir (ou se traduzir) no campo puro e

solene da epistemologia ou da filosofia social. Acontece que tal rebaixamento envolve

nada menos do que a rejeição ao preceito materialista – a primazia do objeto – que

inspira a dialética negativa em seus “modelos de pensamento”. Se não existe uma

“teoria estética” compreendida como esfera destacável das demais áreas do

conhecimento – e aqui solicitamos a benevolência do leitor diante da obviedade – é

porque, em Adorno, problemas filosóficos e problemas estéticos não só interagem, mas

partilham do mesmo núcleo histórico e crítico da verdade. Nos termos cortantes do

autor, aqui “a estética não é filosofia aplicada, mas é filosófica em si” (TE, GS 7, 141).

12

A discussão a respeito da elevação da síncope a princípio rítmico no jazz ou da

formação de escalas de intensidade e modos de ataque no serialismo integral envolve

questões objetivamente filosóficas. Considerando a produção intelectual do autor, não

deveríamos subestimar a apresentação que fez de si mesmo na carta a Thomas Mann de

5 de julho de 1948: “Estudei filosofia e música. Em vez de escolher uma das duas, tive

durante toda minha vida o sentimento de buscar o mesmo objetivo nesses domínios

divergentes”. Entre as motivações desta tese, não é menor a de tentar confirmar a

validade da declaração nos anos posteriores à carta.

Se música e filosofia iluminam-se reciprocamente, a apreensão estética do teor

de verdade que ocorre mediante o trabalho do conceito, em permanente tensão com o

objeto, só se torna possível quando a interpretação recusa princípios gerais de

ordenação, estabelecidos previamente ao contato efetivo com as obras. Ou seja, o

reconhecimento da singularidade da obra impede sua subsunção a uma teoria geral da

arte, a partir da qual o teor de verdade da obra (seu estatuto cognitivo) poderia ser

restituído por uma série de mediações retrospectivas. É nesse sentido que a Teoria

estética, em que pese sua relevância bibliográfica, não nos oferece o conveniente

resumo das especulações de Adorno sobre arte. À medida que entramos em contato com

seus escritos musicais (que, nunca é demais lembrar, correspondem a quase metade dos

20 volumes das obras completas), percebemos um esforço continuamente renovado para

estar à altura do seguinte problema: de que maneira uma abordagem conceitual pode

atingir o não conceitual sem lhe impor a violência do pensamento identitário e

sistemático? De que maneira o não-conceitual corrige o conceito sem externalidades?

Uma abordagem que seja satisfatória a esse problema requer uma teoria filosófica da

obra, cingida pelo confronto dialético entre o universal e o particular. Assim, não

encontraremos no repertório conceitual de Teoria estética a importante categoria de

variante, desenvolvida na monografia de 1961 sobre Mahler. As análises imanentes não

podem ser consideradas aplicações de uma teoria: a teoria – se o nome ainda é adequado

– não deve abrir mão da irredutibilidade material das obras analisadas, preceito que não

é posto em questão mesmo (e sobretudo) em Teoria estética. Com isso, poderíamos

enxergar sob outra perspectiva o lugar que a arte ocupa no pensamento adorniano. Se a

obra de arte está impregnada pelo momento construtivo, próprio ao conceito que oferece

o aparato para sua interpretação filosófica, também uma filosofia não sistemática, que

13

visa superar a racionalidade instrumental, deve estar marcada pelo momento mimético,

próprio da síntese artística. O desvelamento objetivo da verdade, para Adorno, ocorre na

tensão dialética entre o rigor do conceito e a polissemia que caracteriza a manifestação

artística. Esse desvelamento traz implicações para o presente; é assim que “uma análise

do estado atual da música é iluminadora para a visão filosófica, assim como

inversamente a reflexão filosófica não está separada da situação contemporânea da

música.” (Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 164)

Nesse ponto, acreditamos que uma digressão sobre a análise técnica das obras se

faz necessária. Quando decidimos examinar certas estruturas musicais no campo

discursivo da filosofia, surge não raro certa sensação de desdém ou embaraço. A

professora e ensaísta Maria Alzira Seixo afirmou recentemente que, nesse tópico, ainda

se percebe uma espécie de pavor secreto e silencioso, um desconforto cujo remédio

paliativo seria a pronta mistificação da teoria musical: assim, observa Seixo, intelectuais

brilhantes confessam apressadamente (como quem se desculpa ou se afasta do

problema) que “não entendem nada de música”, quando dificilmente confessarão que

não entendem nada de literatura ou de história das artes visuais. O musicólogo Carl

Dahlhaus constatou obstáculo semelhante quanto se trata da estética adorniana:

“A teoria estética de Adorno, mesmo quando trata da arte em geral, tem como fundamento uma filosofia da música, da ‘nova música’. Levando-se em consideração que na tradição filosófica da qual derivam as estéticas – tanto as anteriores a Adorno quanto as atuais – a música não é central, e sim periférica, isso se torna um dos obstáculos que dificultam uma adequada recepção de sua obra”1

Se seguirmos o argumento de Dahlhaus, compreender a teoria estética de

Adorno sem levar em conta seus escritos musicais – e o tecnicismo que envolvem (cuja

dificuldade, diga-se de passagem, é muitas vezes exagerada) – pode trazer o risco do

encobrimento de sua verdadeira força motriz. Pode simplesmente manter em

funcionamento a maquinaria idealista de uma pura filosofia da arte, baseada na

reprodução sistemática de conceitos e livre da contaminação sensorial provocada pelas

obras e pela historicidade concreta de suas formas. Por isso, no caso de uma tese que 1 DAHLHAUS, Von Altern einer Philosophie, apud ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte, São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 21

14

propõe examinar os ensaios musicais de Adorno – filósofo que, nas palavras de Edward

Said, “jamais permite que as questões técnicas travem o argumento e nunca se deixa

mistificar por seu caráter abstruso ou rarefeito”2 – o pavor da análise técnica deve ser

prontamente enfrentado. A exigência filosófica da primazia do objeto solicita que

também acompanhemos os expedientes técnicos que esse objeto mobiliza. É claro que

não devemos nos deixar capturar pelo debate fetichista e auto-referente sobre a

significação das quiálteras do primeiro violino no 12o compasso do Quarteto op. 132 em

lá menor de Beethoven. Bem sabemos que o uso indiscriminado do jargão – seja

musical ou filosófico – como estratégia de fuga não evita a exposição rasa e exotérica,

que ademais fomenta o preconceito do elitismo e de um exoterismo inflexível em

Adorno. Por outro lado, se tal preconceito contra o autor revela-se impertinente, é

porque sua filosofia, ao dar a dignidade da interpretação filosófica a estruturas musicais

concretas, não se eximiu também de uma crítica aos excessos formais que acometem as

próprias análises musicológicas. Indo diretamente ao ponto: se nada nos parece gratuito

nas análises musicais de Adorno, optamos, na tese, por não recuar diante do tecnicismo

quando este se mostrou imprescindível para a objetividade da exposição em curso.

Observaremos que, vencidas as complexidades técnicas, o sistema de tempo em Boulez

e a morfologia em Stockhausen trazem um conjunto de questões ao conceito adorniano

que procuramos examinar.

Uma outra digressão, a respeito do formato “tese”, também mereceria ser feita.

A pretensão de explicitar aspectos do conceito de tempo musical em Adorno por meio

de uma tese acadêmica, organicamente dividida em partes, capítulos e seções, não

atende a recomendação do modelo dissertativo proposto pelo filósofo. Pois, para

Adorno, é o ensaio – e não a tese – a forma adequada de se fazer filosofia. É o ensaio,

em razão de sua natureza fragmentária e seu mergulho in media res, que oferece a

oportunidade crítica de desnaturalizar a vocação sistemática e ideológica do

conhecimento. Com a forma ensaio, Adorno materializou sua crítica coetânea ao

sistema serial dos compositores de Darmstadt e à ontologia fundamental de Heidegger.

Se insistimos aqui na estrutura convencional da tese – para além das expectativas

institucionais e procedimentais de praxe –, é porque acreditamos que o assunto do

2 SAID, Estilo tardio, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 44

15

tempo musical em Adorno admite a “linearização” provisória da constelação conceitual

no qual se inscreve, sem que isso comprometa sua essência dialética. Embora um

conceito positivo em Adorno não exista, o acesso integral à bibliografia e às cartas nos

permite constatar “certa maneira de falar” sobre o tempo musical, maneira esta

consolidada em seus escritos pelo menos desde os anos 1930 e que se tornou estratégia

nos anos 1950 e 60. Constatar certa “maneira de falar” não significa aqui reduzir a

dialética adorniana ao arranjo formal de um “prodigioso jogo de palavras”, nem traduzi-

la em fraseologia escolar. Muito pelo contrário, a tarefa propedêutica de “linearização”

visa, acima de tudo, preservar a especificidade dialética do conceito de tempo e da

escrita do autor. Ocorre que, se o debate em Darmstadt nos anos 1950 ocupa um lugar

privilegiado no nosso estudo, é porque, em meio à polêmica com compositores e

musicólogos do período, Adorno se viu aí coagido a colocar as cartas na mesa, a marcar

posição e enunciar, mediante escolhas concretas, o que realmente estava em jogo

quando o assunto era a articulação formal do tempo na música. O formato tese nos

pareceu então mais adequado à tentativa de esquadrinhar essa e outras polêmicas (como

a crítica a Stravinsky) e contextualizá-las com a interpretação dos ensaios críticos que as

precederam ou lhes foram contemporâneos. É provável que, nesse empenho didático,

algo da essência dialética do objeto se tenha perdido. No entanto, em que pese o óbice

de não atender a recomendação adorniana pelo ensaio e de não arremedar o estilo

paratático que caracteriza sua escrita, a armação de uma tese com capítulos e

argumentos bem comportados talvez nos ofereça um benefício: o de nos servir como

porta de entrada à ensaística musical de Adorno dos anos 1950 e 60, parte da produção

filosófica mais consequente, prolífica e não dogmática do século passado sobre música.

Se, além disso, nosso estudo – sempre usando o fio condutor do conceito dialético de

tempo musical (um conceito tão abrangente quanto específico) – permitir que

transitemos por parte dessa ensaística com uma visão plausível de conjunto, o esforço

terá valido duplamente a pena.

Antes de apresentarmos a estrutura da tese e adentrarmos a discussão que nos

interessa, convém fazer algumas observações sobre o conceito “não musical” de tempo

no pensamento de Adorno.

16

Notas avulsas sobre a questão do tempo em Adorno

De início, reconheçamos a impossibilidade de expor aqui, de modo satisfatório,

o conceito de tempo strictu sensu na filosofia de Adorno. A amplitude de um tal exame

reclamaria, no mínimo, outra tese. Além do mais, se referências ao conceito de tempo

surgem de maneira transversal em sua filosofia (seja na tensão entre história e natureza,

identidade e não-identidade, razão e mimese), nossa hipótese é a de que a discussão

mais frutífera sobre a questão se desenvolve nos escritos musicais. Essa discussão está

ancorada na reavaliação adorniana dos conceitos de subjetividade, técnica e natureza, e

participa do projeto de encaminhar um conceito alternativo de razão, desimpedido de

seu anátema instrumental. Em DE, Adorno e Horkheimer haviam percebido, na

colonização da racionalidade instrumental sobre a totalidade da razão, a disjunção entre

a linguagem da ciência (pensamento classificatório sem afinidade mimética com seu

objeto) e a linguagem da arte (supostamente alijada de todo conteúdo cognitivo). No

questionamento de tal disjunção, que reconduz a reflexão estética ao campo do

conhecimento, revela-se um dos traços marcantes do pensamento adorniano: uma trama

discursiva que se move de maneira não hierárquica e fragmentária entre filosofia,

estética e crítica social3. Como dissemos, as obras de arte não são facetas “decorativas”

do pensamento, nem cristalizações a-históricas do “espírito absoluto”; delas emanam

um teor de verdade histórico, propriamente cognitivo ainda que não proposicional, a ser

desvelado pela atividade filosófica – constatação que está longe de ser assimilada

mesmo entre comentadores de Adorno. Não seria exagero afirmar que sua reflexão

histórica fundada na experiência estética adquire tanto rigor quanto sua metacrítica aos

sistemas idealistas. Os indícios da homologia entre reflexão filosófica e musical quanto

ao problema conceitual do tempo atravessam sua obra, seja na interpretação materialista

sobre a “negação do tempo” na dialética negativa, seja na polêmica contra a estaticidade

na música de vanguarda dos anos 1950. Apesar dessa transversalidade, tentaremos 3 JARVIS, Adorno: a critical introduction, New York: Routledge, 1998, p. 153: “Adorno não pensa que a filosofia possa ser reduzida à ‘epistemologia’, ou seja, a uma teoria que daria conta do conhecimento em geral, tomada abstratamente de qualquer conhecimento particular. Acredita que a ideia de restringir a filosofia a tal função está intimamente ligada a uma divisão progressiva do trabalho intelectual da sociedade moderna”. Ver também, LEPPERT, Introduction in Essays on Music, p. 32: “A crítica de Adorno à filosofia é isomórfica à sua crítica social”.

17

expor esquematicamente – conscientes do reducionismo, das generalizações apressadas

e dos argumentos de sobrevôo – aspectos do conceito negativo de tempo, visando a

preparação para a questão central desta tese.

Sabemos que, na reavaliação filosófica do conceito de experiência, Adorno

empreende a crítica imanente às teorias idealistas do conhecimento que animariam tanto

a filosofia moderna – em especial, Kant e Hegel – quanto as tendências

fenomenológicas e positivistas. Sustentando a atualidade da filosofia por meio da

imposição de uma metacrítica a essas tendências, salvando a metafísica em seu instante

de queda, Adorno insiste no núcleo temporal e particularizado da verdade. Embora seja

impossível compreender o alcance da dialética negativa sem a extensa apropriação que a

filosofia de Adorno realiza de Kant e Hegel, sua crítica materialista rejeita, ao mesmo

tempo, certas premissas que subjazem ao projeto idealista e esclarecido alemão4.

Quanto à problemática específica do tempo, Adorno detecta, por exemplo, a

imobilidade histórica inscrita na forma a priori no esquematismo transcendental

kantiano, imobilidade esta que se perpetuaria acriticamente nas subsequentes teorias do

conhecimento. A crítica ao idealismo transcendental (assim como ao idealismo objetivo

encarnado pela filosofia de Husserl) estaria na base de um conceito renovado de

experiência, a ser entendido antes como relação não totalizada entre sujeito e objeto;

trata-se, afinal, de reavaliar tal relação por meio de negação determinada, “modo de

efetivação do conceito na experiência”5. Fundamentalmente, para Adorno, o erro do

idealismo e da redução fenomenológica consistiria em simplificar a reciprocidade

dialética, assumindo que “o objeto em sua totalidade possa ser encapsulado – ou

dominado, como enfatiza Adorno – pelo sujeito”6 e ensejando uma idealidade

“espontânea” da experiência constitutiva do sujeito, devidamente colocado fora do

tempo. É assim que a intuição kantiana estaria comprometida com uma “contradição

irresolúvel”. Na medida em que espaço e tempo são “por um lado intuições e, por outro,

4 Uma operação consciente que, como se sabe, Habermas classificou – não sem o tom do escândalo e da denúncia – como “contradição performativa” de autocrítica da razão. Cf HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 170; e também p. 182; p. 261 5 Cf. SAFATLE, Adorno e a crítica da cultura como estratégia da crítica. In: Artefilosofia, n. 7, 2009, p. 25: “Grosso modo, podemos dizer que a negação determinada diz respeito fundamentalmente aos modos de efetivação do conceito na experiência” 6 O’CONNOR, Adorno’s negative dialectic: philosophy and the possibility of critical rationality, Cambridge: MIT, 2005, p. 4

18

formas” definidas como transcendentais, eles estabelecem uma idealidade mediada,

resultando em representações (Vorstellungen) de uma representação. Na leitura de

Adorno, espaço e tempo kantianos não seriam efetivamente nem intuitivos, nem

puramente sensíveis. Por isso, consolidariam – por mais que o esquematismo

transcendental não reconheça o teor conceitual das formas de sensibilidade – a abstração

mais universal possível sob a qual um dado pode ser assimilado. Em Para a metacrítica

da teoria do conhecimento, Adorno indicava esse paradoxo da “intuição pura” kantiana:

“A contradição está indicada linguisticamente pela nomenclatura ‘intuição pura’ do espaço e do tempo. Intuição, como certeza imediata dos sentidos, como recepção na figura do sujeito, nomeia um tipo de experiência que precisamente como tal não pode ser ‘pura’ e independente da experiência. Intuição pura seria um círculo quadrado, experiência sem experiência”

(Para a metacrítica da teoria do conhecimento, GS 5, 151)

A avaliação de que a intuição temporal – o “sentido interno” da forma da

sensibilidade – seria um modo da experiência em seu aspecto formativo, idealmente

constitutivo nos atos da espontaneidade da consciência, contradiz o caráter

transcendental, anterior à experiência. A diversidade sensível “dada” às categorias do

entendimento já se encontra determinada pela experiência, sendo portanto mediada7.

Nessa perspectiva, Adorno considera incompreensível o fato de o esquematismo

transcendental (estando fora do tempo) poder condicionar o mundo espacio-temporal

sem que se torne ele próprio temporal. Apesar da passagem do tempo e apesar do

momento somático implícito no conceito de experiência, a unidade sintética da

apercepção em Kant mantém-se idêntica a si mesma. Em DN, na seção

“Destemporalização do tempo”, Adorno observa a mesma fratura no núcleo da

“Estética Transcendental” da Crítica da Razão Pura quanto à sublimação da

historicidade do tempo e sua conversão ontológica:

“Quando Kant aprioriza o tempo como forma pura da intuição e condição de possibilidade de todo temporal, o tempo é por sua parte destacado do tempo. O idealismo subjetivo e o objetivo concordam nesse ponto. Pois a base comum para os dois (Kant e Hegel) é o sujeito enquanto conceito, despido de seu conteúdo temporal (…) A partidaridade social dos idealistas alcança os

7 Cf. Ibid., p. 113

19

elementos constituintes do seu sistema. Eles glorificam o tempo como atemporal, a história como eterna; e isso a partir do temor de que ela comece”

(DN, 275)

Não por acaso, Adorno afirma na mesma passagem acima que a “versão de

dialética” de Hegel participaria também do processo histórico de ontologização do

tempo, ao “deduzir o tempo e eternizá-lo como algo que não tolera nada fora de si

mesmo”. Para Adorno, essa operação do idealismo objetivo só se torna possível quando

o sujeito permanece indiferente ao conteúdo temporal. Daí a “ontologização do tempo”

efetuada por Hegel: “na medida em que sua versão de dialética se estende até o próprio

tempo, esse é ontologizado: de uma forma subjetiva, ele se transforma em uma estrutura

do ser enquanto tal, ele mesmo algo eterno” (DN, 275). É bem verdade que a dialética

negativa deve muito mais a essa “versão da dialética” do que Adorno parece disposto a

reconhecer - frisemos, todavia, nosso propósito de aqui somente acompanhar o percurso

da crítica adorniana, suspendendo os eventuais dilemas que sua interpretação

condiciona8. Na visão de Adorno, o idealismo hegeliano prossegue na esteira da

totalização da experiência por um Absoluto conceitual, na medida em que a lógica

hegeliana “resigna-se a uma lógica atemporal” (DN, 274); daí o caráter sistemático de

sua “versão de dialética”, na qual a negação da negação converte-se em síntese positiva,

em movimento descrito pela analogia do círculo. Em suma, o tempo em Hegel seria

produzido inteiramente pela lógica (a qual, por sua vez, não é suscetível a mudanças),

transfigurando-se em eternidade. Embora retenha diretamente de Hegel a constatação da

contradição interna do esquematismo kantiano, “Adorno recusa aquilo que dita o

movimento segundo Hegel: o impulso teleológico do Geist absoluto”9.

Ocorre que, na crítica à “ontologização do tempo” em Kant e Hegel, Adorno

acaba fornecendo, por assim dizer, ex negativo, seu próprio conceito não-formal de

tempo, dado pela mediação entre forma lógica e conteúdo da experiência histórica. Seu

8 Para esse propósito, ver, por exemplo, as considerações de Safatle, para quem “todos os conceitos hegelianos (estão) em operação na dialética adorniana, mas sem poder mais ser postos tais como eles eram postos por Hegel, sem poder ser atualizados no interior das situações pensadas por Hegel” (SAFATLE, Os deslocamentos da dialética (apresentação à edição brasileira). In: ADORNO, Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Ed. Unesp, 2013, p. 22) 9 GOEHR, Elective Affinities: Musical Essays on the History of Aesthetic Theory, New York: Columbia University Press, 2011, p. 21

20

conceito negativo mostra-se avesso a qualquer imediaticidade, sistematicidade ou

teleologia, mas rejeita também toda substancialidade e concepção dissociada do

momento lógico e do conteúdo concreto da experiência. É nesse sentido que a dialética

negativa se opõe à busca pelo “fundamento”, “origem”, arché, à guisa de uma prima

philosophia que defenderia o aspecto pré-reflexivo, pré-lógico da experiência temporal,

como a duplicação de Bergson entre duração e tempo espacializado/cronométrico

parece sugerir. Adorno não cinde abstratamente o não-idêntico de seu momento lógico.

Para a consciência dialética que não ignora o movimento de retroatividade lógica do

conceito, “a transição (Übergang) da lógica no tempo gostaria de reparar ao tempo

aquilo que a lógica lhe tinha produzido, aquilo sem o qual, contudo, não existiria

tempo” (DN, 276; GS 6, 237). O momento lógico assegura a visibilidade do conceito,

pois o transcurso efetivo do tempo não é ignorado pela rememoração especulativa no

próprio conceito de tempo: assim, o conceito de tempo supera a duração ao conservá-la

em si. Adorno acredita que uma distinção como a de Bergson ocorreria mediante a

reificação de dois momentos internos do conceito, momentos subjetivo e objetivo que

não mais estariam em tensão. A comprovação da ausência de precedência de um

momento sobre outro (ao contrário da defesa de Bergson, segundo a qual a duração

vivida precederia ontologicamente o tempo espacializado da práxis humana) seria

exemplificada, na DN, pela constatação da passagem do tempo no relógio:

“as experiências temporais subjetivas, medidas pelo tempo do relógio (Uhrzeit), estão expostas ao engano (Täuschung), ao passo que, por outro lado, não existiria tempo do relógio algum sem a experiência temporal subjetiva que, pelo tempo do relógio, se torna objetiva”

(DN, 277, trad. modif.; GS 6, 327)

Heidegger e sociedade

Também as concepções contemporâneas de tempo, sobretudo Husserl e

Heidegger, servirão de objeto para a metacrítica adorniana. No horizonte de Para a

metacrítica à teoria do conhecimento, estava o não reconhecimento husserliano da

gênese social e histórica da consciência transcendental e de suas condições da

experiência. Esse não reconhecimento implicava o tratamento do conceito de tempo

21

fenomenológico em termos de um absoluto imutável, marcado por uma estrutura prévia

de “retenções” e “protensões”. O puro eu, o sujeito anterior à predicação, efetua uma

projeção sobre o concreto da experiência sensível. Já em DN, a confrontação com

Heidegger será de especial relevância e complexidade, na medida em que tanto Adorno

quanto Heidegger insistem no caráter temporal-histórico da verdade, sem que daí resulte

um historicismo relativista (ou visões parasitárias como niilismo ou ceticismo). No

entanto, o interesse da ontologia fundamental pela questão da “historicidade”

contrastaria fortemente com aquele encaminhado em DN. Para Adorno, a ontologia de

Ser e Tempo circunscreve a realidade às atividades constitutivas do Dasein, reabilitando

o idealismo de maneira sub-reptícia e eliminando, através de um expediente

reconciliatório do pensamento da identidade, o caráter socialmente mediado e tenso da

relação entre sujeito e objeto. Entre os procedimentos da crítica imanente, efetua-se, por

exemplo, a análise do uso da palavra “ser” no projeto da ontologia fundamental de

Heidegger. Para Adorno, a origem do “ser” estaria localizada em uma abstração da

mediação proveniente da cópula gramatical “é”, que ocorre entre sujeito e predicado em

um juízo particular. Ocorre que a ontologia de Heidegger confundiria a significação

específica que a palavra “é” adquire em cada juízo particular, o que deveria sugerir algo

ôntico, com uma significação universal da cópula “é”, enquanto forma gramatical (DN,

93). O vínculo gramatical exposto em cada juízo particular, em Heidegger, seria

extrapolado e objetivado para formar o campo do ontológico. Nesse processo, contudo,

depura-se aquele polo subjetivo que se encontrava inicialmente mediado na cópula “é”,

restando apenas a forma abstrata da mediação em geral:

“a substituição da forma gramatical universal para o conteúdo apofântico transforma a capacidade ôntica do “é” em algo ontológico, em um modo de ser do ser” (DN, 94)

Se a relação entre o ontológico e o ôntico aparece como problemática em

Heidegger, é porque tais polos não estariam determinados dialeticamente. Ao passo que,

para o pensamento dialético, “nenhum ser é pensado sem o ente e nenhum ente sem

mediação” (DN, 104). Segundo Adorno, para solucionar o problema da relação entre o

ontológico e o ôntico, a estratégia de Heidegger consistiria em promover a

ontologização do ôntico. Desse modo, dissocia-se o ser (colocado como puro vazio,

22

nada do pensamento, abstração geral da forma gramatical) de sua historicidade. O

tempo perde seu caráter temporal:

“O próprio tempo e o efêmero são tão absolutizados quanto transfigurados pelos projeto ontológicos-existenciais. O conceito de existência (Existenz) enquanto conceito de essencialidade do efêmero, da temporalidade do temporal, mantém a existência distante por meio de sua denominação” (DN, 116)

Na visão de Adorno, Heidegger incorreria, portanto, em problema semelhante ao

de Hegel. Vimos antes que a suposta dicotomia entre tempo e eternidade na filosofia da

história de Hegel, apontada por Adorno, ocorreria mediante o primado da abstração

universal. Na medida em que o “todo é o não verdadeiro” (conforme o dictum

conhecido de Minima moralia), Hegel (para quem, no prefácio à Fenomenologia do

espírito, “o verdadeiro é o todo”) teria falhado em reconhecer o núcleo temporal e

singularizado da verdade, sua transitoriedade, a abertura entre sujeito e objeto10. Assim,

destinou ao particular, ao individual, ao não-idêntico da razão existente, um papel

negligenciável em seu esquema geral. Esse papel destinado ao particular, em nome de

sua subsunção ao temporal e de sua inferioridade ontológica ao universal, decorreria de

uma decisão teórica ancorada nas relações sociais que o engendram. Assim, “a

transposição hegeliana do particular para a particularidade segue a prática de uma

sociedade que não tolera o particular senão como categoria, enquanto forma da

supremacia do universal” (DN, 277). Já aquela contradição interna do esquematismo

transcendental kantiano dizia algo relevante sobre a estrutura social da experiência. Do

mesmo modo, a duplicação em Bergson entre duração e tempo cronométrico

manifestaria a “crise objetivamente social da consciência de tempo”, a “ferida” de uma

10 Cf. SCHEIBLE, Theodor W. Adorno: mit Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1989, p. 62: “ ‘O todo é o não verdadeiro’ não é simplesmente a inversão da proposição ‘O verdadeiro é o todo’. Hegel não afirma "O todo é o verdadeiro", pois nesse caso a verdade seria pressuposta como pura característica de um todo em si já existente: o todo em sua faticidade seria a verdade pré-ordenada. Para Hegel ocorre justamente o inverso: o todo é subordinado ao verdadeiro, mesmo quando o todo é identificado com o verdadeiro - a razão - por meio da cópula. O todo torna-se apenas o todo, porque ele é verdadeiro. Aqui fica claro que a identidade não significa simplesmente igualdade sem diferenças – nesse caso as proposições “O verdadeiro é o todo” e “O todo é o verdadeiro” seriam permutáveis -, mas significa antes que a identidade é realmente ‘a identidade da identidade e da não-identidade’. A proposição adorniana O todo é o não verdadeiro deve ser compreendida sob essas condições. Adorno não parte de um conceito positivo previamente dado de verdade, o que para Hegel coincide com a razão existente.”

23

consciência historicamente condicionada, provocada pela ampliação dos processos de

trabalho passíveis de serem repetidos (DN, 277).

Aqui encontramos a conexão entre uma conceitualização filosófica específica e

um contexto histórico do espírito objetivo, um tipo de conexão peculiar à metacrítica de

Adorno. Nesse ponto, ficaria explícita a influência parcial do jovem Lukács, para quem

as formas da filosofia seriam precisamente manifestações das formas de racionalidade

constitutivas da vida social. Para Lukács, quando a organização da sociedade passa a

orientar sua produção para a ampliação do valor de troca, subordinando o valor de uso a

esta, a forma mercadoria adquire estatuto de forma universal, passando a regular não

apenas o desenvolvimento objetivo na esfera econômica, mas também a consciência e

“a atitude dos homens a seu respeito”11. Lukács considera que a progressiva divisão do

trabalho industrial impõe tendencialmente a supressão histórica da dimensão qualitativa

e subjetiva do trabalho, que em sua fase artesanal ainda possibilitava apreender a

totalidade do processo produtivo. Nesse processo de fragmentação do trabalho, Lukács

observaria a espacialização do tempo como uma de suas contrapartidas mais evidentes:

“O tempo perde, assim, o seu caráter qualitativo, mutável, fluído: ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente mensurável, pleno de coisas mensuráveis (trabalhos realizados pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objetivados, minuciosamente separados do conjunto da personalidade humana); torna-se espaço (....) A personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência12

Grosso modo, a estrutura reificada da consciência, proveniente da dominação da

forma mercantil e da progressiva mecanização do trabalho, atingiria, segundo Lukács, a

filosofia crítica moderna como formas de consciência inerentes ao processo social de

racionalização13. Nesse sentido, a exposição dos antagonismos da epistemologia

moderna converge com a exposição crítica dos antagonismos sociais. Uma discussão

sobre a interpretação adorniana de Lukács, em particular sobre a ideia da extensão da

forma mercantil à totalidade das relações humanas, excede – não custa insistir – nosso

propósito; basta dizer que Adorno resiste em subsumir integralmente, como faz Lukács,

11 LUKÁCS, História e consciência de classes, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 199 12 Ibid., p. 205 13 Ibid., p. 240

24

a produção do espírito à totalidade das relações sociais e à forma mercadoria.

Desejamos ao menos assinalar que, para comentadores como Martin Jay e Brian

O’Connor, Adorno teria aceito, em momentos importantes de seus ensaios, o esquema

temporal de Lukács, em função da insistência em conceitos como reificação e

espacialização14 – verificaremos nos capítulos a seguir a pertinência dessa suposição.

Um segundo aspecto que ainda cabe ainda ressaltar é a oposição dialética entre

natureza e história, incorporada através da leitura de Lukács, mas também de Benjamin.

Essa distinção, associada à reavaliação em bloco da ontologia, constituiria o cerne do

procedimento crítico especificamente adorniano15. Se, na dicotomia tradicional, o

conceito de natureza corresponderia à ordem da invariância, da convenção estabelecida

que não se deixa corromper pela passagem do tempo, daquilo que assume portanto um

caráter mítico, a história envolveria o que é fundamentalmente dinâmico e socialmente

sedimentado em transiência. A descrição, contudo, se fragiliza diante de uma concepção

que encontra, no conceito de natureza, uma categoria ela mesma historicamente

construída e, no conceito de história, a interversão em aparência de natureza, em

“segunda natureza”, mostrando-se “tanto mais mítica quanto mais se mostrar histórica”.

A noção de descontinuidade temporal é aqui decisiva para a reavaliação adorniana da

oposição e, no âmbito da reflexão estética, encaminhará conceitos como “mediação” e

“material”.

Além da reavaliação conceitual de “experiência” na filosofia e da dialética entre

história e natureza, um terceiro aspecto justificaria, por fim, a inclinação adorniana para

o recurso à arte no que se refere ao conceito filosófico de tempo: a influência da

metafísica romântica e sua primazia concedida à música, a arte do tempo por

excelência. Dahlhaus e Goehr mostram como, na transição para o século 19, o

pensamento romântico alemão encontrou na música instrumental um paradigma

reflexivo que extravasava problemas técnicos das formas musicais. Para Goehr, por

exemplo, tal paradigma se consolida com a separação proposta por Schiller entre die

14 JAY, As idéias de Adorno, São Paulo: Cultrix, 1995, p. 95: “Em seus momentos mais fortemente marxista-hegelianos, Adorno aceitou, de maneira tácita, um esquema temporal que ecoava o esquema temporal de Lukács”; Cf. tb. O’CONNOR, Adorno’s negative dialectic, p. 12 15 PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, New York: Cambridge University Press, 1993, p. 35: “É na crítica à ontologia de Heidegger e na recepção dos conceitos de natureza, história, segunda natureza e alegoria, de Lukács e Benjamin, que deve ser entendido o surgimento do método crítico específico de Adorno”

25

Musik e das Musikalische; a “musicalidade” (pura Innerlichkeit, uma expressividade

pré-conceitual da interioridade) pertenceria a um campo metafórico mais abrangente do

que aquele no qual a própria arte dos sons se inscreve, e traz implicações morais,

estéticas, metafísicas e sociais16. Pensar por “modelos” e “em constelação”, levando em

conta a singularidade de cada objeto e o feixe de interrelações históricas e sociais que o

condicionam, alinhava-se às expectativas desse paradigma.

Em suma, julgamos que os três aspectos mencionados indicariam, ainda que

esquematicamente, o quadro geral do conceito negativo de tempo em Adorno. Com

isso, podemos situar melhor o objeto da tese e sua estrutura.

Estrutura da tese

A tese está estruturada em duas partes. A primeira procura delimitar a posição

conceitual do tempo musical para Adorno a partir de dois campos de reflexão: o

primeiro baseado na análise de compositores do séc. 19 e do modernismo (em especial,

Beethoven, Wagner, Mahler, Schoenberg, Stravinsky), tendo em vista a emergência da

conscientização do problema musical do tempo durante o classicismo e seus impasses

no modernismo (caps. 1 e 2); o segundo, composto pelos dois ensaios publicados sobre

a relação entre música e pintura e pela conferência de 1966 sobre o processo de

imbricação nas linguagens artísticas, A arte e as artes (cap. 3).

No capítulo 1, delimita-se o ideal adorniano de “desenvolvimento musical”

(musikalische Entwicklung) e “desenvolvimento em variação” (entwickelnde Variation),

base sobre a qual, segundo nossa hipótese, se estabelece a especificidade materialista do

conceito de tempo musical em Adorno. Veremos, em um primeiro momento, que tais

ideais, herdados da Segunda Escola de Viena, de fato se inscrevem na tradição

motívico-temática iniciada no final do séc. 18. Segundo Adorno, a passagem para o

classicismo – e a consolidação homofônica do pensamento motívico-temático,

reforçado no período médio de Beethoven – inaugurou o trabalho de construção estética

16 Cf. GOEHR, Elective Affinities, p. 50

26

do tempo musical, a “essência dialética” da música, sua “espiritualização”, para

usarmos as expressões recorrentes nos escritos dos anos 1950 e 60. Ou seja, conforme a

incipiente periodização elaborada no ensaio Zweite Nachtmusik (que analisaremos em

detalhe), o tempo musical simplesmente não existe como problema para o período

anterior ao classicismo. Isso leva Adorno a denominar o período pré-clássico como

“tédio estético” (ästhetischen Langeweile) ou período de “preparação para liberdade”

(Ausbildung zur Freiheit) da subjetividade musical. Na medida em que a música, até

então prática heterônoma, estava voltada primordialmente a funções externas a si

mesma (seja para celebrações ritualísticas, eclesiásticas, serviços da corte etc), ela

consistia em mero preenchimento de um “tempo vazio” da experiência social. Não seria

capaz de “confrontar/vencer” (bewältigen) o tempo da experiência social e assim

produzir a experiência do kairós mediante a reflexividade sobre suas próprias formas;

limitava-se à exteriorização de padrões melódicos, convenções e esquemas, que

tornavam impraticável uma composição reflexiva de obras de larga extensão temporal.

Em que pese os ocasionais exageros da periodização adorniana, a expressão histórico-

musical da subjetividade permanecia enfraquecida no período anterior à emancipação

política da burguesia. Apenas com Haydn, Mozart e, sobretudo, Beethoven, apenas com

o “estilo da antifonia motívica” do final do séc. 18 (para tomarmos a expressão de

Adorno), ambicionou-se a plena dominação subjetiva do tempo; processo este que

coincide com a autonomização formal da música, sua emancipação esclarecida,

racionalizada. Com o descolamento da práxis social, o tempo musical então

simplesmente não mais “passa, porém subjuga” (nicht vertreibt, sondern unterwirft) o

tempo empírico (GS 18, 51). Em suma, o “tempo musical” (musikalische Zeit) nasce da

confrontação dialética com o “tempo empírico” (empirische Zeit), em que se cristaliza o

modelo dinâmico da Entwicklung. Nesse modelo, “o próprio ser vira processo e seu

resultado”17, e no qual se procura realizar a contração qualitativa da passagem do tempo

(Kontraktion der Zeit) em um instante dialeticamente carregado de sentido. Dito de

outro modo, a tensão dialética entre a totalidade da forma e o elemento particular se

efetua mediante a posição do idêntico (tema ou conjunto temático) e a consequente 17 Ver em Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música (1953), a mesma ideia de Zweite Nachtmusik: „Die eigentlich dynamische Entwicklungszeit der Musik, deren Idee der Wiener Klassizismus auskristallisiert hat, jene Zeit, in der das Sein selber zum Prozeß und zugleich zu dessen Resultat gemacht ward (…)“ (GS 18, 159)

27

expressão subjetiva do não-idêntico (por meio da variação temática). Tanto o

afastamento do esquema polifônico da fuga quanto o desenvolvimento técnico da sonata

e do sinfonismo seriam fenômenos correlatos da afirmação autônoma do material, de

modo que a própria tendência à homofonia melódica surge como exigência racional

para a expansão do pensamento temático. Daí a ênfase adorniana na relação intervalar

motívica, núcleo que consiste em Zeitdifferential, a “unidade diferencial elementar para

a criação de relações temporais”. Analisaremos a entrada do 4o tema no 1o movimento

da Eroica, de Beethoven, cujo efeito retroativo e desestabilizador da forma sonata é,

para Adorno, o paradigma dessa contração musical do tempo. Também neste primeiro

capítulo, descreveremos tal concentração no instante à luz dos conceitos de totalidade

dinâmica/processual em Hegel e das imagens da “suspensão do tempo vazio” da teses

sobre a história de Benjamin.

A importância maior no capítulo é concedida aos fragmentos para o livro que

Adorno planejou sobre Beethoven. Neles, Adorno expõe de modalidades possíveis de

articulação “da música com o tempo em geral”, para usarmos seus termos. Redigidos ao

longo de pelo menos vinte anos, os fragmentos (consistindo em notas preparatórias,

registros de diário, conferências, textos avulsos) foram coligidos e finalmente

publicados em 1993 no volume Beethoven – Philosophie der Musik, editado por Rolf

Tiedemann, que manteve o título originalmente proposto por Adorno. Dedicaremos uma

extensa discussão, em particular, à sua teoria dos tipos. Nossa hipótese é de que não

apenas o ideal de Entwicklung, mas também sua contrapartida dialética, a

“espacialização do tempo” e a “pseudomorfose”, consubstanciam-se nessa teoria.

Embora tenha permanecido em estágio embrionário, ela se mostra profícua para

esclarecer a “extensividade épica” no sinfonismo de Mahler, a “reincidência mítica” em

Wagner, a “dissociação do tempo” em Stravinsky. Do mesmo modo – e esse aspecto

justifica primordialmente o exame desses fragmentos – , os critérios da teoria dos tipos

comparecem na crítica endereçada à estaticidade das obras dos anos 1950 e 60,

conforme os ensaios O envelhecimento da NM, Critérios da NM, Vers une musique

informelle, Forma na NM, dão testemunho. Por fim, o recurso aos fragmentos nos

permite afastar a conjectura de que Adorno simplesmente atribuiria ao ideal de

Entwicklung, que preside seu conceito de tempo mas não o limita, um modelo

preceptivo de composição vinculada à “tradição austro-germânica”; o ideal de

28

Entwicklung provém, na realidade, de um tipo, o tipo intensivo, efetivado em poucas

obras do período médio de Beethoven. Os fragmentos mostram que, para Adorno, o

processo de espacialização não seria um fenômeno do século 20, iniciado com o colapso

da tonalidade; pois já no tipo extensivo, a exemplo do Trio op. 97 e da Pastoral, bem

como no estilo tardio, estaria prefigurada tal “dissociação do tempo”, não

necessariamente tomada como regressiva. Para confirmar a hipótese de que os

fragmentos esclarecem as categorias do conceito adorniano de tempo musical, prevemos

neste capítulo a análise da questão da temporalidade na monografia publicada sobre

Mahler. Veremos que a reconstrução épica do sinfônico em Mahler remete diretamente

à configuração da totalidade descrita no tipo extensivo dos fragmentos sobre Beethoven.

Alinhados ao processo de reificação, que envolve a atrofia da experiência social

e a destemporalização do tempo na filosofia e na música, encontram-se os dois ensaios

dedicados a Stravinsky (a segunda parte de Filosofia da nova música, de 1949, e o

“retrato dialético” de 1962). Os ensaios indicam, a nosso ver, o alcance crítico dos

conceitos de “espacialização do tempo” (Verräumlichung der Zeit) e “pseudomorfose

em pintura” (Pseudomorphose an Malerei), conceitos que são primordiais para nosso

estudo. Pois tais conceitos exibem, por contraste, o compromisso de Adorno com uma

concepção particular de essência musical associada à “antifonia motívica”. Permitem

também compreender o estatuto do “colapso da experiência subjetiva do tempo” na

modernidade segundo o referencial adorniano. No capítulo 2, analisamos esse

“colapso” a partir da categoria estética de “choque” em Filosofia da nova música. Em

seguida, observaremos que a apreciação crítica de Stravinsky, envolvendo “implicações

judicativas” (como afirma Dahlhaus), apoia-se de fato em critérios provenientes do

pensamento motívico-temático. A observação não é nova. Jorge de Almeida comenta,

por exemplo, que a matriz da crítica adorniana à espacialização do tempo concentrava-

se na análise da História do Soldado, obra que radicalmente se opõe ao ideal da

“variação em desenvolvimento” (entwickelnde Variation): “qualquer elemento externo

que viesse a impedir o fluxo da ‘variação em desenvolvimento’ significaria oposição à

natureza essencialmente temporal do pensamento da música”18. Os conceitos de

espacialização e pseudomorfose surgem respectivamente no Ensaio sobre Wagner

18 ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 141

29

(escrito em 1937-8, publicado em 1952) e em O esquema da cultura de massas (escrito

em 1942, anexado posteriormente em DE). Dedicaremos uma breve análise sobre o

problema do tempo nesses textos, tendo em vista seu caráter inaugural na exposição

desses conceitos. Ressaltemos, de todo modo, que o problema da temporalidade

subjacente a eles foi de fato melhor desenvolvido nos dois ensaios sobre Stravinsky,

reaparecendo em momentos estratégicos dos escritos dos anos 1950 e 60 (nas

conferências proferidas em Kranichstein-Darmstadt e nas monografias musicais de

Mahler e Berg, por exemplo).

Os dois primeiros capítulos buscam, portanto, mostrar a especificidade do

conceito adorniano de tempo musical. A mesma constelação conceitual será

complementada no capítulo 3, a partir dos dois ensaios sobre as relações entre música e

pintura, publicados em 1950 e 1965. Esses ensaios sobre a “arte do tempo” e a “arte do

espaço”, cuja temática converge com aqueles dedicados a Stravinsky (inclusive

considerando suas datas de publicação), confirmavam enfaticamente o ideal de

Entwicklung no pensamento adorniano. Seja através do conceito de material, que

asseguraria o desenvolvimento autônomo e a reflexividade estética e imanente dos

meios artísticos, seja através do conceito de écriture, mobilizado em um momento

histórico no qual a questão da convergência entre as artes adquire relevância, esse ideal

continua presente. Comentadores como Gianmario Borio e Rodrigo Duarte acreditam

que, no segundo ensaio sobre música e pintura, Adorno sinalizaria uma revisão de seu

conceito de pseudomorfose (ou da “falsa comutação” da essencialidade imanente de um

meio em outra), sancionando uma visão mais progressista e positiva do conceito.

Entretanto, considerando a estrita continuidade teórica entre os dois ensaios sobre

música e pintura, temos razões para crer que Adorno não tratou em termos mais

positivos a pseudomorfose, um conceito orientador para crítica a Stravinsky e ao

serialismo. Mesmo quando Adorno passou a refletir sobre a convergência entre os

meios em meados da década de 1960, o teor crítico do conceito se preserva. Conforme

seu ensaio de 1965, as artes não convergem por sinestesia, nem por semelhança

(Anähnelung), nem por pseudomorfose, tampouco pelo estabelecimento de uma

hierarquia, à guisa de um paragone. Convergem, antes, em um terceiro: em seu caráter

de linguagem, que implica tanto a écriture e a reflexão imanente em cada meio, quanto

a repulsa a modelos comunicativos e heterônomos de expressividade. Dito de outro

30

modo, a autêntica convergência entre as artes resulta da exigência dos próprios

materiais, da articulação interna de cada meio que ocorre especificamente na obra. O

processo a que Adorno procurava aludir não corresponde, portanto, à “intersemiose”,

um tipo de convergência não dialética no sentido de “intermeios” ou “multimeios”,

como propõe por exemplo a ideia de “obra de arte total”. Na realidade, Adorno parece

referir-se a uma espécie de concórdia de “parameios”, dado pela écriture específica de

cada arte. Assim, torna-se mais compreensível a razão pela qual, no ensaio de 1950,

Adorno invertia as expectativas convencionais de comparação, ao afirmar que a

atonalidade livre de Schoenberg “convergia” dialeticamente com o cubismo de Picasso

e menos com o expressionismo de Kokoschka. Isto porque Schoenberg e Picasso

ligavam diretamente seus métodos autônomos de construção ao “campo de problemas”

(Problemlage) de seus respectivos meios. Se, para o ensaio de 1965, a pseudomorfose

aparece como etapa decisiva do processo de convergência, é porque, longe de

revisionismos em relação à posição defendida em 1950, o conceito permitia expor com

maior nitidez o momento de regressão subjacente à própria dialética da convergência

entre as artes no plano mais abrangente da Aufklärung. O coroamento dialético dos

ensaios sobre música e pintura estaria, com efeito, na conferência A arte e as artes

(1966), no qual se desenvolve o conceito de imbricação (Verfransung). Nessa

conferência, Adorno recusava novamente a ideia de uma convergência externa dos

meios artísticos, bem como uma síntese ontológica das artes, apresentando um conceito

negativo e historicizado de arte. Antes de mostrarmos a preservação do ideal de

Entwicklung nesses três ensaios, julgamos pertinente incluir também uma seção neste

terceiro capítulo sobre a teoria dos signos no Laooconte de Lessing. A estética

racionalista de Lessing praticamente inaugurou o debate clássico alemão sobre os

limites e a irredutibilidade formal dos meios artísticos, mediante a divisão sistemática

entre artes orientadas pelo critério espacial-simultâneo e as orientadas pelo critério

temporal-sucessivo. Nesse sentido, acreditamos que a teoria idealista de Lessing serve

de contraponto à abordagem dialética adorniana quanto à irredutibilidade dos meios e

suas possibilidades de convergência. Em resumo, pretendemos expor nesta Parte I da

tese a estabilidade de um ideal de Entwicklung em diversos estágios da produção

adorniana. Deixamos para a Parte II a análise da “modulação” desse ideal na discussão

sobre os impasses da formalização do tempo musical no serialismo.

31

A segunda parte da tese explora, portanto, a confrontação do conceito adorniano

de tempo musical com os conceitos de tempo encaminhados pelas abordagens teóricas e

práticas de Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen durante os anos 1950. Nesta parte,

contextualizaremos inicialmente as aspirações formalistas da denominada “Escola de

Darmstadt”, da qual os dois compositores mencionados foram, sob o aspecto da teoria

musical, os maiores representantes. Essa geração de compositores manifestava o desejo

de fazer tabula rasa da linguagem musical, eliminar vestígios retóricos do passado para

criar um novo universo sonoro quase ex nihilo. Observaremos que Adorno, participando

ativamente dos “cursos de verão” em Darmstadt entre 1950 a 1966, alinhou parte

significativa de sua produção ensaística sobre a vanguarda à sua experiência como

crítico, conferencista, professor e ouvinte nos cursos.

Após a contextualização histórica do surgimento dos cursos de Darmstadt, o

capítulo 4 analisa tecnicamente os modelos axiomáticos e estruturalistas de Pierre

Boulez para a formulação de seu conceito de tempo musical. Nossa análise se efetua por

meio da comparação entre seus textos teóricos e a implementação dessa teoria em duas

composições seminais do período: Structures 1a (1951) e a 3a Sonata para piano

(1958). O pensamento serial de Boulez nascia da articulação entre uma perspectiva de

extensão racionalizada das dimensões do som (altura, duração, intensidade), inspirada

pela obra de Olivier Messiaen, e uma abordagem objetivista da técnica dodecafônica

inspirada na prática de Anton Webern. Associando essa articulação ao estruturalismo,

Boulez propôs um “sistema racional de tempo”, fundado na substituição da distinção

hilemórfica entre forma e conteúdo por um conceito amplo de forma, no qual os campos

da macroestrutura (domínio da sintaxe musical) e da microestrutura (domínio da

morfologia) encontrariam solo comum. Além do exame de tal abordagem e de suas

implicações para uma perspectiva adorniana, analisaremos as estratégias de organização

racional do acaso mediante o paradigma da “forma móvel”. Esse paradigma consistia na

reação ao “princípio de não obstrução” de John Cage, cuja intervenção no círculo de

Darmstadt em 1957 provocou uma grande crise no pensamento serial. Em seu horizonte

teórico, Boulez defendia a noção de “responsabilidade” do compositor (métier), que

deveria preparar um “tempo de escuta não-direcional”, um “ângulo de audição a priori”

32

das formas musicais. Essa percepção renovada do fenômeno musical trazia implicações

filosóficas, fossem elas emancipatórias ou regressivas, que não foram desprezadas por

Adorno na época.

É nesse contexto que a polêmica de Adorno com os defensores do serialismo,

em especial com o musicólogo Heinz-Klaus Metzger, se instaura. Podemos dizer que, a

partir da publicação de O envelhecimento da nova música (1954), a questão da

experiência subjetiva do tempo torna-se o ponto central da dissensão entre Adorno e a

nova geração de compositores. Veremos, no capítulo 5, que as motivações do polêmico

ensaio de 1954 encontravam-se plenamente indiciadas em Filosofia da nova música

(FNM). Fazendo um recuo ao livro de 1949, mostraremos que – ao contrário do que

comentadores como Paddison apontam – FNM não fornece a legitimação filosófica para

desdobramentos “pós-Messiaen” ou “pós-Webern”, o que dificulta a compreensão do

impacto que o livro exerceu sobre a geração de compositores do imediato pós-guerra.

Em seguida, apontamos para a estrita continuidade entre FNM e os temas principais de

O envelhecimento mediante a ênfase que Adorno atribuía à retração da expressão nas

abordagens seriais, em consequência do “fetichismo dos meios” e da aposta objetivista

na “segurança das séries”. Não por acaso, em O envelhecimento, os métodos

composicionais de Schoenberg e Beethoven aparecem pedagogicamente como

paradigmas de expressão e construção de relações temporais “autênticas”. Neste

capítulo, buscamos reconstituir o debate entre Adorno e Metzger, que reagiu a O

envelhecimento em termos não menos veementes: Com a publicação em 1957 de O

envelhecimento da “Filosofia da nova música”, Metzger sugeria já no título a

inadequação dos critérios de Adorno ao universo sensorial aberto pelo serialismo.

Descrevemos ainda o diálogo entre ambos em 1958 transmitido pela rádio WDR, no

qual os termos da querela, todavia, se abrandavam. Com efeito, a correspondência entre

Adorno e Metzger, estabelecida entre 1954 a 1965, demonstrava que Adorno tinha uma

relação muito mais ambivalente em relação às abordagens serialistas do que seus

próprios textos publicados manifestavam.

Por indicação do próprio Metzger, a obra de Stockhausen exerceu influência

considerável sobre as famosas conferências de Adorno em 1961, posteriormente

publicadas sob o título Vers une musique informelle. Tais conferências marcariam o

33

retorno de Adorno ao círculo de Darmstadt, após uma série de desentendimentos, entre

os quais a publicação de O envelhecimento da nova música não havia sido o menor.

Adotando um estilo mais ameno e favorável, Adorno classificou, em Vers une musique,

o ensaio ...como o tempo passa... (1957), de Stockhausen, “o mais importante trabalho

sobre as relações da música contemporânea com a dimensão temporal”. Stockhausen

pretendia explicitamente inaugurar nada menos do que uma nova “morfologia do tempo

musical”, baseada na noção psicoacústica e frequencial de fase-duração. Tendo em

vista a força da declaração de Adorno, realizamos no capítulo 6 a análise dos principais

referentes teóricos que a morfologia de Stockhausen introduz, bem como uma breve

exposição de sua implementação em obras como Zeitmaße, Gruppen e Kontakte. Na

parte final do capítulo, examinamos a ambivalência de Adorno em relação a

Stockhausen. Se, por um lado, reconhecia o estágio mais avançado da racionalização, o

potencial construtivo do continuum eletrônico e a riqueza sensorial das obras de

Stockhausen mencionadas, por outro, Adorno questionava o uso formativo dos

parâmetros para fins composicionais. De fato, a ideia de unificação das dimensões

musicais induzia ao esmorecimento das diferenças qualitativas entre altura e duração

de um som, por exemplo, ou mesmo entre som e forma. De acordo com a morfologia,

tais diferenças poderiam ser reconduzidas a diferenças quantitativas entre as fases de

vibrações constitutivas a cada dimensão ou parâmetro. Um conceito objetivamente

físico de tempo frequencial identificava-se, na teoria de Stockhausen, ao próprio tempo

musical. Para Adorno, contudo, o tempo musical seria subjetivamente mediado, tanto

pela história quanto pela sua processualidade interna. Era preciso recusar a submissão

das dimensões musicais à síntese de um denominador frequencial-cronométrico. Em

Vers une musique, a mensagem a Stockhausen era clara: “sob o aspecto da consciência

do tempo, a prática contemporânea sinaliza incongruências (Mißverhältnisse) que

tornam urgente uma revisão desses procedimentos”.

Por fim, o capítulo 7 propõe uma síntese dos ensaios dos anos 1960, a partir do

conceito de música informal ou a-serial. Para tanto, analisamos com maior rigor o

ensaio Vers une musique informelle. De fato, o texto de 1961, considerado a meta-teoria

da filosofia da música de Adorno, consubstanciava sua rejeição programática ao que até

então qualificava como a “negação do tempo” na nova música. Nesta etapa,

pretendemos questionar a hipótese de revisionismo adorniano no contato tardio com

34

abordagens seriais; hipótese esta, como veremos a seguir, sustentada por comentadores

como Bürger, Urbanek, Borio, Iddon, entre outros. Defendemos, ao contrário, a

prevalência do ideal de Entwicklung, modulado para o quadro referencial do serialismo

e do pós-serialismo nos anos 1960. Para tanto, acompanhamos o movimento dialético

da argumentação do ensaio, que coloca como momentos históricos internos de um

conceito especulativo mais abrangente de tematismo mesmo o pensamento a-temático

da atonalidade livre e o pensamento serial. O serialismo, para Adorno, apontava para

um estágio agônico, homólogo em seu teor crítico à avaliação que o filósofo fazia da

obra de Stravinsky: a “imagem de uma música em si estranha ao tempo (das Bild einer

in sich zeitfremden Musik)” (Vers une musique, GS 16, 526). Articulado à exigência

materialista da mediação subjetiva do tempo – que havia sido perdida na década de

1950 – Adorno sugeria a recuperação de “equivalentes” das categorias tradicionais,

mediante uma “teoria material das formas”, baseada na experiência da atonalidade livre.

Todavia, em oposição a leituras como a de Fredric Jameson em O marxismo

tardio, consideramos que essa busca por “equivalentes” em Vers une musique de modo

nenhum representa o “relaxamento da lógica da história” do material. Ela não representa

um aceno ideológico de retorno à atonalidade livre que marcaria uma “revolta” contra o

modernismo musical19. A tendência defendida pelo conceito de música informal, ou a-

serial, não ignorava o serialismo, tampouco a radicalidade do princípio de

indeterminação de Cage. O simples aggiornamento das aspirações do expressionismo

atonal não bastaria para definir o ideal utópico do programa adorniano. O que a

referência à atonalidade livre, transposta para o contexto pós-serial dos anos 1960,

pretendia era restabelecer a crítica contra todo tipo de ontologia das formas musicais.

Para isso, Adorno não poderia abrir mão de categorias que viabilizariam precisamente

essa crítica: a proposição de uma teoria material das formas, tal como Adorno havia

implementado em 1960 na monografia sobre Mahler, apontava para um caminho

possível.

19 “O conceito de uma musique informelle, já é, assim, extremamente pós-moderno, no sentido de que inclui uma revolta contra as irreversíveis necessidades do tempo estético, mudança e progresso modernistas” (JAMESON, O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da dialética, São Paulo: Ed. Unesp, 1996, p. 318)

35

No final desse último capítulo, examinaremos a aproximação e a crescente

afinidade teórica entre Adorno e György Ligeti no contexto pós-serial, a valorização da

dimensão timbrística como elemento de composição. O simpósio de 1965 realizado em

Darmstadt, com intervenções de Adorno, Ligeti, Dahlhaus e Boulez, intitulado “A

forma na nova música” documentava a situação aporética da vanguarda. No simpósio,

Adorno renovava a crítica contra a “teimosa pseudomorfose em espaço” à qual, segundo

seu ponto de vista, cediam mesmo as produções recentes. A conferência mostrava a

tenacidade de Adorno quanto à sua posição teórica. Esta perpetua-se em sua última

participação em Darmstadt, sobre a qual também comentaremos para a conclusão do

nosso estudo: a mesa-redonda de 1966, novamente com Ligeti, sobre o tema “O tempo

na nova música”.

*

Uma nota quanto a nosso procedimento de exposição: partilhamos aqui de uma

premissa defendida por Paddison, segundo a qual, embora os textos adornianos se

apresentem de modo anti-sistemático, sua filosofia não é todavia a-sistemática20. Para o

leitor de Adorno, à primeira vista a declaração é contraditória. Ocorre que efetivamente

encontramos um conceito de tempo musical bastante claro na produção filosófica

adorniana; um conceito cuja flutuação semântica, de fato, se dava em função do

momento histórico e do campo de interlocução. Trata-se neste trabalho de organizar

uma provisória “linearização” de sua constelação conceitual, respeitando ao mesmo

tempo as exigências de seu “pensar por modelos”, segundo as quais, de acordo com a

Dialética negativa, um “momento lança luz sobre o outro”.

20 PADDISON, The language-character of music: Some motifs in Adorno. In: Journal of the Royal Musical Association, v. 116, n. 2, 1991, p. 268: “It is my view that the contradiction which seems to lie at the heart of Adorno's work, namely that his antisystematic texts demand a systematic reading, is not really a contradiction at all. Adorno's writings are antisystematic but not unsystematic, and underlying their fragmented surface is a systematic, critical methodology which, because the form its expression takes is to proceed through antitheses, resists rigidification into a totalizing system.”

Parte I – Introdução

37

PARTE I

Parte I – Introdução

38

Introdução

Tempo musical como tempo histórico refletido

A posição dialética do conceito

Na medida em que o modelo teórico adorniano procede da confluência de uma

interpretação histórico-filosófica do material estético, da análise da obra concreta e da

crítica social, os conceitos de “desenvolvimento” (Entwicklung), “espacialização” e

“pseudomorfose”, que orbitam em torno do conceito de tempo musical, devem ser

descritos à luz de tal confluência. Se “não há dúvida de que a história da música é uma

progressiva racionalização”21, a organização interna do tempo musical expõe

dialeticamente o modo de organização do tempo empírico, socialmente objetivado. O

entrelaçamento entre filosofia, música e sociedade, que Adorno observa, por exemplo,

na conformidade entre a dialética hegeliana, a apropriação da sonata em Beethoven e o

movimento de emancipação burguesa, excede a simples analogia. Trata-se, afinal, de

reconhecer que “o tempo que é imanente em cada música, sua historicidade interna, é

realmente tempo histórico real, refletido como aparição (Erscheinung)” (Sobre a

relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 160). Uma “filosofia da música

completa”, para usarmos a expressão adorniana, compromete-se não apenas com a

análise das tensões internas entre construção e expressão nas obras, mas com “as

sedimentações intelectuais e espirituais do tempo real”, a dimensão histórica que

prefigura o “caráter enigmático”, o “teor de verdade”22 da obra a ser desvelado pela

atividade filosófica. A prerrogativa do momento histórico nesse desvelamento cognitivo

21 Ideias para a sociologia da música. In: Adorno (coleção “Os pensadores”), São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 262 22 TE, 197 (com alterações): “O teor de verdade das obras de arte é a resolução objetiva do enigma de cada uma delas. Ao exigir solução, o enigma remete para o teor de verdade, que só pode obter-se através da reflexão filosófica”

Parte I – Introdução

39

da obra teria sua origem no próprio contato adorniano com a arte musical. Como

defende Buck-Morss,

“foi o estudo da música que fez Adorno consciente do significado vital da dimensão histórica (…) A música, que sempre foi chamada a mais abstrata das artes, é, no sentido histórico, a mais concreta. A composição é ela própria história: o sentido de cada nota transitória ao mesmo tempo determina e é determinado pelo que foi e pelo que virá (…) a história não é externa à obra”23

O pressuposto materialista da correlação entre a temporalidade interna da obra

musical e seu tempo social, historicamente sedimentado, pertence a um gesto de

superação das fronteiras disciplinares que impulsiona a reciprocidade entre atividade

filosófica e uma teoria material das formas estéticas. O caráter inaugural desse gesto

teórico, de fato, não deve ser subestimado: “Adorno fundou a estética musical moderna

impregnada de filosofia da história”, diz Wiggershaus24. No entanto, está fora de

questão em Adorno a busca por qualquer ontologia musical, inclusive por aquela

inclinada a declarar que a própria tendência histórica da música seria seu elemento

essencial. Ou seja, se não há lugar para a pergunta pelo Ser imediato da música, também

não há para a hipóstase de sua historicidade, uma hipóstase que levaria à dissolução e

absorção da própria história no interior do Ser, “celebrando a transitoriedade como um

intransitório”, como o último fundamento da coisa (cf. Sobre a relação contemporânea

entre filosofia e música, GS 18, 161). É em sentido verdadeiramente dialético que

devemos compreender o tempo musical como tempo histórico, refletido como aparição

(Erscheinung). A declaração, todavia, pode induzir a confusões. Por um lado, sabemos

que, para Adorno, o estabelecimento do domínio da música (e da arte em geral) como

“antítese social à sociedade” assegura o caráter de aparência e a dimensão crítica das

obras; que aquilo que é “dito” na música não pode ser traduzido para nenhum outro

meio artístico ou discursivo. Sob esse aspecto, o tempo musical seria realmente distinto,

até mesmo indiferente, ao tempo empírico. Isso é o que Adorno parece sugerir na

seguinte passagem de TE:

23 BUCK-MORSS, The origin of negative dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt Institute, New York: Free Press, 1979, p. 43 24 WIGGERSHAUS, A Escola de Frankfurt. - História, Desenvolvimento Teórico, Significação Política, Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 545

Parte I – Introdução

40

“o tempo na música é inconfundível enquanto tal, mas de tal modo afastado do tempo empírico que, numa audição concentrada, os acontecimentos temporais fora do continuum musical lhe permanecem exteriores e dificilmente o afetam; se um intérprete se detem para repetir ou retomar uma passagem, o tempo musical fica por um instante indiferente (gleichgultig), totalmente intacto, para só prosseguir de certo modo quando o curso musical então continuar. O tempo empírico, quando muito, altera o tempo musical devido à sua heterogeneidade, mas eles não se confundem”

(TE, 211, GS 7, 207)

Por outro lado, ao contrário do que uma interpretação purista sobre a autonomia

poderia deduzir a partir do trecho acima, o tempo musical não pertence a uma esfera

separada do empírico, supostamente liberada da faticidade social, indiferente a essa

faticidade e protegida por uma espécie de demarcação mágico-religiosa, que

transcenderia a ordem profana do mundo. Uma formalização ontológica que identifica

na música uma linguagem sui generis, por mais secularizada que fosse, está distante do

propósito adorniano. O tempo musical não estabelece, para Adorno, um continuum

distante do tempo histórico-empírico, mas participa de uma dialética que, por um lado,

define seus limites como negação do empírico e, por outro, reflete tal negação na

estrutura interna da obra, na mediação de sua sucessividade. A consciência mediada

pelo conteúdo especificamente musical também participa, por sua vez, do tempo

histórico – seja “uma fuga do Cravo bem temperado, o primeiro movimento da Sétima

sinfonia, um prelúdio de Debussy, ou um movimento para quarteto de Anton Webern de

vinte compassos” (Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18,

159). A experiência da historicidade interna dessas obras é, ela também, suscetível a

variações históricas. Essencialmente vinculada ao movimento da Aufklärung, a

mediação da sucessividade transforma a concretude sonora da obra em algo espiritual,

em algo linguístico (cf. GS 18, 160).

O elemento espiritual que fornece o caráter de linguagem da música depende,

assim, tanto de seu impulso mimético quanto de sua relação com a “segunda natureza”

do material (o “mundo das convenções”, segundo Lukács), com a história das formas

musicais; a música não é linguagem sui generis (GS 18, 160). A analogia com a mônada

leibniziana decorre desse elemento espiritual. Segundo Duarte, o significado das

mônadas estéticas em Adorno estaria dado por uma abordagem histórico-filosófica

Parte I – Introdução

41

segundo a qual “a arte – imediatamente distanciada do mundo empírico – também no

que tange à forma, reflete esse mundo”, ou seja, segundo a qual as obras “refletem a

partir do seu interior o universo, apesar de não possuírem janelas”25. Adorno abre mão

da questão da origem e do formalismo propriamente linguístico da música, pois a

dimensão histórica torna filosoficamente inviável a abordagem ontológica. Mesmo o

ideal intra-estético da Entwicklung, como veremos, alinha-se ao “significado vital da

dimensão histórica”. Ao abandonar a “busca pelo ser imediato da música” de corte

transcendental, rejeita-se consequentemente toda definição de obra que não considere a

própria evolução das formas musicais, a dialética da Aufklärung musical. Portanto, a

questão do tempo musical, longe de ser subsidiária no interior do pensamento

adorniano, está no núcleo de sua filosofia. Conforme Anne Boissière,

“A questão do tempo não é um tema entre outros no pensamento musical de Adorno, mas é aquele a partir do qual a estética se afasta de modo significativo de critérios apenas formais e técnicos, considerados insuficientes para compreender a natureza das mutações da arte no século 20”26

A relevância do conceito de tempo para o pensamento adorniano tem sido

recentemente partilhada por vários comentadores: para Richard Klein, trata-se do

“problema central da filosofia da música adorniana”; para Klaus Kaehler, o “ponto

nodal da dialética imanente do material musical”27. Em que pese a centralidade da

questão, podemos desde já afirmar que não há em Adorno uma teoria fixa do tempo

musical, justamente em função do preceito materialista que assume o núcleo histórico

da verdade. Todavia, constatamos que há, de fato, um conceito especulativo de tempo

musical, bastante preciso, um conceito cuja tenacidade trouxe inclusive implicações

25 DUARTE, Mímesis e racionalidade: a concepção de domínio da natureza em Theodor W. Adorno, São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 120; 123. A decisiva influência de Benjamin sobre Adorno no que se refere à tipificação do caráter de linguagem e monadológico das obras não será trabalhada nesta tese; além de exceder nosso escopo, encontra-se descrita por uma bibliografia considerável, da qual os livros de Duarte e Jeanne Marie Gagnebin são exemplares. 26 BOISSIÈRE, La pensée musicale de Theodor W. Adorno: l’épique et le temps, Paris: Beauchesne, 2011, p. 23. A fim de compreendermos de que maneira Adorno se coloca diante “das mutações da arte no século 20”, analisaremos tanto a questão da pseudomorfose e da imbricação dos meios na década de 1960 quanto o debate específico com a vanguarda musical nos anos 1950. 27 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit. In: Adorno-Handbuch: Leben - Werk - Wirkung, Stuttgart: Metzler, 2011, p. 59; KAEHLER, Aspekte des Zeitproblems in der Musikphilosophie Theodor W. Adornos. In: KLEIN, Richard; MAHNKOPF, Claus-Steffen (Orgs.), Mit den Ohren denken: Adornos Philosophie der Musik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 40

Parte I – Introdução

42

judicativas no âmbito da prática compositiva. Esse conceito fundamenta-se em um ideal

de “desenvolvimento”, Entwicklung, a ser descrito nos capítulos a seguir. Cabe observar

que as categorias associadas a esse ideal são “moduladas” visando atender a propósitos

críticos de ocasião. Por um lado, essa modulação é o que impede a cristalização do

conceito para a formação de uma “teoria do tempo musical”. Por outro lado, a

recorrência de uma terminologia ligada ao ideal de Entwicklung, como “essência

musical”, “organicidade”, “discurso”, “sucessividade”, “irreversibilidade”,

“progressão”, em que pese a flutuação de seus significados, testemunha a persistência

da posição conceitual de Adorno. Longe de ser evidente, A persistência dessa

terminologia em sua confrontação com a materialidade dos fenômenos específicos,

define os contornos semânticos do conceito de tempo em Adorno. Em resumo, se as

categorias ligadas ao tempo musical são moduladas conforme o referencial histórico,

essas modulações não conduzem a revisionismos de qualquer natureza. Desde os

escritos de juventude aos escritos tardios, a filosofia adorniana encontra no devir

(Werden) o não-idêntico, momento que inspira, por sua vez, a “essência dialética”

(dialektisches Wesen) da música. O que vale para a avaliação crítica da teoria do

conhecimento, vale para a análise imanente das obras musicais: o tempo seria “aquilo

no qual o idêntico esbarra e que, na verdade, recusa a identidade” (Stravinsky, um

retrato dialético, GS 16, 389). A partir da negatividade do conceito, estabelece-se,

porém, o compromisso com um ideal peculiar, sob o aspecto técnico, do que significaria

temporalidade na obra musical.

Os ensaios sobre Stravinsky confirmam nitidamente esse ideal. A continuidade

crítica (que analisaremos no cap. 2) entre o segundo capítulo de Filosofia da nova

música (FNM), de 1949, e o ensaio Stravinsky, um retrato dialético, de 1962, comprova

a tenacidade com a qual Adorno sustenta seu conceito de tempo na música. Embora

provenientes de contextos distintos, sobretudo do ponto de vista evolutivo do material,

os dois ensaios convergem para a mesma denúncia de “escamotagem” temporal na

compleição das obras do compositor; constatamos não apenas a reincidência temática,

mas o mesmo tratamento quinze anos após a publicação do primeiro ensaio. Ou seja, ao

contrário de Peter Bürger, não conseguimos identificar revisionismo nos critérios de

avaliação do ensaio de 1962, pelo menos no que se refere à sua formulação principal: a

“espacialização” do tempo e a “pseudomorfose com a pintura” ainda são os principais

Parte I – Introdução

43

traços da obra de Stravinsky. Como veremos, apesar da incipiente autocrítica no início

do segundo ensaio – quase um artifício retórico de captatio benevolentiae –, Adorno

ainda considera, de maneira semelhante ao primeiro ensaio, que em Stravinsky “il y a

quelque chose qui ne va pas” (GS 16, 386), a saber, o fato de que sua obra permanece

estacionária em função do recurso sistemático da “repetição”, da sua deliberada recusa

composicional em elaborar formalmente o devir. Tal elaboração formal do devir

constituiria, todavia, para Adorno, a própria “essência dialética” (dialektisches Wesen)

da música em seu “protesto contra o mito” (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16,

387). Não é óbvia essa imposição adorniana de uma ideia específica de sucessão

temporal que presume, para a realização da “essência” musical, não apenas uma

definição clara do que seja “repetição” como também certa normatividade discursiva na

fatura das obras. Adorno utiliza em diversos momentos o termo “essência” para se

referir à expansão do pensamento motívico-temático e à “incondicionalidade” da

progressão que seria determinada pelo “puro meio” da música. Por mais que se queira

evitar o “influxo ontológico” na definição de “essência”, dificilmente se trata, tanto em

1949 quanto em 1962, de um uso performativo do termo: de fato, como veremos, na

visão de Adorno, a obra de Stravinsky falharia em cumprir o pré-requisito que define a

própria essência da arte musical. Nos diversos modelos adornianos que tematizam o

compromisso essencialista da Entwicklung, insinua-se aquilo que poderíamos chamar de

uma metafísica da antifonia motívica, ligada a um modelo específico de transição,

baseado no (mas não limitado ao) pensamento motívico-temático, que procuramos

descrever nos capítulos que se seguem nesta parte.

Para ilustrar a particularidade do conceito adorniano, seria interessante contrapô-

lo à noção de tempo enunciada pelo próprio Stravinsky. Lembremos que, em FNM

(1949), Adorno considerava a obra de Stravinsky um “fenômeno marginal, porque evita

o confronto dialético com o decurso temporal (Zeitverlauf) da música, confronto que é a

essência (Wesen) de toda grande música desde Bach”28. Ocorre que o próprio

Stravinsky, por sua vez, havia declarado em 1940 – portanto, nove anos antes da

publicação do ensaio de FNM – sua deliberada preocupação com a questão da

28 FNM, GS 12, 171: “Strawinskys Musik bleibt Randphänomen (…), weil sie die dialektische Auseinandersetzung mit dem musikalischen Zeitverlauf vermeidet, die das Wesen aller großen Musik seit Bach ausmacht“.

Parte I – Introdução

44

temporalidade: “Esse problema do tempo na arte da música é de importância capital.

Achei que valia a pena mergulhar nele porque as considerações daí resultantes podem

ajudar-nos a entender os diferentes tipos criativos”29. A extensa análise de Pierre

Boulez, em Apontamentos de aprendiz, sobre a construção do tempo e a complexidade

rítmica em Stravinsky confirmou essa importância. Há, no mínimo, um estranhamento

provocado pela declaração adorniana de que Stravinsky negligenciaria o tempo musical.

Na realidade, o dissenso semântico entre as duas concepções, que não passou

desapercebido por Adorno30, obrigou-o, segundo nossa hipótese, a enunciar claramente

os referentes que articulam sua concepção particular de “essência dialética” da música e

que, de fato, são delineados com maior precisão no segundo ensaio de 1962. Assim, a

confrontação com a obra de Stravinsky mostra-se decisiva não apenas para a

compreensão do aniquilamento da experiência subjetiva do tempo na modernidade

(aniquilamento que atinge, como veremos, mesmo a fase expressionista de Schoenberg),

como também serve de esteio discursivo para a exposição mais clara do que seria

essência musical na concepção adorniana. Se Stravinsky representava, de acordo com o

método benjaminiano dos extremos que inspira a FNM, um dos polos dialéticos da

modernidade, é porque a complexidade programática de suas peças representa com

maior vigor o processo de espacialização e de progressiva ocultação do não-idêntico

inerente à Aufklärung musical. Não estranharemos que os tópicos fundamentais do

primeiro ensaio sobre Stravinsky, redigido em 1947, sejam utilizados na descrição

crítica de problemas e impasses da vanguarda nos anos 50 e retornem, “modulados”,

porém com o mesmo teor, no segundo ensaio. Antes, porém, retornemos a Beethoven,

sobre cuja interpretação Adorno vê um paradigma do tempo musical.

29 STRAVINSKY, Poética musical em 6 lições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 137. Cf. também ensaio de Boulez sobre a complexidade rítmica e temporal da Sagração 30 Cf. o ensaio Critérios da NM (1957), GS 16, 222: “Não há dúvida de que também para Stravinsky, tempo era o problema da música: isso foi sua grandeza. Mas objetivamente, sua música torna-se incapaz de superar o tempo por meio de articulação, por meio do processo que Hegel chamava posição [Setzung] e negação [Verneigung]”

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

45

1. Beethoven: paradigma do tempo musical

Os fragmentos e a teoria dos tipos

Se Adorno não oferece uma teoria do tempo musical, por outro lado,

encontramos nos fragmentos sobre Beethoven uma incipiente tipologia que envolveria

as modalidades de toda “relação da música com o tempo”. Acreditamos que os

elementos de sua teoria dos tipos – tipo intensivo, tipo extensivo, e a crítica imanente de

ambos no estilo tardio – revelam os critérios que orientam a dialética conceitual sobre o

tempo nos escritos musicais subsequentes. Para sustentar a hipótese, não devemos

subestimar, de início, o lugar do livro planejado sobre Beethoven no período mais

produtivo de Adorno: o alcance e a audácia do projeto já se manifestam na escolha do

título – Beethoven. Philosophie der Musik 31. Por meio da análise imanente da obra do

compositor32, Adorno pretendia a compreensão materialista não apenas da apropriação

especulativa da forma-sonata, tomada como equivalente formal ao “sistema conceitual”

do idealismo, mas da própria tonalidade diatônica como fenômeno estético-social

vinculado à ascensão da burguesia no plano político. Filosofia idealista e tonalidade,

produções coetâneas do espírito burguês, estabeleceriam uma estrita homologia que

Adorno procurou reiterar nos fragmentos: “assim como a tonalidade coincide,

historicamente, com a era burguesa, ela é, em termos de significado, a linguagem

musical da burguesia” (§113)33; ao mesmo tempo, “o sistema idealista em Beethoven é

a tonalidade (…) E, assim como a música de Beethoven, a tonalidade é o todo”(§35).

Beethoven representaria o apogeu da reflexão dialética no plano da construção musical,

31 Embora tenha aparentemente desistido do livro em 1959, pouco antes de sua morte, em janeiro de 1969, Adorno volta a incluir Beethoven. Philosophie der Musik na lista dos livros que ainda esperava concluir, conforme as notas de sua reunião com o editor Siegfried Unseld. Cf. TIEDEMANN in ADORNO, Beethoven: The Philosophy of Music, Cambridge: Polity Press, 1998, p. viii e nota 25, p. 202 32 Cuja relevância para a reflexão musical adorniana vem sendo foco de artigos e teses recentes. Para uma lista sumária e recente Cf. URBANEK, nota 162; ver tb. os últimos trabalhos de Richard Klein e Gianmario Borio. 33 No texto, indicaremos com o sinal ‘§’ a numeração dos fragmentos que constam em ADORNO, Beethoven - Philosophie der Musik: Fragmente und Texte, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

46

e é nesse sentido que, para Adorno, “entender Beethoven significa entender a

tonalidade” (§112).

Podemos suspeitar que o fato de o livro não ter sido concluído confirmaria a

dimensão do projeto. De acordo com as correspondências e os manuscritos, sabemos

que Adorno trabalhou no livro por pelo menos 20 anos – as primeiras notas

preparatórias datam de 1937 – desistindo aparentemente em 1959, após a publicação do

ensaio Verfremdetes Hauptwerk, Zur Missa Solemnis34. Não seria estranho supor que o

livro nunca poderia ter sido escrito por Adorno, tendo em vista o caráter totalizante do

empreendimento, evidente no título (“Filosofia da música”), e ao qual mesmo os

fragmentos mais elaborados, de teor bastante assertivo, dão testemunho. Segundo Rolf

Tiedemann, organizador da edição, Adorno teria reconhecido de maneira cifrada, no

final dos anos 1940, a inviabilidade do livro, ao declarar em Filosofia da nova música

que uma “filosofia da música hoje só é possível como filosofia da nova música” (FNM,

GS 12, 19). No entanto, é preciso ter em conta dois fatores que atenuam o valor de face

da declaração: em primeiro lugar, as referências a Beethoven são frequentes o suficiente

em FNM para serem consideradas apenas episódicas; depois de Schoenberg e

Stravinsky, Beethoven é o nome mais citado no livro35. Em segundo lugar, no ensaio

Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música (1953), posterior à publicação

de FNM, Adorno utiliza explicitamente a expressão “filosofia da música” para referir o

conjunto da obra de Beethoven. Ao tratar da relação dialética entre tempo empírico

histórico e formalização intra-estética do tempo, sustenta que uma “filosofia da música

plenamente elaborada encontraria seu modelo na obra de Beethoven”36. Há razões para

acreditar que essa passagem não é casual. Se os fragmentos sobre Beethoven mostram a

34 Cf. ADORNO, Beethoven: The Philosophy of Music, p. viii Adorno publicou somente dois textos específicos sobre Beethoven: Estilo tardio (1937) e Verfremdetes Hauptwerk (1959), ambos reunidos posteriormente em Moments Musicaux (GS 17). A modesta produção pode nos iludir quando se trata de avaliar o lugar de Beethoven na reflexão adorniana. 35 “A presença mais marcante na Philosophie der neuen Musik, além de Schoenberg e Stravinsky, é a de Beethoven. Talvez ele seja, depois dos dois principais compositores, a figura central da Philosophie der neuen Musik” (WAIZBORT, Aufklärung musical - Consideração sobre a sociologia da arte de Th. W. Adorno na “Philosophie der neuen Musik”, Dissertação de mestrado (versão eletrônica), USP, São Paulo, 1992, p. 184) 36 Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 160: „Das zu entfalten, wäre die Aufgabe einer durchgeführten Philosophie der Musik, die ihr Modell am Werk Beethovens fände, wie es im Licht des musikalisch-logischen und real historischen Vorganges daliegt (…)“(grifo meu); vale lembrar também que este ensaio reavalia posicionamentos de FNM

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

47

busca contínua por uma paradoxal “filosofia da música”, mesmo nos anos 1950 e 60, a

declaração de FNM, redigida no final dos anos 40, torna-se no mínimo irresoluta. Por

fim, poderíamos até mesmo conjeturar se o livro, deixado em estágio de anotações

avulsas, não se coadunaria afinal com o caráter fragmentário da filosofia adorniana,

expressando seu próprio teor de verdade a contrapelo, talvez um curioso efeito de mis

en abyme. A conjectura, à primeira vista extravagante e passível de pronta contestação,

estaria contudo indiciada nas próprias observações que Adorno faz sobre a ópera

incompleta Moses und Aron, o “fragmento sagrado” de Schoenberg: uma obra que,

como musica ficta superada, como a metáfora melhor acabada da tensão permanente

entre construção e expressão no percurso da prática compositiva de Schoenberg, só

poderia existir como fragmento37.

Como dissemos, os fragmentos sobre Beethoven exibem um conjunto de

princípios, que fundamentam a posição de Adorno em relação à problemática

especulativa mais ampla do tempo musical e se particularizam nos textos sobre Wagner,

Mahler, Stravinsky, Berg e – naquilo que interessa diretamente ao propósito da tese –

sobre a nova música do pós-guerra. É preciso enfatizar que a tipologia apresentada nos

fragmentos não se deduz a partir de uma armação transcendental, formalista e não-

histórica, mas através da análise imanente da obra de Beethoven que se inicia no final

dos anos 1930. Adorno não tentou produzir, afinal, uma filosofia sobre música, marcada

pela autoridade e precedência do momento especulativo. Antes, buscava na

interpretação de peças específicas de Beethoven uma filosofia da música, cujo teor de

verdade emanaria do próprio objeto. Isso porque o objeto desvela um paradigma de

construção que não se degenera na estabilização de formas ou categorias:

“a verdadeira grandeza de Beethoven (…) não está simplesmente no fato de ter produzido boas obras, mas de ter produzido incessantemente – pode-se dizer infinitamente – novos caracteres, tipos, categorias da música (…) Em Beethoven, não há reificação das formas”

(ADORNO, Beethoven, §320)

37 Sakrales Fragment; über Schoenbergs Moses und Aron in QUF (GS 16, 454)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

48

Assim, é a partir dessa confrontação fundamental com a obra de Beethoven –

marcada, por um lado, pela necessidade de compreender tecnicamente certas

“inconsistências” internas, como a surpreendente adesão a convenções formais e a

modelos rudimentares no estilo tardio do compositor e, por outro lado, pelos impasses

da modernidade musical já prenunciados nas “escolas” de Schoenberg e Stravinsky que

se estendem nos anos 1950 e 60 – é a partir dessa confrontação que Adorno constrói seu

esquema tipológico da relação da música com o tempo e consolida binômios que

atuariam posteriormente em sua reflexão musical: desenvolvimento/repetição,

kairós/Langeweile, dramático/épico, dinamismo/estaticidade, intensivo/extensivo,

categorias que iremos expor em maior detalhe nas seções seguintes. Como observa

Richard Klein,

“a filosofia da música adorniana não é ‘estética aplicada’, mas é filosófica em si, é o meio originário de um pensamento enfaticamente orientado à objetividade, à experiência e às relações íntimas de fenômenos. Sem relação com objetos específicos, a filosofia de Adorno seria simplesmente inexistente”38.

A partir da premissa de que a filosofia da música é filosófica em si,

compreendemos o alcance especulativo que a objetividade dos fenômenos possui no

pensamento adorniano; em particular, Beethoven. Pois Adorno apresentaria nesses

fragmentos, conforme Boissière, a “perspectiva original de uma teoria dos tipos que se

reporta ao tempo musical de maneira abrangente”39 – uma perspectiva que vai além,

portanto, de Beethoven. Na mesma linha, Klein considera que os fragmentos “mostram,

mais do que qualquer outro texto de Adorno, como a insistência na ideia de

desenvolvimento (Entwicklung) o forçou a procurar modelos temporais

complementares” e que, nos fragmentos, “foi dada a fundamentação in musicis do

conceito adorniano de tempo”40. Percebemos que essa “fundamentação in musicis”

legitimaria tanto o posicionamento da Entwicklung, enquanto ideal de formalização do

38 KLEIN, Uberschreitungen, immanente und transzendente Kritik, p. 163. Semelhante afirmação sobre a estética como disciplina aparece em TE: „Ästhetik ist aber keine angewandte Philosophie sondern philosophisch in sich“ (GS 7, 141) 39 BOISSIÈRE, La pensée musicale de Theodor W. Adorno, p. 55. Cabe indicar que a confrontação, de onde se origina a teoria dos tipos, deve enormemente à leitura de Paul Bekker (Beethoven), relevante para a apreciação adorniana do modelo sinfônico em Beethoven (cf. Ibid., p. 44) 40 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 67; 64

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

49

tempo musical, quanto o diagnóstico crítico da “dissociação do tempo” que

caracterizaria a música posterior a Beethoven. É nesse sentido que o projeto do livro

sobre Beethoven não deveria ser entendido na chave de uma “monografia musical”,

empenhada na descrição da materialidade “fisionômica” de obras específicas (a

exemplo das monografias sobre Wagner, Mahler e Berg), mas sim no âmbito dos

escritos de maior ambição filosófica, como Filosofia da nova música, Dialética

negativa e Teoria estética41.

A nosso ver, o núcleo dos fragmentos sobre Beethoven ligado à questão da

temporalidade consiste na formulação da teoria dos tipos que determina as modalidades

de toda “relação da música com o tempo”. De modo sumário, dois grandes conjuntos de

obras servem de base à classificação adorniana: 1) os primeiros movimentos das

sinfonias 3ª - Eroica, 5ª e 7ª, e da sonata ‘Appassionata’ seriam casos paradigmáticos do

tipo intensivo; 2) os primeiros movimentos do Quarteto op. 59,1, da Sonata para violino

op. 96, do Trio op. 97, da 6ª sinfonia Pastoral seriam exemplares do tipo extensivo. No

fragmento §219, escrito em 1940, Adorno procura estabelecer os termos concretos da

teoria que, como dissemos, é retomada em passagens ulteriores de seus escritos, com

terminologia eventualmente alterada (ex.: por exemplo, a antinomia entre dramático e

épico nas monografias sobre Wagner e Mahler). Pela relevância para nosso propósito,

transcrevemos os trechos principais do fragmento:

“Um teoria dos tipos de Beethoven e de seus caracteres deve ser providenciado. Os tipos são independentes de tipos formais. Existe um tipo intensivo e um tipo extensivo, cada um dos quais – na relação da música com o tempo – algo fundamentalmente diferente é ambicionado. O tipo intensivo visa a uma contração do tempo (Kontraktion der Zeit). É o verdadeiro tipo sinfônico, que tentei definir em meu [ensaio] Zweite Nachtmusik. É o verdadeiro tipo clássico. O tipo extensivo pertence especialmente ao período médio/tardio (…) Representativos deste tipo são o 1º movimento do op. 59, 1 (o op. 59, 2 é exemplar do tipo intensivo, próximo do 1º movimento da ´Appassionata´); 1º movimento Trio op.97; 1º movimento da Sonata para Violino op. 96. Esse tipo é muito difícil de determinar (…) Poderíamos falar talvez de uma relação geométrica – em vez de dinâmica – com o tempo. (…) Raramente há alguma mediação, aspectos do estilo tardio aparecem aqui (…) O princípio de

41 Cf. URBANEK, Auf der Suche nach einer zeitgemäßen Musikästhetik: Adornos “Philosophie der Musik” und die Beethoven-Fragmente, Bielefeld: transcript Verlag, 2010, p. 121 :“das projektierte Beethoven-Buch (…) sei – als musikphilosophisches Hauptwerk – eher in einem Verweisungszusammenhang mit der Philosophie der neuen musik, der Negativen Dialektik und der Ästhetischen Theorie zu sehen“

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

50

organização da forma extensiva ainda é obscuro para mim. A forma extensiva contém certo momento de renúncia, abandono do equilíbrio dos opostos (…) contribui à contingência, no sentido de que, na constituição da forma, um maior peso é dado ao tempo abstrato do que à construção do tempo. Mas esse momento do tempo torna-se, como no romance, um tema e a coisa principal (…) A abdicação diante do tempo (Abdikation vor der Zeit) e a configuração (Gestaltung) dessa abdicação fazem a substância do tipo extensivo. Predileção por grandes extensões temporais (op. 59,1 e Trio op. 97) é importante aqui. A Nona (Sinfonia), nesse sentido, é a tentativa de articular os tipos intensivo e extensivo. O estilo tardio contém ambos; certamente é o resultado do processo de desintegração (Zerfallprozess) representado pelo tipo extensivo mas, mantendo o princípio intensivo, reorganiza os fragmentos quebrados por ele (…) A falta de suavidade é característica do tipo extensivo.”

(ADORNO, Beethoven, fragmento §219, grifos do original)

Apesar da formulação precária, o fragmento expõe, sobretudo quando

compreendido em conjunto com outros fragmentos, uma demarcação nítida quanto aos

modos de configuração intra-estética do tempo. Observamos, em resumo, dois tipos: o

tipo intensivo ou sinfônico corresponde à tentativa de realizar a contração da passagem

temporal (Kontraktion der Zeit) em um instante carregado de sentido pelas suas relações

internas ou, dito de outro modo, de produzir uma unidade dialética entre totalidade e

particularidade, cuja objetivação confronta o tempo empírico, denominado acima

“tempo abstrato”. Devemos ter em mente que o tempo empírico constitui, para Adorno,

“a mais profunda expressão das relações de dominação no interior do campo da

consciência”42. Já o tipo extensivo cobre o conjunto complementar de modelos, de

complexa organização (“difícil de determinar”; “ainda é obscuro para mim”), que se

materializa em certa renúncia ao confronto com a dimensão empírica do tempo para

simplesmente “preenchê-lo”: ao dar “maior peso ao tempo abstrato do que à construção

do tempo, o tipo extensivo consiste na negação determinada do tipo intensivo. O estilo

tardio exibe, por fim, a superação dialética dos dois tipos, fornecendo um modelo

singular de crítica à ideologia em sua lógica de desintegração (extensivo) que, não

obstante, preserva o princípio de construção (intensivo).

42 O esquema da cultura de massas, GS 3, 313 (tradução em ADORNO, The culture industry: selected essays on mass culture, London; New York: Routledge, 2001, p. 65)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

51

Notemos que os tipos não se referem a realidades antagônicas, não mediadas,

como se Adorno estivesse apresentando dois conceitos de tempo conflitantes entre si.

De acordo com Richard Klein, a teoria dos tipos simplesmente confirma a tese de que

“o conceito de tempo (der Zeitbegriff) de Adorno, encarnado pelo tipo intensivo, já é,

em si, cindido”; ou seja, confirma a tese de que a efetivação composicional desse

conceito tornou-se historicamente impossível por conta dessa cisão interna43. Vale

ressaltar também que os tipos deduzidos a partir da interpretação da forma em

Beethoven não correspondem a gêneros de uma poética normativa, de uma preceptiva

transferida para a linguagem musical. Não se trata de regras que a criação artística

deveria atender para uma autêntica ampliação de efeitos, tampouco se trata de

categorias de uma estética idealista, visando o conhecimento sistemático dos objetos

independentemente de seu momento histórico de produção e recepção. Na filosofia de

Adorno, os tipos funcionam antes como operadores descritivos das modalidades de

configuração temporal da totalidade nas obras, quando analisadas em contexto. Tal

especificidade fica evidente, por exemplo, na flutuação semântica que o “tipo épico-

extensivo” adquire nos escritos musicais (por exemplo, em Beethoven, na monografia

sobre Mahler e na discussão da vanguarda dos anos 1950). Dito de outro modo, não há

lugar para conceitos universais de dramático-intensivo ou de épico-extensivo sem

relação com a singularidade formal das obras. Por outro lado, se não devemos esquecer

que a teoria permaneceu em estágio de esboço, pretendemos mostrar que os tipos

permitem esclarecer os critérios orientadores que Adorno utilizou para a crítica

imanente das configurações do tempo musical em diversas obras, de Bach a Boulez. Por

fim, é importante sublinhar também que o critério de distinção dos tipos não é

quantitativo, não se refere à extensão cronométrica dos movimentos, e sim à

configuração qualitativa intra-estética de sua totalidade.

Este primeiro capítulo da tese segue a divisão da teoria dos tipos: tipo intensivo,

tipo extensivo, estilo tardio. Antes de avançarmos, convém fazer uma rápida observação

sobre A teoria do romance, a referência implícita de Adorno a Lukács no fragmento

§219 acima (“esse momento do tempo torna-se, como no romance, um tema”).

43 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 67

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

52

Drama e épica em Lukács

Embora Adorno não deixe claro em sua tipologia a origem do par

intensivo/extensivo em correspondência ao par dramático/épico (tomados como

sinônimos nos fragmentos sobre Beethoven), sabemos que uma estrutura praticamente

similar caracteriza A teoria do romance (1914). No livro, que exerceu enorme influência

sobre Adorno, Lukács sanciona certa visão idealista segundo a qual a oposição entre

drama e épica concerne aos modos específicos de configuração do tempo e às

figurações da totalidade da vida social. Embora a oposição proceda da estética de

Goethe e Schiller44, ainda baseada em noções de efeito e imitação, para Lukács, a

oposição não corresponde diretamente a gêneros. Drama e épica forneceriam as

“coordenadas do sistema literário” de Lukács, as linhas de força (vertical e horizontal,

respectivamente) a partir da qual então se deduziria a doutrina das formas e poética dos

gêneros (conto, novela, fábula, além do próprio romance)45.

A passagem do livro de Lukács que nos interessa para a fundamentação

adorniana da teoria dos tipos localiza-se na seguinte passagem: “a grande épica dá

forma à totalidade extensiva da vida, o drama à totalidade intensiva da

essencialidade”46. O homem épico é o homem da empiria. A essência do heroi aqui

consiste no espelhamento de uma realidade que existe por si mesma, cujo regime de

temporalidade seria estático, de modo que a subjetividade épica permite que o todo

social “fulgure no universo da obra”. Dado que a essência do heroi equivale à essência

do mundo, o heroi mantém um vínculo indissolúvel com a totalidade da vida e o modo

de ser equilibrado dessa realidade: essência e vida coincidem. No limite, a grande épica

não retrata o heroi sequer como indivíduo. O objeto configurado não é um destino

pessoal, mas comunitário, que, por sua vez, doa sentido a qualquer destino individual47.

44 LUKÁCS, A teoria do romance, São Paulo: Editora 34, 2000, p. 128 (ver tb. posfácio, p. 187). 45 Ver Posfácio do tradutor José Marcos de Macedo in Ibid., p. 197: "Opostos numa estrutura binária que dá vigor a toda obra de critica literária do jovem Lukács, épica e drama ditam o padrão segundo o qual se ramificam os vários gêneros" 46 Ibid., p. 44 47 Ibid., p. 67

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

53

Assim, o objeto da grande épica não se apresenta em uma cena conflitiva, mas na

totalidade social na qual o heroi se inscreve. Nela, não se constata exterioridade ou ação

adversa, apenas a imanência do sentido à vida. Daí a totalidade ser aqui apresentada de

maneira extensiva e sua ênfase ser horizontal. Na épica, observa-se a união – que

Lukács denomina “empírico-metafísica” – entre imanência e transcendência48.

Interessa-nos também a descrição da temporalidade épica, cujas implicações serão

esclarecedoras para a compreensão do tipo extensivo em Adorno:

O fato de as epopeias homéricas começarem no meio e não concluírem no final tem seu fundamento na legítima indiferença da verdadeira intenção épica diante de toda construção arquitetônica, e a introdução de conteúdos alheios jamais poderá perturbar esse equilíbrio, pois na epopeia tudo tem sua vida própria e cria a sua integração a partir da própria relevância interna”49

Notemos que a epopeia não confronta o tempo empírico, tempo da vida,

procurando antes coincidir com ele, uma vez que sentido e vida estão unidos. Os

eventos podem ser narrados no início ou no final, sem prejuízo para o equilíbrio de sua

construção orgânica (uma construção indiferente da arquitetônica). Na medida em que

os eventos não são capazes de alterar a continuidade mítica dessa vida social, a épica

representa uma totalidade concreta da vida na eternidade. Ela não conhece

desenvolvimento, não conhece o tempo; “a imanência do sentido à vida é tão forte que o

tempo é por ela superado: a vida ingressa na eternidade como vida”50. Segundo Lukács,

o romance moderno pode ser compreendido em chave épica, porém como

transformação da epopeia para os tempos em que as coordenadas da totalidade estão

perdidas, ao contrário do que prevalecia no período clássico. O romance emerge como a

epopeia de uma “era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo

evidente”, uma totalidade que precisa ser desvelada pela forma51. Somente em razão do

desvelamento na forma é que o tempo passa a ser constitutivo para o romance burguês;

48 Ibid., p. 47 49 Ibid., p. 68 50 Ibid., p. 129 51 Ibid., p. 55. De resto, também para Hegel o gênero romanesco afigurava-se como a “moderna epopeia burguesa”. Romance e “história filosófica” constituem modos de figuração adequados à “exposicao épica dos acontecimentos” e de apreensão da essência problemática do “curso do mundo”. (Cf. ARANTES, Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel, São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 380.)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

54

não por acaso, a abertura para a consciência histórica do tempo coincide com a

modernidade burguesa. Assim, o problema crítico da forma – da organização processual

da epopeia em uma época na qual o senso imutável de comunidade começa a se estiolar

– surge apenas com o advento do romance, que incorpora expedientes dramáticos em

sua constituição. Para o jovem Lukács, o romance não prescinde da ideia de totalidade

que também caracteriza a epopeia clássica, tampouco difere desta em suas “intenções

configuradoras” mais profundas: a forma do romance deve responder igualmente à

exigência de sentido da totalidade, como na épica, ainda que a totalidade esteja

socialmente oculta.

O oposto aconteceria no drama. Sua especificidade, enquanto figuração da

totalidade, reside em um sujeito cujo destino colide com as expectativas comunitárias.

Ao contrário da épica, a essência do heroi dramático coloca-se de modo transcendental,

externo à vida social. Interioridade e exterioridade mais não se harmonizam, sentido

individual e vida social estão dissociados, ação e destino, cindidos. O drama aprofunda

intensivamente um momento particular para o qual se encaminha a narrativa, momento

este que se projeta na cena ou no conflito que determinará a essência do heroi. Aqui, a

narrativa deve obedecer ao encadeamento progressivo e arquitetônico dos fatos,

procurando dispensar todo ornamental. Com o drama,

“o homem, no lampejo do instante, vislumbra sua essência no combate com o destino (...) o instante é uma outra vida, oposta de modo exclusivo à vida comum”52.

O instante, que concentra a ação e o conflito trágico, converte-se na pura

experiência da individualidade, conduzindo à transcendência da vida empírica. O efeito

dramático surgirá precisamente dessa contração temporal no instante, de sua suspensão

no acontecimento particular que confere sentido à vida do heroi. Com a intensificação

do conflito, portanto, a ênfase vertical em direção à essência do sujeito expõe a

particularidade que diverge da essência social e mítica. Em resumo, o heroi dramático

confronta o tempo empírico, não se conforma a ele, desliga-se da doação externa de

sentido. Sublinhemos este elemento decisivo da teoria de Lukács: a única possibilidade

52 Posfácio de José Marcos de Macedo in LUKÁCS, A teoria do romance, p. 204

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

55

de utopia reside efetivamente no drama, na medida em que aponta para “outra vida”,

para algo além da faticidade comunitária; uma dimensão utópica – ela mesma

ideológica – que também está na base do tipo intensivo de Adorno. Veremos agora

como esses operadores, extensivo-épico e intensivo-dramático, que fornecem as

coordenadas para a doutrina dos gêneros em Lukács, participam decisivamente do

conceito estético de tempo encaminhado por Adorno nos fragmentos sobre Beethoven.

Examinemos primeiramente o tipo intensivo-dramático, a figura dialética que institui o

conceito especulativo.

1.1 Tipo intensivo ou dramático

Conforme o fragmento §219, o tipo intensivo origina-se de uma modalidade

particular de apropriação da sonata clássica no Beethoven do período médio e alicerça a

noção de tempo sinfônico ou dramático – os termos “intensivo”, “sinfônico”,

“dramático” são comumente usados como sinônimos por Adorno. Em Über die

musikalische Verwendung des Radios (1963), publicado mais de duas décadas depois da

escrita do fragmento §219, Adorno define novamente o tipo sinfônico não como a

simples ideia de uma “sonata para orquestra”, mas como o resultado de uma “urgência

compacta, concisa, palpável: a técnica do trabalho motívico-temático”53. Trata-se, para

ele, de uma forma de resolução do ideal utópico da música em sua “luta contra o mito”,

contra o tempo “vazio”, uma forma cuja suspensão da faticidade constitui a base, como

veremos, do paradigma da Entwicklung musical, ou ainda, simplesmente, a base do

tempo musical na filosofia adorniana.

As obras do tipo intensivo fundamentam-se pelo denso trabalho orientado à

construção do conflito temático, à sucessividade e à irreversibilidade processual dos

eventos sonoros. A origem dessa modalidade específica de submissão musical do tempo

ocorreria na transição da “música pré-clássica à sinfonia”, de acordo com a periodização

53 GS 15, 376: „Deren Form war, wie Paul Bekker zuerst hervorhob, nicht jene Sonate für Orchester, die als abstraktes Schema so bequem sich herausklauben läßt. Spezifisch war ihr Intensität und Konzentration. Sie wurde erreicht durch dichte, konzise, faßliche Eindringlichkeit: die Technik motivisch-thematischer Arbeit.“

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

56

esboçada no ensaio Zweite Nachtmusik (1937), que Adorno cita no fragmento §219 (“é

o verdadeiro tipo sinfônico, que tentei definir em meu Zweite Nachtmusik”). Este

período teria sido marcado pela conquista de um dinamismo sem precedentes do

pensamento motívico-temático, cuja virtude foi a de liberar a lógica musical da

dependência da estaticidade e da “repetição” imposta pela sua função social de

divertimento. Em Zweite Nachtmusik, Adorno já utiliza o conceito de “repetição”

(Wiederholung) em sentido estrito de oposição a dinamismo e no sentido de rejeição à

“construção do tempo musical”: “repetição” significaria primordialmente a mera

conformação não dialética dos eventos musicais ao tempo empírico, conformação

mítica com a passagem do tempo54. Adorno afirma que somente a partir do classicismo

vienense se consolidaria a tentativa de demover a antiga lógica da repetição mítica na

música por meio da valorização do elemento particular, representado basicamente pela

figura motívica. Essa valorização do particular seria capaz de, com Beethoven, tensionar

de modo imanente a totalidade formal da obra, até então imposta “de cima para baixo”,

ou seja, o esquema determinando exclusivamente a posição do particular. Esse modo

inovador de uma forma que buscaria o equilíbrio entre totalidade e elemento particular,

modo que fundamenta o tipo intensivo, seria descrito anos depois precisamente pela

categoria de “intensidade” (Intensität) em Teoria Estética. A intensidade seria aqui

universalizada como ideal utópico das obras de arte na tensão entre expressão e

construção:

“O entrelaçamento do particular e do múltiplo nas obras de arte pode ser apreendido na questão pela sua intensidade. A intensidade é a mimesis realizada pela unidade, cedida pela multiplicidade à totalidade, embora esta não esteja imediamente presente a ponto de ser possível percebê-la como grandeza intensiva; a força nela acumulada é por assim dizer restituída por ela ao detalhe (…) a grande unidade entre composição e construção parece (scheinen) querer existir apenas em tal intensidade”

(TE, p. 284, com modificações; GS 7, 279)

54 O conceito de “repetição” possui conteúdo semântico bastante amplo na reflexão musical de Adorno, articulando-se diretamente com DE, e será explorado ao longo da tese. Cf. Nikolaus Bacht: “The opposition of Wagner and Beethoven shows that the concepts of repetition and variation are of enormous referential and semantic profundity in Adorno” (BACHT, Music and Time in Theodor W. Adorno, Tese de Doutorado, Department of Music, King’s College, University of London, London, 2002, p. 187)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

57

A “forma do sinfônico”, a forma por excelência dessa “grandeza intensiva”

descrita acima, inaugura na história da música o estabelecimento da totalidade dinâmica

dos detalhes, no qual o trabalho temático seria divergente, por exemplo, daquele

tratamento polifônico de “igualdade” e simetria das vozes, que prevalecia no esquema

da fuga. A relação entre o particular e o universal – totalidade da forma – se converte

em relação dialética entre momento expressivo, composto pela sublimação gestual e

mimética, e momento construtivo, que estabelece a síntese lógica do fluxo musical. No

ensaio Zweite Nachtmusik (1937), que Adorno menciona no fragmento, a especificidade

da “forma do sinfônico” (der ‘Symphonik’) como sinônimo de tipo intensivo foi, de

fato, pela primeira vez delimitada.

Na parte final do ensaio, Adorno propõe uma incipiente periodização da história

da música ocidental. Para ele, a música polifônica pré-clássica de 1600 a 1750, por

ainda estar ligada à função social de Divertimento ou à eventual função disciplinar, não

chegava a “confrontar” (bewältigen) dialeticamente a passagem empírica do tempo,

restringindo-se apenas a “preenchê-lo” (erfüllen). Isso tornava impraticável, de início, a

composição de obras de larga extensão temporal. Adorno descreve como “medo” ou

“angústia” (Angst) a relação da música medieval e renascentista diante da sucessão

empírica do devir (Zweite Nachtmusik, GS 18, 51). A expressão histórico-musical da

subjetividade, ainda enfraquecida no período anterior à emancipação política da

burguesia, apenas preenchia o tempo empírico com convenções harmônicas e padrões

melódicos repetitivos; essa exteriorização da subjetividade composicional, subjetividade

que Adorno vincula ao trabalho motívico-temático, leva-o a caracterizar todo o período

pré-clássico da arte sacra como período de “tédio estético” (ästhetischen Langeweile) –

“exceções feitas a Monteverdi, Scarlatti, Bach e Pergolesi”55. Trata-se de um período

que prepararia a liberdade anunciada pela Aufklärung musical.

À primeira vista, essa “pré-história” revela-se frustrante por não conceder, no processo

de “espiritualização” musical, relevância alguma à desintegração do sistema modal, às

55 GS 18, 51: „Wer Musik des Zeitraums von 1600 bis 1750 betrachtet, jener Periode, welche der teleologische Stumpfsinn die vorklassische nennt, der wird - hat er es nicht mit den mächtigen Ausnahmen, mit Monteverdi, Scarlatti, Bach und Pergolesi zu tun - der Konstatierung des Langweiligen kaum sich entziehen können und sie wird vor sehr erlauchten Namen nicht haltmachen, von mittleren wie Corelli ganz zu schweigen. Der Grund der ästhetischen Langeweile ist die wirkliche.“

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

58

disposições conflitantes entre polifonia e monodia no século 17, à estabilização do

sistema temperado. Contudo, o período anterior ao classicismo vienense não deveria ser

compreendido aqui em chave historicista, positiva, mas no plano da filosofia da história

que impulsiona a Aufklärung musical. Sob tal perspectiva, cabe destacarmos o papel de

Bach no contexto da argumentação adorniana. Adorno reconhece em sua técnica

polifônica o domínio rigoroso de recursos motívicos que prenunciariam, ainda no

interior do esquema composicional da fuga, a valorização temática posterior do

classicismo. Em Defesa de Bach contra seus defensores (1951), Adorno colocava-se

contra a interpretação romântica que reduzia o fator subjetivo da obra bachiana e a

tomava por “estática”, construída segundo a heteronomia das regras do contraponto e da

harmonia. Adorno ressaltava, pelo contrário, o uso livre, autônomo e fortemente

expressivo da polifonia em Bach quando comparada à polifonia precedente. A

subjetividade composicional estabeleceria em Bach uma relação qualitativamente nova

com a estrita independência de vozes, mediante a introdução das práticas do basso

continuo, que destacavam a dimensão harmônica. Longe de ser objetiva, essa força

específica de confrontação de duas grandes tradições (polifonia e homofonia) em Bach

teria dado início, conforme Adorno declarava em FNM, ao processo histórico de

“confrontação dialética” da música com a passagem do tempo, confrontação esta que

seria a “essência da grande música”56. Tal confrontação materializou-se em um trabalho

de decomposição bastante minucioso: para que a polifonia contrapontística continuasse

funcionando dentro do esquema harmônico de acompanhamento do basso continuo,

Bach dissecou os temas em componentes menores e os submeteu a variações motívicas.

Dito de outro modo, o trabalho de Bach ensejava a reflexão autônoma sobre o material

musical, por meio da “variação em desenvolvimento” (entwickelnde Variation), técnica

que orientaria a própria história da racionalização musical57. Assim, ainda que sua

escrita estivesse aquém da “antifonia motívica” consolidada pelo classicismo, Bach

seria um momento fundamental da Aufklärung. Encontramos aqui a mesma descrição de 56 Cf. nota acima 28 sobre a conhecida passagem de Filosofia da nova música – „die dialektische Auseinandersetzung mit dem musikalischen Zeitverlauf (…), die das Wesen aller großen Musik seit Bach ausmacht“ 57 Cf. JAY, As idéias de Adorno, p. 127. Para Adorno, seguindo Schoenberg, Bach efetivamente inaugurou a técnica da “variação em desenvolvimento” (entwickelnde Variation), convertida então no princípio composicional da forma sinfônica: „Schönberg spricht in seinem letzten Buch mit Recht von Bachs Technik der entwickelnden Variation, die dann im Wiener Klassizismus zum Kompositionsprinzip schlechthin geworden sei.“ (Defesa de Bach contra seus defensores, GS 10.1, 143)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

59

Schoenberg, segundo a qual o estilo baseado na composição homofônica-melódica do

classicismo, o “estilo da variação em desenvolvimento”, efetivamente surgiu ainda

enquanto Bach vivia58. Como vimos, a história da música até então consistia, para

Adorno, em “período de formação” em direção à liberdade subjetiva da composição.

Com efeito, a época anterior ao classicismo, “tédio estético” na periodização adorniana,

consistia na “preparação para a liberdade”, pois a música se circunscrevia ao universo

mítico do culto e da dança. Segundo Leopoldo Waizbort,

“Adorno destaca a origem da música no culto e na dança e afirma que desde então a história da música poderia ser vista como uma Ausbildung zur Freiheit, como um desenvolvimento rumo à liberdade. Isso poderia ser interpretado como a saída de um mundo mítico rumo a um mundo esclarecido, racionalizado e desencantado – e uma interpretação como essa deve ser necessariamente considerada no interior dos desenvolvimentos da Dialektik der Aufklärung”59

Em última análise, somente a partir do “estilo da antifonia motívica”, a partir da

transição da música pré-clássica de Bach à sinfonia de Haydn, ambicionou-se a plena

dominação subjetiva do tempo. Após a formação do sistema temperado, o tempo

musical, no classicismo vienense, não mais simplesmente “passa, porém subjuga” (nicht

vertreibt, sondern unterwirft) (Zweite Nachtmusik, GS 18, 51). O afastamento do

esquema polifônico da fuga e o desenvolvimento do esquema da sonata, tornada

independente da função de Divertimento, seriam fenômenos correlatos do processo de

racionalização musical. Isso porque a tendência à homofonia melódica seria resultado

de uma exigência estritamente racional para a expansão do pensamento temático. Nesse

sentido, a forma sonata decorreria de uma necessidade eminentemente subjetiva de

manter o controle e a posição identitária dos temas durante largas extensões

cronométricas.

58 SCHOENBERG, Style and idea (ediçao de 1950), p. 39: “As everybody knows, while Bach still was living a new musical style came into being out of which there later grew the style of the Viennese Classicists, the style of homophonic-melodic composition, or, as I call it, the style of Developing Variation” 59 WAIZBORT, Aufklärung musical - Consideração sobre a sociologia da arte de Th. W. Adorno na “Philosophie der neuen Musik”, p. 192

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

60

A “antifonia motívica” e o conceito de Entwicklung

Em sua descrição da “antifonia motívica” que aparece no classicismo60, Adorno

define então o motivo como um Zeitdifferential, a unidade básica diferencial para a

criação de relações temporais (Zweite Nachtmusik, GS 18, 51). É a partir da qualidade

do trabalho motívico-temático que se estabelece ou a contração dialética, no caso do

tipo intensivo, ou o mero “preenchimento”, no tipo extensivo, da dimensão intra-

estética do tempo. Podemos dizer que a ênfase na qualidade do tratamento motívico,

como aquilo capaz de estruturar o tempo musical a partir de uma unidade básica

diferencial, procede claramente de Schoenberg. Segundo Dahlhaus, a ideia de “diastema

motívico” – a relação intervalar básica no campo das alturas, a “antifonia motívica” –

constituía para as análises de Schoenberg a verdadeira substância da arte musical61.

Embora os demais elementos também contribuíssem para formar o conteúdo, eles

seriam considerados subsidiários, mera superfície e modo de apresentação da “ideia

inspiradora” (Einfall), e não constitutivos da própria ideia. Ou seja, enquanto a

formação de regularidades métricas e de coerência harmônica apenas reforçaria uma

lógica musical pré-definida motivicamente, a essência da música para Schoenberg

estaria nos complexos intervalares62. Dahlhaus considera que tal concepção diastêmica

do motivo, fundamentada no campo das alturas, revela-se problemática ao relegar tanto

a constituição rítmica quanto a própria articulação, que todavia seriam indispensáveis

para a essência perceptiva do motivo – deixaremos para análise posterior a discussão a

respeito da essência perceptiva do motivo. De todo modo, convém desde já assinalar o

fato de que Adorno, seguindo estritamente a concepção de Schoenberg, também parece

atribuir à relação diastêmica intervalar do pensamento motívico o núcleo do tipo

sinfônico e, consequentemente, a matriz do conceito de Entwicklung. 60 Basicamente, a antifonia consiste na interação entre dois coros no estilo pergunta e resposta, comum nos serviços litúrgicos medievais (ex.: o “antifonário” eclesiástico). Adorno compreende, porém, “antifonia motívica” em sentido etimológico, apenas como arte da composição de “vozes contrastantes”, ou simplesmente desenvolvimento motívico; em outro contexto, Adorno também utiliza a expressão “antifonia” para descrever a relação entre notas (alturas), a exemplo da oposição entre “nota individual” e “relação entre notas” em Sobre algumas relações entre música e pintura (GS 16) 61 DAHLHAUS, Emancipation of the dissonance. In: Schoenberg and the New Music: Essays by Carl Dahlhaus, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 130–1 62 Ibid., p. 131 :“Em uma análise da primeira de suas Canções para orquestra, op. 22, Schoenberg define o semitom e a terça menor como sendo 'sempre a mesma substância', independentemente do ritmo e da articulação”

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

61

No fragmento §163 do livro sobre Beethoven, encontramos uma definição do

conceito de Entwicklung, considerado por Adorno“uma das questões mais centrais da

estética musical” – é digno de nota que este fragmento tenha sido redigido em 1956, no

mesmo ano em que Boulez e Stockhausen publicavam suas primeiras teorizações sobre

a natureza do tempo musical. Notemos que a característica central do conceito de

“desenvolvimento”, Entwicklung, seria a “irreversibilidade do tempo”:

“É necessário esclarecer o conceito de desenvolvimento musical (Entwicklung) no texto. Não é idêntico àquele da variação, mas bem próximo. Um momento central é a irreversibilidade do tempo. Desenvolvimento é uma variação na qual um elemento ulterior pressupõe algo anterior como anterior, e não o contrário. De modo geral, a lógica musical não é simplesmente identidade na não-identidade, mas uma sequência significativas de momentos; isto é, o que vem antes e o que vem depois devem constituir sentido a partir de si ou ser o resultado dele. Evidentemente, as possibilidades para isso são muitas, por exemplo: algo intenso que ascende a partir de algo fraco, algo complexo a partir do simples; essa direção (simples para complexo), porém, de modo algum define o conceito. Pode também resultar no elemento simples: o tema; pode simplificar o complexo, dissolver o fechado, e assim por diante. Esses tipos poderiam ser enumerados; mas apenas a composição concreta decide qual será a lógica do que vem antes e o que vem depois. Ou existiriam leis gerais? Uma das questões centrais da estética musical”

(Beethoven, §163)

O trecho parece elíptico demais para o propósito de “esclarecer o conceito”. No

entanto, ainda que reticente, a descrição confirma claramente o compromisso teórico de

Adorno com um ideal de irreversibilidade, continuidade e construção progressiva de

sentido na arte musical denominado Entwicklung. Tal compromisso não teria sido

abandonado em 1956, atuando na crítica à permutabilidade dos eventos sonoros e à

ausência da construção progressiva de sentido nas obras de vanguarda, crítica sobre a

qual se apoiam, como veremos na parte II da tese, os ensaios O envelhecimento da NM e

Vers une musique informelle. É interessante observar que o conceito de Entwicklung –

“próximo”, mas não idêntico ao de “variação” – conduz o ideal de irreversibilidade para

além do campo harmônico-melódico, ou seja, para além da simples “antifonia motívica”

no campo das alturas. Embora tenha sua origem no conceito de variação (em alusão à

“variação em desenvolvimento”), Entwicklung aqui não se limita à dimensão harmônica

ou melódica. Em Critérios da NM, de 1957, Adorno chega a elaborar um inventário de

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

62

“categorias de desenvolvimento”63 – e isso parece-nos decisivo se quisermos afastar a

hipótese do suposto “ponto cego” adorniano quanto ao desenvolvimento de novos

modelos rítmicos e novas texturas timbrísticas na vanguarda, anátema da suposta

afinidade incondicional adorniana com o pensamento temático tradicional64. Tal

hipótese deve ser descartada, mesmo quando Adorno se propõe a preservar o conceito

de Entwicklung para avaliar a música atemática. A avaliação resultaria em aporia caso o

conceito permanecesse vinculado apenas ao campo das alturas. A ligação entre o

“agora” e o “depois”, a reação de um evento sonoro à ação de um anterior, ocorreria de

direito mesmo na música atemática:

“Mesmo na música atemática, as relações entre o agora e o depois não devem ser arbitrárias, devem estar legitimadas no curso do tempo, não simplesmente em virtude da identidade matemática estática de suas partes constituintes”

(Critérios da NM, GS 16, 223)

Por outro lado, devemos frisar que é o trabalho motívico-temático, conduzido ao

extremo durante o período médio de Beethoven, que engendra o conceito adorniano de

Entwicklung. Ainda que possa ser aplicado a outras dimensões da organização sonora,

sua origem localiza-se de fato no “diastema motívico”, na relação intervalar simples: o

conceito não se limita à construção motívico-temática, mas se origina dela. A relevância

da formação identitária do motivo, como unidade essencial para a construção de

relações temporais, torna-se explícita nos fragmentos sobre Beethoven quando se

oferece uma descrição da forma da fantasia. Por exemplo, na fantasia mozartiana, a

irrupção contínua de um material que se limita à apresentação de novos temas, sem

passar por transformações ou variações, acaba transformando a obra paradoxalmente em

estática: o tempo musical não existe. Justamente por abdicar da posição de um núcleo

idêntico e reconhecível para posteriores variações, o não-idêntico, a fantasia

mozartiana, para Adorno, simplesmente não se desenvolve:

63 A elaboração dessa tipologia está em Kriterien der neuen Musik, GS 16, 223: “Immerhin wäre eine Typologie von Entwicklungskategorien heute bereits absehbar (…)“ (grifo meu) 64 Ver abaixo discussão com Klein e Dahlhaus no fim da seção 2.4 O ensaio “Stravinsky, um retrato dialético”

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

63

“Essa forma da fantasia (de Mozart) é essencialmente estática. Como o novo sucede ininterruptamente (Neues aufeinander folgt), nenhum progresso é realmente feito. Não há núcleo idêntico a ser desenvolvido. Sem tal identidade, porém, não há não-identidade e, portanto, não há tempo musical. (…) Do mesmo modo, a música consistentemente a-temática seria, em princípio, a-temporal, e a qualidade estática da música dodecafônica apenas torna manifesto o que é inerente no nominalismo musical absoluto: que a novidade incessante revoga a progressão, a experiência, o novo”.

(Beethoven, §165)

Observaremos na Parte II como a base argumentativa para a crítica ao

nominalismo musical na vanguarda dos anos 50 (em sua recusa a todo esquema formal

prévio) possui o mesmo teor da descrição acima65. Dois aspectos do fragmento acima

interessam, contudo, nossa discussão desde já: em primeiro lugar, a rejeição à posição

do elemento idêntico, núcleo motívico reconhecível a partir do qual se desenvolve o

trabalho subjetivo do não-idêntico, implica abdicar da construção do tempo musical; em

segundo lugar, construção do tempo musical e consistência da obra não necessariamente

andam juntos – uma obra pode ser totalmente consistente, mesmo quando não segue o

ideal da Entwicklung, mesmo quando não “constrói” o tempo. A mera exposição

ininterrupta de materiais temáticos, como a forma da fantasia realiza, proscreve a

posição de um idêntico. Para Adorno, a contradição do tipo sinfônico reside no fato de

que a exteriorização progressiva e instável da não-identidade depende da posição

estável de um elemento idêntico a ser transformado. É assim que, como sustenta em

Zweite Nachtmusik, a repetição na antifonia motívica torna-se essencial:

“o deslocamento (Versetzung) da interação motívica antifônica consegue fazer com que a repetição de motivos não recaia no tédio (Langeweile) (…) Na antifonia, o motivo aparece como algo sempre novo e obedece, em suas transformações, à exigência da passagem do tempo historicamente determinado, passagem que sua identidade virtualmente suspende (aufhebt).”

(Zweite Nachtmusik, GS 18, 52)

65 Cf. por exemplo, o último ensaio publicado por Adorno sobre a nova música, A forma da NM (1966): “Sem semelhança ou diferença, mal se pode imaginar a forma musical. Mesmo o postulado de não-repetição, ou diferença absoluta, exige um elemento de igualdade sem o que o diferente não pode ser visto como diferente.”(“Ohne Ähnlichkeit oder Ungleichheit ist musikalische Form schwer vorstellbar. Noch das Postulat des Wiederholungslosen, der absoluten Ungleichheit fordert ein Moment von Gleichheit, an dem gemessen das Ungleiche allein zum Ungleichen wird“ (GS 16, 613)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

64

Lembremos que, segundo a periodização adorniana, a lógica musical inicia um

processo de confrontação com o tempo abstrato e de afastamento do tédio somente a

partir da sinfonia no classicismo, ainda que antecipada pela expressividade de Bach. O

problema do “tempo musical” (musikalische Zeit) nasce, portanto, no período de

confrontação dialética com o “tempo empírico” (empirische Zeit): até então o tempo não

constituía de fato um “problema” a ser resolvido. No classicismo, cristaliza-se a

Aufklärung musical, o modelo dinâmico da Entwicklung, no qual “o próprio Ser vira

processo e seu resultado”66. Dito de outro modo, o problema do tempo musical nasce

quando o conceito de uma totalidade dinâmica e processual reverbera a alteração das

estruturas políticas europeias e a correlata expansão ideológica da racionalidade

instrumental no plano social.

Como observa Martin Jay, Beethoven representaria o triunfo da cultura da alta

burguesia antes do colapso da unidade mediada entre sujeito e objeto, entre

individualidade e coletividade67. Essa conquista da plena autonomia, da conciliação

entre forma e conteúdo na Aufklärung, corresponderia à interiorização da antiga

disposição heterônoma da música, até então ligada à função disciplinar, eclesiástica ou

de entretenimento. Ou seja, a autonomia que permitiu a confrontação com o tempo

empírico nada mais seria do que a introjeção dialética da antiga dimensão de

divertimento, da antiga função mediante a auto-posição da lei formal (Beethoven, §107).

No classicismo de Haydn e Mozart, haveria um equilíbrio formal entre “ser” e “devir”68:

equilíbrio entre Sein, a apresentação clara dos temas e da “ideia” (Einfall), da identidade

temática e, por outro lado, Werden, o trabalho de desenvolvimento, devir do tema, o

não-idêntico. A teleologia da forma no primeiro classicismo, refratária à concepção

circular e “tediosa” de tempo, acentuava o caráter processual de transformações a partir

de unidades motívicas estáveis. No entanto, o trabalho autônomo iniciado no

classicismo alcançaria seu apogeu em Beethoven, a ponto de apenas em poucas

composições do período médio-tardio o ideal utópico do tipo intensivo ser efetivamente

66 Cf. Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, a mesma ideia de Zweite Nachtmusik: „Die eigentlich dynamische Entwicklungszeit der Musik, deren Idee der Wiener Klassizismus auskristallisiert hat, jene Zeit, in der das Sein selber zum Prozeß und zugleich zu dessen Resultat gemacht ward (…)“ (GS 18, 159) 67 Cf. JAY, As idéias de Adorno, p. 96 68 PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 235

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

65

concretizado. Em Beethoven, a reflexão musical atingiria a dissolução da própria

arquitetura da sonata, de modo que “introdução, exposição temática, desenvolvimento

temático e transição, início da seção de desenvolvimento, entrada da reexposição, não

são mais claramente reconhecíveis”69. Se, em Haydn e Mozart, a “ideia” (Einfall) ainda

estaria no Sein dos temas, com Beethoven, assistimos à sua torção dialética: a reflexão

prioriza o Werden temático, o devir passa a constituir o próprio Einfall da composição.

Com Beethoven, o devir temático leva à reconstrução subjetiva da forma de “baixo para

cima”, da particularidade como mediação da totalidade.

Elemento estranho: o 4º tema da “Eroica”

Não seria o caso de enumerarmos os elementos técnicos que Adorno identifica

em Beethoven para sua caracterização do tipo intensivo. Mas, a fim de ilustrar o que se

apresentaria como reconstrução formal e de que modo ela deriva de um trabalho

motívico-temático sem precedentes, vale a pena retomar um dos episódios mais

discutidos da literatura musicológica: a entrada do 4º tema no 1º movimento (Allegro

com Brio) da 3ª Sinfonia em mi bemol maior – Eroica. Vimos acima que esse 1º

movimento fornece, para Adorno, o próprio paradigma do tipo intensivo70. Trata-se da

primeira sinfonia de larga extensão temporal na qual a seção central de desenvolvimento

(seção B do esquema A-B-A’), enquanto Werden, adquire a primazia da narrativa

musical. Diga-se de passagem que, no fragmento §159, Adorno qualificava esse 1o

movimento como a peça que melhor materializou o impulso criador de Beethoven, um

ideia cuja perfeição não teria sido mais atingida.

69 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 67 70 Em Was ist Musik? (1934), Adorno reforçava a primazia do objeto ao comentar que uma análise técnica rigorosa do 1o movimento da Eroica tende a ser mais reveladora para a compreensão do lugar da música na história do que uma visão panorâmica de gêneros e estilos do período: “ich glaube, daß man zum eigentlichen Verständnis der Musik in der Geschichte mehr gewinnt, wenn man ein einziges Stück wie den ersten Satz der Eroica wirklich in technischer Strenge interpretiert und die Befunde als gesellschaftliche transparent macht, als wenn man eine Übersicht der ganzen Musikgeschichte anstellt, sie nach Stilen aufteilt und dann Beziehungen zwischen den Stilen und bestimmten gesellschaftlichen Epochen herstellt” (Was ist Musik?, GS 19, 616)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

66

Sumariamente, a forma desse movimento obedece ao esquema da sonata

clássica: exposição (apresentação do material temático); desenvolvimento (elaboração

do material); reexposição (reapresentação) e coda. Com os dois acordes iniciais em

staccato em Mi bemol maior – que, podemos dizer, já sinalizam a ruptura com o curso

do tempo empírico – segue-se a introdução do tema principal na tônica em Mi bemol e

de dois grupos temáticos subsidiários, transicionais (compasso 45 e compasso 63). Em

seguida, uma codetta prepara o início da seção de desenvolvimento (seção B), que

emerge timidamente no compasso 152. No desenvolvimento, logo após a incipiente

variação do tema principal, já prevista em alguma medida pelo esquema, um estranho

fugato em fá menor leva a uma passagem sincopada extremamente crítica e dissonante

que se resolve com a entrada, totalmente inesperada no esquema, de um 4º tema na

tonalidade distante de mi menor (ver Figura 1, comp. 284). Criando um efeito

espantoso, este 4º tema é modulado, oito compassos depois, para lá menor e passa a

interagir com o tema principal, transposto para Dó maior (relativa maior de lá menor, no

qual está o 4º tema).

A introdução do novo tema no meio da seção de desenvolvimento colide com a

expectativa prevista pelo esquema. Seu impacto acaba desestabilizando a sonata clássica

“por dentro”: a seção de reexposição (seção A’) fica comprometida, pois não se sabe se

o estranho 4º tema será reexposto nessa seção, o que de fato não ocorre. Na coda do

movimento, porém, cuja extensão inabitual ressalta a experiência de estranhamento e

imprevisibilidade já confirmada pela seção de desenvolvimento, o 4º tema reaparece,

também de maneira surpreendente; com isso, Beethoven expande a ideia de elaboração

temática dentro de uma seção que seria apenas a “moldura” final do movimento, pois, a

rigor, a coda é secundária para o fluxo da discursividade musical. Por meio desse

expediente técnico inédito, Beethoven projeta a ideia de desenvolvimento para além dos

limites impostos pela forma, uma crítica de alto teor subjetivo à objetividade da forma.

A entrada do 4º tema indicaria, assim, a premência de expansão do trabalho temático

que o esquema clássico já não conseguia mais suportar. Ela mostra que a liberdade

subjetiva composicional em Beethoven exige uma reconstrução da forma de “baixo para

cima”, do tema para a sonata.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

67

Figura 1 – entrada do 4º tema na seção de desenvolvimento (comp. 284 em diante),

1º mov. da 3ª Sinfonia Mi bemol Maior (Eroica), Beethoven

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

68

Contudo, a mera inserção de um novo tema na seção de desenvolvimento não

seria suficiente para dissolver o esquema71. O que é efetivamente novo no episódio do

4º tema é a preparação dramática de sua primeira entrada (golpes orquestrais

dissonantes e sincopados em sf, depois f), em uma tonalidade (mi menor) extremamente

distante da tônica (Mi bemol), e as cinco ocorrências desse tema no movimento: na

seção de desenvolvimento, em três tonalidades diferentes, mi menor (comp. 284, na

figura acima), lá menor (comp. 292), mi bemol menor (comp. 322); na coda, fá menor

(comp. 581) e novamente mi bemol menor (comp. 589). A tensão que o tema provoca

no interior da forma ocorre não apenas no plano temático, mas também rítmico,

harmônico e sintático. Em primeiro lugar, a entrada do 4º tema, convém insistir, ocorre

após o “tumulto” orquestral e em uma tonalidade (mi menor) bastante afastada da

principal (Mi bemol maior), amplificando a tensão rítmica bem como harmônica.

Poderíamos dizer que a forma musical ainda “se esforçaria em integrar” o elemento

novo e estranho, mediante a interação do 4º tema, em sua segunda ocorrência em lá

menor (comp. 292), com o tema principal, que aparece agora na relativa maior de lá

menor (Dó maior), evitando assim o “confronto”. Todavia, pela sua reapariação em

diferentes tonalidades, esse elemento compromete objetivamente a sintaxe da forma,

deixando de ser apenas um evento contrastante que a desequilibra provisoriamente.

Adorno interpreta a centralidade deste 4º tema não tanto pela tensão que provoca

no esquema específico da Eroica, mas a interpreta dialeticamente como exigência pura

da essência desenvolvimentista da sonata, da sua necessidade interna de emergência do

novo, do Werden:

“O ‘novo’ tema do desenvolvimento talvez deva ser entendido como requerido precisamente pelas exigências puras e intrínsecas da forma elevada ao mais alto grau; estas solicitam o elemento diferente, a nova qualidade, como seu resultado. A forma imanente como aquela que produz a transcendência da forma (…) O novo tema é o tema lírico (Gesangsthema) que foi omitido. Como posição (Setzung) foi suprimido – como resultado, é requerido – e é então recuperado, de acordo com o esquema que antes havia sido suspenso. Assim o

71 CHURGIN, Beethoven and the New Development-Theme in Sonata-Form Movements. In: The Journal of Musicology, v. 16, n. 3, 1998, p. 323 O autor defende que a introdução de novo material na seção de desenvolvimento era prática comum já no primeiro classicismo, para indicar pequenos contrastes e favorecer a articulação estrutural. Porém, integrava-se organicamente ao esquema, estava em tonalidade próxima à principal; sua presença era rapsódica e não inesperada e insistente como, pela primeira vez, ocorreu na Eroica.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

69

tema, ele também, é absorvido pela forma imanente; ou seja, dentro da coda do movimento, ele tem agora sua própria reexposição (seine eigene Reprise) (…)”

(Beethoven, §232, grifos do original)

Chama a atenção na interpretação de Adorno o fato de que a dissolução da forma

operada pela introdução do 4º tema na seção de desenvolvimento é ela mesma

legitimada pelo ideal de desenvolvimento inscrito na forma clássica da sonata “em seu

mais alto grau”, ou seja, em sua ideia de expansão do trabalho motívico-temático. Isso

seria confirmado com a “reexposição” do 4º tema justamente na seção seguinte, na

coda: essa “reexposição própria” (seine eigene Reprise) na coda eliminaria qualquer

dúvida sobre a mera casualidade do novo tema. Beethoven promove, desse modo, o

deslocamento de toda a estrutura mediante as novas posições do 4º tema: em vez de ser

apresentado na primeira seção, na exposição, ele aparece deslocado na seção seguinte,

no desenvolvimento; em vez de ser reapresentado na terceira seção, na reexposição, o

tema reaparece deslocado na seção seguinte, na coda alargada. Haveria aqui a absorção

imanente da forma pela forma (imanência esta que produziria a “transcendência” da

forma). Na mobilidade interna mesma de seu plano arquitetônico, em seu “ir para

frente”, a forma em Beethoven conforma-se com o ideal de irreversibilidade do qual se

originou a sonata clássica. Esse deslocamento promovido por Beethoven, que atendia às

exigências da própria sonata “em seu mais alto grau”, só pôde se efetivar, todavia,

mediante um ato resoluto de ruptura com o esquema clássico.

Em outro contexto, na monografia sobre Mahler, Adorno apontava para a

resistência da crítica especializada de assimilar o novo tema de Beethoven na Eroica

como efetivamente novo, na medida em que “ofende o princípio econômico de reduzir

todos os eventos a um mínimo de postulados” que caracterizaria o esquema clássico, ou

seja, na medida em que “destroi a ficção de que a música é puro tecido de deduções”.

Por isso, continua Adorno, “muitos analistas repetidamente tentaram derivar esse novo

tema do material da exposição” (Mahler, GS 13, 220), reforçando a dificuldade de

compreendê-lo como a emergência do imprevisto no ideal de irreversibilidade do

esquema. Para Adorno, contudo, a introdução do 4o tema efetivamente perturba a

simetria formal.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

70

Dissolução do esquema. Hegel

Com o tipo intensivo – no qual o 1o movimento da Eroica, “realmente a peça

beethoveniana, seria a mais pura encarnação do princípio” (§159) – questiona-se o

esquema tripartite da sonata. Posição dos temas (exposição), antagonismo entre os

temas (desenvolvimento) e resolução de conflito (reexposição) são reconfigurados em

uma totalidade dinâmica, não mais abstrata como no classicismo. Na nova relação entre

totalidade e multiplicidade dos detalhes, a mediação sobre o tema ou a figura motívica

se sobrepõe à abstração formal, ou melhor, impõe-se ela mesma como forma. A

categoria de totalidade dinâmica encaminharia, assim, o modelo utópico adorniano de

dialética das partes em relação ao todo, por meio da “síntese não violenta”, capaz de

liberar a força do particular. Assim, se Adorno teve de fato uma visão da obra de arte

reconciliada como prefiguração de um todo social racional e não-dominador, “o objeto

dessa visão positiva foi a música do período médio de Beethoven”72.

Vimos que, nessa totalidade dinâmica, as relações internas não se estabelecem

mais entre seus momentos individuais, reguladas externamente pela forma (como no

esquema clássico), mas, assim como na filosofia hegeliana, a totalidade resulta ela

mesma da mediação concreta, processual e imanente ao momento individual73. Nesse

sentido, percebemos a estreita proximidade entre o tipo fundamentado no ideal de

Entwicklung e o conceito especulativo de tempo em Hegel. A totalidade dinâmica aqui

corresponderia ao próprio conceito hegeliano de tempo (e não à sua representação), na

medida em que Hegel, como observa Paulo Arantes, faz do tempo “não o lugar em que

se desenrola a mudança, mas a própria mudança pura”74. Em outras palavras, a síntese

sucessiva, outro nome para a totalidade dinâmica, é o momento constitutivo da pura

negatividade, a forma do negativo em si mesmo, sua inquietude75. Vale ressaltar que –

ao contrário do que sugere a crítica de Heidegger, para quem “o conceito hegeliano foi

diretamente haurido na Física de Aristóteles”76 – Hegel dispensa toda referência a um

72 JAY, As idéias de Adorno, p. 129 73 Ideia exposta em diversos fragmentos. Cf. ADORNO, Beethoven - Philosophie der Musik, frag. 29; 44; 57 74 ARANTES, Hegel: a ordem do tempo, São Paulo: Hucitec/Polis, 2000, p. 109 75 Ibid., p. 131 76 Ibid., p. 140 (nota de rodapé)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

71

móvel qualquer. Para Paulo Arantes, o tempo hegeliano não é a afecção do movimento,

tampouco o receptáculo vazio a ser preenchido pela justaposição de eventos pontuais de

indiferença recíproca. O Agora hegeliano não é substancial, mas é a consciência de sua

própria negatividade, interiorização do devir. Ao se exteriorizar como trabalho do

espírito, a forma da temporalidade do conceito especulativo se distingue da forma da

duração (Dauer) inscrita na natureza77; a primeira forma supera (aufhebt) a segunda, do

mesmo modo que, no caso de Adorno, o tempo estético supera o tempo empírico.

Notemos que, para Hegel, a duração natural não “progride”, consiste na cíclica

“repetição do mesmo”78. Já a negatividade produtiva do tempo liga-se à negatividade

viva do conceito, é o “ser-aí imediato do Conceito”79. Sendo a “trama de sua prosa”, a

história emerge não da duração, mas do conceito; ou seja, o tempo hegeliano é sempre

histórico, processo de des-naturação. Na medida em que se manifesta no trabalho do

conceito, na atividade do espírito, a Entwicklung constituiria a força da “autoprodução”

(trabalho de “des-envolver”) do tempo. Lembremos que a Entwicklung musical para

Adorno se caracteriza pelo fato de que “o que vem antes e o que vem depois devem

constituir sentido a partir de si ou ser o resultado dele”. Também para o conceito

hegeliano de Entwicklung, a autoprodução de sentido implica tanto afastamento quanto

adequação, conservando a relação antes-depois. Conforme Paulo Arantes,

“o desenvolvimento é esse movimento concreto da ‘autoprodução própria do em-si em vista do ser-para-si’. Só se pode falar de Entwicklung graças a esse descompasso entre o em-si e o para-si, que na realidade não chega a ser um descompasso, já que de um ao outro há concomitantemente afastamento e adequação”80

No tipo intensivo, os eventos musicais devem estar legitimados no curso do

tempo, o que implica afirmar o movimento do em-si ao ser-para-si mediante sua

77 Ibid., p. 211. Tempo e duração distinguem-se pois “a natureza não compreende a si mesma, e é por isso que a negatividade de suas formações não existe para ela (...) História e não-história opõem-se e imbricam-se como tempo e duração” (Ibid., p. 215). Nesse contexto, parece-nos razoável ver na duração natural a mesma essência correspondente ao tempo mítico/empírico na filosofia de Adorno. 78 Ibid., p. 220 79 Ibid., p. 173; Ver ainda o §46 da Fenomenologia: “(...) mas o tempo é o próprio conceito aí-essente. O princípio da grandeza – a diferença carente-de-conceito -, e o princípio da igualdade – a unidade abstrata sem-vida – não são capazes de apreender o tempo, essa pura inquietude da vida e diferenciação absoluta” (HEGEL, Fenomenologia do espírito, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 52) 80 ARANTES, Hegel: a ordem do tempo, p. 281–2

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

72

processualidade: o tempo “deve ser articulado”. A analogia torna-se ainda mais

consistente se lembrarmos que Adorno propõe, nos fragmentos sobre Beethoven, o

paralelismo entre trabalho do conceito (begriffliche Arbeit) em Hegel e trabalho

temático (thematische Arbeit) em Beethoven81, portadores da mesma experiência

histórica de pensamento. Em Skoteinos, ensaio dos Três estudos sobre Hegel, Adorno

apresenta uma analogia (que, conforme o autor, “ultrapassa a simples analogia”) entre o

trabalho conceitual na dialética e a progressividade da Entwicklung musical:

“Uma música como a de Beethoven, na qual o ideal da reexposição – isto é, da rememoração que produz o retorno de complexos anteriormente expostos –, deve ser o resultado do desenvolvimento (Durchführung), como a dialética quer ser, oferece um análogo ao movimento hegeliano que ultrapassa a simples analogia. Também a música altamente organizada deve ser ouvida de forma multidimensional, ao mesmo tempo de frente para trás e de trás para frente. Seu princípio de organização do tempo exige-o: o tempo deve ser articulado apenas através da distinção entre o conhecido e o ainda não conhecido, entre o que já estava ali e o novo; a própria progressão tem como condição uma consciência retroativa. É preciso conhecer uma frase inteira [einen ganzen Satz → lembrar que Satz também pode ser “movimento”…] e estar atento, retrospectivamente, a cada instante anterior. As passagens individuais devem ser compreendidas como consequências daquilo que veio anteriormente, o sentido de uma repetição divergente deve ser compreendido, aquilo que reaparece não deve ser percebido como simples correspondência arquitetônica, mas como um devir necessário. Talvez ajude à compreensão dessa analogia, assim como do núcleo do pensamento de Hegel, o fato de a apreensão da totalidade como identidade em si mesma mediada pela não-identidade ser uma lei da forma artística transposta para a filosofia. A transposição é ela própria motivada filosoficamente.

(Três estudos sobre Hegel, GS 5, 366-7,

tradução Ulisses Vaccari)

Notemos o teor da declaração de Adorno: a “identidade em si mesma mediada

pela não-identidade”, cujo modelo proveniente de um “lei da forma artística” seria

transposta para a filosofia pela filosofia, corresponderia à totalidade dinâmica do

período médio de Beethoven. Na medida em que o esquema é permeado pela liberdade

subjetiva, projeta-se uma nova totalidade que acolhe o não-idêntico em uma “síntese

não violenta”, e dessa operação resulta posteriormente a forma. Exposição e

desenvolvimento não são mais justapostos lado a lado pelo esquema, mas o próprio 81 Beethoven §27: “O ‘espírito’, mediação, é o todo como forma. A categoria que, nesse contexto, é idêntica entre filosofia e música, é trabalho (Arbeit). O que é chamado trabalho do conceito em Hegel é trabalho temático na música”

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

73

desenvolvimento surge como a consequência lógica da exposição, seu “devir

necessário”. Beethoven reconstroi o esquema formal “de baixo para cima”, mediante a

imersão dialética no particular, mediante o Arbeit temático. Por meio dessa lógica

dedutiva e sistemática e em virtude da não-identidade da identidade, “a música atinge

uma relação totalmente nova com o tempo” (GS 12, 68), não mais é indiferente a ele.

Nesse sentido, a seção de reexposição (Reprise) no tipo intensivo – que Adorno

compara à Erinnerung hegeliana – diverge tecnicamente daquela prevista no esquema

da sonata clássica, de tal modo que, embora necessária para a “consciência retroativa”,

ela se coloca inicialmente como aporia, como momento crítico, diante do critério de

irreversibilidade. Em A forma da NM (1966), Adorno esclarece que a reexposição era

problemática para Beethoven, por ser um elemento formal “estranho ao tempo” (GS 16,

612), um elemento arquitetônico, espacialmente simétrico, que entra em conflito com a

força de um material que “anseia livrar-se de toda repetição” (GS 16, 613). Assim, a

reexposição sempre careceu de certa legitimidade na prática compositiva de Beethoven,

uma prática “subjetivamente dinâmica” e “rigorosamente temática”, nos termos de

Adorno. Encontramos, grosso modo, a seguinte interpretação para o “problema da

reexposição” no tipo intensivo. Por um lado, o tipo intensivo não é a negação abstrata

do universo do culto e da dança que circunscreve a música pré-classica. A seção de

reexposição no tipo intensivo, seção que deveria ser o “resultado do desenvolvimento

(Durchführung)”, consiste tanto na superação quanto conservação – negação

determinada – do referente mítico da repetição82. Por outro lado, encontramos a

interpretação do capítulo Mediação de Introdução à sociologia da música (1962), na

qual a reexposição se apresentaria também como “tributo forçado à essência ideológica”

da época de Beethoven – um autoritário e afirmativo “é assim” (GS 14, 412), ao qual

cede o compositor.

Enfatizemos mais uma vez a mediação que impulsiona a categoria de

Entwicklung: ela seria internamente dialética em seu confronto com o tempo empírico,

não no sentido de constituir um “terceiro termo” que resultaria da relação entre termos

82 BOISSIÈRE, La pensée musicale de Theodor W. Adorno, p. 83: “La forme sonate abolit tout en conservant la répétition, dans la mesure où elle ne la supprime pas, mais la transforme en raison de sa forme cyclique liée à la réexposition; celle-ci, par ailleurs, construit le domaine de l'apparence et confère à la musique un statut fictionnel”.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

74

opostos – particularidade/totalidade ou instante/sucessividade – mas no sentido de

manifestar a própria mediação interna da particularidade que assume a totalidade da

forma, a mediação da sucessividade que se experimenta como instante. Essa relação

intensiva da parte com o todo, revelada no instante como processo de auto-reflexão

musical, estabelece, segundo Paddison83, o caráter cognitivo da música de Beethoven.

Como veremos a seguir, a verdade enunciada transcenderia o âmbito da ideologia. Daí o

estatuto singular de “filosofia da música” que Adorno atribui à análise imanente:

“O estudo sobre Beethoven deve fornecer a filosofia da música (die Philosophie der Musik geben), ou seja, deve estabelecer de modo decisivo a relação da música com a lógica conceitual. Só então a confrontação com a Lógica de Hegel, e com ela, a interpretação de Beethoven, será não uma analogia, mas a própria coisa”

(Beethoven, §26)

Benjamin, kairós e instante

Que “a própria coisa” no trecho acima esteja completamente cingida pela

experiência da Revolução de 1789, pelo acontecimento deflagrador de um “novo

tempo” do mundo e da consciência histórica de progresso direcionado ao futuro, fica

evidente na convergência sugerida entre Beethoven e Hegel. Tal convergência com o

ideal revolucionário aparece nos fragmentos: “assim como a revolução não criou uma

nova forma social, mas ajudou a romper uma estrutura já formada, o mesmo ocorreu

com Beethoven em relação às formas musicais” (Beethoven, §84). Também o capítulo

“Mediação” da Introdução à sociologia da música identificava na obra de Beethoven o

protótipo revolucionário e libertário de uma “música que escapou de sua tutelagem

social e se revelou esteticamente autônoma” (GS 14, 411). Não menos evidente é a

relação de todo o complexo com a filosofia de Benjamin. Pois poderíamos

complementar a descrição ao afirmar, na esteira terminológica da tese 15 Sobre o

conceito da História, que a consciência da Revolução era a de fazer “explodir o

continuum da história”. A alegoria do ímpeto revolucionário de disparar “tiros contra os

83 PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 235

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

75

relógios localizados nas torres”84 indicava o protesto à experiência do tempo vazio, pré-

revolucionário. Beethoven e Hegel partilham a experiência de um momento no qual o

rompimento com as estruturas sociais coincide com o surgimento da ideia esclarecida e

moderna de “progresso”, em que se ambiciona inaugurar a temporalização efetiva da

história: uma ideia na qual se inscreve a possibilidade de reconciliação do universal e do

particular no interior da experiência social. Na estética de Adorno, tal possibilidade se

traduzia na figura do χαιρός (kairós), o instante carregado de sentido que suspende a

ordem profana e vazia do tempo85. Vejamos essa ideia de “contração do tempo” sob

outra perspectiva.

Tanto nos fragmentos sobre Beethoven quanto em FNM, Adorno atribuía à

sonata clássica o equilíbrio entre rigor e liberdade, a unidade entre tempo espacial-

matemático objetivo e tempo da experiência subjetiva (FNM, GS 12, 180). Tratava-se,

no fundo, de um ideal cuja realização, atingida por Beethoven, estaria na “feliz

epifania/irrupção do instante (glücklichen Einstand des Augenblicks)” (FNM, GS 12,

180)86. É nesse equilíbrio que se configura a verdadeira articulação do tempo; a

progressividade que resulta da antifonia motívica se cristalizaria em um instante

(Augenblick), dialeticamente carregado de sentido, também denominada χαιρός musical.

84 BENJAMIN, Sobre o conceito da História. In: Obras Escolhidas - Vol. I - Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 230 85 Para uma descrição pormenorizada, a partir de um referencial meta-histórico, sobre a categoria de Neuzeit que surge com a Revolução e se difunde ideologicamente pela Europa, ver parte final do livro de Reinhardt Koselleck, Futures Past, em especial o último capítulo, onde se lê: “If the whole of history is unique, then so must the future be: distinct, that is, from the past. This historico-philosophical axiom, a result of the Enlightenment and an echo from the French Revolution, provided the foundation for “history in general” as well as for “progress.” Both are concepts which achieve their historico-philosophical plenitude only with their lexical formation; both indicate the same substantive content; that is, no longer can expectation be satisfactorily deduced from previous experience” (KOSELLECK, Futures Past: On the Semantics of Historical Time, New York: Columbia University Press, 2004, p. 268). E, logo em seguida, sobre a sensação social de “aceleração do tempo” também vivida na Alemanha: “The changes in social and political organization since 1789 did in fact seem to break up all established experience. Lamartine wrote in 1851 that he had lived since 1790 under eight different systems of rule and under ten governments. “La rapidité du temps supplée à la distance”; new events constantly pushed themselves between observer and object. “Il n’y a plus d’histoire contemporaine. Les jours d’hier semblent déjà enfoncés bien loin dans l’ombre du passé,” by which he described an experience that was for the most part shared in Germany” (Ibid., p. 270) 86 Frobenius mostra que nos ensaios Schubert (1928) e Anton von Webern (1932), Adorno adota o sentido de Augenblick como suspensão do tempo, mas apenas a partir de 1949, com FNM, a expressão "instante da passagem temporal" (Augenblick des Verlaufs) é utilizada no sentido de articulação interna sucessiva dos eventos que suspende o tempo (Cf. FROBENIUS, Über das Zeitmaß Augenblick in Adornos Kunsttheorie. In: Archiv für Musikwissenschaft, v. 36, n. 4, 1979, p. 297). Acreditamos, de todo modo, que este último sentido já estaria em curso na descrição do tipo sinfônico nos fragmentos de Beethoven.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

76

No ensaio Critérios da NM (1957), reverberando os fragmentos e o trecho de FNM,

Adorno oferecia uma definição do kairós: “aquela epifania/irrupção (Einstand) que a

teologia certa vez ensinou como a eternidade do instante realizado (erfüllter

Augenblick), a concentração da mera passagem do tempo em um único lampejo (zum

Nu)” (Critérios da NM, GS 16, 222). O kairós consiste, portanto, na aparição de um

instante capaz de superar o anátema da repetição mítica, de “interromper o tempo

abstrato” em sua plenitude imediata. Essa cristalização dialética da passagem do tempo

dependeria, para Adorno, de uma conciliação provisória da “tensão secular entre

liberdade e necessidade”, tensão que justamente levaria, na música, à “objetivação do

devir”. É assim que a sonata e a sinfonia conseguiriam criticamente “fazer do tempo o

seu objeto (Gegenstand); por meio do conteúdo que fornecem ao tempo, elas obrigam o

tempo a se manifestar (sie zwiegen sie zum Einstand)” (Ensaio sobre Wagner, GS 13,

34). Por sua vez, o devir transformado na objetivação epifânica do instante – em

Einstand des Augenblicks – remete à “ilusão do tempo estancado” que Adorno

menciona em diversos escritos musicais para ilustrar o efeito do sinfônico. Por exemplo,

no artigo de 1963:

“Temos a ilusão do tempo estancado (gestauten Zeit): o fato de movimentos como os primeiros da 5ª e da 7ª Sinfonia, ou mesmo o longo movimento da Eroica, quando propriamente interpretados, não durarem sete ou quinze minutos, mas apenas um instante (Augenblick), é produzido por essa estrutura (…)”

(Über die musikalische Verwendung des Radios, GS 15, 376)

Essa suspensão da passagem do tempo na estrutura do sinfônico representaria,

portanto, nada menos do que o ideal de toda música87. A formação do kairós prescreve

seu horizonte utópico, protesto e o triunfo sobre o tédio88. É no tipo intensivo, ao

87 Convém insistir que o Einstand der Zeit como sendo o ideal da música é bastante frequente em Adorno. Ver, além dos trechos já citados, GS 15, 187: “Der Einstand der Zeit als Bild des Endes von Vergängnis ist das Ideal von Musik, das ihrere Erfahrung und auch das musikalischer Unterweisung. Dies Ideal ist eines von Erkenntnissen, aber keiner über die Kunst sondern derjenigen, die Kunst selbst ist, als Widerpart der szientifischen: Erkenntnis von innen“ 88 Cf. Über die musikalische Verwendung des Radios (1963): “Aus dem musikalischen Kairos, dem Triumph über die lange Weile im übervollen und explodierenden Augenblick, springt etwas wie die Abschaffung der musikalischen Zeit heraus oder wird wenigstens intendiert“ (GS 15, 386); Ver tb. no mesmo livro, o ensaio Die gewürdigte Musik (1961): „Wünscht das primitive Bewußtsein, daß Musik die

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

77

envolver o equilíbrio entre a precisão do tempo objetivo-matemático e a máxima

liberdade do tempo subjetivo, que a irrupção do kairós está alicerçada. A imagem

epifânica do kairós na filosofia materialista de Adorno não chega a surpreender. Alinha-

se ao conjunto de imagens de origem benjaminiana – como “fogo de artifício”

(Feuerwerk), “aparição” (Apparition), explosão do “tempo vazio” (leere Zeit)89 –,

metáforas frequentemente usadas para a descrição do ideal da arte em geral (TE, GS 7,

125). A exemplo da categoria de “intensidade”, utilizada em TE de maneira

universalizante, Adorno estenderia a metáfora da experiência concentrada de sentido no

kairós para o fundamento de toda obra de arte “bem-sucedida” (gelungene

Kunstwerk)90. Em TE, a força dialética da obra de arte, ao condensar sua historicidade e

processualidade, aparece (erscheinen) em um clarão, lampejo, “tempo do agora”,

interrupção do fluxo do tempo.

Vale a pena nos determos sobre essa semântica, que remete a Benjamin,

sobretudo às teses Sobre o conceito de História. Ao tematizar a distinção idealista entre

símbolo e alegoria que influenciaria o pensamento de Benjamin, Jeanne Marie

Gagnebin nos lembra que a estrutura do símbolo, a “feliz coincidência entre significante

e significado”, carrega consigo a evidência de sentido e, por extensão, uma dimensão

utópica e redentora da praxis política. Benjamin associava à estrutura simbólica as

imagens de um resplendor no instante. Conforme Gagnebin, o êxito do símbolo consiste

em quebrar a ordem da cronologia por meio de uma revelação da transcendência, como

num relâmpago que “subitamente ilumina a noite escura”, uma aparição que “remete à

temporalidade mística da epifania”. O “tempo do agora” emerge da descontinuidade Zeit der Langeweile töte, so kehrt das mündige zu diesem Ziel heim, nachdem es einmal von ihm sich befreit und damit auch Musik von der Langeweile geheilt hat“ (GS 15, 187) 89 “Como sabem todos os leitores das teses Sobre o Conceito de História ou ainda do ensaio sobre O surrealismo, estas comparações pertencem ao repertório de imagens privilegiadas do autor: iluminação, relâmpago e tempo de um relâmpago, instante, aparição repentina, surgir, todas estas expressões descrevem não só a ruptura provocada pela vanguarda estética, mas também a urgência da ação histórica revolucionária” (GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 36) 90 “Jedes Kunstwerk ist ein Augenblick; jedes gelungene ein Einstand, momentanes Innehalten des Prozesses (…)“ (TE, GS 7, 17). Ou ainda, “Der Augenblick des Erscheinens in den Werken jedoch ist die paradoxe Einheit oder der Einstand des Verschwindenden und Bewahrten.“ (TE, GS 7, 124). Para a discussão sobre kairós em TE, cf. GS 7, 279. Diversos comentadores insistem na universalização adorniana das categorias desenvolvidas em sua reflexão musical para caracterizar a obra de arte em geral, o que seria visível em Teoria Estética. Cf. URBANEK, Auf der Suche nach einer zeitgemäßen Musikästhetik, p. 169; HUHN (Org.), The Cambridge Companion to Adorno, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2004, p. 257

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

78

provocada pelo kairós, e essa “quebra da continuidade da cronologia tranquila”, que

imobiliza o fluxo infinito do tempo homogêneo e vazio, dá lugar ao salto, ao

“surgimento (Ur-sprung) do passado no presente”91. Ao salvar o paradoxo do

simbólico, Benjamin atribuiria à epifania a possibilidade de uma autêntica

transformação política. Se a ordem profana do tempo corresponde à dominação social, a

ação histórica revolucionária adquire sentido no kairós, no “conceito de um presente

que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza”, conforme a famosa tese 16 de

Sobre o conceito de História92. O vislumbre utópico de uma prática político-social

emancipatória estaria portanto na relação entre kairós e intensidade nas imagens

dialéticas. Notemos que a suspensão temporal evoca a mesma a estrutura de impacto do

tipo dramático-intensivo em Adorno. Conforme Gagnebin,

“Este momento do despertar, de concentração de energias, de tensão de todas as forças do sujeito prenhe das riquezas da lembrança (...) é o momento da construção consciente, o Kairos da intervenção decisiva que para o curso do tempo, que quebra o mau infinito do desenrolar histórico (...) (Benjamin concentra-se) nas mônadas privilegiadas que retem a extensão do tempo na intensidade de uma vibração, de um relâmpago, de um Kairos” 93

Drama e sinfônico

A suspensão dialética da passagem temporal, concebida por Benjamin no

interior de uma crítica à causalidade do historicismo e ao conceito dogmático de

progresso, liga-se intimamente ao tipo intensivo. Do mesmo modo, não surpreende a

proximidade do tipo intensivo com a figuração dramática da totalidade, descrita por

Lukács. Também para Adorno, a verdadeira dimensão utópica localiza-se na suspensão 91 GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 97 92 Ver a tese 16: “O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. (...) O historicista apresenta a imagem 'eterna' do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. (...) Ele fica senhor de suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história (das Kontinuum der Geschichte aufzusprengen)" (BENJAMIN, Sobre o conceito da História, p. 230–1). E tb. a tese 14: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'” (Ibid., p. 229). Adorno comentava em carta a Horkheimer de 1941 a semelhança da tese 14 com a teoria do kairós de Paul Tillich: “es ist kein Zufall wohl dass danach die XIV These dem χαιρός unseres Tillich nicht ganz unähnlich sieht.” (Adorno – Horkheimer Briefwechsel, 12.6.1941) 93 GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 80

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

79

do tempo. Não por acaso, Adorno utiliza os termos intensivo e dramático como

sinônimos: “o princípio sinfônico da contração do tempo” – princípio este que é

considerado o próprio “desenvolvimento, em sentido profundo”, intensivo –

corresponderia “à epítase no drama clássico” (Beethoven, §91). Conforme a poética da

tradição aristotélica, a epítase/conflito consiste no desdobramento da ação principal,

posterior à prótase/introdução e anterior à catástase/desenlace, partes que formariam a

estrutura da tragédia clássica. No §148, Adorno reafirma a analogia entre drama e

sinfonia, segundo a qual o conflito (ou epítase) corresponderia à seção central do

desenvolvimento (Durchführung), seção em que a fantasia subjetiva e o trabalho de

interação temático-motívica se efetuam, em que os temas passam por uma travessia (por

uma Durchfahrt). A configuração da totalidade formal surge aqui da interrelação

teleológica dos momentos no plano do conflito, que por sua vez está “emoldurado” por

uma prótase e uma catástase. Para o ensaio O esquema da cultura das massas,

posteriormente anexado a DE, a configuração progressiva do tipo dramático seria

idêntica à do tipo sinfônico-intensivo. Novamente, o repertório das imagens

benjaminianas é evocado para sua descrição:

“O confronto com o tempo representava a preocupação mais crucial do drama e da música sinfônica (...) O tempo do drama absoluto seria o lampejo (das Nu) que reluz da perfeita cristalização de todas as relações temporais dentro da ação; não é diferente do caso da sinfonia, a qual por meio de seu universal trabalho motívico – o equivalente musical da dinâmica dramática do conflito – não apenas realiza (erfüllt) seu tempo, mas atribui seu significado forçosamente sobre o tempo e faz o tempo desaparecer. A Sétima de Beethoven provê o caso exemplar dessa interrupção dialética do tempo.”

(O esquema da cultura das massas, GS 3, 312)

Vale a pena insistirmos novamente, dada a extrema importância para o contexto

argumentativo da nossa tese: é no tipo intensivo, dramático, que a música consegue

“confrontar o tempo” (die Zeit bewältigen) e dissipar o “tédio” (Langeweile). Na

monografia sobre Mahler (1961), a ideia reaparece sem alterações: “A sinfonia

dramática-clássica encurta o tempo através da espiritualização (Vergeistigung), como se

tivesse interiorizado e convertido em lei estética o desejo feudal de acabar com o tédio,

de abater o tempo (Langeweile zu toten, Zeit totzuschlagen)” (Mahler, GS, 13, 222). Se

a Langeweile abarcava toda música anterior ao classicismo, é porque então prevalecia a

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

80

ordem do “tempo profano do mundo sobre o tempo da experiência individual”94. Como

vimos, a música pré-classica caracteriza-se pela impossibilidade da construção estética

do tempo. Porém, a figura da Langeweile viria a atingir a música posterior a Beethoven,

na medida em que coincide com o declínio da experiência subjetiva na modernidade,

levando por extensão ao “fim do tempo musical” – analisaremos no capítulo 2 a

“queda” na Langeweile da crítica adorniana a Wagner e Stravinsky.

Também convém insistir que a constelação semântica para caracterizar o tipo

intensivo – Augenblick, Bewältigung der Zeit, luta contra Langeweile, contra o tempo

mítico/empírico – que aparece pela primeira vez em Zweite Nachtmusik (1937), é

sistematicamente utilizada nos escritos posteriores de Adorno. Ela retorna, por exemplo,

no Ensaio sobre Wagner, quando se descreve o gesto sinfônico de Beethoven como

aquele que “converte a passagem do tempo em instante”95, em contraposição ao gesto

“espacializante” de Wagner. Na conferência em Darmstadt de 1957, a mesma

caracterização de 20 anos antes traz a metáfora do “tempo estancado” no tipo intensivo:

“Graças à sua integração, a grande música lida com a passagem do tempo fazendo-a mais curta; sua habilidade de livrar o tédio (Langweile) (…) torna-se em momento (Moment) da própria música e de sua autonomia; os grandes movimentos sinfônicos clássicos de Beethoven podem ser idealmente ouvidos como se durassem apenas um instante (Augenblick)”

(Critérios da nova música, GS 16,222)

Notemos que Adorno não apenas expõe a noção epifânica de contração

temporal, do kairós, mas afirma que essa habilidade do tipo sinfônico para livrar o

“tédio” representa o momento dialético central de toda música autônoma. Em 1962, no

ensaio tardio sobre Stravinsky, a mesma confrontação com o tempo empírico por meio

do sinfônico em Beethoven, é retomada:

94 KLEIN, Thesen zum Verhältnis von Musik und Zeit. In: KLEIN, Richard; ETTE, Wolfram; KIEM, Eckehard (Orgs.), Musik in der Zeit, Zeit in der Musik, Weilerswist: Velbrück, 2000, p. 74 95 “Sonate und Symphonie machen die Zeit kritisch zu ihrem Gegenstand; sie zwingen sie zum Einstand durch den Inhalt, den sie ihr verleihen. Wird jedoch in der Symphonik der Zeitverlauf zum Augenblick (…)“ (Ensaio sobre Wagner, GS 13, 34). Aprofundaremos essa discussão na seção abaixo 2.1 Os gestos de Wagner: “aqui o tempo vira espaço”

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

81

“Por um lado, [Beethoven] permanece ligado à ideia geral do classicismo vienense com sua crença no desenvolvimento temático e, portanto, na necessidade de um processo que se desdobra no tempo. Por outro lado, as sinfonias de Beethoven exibem uma estrutura de impacto (Schlagstruktur) própria. Ao comprimir e fragmentar o desdobrar do tempo, o próprio tempo é abolido e como que suspenso e concentrado no espaço. A ideia do sinfônico pode ser encontrada na tensão entre esses dois elementos.”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 400)96

Por fim, na seção final de Dialética negativa, em Meditações sobre a metafísica,

a configuração da “esperança” e do humano realizada pelos “instantes” do sinfonismo

de Beethoven é evocada:

“Toda expressão de esperança que emana das grandes obras de arte de modo mais potente que dos textos teológicos tradicionais possui a mesma configuração que a expressão do humano; e isso em lugar alguma de maneira mais ambígua do que nos instantes (Augenblicken) de Beethoven”

(DN, 329)

A justaposição talvez cansativa dos exemplos não é gratuita: a persistência da

mesma constelação semântica – persistência notável em contextos e estágios distintos

da produção adorniana (1937, 1949, 1957, 1961, 1963, 1965)97 – nos permite deduzir

que o tipo intensivo estaria efetivamente na base da ideia específica de processualidade,

de articulação entre todo e particular, que fornece os atributos essenciais da construção

musical do tempo para Adorno. Acreditamos que o arco histórico no qual se registram

as ocorrências de tal constelação é suficientemente abrangente para sustentar nossa

hipótese: a de que Adorno concebe um modelo peculiar de desenvolvimento ligado ao

trabalho motívico-temático em Beethoven, que, por sua vez, estabelece a própria

96 É interessante notar os sentidos antagônicos de “espacialização” nesse trecho. A “concentração no espaço” referida aqui é justamente o oposto da “espacialização” como renúncia composicional à organização de estruturas temporais. O primeiro sentido está ligado à depuração dialética da progressiva sucessividade e da dinamização do trabalho temático para construção do kairós, promovida pela escrita composicional de Beethoven. Já o segundo sentido de “espacialização” corresponde, inversamente, ao retorno à relação primitiva com a repetição, com o anátema do mito, que rejeita a sucessividade e reinscreve a estaticidade na evolução do material musical. 97 A saber: Zweite Nachtmusik (1937); FNM (1949); Kriterien der neuen Musik (1957); Die gewürdigte Musik e Mahler (1961); Über die musikalische Verwendung des Radios (1963); Strawinsky - Ein dialektisches Bild (1965). As referências não se limitam evidentemente a esses textos, mas, considerando suas datas de publicação, bastam para assegurar nossa hipótese.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

82

“essência dialética” (dialektisches Wesen) da música, determinando a especificidade

imanente do meio musical (do Medium) como “arte da articulação”98, em seu ideal

qualitativo de exteriorização do não-idêntico.

Convém assinalar a aporia colocada pelo tipo intensivo: toda a arte musical

anterior e posterior a Beethoven caracteriza-se pela impossibilidade de cristalização

desse ideal. Se, na música pré-clássica, as forças de expressão subjetiva ainda não

estariam desenvolvidas, limitadas à mera repetição de “convenções harmônicas” e

“padrões melódicos”, a sucessão do contínuo temporal depois de Beethoven renunciaria

à configuração do intensivo, precariamente conquistada. O traço fundamental da música

após o período médio do compositor (pois no tipo extensivo e no estilo tardio essa

reconciliação entre universal e particular já seria comprometida) consiste na dificuldade

de se restabelecer a dialética do “sinfônico”. O tipo intensivo cristalizou-se durante um

curto período da história da música e se trata, para Adorno, de um empreendimento

impossível de ser retomado, tendo em vista tanto as condições sociais objetivas quanto

as forças produtivas musicais posteriores. “O trágico” – diz Adorno tanto em DE quanto

em TE – “deixou de ser possível”. Após Beethoven, bloquearam-se as tentativas de

suspensão dialética do tempo. As obras de Wagner e Stravinsky apenas evidenciariam o

caráter irreconciliável entre tempo matemático e tempo subjetivo; para Adorno, elas

priorizaram de maneira não-dialética um dos polos da “dialética sinfônica do tempo”:

“se Wagner desloca o problema do tempo sinfônico para o lado puramente subjetivo-expressivo, renunciando à dominação musical do tempo (Bewältigung der Zeit), abandonando-se à duração por assim dizer passivamente, o procedimento de Stravinsky representa o extremo oposto, e de modo algum significa a retomada da dialética propriamente sinfônica do tempo”

(FNM, GS 12, 181, nota 34)

No entanto, a “retomada” dessa dialética estaria historicamente bloqueada não

apenas em Wagner e Stravinsky mas também nos compositores mais avançados. A

estruturação da obra musical de acordo com a imposição não-mediada de um dos polos

servirá como fundamento para a crítica convergente à estaticidade e à espacialização

nos anos 1950. Apesar disso, os fragmentos mostram que essa ruptura da dialética já 98 Ver seção abaixo 3.3 Convergência, imbricação e rejeição de uma síntese sistemática

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

83

seria perceptível em obras do próprio Beethoven. Daí o surgimento de modelos

complementares que se opõe à formalização do tipo intensivo: desses modelos se

originam o “tipo extensivo” ou “épico”, e posteriormente, o estilo tardio.

1.2 Tipo extensivo ou épico

A problemática do “preenchimento” do tempo distingue basicamente o tipo

intensivo do tipo extensivo ou épico, o que nos reconduziria à categorização proposta

por Lukács em Teoria do romance. Entretanto, aqui incide uma diferença fundamental:

o tipo extensivo, para Adorno, é a figura dialética que nega o tipo intensivo (ao

contrário de Lukács, para quem drama e épica não estabelecem relação dialética entre

si99). O tipo extensivo corresponderia ao conjunto complexo de modalidades temporais

que renuncia à confrontação dialética e ao domínio do tempo como no sinfônico,

configurando entretanto essa abdicação. É importante enfatizar os dois momentos: trata-

se aqui da renúncia do tempo musical – o conceito de tempo musical, em Adorno,

devendo ser compreendido aqui no sentido intensivo – mas não da renúncia de uma

configuração (Gestaltung), ou seja, de uma organização formal dessa renúncia do

tempo. Essa distinção (entre revogação do tempo, mas não da forma que configura a

revogação do tempo) parece-nos tão importante quanto a oposição entre negação

determinada e negação abstrata, pois é a partir dela que Adorno avançaria a crítica da

“espacialização” temporal em Wagner e Stravinsky: como veremos, ambos

“revogariam” a dimensão propriamente temporal da música, mas a negam de modo

abstrato, sem configurar tal revogação, cujo efeito “espacializa” o tempo musical. O

extensivo em Beethoven procede de outro modo: compõe-se de dispositivos que

criticam a contração do sinfônico, formalizando no plano técnico o “processo de

desintegração” (Zerfallprozess).

99 “Drama, lírica e épica – em qualquer hierarquia que sejam pensados – não são tese, antítese e síntese de um processo dialético, mas cada qual é uma espécie de configuração do mundo de qualidade totalmente heterogênea das demais” (LUKÁCS, A teoria do romance, p. 135)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

84

O tipo extensivo corresponde, portanto, a um princípio de organização formal,

marcado pela relação “geométrica”, em vez de dinâmica, com o tempo empírico. Em

obras do período médio-tardio – os primeiros movimentos da sinfonia Pastoral, do Trio

op. 97, da última Sonata para Violino, op. 96 – Adorno observa então o abandono da

ideia de totalidade dinâmica, a “des-dinamização” (Ent-Dynamisierung) do tempo

musical. À primeira vista, o extensivo consiste na redução da seção central de

desenvolvimento (Durchführung) e na substituição do caráter processual do trabalho

motívico por episódios historicamente sedimentados, modelos expressivos

convencionais, repetições estáticas de motivos. Longe de ser um gesto regressivo, trata-

se de um momento “soberano” de crítica imanente, ou ainda, como defende Adorno, de

auto-crítica da forma. No extensivo, Beethoven abstém-se de subjugar esteticamente o

tempo empírico a um momento dialético, manifestando certa indiferença em relação ao

dinamismo do trabalho temático. Não se retira mais o significado musical do presente

contraído no instante, mas sim de algo como “já passado”. Esse significado extensivo,

descrito como efeito “retrospectivo” de desenvolvimento, mostra que, na realidade, a

ideia de desenvolvimento foi descartada. Essa seria a razão para o caráter épico do tipo

extensivo.

Nos fragmentos analíticos sobre o Trio op. 97 - Arquiduque, acompanhados do

subtítulo Elementos de uma teoria do tipo extensivo (§222), Adorno verifica certa

tendência ao caráter de “recitativo” da obra, como contrapartida à sua falta de

progressão temática; uma simplicidade inexplicável na construção do consequente do

tema principal; transições harmônicas abruptas em vez de modulações (a modulação

parece excessivamente “cerimoniosa” no extensivo). A seção central de

desenvolvimento reduz-se a um mero “episódio”, sem valor significativo – apenas 17

compassos. Também o problema da reexposição diverge daquele do intensivo e vale

aqui uma análise detida. No Trio op. 97, a reexposição torna-se “discreta”, “reticente”,

emerge em diminuendo (em pp), por não ser mais a culminação de uma atividade

anterior conflitante e dinâmica, como no tipo intensivo. Ela não é a contrapartida

“tectônica” do esquema tradicional da sonata nem o clímax do intensivo. Por isso, a

entrada tímida da reexposição constitui um momento crítico da forma extensiva, mas

por outras razões: em função do caráter meramente contingencial dos eventos musicais,

“simplesmente não se sabe mais como voltar ao começo. A reexposição é um tour de

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

85

force (…)”. Como sintoma do aspecto contingencial, “a tônica é introduzida um

compasso antes do início da reexposição (compasso 190)” (§222), ou seja, o evento

harmônico principal, a cadência resolvida, antecipa-se à demarcação que inicia a seção

da reexposição. Tornando-se quase imperceptível, confirma não mais ser a culminação

de eventos tensionados. A reexposição converte-se em repetição, mera “lembrança de

algo”, “pausa do narrador”, o que, para Adorno, remete ao épico. Na coda, a

harmonização é trivial, tautológica, uma convenção abstrata do elemento expressivo.

Se não há mediação temática no tipo extensivo, nem por isso há desintegração

da forma. Do contrário, de acordo com o esquema histórico adorniano, o extensivo

estaria na vizinhança conceitual e mítica do Divertissement que dominava a música pré-

clássica. Daí a importância do segundo momento da forma do extensivo: uma

configuração subjetiva da desintegração, cujo efeito em “retrospecto” inaugura,

segundo Adorno, uma música da “pura presença” (e não da “transcendência” no

intensivo). Em sua propensão épica, o extensivo transformaria paradoxalmente a própria

passagem do tempo empírico em tema – e não, como no intensivo, em kairós. O gesto

épico em Beethoven insinua a construção, como Adorno definirá no Ensaio sobre

Wagner, de uma “metafísica da pura presença”. Assim, certa permutabilidade dos

eventos temporais mostraria que o organização musical não mais obedece ao ideal de

construção progressiva de sentido: o que vem depois poderia ter vindo antes. O primado

da irreversibilidade, que qualifica o conceito de Entwicklung em sua progressividade,

seria então questionado por Beethoven antes mesmo do estilo tardio. Ocorre que tal

configuração formal da renúncia, não custa insistir, se dá como crítica imanente ao tipo

intensivo. Assim, a própria repetição motívica ocorre aqui em registro específico.

Adorno constata, por exemplo, no 1º movimento da Pastoral, modelo do extensivo ou

do épico, um tipo curioso de repetição:

“um tipo curioso de ‘repetição’ (…) que beira a expressão de felicidade (como em certos estados catatônicos?) Encontramos aqui um motivo de certos desenvolvimentos modernos, de Stravinsky. ”

(Beethoven, §217)

O processo de desintegração no épico de Beethoven seria semelhante aos

expedientes modernistas de repetição em Stravinsky, fortemente criticada em FNM.

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

86

Adorno chega mesmo a afirmar que a Pastoral “é, acima de tudo, música estática”

(§243). No entanto, se essa descrição sugere imediatamente uma analogia com a

repetição analisada na seção “catatonia” de FNM, Adorno procura distinguir esse “tipo

curioso de repetição” da Pastoral daquela “catatônica” da Sagração, ponderando que,

ao contrário de Stravinsky, a repetição em Beethoven não resulta de uma compulsão, de

um “motorismo” que coloniza a rítmica, mas, pelo contrário, “de um relaxamento, de

um deixar estar (Loslassen)” (§244), viabilizada de maneira “soberana” pela

subjetividade composicional.

Figura 2 – tendência à estaticidade e “repetição” a partir do compasso 202

1º mov. da 6ª Sinfonia em Fá Maior (Pastoral), Beethoven

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

87

As metáforas associadas ao extensivo, por vezes não muito convincentes,

parecem confirmar o desconcerto de Adorno quanto à essência do princípio de

configuração da forma extensiva – “muito difícil de determinar”, “ainda obscuro para

mim”, como pondera no §219. Adorno compara o épico em Beethoven ao

“relaxamento” da forma após o domínio do tempo sinfônico no intensivo, como se a

forma precisasse “respirar”. Compara a “uma expiração, como se fosse impossível

permanecer no topo paradoxal do sinfônico” intensivo (§221). E atribui ao tipo

extensivo uma “auto-contemplação” da forma, na qual a música não deseja mais

transcender, deseja apenas “ficar aqui” (metafísica da presença), como se o tempo fosse

liberado da relação de dominação subjetiva para ser apenas retratado ou “preenchido”,

deixando de constituir um desafio ao “tédio” (Langeweile). Ao contrário da

concentração no tipo intensivo, o objetivo composicional no tipo extensivo seria ainda

um percurso e um devir, mas este se apresenta “como episódio, não mais como

processo” (§222); por isso, a seção da reexposição possui geralmente certa qualidade

“irresponsável”. O momento épico corresponderia, afinal, à percepção de que o tempo é

mais poderoso do que sua sincopação estética, sincopação esta que somente o tipo

intensivo realizaria (§223).

De fato, “relaxamento”, “ausência de pressa”, “irresponsabilidade”, “expiração”,

compõem uma terminologia vacilante, de pouca precisão técnica e de cuja descrição em

termos analíticos Adorno parece efetivamente recuar. Apesar disso, interessa-nos

constatar que as modalidades da relação da música com o tempo em geral se

depreendem claramente a partir de dois conjuntos da obra de Beethoven. Se enfatizamos

a constatação, é porque, a partir dela, descartamos a acusação de que Adorno

encontraria apenas na obra de Beethoven o modelo para a formalização da Entwicklung

(a acusação bastante comum de certo “monismo” na apreciação de Beethoven100)

100 Cf. KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 64: há “discrepância entre a pluralidade das descrições de fenômenos particulares e o monismo de sua escolha fundamental conceitual (da Entwicklung em Beethoven)”. Ou ainda SCHNEIDER, Strawinsky und Adorno. In: SONNTAG, Brunnhilde (Org.), Adorno in seinen musikalischen Schriften: Beiträge zum Symposion “Philosophische Äusserungen über Musik, Adorno in Seinen Musikalischen Schriften” vom 20.-21. September 1985 in der Westfälischen Wilhelms-Universität Münster, Rogensburg: G. Bosse, 1987, p. 80: “O sentença de Adorno sobre o tempo na música estabelece um paralelo com sua filosofia da história. Como presumivelmente só

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

88

quanto podemos igualmente descartar a hipótese de que a espacialização do tempo seria

um processo totalmente moderno, que caracterizaria a obra de Stravinsky após o

colapso do sistema tonal. Os fragmentos desmentem as duas hipóteses. Primeiro, o ideal

de Entwicklung, embora alcance seu paroxismo no período médio de Beethoven, nasce

com a “antifonia motívica” do classicismo; segundo, os primórdios do processo da

espacialização do tempo musical estariam prefigurados na estaticidade do tipo

extensivo, em obras no período médio-tardio de Beethoven (como o Trio Op. 97 e a

Pastoral). Do mesmo modo, como veremos a seguir, a categoria de sinfonia épica (em

oposição à dramática), um dos pontos centrais da monografia sobre Mahler, pertenceria

ao tipo extensivo. A sinonímia entre épico e extensivo como crítica da totalidade

dramática indica uma possibilidade de apreciação progressista da própria renúncia do

tempo musical. Para sermos mais claros: por um lado, o afastamento do ideal de

Entwicklung em direção à “totalidade épica” em Wagner ou à “dissociação do tempo”

em Stravinsky são considerados desvios da essência da música, retração da consciência.

Por outro, quando o assunto é Mahler e Berg, o afastamento desse ideal em direção a

processos formais de desintegração do material é tomado como progressista. Essa

ambivalência judicativa levou Dahlhaus a afirmar que o conceito de tempo adorniano é

politicamente “decisionista” e esteticamente “subjetivista”101. Isso nos obriga a expor,

por exemplo, de que modo o maneirismo e a desintegração épica em Mahler percorrem

autenticamente a senda crítica aberta pelo tipo extensivo em Beethoven, enquanto a

“espacialização” em Stravinsky diverge deste caminho, por se colocar como desvio da

necessidade de configuração do tempo. Trata-se, com efeito, do problema central na

interpretação da teoria dos tipos102.

Anne Boissière interpreta o sentido da distinção entre os tipos intensivo e

extensivo a partir de um critério de escuta103. Na mesma linha, Rolf Tiedemann

existe uma história, então só há uma forma de configuração temporal (Zeitgestaltung) e experiência temporal (Zeiterfahrung) na música” 101 DAHLHAUS, Das Problem der “höheren Kritik”: Adornos Polemik gegen Strawinsky. In: Neue Zeitschrift fur Musik, n. 148/5, 1987, p. 14: “A filosofia da história adorniana – a höhere Kritik – pode ser desmembrada em, de um lado, “decisionismo” político e, de outro, “subjetivismo” estético”. Ver nota 217 abaixo. Discutiremos na seção sobre Stravinsky a crítica de Dahlhaus. 102 Urbanek também critica essa ambivalência no tratamento da dissociação temporal em Beethoven, Mahler e Stravinsky. Cf. URBANEK, Auf der Suche nach einer zeitgemäßen Musikästhetik, p. 213 103 BOISSIÈRE, La pensée musicale de Theodor W. Adorno, p. 56

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

89

considera que a distinção corresponde aos tipos de audição que Adorno propõe em

FNM, o expressivo-dinâmico e o rítmico-espacial104. Entretanto, embora a relação com

critério da escuta seja sem dúvida determinante, parece-nos que a complexidade da

teoria dos tipos, em consonância com a prerrogativa materialista da primazia do objeto,

passa antes de tudo pela compleição da totalidade da forma na escrita de Beethoven e

pela sua relação crítica com o momento histórico de produção. Ou seja, a configuração

compromete-se historicamente com a configuração da sonata, ao passo que os modos de

audição em FNM (que analisaremos no capítulo seguinte) referem-se a tipos ideias. Este

seria, afinal, o substrato autêntico do modelo de “filosofia da música” que, segundo

Adorno, poderia ser implementado.

Cabe ressaltar que o colapso do tipo intensivo resulta, no plano técnico, da auto-

crítica promovida pelo tipo extensivo. No entanto, resultaria também da negação do

elemento social, da função decorativa e arcaica de “preenchimento do tempo”,

vinculado ao lugar social da música. Em sua antítese à empiria, Beethoven sinalizaria,

com a configuração do extensivo, o abandono da utopia de irreversibilidade e de

contração temporal na música. As condições sociais objetivas e os desdobramentos dos

acontecimentos históricos posteriores (leia-se, em chave historicista, o Congresso de

Viena de 1814) mostrariam o caráter ideológico de todo modelo de temporalidade que

institui a transcendência do kairós, a experiência no instante da reconciliação entre

universal e particular. Vários comentadores sustentam, nesse sentido, que o tipo

extensivo de Beethoven, em sua abdicação à formalização do kairós, forneceria os

parâmetros da interpretação adorniana sobre a “dissociação do tempo”, modulada

conforme o objeto de análise, seja na interpretação de Schubert, de Wagner a Debussy,

de Schoenberg a Stravinsky105. Contudo, a dialética em Beethoven não se estabilizaria

na crítica ao momento ideológico de uma totalidade fechada. Se o tipo extensivo,

104 Ver nota de Tiedemann ao fragmento 219 do livro 105 Klein enumera as interpretações nas quais a crise do modelo da Entwicklung estaria no horizonte especulativo adorniano: “lyrische Assoziation bei Schubert, mytische Dissoziation bei Wagner, epische Extension bei Mahler, sistierte progression bei Schoenberg, malerische Verräumlichung bei Debussy, chronometrishce Zerteilung bei Strawinsky“ (KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 64–5); Nikolaus Bacht também sugere que o extensivo forma a base conceitual da interpretação adorniana desses compositores: “The importance of the fragments relating to the extensive type is considerable because they form the conceptual basis for Adorno's interpretation of Schubert, Schumann, Mahler and Berg” (BACHT, Music and Time in Theodor W. Adorno, p. 132);

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

90

enquanto configuração (Gestaltung), havia sido a crítica imanente do intensivo, o estilo

tardio, em nova torção dialética, surgirá da própria configuração do extensivo – o estilo

tardio consistiria então na terceira figura da dialética do tempo musical106.

Excurso: Mahler e a reconstrução do Beethoven épico

Antes de expor o alcance crítico e construtivo do estilo tardio, cabe ressaltar o

papel que a tipologia intensivo/extensivo ocupa na análise que Adorno empreende na

monografia publicada sobre Mahler em 1960 (Mahler – uma fisionomia musical, GS

13). Nos fragmentos, Adorno já havia estabelecido uma ligação entre o extensivo em

Beethoven e toda obra sinfônica de Mahler: “Toda obra de Mahler é a tentativa de

responder à questão do tipo extensivo. A Pastoral é a que mais se aproxima de Mahler”

(Beethoven, §263). Uma breve digressão sobre o caso Mahler parece-nos aqui

imprescindível, pois ratifica o pressuposto de que Adorno não abandonou a tipologia

mesmo nos escritos tardios. Recordemos que, entre os caracteres e os “gestos” da

“fisionomia musical” de Mahler escrita em 1960, Adorno identificava um modo de

organização da duração das obras orquestrais, denominando-o sinfonismo épico. Na

conferência de comemoração ao centenário de Mahler de 1960, incluído em Quasi una

fantasia e publicado meses antes da monografia, Adorno prenunciava essa classificação:

“Se o ideal musical do classicismo vienense, no qual a totalidade desfrutava de uma primazia incontestável, liga-se ao ideal dramático, a totalidade da música de Mahler é épica, próxima do grande romance”

(QUF, GS 16, 328)

O gesto mahleriano de configuração extensiva da totalidade vincula-se, portanto,

à figura do grande romance, a epopeia moderna. Na monografia, Adorno defendia que o

sinfonismo épico já se encontrava “preparado por uma certa tradição musical, por uma

corrente quase narrativa” inaugurada pelas peças do tipo extensivo de Beethoven e 106 ADORNO, Beethoven, §220: “So ist die Theorie des extensiven Typus zu verstehen: als Kritik des klassischen Beethoven und als die Konfiguration, deren Kritik den letzten involviert.‘Ursprung des letzten Beethoven‘“

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

91

perpetuada por Schubert107. É digno de nota que Adorno exemplifique o gesto épico, na

monografia de Mahler, através do mesmo conjunto de obras do tipo extensivo,

conforme o longo fragmento citado acima – exatamente os 1os movimentos da 6a

sinfonia Pastoral, do Quarteto op. 59,1 , do Trio op. 97 e da última Sonata para

Violino, op. 96 (ver §219). Na descrição da “fisionomia musical” de Mahler, as obras

extensivas opõem-se aos “concentrados sinfônicos” produzidos pelo “sujeito ativo” do

tipo intensivo em Beethoven. O “sujeito ativo” corresponde ao sujeito da ideia trágico-

clássica, cuja decisão, enquanto ato da razão, exibe “verticalmente” sua essência e

suspende o tempo em um instante. Notemos que, em Schubert e Mahler, simplesmente

não haveria “sujeito ativo”:

(A concepção épica de Mahler) já se encontrava preparada por uma certa tradição musical, por uma corrente quase narrativa, que nele atinge o primeiro plano. No próprio Beethoven, ao lado dos concentrados sinfônicos (symphonischen Konzentraten) que virtualmente interrompem o tempo, encontramos obras cuja duração se tornam a de uma vida feliz (glücksvollen), ao mesmo tempo animada e calma. Entre as sinfonias, percebe-se isso claramente na Pastoral; entre os exemplos mais significativos, o primeiro movimento do Quarteto op. 59, 1. Esse tipo torna-se cada vez mais essencial no fim do período médio de Beethoven, como atesta o Trio em Si b maior, op. 97 e a última sonata para violino (op. 96). A confiança em uma plenitude extensiva e na possibilidade de descobrir passivamente a unidade na diversidade faz contrapeso à ideia trágico-clássica de uma música do sujeito ativo (handelndes Subjekt). Schubert, para quem essa concepção trágica já se enfraquece, é atraído pelo tipo épico de Beethoven”

(Mahler, GS 13, 214, grifos meus)

É na confrontação com o Beethoven do tipo extensivo que o sinfonismo de

Mahler adquire sentido para Adorno. No fundo, não chega a surpreender que Adorno

recupere, na monografia sobre Mahler, o mesmo referencial teórico do jovem Lukács –

sobretudo no capítulo 4 (“Romance”), no qual se investigam categorias romanescas e os

expedientes narrativos do sinfonismo épico –, uma vez que a tipologia dos fragmentos

já evidenciava a importância de A teoria do romance108. O sinfonismo mahleriano

107 Diga-se de passagem que Adorno tomava as obras de Schubert e Mahler como exemplos concretos do “corretivo austríaco” à pretensão de sistematicidade dedutiva e racionalista que sempre caracterizou tanto a filosofia quanto a música alemãs (Mahler, GS 13, cap. 4 –‘Roman’, passim) 108 “A constelação que se desenha entre romance, épico, totalidade não tem nada de anódino pois sinaliza o campo filosófico ao qual Adorno se vincula, neste caso A teoria do romance, de Lukács” (BOISSIÈRE,

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

92

articula-se à categoria de romanesco, epopeia do mundo moderno segundo a

caracterização de Lukács. Da abordagem romanesca de Mahler, divergente do programa

expressionista posterior (de um “Eu” que sintetizaria as vivências do choque da

modernidade), emerge um estilo quase documental, registro da vida interna do material

temático. O estilo épico questionava a identidade estável, reificada, dos temas (ver no

último capítulo da Parte II da tese a análise da categoria mahleriana de variante). Para

Adorno, os temas nas sinfonias de Mahler

“não são mais indiferentes ao devir musical. Assim como os personagens do romance não são indiferentes ao tempo no qual evoluem, os temas obedecem a impulsos, tornam-se outros, se retraem, se expandem, envelhecem, modificando profundamente um elemento outrora (durante o classicismo) fixo”

(Mahler, GS 13, 222-3)

Portanto, o problema da organização extensiva da duração no plano da grande

forma, problema que está na gênese das “intenções configuradoras” do romance,

fundamentaria igualmente o sinfonismo de Mahler. Mesmo os Lieder sinfônicos

estariam permeados por um “lirismo épico”, segundo Adorno. Essa modalidade

narrativa não implica, entretanto, retorno ao pré-individual, mas sim o deslocamento

permanente das convenções do material que se viabiliza graças a certo distanciamento,

“como um estrangeiro que fala perfeitamente a língua da música, mas com sotaque

forte” (Mahler, GS 13, 181). No sinfonismo de Mahler, atuaria uma relação singular

com a duração, diferente da contração intensiva em Beethoven. A compactação do tipo

dramático é qualificada por Adorno com o neologismo trompe l’oreille para designar

certa “ilusão auditiva”:

“O sinfonismo épico concretiza o tempo mensurável físico em duração viva; para ele, a própria duração é a imago do sentido (...) o épico não engana mais o ouvinte com um trompe l’oreille sobre o tempo; o tempo não precisa mais fingir

La pensée musicale de Theodor W. Adorno, p. 25). Boissière, neste livro, descreve precisamente a relação das categorias de romance, narração e duração musical com o sinfonismo épico desenvolvida no cap. 4 da monografia sobre Mahler. Aqui, a experiência da “duração viva”, em sentido bergsoniano, surge como oposta à reificação da cultura objetiva. O livro analisa exaustivamente a confluência de Lukács, Benjamin, Bloch e Bergson para a formulação crítica da constelação conceitual adorniana sobre o tempo. Sob a perspectiva de tal confluência, Boissière defende a tese de que a oposição estruturante que organiza o pensamento musical de Adorno não seria aquela entre Schoenberg e Stravinsky, como se tornou conhecida através de FNM, mas sim uma antítese mais profunda entre Stravinsky e Mahler (Cf. Ibid., p. 21).

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

93

ser o instante (Augenblick) que ele não é (...) a duração é totalmente composta (auskomponiert)”

(Mahler, GS 13, 222)

A temporalidade em Mahler reencontraria então a “duração viva”, em nítida

referência ao tempo bergsoniano. Embora não confronte o tempo empírico, ou seja,

embora não conheça um “sentido enfático de tempo”109, o que inibe a emergência do

kairós, a obra de Mahler não cede à repetição mítica, à estaticidade que Adorno atribui,

por exemplo, a Stravinsky. O sinfonismo épico é, acima de tudo, anti-mitológico, em

função de sua dialética com o dramático (lembremos que o romance, para Lukács,

incorpora expedientes dramáticos, de maneira episódica e mediada, pois a totalidade da

vida não é mais dada como na epopeia clássica e precisa ser construída). Esse traço

decisivo separa o épico em Mahler, em sua recusa aos procedimentos de espacialização

e justaposição, do épico em Wagner e na dramaturgia de Brecht, como veremos no

capítulo a seguir. Se ainda coexistem intensivo e extensivo em Beethoven (e sua

superação dialética no estilo tardio), com Mahler “a música pela primeira vez torna-se

consciente de sua divergência radical com a tragédia” (GS 13, 271). Isso porque a

contração intensiva não é mais possível para Mahler: “a categoria do trágico não é

compatível com ideal épico da música aberta no tempo” (Mahler, GS 13, 250). A

formalização clássico-dramática nos primórdios do século 20 carece de autenticidade

histórica, de Verbindlichkeit (GS 13, 211). Se a tradição do sinfônico, inaugurada por

Haydn, simplesmente perde seu conteúdo social vinculante e se converte em pura

convenção, é porque obedece à “lógica da desintegração” imanente que preside a

evolução da Aufklärung musical. Assim, apenas um tipo de sinfonismo, baseado na

formalização épica, seria uma configuração possível, o que exime a obra de Mahler do

anátema da estaticidade mítica e do inautêntico110.

109 Adorno considera que o segundo movimento da Quinta sinfonia, por exemplo, abandonava toda prerrogativa teleológica da forma, não conhecendo mais história nem tempo “enfático”, apesar de sua dinâmica e plasticidade: “Der Satz kennt, bei aller Dynamik, aller Plastik im Einzelnen, keine Geschichte, kein Wohin, eigentlich keine emphatische Zeit.”(Mahler, GS 13, 159) 110 Essa impossibilidade funcional da sinfonia dramática no interior da sociedade administrada transparece, por exemplo, em O esquema da cultura de massas, na crítica a românticos tardios como Tchaikovsky e Dvorak que transformaram a forma sinfônica em uma fachada de pot-pourri de melodias em que nada acontece e que não mais tem a ver com a essência da sinfonia, com o trabalho motívico

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

94

Na monografia de 1960, portanto, Adorno afirma novamente que a configuração

da abdicação do tempo musical, materializada desta vez pelo tipo extensivo em Mahler,

adquire um estatuto progressivo e crítico, esse estatuto, por sua vez, nada tem de

evidente e foi duramente criticado por Dahlhaus como “decisionismo” e “dogmatismo

precário”, uma crítica que detalharemos no capítulo 2. O excurso sobre Mahler nos

mostra que – mesmo em 1960 – aquela negação dialética do tipo sinfônico intensivo,

efetuada tanto pelo Beethoven extensivo quanto por Mahler, refere-se a apenas o

segundo momento de negação presente no conceito de tempo musical. Pois haveria

ainda um terceiro momento: o estilo tardio revela-se, com efeito, a consumação crítica

do conceito.

1.3 Estilo tardio

O estilo tardio advém de uma “relação complexa” entre os tipos intensivo e

extensivo (cf. §219 acima). Como consequência do extensivo, é marcado pela ausência

de mediação e pelo processo de desintegração (Zerfallprozess), mas também é marcado

pelo esforço em se obter unidade, típico do intensivo, a partir dessa mesma

fragmentação. A ideia de tentar articular a sinfonia integral (plenamente depurada no

período médio) e a sinfonia épica (que domina, na periodização adorniana, não apenas

as obras do extensivo mas, como vimos, “todo o período romântico” posterior a

Beethoven, incluindo Schubert e Mahler), tal ideia compõe o enigma do estilo tardio.

Na “colisão” dos tipos divergentes, o estilo tardio representa o último estágio de auto-

crítica do conceito de tempo musical:

“O contraste entre o tipo intensivo e extensivo é talvez a explicação para a famosa duplicidade das obras de Beethoven. Os primeiros movimentos da 5ª e da 6ª sinfonias estão entre os exemplos mais puros de cada tipo. O estilo tardio é

antifônico e o desenvolvimento: “Best-sellers sind Spätromantiker wie Tschaikowskij und Dvorak. Ihnen ist die symphonische Form bloße Fassade. Sie haben sie zum Potpourri von Melodien aufgeweicht, deren Zusammenhang unverbindlich bleibt. Ihr Schema erfüllt keinerlei Funktion mehr, währendvom dynamischen Wesen der Symphonie, antiphonischer Motivarbeit und Durchführung, nichts anderes übrig ist als Interludien lärmender Aufregung, die das Potpourri unangenehm unterbrechen, bis es dann weitergeht, als ob nichts geschehen wäre, als ob es von vorn anfinge. (O esquema da cultura de massas, GS 3, 311-2)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

95

a colisão entre esses dois tipos. Um pré-requisito para compreender o Beethoven tardio é portanto a consciência dessa divergência. Em outras palavras: o que Beethoven perdeu nas obras integrais, os primeiros movimentos da 3ª, 5ª, 9ª, Appassionata, a 7ª? Essa questão conduz ao limiar do segredo de Beethoven. Ela pergunta o que o idealismo deixou para trás no avanço triunfal do progresso”

(Beethoven, §263)

O fragmento é bastante claro: para iniciarmos uma compreensão do estilo tardio

(sem apelar a elementos biográficos, seja a surdez ou a velhice, irrelevantes sob o

aspecto evolutivo da técnica), devemos ter consciência da coexistência dos tipos

divergentes, intensivo e extensivo, no período médio do compositor. Ao se colocar

como crítica imanente do tipo extensivo, o estilo tardio não esconde certo acento

nostálgico e arcaizante; os estereótipos desse estilo guardam semelhança, diz Adorno,

com frases na linha do “meu avô costumava dizer que…” (§280). As obras do estilo

tardio revelariam a “dessensibilização” do material, uma tendência mais pronunciada à

dissociação, a inconsistências, cesuras e falhas estruturais que, no entanto, apontam para

a verdade histórica. Eliminando o superficial, vinculam-se a convenções, mas estas

aparecem libertadas de qualquer ornamentação, despojadas da “aparência” (Schein): a

convenção se apresenta sem estilização, sem aspirar à autenticidade. No conhecido

ensaio de 1937 sobre estilo tardio de Beethoven, Adorno afirmava que a força da

subjetividade tardia residia na paradoxal adesão a fórmulas convencionais que,

apresentadas como tais, como puras convenções, falam por si e se tornam

paradoxalmente expressão sem aparência.

No estilo tardio, do ponto de vista técnico, excedem os motivos banais, arpejos

“desajeitados” e melodias cuja falta de plasticidade causa espanto, em virtude do que

Beethoven já havia obtido anteriormente; a melodia da sonata op. 106 Hammerklavier,

por exemplo, “não contém pausas, contrastes rítmicos acentuados, sua base harmônica

permanece idêntica durante toda apresentação do tema. A melodia perde

imediaticidade” (§266). No plano vertical, constata-se o uso de harmonias modais,

acompanhamentos primitivos e insistentes. Quanto à textura, a característica

fundamental do estilo tardio consiste em certa tensão provocada pelo retorno da

polifonia após a consolidação da monodia. O Finale da sonata op.101, “protótipo do

estilo tardio” (§265), ilustra a reintrodução da fuga no interior da sonata; aqui, o uso de

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

96

procedimentos contrapontísticos provenientes do barroco – cânone e fuga – “colide”

com o esquema monódico e homofônico da sonata clássica, de modo que a identidade

do tema em fuga é então desfigurada ao sofrer eventuais mutações pelo procedimento

de variações. Tais variações não se apresentam, contudo, como obrigatórias, pois a

forma do estilo tardio incorpora a fuga como pura convenção, preservando

ocasionalmente a identidade temática. Na análise do Quarteto op. 132, Adorno oferece

uma interpretação prodigiosa da fusão entre polifonia e homofonia no interior do

trabalho temático no tipo intensivo, bem como de sua posterior dissociação e

fragmentação no estilo tardio, mediante a dissolução da aparência:

“O dito trabalho temático, que Beethoven estabeleceu (…), é via de regra uma segmentação e uma ruptura de algo unificado – uma melodia. Não é a genuína polifonia, mas a aparência desta polifonia dentro composição harmônica-homofônica. Para o Beethoven tardio, isso parece supérfluo (…) é a grande rebeldia da música contra o ornamental”

(Beethoven, §269, grifo meu)

Ou seja, o trabalho temático, como aparência da polifonia dentro do esquema da

sonata clássica, é simplesmente descartado no estilo tardio, porque a própria polifonia

como tal, a polifonia “genuína” da fuga, retorna como convenção. O estilo tardio

quebra, portanto, a fusão aparente da polifonia e da monodia subsumida no tipo

intensivo em sua composição homofônica e expõe essa ruptura em fragmentos,

polarizados em extremos. É nesse sentido que compreendemos a afirmação do

conhecido ensaio de 1937 de que o estilo tardio “ainda é processo; mas não mais como

desenvolvimento (Entwicklung), e sim como ignição (Zündung) entre os extremos, que,

da espontaneidade, não tolera mais um meio seguro ou harmonia” (Spätstil Beethovens,

GS 17, 16). Aquilo que, como aparência, apresentava-se de maneira ornamental e

elaborada é agora exposto de maneira abrupta e direta, como pura convenção

dissociada, e ela já não se integra à estrutura da obra. Adorno insiste no fato de que a

característica principal do estilo tardio não seria o uso da convenção em si, mas a

fricção que o retorno de convenções, como elementos estereotipados da fuga, provoca

ao se ajustarem no plano harmônico-homofônico, o que acaba enfraquecendo este

último:

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

97

“No Beethoven tardio, não é tanto a polifonia o que me parece tecnicamente decisivo; isso é mantido dentro dos limites e de modo algum forma o estilo inteiro, possuindo, em vez disso, um caráter episódico. É, realmente, a ruptura em extremos: entre polifonia e monodia. É uma dissociação do meio. Em outras palavras: é a perda do vigor da harmonia”

(Beethoven, §311)

Daí a contradição na experiência com as obras do estilo tardio: de superfície

simples, às vezes inexpressiva, distanciada, de um material não processado, elas são ao

mesmo tempo grandiosamente enigmáticas. Por fim, convém notar que nem todas as

obras tardias fazem parte do estilo tardio: para Adorno, o 1o movimento e o Scherzo da

9ª Sinfonia, com seu caráter afirmativo, não pertencem ao estilo tardio, mas são uma

reconstrução do período médio clássico. Compor a 9ª sinfonia provaria retroativamente

que “o estilo tardio de Beethoven é essencialmente crítico. Que Beethoven ainda era

‘capaz’ de compor como antes – não importa o quanto isso seja irrelevante para a

compreensão do estilo tardio – mostra sua intenção crítica” (§223). Em outras palavras,

ao escrever a 9ª Sinfonia, o compositor mostrava que ainda conseguia compor obras de

tipo intensivo. O “estranhamento” ocasionado pelas obras do estilo tardio revelaria sua

intencionalidade crítica. É com o estilo tardio que Beethoven teria realizado “a crítica da

identidade da identidade com a não-identidade”111, ou seja, a crítica imanente tanto do

tipo intensivo quanto do tipo extensivo a partir do percurso de sua própria obra. Na

tendência à fragmentação, o estilo tardio cria, a partir de sua pura força construtiva, um

senso de unidade de segunda ordem. Edward Said, em seu comentário sobre o estilo

tardio em Beethoven (e Adorno), sublinha o impulso de negatividade incessante:

“As obras tardias de Beethoven não se deixam apaziguar ou cooptar por uma síntese superior, não se conformam a nenhum esquema e não podem ser resolvidas ou conciliadas, uma vez que seu caráter não resolvido, sua fragmentaridade não sintetizada são constitutivos, sem nada de ornamental ou simbólico. As composições tardias de Beethoven lidam com a “totalidade perdida”, e é isso que as torna catastróficas.” 112

111 JARVIS, Adorno: a critical introduction, p. 131 112 SAID, Estilo tardio, p. 32–3

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

98

São catastróficas, mas, ao se expor como crítica da tonalidade na tonalidade, o

estilo tardio fornece um modelo único de crítica da ideologia. É nesse sentido que

podemos finalmente compreender a veemência da afirmação adorniana: “a música de

Beethoven é a filosofia de Hegel: é, porém, mais verdadeira do que esta” (Beethoven,

§29). Adorno refere-se aqui não ao tipo intensivo, em sua construção da totalidade pelo

particular, nem ao extensivo, mas ao estilo tardio, como modelo de crítica imanente, no

meio musical, da categoria de totalidade, do absoluto hegeliano. Em sua “fratura”, em

sua crítica da aparência da própria tonalidade, o estilo tardio denunciaria o caráter

ideológico de reconciliação entre universal e particular, proveniente do modelo liberal

clássico da sociedade burguesa no qual se inscreve113. Com o estilo tardio, a exigência

de totalidade tornou-se insuportável, restando no entanto uma reminiscência da síntese.

Nas paradas abruptas, na justaposição inesperada de convenções sem mediação

subjetiva, sobressai a renúncia à síntese subjetiva, que pareceria falsa, ideológica: a

Entwicklung se interrompe, os fragmentos não são reconciliados. No ensaio de 1959

sobre a Missa Solemnis, Adorno retoma a ideia: “A exigência pela verdade do último

Beethoven rejeita a aparência ilusória da unidade do subjetivo e do objetivo (...) Resulta

uma polarização. A unidade transcende para o fragmentário” (Verfremdetes Hauptwerk.

Zur Missa Solemnis, GS 17, 159). Tornando-se “mais verdadeiro do que a filosofia de

Hegel”, o estilo tardio revelaria então ser a negação determinada, no ato de renúncia

dessa aparência, a que primeiramente levou ao tipo extensivo: converte-se finalmente na

crítica da identidade da identidade com a não-identidade. Lembremos que, para Hegel,

as proposições “o todo é o verdadeiro” e “o verdadeiro é o todo” não são equivalentes;

“o todo é o verdadeiro”, somente porque o todo está subordinado ao conceito de

verdade, a razão existente, de modo que o absoluto corresponderia à “identidade da

identidade com a não-identidade”114. Para Adorno, todavia, a música de Beethoven é

mais verdadeira que a filosofia de Hegel, pois abre mão de um conceito positivo de

verdade, superando a síntese conceitual pela força estética de uma unidade dispensada

113 Cf. Dificuldades II – Para entender a nova música (1966), GS 17, 284: “Não é acidental que a tonalidade foi a linguagem musical da era burguesa. A harmonia do universal e do particular correspondia ao modelo liberal clássico da sociedade (…) Esse modelo nunca foi adequado à realidade, mas foi em larga medida ideologia” 114 Ver nota 10 citada acima (SCHEIBLE, Theodor W. Adorno, p. 62)

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

99

de juízos: o estilo tardio evidenciaria, afinal, que o todo é o não verdadeiro. Dito por

extenso: a própria dialética negativa.

*

Buscamos restituir, neste capítulo, os elementos de base e as consequências mais

evidentes da teoria dos tipos que orientam o tempo musical em Adorno. Embora se trate

de uma obra inacabada, defendemos que o esquema das duas modalidades divergentes

da relação em geral entre música e tempo perpetua-se nos escritos posteriores. A

hipótese fundamenta-se no modo com que Adorno evoca a mesma constelação –

Entwicklung, Augenblick, Langeweile – em contextos históricos distintos, repercutindo

a teoria dos tipos, ainda que com as modificações de ocasião. Acreditamos que até seus

últimos escritos – por exemplo, A forma da NM (1966) e mesmo em TE – Adorno via

na obra de Beethoven a essência dialética da música em suas modalidades de relação

com o tempo: tanto na formalização do kairós, quanto na formalização crítica de sua

renúncia. Mesmo que a teoria não se apresente explicitamente nos anos 50 e 60, seus

pressupostos continuam perceptíveis e atuantes na crítica à vanguarda. Reiteramos que,

a partir desse paradigma, a crítica adorniana ao tempo musical na modernidade

efetivamente se estabeleceu. Para Zimmermann, por exemplo,

“O que Adorno vê preparado já no Beethoven tardio, observa depois como a característica do moderno como um todo: o colapso da categoria de Entwicklung na música”115

O estilo tardio seria o índice estético da mesma lógica da “desintegração”

(Zerfall) que perpassaria os sistemas filosóficos, de modo que grosso modo o colapso da

categoria de Entwicklung corresponderia ao colapso das promessas idealistas da era

burguesa – mas, ao mesmo tempo, é no potencial construtivo dessa crítica que reside a

esperança utópica de reconciliação. Da análise imanente sobre Beethoven resulta que,

seja no intensivo, seja no extensivo ou tardio, a passagem do tempo deve ser articulada,

“configurada”; essa constatação, trivial à primeira vista, prescreve todavia uma série de

pressupostos e polêmicas que analisaremos a seguir. Até aqui, pretendemos demonstrar

115 ZIMMERMANN, Der ästhetische Augenblick Theodor W. Adornos Theorie der Zeitstruktur von Kunst und ästhetischer Erfahrung, Frankfurt am Main: P. Lang, 1989, p. 93

Parte I – 1. Beethoven: paradigma do tempo musical

100

que a formulação clara de um conceito de tempo musical, embora insinuada na crítica à

estaticidade da Neue Sachlichkeit116 nos anos 1920, estabelece-se com efeito nos

fragmentos sobre “a filosofia da música”, que datam do mesmo ano de publicação de

Zweite Nachtmusik, 1937, e se estendem até praticamente o final da produção

adorniana. Acreditamos que a teoria dos tipos nos ajuda a esclarecer os conceitos que

descreveremos no capítulo 2, os conceitos de “espacialização” e “pseudomorfose” na

crítica a Stravinsky, bem como as relações entre os meios “temporais” e “espaciais” na

música e na pintura. Mas lança luz, igualmente, sobre tópicos fundamentais dos ensaios

sobre a vanguarda musical dos anos 1950, tema da parte II da tese.

116 Cf. ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, cap. 7 – Hindemith

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

101

2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

O conceito adorniano de espacialização, que sugere a ideia do reversão do

esclarecimento ao mito na música moderna, aparece pela primeira vez no Ensaio sobre

Wagner, redigido entre 1937 e 1938 (posteriormente revisado e publicado em 1952). Ao

empreender a análise do “gesto composicional” de Wagner, Adorno modula a tipologia

da Entwicklung, proveniente dos fragmentos sobre Beethoven, para a caracterização da

temporalidade nos “dramas musicais”. Como sustentamos no capítulo anterior, essa

tipologia decifra a motivação da crítica adorniana à espacialização e à pseudomorfose,

seja na música moderna, seja na vanguarda do anos 1950. Apesar da observação do

autor de que o Ensaio sobre Wagner adotaria a perspectiva “micrológica” de análise,

“sem fundamentação geral”, “colada nos detalhes”117, a tipologia participa

substancialmente da análise. Ao longo do Ensaio, Adorno mobiliza expressões como

“confrontar o tempo” (die Zeit bewältigen), “princípio de desenvolvimento”

(Entwicklungsprinzip) para qualificar precisamente o tipo sinfônico, baseado na

emergência construtiva do conflito, com o mesmo sentido daquele exposto nos

fragmentos. Na monografia, Adorno aprofunda o tópos da “repetição” (Wiederholung) e

da reversão em mito, fundamental para a discussão sobre a dissociação do tempo e o

retorno do “sempre igual” em Stravinsky: “Assim como Wagner, Stravinsky é para

Adorno representante do sempre igual burguês”118. Na medida em que Wagner seria a

“primeira vítima” da crítica adorniana à recusa moderna do tempo musical119, isto é, à

recusa do tipo sinfônico, analisaremos tópicos do Ensaio – redigido, vale lembrar, antes

de DE e de FNM – que se articulam aos textos posteriores sobre Stravinsky.

117 “O método de meu livro é micrológico. Não há nenhuma fundamentação geral, nenhuma análise global das obras; não há resultados e conclusões, senão que a construção se estabelece em conjunto com a consideração do singular e toma forma a partir da interpretação colada de detalhes e traços minuciosos, que devem convergir no conhecimento do todo” (Selbstanzeige des Essaybuches »Versuch über Wagner«, GS 13, 505, apud WAIZBORT, Aufklärung musical - Consideração sobre a sociologia da arte de Th. W. Adorno na “Philosophie der neuen Musik”, p. 11) 118 POWELL, Der andere Hörplatz: Die Zeitlichkeit zwischen Subjekt und Ich - Adorno und Strawinsky. In: KLEIN, Richard; ETTE, Wolfram; KIEM, Eckehard (Orgs.), Musik in der Zeit, Zeit in der Musik, Weilerswist: Velbrück, 2000, p. 337: Ähnlich wie Wagner wird Strawinsky für Adorno zum Repräsentanten des bürgerlichen Immergleichen“ 119 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 67

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

102

2.1 Os gestos de Wagner: “aqui o tempo vira espaço”

Para Adorno, os “gestos” expressivos em Wagner expõem os elementos de uma

“metafísica da pura presença” que simplesmente “anula o tempo musical”. Cabe

examinarmos o conceito de gesto que Adorno propõe nesta monografia, cujo sentido se

preserva, por exemplo, na descrição “fisionômica” dos gestos expressivos de Mahler.

Basicamente, os gestos referem-se à expressão sublimada e interiorizada na música

ocidental que, embora espiritualizada na história, sempre conserva seu referente

mimético (Wagner, GS 13, 32). O princípio de construção, polo dialético oposto ao do

gesto, submeteria, por sua vez, o fluxo do conteúdo expressivo a uma síntese lógica. A

autêntica expressão resultaria, portanto, do desenvolvimento e da recontextualização de

materiais sedimentados que, uma vez sublimados e objetivados, passam a constituir

novos gestos; assim, resume Adorno, a música ocidental nada mais é do que uma

“linguagem sedimentada de gestos”120, marcada pela tensão permanente entre

construção e impulso mimético. Retomando o tópico do ensaio Zweite Nachtmusik,

Adorno afirma que, com a antifonia motívica vienense, o conteúdo expressivo

estabeleceria, pela primeira vez, a transformação de gestos sedimentados em “princípio

de desenvolvimento espiritualizado” (geistigen Entwicklungsprinzip) (GS 13, 34).

Podemos dizer que tal “linguagem sedimentada de gestos” corresponde ao conceito de

material musical, que Adorno desenvolverá extensamente em Filosofia da nova música.

Embora Wagner tenha intensificado o processo construtivo de racionalização –

em adventos técnicos, como cromatismo, modulação contínua, extensão das forças

orquestrais (a trompa wagneriana), integração peculiar entre música e texto – sua

música regride, para Adorno, quanto à formação de autênticos gestos expressivos.

Adorno constata uma “compulsão à repetição”121, que, segundo a fisionomia gestual da

120 Cf. Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 154: “Em música, o que está em jogo não são significados, mas gestos. Na medida em que musica é linguagem, ela é, como a notação na história musical, uma linguagem sedimentada de gestos” 121 Cf. PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 240

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

103

obra wagneriana, se localizaria em basicamente dois artifícios. Primeiramente, no

emprego do Leitmotiv, cujas figuras não passam pelo verdadeiro processo de variação

motívico-temática. Esse artifício, segundo Adorno, seria incapaz de assegurar o papel

estruturante que promete, ou seja, de recuperar do “senso” da forma musical após o

esgotamento expressivo da sonata. O Leitmotiv realizaria não mais do que a afirmação

do idêntico, previamente indiciado, reduzindo a construção motívica quase a uma

função mercadológica de auto-publicidade, servindo, inclusive, de protótipo dos

produtos da cultura de massas (Wagner, GS 13, 28-9). Algo não muito diferente,

poderíamos acrescentar, do que viria a ser a técnica do plugging na indústria do rádio.

Para Adorno, os motivos condutores não passam por um “desdobrar-se livre e

irrestrito”, por uma travessia (Durchführung) explorando o não-idêntico. Eles aparecem

e reaparecem em função da exigência da entrada cênica de determinado personagem ou

de determinada situação, prevista no libreto, não por uma exigência imanente do

conteúdo musical. A tautologia operada pelo Leitmotiv seria, por isso, profundamente

“anti-musical”. Pela repetição do elemento motívico, os gestos wagnerianos não se

ocupariam efetivamente com a construção temática122. Em segundo lugar, Adorno

constata um artifício de repetição no uso de “sequências” (Sequenze) que fornecem um

“esquema de relações abstratas simétricas” (Wagner, GS 13, 34), uma organização

“espacializada” da grande forma que mimetizaria a ordem reificada do tempo empírico-

social. O procedimento diverge da sequência sinfônica de Beethoven, herdada do

classicismo. Ao contrário desta, diz Adorno, a sequência wagneriana desliga-se do

referente espiritualizado e é “repetido, intensificado, porém não realmente

desenvolvido” (Wagner, GS 13, 34). Deseja tornar-se imutável. Na reafirmação de si, o

gesto musical wagneriano “resigna-se diante do tempo, que, no entanto, a música

conseguia vencer (bewältigte) com a sinfonia” (GS 13, 34). Em suma, a composição

wagneriana, baseada na repetição de gestos do Leitmotiv e das sequências,

“escapa da necessidade de criar o tempo musical; os gestos ordenam-se, por assim dizer, no espaço, em um sistema não-histórico-cronométrico, e se descolam do continuum temporal, que no entanto aparentemente constroem.”

(Ensaio sobre Wagner, GS 13, 35)

122 Cf. Wagner, GS 13, 39: „Wagner kennt eigentlich nur Motive und Großformen - keine Themen.“

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

104

Observemos a terminologia sobre o tempo musical, praticamente idêntica à que

será usada na crítica à Stravinsky: o tempo musical deve ser “criado”. A essa abdicação

do continuum temporal corresponderia, em Wagner, uma “estrutura temporal fixa”, que

impede a consolidação do passado e o consequente efeito prospectivo de futuro. Como

no ciclo de O Anel de Nibelungo, proclama-se que “nada aconteceu” (Wagner, GS 13,

38), ou ainda, como declara Gurnemanz no primeiro ato de Parsifal: “Aqui o tempo vira

espaço”123. Por meio da simultaneidade operada por aquilo que Adorno denomina

“sistema não-histórico-cronométrico”, constata-se então apenas um presente puro,

tautológico, retorno à Langeweile (GS 13, 35). A estaticidade “tediosa” confirma o

aspecto frágil da experiência temporal wagneriana; a saber, na estrutura mítica, passado,

presente e futuro colapsam e aparecem como camadas sincrônicas. Lembremos que,

segundo a teoria dos tipos, a questão do “preenchimento” atua como o critério de

distinção entre, por um lado, a formalização utópica da “essência dialética” da música

no intensivo e, por outro, a dissociação extensiva do tempo, configuração de sua

renúncia, no extensivo. O kairós atingido pela integração em Beethoven representava

justamente o triunfo sobre o tédio (Langeweile), a transformação do decurso temporal

teleológico em um Augenblick, dominação que mesmo o tipo extensivo preservaria

dialeticamente. Em Wagner, no entanto, “o compasso ao qual ele sujeita o tempo não

vem do conteúdo musical, mas da própria ordem reificada do tempo” (Wagner, GS 13,

31). Nessa ausência de desenvolvimento (Entwicklungslosigkeit) pura e simplesmente, o

caráter expressivo de onde emerge o impulso mimético degenera em mera imitação de

si mesmo; a expressão wagneriana dissimula a cisão entre o interno e o externo, sujeito

e objeto, em prol da adesão irrefletida à circularidade do tempo mítico e não-histórico;

com isso, diz Adorno, “o procedimento composicional torna-se agente da ideologia”

(Wagner, GS 13, 35). Dito de outro modo, essa imersão ideológica124 no reino de

123 Wagner, GS 13, 85: “Gurnemanz: Du sieh'st, mein Sohn, zum Raum wird hier die Zeit” 124 Martin Jay procura elucidar o fator ideológico da revogação temporal em Wagner: “a fuga da vida real, semelhante a um sonho, e a supressão voluntariosa das origens produtivas da música estavam especialmente evidentes na hostilidade de Wagner ao tempo histórico em favor da recorrência mítica. ‘A ausência de toda progressão harmônica real transforma-se em emblema fantasmagórico do tempo imobilizado’, apontou Adorno no Ensaio sobre Wagner. O dinamismo de um Beethoven é substituído pela temporalidade espacializada de uma cultura burguesa que já não segue uma direção ascendente. O gesto de Wagner é essencialmente imutável e atemporal” (JAY, As idéias de Adorno, p. 133). É importante ressaltar que se trata aqui do dinamismo de “um” Beethoven (ou seja, aquele do tipo intensivo), não de “todo” Beethoven.

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

105

invariância da natureza como “falsa eternidade” não se enquadraria nem ao tipo

intensivo nem ao extensivo, que pertencem à dialética do tempo. Para Adorno, Wagner

não configura dialeticamente a renúncia ao tempo, como no extensivo (de Schubert e

Mahler), simplesmente o “revoga”:

“Se Wagner não domina o tempo como Beethoven, também não o preenche como Schubert. Ele o revoga (revoziert). A eternidade da música wagneriana, como a do ciclo do Ring, é uma que proclama que nada aconteceu; estado de invariância (Invarianz) que desmente toda a história com o silêncio da natureza”

(Wagner, GS 13, 37-38)

Wagner justapõe eventos no meio vazio temporal que não formam uma síntese

qualitativa, seja ela de ordem intensiva ou extensiva; ao não “dominar” nem

“preencher” o tempo, a música cede à reificação do tempo vazio. Adorno comenta que a

repetição de estruturas pode envolver um ato de reflexão, quando se mostra, por

exemplo, ser a retrospecção ou o comentário de um evento anterior. Ocorre que a

repetição gestual motívica em Wagner deseja se passar por “reflexão de

desenvolvimento”, do mesmo modo que sua “modulação finge ser trabalho temático”

(Wagner, GS 13, 39). Já a repetição estrutural das sequências provoca, como vimos,

uma “organização espacializada da grande forma” e cria um “sistema não-histórico-

cronométrico”. Ela ocorre sobretudo em uma assimilação peculiar da forma Bar, a

forma germânica estrófica da lírica medieval, do Minnesang e do Meistersang. A forma

Bar consiste em duas seções: um Aufgesang (subdividido, por sua vez, em dois Stollen

ou pedes) e um Abgesang (ou “estrofe de saída”). Essa forma medieval origina um

esquema de tipo a-a-b, de divergência e contradição estrutural interna (Wagner, GS 13,

36). Nessa esquema, o Abgesang (b) revela-se então como um grande consequente,

síntese e liberação da energia dos dois Stollen (a-a) anteriores. Seguindo de perto a

análise de Alfred Lorenz, Adorno observa que o Abgesang nos dramas musicais de

Wagner (como em Tannhäuser e Die Meistersinger) sempre retorna ao ponto inicial do

Aufgesang, sem tensionamento ou contradição alguma. O gesto impõe, portanto, a

percepção circularizada dos eventos que ocorrem na seções, a repetição sem

contradições e, consequentemente, a espacialização do tempo. O uso funcional da

forma Bar em Wagner procurava, segundo Adorno, “o efeito de reduzir a nada as

contradições não-resolvidas” (Wagner, GS 13, 39) da forma estrófica original.

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

106

Por fim, a “melodia infinita” e a “modulação contínua” ou cromatismo seriam,

na visão de Adorno, procedimentos que se alinham ao processo de espacialização do

tempo. Assim, os finais provisórios dentro da melodia infinita revelariam sua falsidade,

seu “mau infinito”, pois

“são agenciadas por cadências interrompidas estereotipadas, como a resolução do acorde de sétima dominante na segunda inversão do acorde de dominante da dominante. Sua suposta infinitude é uma infinitude ruim (schlechte Unendlichkeit), invólucro da finitude. A melodia infinita ousa seguir adiante, apenas porque se sente perfeitamente segura dentro dos modelos sequenciais de cada seção, apenas porque sabe que ela nunca vai mudar”

(Wagner, GS 13, 54)

Afirmando-se como permanente fluxo e transição, abdicando da posição de um

idêntico a ser tensionado e desenvolvido, a “melodia infinita” e o cromatismo não

articulam verdadeiras relações temporais; como Adorno havia descrito em relação à

forma fantasia nos fragmentos sobre Beethoven, “a novidade incessante revoga a

progressão, a experiência, o novo”125. É assim que o desdobramento da melodia infinita

seria inautêntico: embora se anuncie como novidade, a experiência resultante é de que

paradoxalmente nada de novo ocorre e de que não há efetivamente contradições a serem

resolvidas: “sua música age como se o tempo não tivesse fim, mas o efeito é

simplesmente negar as horas que o preenchem, voltando ao ponto inicial” (Wagner, GS

13, 40). Invertem-se aqui o dinâmico e o estático: o que usualmente se define como

dinâmico, estado de perpétuo devir torna-se estático. Ao frustrar tanto a construção

temática quanto a verdadeira polifonia (a construção de vozes autônomas e

contrastantes, que não seriam somente derivações de uma progressão de acordes), a

técnica wagneriana cederia, assim, à “infinitude ruim”, à ilusão de infinito. A melodia

infinita, por se limitar à justaposição de modelos motívicos curtos, não cumpre sua

promessa de infinitude. Em outro capítulo da monografia, Adorno traça um paralelo

entre essa atomização do material, provocada pela melodia infinita e pelo cromatismo, e

125 Beethoven, §165: “Não há núcleo idêntico a ser desenvolvido. Sem tal identidade, porém, não há não-identidade e, portanto, não há tempo musical”. Cf. seção do Cap. 1 acima A “antifonia motívica” e o conceito de Entwicklung

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

107

a técnica impressionista. E supõe que tal proximidade comprovaria a unidade das forças

produtivas musicais da época:

“Wagner era um impressionista malgré lui, como era de se esperar do estado atrasado das forças produtivas humanas e técnicas e portanto também da doutrina estética no qual se encontrava a Alemanha em meados do século 19”

(Wagner, GS 13, 48)

No Ensaio sobre Wagner, inicia-se, em resumo, a descrição mas detida sobre o

sentidos do processo de espacialização e a compulsão à repetição do “sempre igual”:

seja pelo artifício do Leitmotiv, pela assimilação da forma Bar em “sistema não-

histórico-cronométrico”, seja pela ausência de desenvolvimento temático na melodia

infinita. Mas nessa monografia também se prefigura o conceito de pseudomorfose da

música em pintura, fundamental para a crítica a Stravinsky, cuja origem Adorno

associava à técnica impressionista. Vale observar que não seria nosso propósito avaliar

a pertinência das considerações controversas de Adorno sobre Wagner presentes nesta

monografia, algumas das quais teriam sido questionadas pelo próprio autor no artigo de

1963, A atualidade de Wagner (GS 16); apenas pretendemos mostrar aqui que a

temática da repetição, vinculada aos conceitos de espacialização e pseudomorfose,

estava em curso no pensamento de Adorno quando a monografia foi redigida, em 1938,

muito antes da escrita de FNM. Antes de examinarmos com maior atenção de que

maneira esses conceitos atuam na crítica a Stravinsky, convém expor os impasses da

formalização do tempo musical tal como Adorno descreveu em FNM. Para tanto,

optamos por organizar essa exposição pela análise da categoria materialista de

“choque”, uma categoria que, sob o aspecto técnico, surgiria com a desintegração do

sistema tonal no final do século 19.

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

108

2.2 Choque e dissociação do tempo em FNM

Assim como as imagens que descrevem a cristalização dialética da passagem do

tempo (kairós, Augenblick, Apparition), Adorno parece tomar diretamente de Benjamin

o conceito materialista de choque utilizado em FNM. Ao refletir sobre as

particularidades do cotidiano na vida moderna registrados pela lírica de Baudelaire,

Benjamin estabelecia a distinção entre experiência e vivência; ou seja, entre, por um

lado, Erfahrung –“matéria da tradição” na qual, grosso modo, o registro de um

acontecimento passaria pela intervenção reflexiva da memória, do passado tanto

individual quanto coletivo; e que também corresponde ao sentido kantiano de

experiência refletida da unidade da percepção126 – e, por outro, Erlebnis, a pura

impressão de efeitos imediatos. Para o autor de Sobre alguns temas em Baudelaire

(1939), a alteração da estrutura da experiência e consequentemente da percepção

subjetiva do tempo, dissociada por uma sequência de vivências no cotidiano na

metrópole, é o fundamento que caracteriza a própria modernidade. Nesse sentido, a

escrita “sismográfica” de Baudelaire manifestava uma absorção refletida do choque, por

meio da observação detida da multidão amorfa dos passantes na grande cidade, do

trabalho mecânico do operário na “época da industrialização em grande escala”, ou

mesmo dos gestos pré-formados do “indivíduo ocioso” nos jogos de azar127. Tais atos

pré-estabelecidos de reação automática e repetitiva bloqueiam a constituição de

autênticas experiências. Esse colapso provocado pela modernidade refletia-se

igualmente no estilo linguístico e na disposição dos artigos nos jornais, de modo que as

informações e os eventos descritos não mais se integravam à Erfahrung do leitor, ao

contrário da “antiga forma de comunicação” da narração. É assim que a escrita de

Baudelaire, em um momento histórico no qual a lírica já havia perdido seu sentido,

assimila os choques das vivências modernas, convertendo-as em “experiência poética”

(dichtung Erfahrung). Benjamin identificava em Baudelaire a “desintegração da aura na

vivência do choque (Schockerlebnis)”, desintegração esta que se tornou o preço

126 Cf. BUCK-MORSS, The origin of negative dialectics, p. 160 127 Cf. BENJAMIN, Obras Escolhidas - Vol. III - Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo, São Paulo: Brasiliense, 1989, parag. IX: “À vivência do choque, sentida pelo transeunte na multidão, corresponde a vivência do operário com a máquina” (p. 126)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

109

necessário para “adquirir a sensação do moderno”128. A constituição de Erfahrung

pressupõe, portanto, o empenho interpretativo, uma reflexão conceitual dinâmica no

interior da qual a Erlebnis seria apenas um momento. A concepção benjaminiana do par

Erfahrung/Erlebnis tomada por Adorno – cujos significados, diga-se de passagem, são

invertidos em relação àqueles propostos por Husserl129 – comparece claramente em TE:

“A experiência plena, desembocando no juízo sobre a obra desprovida de juízo, exige a decisão a seu respeito e, por conseguinte, o conceito. A vivência é apenas um momento de tal experiência e um momento falível, com a qualidade da persuasão” (TE, p. 368-9; GS 7, 364)

Já na correspondência com Benjamin em 1940, Adorno indicava a proximidade

da análise do choque empreendida por Benjamin no ensaio sobre Baudelaire com suas

próprias concepções de experiência, vivência e reificação na percepção musical:

“A teoria do esquecimento e do choque possui estreita relação com alguns dos meus escritos musicais, entre outras a que se refere à percepção dos ‘hits’ musicais (die Perzeption der Schlager) (…) Não seria o caso de articular a oposição entre experiência e vivência com uma teoria dialética do esquecimento? Poderíamos também dizer: com uma teoria da reificação? Pois toda reificação é um esquecimento”130

Tais reflexões integram-se a FNM (1949), no qual Adorno recorre à teoria do

choque de Benjamin para descrever a percepção mutilada e mecanizada na

modernidade: “mediante os choques, o indivíduo percebe de imediato sua nulidade

frente à máquina enorme do sistema total” (FNM, GS 12, 144). Assim como para a

teoria de Benjamin, os choques, para Adorno, corresponderiam aos sinais de um mundo

que opõem forças produtivas (dominação da natureza) e relações de produção

(dominação social), e que se refletem materialmente na música à maneira de

128 BENJAMIN, op. cit., p. 145. Ver também p. 111: “Assim, Baudelaire inseriu a vivência (Erlebnis) do choque no âmago do seu trabalho artístico” 129 PADDISON, Performance, Reification, and Score: The Dialectics of Spatialization and Temporality in the Experience of Music. In: Musicae Scientiae, v. 8, n. 1 suppl, p. 157–179, 2004, p. 162: “Adorno's use of these concepts is an inversion of Husserl's original proposal, to be found in his Ideen an einer reinen Phanomenologie und phanomenologischen Philosophie (1913). For Husserl, Erfahrung is what he associates with "empirical experience", while Erlebnis is transcendental, and is associated with the stream of consciousness as time consciousness” 130 Carta de 29 de fevereiro de 1940 in ADORNO; BENJAMIN, Theodor W. Adorno - Walter Benjamin: Briefwechsel 1928 - 1940, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995, p. 416–7

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

110

sismogramas, reações da consciência no presente131. Considerando que FNM foi

concebida como excurso à DE, não estranharemos o paralelismo entre o conceito de

choque e o do atrofiamento da capacidade de construção de experiência subjetiva

(Erfahrung), ocasionada pela progressiva divisão social do trabalho na modernidade.

Tal como descrito no livro publicado com Horkheimer,

“Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências (Erlebnisse) de que ele é capaz”

(Adorno e Horkheimer, DE, p. 47)

É importante ressaltar este aspecto da concepção adorniana de choque na música

moderna: o choque está no “fundamento de toda música nova”, coincidindo com o “fim

da experiência do tempo musical” e com as tendências de aniquilação da consciência

subjetiva na modernidade. Ou seja, não apenas as peças da fase “primitivista” e da fase

neoclássica de Stravinsky, mas também as peças da atonalidade livre e da posterior fase

dodecafônica de Schoenberg manifestariam a situação do indivíduo impotente diante

das forças da civilização em seu estágio técnico-industrial avançado132. As duas

tendências antinômicas da modernidade musical – simbolizadas por Schoenberg e

Stravinsky133 – confirmariam, portanto, o enfraquecimento da tensão entre sujeito e

objeto na música, tensão implícita pelo menos desde o advento da tonalidade. Para

Adorno, o caráter dialético do material da tonalidade condicionava essa tensão: por um

lado, o material corresponde ao repositório dos esquemas formais e de modelos

consolidados (o “espírito sedimentado” da tradição, “linguagem sedimentada de

gestos” que projeta seu conteúdo social e objetivo); por outro lado, converte-se em

obstáculo à autenticidade expressiva do compositor. Nesse sentido, podemos

131 Cf. JIMENEZ, Theodor W. Adorno: art, idéologie et théorie de l’art, Paris: Union générale d’éditions, 1973, p. 161; 175 132 Cf. JAY, As idéias de Adorno, p. 121: “na música, representa-se a sociedade como um todo, não simplesmente como consciência de grupo específico social”; cf. tb. PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 135: “Como a sociedade ‘aparece’ na música? O princípio de racionalidade que move o espírito objetivo da música não é senão o desdobramento da racionalidade social, extra-artística. Isso contraria a concepção segundo a qual a arte seria o que ‘escapa’ da racionalidade.” 133 De fato, Adorno não foi o primeiro a estabelecer a oposição Schoenberg-Stravinsky; em 1923, Schloesser deixava claro esse antagonismo, que se tornou frequente no debate musical dos anos 20 e 30. Cf. ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 211

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

111

compreender em que medida “a confrontação do compositor com material é também

confrontação com a sociedade”134.

Ao se afastar da organicidade do sistema tonal, a música moderna seria marcada

por cesuras temporais que indicariam, na visão de Adorno, as intromissões das

vivências do choque da vida moderna. É importante sublinhar novamente que o

fenômeno da dissociação do tempo musical ocorreria nas duas vias do modernismo (e

não somente no caso de Stravinsky, na qual prevalece um modo “rítmico-espacial” e

regressivo de escuta). Ao contrário do que sugerem os títulos que compõem Filosofia

da nova música (“Schoenberg e o progresso” e “Stravinsky e a restauração”), o processo

de dissociação do tempo manifesta-se também no expressionismo de Schoenberg:

“A lei da harmonia complementar [de Schoenberg] implica o fim da experiência do tempo musical (…) Ela indica, com maior insistência do que outros sintomas, esse estado de a-historicidade musical” (PNM, p. 91)

“A miniatura expressionista da escola de Viena contrai a dimensão temporal, exprimindo um ‘romance inteiro por um único gesto’, enquanto que, nas mais poderosas construções dodecafônicas, o tempo se interrompe graças a um procedimento integral, desligado de qualquer ideia de desenvolvimento, pois nada que poderia se apresentar como desenvolvimento fora desse procedimento é tolerado” (PNM, p. 199)

Desse modo, juntamente com a supressão da narratividade do discurso musical

em decorrência dos vestígios da crise do sistema tonal, a reificação do tempo

simbolizaria a introjeção do choque em seus extremos dialéticos:

“O perecimento do tempo subjetivo na música, no meio de uma humanidade que faz dela mesma uma coisa, um objeto de sua própria organização, aparece como tão inevitável que se pode observar nos polos opostos da composição [Schoenberg e Stravinsky] um fenômeno similar”

(PNM, 198, grifo meu)

Como vimos na introdução, a reflexão materialista de Adorno se orienta pela

premissa segundo a qual “o tempo que é imanente em cada música, sua historicidade

interna, é realmente tempo histórico real, refletido como aparência” (GS 18, 160). Desse 134 PNM, p. 45. Como vimos, a tensão entre sujeito e objeto na história da música encontraria na liberdade subjetiva e no rigor formal de Beethoven sua máxima enunciação

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

112

modo, em função do declínio da Erfahrung na modernidade, torna-se visível um

fenômeno similar nos polos divergentes da música. Adorno apresenta, contudo, uma

diferença substantiva no que se refere à elaboração composicional do choque. Ela reside

em processos técnicos distintos com que Schoenberg e Stravinsky exteriorizam as

sequências do choque e, portanto, no alcance crítico que tais sequências adquirem no

interior da forma musical: “tudo depende de como a música lida com as vivências do

choque”135. Adorno pretende desvelar as formalizações do choque por meio de uma

análise concreta da dimensão rítmica, das variações de dinâmica, da progressão

harmônica, da textura de obras. Esses elementos são compreendidos sob a categoria de

“sujeito musical”, na qual sua teoria material das formas se fundamenta.

Erwartung: preparação para a angústia

Para Adorno, no monodrama Erwartung (1909) de Schoenberg, a música

“defende-se contra as vivências do choque (Schockerlebnissen) ao representá-las (sie

darstellt)” (FNM, GS 12, 145). A fim de qualificar essa defesa contra o choque em

Schoenberg, Adorno usa o termo “preparação/disposição para angústia”

(Angstbereitschaft), termo que é descrito por Freud em Além do princípio de prazer136.

Aqui a referência a Benjamin pode ser nitidamente percebida, em particular, a

referência à seção III do ensaio sobre Baudelaire; comentando Freud, Benjamin

afirmava que “quanto mais corrente se tornar o registro dos choques no consciente,

135 FNM, GS 12, 145: „Der Begriff des Schocks fällt in die Einheit der Epoche. [...] Durch die Schocks wird der Einzelne seiner Nichtigkeit gegenüber der Riesenmaschine des ganzen Systems unmittelbar inne. Sie haben seit dem neunzehnten Jahrhundert ihre Spuren in den Kunstwerken hinterlassen […] Aber alles hängt davon ab, wie Musik mit Schockerlebnissen umgeht. Beim mittleren Schönberg setzt sie sich gegen diese zur Wehr, indem sie sie darstellt. „ (grifo meu) 136 FREUD, Além do princípio de prazer. In: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 195: “(…) a preparação para a angústia, com o sobreinvestimento dos sistemas receptores, representa a última linha da barreira contra estímulos”. Segundo Marcio Seligman-Silva, a Angstbereitschaft corresponde à “angústia que tem valor positivo de nos preparar para o desconhecido (…) um sinal na situação de perigo” (ver SELIGMANN-SILVA, O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, São Paulo: Editora 34, 2005, p. 66). Ou ainda BENJAMIN, idem, p. 109: “A teoria psicanalítica procura entender a natureza do choque traumático a partir do rompimento da proteção contra estímulo. Segundo essa teoria, o sobressalto tem ‘seu significado’ na ‘falta de preparação para a angústia’”

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

113

tanto menos se deverá esperar deles um efeito traumático”137. Também para Adorno, a

consciência do sujeito musical em Erwartung resiste aos choques, em função de sua

Angstbereitschaft, ao fornecer a eles uma representação refletida, um registro

expressivo único; consegue, em resumo, “transformá-los heroicamente (heroisch) em

elementos de sua própria linguagem” (FNM, GS 12, 145; PNM, 163). O sujeito

empenha-se aqui na luta contra sua desagregação e permanece protegido durante a

travessia dos choques, na medida em que “o registro sismográfico dos choques

traumatizantes torna-se a lei técnica da forma musical, lei que impede toda

continuidade” (PNM, 53). Portanto, a transcrição rigorosa e autêntica da angústia no

expressionismo, decorrente das vivências do choque, amplia a linguagem musical e

constitui a substância de toda obra de arte fragmentária – diferente de mecânica,

conforme a classificação que veremos a seguir138.

Em Erwartung, com efeito, o andamento da peça altera-se de acordo com as

manifestações pulsionais da personagem. Seu longo recitativo atemático, sem repetição

ou pausa, resultante da extrapolação do princípio da variação em desenvolvimento,

abandona centros tonais estáveis. Ao mesmo tempo, a falta de recorrência temática

aliada ao rigor da construção polifônica encaminha um conceito renovado de expressão.

Sob essa perspectiva, Dahlhaus argumenta que a poética de Erwartung fundamenta-se

no tratamento singular do canto com a polifonia orquestral, modificando o princípio

expressivo cujo senso formal é definido por Adorno como “ausência de continuidade”.

Tal modificação do princípio expressivo ocorre na medida em que se caracteriza a

expressão em função da complexidade da textura polifônica:

“Do ponto de vista técnico, expressão pode ser entendida como uma função de polifonia, pois quanto mais eloquente for uma voz contrapontística, mais enfaticamente ela se imprime na consciência do ouvinte como discurso contrapontístico. O expressivo é meio de clarificação e não ofuscamento”139

137 BENJAMIN, Obras Escolhidas - Vol. III - Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo, p. 109 (grifo meu) 138 Conforme Almeida, “a exposição da angústia é um ponto central” da prática compositiva do expressionismo. Cf. ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 75 139 DAHLHAUS, Expressive principle and orchestral polyphony in Schoenberg’s Erwartung. In: Schoenberg and the New Music: Essays by Carl Dahlhaus, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 151

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

114

O recitativo acompagnato que caracteriza o monodrama, uma “declamação

musical acompanhada de motivos orquestrais descritivos”, resulta em uma textura ao

mesmo tempo atemática (tal como um recitativo) mas também polifônica no sentido

camerístico; um denso trabalho de contraponto, com nítida diferenciação de vozes (linha

vocal, voz instrumental principal, voz instrumental secundária e acompanhamento),

preserva uma relevância hierárquica das vozes no discurso musical (o que remete

diretamente à técnica contrapontística de Bach). Dahlhaus também demonstra ainda que

a recorrência de uma figura motívica de base, composta por três notas (ré bemol – dó –

lá), contribui de maneira decisiva para a coerência estrutural da peça140.

Para Adorno, tais procedimentos forjam uma expressividade que se apresenta

como “protocolo”, “registro” de expressão (Ausdrucksprotokoll)141. No expressionismo,

valoriza-se o “sentimento único criador da forma”, a busca da expressão pura em vez de

leis formais universais, esquemas impostos de cima para baixo142. Isso significa que se,

por um lado, a fragmentação impõe certa renúncia da percepção do caráter de aparência

(Scheincharakter) da obra, por outro, essa renúncia não implica o abandono do princípio

de construção formal, em última análise, de coerência orgânica entre sujeito e objeto.

No caso de Erwartung, a “segurança da forma revela-se meio de absorção dos

choques”143: os choques dinamizam a dialética entre construção e expressão. Vale

lembrar que, para Benjamin, o gesto poético de Baudelaire resultava da profunda

conscientização do estado corrente da lírica, o que legitimava a “missão” que o poeta

deveria realizar: uma luta reativa contra o choque, mediante seu registro e sua

cristalização na lírica: Flores do mal, “última grande obra da poesia lírica de influência

na Europa”, prolonga assim a experiência poética no trabalho subjetivo de representação

dos choques, fornecendo a partir daí uma expressão renovada. De modo semelhante à

elaboração formal do choque na lírica de Baudelaire, Schoenberg produz um modo de

140 DAHLHAUS, Ibid., p. 149–155, passim 141 E não mais como “expressiva” (Ausdrucksvoll). Cf. Adorno, PNM, p. 60 142 Almeida, op. cit., p. 34. A tendência “nominalista” do expressionismo aparece em diversas ocasiões no pensamento adorniano, como no ensaio Vers une musique informelle, de 1961, em que se preconiza um modo de composição capaz de abandonar esquemas externos, ou que pelo menos os confronta de maneira inflexível, a fim de constituir sua própria substância musical (cf. Vers une musique informelle, GS 16, 497) 143 GS 12, 37: “Die Sicherheit der Form erweist sich als Medium der Absorption von Schocks” (PNM, 42)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

115

representação musical da própria sequência de vivências fragmentárias na

modernidade. Como observa Benjamin, “o fato de o choque ser amortecido e aparado

pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência

(Erfahrung)”144. Em termos benjaminianos, poderíamos então dizer que o

expressionismo de Schoenberg fornece ativamente o peso de uma experiência

(Erfahrung) à natureza passiva das vivências (Erlebnissen) que definem a modernidade.

Com Schoenberg, “os choques do incompreensível, que a técnica artística difunde na

época de seu absurdo, se invertem: eles esclarecem um mundo privado de sentido”145.

Nessa medida, a forma expressionista, que se esgota no interior da própria obra, se

distancia radicalmente dos procedimentos de montagem.

Este ponto é determinante na compreensão da relação entre choque, experiência

e organicidade em Filosofia da nova música: a resistência estrutural do sujeito, presente

na atonalidade livre de Erwartung, permite concluir que “a música expressionista ainda

permanecia orgânica”146. Tal resistência não existiria no surrealismo: “expressionismo

e surrealismo divergem na atitude em relação ao orgânico”, propõe Adorno. Isso

significa que, embora o expressionismo proceda da irracionalidade da organização

social, a formalização fragmentária dessa irracionalidade ainda conserva um caráter

orgânico. Por outro lado, a irracionalidade do surrealismo, em sua “desagregação da

unidade fisiológica do corpo”, equivale à mímesis do anti-orgânico, liga-se a uma

“coisa morta” (Totes), no momento em que se deixa abandonar a um procedimento que

“suprime a fronteira entre o corpo e o mundo dos objetos, para convencer a sociedade

da coisificação do corpo. Sua forma é aquela da montagem, completamente estranha a

Schoenberg”147.

144 BENJAMIN, Obras Escolhidas - Vol. III - Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo, p. 110 145 PNM, p. 142 146 PNM, p. 61, nota 1 147 Idem, ibidem (grifo meu)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

116

Sagração: a absorção irrefletida dos choques

Adorno é categórico ao afirmar que, em Stravinsky, o sujeito musical não dispõe

de Angstbereitschaft, de um mecanismo consciente de resistência à sequência dos

choques. Ao contrário do expressionismo de Erwartung, na Sagração da primavera

(cujo programa sugere o colapso das forças individuais em nome da inexorabilidade de

interesses ritualistas da coletividade), o sujeito musical sucumbe aos choques por meio

de convulsões irrefletidas, sustos, sobressaltos que sancionam a falha da resistência ao

choque. A transcrição dos choques é imediata, não refletida, pois o “tipo humano” que

deriva da obra abstém-se de toda reflexão sobre si e admite que não pode elaborar o que

lhe transcende. Desse modo, na Sagração, ficaria celebrada, em vez de elaborada, a

liquidação do sujeito:

“O sujeito musical renuncia a se afirmar como sujeito, resignando-se em sofrer as convulsões; comporta-se como ferido, vitima de um acidente que não consegue absorver e que o repete constantemente nos sonhos”

(PNM, 163; FNM, GS 12,145)

Vale a pena enfatizar uma importante nuança conceitual: aqui, sujeito e forma

musical não estão necessariamente atrelados. Em Stravinsky, o sujeito musical

identifica-se com a vítima, embora a forma musical se identifique objetivamente com a

instância destrutiva, com o agressor (PNM, 151). A forma adere aqui mimeticamente à

maquinaria objetiva e ao interesse da totalidade, recusa o elemento da expressão

subjetiva ao encenar uma “oferenda anti-humanista à coletividade” (PNM, 154). Mais

do que isso, Adorno observa nesse elemento compulsivo que emana da forma a

satisfação do sujeito com sua própria aniquilação (PNM, 166). Enquanto que, no polo

oposto, a forma musical em Schoenberg atua como Angstbereitschaft, como proteção

para os choques aos quais o sujeito é igualmente submetido. A linguagem expressionista

representaria, como vimos, uma proteção subjetiva de amortecimento dos choques; em

Schoenberg, portanto, o sujeito converte suas vivências em experiência (Erfahrung), por

meio do desenvolvimento consciente do material que tem como referente implícito a

tonalidade. Para descrever o estado “anímico” do sujeito em Stravinsky, incapaz de se

defender dos choques, são utilizadas categorias como “despersonalização”, “ausência de

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

117

intenção”, infantilismo, catatonia. Como no estado catatônico de pessoas marcadas por

um trauma, a desintegração do eu levaria à repetição de gestos e palavras que

desestabilizam a coerência do discurso. Na visão de Adorno, a renúncia à elaboração

formal em Stravinsky, reduzindo o trabalho do compositor à manipulação de resíduos

da tonalidade, impõe a renúncia à categoria de sujeito. A música de Stravinsky, torna-

se, nesse sentido, “objetivada”, estranha à consciência e alheia à história do “espírito”.

Poderíamos afirmar que, para Adorno, o gesto musical de Stravinsky fixa um conjunto

de “conceitos sem intuição”, no sentido daquele destemor que caracteriza o indivíduo

sem Angstbereitschaft, conforme o aforismo de Minima moralia:

“Quando o objeto da experiência vai além da proporção ao indivíduo este nem mesmo chega a percebê-lo, mas o registra imediatamente (unvermittelt) por meio do conceito sem intuição (durch den anschauungslosen Begriff), como algo externo e incomensurável, em relação ao qual ele se comporta tão friamente como o choque catastrófico faz com ele.”

(Minima moralia, §116,

trad. Gabriel Cohn, com alterações)

Tecnicamente, as convulsões e os sobressaltos que dissociam a experiência do

sujeito efetivam-se sobretudo no plano rítmico: ênfase nas síncopes e nas mudanças

assimétricas do compasso, pulsação recorrente em ostinato, repetição de motivos

isolados e rudimentares. O ritmo é, por assim dizer, hipostasiado como vetor

estruturante da composição, o que esvazia a elaboração do conteúdo propriamente

melódico e harmônico. Na medida em que a prática composicional de Stravinsky

converge para essa fetichização do ritmo, despreza-se aquilo que Adorno chama de

“organização total dos elementos” (Durchorganisation der Elemente). Ou seja, mesmo

o emprego da dissonância e a politonalidade resultariam de um pensamento orientado ao

fortalecimento da rítmica.

Esse estilo composicional fica bastante evidente, por exemplo, no 2º movimento

da Sagração, Augúrios primaveris, ao longo do qual um único acorde dissonante que,

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

118

segundo o próprio compositor, teria servido de inspiração para a peça como um todo148

– o acorde “augúrios” (consistindo na sobreposição de um acorde de mi bemol maior

com sétima dominante e a tríade de fá bemol maior; ver figura abaixo) – é repetido 280

vezes e se desliga de toda função harmônica149; ou ainda, no último movimento, Dança

sagrada – a eleita, em que o motivo mais perceptível é um fragmento rudimentar de

seis notas (três notas em cromatismo descendente repetidas duas vezes). A obra de

Stravinsky cultivaria então, para Adorno, certa apatia em relação àquela gramática de

recursos que poderiam fornecer a sensação de continuidade do tempo: não há

“transições, crescendos, diferença entre campo de tensão e repouso, entre exposição e

desenvolvimento, entre pergunta e resposta”150. Na leitura de Adorno, esses expedientes

que eliminam as expectativas funcionais da percepção de um contínuo temporal fazem

da música de Stravinsky uma “escamotagem do tempo”, uma obra “estática” que recusa

desenvolver-se. Em outros termos, a música de Stravinsky, “elogiada por seus ritmos, é

o oposto do rítmico. Ela não intervém no tempo; não tenta moldar tempo ao ser

moldado por ele, mas em vez disso o ignora.” (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16,

222)

Figura 3 – ocorrência do acorde “augúrios”

início do 2º movimento Sagração da primavera, Stravinsky

148 CHUA, Rioting with Stravinsky: a Particular Analysis of the Rite of Spring. In: Music Analysis, v. 26, n. 1-2, 2007, p. 63 149 Cf. WAIZBORT, Aufklärung musical - Consideração sobre a sociologia da arte de Th. W. Adorno na “Philosophie der neuen Musik”, p. 170 150 PNM, p. 199

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

119

Além do fetichismo do ritmo que, para Adorno, denuncia a fragilidade

constutiva de relações rítmicas, outro elemento destacado como regressivo no

tratamento dos choques refere-se ao uso da montagem, recurso de se produzir “música

sobre música”, utilizado como paródia e orientado por uma lógica de desintegração do

material. O excesso de citações musicais em Stravinsky revelaria não apenas sua

rejeição deliberada ao desenvolvimento do material, mas o desejo de fazer passar por

novo o que já estaria classificado, pré-formado (PNM, 115). A paródia, procedimento

ligado à montagem, que poderia ter alcance crítico, ao imitar e ridicularizar ao imitar,

adapta-se no entanto facilmente à regressão (PNM, 191). Nesse sentido, A história do

Soldado é comparável às montagens oníricas dos surrealistas, feitas a partir de dejetos

da vida cotidiana. A obra compõe-se de “montagens de material morto”, “sequências

sonoras danificadas”, fragmentos de peças de salão, fanfarras, polkas, música de circo,

tango, ragtime, marchas militares; sob esse aspecto, a comparação com o dadaísmo de

fato não se torna improcedente, se levarmos em conta que o compositor declarava

aspirações semelhantes àquelas dos vanguardistas do início do século151. O retorno a

formas arcaicas na fase neoclássica, indiferente ao estágio histórico do material,

confirmaria, por fim, o desejo de suspensão do próprio tempo histórico e a regressão ao

mito. A ideia de compor “música a partir de música” remontaria de fato a Mozart em

suas citações de Haendel, ou mesmo a Mahler. Contudo, quando elevada a princípio de

estruturação, por meio da exposição de um material previamente codificado sem tensões

com a história, do excesso de citações de sequências sonoras, a ideia de montagem

musical abdicaria da construção orgânica e intencional de sentido, denunciando um

caráter reacionário de eliminação do polo subjetivo da composição152.

Assim, o que está jogo na formalização do choque na música moderna é a

experiência subjetiva de tempo: “O declínio do sujeito, contra o qual a escola de

Schoenberg se posiciona, é introjetada pela música de Stravinsky como forma superior

que absorveria o sujeito” (PNM, 218). A historicidade interna das obras revela, como

aparência, o núcleo da experiência histórica da modernidade. Enquanto a atonalidade

151 Cf. ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, cap. 5 – Dadá; ver também as considerações de Bürger sobre o anti-vanguardismo de Adorno (em Das Altern der Modern) para uma aproximação entre Stravinsky e o dadaísmo. 152 Cf. toda a seção Música a partir de música in PNM

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

120

em Schoenberg formaliza intrinsecamente a consciência do tempo histórico em seu

caráter fragmentário e dissociativo, Stravinsky opera a pseudomorfose com a pintura,

torna-se a-histórica ao abandonar a consciência do tempo mediante blocos sonoros, sem

a preocupação com a estruturação subjetiva.

A partir das análises de Schoenberg e Stravinsky em FNM, Adorno propõe uma

classificação com três tipos de obra153: a) obra de arte fechada (geschlossene

Kunstwerk), que ocultaria seu processo de produção reafirmando seu caráter de

aparência, caso das obras ligadas à tonalidade; b) obra de arte fragmentária

(fragmentarische), alçada a objeto de conhecimento, única capaz de liberar conteúdo

crítico, por expor em sua forma as contradições sociais e a angústia do sujeito, como o

expressionismo de Schoenberg, que ainda preserva organicidade; c) obra de arte

mecânica (mechanische), de índole fascista, pela adesão ao ritmo motorizado e à

repetição de fórmulas, ligado ao inorgânico, como em Stravinsky. Veremos como essa

taxonomia (que Adorno propõe discretamente em uma nota de rodapé) foi atualizada em

textos posteriores.

153 PNM, p. 134, nota 1

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

121

2.3 Pseudomorfoses

Variedade, Debussy e Brecht

Em O esquema da cultura de massas154, encontramos a primeira referência

adorniana ao conceito de pseudomorfose, vinculada à submissão técnica da música a

elementos da pintura155. Adorno atribui especificamente à música de Debussy a

expressão “pseudomorfose da composição com a pintura” (O esquema da cultura de

massas, GS 3, 309). Seus ciclos de peças de maturidade, intitulados Préludes e Études,

se ajustariam ao ideal de “variedade” (Varieté), a ser celebrada posteriormente pela

cultura de massas, em especial o cinema e o jazz. No jazz, em particular, o gesto

impressionista de suspensão da narratividade e construção de eventos seria totalmente

assimilado visando facilitar sua própria circulação comercial. Na música impressionista,

a permutabilidade dos eventos internos (Vertauschbarkeit) resultava ainda de uma

organização subjetiva, alheio ao procedimento de montagem. Com o jazz, porém, tanto

a estrutura interna de suas progressões estereotipadas quanto a “variedade” externa dos

produtos oferecidos no mercado conformam-se plenamente ao caráter contingencial da

modernidade. Rompe-se aqui com toda construção progressiva de sentido, com a

sucessão temporal que orienta o ideal de Entwicklung. Assim, no jazz,:

“os eventos que se sucedem no tempo são mais ou menos permutáveis entre si, não há desenvolvimento (Entwicklung), o que vem depois não é algo mais rico em experiência (Erfahrung) do que o que veio antes”

(O esquema da cultura de massas, GS 3, 309)

Na Varieté das mercadorias culturais, haveria assim um “truque” (Trick) de

cesura, um “engodo” (Betrug) proposital156,, que incide diretamente sobre a experiência

154 Redigido em 1942 e publicado posteriormente como anexo à DE. Como adverte o editor das obras completas, O esquema da cultura de massas (Das Schema der Massenkultur) é o desenvolvimento do capítulo sobre a indústria cultural de DE, encontrado nos espólios (cf. GS 3, 336). Esse anexo não foi incluído na edição brasileira. 155 Sobre as ocorrências do conceito de pseudomorfose nos textos de Adorno, ver DUARTE, Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno. In: Artefilosofia, n. 7, 2009. 156 Lembremos o subtítulo do capítulo sobre indústria cultural em DE: O esclarecimento como engodo (Betrug) das massas

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

122

subjetiva do fluxo do tempo: esse truque é o que possibilita, por exemplo, que o

espectador do filme ou o ouvinte da peça de jazz chegue no meio da obra e, afinal, não

perca muita coisa. A Varieté representa a fórmula de uma “repetição mágica” que

provém do processo industrial de organização cultural e seria ela mesma a “alegoria do

capitalismo tardio” (O esquema da cultura de massas, GS 3, 308). Seguindo o princípio

da forma mercadoria, sua permutabilidade interna temporal e em sua diversidade

externa coincide com o modo de organização das relações sociais da modernidade; na

visão adorniana, a Varieté impede o confronto com o tempo empírico, confronto que,

como vimos, seria a própria substância da arte. Assim, a técnica da pseudomorfose

impressionista, que justapõe eventos sonoros fugazes desligados de sucessividade,

concede o primeiro modelo de uma experiência social fragmentária de variedade, que

revogaria, a princípio, a construção de sentido. Convém insistir que, para Adorno, ainda

prevalece na técnica impressionista uma força subjetiva de organização.

Ainda nesse anexo de DE, Adorno refere-se ao elemento “épico” das peças de

Brecht, estabelecendo um vínculo entre seus expedientes de montagem e a

permutabilidade dos eventos dada pelo impressionismo e pela Varieté da cultura de

massas. Para Adorno, o teatro épico de Brecht seria “tanto a resposta à cultura de

massas, quanto a consciência invertida da própria cultura de massas” (GS 3, 312). As

alterações dos quadros cênicos do teatro épico, cujos efeitos perceptivos Adorno

compreende como semelhantes àqueles provocados pela Varieté da cultura de massas,

sinalizam a impossibilidade de a obra atingir uma “supremacia” sobre do tempo, de

“vencê-lo” (Bewältigung der Zeit) (GS 3, 312). Isso porque “a montagem, que Brecht

introduziu no drama, significa a virtual permutabilidade (Vertauschbarkeit) no tempo”

(GS 3, 311), e, consequentemente, aniquila-se aquela tensão narrativa, cujo modelo de

cristalização dialética em um kairós, constituía a força do drama clássico, a “epítase” na

dialética dramática157. Ou seja, a eliminação do conflito da trama, da tensão

intratemporal em direção ao clímax, acaba excluindo precisamente o núcleo através do

157 Como se sabe, Adorno opõe-se radicalmente ao entusiasmo de Benjamin pelo teatro épico. Para Benjamin, o efeito de distanciamento consubstanciaria na trama uma dialética de interrupção do tempo, um efeito de forte teor crítico. Conforme Gagnebin, o “interesse crescente (de Benjamin) pela obra de Brecht, em particular pelo teatro do Verfremdungseffekt, portanto, da interrupção provocada na trama da ação como na identificação dos espectadores, remete a esta ligação privilegiada entre interrupção, crítica e verdade” (GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 102)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

123

qual se dominaria o tempo de modo dinâmico. Para Adorno, o teatro brechtiano, ao

“cancelar a dialética dramática”, impede a formação utópica do kairós. A montagem

brechtiana recusaria nada menos do que o tempo da história, na medida em que os

eventos se instalam em uma dimensão abstrata de simultaneidade; nesse sentido, o

teatro de Brecht “é governado por uma espécie de tempo-espaço, parecido com o

‘experimento de laboratório’ que pode ser sempre repetido” (GS 3, 313). Dito de outro

modo, o que ocorre depois poderia ter ocorrido antes, não havendo acúmulo de

experiência. No teatro brechtiano, a construção das relações temporais deixa de ser um

“problema”, deixa de ser uma dificuldade a ser vencida. Em vez da unidade intensiva da

ação dramática, impõe-se um conjunto de “truques estáticos” (Statik der Tricks) que

mascaram a simples passagem do tempo e reafirmam a inexorabilidade do destino: sua

não-historicidade, afirma Adorno, é o tédio (Langeweile) que resulta da mecanização da

vida social. A sucessão de eventos sem conflito estabelece um pacto com a heteronomia

do tempo vazio e da cultura de massas. Esta não tolera o conflito individual como

forma, somente como assunto padronizado que continua a existir na Varieté: “Cultura

de massas trata o conflito mas, na realidade, procede sem conflito” (GS 3, 310). Ao

serem dispostos sem efeito de memória, sem intensificação da ação e da experiência, os

eventos simplesmente justapostos que promovem o colapso da sucessão dramática em

Brecht seriam, afinal, sintomas da própria reificação social.

Podemos ter a impressão de que a descrição dessa incapacidade de “dominar o

tempo” do teatro brechtiano remeteria ao tipo épico-extensivo, analisado no capítulo

anterior, em oposição ao tipo dramático-intensivo. Mas convém discernir que o épico

em Beethoven e Mahler não resulta de expedientes semelhantes aos da montagem

brechtiana. Adorno atribui um caráter regressivo ao procedimento de montagem em

“artes do tempo”, seja música ou teatro, procedimento este que o autor diz não existir na

construção épica da Pastoral, por exemplo. A avaliação depreciativa da montagem,

visível com maior nitidez na crítica a Stravinsky e extensível ao teatro brechtiano, não é

abandonada por Adorno mesmo quando o problema da convergência e da imbricação

dos meios está em seu horizonte crítico, como veremos no capítulo a seguir. Em 1966,

por exemplo, quando menciona en passant o problema da montagem em Brecht, indica

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

124

a “inabilidade do teatro épico em fornecer desfechos convincentes”158. Já em TE,

considera o procedimento estético da montagem um “irracionalismo complacente” com

a racionalidade social, mera “adaptação ao material pronto, fornecido à obra a partir de

fora” (TE, GS, 7, 91), ou ainda, a “capitulação intra-estética da arte diante do que lhe é

heterogêneo”, diante da empiria (TE, GS 7, 232). Em resumo, o conceito de montagem

opõe-se ao conceito de composição ou construção estética, pois a composição

reconfigura o que vem do exterior e visa, mediante síntese (e não mediante

justaposição), transformá-lo em uma outra unidade que diverge das expectativas da

ordem social.

O conceito de pseudomorfose atribuído inicialmente à música impressionista em

O esquema da cultura de massas – acrescentemos que nesse texto de 1942 não há

referência alguma a Stravinsky – converge tanto com o tipo de estaticidade criticada no

drama wagneriano quanto com aquele do teatro épico. A pseudomorfose impede a

sedimentação evolutiva dos momentos internos e a construção de sentido. O paradigma

temporal que Adorno contrapõe a esse tratamento não dialético da pseudomorfose é,

com efeito, o paradigma dramático, centrado na ideia de conflito com a passagem vazia

do tempo empírico. O épico, por outro lado, ao flexibilizar a construção teleológica de

suas relações intratemporais, ao consentir com a permutabilidade de seus eventos

internos, provoca uma espécie regressiva de estaticidade, mas em Beethoven e Mahler

atua como denúncia ao estigma ideológica do tipo intensivo. De todo modo, para

Adorno, em O esquema da cultura de massas, confrontar a estaticidade e a

inexorabilidade do tempo empírico do destino (Schiksal) seria também o objetivo da

arte em geral159.

158 Forma na nova música, GS 16, 621: „Insbesondere manifestiert es sich in der Unmöglichkeit überzeugender Schlüsse.“ 159 O esquema da cultura de massas, GS 3, 313: „ (…) weil Kunst im Protest gegen jene Zeit - die von Schicksal - sich konstituiert “ .

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

125

Pseudomorfose em FNM

No segundo capítulo de FNM (1949), Adorno retoma o conceito de

pseudomorfose a fim de caracterizar, desta vez, o processo de espacialização temporal

em Stravinsky, que tanto imitaria o gesto impressionista quanto reproduziria os efeitos

de montagem do teatro épico. Tal processo, compreendido como inerente à Aufklärung,

conduz paradoxalmente, nas palavras de Adorno, à própria “abdicação da música”. A

terminologia que Adorno utiliza em FNM remete à da “revogação” do tempo descrita na

análise do gesto expressivo do Ensaio sobre Wagner. Com Stravinsky, Adorno

considera que

“A espacialização da música é o testemunho de uma pseudomorfose desta com a pintura, no fundo, sua abdicação” (FNM, GS 12, 174)

É interessante observar que, segundo FNM, cuja introdução declara que o

propósito do livro é o de um “excurso da Dialética do esclarecimento”, a espacialização

manifestada na Sagração da Primavera resulta de uma extrapolação da dominação da

natureza, processo este que leva a razão musical à sua reversão em mito. Não se trata de

uma obra alheia à história da razão; não por acaso (e isso não é frequentemente

mencionado), Adorno considera a Sagração a “obra mais avançada do ponto de vista do

material”, mais avançada, bem entendido, em uma das tendências da modernidade

(FNM, GS 12, 135). Se a irracionalidade da fase primitivista de Stravinsky, na qual se

inscreve a Sagração, liga-se ao inorgânico, essa abdicação procederia do próprio triunfo

da Aufklärung sobre a arte musical.

E aqui, deveríamos compreender o conceito de pseudomorfose sob outra

perspectiva. Segundo o esquema adorniano, podemos deduzir que o ideal técnico do

meio da pintura, sua “essência dialética”, oposta à essência musical, conforma-se

inerentemente às operações identitárias da razão; a saber, o ordenamento do espaço

define o meio da pintura como ser (Sein). A música, esfera da arte cuja “essência

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

126

dialética” corresponde ao devir (Werden), é refratária ao pensamento da identidade160.

Com efeito, para Adorno em FNM, mesmo a pintura abstrata tem seu pathos naquilo

que “é”, enquanto a música visa um devir161. No entanto, na medida em que a música

não escapa das determinações da Aufklärung162, para Adorno, a racionalidade musical

carrega consigo a própria ameaça de sua essência, pois a razão conduz a música à

“imobilização no espaço” no plano evolutivo de suas formas. Esse paradoxo permite

posicionarmos o problema da pseudomorfose no contexto mais amplo da filosofia da

história adorniana. Pois a pseudomorfose da música em pintura não deveria ser

entendida somente como fenômeno histórico específico, de origem na música

impressionista, prolongando-se em Stravinsky e culminando posteriormente na música

serial. Esse sentido primordial da pseudomorfose constitui a face mais evidente do

conceito. Todavia, uma interpretação “estereoscópica” (para usarmos novamente a

expressão de Wellmer) veria no conceito adorniano de pseudomorfose uma das figuras

especulativas fundamentais para se compreender a inscrição da própria arte musical no

horizonte civilizatório da dominação da natureza. A racionalidade musical, implicada

nas estratégias identitárias da Aufklärung, tende a suplantar o devir que, não obstante,

determina sua própria essência dialética. O conceito da pseudomorfose explicaria,

portanto, certa tendência inelutável da conformação progressiva da linguagem musical à

“técnica pictórica” – e este será o topos fundamental dos escritos musicais de Adorno

nos anos 50 e 60. Em FNM, antes mesmo do debate europeu sobre o serialismo, Adorno

estabelece um vínculo entre pseudomorfose e dominação racional da natureza:

“A pseudomorfose da música com a técnica pictórica é a capitulação diante da predominância (Übermacht) da tecnologia racional justamente naquela esfera da arte que tem sua essência (Wesen) em oposição a uma tal predominância e que, apesar disso, também cede (zufiel) à progressiva dominação da razão sobre a natureza”

(FNM, GS 12, 174, nota 30)

160 Ver, no próximo capítulo, comentário sobre o traço dionisíaco, caótico, que Adorno atribui à natureza musical, na esteira nietzscheana de O nascimento da tragédia 161 FNM, GS 12, 174: “Alle Malerei, auch die abstrakte, hat ihr Pathos an dem, was ist; alle Musik meint ein Werden” 162 Ver, em outro contexto, afirmação nessa mesma direção: „Die geschichtliche Bewegung, in der Musik, die vorgeblich irrationalste Kunst, ihr Wesen hat, hat teil an der Aufklärung.“ (Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 160)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

127

Notemos que aqui se indica uma forma de trabalho composicional que resiste à

“capitulação” e que evita a pura “abdicação” da música, o colapso da subjetividade;

trata-se do trabalho caracterizado como “heróico” que realiza a mediação entre o

momento construtivo inerente à dominação da natureza e o momento expressivo do não-

idêntico, o “resto” que ficou para trás no processo de dominação da natureza e do

material: no contexto da música moderna, as denominadas obras fragmentárias da

atonalidade livre, conforme vimos acima.

Cabe destacar o posição limítrofe que o impressionismo de Debussy ocupa nesse

contexto de FNM. Por um lado, em Debussy, utilizam-se “complexos harmônicos,

estáticos em si e permutáveis no tempo”, em vez de “processos de resolução de tensões

entre graus harmônicos” (FNM, GS 12, 172); suas obras, “em detrimento ao elemento

sinfônico”, são relativamente curtas, envolvem uma “atomização da substância

temática” e abdicam do uso de contraponto (ibidem). Contudo, Debussy ainda

preservaria um “momento orgânico” no qual os “sons colam-se uns aos outros”. O

encadeamento contínuo dos sons de sua técnica consolidaria “algo como um infinito

sensível”, que produzem “efeitos dinâmicos” residuais decorrentes de um laisser-vibrer.

A música impressionista propicia, afinal, “algo do tempo da experiência vivida” (FNM,

GS 12, 176). De todo modo, o impressionismo, fenômeno “francês” onde o “estágio

das forças produtivas da pintura sobrepujam as forças da produção musical, de tal modo

que estas buscam se apoiar na grande pintura” (FNM, GS 12, 174), confirmaria a

predominância da técnica pictórica sobre a racionalidade musical. Com a

pseudomorfose na obra mecânica de Stravinsky, os efeitos em Debussy, que retinham

“algo do tempo da experiência vivida”, seriam então eliminados: “a espacialização

torna-se absoluta” (idem). Mediante blocos sonoros estáticos, esterilizam-se os vestígios

de dinamismo que ainda provinham da valorização sensorial timbrística do

impressionismo, restando a pura permutabilidade e a ênfase na rítmica dos eventos

sonoros.

Por fim, ainda no capítulo sobre Stravinsky de FNM, Adorno encaminha dois

tipos de audição – expressivo-dinâmico e rítmico-espacial – que contribuiriam para sua

justificativa do processo de espacialização inerente à Aufklärung. Embora não haja

correspondência imediata com a tipologia intensivo/extensivo (que apresentamos no

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

128

capítulo anterior), as escolhas semânticas de Adorno induzem a aproximações. O tipo de

audição expressivo-dinâmico, baseado no “canto”, procura “confrontar o tempo”

(Bewältigen der Zeit) ao preenchê-lo, transformando “o curso heterogêneo do tempo em

força do processo musical” (FNM, GS 12, 180). Ao passo que o tipo rítmico-espacial,

baseado no “toque do tambor”, divide o tempo em unidades iguais que “eliminam e

espacializam o tempo”, engendrando um “tempo matemático” (ibidem)163. A ideia da

grande música consistiu, segundo Adorno, na interação entre os dois tipos de audição (e

a sonata clássica formaria sua unidade equilibrada), o canto pertencendo ao polo

subjetivo da “liberdade” (Freiheit), e o toque do tambor ao polo objetivo, do “rigor”

(Strenge)164. A obra de Stravinsky aparece no quadro adorniano como a apoteose de

estabilização do tipo de audição rítmico-espacial. Pela predominância da rítmica sobre o

expressivo-dinâmico, em favor da regularidade e precisão matemática, Stravinsky se

afastaria do processo de espiritualização. Como vemos, trata-se de um processo que se

explicaria pelo conceito de pseudomorfose. A reversão mítica induzida pela aniquilação

do sujeito pelo sujeito na obra mecânica de Stravinsky, levando ao abandono da

consciência histórica e marcando o retorno ao pré-individual, se inscreveria, afinal, no

percurso dialético da Aufklärung.

2.4 O ensaio “Stravinsky, um retrato dialético”

A dedicatória a Benjamin em um ensaio extemporâneo sobre Stravinsky em

1962 remete, pela estranheza que provoca, à própria intenção do ensaio. Por um lado, a

dedicatória confirmava a relevância que a constatação do declínio da experiência

temporal na modernidade ainda possuía no pensamento de Adorno. Uma relevância que

datava da correspondência entre os autores a respeito da teoria benjaminiana do choque 163 As semelhanças com os tipos de audição com a tipologia intensivo/extensivo dos fragmentos Beethoven se dissipa quando lembramos que a tipologia descrevia padrões opostos de configuração da totalidade do tempo musical. Embora relevante, o critério da escuta não consitui o fundamento da tipologia intensivo/extensivo (ao contrário do que afirma Boissière em Adorno, l’épique et le temps). 164 Como Adorno mesmo indica em nota de rodapé nesse trecho, tais tipos corresponderiam à distinção entre a “essência dialética” e a “essência matemática” da música de Ernst Bloch. Vale ressaltar que, no ensaio de 1925, Über das mathematische und dialektische Wesen in der Musik, Bloch considerava a dialética (e não a matemática) o verdadeiro organon da música (in BLOCH, Philosophische Aufsätze zur objektiven Phantasie, p. 512)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

129

em Baudelaire, quando Adorno a assimilava para descrever o choque em FNM. Vimos

que a compulsão à repetição e a regressão a formas arcaicas no contexto moderno

remontava, sob o aspecto social, à mecanização do trabalho e, sob o aspecto técnico-

musical, à “espacialização” wagneriana e à pseudomorfose. O declínio social da

experiência, da memória e do narrar coincidia, para Adorno em FNM, com a

prevalência da obra de arte “mecânica” de Stravinsky, alinhada à organização da

indústria cultural. Vimos também que, em O esquema da cultura das massas (1942),

Adorno utilizava pela primeira vez o termo “pseudomorfose”, comparando-o à

montagem brechtiana. No início do ensaio sobre Stravinsky de 1962, Adorno refere-se a

uma característica que havia escapado do capítulo anterior de FNM: a ironia na

justaposição de elementos desgastados do material. Se a montagem como dispositivo

artístico ainda é visto com reservas, Adorno reavalia o uso crítico da figura da ironia.

Através da ironia, enunciação do oposto do que é intencionado, a subjetividade, embora

alienada, talvez expresse ainda assim uma reação ao estado de coisas. A história do

soldado (1918) de Stravinsky seria então, para Adorno, um dos grandes acontecimentos

musicais do século 20, precisamente pelo efeito provocado pela ironia – algo que não se

passa, no entanto, com outras obras da fase neoclássica, a exemplo da ópera Oedipus

Rex (1927)165.

O segundo ensaio sobre Stravinsky oscila entre o elogio à técnica de A história

do soldado e Sagração – tanto pela ironia quanto pela capacidade de instrumentação e

organização percussiva que conduziria mesmo a um estágio único e terminal,

inviabilizando a consolidação de um estilo que pudesse ser imitado166 – e a crítica

enfática à regressão de teor coletivista, mítico, à retração da consciência que romperia

com o ideal dinâmico da Entwicklung. Cabe ressaltar que a operação crítica de Adorno

165 PADDISON, Stravinsky as devil: Adorno’s three critiques. In: CROSS, Jonathan (Org.), The Cambridge Companion to Stravinsky, New York: Cambridge University Press, 2003, p. 196 166 Curiosamente, Adorno elogia a técnica na Sagração e na História do Soldado por sua extrema depuração rítmica, as “sutis diferenciações” timbrísticas da percussão, que de fato não encontrariam precedentes. Em contexto argumentativo distinto, porém, essas mesmas diferenciações rítmicas são tomadas como elemento regressivo: “Darin sind die Schlüsse des Sacre und der Geschichte vom Soldaten nicht wieder erreicht worden. Dort vereint sich die spezifische, ganz genau realisierte Vorstellung des Schlägerklangs mit dessen präzisester Differenzierung, im Soldaten der der einzelnen kleinen Trommeln. Die Imagination des Schlages trifft unmetaphorisch den Nagel auf den Kopf.“ (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 402). Já em FNM, Adorno buscava em alguma medida conciliar esses contrários ao chamar a Sagração de “peça virtuosística da regressão” (FNM, GS 12, 137)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

130

sempre se refere à “fisionomia dos gestos” composicionais de Stravinsky, e não ao

conjunto das obras; no ensaio Vers une musique informelle (1961), as Três poesias

líricas japonesas de Stravinsky são mencionadas como modelos de “liberdade

composicional” (GS 16, 496). Provavelmente em função do tom mais cerimonioso,

alguns comentadores acreditam que o segundo ensaio de 1962 revê posicionamentos de

FNM, publicado antes de 1950. Para Peter Bürger, por exemplo, os juízos polêmicos do

capítulo de FNM, que simplesmente tomava o neoclassicismo em bloco como

fenômeno único, teriam sido superados por uma interpretação mais atenta a

diferenciações, deixando aberta a possibilidade de ver nas obras neoclássicas mais do

que sinais reacionários167; Livingstone e Urbanek seguem linha interpretativa

semelhante sobre o revisionismo168.

De fato, Adorno dispõe-se no segundo ensaio à auto-crítica sobre elementos do

anterior. Além de reavaliar a ironia e a organização percussiva, Adorno legitima a

objeção antes feita contra ele de que, se a estaticidade representaria a falsa consciência

musical, isto é, se a música de Stravinsky encenaria a ideologia que sacrifica a própria

subjetividade, então justamente por reproduzir na fatura composicional esse estado de

coisas petrificado (por meio de seu “comment c’est”, escreve Adorno, seu “é isso

mesmo”, a própria Sachlichkeit), tal estaticidade produz um distanciamento cujo teor de

verdade deveria ser considerado. Confirmando a dedicatória do segundo ensaio, o

critério do distanciamento, tão caro na apreciação de Benjamin sobre o teatro épico,

seria decisivo agora para a avaliação de Stravinsky: sua obra estaria de tal modo

apartada e indiferente quanto à função tradicional das formas que acabaria revelando

objetivamente, em sua aparência constitutiva, o espírito de reificação de sua época

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 385). Em suma, Adorno julgava pertinente a

questão de saber se, afinal, os esquemas regressivos que compõem a “fachada de

ordem” em Stravinsky não seriam mais fidedignos à enunciação da destruição da

subjetividade, se não seriam a manifestação mais concreta de uma verdade social 167 Bürger, Das Altern der Moderne, apud PADDISON, Stravinsky as devil: Adorno’s three critiques, p. 199 168 Na apresentação da edição inglesa de Quasi una fantasia, o tradutor Rodney Livingstone escreve: “(…)in other cases, such as that [essay] of Stravinsky, views expressed previously are substantially qualified or transformed”; e URBANEK, Auf der Suche nach einer zeitgemäßen Musikästhetik, p. 212: “(…) dem späten Strawinsky-Aufsatz, der gerne als Revision der Strawinsky-Kritik in der Philosophie der neuen Musik gesehen wird”

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

131

negativa, do que os procedimentos avançados da técnica serial. A auto-crítica mais

apurada e comentada do ensaio de 1962 localiza-se na seguinte passagem:

“Não é possível, como eu fiz, defender o caráter de aparência da obra de arte contra a ideologia da ‘mensagem’ (Aussage), da autenticidade (Eigentlichkeit), e em seguida criticar a aparência por ser mera aparência (…) Ao opor o ideal estático da música de Stravinsky, sua atemporalidade imanente, e ao confrontá-la com a música dinâmica, constitutivamente temporal, intrisecamente desenvolvida, arbitrariamente apliquei a ele uma norma externa, uma norma que ele rejeitou, e com isso violei meu princípio mais caro”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 386; grifo meu)

Um revisionismo ilusório

O trecho inspira, com efeito, a ideia de que haveria aqui revisionismo. Mas este

se revela ilusório diante do exame mais detido. Veremos que Adorno apresenta

fundamentalmente a mesma avaliação encaminhada nas seções “Dissociação do tempo”

e “Pseudomorfose em pintura” de FNM, escrito quinze anos antes. Aquilo que foi

tomado por auto-crítica (condensada, na realidade, apenas no parágrafo acima) não afeta

o cerne da crítica a Stravinsky do ensaio anterior. Para reafirmar sua atinência ao

princípio da Entwicklung, Adorno mobiliza um artifício retórico que dá a impressão de

revisionismo. A torção estaria precisamente na passagem do parágrafo que encerra a

auto-crítica (o parágrafo da citação acima) para o parágrafo seguinte, no qual se afirma

que, apesar de todas as objeções feitas contra FNM, tais objeções “negligenciam algo

central”, a saber: em Stravinsky, “il a quelque chose qui ne vas pas” (GS 16, 386), sua

obra rejeita a construção de relações temporais, a construção da sucessividade capaz de

transpor o elemento mítico. Notemos que, no parágrafo citado acima, a obra de

Stravinsky opõe-se à “música constitutivamente temporal, intrinsicamente

desenvolvida”.

Assim, não deveríamos menosprezar a declaração do autor já nas linhas iniciais

do ensaio: “Não vejo razão para retirar nada do que foi escrito em 1947 (o segundo

capítulo de FNM); muito do que considero aqui é impulsionado por um processo de

auto-reflexão crítica” (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 383-4). Se não há

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

132

“razão para retirar nada do que foi escrito em 1947” e a obra de Stravinsky permanece,

tanto no capítulo de 1947 quanto no ensaio de 1962, alheia ao tempo musical em sua

dimensão constitutiva, podemos dizer que o último ensaio teria sido publicado tanto

para dissipar mal-entendidos do primeiro169, como também para sublinhar a necessidade

de “criar articulação de relações temporais”, o que, para Adorno, estaria sendo

negligenciada pela vanguarda da década de 1950. É nesse sentido que podemos

compreender o segundo ensaio sobre Stravinsky como complemento ao programa de

Vers une musique informelle, de 1961, conferência na qual declarava: “Para que a

música se liberte da pseudomorfose stravinskyana em pintura, é necessária uma reforma

do próprio compor” (Vers une musique, GS 16, 533). Adorno vê-se coagido, nesse

ensaio sobre Stravinsky, a expor criticamente a especificidade daquilo que considera ser

a “essência dialética musical”. A descrição dessa essência dialética, permeada por

termos provenientes da mística170, confirmaria a precipitação de uma certa metafísica da

antifonia motívica, que apontamos no capítulo 1. Vejamos os pontos mais taxativos do

ensaio que confirmam a ideia.

De início, Adorno sustenta que se o tempo é “aquilo que o idêntico considera

ofensivo e que na verdade não consente com a identidade” (Stravinsky, um retrato

dialético, GS 16, 389), então a irreversibilidade, o tornar-se outro da música,

estabelecem a própria essência musical. Constituindo ponto irrevogável, essa

sucessividade fundamenta-se no diastema motívico,

“Podemos chamar isso de transcendência da música: o fato de que ela em qualquer instante torna-se algo e algo outro do que era; o fato de que aponta para além de si. Não se trata de imperativo (Gebot) metafísico imposto, mas está em sua própria constituição (Beschaffenheit) contra a qual ela não pode se colocar”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 387)

169 A crítica de Boucourechliev e Knudszus contra Adorno, por exemplo, sugeria que as categorias “catatonia”, “infatilismo”, usadas em FNM, se referiam à personalidade de Stravinsky; evidentemente Adorno não se refere ao estado subjetivo mental de Stravinsky. No contato com as obras, a crítica imanente procura eliminar toda interferência ligada à psicologia dos compositores. 170 A lista de expressões associadas à mística que Adorno emprega é extensa: kairós, Verhangnis (fatalidade), Apparition, Gestalt des göttlichen Namens (forma do nome divino), entmythologisiertes Gebet (prece desmitologizada), etc

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

133

Não temos dificuldades de perceber que o trecho, saturado de pressupostos,

reproduz mais uma vez o ideal de Entwicklung. É verdade que, anos depois (em A arte e

as artes e TE), essa qualidade até então transcendente da música, inscrita em “sua

própria natureza”, deixará de ser um a priori e passará a ser compreendida como

momento refletido171. De todo modo, o ensaio de 1962 segue à risca o esquema que

procuramos expor até aqui, baseado na exegese do Beethoven do período médio: a

essência musical se define como aversão à repetição mítica, obrigatoriedade do tornar-

se outro. Mesmo que Adorno procure livrar os vestígios de interferência metafísica com

a frase “não se trata de imperativo metafísico imposto, mas está em sua própria natureza

(…)”, somos obrigados a reconhecer que, do ponto de vista materialista, essa

ponderação (“podemos chamar isso de transcendência da música”) não se mostra muito

convincente. Logo em seguida, a essência anti-mitológica da música é apresentada

como “protesto contra o destino do sempre igual e contra a morte”:

“Desde que ela existe, a música sempre foi protesto, ainda que impotente, contra o mito, contra o destino do sempre igual (immergleiches Schiksal), mesmo contra a morte (...) Por mais fraca que seja a garantia de que exista uma alternativa, a música não abre mão da promessa de que existe. Liberdade é uma necessidade imanente à música. Esta é sua essência dialética (Das ist ihr dialetktisches Wesen)“

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 387)

A expressão “essência dialética” mescla-se a uma série de referências místicas e

metafísicas. Por isso, comentadores como Klein, Dahlhaus, Schneider, insistem que

haveria, em Adorno, a passagem subreptícia – e nada óbvia – de uma determinação da

própria faticidade do medium musical (a música transcorre no tempo) para um conceito

específico de temporalidade (entendido como condição para a emergência do não-

idêntico). Ou seja, para Adorno, o medium da música, por definição, deveria

compactuar com o sucessivo, ou melhor, com o ideal de sucessividade, a fim de

171 Cf. TE, GS 7, 42. No final da seção abaixo da tese, 3.3 Convergência, imbricação e rejeição de uma síntese sistemática , discutiremos essa transformação do tempo de um “incondicional” para um “momento”

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

134

despojar-se do elemento mítico172. Schneider chega ao extremo ao considerar que, no

segundo ensaio sobre Stravinsky,

“a crítica composicional (de Adorno) revela-se uma metafísica aplicada (…) A argumentação afasta-se dos planos da filosofia da história e da crítica cultural em direção àqueles de uma metafísica compensatória (kompensatorische Metaphysik)”173

Adorno parece, com efeito, consolidar um conjunto de invariantes ligada ao

tempo musical, associando-o a uma retórica que envolveria o universo da mística. Na

realidade, trata-se de uma semântica herdada de Benjamin e Scholem, como vimos no

capítulo 1 da tese. Ela repercute em textos seminais, como Fragmento sobre música e

linguagem (1956), em que a música é definida como “prece desmitologizada”, a

tentativa de “nomear o próprio nome” que guarda um aspecto teológico174. Contra a

leitura de Schneider, poderíamos responder que a “escolha” de tais invariantes está

longe de ser “arbitrária”, como assevera mais adiante, ou ainda, que tal escolha não

implica que apenas uma forma de experiência temporal seria válida para Adorno175. De

fato, o conceito adorniano filia-se à tradição motívico-temática da Segunda Escola de

Viena; no entanto, tratar como “arbitrariedade” o enquadramento extrapolaria o campo

de significação do termo. Em segundo lugar, vimos que o tipo extensivo cobre, de

direito, o conjunto de modalidades complementares ao ideal de Entwicklung, admitindo

a ocorrência de outras configurações (afinal, o tipo extensivo impõe “certa

configuração” da renúncia ao tempo musical).

Clown, repetição e espiritualização

172 Ver seção abaixo 3.1 Momento transcendental? O “princípio imanente” e o “puro meio” da música 173 SCHNEIDER, Strawinsky und Adorno, p. 78 174 Cf. GS 16, 252: “Comparada à linguagem denotativa (meinende Sprache), a música é uma linguagem de tipo totalmente distinto. Nisso reside seu aspecto teológico. O que ela diz, como fenômeno (Erscheinendes), é ao mesmo tempo determinado e oculto. Sua ideia toma a forma do nome divino. Ela é uma prece desmitologizada, livre da magia que influencia acontecimentos; é a tentativa humana, sempre frustrada, de nomear o próprio nome, não de comunicar significados” 175 SCHNEIDER, Strawinsky und Adorno, p. 79; 80

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

135

Tentemos compreender, sob a perspectiva da crítica a Stravinsky, as

consequências da “escolha” pela tradição motívico-temática. Vimos que, para Adorno, a

música (e a arte em geral) se realiza como progressiva história racional do espírito,

“espiritualização” (Vergeistigung), distanciando-se de sua condição natural, imediata,

sensorial. Isso explicaria o privilégio da relação entre notas e certa dificuldade quanto à

assimilação “espiritualizada” da dimensão sensorial/timbrística ou da explosão da

métrica tradicional, a princípio mais refratárias ao processo. Para a construção formal de

sentido, a espiritualização da música deveria transcender suas estruturas sensoriais

imanentes (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 190). A obra de Stravinsky seria o

caso privilegiado, no contexto da modernidade, de negação desse princípio de

espiritualização e, por extensão, de renúncia à obrigação com a liberdade. Em função do

fetichismo da rítmica, da falta de concepção harmômica, das colagens e blocos sonoros,

a música cederia à repetição mítica. Mas vale aprofundarmos o significado, preciso e

não menos problemático, do conceito de repetição nessa proto-arqueologia da música.

As figuras do animal e do clown desempenham um papel preponderante na descrição do

repetitivo em Stravinsky. A repetição seria “a característica do animalizado (ein Schema

des Vertierten)” (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 409), um procedimento

puramente mimético que se afasta da “necessidade imanente da música”, de sua

espiritualização. Na imagética repetitiva do clown que está na base de obras como

Petrushka (1911), Adorno detecta a iminência de o “espírito tornar-se animal (Kreatur)”

(GS 16, 409) e de ceder à completa transformação em mito. O aspecto animal (das

Äffende) e burlesco (das Clownische) seria, portanto, intrínseco à obra de Stravinsky,

sobretudo pela recusa em “mover-se”, em “seguir adiante” (GS 16, 388). Nesse sentido,

a figura do clown em Petrushka de Stravinsky constituiria uma metáfora privilegiada da

destruição da subjetividade moderna.

Mas é interessante percebermos as diferenças da leitura adorniana quanto à

mesma figura do clown quando se refere a Schoenberg. Na descrição de FNM, o clown

do Pierrot lunaire (1912) de Schoenberg passa por uma viagem de auto-descoberta e

auto-reflexão; por meio de sua “preparação para a angústia”, Angstbereitschaft, por

meio da capacidade de refletir sobre sua experiência conflitante, atinge-se a

transcendência da própria angústia. Como vimos neste capítulo, em Pierrot lunaire, a

forma musical atua como registro subjetivo da angústia e traça “a imagem de uma

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

136

esperança sem esperança (das Bild hoffnungsloser Hoffnung)” (FNM, GS 12, 133). Já a

subjetivida do elemento trágico. A forma musical identifica-se com o opressor que

transforma o clown em diversão grotesca, zomba da sua sentimentalidade e de qualquer

resíduo de individuação176. Se, posteriormente em TE, a figura do clown é tomada como

um dos “estratos fundamentais da arte”, é porque ela representava na confrontação

Schoenberg-Stravinsky a dialética entre espiritualização e comportamento mimético (o

“contrário do espírito” que, no entanto, se integra a ele) inerente à obra de arte:

“No elemento burlesco (clownischen), a arte relembra com satisfação a pré-história no mundo animal das origens. Os macacos antropomorfos (Menschenaffen) do jardim zoológico executam em comum o que se assemelha a atos de um clown (…) a constelação animal/louco/clown é um dos estratos fundamentais da arte”

(TE, GS 7, 181-2)

No contexto do ensaio de 1962, porém, o substrato da crítica de Adorno está na

colisão entre sua visão deliberadamente essencialista da Entwicklung com uma

temporalidade considerada repetitiva, “animalesca”, pelo fetichismo da rítmica quanto

pelo uso fragmentário de restos da tonalidade, que celebra a stasis do mundo empírico.

Adorno admite que o problema composicional do tempo também era crucial para

Stravinsky, porém, não o foi sob a perspectiva objetiva do movimento dialético. Em

Criterios da NM, afirmava que,

“sem dúvida, também para Stravinsky, o tempo era o problema da música: isso foi sua grandeza. Mas objetivamente, sua música torna-se incapaz de superar o tempo por meio de articulação, por meio do processo que Hegel chamava posição (Setzung) e negação (Verneigung)”

(Critérios da NM, GS 16, 222)

O que se revoga na “repetição de Stravinsky”, portanto, é o confronto com a

dialética da espiritualização, com a “articulação” enquanto fundamento do conceito

especulativo de tempo. Para o ensaio de 1962, essa articulação localiza-se na tensão 176 PADDISON, Stravinsky as devil: Adorno’s three critiques, p. 197 Segundo a tese de Paddison, o clown em Beckett seria a superação dialética das figuras contraditórias em Schoenberg e Stravinsky: Beckett reuniria a stasis opressiva de Stravinsky com as técnicas expressivas e construtivas da escola de Schoenberg (cf. idem, 201).

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

137

entre conteúdo musical e forma do tempo (Zeitform; o que não deve ser confundido com

a “forma musical”). Se conteúdo musical e forma do tempo não deveriam constituir

opostos irreconciliáveis, então

“a sequência de eventos musicais deve ser concretamente determinada pelo tempo, pelas qualidades do antes, do depois e do agora, e pelas relações entre eles. Inversamente, a criação temporal dos eventos musicais modelam a própria passagem do tempo. A repetição de Stravinsky nega ambos”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 388)

Notemos que Adorno prescreve a interdependência entre conteúdo musical e

forma do tempo que, por sua vez, remete implicitamente a um princípio transcendental:

o que estaria fora da exigência de uma correlação progressiva entre conteúdo e a

sucessividade temporal, aquilo que não preenche suas condições de possibilidade,

sucumbe ao anátema da repetição mítica. Seria a falsa reconciliação com o tempo

empírico. Ao não confrontá-lo através de sua aparência, a música retrocede ao tédio

(Langeweile). O compromisso de toda arte verdadeiramente temporal, cujo resultado

bem sucedido Adorno denomina “objetivação do tempo” (Objektivation der Zeit)177,

seria formalmente recusada por Stravinsky:

“(…) em vez de confrontar passagem do tempo e seus terrores (Schrecken) (…), ele manipula o tempo, como se uma sucessão temporal pudesse ser petrificada em simultaneidade; como se os motivos fossem cubos intercambiáveis e superfícies”

(Critérios da NM, GS 16, 222)

Assim como na crítica de FNM, a petrificação da sucessão temporal decorre da

excessiva valorização da rítmica. Para Adorno, toda concepção rítmica deveria estar

subordinada à articulação progressiva do plano das alturas (melódico-harmônico), locus

da reflexão dialética temporal. Ao sublimar o plano melódico-harmônico a fim de

favorecer a rítmica, a obra de Stravinsky ignora o tempo musical e se coloca justamente

como “oposto do rítmico” por não intervir no tempo empírico:

177 Ver discussão sobre “objetivação do tempo” no início do capítulo 3

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

138

“(A música de Stravinsky), elogiada por seus ritmos, é o oposto do rítmico. Ela não intervém no tempo; não tenta moldar tempo ao ser moldado por ele, em vez disso o ignora. A aparência (Schein) de ausência de tempo instala-se no lugar da ausência de aparência (Scheinlosen) da música, sua dialética temporal. A música de Stravinsky expressa a esperança de escapar do tempo, apenas afastando-se dele, em vez de responder ao tempo (…)”

(Critérios da NM, GS 16, 222-3)

Tanto o princípio da irreversibilidade da Entwicklung quanto a configuração

dessa renúncia seriam recusados em favor de uma musica perennis, que se pretende

não-histórica. A crítica de Adorno a Stravinsky e a Wagner seriam simétricas nesse

ponto: ambos afastam-se da necessidade de intervir e confrontar o tempo empírico, seja

por meio da “antifonia motívica” iniciada no classicismo, seja pela recusa à

configuração extensiva do tempo. A recusa da “construção da aparência”, topos que se

perpetua na crítica à vanguarda até TE, significa a perda do potencial de protesto da

arte, em sua luta contra o tempo mítico no qual se assenta a experiência social. Daí o

apelo à “salvação da aparência” em TE178.

Por um lado, abdicar do caráter de aparência seria abdicar da “obrigação

heróica”179 de transpor a “fatalidade do destino”, de tornar-se outro para além de si

mesmo e de romper com a “estabilidade do Ser”. Como expressão da adaptação aos

processos sociais de mecanização da vida, a obra de Stravinsky seria a portadora das

marcas desse destino do sempre igual, revelando a força do mito imposto pela razão

instrumental. Por outro lado, são precisamente as dificuldades para a construção da

Erfahrung que constituem o desafio permanente à composição, que alimentam sua

“esperança, por mais fraca que seja a garantia de que exista alternativa”. Apelando à

terminologia escatológica e jogando com os termos fatalidade (Verhängnis) e

efemeridade (Vergängnis), Adorno descreve como “salvação do infortúnio” a

preservação desse tornar-se outro da essência musical:

178 Em TE, a “salvação da aparência” é o “centro da estética” contemporânea, da qual depende a legimitação da verdade da arte: “Darum wäre das Zentrum von Ästhetik die Rettung des Scheins, und das emphatische Recht der Kunst, die Legitimation ihrer Wahrheit, hängt von jener Rettung ab.” (TE, GS 7, 164) 179 Ver acima a descrição fisionômica do sujeito musical de Erwartung, que registra ‘heroicamente’ os choques, em oposição ao de Stravinsky, cujos “choques” percurssivos rompem com a continuidade orgânica

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

139

“embora a pura forma temporal de sua música avance, honrando nesse sentido a priori a exigência se tornar outro, sua música mesma não avança, pois é montada fundamentalmente a partir de repetições. Seu teor (Gehalt) inverte-se. Em vez de, em função da essência histórica de sua constituição interna, transpor a fatalidade (Verhängnis) de Sísifo, o próprio tempo de sua música reduz-se ao infortúnio, transformada em uma série desconectada de eventos efêmeros (Vergängnis) e sua escamotagem estética torna-se fantasma da salvação (...) Suas obras ou criam a aparência de progresso (Schein des Fortgangs), que logo em seguida frustram, ou (…) elas se curvam à ordem do tempo apenas para sugerir alucinadamente que o tempo parou, que elas teriam abolido o tempo e atingido o Ser”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 388)180

O objetivismo de Stravinsky buscaria, em sua “montagem por repetições”, em

sua “aparência de progresso”, apresentar-se como Sein, abolindo a essência musical

como Werden. Tecnicamente, Stravinsky cederia à repetição de modo peculiar, dando

aparência de progresso através de “simulacros formais”181, evitando assim aquelas

“simetrias ingênuas” ou a “repetitividade puramente mecânica” (GS 16, 389). O uso

apurado de procedimentos paródicos (de composição de música a partir de música)

representaria, para Adorno, a verdadeira astúcia de Stravinsky de tanto conformar a

supressão da temporalidade na arte temporal, a fim de integrá-la aos valores do universo

empírico social, quanto de evitar a monotonia: assim, se seus movimentos não são

qualitativamente distintos, também não são totalmente idênticos (GS 16, 389). Ocorre

que as montagens de “sequencias sonoras danificadas”, aliadas a efeitos percussivos,

dissolvem a “continuidade da matéria viva”. Seriam desvios do processo de

espiritualização da música, de seu tornar-se outro. Não é por acaso que os simulacros

formais lembrariam aqui a astúcia de Ulisses em seu projeto de auto-conservação, e que

a terminologia envolvendo sacrifício e salvação em DE compareça no retrato dialético

de Stravinsky.

180 A metáfora de Sísifo havia sido utilizada por Adorno em sua Habilitation sobre Kierkegaard com mesmo sentido. Sísifo e Tanatos eram descritos como protótipos do “mito da repetição”, pela condenação a uma “eternidade negativa” com seu “não poder morrer”: „(…) Sisyphus und Tantalus als Träger von Wiederholungsmythen. Unterm Tode eröffnet sich stumm ein Bilderreich: das der zeitfernen Hoffnungslosigkeit im Verworfen-Unendlichen gestürzter Natur. Es ist das Nicht-Sterben-Können als negative Ewigkeit” (Kierkegaard, GS 2, 119) 181 Adorno utiliza ainda o termo “pseudomorfose” duas vezes nesse ensaio para descrever a relação de simulacro formal (de inspiração neo-clássica) que as obras propriamente sinfônicas de Stravinsky (ex.: Sinfonia em 3 movimentos; GS 16, 401) e suas obras seriais (ex.: Septeto; GS 16, 406) estabelecem com a origem histórico-material respectivamente da sinfonia e do serialismo.

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

140

Objeções à interpretação de Adorno

Como vimos, comentadores apontam tanto para o revisionismo quanto para a

insuficiência ou mesmo para o total desacerto da interpretação adorniana, ao não

reconhecer que a verdadeira “ideia criativa”, Einfall, em Stravinsky estaria efetivamente

no plano rítmico. Que a neutralização harmônica e melódica seria indispensável para

emergência deste novo Einfall rítmico, da nova progressividade. Adorno não teria sido

suficientemente adorniano. Para Powell, por exemplo, “o papel constitutivo da rítmica,

da métrica como Einfall, nunca é percebido por Adorno: esse seria apenas um exemplo

paradigmático de seu idealismo musical”182. Na mesma linha, Chua observa que, sem

dúvida, não há “ritmo harmônico” na Sagração, mas que o uso de harmonias

dissonantes como elemento para a ampliação do efeito percussivo é “apenas uma de

uma série de inversões que Stravinsky realiza contra as ‘tradições cultivadas do mundo

civilizado’(…), tornando ‘sons civilizados’ da tonalidade em ruído bárbaro, assim como

progressões tonais em um instante”183; tal inversão, prossegue Chua, escaparia do

enquadramento adorniano, confirmando seu “ponto cego” decorrente de um

“preconceito teutônico do filósofo”184. A lista é interminável: Klein, Borio, Schneider185

e Mahnkopf186, mas também – e isso será de extrema relevância para nossa discussão na

Parte II da tese – Heinz-Klaus Metzger, em O envelhecimento de “Filosofia da nova

música” (1958), apontam para o reducionismo imposto pelo conceito adorniano de

tempo musical.

182 POWELL, Der andere Hörplatz: Die Zeitlichkeit zwischen Subjekt und Ich - Adorno und Strawinsky, p. 339 183 CHUA, Rioting with Stravinsky: a Particular Analysis of the Rite of Spring, p. 80–1 184 Ibid., p. 96 185 KLEIN, Thesen zum Verhältnis von Musik und Zeit, toda seção III; BORIO, Kompositorische Zeitgestaltung und Erfahrung der Zeit durch Musik. Von Strawinskys rhythmischen Zellen zur seriellen Musik. In: KLEIN, Richard; ETTE, Wolfram; KIEM, Eckehard (Orgs.), Musik in der Zeit, Zeit in der Musik, Weilerswist: Velbrück, 2000; SCHNEIDER, Strawinsky und Adorno (citado acima) 186 Mahnkopf pondera que, apesar de Adorno reconhecer as alterações estruturais provocadas pela modernidade, sua crítica à temporalidade de Stravinsky, reafirmada em 1962, mostra uma postura teórica conservadora, sobretudo pela perspectiva teleológica que estaria sintatica e morfologicamente ligada à tradição da variação em desenvolvimento (MAHNKOPF, Ästhetische Modernität und kompositorische Kritik. Adornos Musikphilosophie. In: Zeitschrift für kritische Theorie, v. 9/1999, n. 9, p. 31–57, 1999, p. 41;46)

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

141

Contudo, a crítica provavelmente mais enérgica contra os dois ensaios

adornianos sobre Stravinsky foi feita por Dahlhaus, que acusa de “dogmática” e

“precária” sua concepção de tempo musical, fundamentada em uma exegese particular

de Beethoven e colocada à prova na análise de Stravinsky. Para Dalhaus, a concepção

reuniria, em um amálgama teórico questionável, “música como arte temporal, variação

em desenvolvimento e transcedência”187. No início do pequeno artigo de 1987, o

musicólogo censurava a parcialidade na escolha de Beethoven como matriz que

forneceria os critérios autênticos da construção do tempo musical, escolha que obrigava

Adorno a tomar a obra de Stravinsky como “estranha ao tempo” (zeitfremd):

“Ninguém contesta a premissa de Adorno de que a relação com o tempo é constitutiva à música (...) Mas considerar que a variação em desenvolvimento (baseada numa interpretação de Beethoven) seria o único processo legítimo para atender à lei formal da música como arte do tempo, isso tem consequências dogmáticas (...) A crítica a Stravinsky de que sua música seria estranha ao tempo cai no vazio” 188

Para Dahlhaus, a fundamentação adorniana, inspirada por uma filosofia da

história “partidária”, contradiz a si mesma ao não apreender a complexidade rítmica em

obras neoclássicas de Stravinsky como a Missa (1944), que reconfigura de modo

inaudito a estrutura das composições medievais do Ordinarium dos séculos 14 e 15,

mediante um expediente altamente elaborado de “neutralização” harmônica e

melódica189. Nesse sentido, o jogo de acentuação rítmica da Missa requer de seu

“ouvinte ideal” a mesma capacidade técnica de “compor junto” (“mitkomponieren”),

que Adorno exigia para a compreensão das obras de Schoenberg190. Ou seja, Adorno

não teria percebido uma efetiva espiritualização da rítmica. Outro exemplo do

partidarismo apontado por Dahlhaus estaria na diferença de apreciação das “técnicas de

dissonância” de Schoenberg e de Stravinsky: enquanto a primeira, como

“emancipação”, teria seu direito de existência assegurado pela legitimação histórica da

variação em desenvolvimento, a segunda seria “inorgânica” e “regressiva”, por incidir

187 DAHLHAUS, Das Problem der “höheren Kritik”: Adornos Polemik gegen Strawinsky, p. 9: “Die Verknüpfung von Musik als Zeitkunst, entwickelnder Variation und Tranzendenz ist eine – also solche durchaus triftige – Beethoven-Exegese” 188 Ibid., p. 9–10 189 Ibid., p. 10 190 Ibid.

Parte I – 2. Stravinsky: fim da experiência do tempo musical

142

na “perda de função” (Fuktionlosigkeit) daquela ligação harmônica que antes a

dissonância promovia; nesse momento, afirma Dahlhaus, ao se valer de um critério de

análise schenkeriana para um e não para outro, a crítica imanente abandona toda

objetividade e revela-se decisionista, fundamentalmente arbitrária191.

Como quer que seja, a crítica a Stravinsky é central para nossa tese por dois

motivos: primeiramente, é nela que Adorno desenvolve os conceitos de espacialização e

pseudomorfose, tão orientadores para seu conceito de tempo musical quanto a exegese

sobre Beethoven; o “retrato dialético” de 1962, além de representar o coroamento da

crítica de FNM, reafirmaria os preceitos básicos da Entwicklung. Em segundo lugar,

porque essa crítica dá visibilidade à postura teórica de Adorno diante dos

desdobramentos do serialismo nos 1950, objeto da segunda parte da tese. Nesse sentido,

concordamos com Gianmario Borio a respeito da convergência crítica: “Adorno aplicou

o princípio básico de sua crítica a Stravinsky para avaliar as obras seriais”192. Essa

convergência é o ponto de articulação entre as duas partes da tese. Antes de nos

dedicarmos ao debate em Darmstadt, comentaremos os dois ensaios sobre as relações

entre música e pintura na modernidade, publicados praticamente na mesma época dos

ensaios sobre Stravinsky. Será o caso de mostrarmos que as reflexões sobre a “arte do

tempo” e a “arte do espaço”, bem como sobre o problema contemporâneo da

convergência dos meios artísticos, envolvem a mesma ordem conceitual apresentada

nestes primeiros capítulos, ainda que modulada para outro campo discursivo.

191 Ibid., p. 12–13 192 BORIO, Kompositorische Zeitgestaltung und Erfahrung der Zeit durch Musik. Von Strawinskys rhythmischen Zellen zur seriellen Musik, p. 330

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

143

3. Arte do tempo e arte do espaço

Adorno não dedicou um texto específico sobre o conhecido capítulo 16 de

Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766), no qual G.E. Lessing

delimitava, de modo normativo, as singularidades da pintura e da poesia, bem como

indicar os expedientes mais adequados à intensificação de seus efeitos. Uma breve

porém incisiva referência à classificação de Lessing aparece apenas em Sobre algumas

relações entre música e pintura (1965), que analisaremos abaixo193. Acreditamos, no

entanto, que a centralidade de Laocoonte para uma efetiva compreensão dos conceitos

de “espacialização” e “pseudomorfose em pintura” não deve ser menosprezada,

sobretudo pelo fato de Lessing ter sido o primeiro teórico a propor a distinção

sistemática entre artes do tempo e artes do espaço. Afinal, é apenas a partir de tal

distinção, seja ela explicitada ou presumida, que conceitos como espacialização e

pseudomorfose adquirem alguma pertinência. Se Lessing inaugurou o debate sobre a

segmentação e a convergência dos meios artísticos no interior da estética clássica alemã,

temos razões para crer que o debate se prolonga na reflexão adorniana do pós-guerra. Já

na primeira frase do mesmo Sobre algumas relações entre música e pintura, Adorno

sanciona como “evidente” a distinção entre artes do tempo e artes do espaço, para em

seguida reposicionar dialeticamente o problema da temporalidade em geral na música:

“A evidência de que a música é uma arte do tempo (Zeitkunst), que se desenvolve no tempo, significa, em duplo sentido, que o tempo não é evidente para ela, que o tempo se coloca como problema”

(Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 628)

Não se trata de uma afirmação casual. Enunciados semelhantes sobre a

“evidência” da música como arte do tempo podem ser encontrados em momentos

distintos da produção adorniana. Asserções praticamente idênticas, por exemplo, estão

no ensaio publicado quinze anos antes sobre o mesmo tema, Sobre a relação entre

193 Na realidade, referências a Lessing surgem também em Notas sobre literatura (GS 11, 79; GS 11, 325) e em Teoria estética (GS 7, 131), mas seu escopo temático afasta-se da discussão sobre a divisão sistemática das artes.

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

144

música e pintura hoje (1950), além do “retrato dialético” sobre Stravinsky (1962) e na

Teoria estética (1970):

“Tendências correlatas (…) possuem significados diferentes, mesmo opostos, na arte temporal da música e na arte espacial da pintura” (GS 18, 142)

“Como arte temporal, a música está ligada ao fato da sucessão e portanto é irreversível como o próprio tempo.” (Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 386)

“Seria vão contestar que ela [a música] é uma arte temporal; que o tempo musical, por pouco que coincida imediatamente com o tempo da experiência real, é como este irreversível” (TE, GS 7, 42)

A definição “evidente” da música como arte temporal perde, no entanto, seu

caráter de evidência precisamente pela ênfase com que Adorno sublinha essa

característica. Em um primeiro momento, a divisão entre artes do espaço e artes do

tempo coloca-se para Adorno, tanto quanto para Lessing, como princípio inquestionável

e “invariante”. A própria expressão “pseudomorfose” confirmaria tal princípio: ao

tematizar as tendências de pseudomorfose da música em pintura, ou seja, da falsa

(pseudo) comutação da música em pintura, o horizonte argumentativo aqui pressupõe

necessariamente a verdade da separação entre os meios, a irredutibilidade de critérios

estéticos ligados à arte musical que estariam em oposição àqueles das artes visuais.

Assim, ao menos implicitamente, Adorno legitima a distinção entre os meios

inaugurada pelo Laocoonte, de Lessing. Por outro lado, devemos reconhecer que uma

distinção sistemática à maneira de Lessing dificilmente se sustenta na estética

adorniana, que antes engendra uma confrontação dialética das próprias categorias de

tempo e espaço no interior de cada meio artístico. Se o tempo institui o meio da música

– como afirma Adorno no mesmo ensaio de 1965 – sua temporalidade interna

(Zeitlichkeit) é, por sua vez, o fator pelo qual ela mesma se transforma em objeto, em

coisa (Gegenstand, Ding). É desse modo que a temporalidade, para Adorno, se

apresenta como “problema” a ser resolvido (GS 16, 628). Por meio da forma, que

totaliza e articula internamente seus momentos internos em contraposição ao fluxo do

tempo empírico, a música consiste em certa “objetivação do tempo” (Objektivation der

Zeit). Se os momentos internos devem ser articulados na obra, instalando-se na

dimensão temporal, a forma determina externamente a progressividade desses

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

145

momentos, de modo que tempo e espaço não podem ser separados na música. O

problema do tempo musical coincide com o problema da forma, pois é o referente que

organiza, mediante um esquema espacializante, o desdobramento interno dos eventos

sonoros, sua temporalidade. É importante ressaltar a presença do ideal de Entwicklung e

da dimensão epifânica na definição de música como “objetivação do tempo”, como

cristalização de uma progressividade. Toda classificação normativa entre artes do tempo

e artes do espaço, como a que Lessing propõe, revelaria de saída um teor não apenas

ingênuo, mas sobretudo ideológico, inautêntico.

Encontramos, todavia, o seguinte impasse: de um lado, a divisão entre artes do

tempo e artes do espaço é tomada como “evidente”; de outro, a tensão entre as

categorias de tempo e espaço define a obra musical. Adorno recusa toda definição

substancial e não-histórica de obra e, por extensão, recusa divisões a priori entre os

meios artísticos; se as primeiras páginas de Teoria estética questionavam o próprio

direito de existência da arte, qualquer construção a priori torna-se frágil. No entanto,

veremos como a recusa à abstração sistemática de gêneros e de meios artísticos não

significa a recusa de um conceito dialético de arte, fundamentado no conceito de

material, no estado historicamente determinado das técnicas disponíveis de uma prática

artística, que leva em conta a mediação entre as categorias do tempo e do espaço. Dito

de outro modo, a tensão entre tempo e espaço é constitutiva de cada meio, seja música

ou pintura. É assim que a distinção adorniana entre arte do tempo e arte do espaço se

revelará imprescindível para a posição de um conceito negativo de arte. Sem esse

desmembramento não-sistemático, Adorno não poderia sequer encaminhar a crítica à

pseudomorfose e à espacialização.

Conforme mencionado no início do capítulo, a referência de Adorno à

classificação sistemática de Lessing surge somente no ensaio de 1965, Sobre algumas

relações entre música e pintura, no qual se rejeita o imperativo de ordenamento

proveniente da estética racionalista clássica e, consequentemente, se rejeita a

delimitação de fronteiras entre arte temporal e arte espacial:

“As fronteiras estabelecidas, que opõem a arte do espaço e a arte do tempo, derivam da necessidade de classificar, de ordenar; surgem com maior insistência (…) nos períodos da estética clássica. Esta procura quebrar a resistência das coisas distintas que se colocam contra a cultura unificada

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

146

(vereinheitlichende Kultur), assim como, por outro lado, satisfaz a necessidade cultural de unificar (…) Algo das artes individuais sempre se rebelou contra essa intenção unificadora e igualmente divisora. A razão para isso pode ser vista claramente – como no Laocoonte de Lessing – na divisão dos critérios estéticos que devem decidir categoricamente sobre a dignidade de uma obra de arte a partir de cima, ou seja, a partir de um modo que está além de sua constituição individual. A divisão das artes era cúmplice daqueles lugares-comuns normativos que o academicismo sempre impôs às necessidades concretas artísticas.”

(Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 638)194

À primeira vista, Adorno parece rejeitar qualquer divisão a priori das artes. Mas

é importante notar que a crítica não incide propriamente sobre a divisão entre arte

espacial e temporal, e sim no estabelecimento de fronteiras (“Die etablierten

Grenzen…”) que visam determinar o estatuto e a dignidade de uma obra a partir “de

cima”, ou seja, a partir de abstrações conceituais indiferentes à peculiaridade da obra.

Para Adorno, tanto as linguagens artísticas quanto as obras individuais “rebelam-se”

contra essa “intenção unificadora”, elas resistem a categorizações. Adorno critica,

portanto, o procedimento classificatório de prescrição de “fronteiras”, que estaria

indiciado já no título do livro de Lessing: Laocoonte ou sobre as fronteiras (Grenzen)

da pintura e da poesia195. Ocorre que, se Adorno não aceita a prescrição normativa de

fronteiras, ele acaba preservando os polos da distinção mesma – música como arte

temporal e pintura como arte espacial – distinção assegurada por aquilo que ele

considera ser o “princípio imanente puro” de cada arte: “as artes convergem apenas

quando cada uma segue de maneira pura (rein) seu princípio imanente”196. A divisão

194 „Die etablierten Grenzen von Raumkunst und Zeitkunst gegeneinander entspringen aus dem klassifikatorischen, ordnenden Bedürfnis; man insistiert in Perioden klassizistischer Ästhetik besonders auf ihnen. Sie will ebenso den Widerstand des Ungleichnamigen gegen die vereinheitlichende Kultur brechen, wie sie umgekehrt deren vereinheitlichendes Bedürfnis befriedigt, indem ein Bereich, innerhalb dessen Grenzen gesetzt sind, durch solche Einteilung selbst wiederum das Eine bestätigt, den Oberbegriff dessen, wonach eingeteilt wird. Gegen diese zugleich vereinheitlichende und Grenzen setzende Absicht hat immer in den Einzelkünsten etwas rebelliert. Warum, kann man sich am einfachsten daran vergegenwärtigen, daß - wie noch in Lessings Laokoon - aus der Einteilung ästhetische Kriterien abgeleitet wurden, die von oben her, also jenseits der Konstitution des einzelnen Gebildes in sich, über dessen Dignität kategorisch entscheiden sollten. Die Einteilung der Künste befand sich in Komplizität mit jener normativen Wohlweisheit, welche von je der Akademismus dem konkreten künstlerischen Bedürfnis oktroyierte. 195 Lessing, Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Tradução: Márcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras, 1998. 196 GS 16, 629: ”Die Künste konvergieren nur, wo jede ihr immanentes Prinzip rein verfolgt“

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

147

adorniana não se realiza então de maneira prescritiva (visando determinar “de cima” a

dignidade de uma obra, como faz Lessing), senão de maneira funcional e descritiva,

para o propósito da compreensão dialética. Não iremos explorar a complexidade do

debate sobre o Laocoonte no interior da estética alemã do século 18, à qual Adorno faz

alusão nesse trecho, mas convém expor os argumentos de base do livro de Lessing, a

fim de observarmos em que medida o pensamento adorniano consente e abnega a

divisão entre artes do espaço e artes do tempo.

3.1 Lessing: limites da pintura e da poesia

Sabemos que o caráter inaugural de Laocoonte está na tentativa de fornecer

critérios autônomos, independentes de propósitos teológicos ou éticos, para a avaliação

dos meios artísticos, quando estes se reduzem a seus “primeiros fundamentos” (ersten

Gründen): o espacial-simultâneo e o temporal-sucessivo. Embora Lessing não tenha

sido primeiro a fazer essa distinção, sua originalidade consiste no tratamento

sistemático da questão do espaço e do tempo nos meios artísticos, no caso, poesia e

pintura. Como observa Seligmann-Silva, Lessing pretende esclarecer as condições

formais específicas de cada meio, a fim de evitar “influências perniciosas” que uma

separação imprecisa poderia ocasionar197. Embora também aqui se admita uma

definição de arte como imitação (mimesis), à semelhança da poética clássica e da

doutrina do ut pictura poesis198, doutrina esta que constitui o alvo principal da crítica de

Lessing, procura-se determinar no livro os limites da imitação dos meios, definindo

regras que o artista deveria seguir a fim de obter o máximo efeito em sua obra e

197 Cf. SELIGMANN-SILVA, “Introdução” in LESSING, Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga, São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 49 198 Doutrina que remonta à Arte poética, de Horácio, na qual se defende a homologia retórica entre os meios artísticos. Cf. HANSEN, Categorias epidíticas da ekphrasis. In: Revista USP; n. 71, 2006, p. 98: “(…) os versos 361-365 da Arte Poética, em que Horácio afirma que poesia é como pintura. Ut pictura poesis é, como se sabe, tópica de competição ou emulação entre as artes (…) Evidentemente, Horácio não diz que poesia é pintura ou que pintura é poesia, mas ut, ‘como’, propondo na conjunção comparativa a homologia retórica dos procedimentos miméticos ordenadores dos efeitos em um e outra. Assim, o ut que as relaciona parece indicar as modalidades técnicas do verossímil e do decoro necessários em cada gênero poético em termos de invenção, disposição e elocução, para que a obra particular cumpra as três funções retóricas gerais de ensinar (docere), agradar (delectare) e persuadir (movere)”

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

148

consequentemente garantir sua força imitativa. Nesse sentido, ao circunscrever os

primeiros fundamentos dos meios artísticos à dimensão espacial-simultânea ou

temporal-sucessiva, Lessing antecipa o debate sobre as tendências de espacialização e

pseudomorfose descritas por Adorno.

Sem dúvida, nada parece tão trivial quanto a afirmação de que a poesia seria

uma arte do tempo e a pintura, arte do espaço. Mas de onde vem a necessidade que

impõe a teorização de um discernimento a rigor tão banal? Para Lessing, a redução aos

fundamentos implica a anuência das dificuldades e impossibilidades de transposição de

certos temas e objetos entre os meios da imitação artística, da emulação de um meio

sobre outro – emulação esta que a doutrina horaciana da ut pictura poesis defendia; com

a redução das linguagens artísticas a seus primeiros fundamentos, pretende-se evitar

tanto o “desperdício de muita imaginação a troco de nada” quanto as “invasões” entre os

domínios artísticos que o “bom gosto não aprovará nunca”199. Se Lessing entende a

pintura e a poesia como artes da cópia ou da imitação (nachahmende Künste), ele não

apela, por outro lado, à simplicidade da distinção sensorial entre olhar e ouvir. Antes,

refere-se a “uma relação conveniente” (ein bequemse Verhältins) dos signos (Zeichen)

com seus respectivos meios. Assim, na pintura, os signos são “figuras e cores no

espaço”, ordenados um ao lado do outro, coextensivos (nebeneinander) e seus objetos

são corpos (Körper); já na poesia, os signos são “sons articulados no tempo”, seguem-se

uns aos outros (aufeinanderfolgende) e seus objetos constituem ações (Handlungen)200.

Pintura e poesia separam-se, portanto, tanto por seus signos quanto por seus objetos

(Gegenstände): objetos coextensivos de qualidades visíveis (corpos) inspiram uma

relação conveniente para a imitação em meio coextensivo (arte espacial), assim como

objetos sucessivos (ações) em meio sucessivo (arte temporal). Lessing concede que,

para serem representados, tanto os corpos dependem da dimensão temporal quanto as

ações dependem da espacial. Mas tal dependência ocorre apenas “alusivamente”

(andeutungsweise) e não afeta a estrita homologia entre os meios artísticos específicos,

seus signos correspondentes e sua forma de recepção. Ou seja, a temporalidade de uma

pintura narrativa não é fornecida pelos próprios signos da pintura, não é representada

199 LESSING, Laocoonte, p. 211 200 Ibid., p. 193

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

149

nela diretamente, mas deve ser inferida pelo espectador a partir do objeto estático,

restrito a um momento; elementos como discursividade e narratividade seriam, portanto,

secundários à pintura. De modo similar, a espacialidade na construção poética, a

disposição “arquitetônica” de uma memória virtual, seriam antes metáforas subsidiárias

que não participam diretamente do fluxo do poema atualizado e objetivado no tempo.

Ainda vinculado ao espírito representacionista do século 18, Lessing deduz

então os elementos de base que pertencem à representação direta (à “relação

conveniente”) de cada meio artístico, separando-a claramente da representação indireta

(acidental ou “alusiva”). É assim que, por exemplo, o poeta “deveria buscar o uso de

sinédoques, e não de alegorias”, valorizar “onomatopéias, tropos e figuras [retóricas]”,

por serem mais convenientes ao meio no qual os objetos, afinal, correspondem a

ações201. A poesia deve evitar a prosa descritiva. Procurando ao mesmo tempo se afastar

da ideia de reciprocidade entre os meios, defendida pelo ut pictura poesis, e do

estabelecimento de uma hierarquia entre os meios, à maneira de um paragone, a

separação sistemática de Lessing inventa então uma espécie de cartografia dos meios

artísticos, cujas fronteiras devem ser observadas pelo artista. Vale a pena enfatizar o

seguinte aspecto da divisão clássica proposta por Lessing: ela ocorre no plano da

representação direta ou da “relação conveniente”, mas se dissolve no plano da

representação indireta ou alusiva202. Por isso, tal delimitação sistemática não impediria

o “bom convívio” e a “boa influência” de vizinhança entre os meios:

“(…) assim como dois vizinhos justos e amigos não permitem que o outro tome liberdades inconvenientes no seu domínio mais íntimo, mas decerto permitem que reine uma indulgência recíproca quanto às fronteiras mais externas que compensa de modo pacífico as pequenas invasões nos direitos um do outro que cada um se vê obrigado a fazer rapidamente premidos pela necessidade: o mesmo se passa entre a pintura e a poesia”203

Lessing propõe uma teoria dos signos vinculada à essa divisão, segundo a qual o

signo essencialmente ordenado um ao lado do outro (nebeneinandergeordneten)

proveniente na pintura seria “natural” (natürlich) e não se coaduna com o signo 201 Seligmann-Silva in Ibid., p. 49; 50 202 MITCHELL, The Politics of Genre: Space and Time in Lessing’s Laocoon. In: Representations, n. 6, 1984, p. 102 203 LESSING, Laocoonte, p. 211

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

150

ordenado um após o outro (aufeinanderfolgenden) da poesia, cuja imitação se realiza de

maneira “arbitrária” (willkürlich). Pintura e poesia distinguem-se não apenas pelo meio

formador (corpos e ações) e pela dimensão de seu ordenamento (espaço e tempo), mas

também pelos seus signos. Daí resulta a incompatibilidade fundamental na transposição

de temas e objetos entre os meios artísticos. Segundo a teoria de Lessing, formas

espaciais, cores e som formariam signos “naturais” pois estão inscritos na natureza

física, enquanto a linguagem verbal formaria signos “arbitrários”, independentes da

natureza204.

Essa dicotomia encaminhada pela teoria dos signos torna menos “evidente” a

divisão entre artes do espaço e artes do tempo no sistema de Lessing, sobretudo quando

se considera o caso da música. A princípio, não se questionaria a classificação da arte

musical entre meios artísticos temporais, cujos signos estariam comprometidos com o

aspecto da sucessão e da narratividade. Contudo, segundo a taxonomia de Lessing, os

signos musicais não constituem inicialmente “ações”; por outro lado, não podem ser

considerados “arbitrários”, já que, segundo a concepção clássica, os sons provêm

diretamente da natureza, ao contrário dos signos da poesia, ancorados na linguagem

verbal. Lessing não chegou a concluir seu projeto sobre Laocoonte, que previa mais

duas partes além da publicada. Mas em seus fragmentos, reunidos sob o título

paralipomenon 27 e indicados com “Para a terceira parte”, realiza uma análise

comparativa entre signos poéticos e musicais, cujo estilo e linguagem se enquandraria

àqueles do capítulo XVI do Laocoonte205. De acordo com esses fragmentos, a música

estaria próxima tanto da pintura quanto da poesia, pois, embora utilize de maneira

sequencial signos ordenados e articulados no tempo, como na poesia, tais signos não

seriam arbitrários, mas “naturais” como na pintura206. As críticas de Johann Herder e

Moses Mendelssohn a Lessing – quando insistem no fato de que não a poesia, mas a

204 cf. Laocoonte, cap. XVII. A complexidade da teoria dos signos decorre da afirmação de Lessing de que o objetivo mais íntimo da poesia seria a transformação de seus signos arbitrários em signos naturais, afastando-se portanto do teor alegórico, mais adequado à prosa. Ou seja, as metáforas poéticas ambicionam elevar-se a signos semelhantes aos da pintura, portadores de maior “dignidade e força”, por serem naturais (cf. Seligmann-Silva in Laocoonte, p.51); a poesia, em resumo, deseja despertar a ideia em um instante, por meio do registro metafórico da linguagem. A discussão sobre as consequências dessa complexidade escaparia do propósito do nosso trabalho. 205 RICHTER, Intimate Relations: Music in and around Lessing’s “Laokoon”. In: Poetics Today, v. 20, n. 2, 1999, p. 156 206 idem, p. 170

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

151

música, como movimento (Bewegung), representaria a autêntica contrapartida da

pintura – seriam neutralizadas à luz dessa teoria dos signos207. Moses Mendelssohn

(cuja apreciação crítica negativa de Lessing converge com a de Herder) procurava

estabelecer uma oposição entre signos naturais e arbitrários não mais em relação à

poesia e à pintura, como no sistema de Lessing, mas em relação à música e a pintura:

“Aquela (a música) utiliza igualmente signos naturais, mas imita apenas por meio do movimento [Bewegung]. A poesia possui algumas qualidades em comum com a música e algumas em comum com a pintura. Os seus signos possuem um significado arbitrário, daí eles expressarem às vezes coisas que existem uma ao lado da outra [nebeneinander], sem com isso realizarem uma invasão no campo da pintura”208

Todavia, Lessing sempre manteve a convicção de que a imitação da arte musical

ligava-se originariamente àquela da arte poética209. Assim, ainda que a música não trate

especificamente de ações verbais, ela pode, por meio do movimento de seus signos

naturais, de fato, expressar ações. Dito de outro modo, os campos semióticos da poesia

e da música aproximam-se mediante o traço comum e essencial da sucessividade de

seus objetos no tempo. Em que pesem as nuanças fornecidas pela teoria dos signos do

sistema de Lessing, que colocam a música a meio caminho entre pintura e poesia,

interessa-nos observar a demarcação entre os meios orientados pelo referente espacial-

simultâneo e aqueles orientados pelo referente temporal-sucessivo, regulamentando a

especificidade dos objetos de cada arte; para Lessing, portanto, a música seria um meio

de articulação de signos não arbitrários, de sons ordenados um após o outro

(aufeinander) no tempo.

Rodrigo Duarte aponta para o fato de que a demarcação do Laocoonte reagia à

contaminação de um meio artístico sobre outro no âmbito da estética clássica do século

18, em particular, de certa subordinação histórica das artes plásticas à literatura210. Essa

tendência, constatada por Clement Greenberg em Rumo a um mais novo Laocoonte,

207 idem, p. 156 208 Moses Mendelssohn apud Seligmann-Silva in Laocoonte, nota 2, p. 200 209 RICHTER, Intimate Relations: Music in and around Lessing’s “Laokoon”, p. 161: “Lessing (…) wrote in paralipomena 27: ´There really was a time when both poetry and music together were a single art´” 210 DUARTE, Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno, p. 32

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

152

teria animado o estabelecimento de fronteiras por parte de Lessing, que todavia

privilegiava antes o caráter narrativo das artes temporais:

“Lessing, em seu Laocoonte, escrito na década de 1760, identificou a presença de uma confusão das artes tanto prática quanto teórica. Mas viu os seus efeitos prejudiciais exclusivamente em termos de literatura, e suas opiniões sobre artes plásticas apenas exemplificam os típicos equívocos de sua época. Ele criticou os poemas descritivos de poetas como James Thompson, vendo neles uma invasão do domínio da pintura de paisagem, mas, sobre a invasão da poesia pela pintura, tudo que conseguiu foi condenar pinturas alegóricas que requeriam uma explicação e quadros como O filho pródigo, de Ticiano, que incorporam “dois pontos necessariamente separados do tempo num único e mesmo quadro”211

Daí podermos constatar o caráter ideológico e heterônomo que motiva a divisão

“racional” e sistemática entre arte temporal e arte espacial na teoria de Lessing. Essa

remissão ideológica, que se propaga no interior do debate estético alemão, seria então

denunciada por Adorno no ensaio de 1965, na passagem que vimos acima. De todo

modo, notamos que uma parte significativa dos pressupostos de Lessing influenciará os

conceitos adornianos de espacialização e pseudomorfose.

Momento transcendental? O “princípio imanente” e o “puro meio” da música

O excurso sobre o Laocoonte permite compreender sob outra perspectiva a

problemática da pseudomorfose em pintura, tendência que, como vimos, teria atingido

seu paroxismo na obra de Stravinsky segundo a crítica de Adorno. Podemos afirmar que

a concepção segundo a qual cada meio artístico possuiria um “princípio imanente

puro”212, bem como a crítica à espacialização, remete à delimitação de Lessing em sua

recusa teórica à emulação entre os meios. Para os dois autores, a especificidade do pures

Medium da música compromete-se com o aufeinanderfolgende, com o caráter

processual da sucessão, de um elemento após o outro. Lembremos que, no ensaio sobre

Stravinsky de 1962, Adorno considera (ainda) que,

211 GREENBERG, Rumo a um mais novo Laocoonte, pp. 25-6, apud DUARTE, Ibid., p. 32 212 Ver nota acima 196

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

153

“como arte do tempo, a música está ligada, pelo seu meio puro (pures Medium), ao fato da sucessão e portanto é irreversível como o próprio tempo. Ao iniciar, compromete-se em ir adiante, a virar algo novo, a se desenvolver”

(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 386-387)213

Se Lessing defendia uma “relação conveniente” entre objetos e meios artísticos a

ser respeitado pelo artista, Adorno prevê analogamente aqui uma adequação, em termos

de um tratamento composicional que não deveria ser abandonado, entre a faticidade do

sonoro – sua irreversibilidade – e o “meio puro” da música. Esse imperativo de

adequação fundamentaria não apenas sua crítica a Wagner, Stravinsky, ao jazz, mas

também paralelamente sua crítica à vanguarda nos anos 1950 e 1960, que analisaremos

na Parte II.

Esta é provavelmente a principal objeção à concepção adorniana de tempo

musical, que foi levantada por vários comentadores e críticos musicais: a partir da mera

adequação entre meio e seus objetos, ou de uma “relação conveniente” nos termos de

Lessing, Adorno deduziria uma obrigação composicional para a formalização específica

do tempo. Ou seja, a partir do mero truísmo de que a música transcorre, Adorno

considera-se a adequação conveniente com o meio um invariante, e mesmo, um

transcendental, a condição de possibilidade da obra214. Esse “deslize transcendental” é

apontado por Richard Klein, que critica não apenas a insuficiência, mas o equívoco

fundamental do conceito adorniano de tempo e de espacialização: nesses conceitos,

haveria a passagem teórica subreptícia e não necessariamente essencial de uma simples

constatação da pura fisicalidade do som, de seu meio puro no devir, para um

compromisso com a organização de uma historicidade interna da composição 215. Essa

passagem subreptícia não estaria plenamente justificada por Adorno, sendo refutável do

ponto de vista materialista. Adorno simplesmente estaria construindo uma norma

estética a partir da descrição do contínuo, tomando a sequência irreversível de toda

realização musical como o sentido estruturalmente obrigatório da temporalidade 213 „Musik ist, als Zeitkunst, durch ihr pures Medium an die Form der Sukzession gebunden und damit irreversibel wie die Zeit. Indem sie anhebt, verpflichtet sie sich bereits weiterzugehen, ein Neues zu werden, sich zu entwickeln“. 214 Ver passagem já citada: “Podemos chamar isso de transcendência da música: o fato de que ela em qualquer instante torna-se algo e algo outro do que era (…)”(Stravinsky, um retrato dialético, GS 16, 387) 215 KLEIN, Die Frage nach der Musikalischen Zeit, p. 66

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

154

progressiva de uma obra216. Daí nossa sugestão de uma metafísica da antifonia

motívica. Dahlhaus, como vimos anteriormente, também constata certo dogmatismo na

apreciação do modo da Entwicklung como o único modo válido de progressão temporal.

Nesse sentido, afirma que a filosofia da história aplicada às formas musicais

universaliza um juízo estético particular, ligado à técnica de variação em

desenvolvimento, revelando-se a um só tempo politicamente “decisionista” e

esteticamente “subjetivista”217. Os termos remetem à observação de Peter Bürger, para

quem a ênfase adorniana no conceito problemático de autonomia o conduziria a um

“decisionismo de avaliação”218. Dito de outro modo, assim como em Lessing haveria

um momento ideológico na distinção sistemática entre arte temporal e arte espacial, tais

comentadores observam um momento ideológico na própria concepção adorniana

segundo a qual o meio formal “puro” da música, seu “princípio imamente”, deve seguir

o ideal utópico da Entwicklung. Ela seria ideológica no sentido de universalizar a

perspectiva da Entwicklung como sendo aquele que define o tempo musical e de

dissimular tal universalização219.

Seríamos coagidos a interpretar esse momento especulativo como ideológico,

reconhecendo que Adorno simplesmente se inscreveria na tradição austro-germânica,

que remonta à técnica da variação em desenvolvimento e à “antifonia motívica” no

classicismo, consolidada em Beethoven: essa tese contra Adorno é partilhada por

comentadores e críticos musicais, além de Klein e Dahlhaus, como Wellmer220, Chua221,

Zagorski222 e Adlington223. A ênfase ao pensamento motívico-temático constituiria seu

216 Ibid., p. 64–66 217 DAHLHAUS, Das Problem der “höheren Kritik”: Adornos Polemik gegen Strawinsky, p. 14: “A filosofia da história – a höhere Kritik – pode ser desmembrada em, de um lado, “decisionismo” político e, de outro, “subjetivismo” estético” 218 BÜRGER, Zur Kritik der idealistischen Ästhetik, Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1983, p. 132 219 Cf. BÜRGER, Teoria da vanguarda, São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 101 220 WELLMER, Adorno, la modernité, le sublime, apud BOISSIÈRE, La pensée musicale de Theodor W. Adorno, p. 142: “há uma (…) outra tradição [ligando Debussy a Stravinsky] que Adorno, marcado pela tradição austro-germanica de um construtivismo dinamico e expressivo, nunca soube bem o que fazer” 221 CHUA, Rioting with Stravinsky: a Particular Analysis of the Rite of Spring, p. 96: "This is in fact Adorno’s insight into Stravinsky’s music, but it is also Adorno’s blindness, for the philosopher’s Teutonic prejudice can only see (...)" 222 ZAGORSKI, “Nach dem Weltuntergang”: Adorno’s Engagement with Postwar Music. In: Journal of Musicology, v. 22, n. 4, 2005, p. 701: “despite relevant changes, Adorno’s narrow reading of an Austro-German compositional tradition is a constant that defines the standard for his engagement with postwar music”

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

155

ponto cego. Contudo, o teor geral dessas críticas obscurece o fato de que os fragmentos

sobre Beethoven já previam modalidades complementares ao ideal da Entwicklung, não

necessariamente tomadas como regressivas. Como vimos no primeiro capítulo, a

própria exegese de Beethoven, ao contrário do que esse comentadores sugerem, observa

os perigos de “recaída ideológica”. Ainda que Adorno retire da antifonia motívica o

substrato de seu conceito de tempo musical – como exigência própria do material – a

teoria dos tipos prevê modalidades distintas da relação da totalidade da obra com o

tempo musical. É preciso reafirmar, portanto, que a simples recusa ao ideal de

Entwicklung não implica inconsistência formal, tornando no mínimo limitantes as

acusações dos comentadores acima contra Adorno, que depreciaram a complexidade de

seus ensaios sobre música e pintura. Veremos, no contexto dos anos 1960, que um

paradoxo emerge precisamente no fato de que a ruptura com a essência da música, com

o tempo musical, condiz com o estágio técnico do material e com seu princípio

imanente: daí a temática sobre a imbricação das artes, sobre a fusão dialética das artes

que Adorno toma como objeto de reflexão a partir de 1966. Os ensaios sobre música e

pintura já mostravam que a constatação de um princípio imanente associado a cada

meio não leva a uma imposição ontológica nem à determinação funcional e não-

dialética dos limites de seus materiais.

3.2 Os ensaios de 1950 e 1965 sobre música e pintura

A fim de expor a maneira pela qual a terminologia do Laocoonte de Lessing é

dialeticamente reconfigurada por Adorno, parece-nos relevante confrontar seus dois

ensaios dedicados à relação entre música e pintura: Sobre a relação entre música e

pintura hoje (GS 18, 140-8), publicado em 1950, e o já mencionado Sobre as relações

entre música e pintura (GS 16, 628-42), publicado em 1965. A distância de quinze anos

que separa esses ensaios permitiria demonstrar a tenacidade da posição adorniana no

223 ADLINGTON, Musical Temporality: Perspectives from Adorno and de Man. In: repercussions, v. 6, n. 1, 1997, p. 26: “Adorno frequently dismantled the subject-object antinomy in his musical criticism, siding unambiguously with the subjective qualities of music as determined by his philosophical predecessors. This was undoubtedly as much due to his personal affiliations with composers of the ‘Second Viennese School’, as any conservative bias toward Austro-German idioms and tradition”

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

156

que se refere à “relação conveniente” de cada meio com seu objeto correlato, adequação

esta que seria assegurada pela noção de material, mas que se afasta da visão sistemática

de Lessing. Vimos que, ao encaminhar os conceitos de espacialização e pseudomorfose

antes desses ensaios, Adorno sancionava o ideal da “arte da Entwicklung” no trabalho

motívico-temático como a própria subjetividade na prática compositiva. Os dois ensaios

sobre as relações entre música e pintura também exploram diretamente a temática do

processo de espacialização do tempo musical e, assim como os dois ensaios sobre

Stravinsky (cujo intervalo de publicação é praticamente o mesmo224), tomam a obra do

compositor como caso paradigmático de tal processo na modernidade.

No ensaio sobre música e pintura de 1950, Adorno sugere inicialmente que a

tendência de pseudomorfose da música em direção à pintura, inerente à Aufklärung,

assinala o surgimento de toda música moderna: “Não há dúvida de que as origens da

nova música no ocidente podem ser encontradas na pintura” (Sobre a relação entre

música e pintura hoje, GS 18, 142). O argumento central apoia-se no fato de que as

relações entre música e pintura atestam uma contínua e unilateral adaptação histórica da

música à pintura, não apenas em certos traços externos, mas em sua especificidade

estrutural interna. Adorno caracteriza aqui o fenômeno da pseudomorfose como

historicamente inevitável. Após o colapso do figurativo na pintura e da tonalidade na

música, tal adaptação coincidiria com a guinada “objetivista” da música moderna em

todas suas tendências (incluindo a fase dodecafônica de Schoenberg), confirmando o

enfraquecimento do polo subjetivo e a reificação da expressividade musical. Para

Adorno, como vimos já em FNM, a Aufklärung impõe o triunfo do espírito da pintura

sobre o espírito da música por sua própria “natureza”, que privilegia a organização

disciplinada do espaço em detrimento à especificidade caótica, resistente à apreensão

conceitual, do tempo225. Em suma: o triunfo do apolíneo sobre o dionisíaco226. A

224 Sobre música e pintura: Zum Verhältnis von Malerei und Musik heute (1950) e Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei (1965); sobre Stravinsky: Strawinsky und die Restauration (1948) e Strawinsky: ein dialektisches Bild (1962) 225 Ver seção acima 2.3 Pseudomorfose 226 Em O nascimento da tragédia, Nietzsche refere-se à “pintura sonora” (Tonmalerei), como sinônimo de música programática, para indicar a degenerescência da autêntica arte musical. Esta seria regida pelo princípio dionisíaco de onde se origina a tragédia, posteriormente degenerada em arte da “aparência” que mimetizaria as artes plásticas, guiadas pelo princípio apolíneo de beleza e cingidas pela “consideração teórica” do mundo. A pintura sonora seria, portanto, assim como a ópera do stilo rappresentativo, a negação da verdadeira música. A supremacia da “consideração teórica” sobre a “consideração trágica” do

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

157

menção à polarização nietzscheana de O nascimento da tragédia entre o caráter

apolíneo da pintura e o caráter dionisíaco da música é fornecida, aliás, pelo próprio

Adorno no texto (cf. GS 18, 143).

Fundamentalmente, as considerações anteriores de FNM sobre a pseudomorfose

em Stravinsky são reproduzidas no ensaio de 1950: os expedientes técnicos da

pseudomorfose estariam prefigurados na transferência operada por Debussy de técnicas

advindas da pintura impressionista; as obras impressionistas, “estáticas, espaciais”, não

progridem, permanecem “fora do fluxo temporal” (Sobre a relação entre música e

pintura hoje, GS 18, 143), sobretudo pela justaposição de complexos sonoros

indiferentes à narratividade, o que condicionaria um modo de escuta instantânea. Assim,

em Debussy, “o decurso temporal não constitui essencialmente a forma, mas

corresponde ao ordenamento coextensivo (nebeneinander) e contrastante de superfícies

coloridas” (GS 18, 144). A constituição formal, que deveria confrontar dialeticamente o

decurso temporal, que deveria suprimir a Langeweile, mediante o trabalho do

desenvolvimento motívico-temático, é renunciada pela escrita de Debussy. Portanto, a

sequência dos eventos individuais (die Aufeinanderfolge) já se apresenta em Debussy

como fortuita e apática em relação ao “padrão do ‘desenvolvimento’” (nach dem Maße

von 'Entwicklung') (GS 18, 144). Para Adorno, a fatura composicional de Debussy daria

plena visibilidade à progressiva submissão da música à pintura, na medida em que

dispõe a sequência dos eventos musicais como superfícies ordenadas de maneira

coextensiva, simplesmente justapostas, que seriam a princípio permutáveis no interior

da forma.

A obra de Stravinsky adotaria esse mesmo gesto de Debussy, cortando porém o

último traço da subjetividade musical, o elemento mediador de contraposição ao

princípio da Entwicklung, que ainda caracterizava a ruptura do impressionismo musical.

Ou seja, a subjetividade ainda se expressa em Debussy como negação determinada ao

princípio da Entwicklung, em seu confronto com o espírito sedimentado do material. O

mundo compatibiliza-se com aquela da pseudomorfose da música em pintura, no sentido de uma progressiva dominação do princípio apolíneo (teórico, ordenador, racional) sobre o elemento dionisíaco (trágico e verdadeiramente artístico). Cf. NIETZSCHE, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, cap. 16; 17 (passim) Sobre “pintura sonora”, cf. p. 103

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

158

elemento regressivo em Stravinsky, que assimila a técnica de Debussy sem se referir às

tensões que ela provoca no material, coincide, para Adorno, com o elemento regressivo

da pintura de Kokoschka, em seu esforço de cristalizar, no meio específico das artes

visuais, o fluxo inconsciente temporal da experiência. Essa experiência, que o

expressionismo de Kokoschka procuraria dar conta, estaria “genuinamente” (genuin)

mais próxima, todavia, da especificidade musical. Nesse sentido, Stravinsky e

Kokoschka sucumbem, inversamente à especificidade de cada meio, a pseudomorfoses.

De modo esquemático, na visão de Adorno, se Schoenberg e Picasso seriam

tecnicamente superiores a Stravinsky e Kokoschka, é porque as técnicas daqueles fazem

avançar materialmente as particularidades irredutíveis de cada meio, enquanto as

técnicas destes cedem a pseudomorfoses. Em Schoenberg, sobretudo no período da

atonalidade livre, o material avança pela renovação baseada no princípio de construção

diretamente ligado ao “campo de problemas” (Problemlage) específicos da música; em

Picasso, o material avança pela tendência de redução às formas puras espaciais, ao

esfacelamento em complexos geométricos, resultante de uma reflexividade autônoma.

Desse modo, “tendências formais análogas inevitavelmente possuem significados

diferentes, mesmo opostos, na arte temporal da música e na arte espacial da pintura”

(GS 18, 142). Ao seguirem as tendências do material da música e da pintura, os

procedimentos de Schoenberg e Picasso, ainda que aparentemente “divergentes”,

constituiriam de maneira homóloga os enclaves de liberdade na arte moderna. O

conceito dialético de material, vinculado à especificidade de cada meio, atua de maneira

preponderante na constatação adorniana de pseudomorfoses. No ensaio de 1950,

portanto, o objetivismo de Stravinsky decorre da precipitação contínua, em

conformidade ao movimento histórico da Aufklärung, de elementos das artes visuais

sobre a música.

Já no ensaio do 1965, Adorno desloca o foco da análise para o processo de

convergência das artes, relativizando a preponderância dos influxos estruturais da

pintura sobre música. Equilibra-se a argumentação mediante o reconhecimento, por

exemplo, de permutações que levariam a uma crescente dinamização na evolução da

pintura, como a criação da “ilusão temporal”. Embora a ideia de “triunfo da pintura

sobre a música” do ensaio de 1950 seja atenuada em 1965, Adorno ainda parece insistir

na ideia de espacialização do tempo musical e mesmo na prevalência de tal reversão

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

159

quando comparada ao processo de “temporalização do espaço pictórico”: “a música (…)

está mais relacionada ao espaço do que a pintura ao tempo”227. É interessante observar

que a crítica à reificação da subjetividade musical, no interior da qual a pseudomorfose

em Stravinsky representaria uma etapa decisiva, é seguidamente retomada:

“Na música, o movimento em direção à pintura, mesmo depois da recusa a Wagner e ao princípio neo-romântico da sinestesia – eu ouço a luz – prolongou-se nas correntes antiwagnerianas: uma prova de sua violência subterrânea remanescente. A pseudomorfose em pintura, uma das categorias-chave para Stravinsky, continuação do enfoque de Debussy (…) hoje deve ser compreendida como um degrau no processo de convergência”

(Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 629)228

Assim como descrito no ensaio anterior, a pseudomorfose da música em pintura

– “uma das categorias-chave para Stravinsky” – manifesta-se com “violência

subterrânea”, mesmo naquelas correntes distantes do deliberado projeto wagneriano de

espacialização (“Zum Raum wird hier die Zeit”) e de experimentos sinestésicos (como a

peça Prometheus de Scriabin, de 1910, na qual se utiliza um “teclado de luzes”, o

Chromola, associando cores a notas). Rodrigo Duarte defende que o uso da expressão

“hoje deve ser compreendida” no trecho acima sinalizaria uma revisão da postura

adorniana quanto à interferência de um meio artístico sobre outro, tendo em vista as

manifestações artísticas dos anos 1960; uma revisão que seria posteriormente

confirmada na conferência A arte e as artes (1966). Para Duarte, o conceito de

pseudomorfose refere-se inicialmente a um dos momentos centrais da crítica adorniana

à reificação dos meios: “o aspecto essencialmente crítico que o conceito assume em

Adorno diz respeito ao fato de que metamorfose é o indício de um estado de coisas

alienado, reificado”229. Não obstante, Duarte acredita que, em meados dos anos 1960,

Adorno passaria a legitimar certa modalidade de importação de procedimentos de um

meio artístico para outro, a possibilidade de uma “inter-relação autêntica dos diversos

métiers”, inter-relação esta que, “no contexto da arte contemporânea, pode ser

227 GS 16, 638: „Indessen ist Musik wahrscheinlich, ihren empirischen Voraussetzungen nach, als innerräumliche sinnfälliger auf den Raum bezogen als Malerei auf die Zeit“ 228 Tradução em DUARTE, Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno, p. 40 229 Ibid., p. 35

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

160

importante e até mesmo desejável”230. Tal reavaliação do conceito de pseudomorfose,

efetuada “sob pressão de importantes acontecimentos dos anos 1960”, estaria

plenamente consubstanciada no ensaio de 1966, no qual então se examinava o

fenômeno da “imbricação” (Verfransung)231. Em linha interpretativa semelhante, Borio

defende que “Adorno reconsiderou o problema da pseudomorfose” no ensaio sobre

música e pintura de 1965, de modo que o mesmo fenômeno que ele “discerniu em

Debussy e Stravinsky foi reinterpretado como o prenúncio de um processo de

convergência entre formas de representação artística, que tanto se referia a

procedimentos estruturais quanto a princípios estéticos”232. Borio acredita que a ideia de

pseudomorfose, “um dos momentos mais virtuosos da crítica a Stravinsky em FNM”,

seria “agora tratada positivamente”233.

Porém, considerando a continuidade e o rigor teórico dos textos, percebemos que

Adorno não abandonou sua crítica à pseudomorfose mesmo tardiamente, tampouco

tratou essa ideia em termos positivos. De fato, a pseudomorfose permanece uma das

figuras centrais da Aufklärung musical até TE. O que Adorno parece antes visar na

década de 1960 seria a exposição das razões que levariam a uma intensificação de um

processo análogo à pseudomorfose em direção à convergência dos meios. Pretendia-se

compreender a situação histórica que indicava certa exaustão do processo de

autonomização. Vejamos como, no ensaio de 1965, o ideal de Entwicklung ainda é

preservado e, desta vez, mencionado não sem um acento nostálgico:

“Aquilo que na música tradicional, incluindo Schoenberg, Berg e Webern, vale especificamente para a dimensão temporal – toda a arte do desenvolvimento e da transição temática (die gesamte Kunst von Entwicklung und thematische Übergang) – torna-se irrelevante para os compositores [de hoje]”

(Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 630, grifo meu)

230 Ibid., p. 39 231 Ibid., p. 40 232 BORIO, “Dire Cela, Sans Savoir Quoi”!: The Question of Meaning in Adorno and in the Musical Avantgarde. In: HOECKNER, Berthold (Org.), Apparitions: New Perspectives on Adorno and Twentieth Century Music, New York: Routledge, 2006, p. 66 233 Ibid., p. 65

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

161

Ou seja, mesmo em 1965, mesmo quando o problema da convergência dos

meios passa a ser diretamente tematizado por Adorno, aquilo que “vale especificamente

para a dimensão temporal”, baseada na relação diastêmica entre notas, constitui a

essência dialética do trabalho composicional. Ao contrário das interpretações de Duarte

e Borio, acreditamos que o enfrentamento do problema da convergência não conduz a

reavaliações sobre o conceito de pseudomorfose. O estranho fato de, no trecho acima, as

obras da Segunda Escola de Viena serem cingidas pelo termo “tradicional” não deveria

nos iludir quanto à adesão tardia e melancólica a técnicas que já estariam obsoletas em

1965. Antes, ficaria confirmado o diagnóstico de retração da subjetividade na nova

música “não-tradicional”, cujo processo de espacialização oblitera a essência dialética

de “toda arte da Entwicklung”.

Nesse ensaio de 1965, Adorno indica três momentos históricos decisivos do

processo dialético de pseudomorfose, simbolizados respectivamente pelas obras de

Debussy, Stravinsky, Stockhausen: Debussy dissolve, com a técnica impressionista, o

material motívico-temático em “partículas” a serem arranjadas por justaposição;

Stravinsky trata o próprio tempo “como se” fosse espaço, mediante a incipiente

composição por blocos sonoros; por fim, de maneira ainda mais radical do que em

Stravinsky, o pontilhismo da primeira fase de Stockhausen recusaria de saída a ideia de

sucessividade, a tal ponto que, se em Stravinsky a sucessão ainda era submetida a uma

fragmentação de maneira coextensiva (nebeneinander), no qual o tempo era tratado

alusivamente “como se” fosse espaço, em Stockhausen a sucessão seria totalmente

“planejada, disposta do alto como uma superfície visual” (GS 16, 630). Dito de outro

modo, aquele “como se” da pseudomorfose em Stravinsky – que corresponde a uma

recusa performática e ainda não “autorizada” pelo estágio histórico do material no início

do século 20 – teria sido completamente eliminado nos anos 1950 para se tornar um

simples “como” – Stockhausen trata o tempo como espaço. Esse diagnóstico já estava

presente no ensaio Musik und neue Musik (1960), onde se constatava que “a

organização do tempo como espaço agora se torna uma preocupação séria: o próprio

tempo deve, pela manipulação serial, tornar-se disponível e, em alguma medida, ser

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

162

capturado” – uma organização que, em Stravinsky, ainda se manifestava por meio de

um “como se”, de um “sonho do que estaria por vir”234.

O tratamento por blocos, baseado na completa homofonia, na atomização da

nota individual ou de clusters, ignorando a relação entre notas, manipula o tempo como

um “cartum”235, não encontrando correspondente na pseudomorfose da pintura em

música, em termos de dinamização. Assim, a radicalidade e a aporia da espacialização

na música contemporânea decorre da transformação do próprio meio temporal em

material, da absoluta identidade do tempo com espaço (Sobre algumas relações entre

música e pintura, GS 16, 631). Como veremos adiante, é a partir desse diagnóstico que

o tom programático de Vers une musique informelle (1961) já incitava a busca por

modelos composicionais capazes de recuperar o gesto expressivo ligado a um impulso

temporal, matizado nos anos 1910 mas esquecido pela vanguarda. Adorno queria

justamente evitar os perigos da pseudormorfose: “Para que a música se liberte da

pseudomorfose stravinskyana em pintura, é necessária uma reforma do próprio

compor”236, defendia em 1961. Se, para o ensaio de 1965, a pseudomorfose constitui

uma etapa decisiva do processo de convergência entre os meios artísticos na

contemporaneidade, é porque, longe de revisionismos entre a posição de 1950 e a de

1965, a figura da pseudomorfose expõe agora com maior clareza o momento de

regressão subjacente a uma das faces dialéticas do conceito de convergência entre os

meios, no plano mais abrangente da Aufklärung.

O conceito de “princípio imanente” ligado ao material ocupa um lugar

estratégico na argumentação adorniana e reforça, a nosso ver, a continuidade entre os

dois ensaios. Se, para o ensaio de 1950, as obras de Schoenberg e Picasso, em razão do

avanço técnico de seus materiais específicos, representavam um estágio de liberdade no

234 Música e nova música, GS 16, 484: „Was bei Strawinsky, vielleicht als verstörter Traum eines Kommenden, noch Als ob blieb, die Zurichtung der Zeit, als wäre sie Raum, wird ernst: Zeit selber soll, durch serielle Manipulation, disponibel, gewissermaßen eingefangen werden. Offen nicht länger, scheint sie verräumlicht.“ 235 Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 630: „Zeit wird nicht zu einem geometrischen Nebeneinander verräumlicht, aber insgesamt, gerade als Zeit, geplant, disponiert, von oben her organisiert wie einst nur visuelle Flächen. Der disponierenden, die Zeit wie einen Karton behandelnden Verhaltensweise im Großen entspricht eine nicht minder malerische im Kleinen.“ 236 Vers une musique informelle, GS 16, 533: „Daß die Musik aus der Strawinskyschen Pseudomorphose an die Malerei sich befreie, erheischt Umformung des Komponierten selbst.“

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

163

desenvolvimento dos respectivos princípios imanentes (a faticidade temporal na música

e a faticidade espacial na pintura, de acordo com a irredutibilidade de cada meio), para o

ensaio de 1965, esses desdobramentos, essencialmente antípodas entre si, são o que

paradoxalmente asseguram sua convergência. Para o ensaio de 1965, as artes não

convergem por sinestesia, por semelhança (Anähnelung) ou por pseudomorfose, mas

sim em um terceiro: em seu caráter de linguagem, que implica tanto a écriture e a

construção imanente em cada meio, quanto a repulsa a modelos comunicativos de

expressividade. Ambas encontram-se em algo “espiritual”, na linguagem do não-

subjetivo que rompe as estratégias transcendentais de uma síntese do eu (GS 16, 635).

Podemos dizer então que o ensaio de 1965 esclarece, de maneira retroativa, os motivos

pelos quais, para Adorno em 1950, Schoenberg e Picasso também já convergiam em sua

plena divergência de procedimentos: Schoenberg, guiado pela expansão do momento

subjetivo na atonalidade livre (faticidade temporal); Picasso, guiado pela contração

objetiva a elementos geométricos no cubismo (faticidade espacial). Como a

convergência localiza-se na partilha reflexiva do mesmo “núcleo da experiência

histórica”, expressando seu teor de verdade, é nesse sentido que “os extremos se tocam”

(Sobre a relação entre música e pintura, GS 18, 147). Ao mobilizar os conceitos de

écriture e construção, o ensaio de 1965 traz a ideia de convergência, certamente

embrionária em 1950, elaborada como o resultado da espiritualização (Geistigung) dos

materiais específicos, mas não ainda como a fusão de meios artísticos. A convergência,

portanto, não é nem pseudomorfose nem fusão. E isso estaria assegurado pelo conceito

de écriture, outro nome para construção: “o conceito de construção, que encoraja

convergência, torna-se cada vez mais poderoso à medida que as artes se encontram cada

vez mais confrontadas diretamente com o material nu com o qual trabalham” (GS 16,

641)237. Quanto maior o teor da reflexividade técnica de uma obra sobre as

especificidades imanentes a seu meio, mais acentuada será a convergência com obras de

outros meios que mantenham o mesmo teor.

Refuta-se, com isso, toda espécie de sinestesia ou de sincretismo, de “contínuo

não dialético das artes em geral”, que caracterizam aqueles experimentos artísticos

237 „Daher wird der Konstruktionsbegriff, der die Konvergenz befördert, um so mächtiger, je direkter die Künste dem nackten Material sich gegenüber finden“

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

164

dipostos a reanimar o preceito da “obra de arte total”. Isso significa que o movimento

dialético do material não se dá pelo cruzamento entre os meios, mas é ocasionado pelas

tensões históricas e monadológicas, que se dão no interior do próprio meio. Sob esse

aspecto, Adorno retoma sua crítica à aparência de totalidade da Gesamtkunstwerk de

Wagner, posteriormente retomada pelos experimentos vanguardistas. Já no Ensaio

sobre Wagner dos anos 1940, Adorno qualificava o conceito de “obra de arte total” de

“diletante”. O projeto wagneriano, em sua propensão à fantasmagoria, visava dissimular

a autonomização dos diferentes meios, por meio de uma convergência não dialética, de

uma fusão. O problema da obra de arte total reside, portanto, na disposição superficial

de uma fusão técnica arbitrária dos meios, sem que seus materiais o exijam

historicamente. É nesse sentido que Adorno subscrevia, no Ensaio sobre Wagner, o

comentário de Thomas Mann sobre o “diletantismo” da ideia de obra de arte total:

“(...) pode-se dizer, sob risco de ser mal compreendido, que a arte de Wagner é produto do diletantismo, ainda que monumentalizado pelas mais altas forças da vontade e da inteligência, elevado ao nível da genialidade. A ideia de unificação de todas as artes é ela própria diletante e, na falta do esforço supremo de sujeita-las a seu gênio expressivo, teria permanecido como tal. Sua relação com as artes permanece duvidosa; por mais estranho que pareça, há nela algo de amusia (Amusisches)”

(Thomas Mann, citado por Adorno em GS 13, 26-7)

Esse comentário repercutirá nos conceitos posteriores de convergência e

imbricação. Assim, temos razões para acreditar que o ensaio de 1965 dificilmente altera

o posicionamento teórico de Adorno em relação à ideia de convergência: apenas modula

seu significado para o novo contexto da “imbricação” dos anos 1960. Convergência e

imbricação legitimam-se, portanto, não pela inversão diletante de procedimentos, por

pseudomorfoses, mas pelo resultado de uma experiência histórica partilhada no caráter

de linguagem, no encontro dialético do material com a “essência” de seu meio. É

possível compreender a crítica à postura essencialista de Adorno no que se refere à

determinação da especificidade “incondicional” de cada meio (temporalidade na

música, espacialidade na pintura), consequência de uma separação racional que retoma,

com efeito, a divisão de Lessing. Entretanto, é forçoso reconhecer a estrita continuidade

entre o que Adorno defendia nos anos 1940 e o que defendia nos anos 1960, para

afastarmos toda hipótese de revisionismos.

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

165

O fantasma idealista de Lessing

Nesse ponto, é forçoso também um recuo. Com os conceitos de convergência em

1965 e de imbricação em 1966, Adorno não compreende a síntese das artes como uma

manifestação necessariamente progressista das vanguardas, denunciando inclusive o

risco permanente de declínio irracionalista e de regressão a estágios primitivos,

anteriores à própria segmentação dos meios artísticos. Adorno concebe tanto a

dissolução das fronteiras entre os meios quanto a convergência, como processos

irrefreáveis da Aufklärung. Por outro lado, aponta para os riscos de “crasso

infantilismo” (Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 631) nesse

percurso, lembrando que, na contemporaneidade, os progressos técnicos mais extremos

entrelaçam-se a um momento de regressão ao impulso mimético puro, anterior à própria

separação racional dos meios (GS 16, 642). O ensaio de 1965 termina com duas

perspectivas extremamente céticas: ou o retorno dialético da dominação da razão sobre

o momento mimético e sobre esse elemento regressivo que tenta promover a fusão pré-

racional dos meios ou a queda à “literalidade bárbara” (barbarischen Buchstäblichkeit)

do culto a um material absoluto.

Independentemente desse ceticismo, convém perceber o quanto a posição

conceitual dos dois ensaios é tributária à terminologia de Lessing para a ideia de

pseudomorfose. A ênfase no “triunfo da pintura sobre música” no ensaio de 1950 e a

reavaliação que indica certo equilíbrio nessa relação no ensaio de 1965 não escondem a

profunda convicção de Adorno de que a categoria de autonomia estética só se realiza em

procedimentos adequados à especificidade de cada meio, que estabelece um campo

particular de problemas – uma convicção só à primeira vista tautológica. Assim, a

redução da pintura à essência da espacialidade da tela – a emancipação das formas

geométricas e da cor em relação a todo referente pictórico, a bi-dimensionalidade –

resulta do desenvolvimento autônomo do material nas artes visuais. Lembremos que,

para Lessing, a pintura não deveria ser temporal, pois essa dimensão não é própria a

seus objetos nem à natureza essencial de seu meio. Na medida em que o tempo não

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

166

pode ser representado diretamente (apenas alusivamente) pelo meio visual, seus signos

devem ser agenciados de maneira coextensiva, ordenados ao lado do outro.

Como Adorno mesmo observa, a divisão sistemática de Lessing atende às

exigências prescritivas do classicismo, e sua arbitrariedade comporta sem dúvida um

momento ideológico. Para sermos claros: Adorno não aceita o ideal normativo das

categorias universais de Lessing. Mas sua descrição de fenômenos comtemporâneos na

música e na pintura acaba atualizando a ideia de incondicionado que define

estruturalmente cada meio, incondicionado que prescreve “leis imanentes”, o que evoca

a contrapelo a divisão de Lessing. Isso se manifesta com maior evidência quando

Adorno se refere às “condições de possibilidade da arte temporal”, às “invariantes” do

meio da sucessão como um abstrato a priori, ao compromisso com a articulação do

decurso temporal, quando insiste no desenvolvimento de um “campo de problemas”

particular – e tal insistência ocorre não somente nos ensaios sobre música e pintura. É

preciso reconhecer que Adorno defende também a imanência da dimensão temporal na

pintura como sedimentação das tensões na construção da tela – “o tempo é imanente à

pintura”238; do mesmo modo, reitera que a dimensão espacial pertence à música – “o

espaço é condição para objetivação da música”239. Mas, talvez para a surpresa do

materialismo de Adorno, essa era exatamente a mesma posição do idealismo de

Lessing: para este, o tempo na pintura assim como o espaço na música aparecem de

“maneira alusiva”. Do mesmo modo, a constância de termos como Raumkunst e

Zeitkunst, a distinção entre a organização coextensiva (nebeneinander) e a organização

sucessiva (aufeinanderfolgende), o apelo a asserções tautológicas que reclamariam a

organização essencial da sucessividade na música e uma verdadeira intervenção

subjetiva proveniente do impulso temporal, tudo isso sugere uma proximidade por

demais evidente com o programa clássico de Lessing240.

238 Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 632: „Darum ist Zeit, jenseits der bei seiner Herstellung aufgewandten, dem Bild immanent.“ 239 Consubstanciada não apenas na ideia de “forma” e “construção”, mas também na possibilidade de refutar o decreto da natureza antropológica dos sentidos: „Wehrt sich, mit allem Grund, die Tendenz zur Verräumlichung der Musik wider das Dekret, das auf Invarianten der anthropologischen Beschaffenheit der Sinne pocht, darauf, daß Auge Auge, Ohr Ohr bleibe, so darf sie darum nicht identitätswütig ihr Anderes verkennen„ (Sobre algumas relações entre música e pintura, GS 16, 631) 240 idem, ibidem: „ (…) durch die Organisation der Zeit Organisierte (ist) nicht gleichzeitig, sondern sukzessiv; der Sachverhalt läßt anders als tautologisch gar nicht sich aussprechen.

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

167

Acreditamos que a escolha da linguagem da pintura não serve apenas de

contraponto dialético, de polo necessário à compreensão da “essência temporal” da

música (Adorno não publicou ensaios sobre as relações entre música e literatura, por

exemplo). A arte do espaço serve de contraponto conveniente para uma teoria dos

extremos, na medida em que o tempo, nos termos hegelianos de Paulo Arantes, é,

primeiramente, “a negação da indiferença recíproca que define o modo de ser da

espacialidade”241. Mas, mais do que isso, a função decisiva que impulsiona a

reincidência do tema sobre artes do tempo e artes do espaço, quinze anos após a

publicação do primeiro ensaio, diz respeito à rejeição de uma síntese não-dialética das

artes no contexto dos debates dos anos 1960, quando se torna mais evidente o

esfacelamento das fronteiras entre os diversos meios artísticos. Tal rejeição ficaria

melhor delineada no ensaio de 1966, A arte e as artes.

3.3 Convergência, imbricação e rejeição de uma síntese sistemática das artes

Sabemos que Adorno resiste em prescrever definições ontológicas sobre música

ou pintura, ou ainda, em determinar de maneira funcionalista os limites dos meios

artísticos e de seus materiais. A questão sobre a “origem da arte”, nesse sentido, quando

desligada do referente empírico-social, constitui um falso problema; a historicidade e a

contínua transformação das categorias estéticas inibem até mesmo a determinação a

priori do que é ou não é obra de arte – o qualificativo de “necrológio” atribuído à

estética como disciplina autônoma (TE, GS 7, 13), destinada a realizar o recensamento a

posteriori de formas e temas suscetíveis a desaparecer do âmbito estético, encontraria

aqui seu pleno sentido. Se, por um lado, uma definição positiva de arte não se sustenta

na reflexão adorniana, por outro, cristaliza-se em sua filosofia um conceito negativo de

arte. Na palestra proferida na Akademie der Künste de Berlim em 1966, A arte e as

artes (GS 10.1), Adorno procura reinterpretar o fenômeno de erosão das fronteiras

tradicionais das artes, tendo em vista a frequência daquilo que chama de “processos de

241 ARANTES, Hegel: a ordem do tempo, p. 55

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

168

imbricação” (Verfransungsprozess) em exemplos contemporâneos significativos da

música, da literatura, das artes visuais, assim como a emergência de gêneros como o

happening. Nossa hipótese aqui é a de que Adorno procura compatibilizar o conceito de

convergência, defendido no ensaio de 1965 sobre música e pintura, com a noção de

imbricação.

Vimos acima que tanto a convergência quanto a imbricação não devem ser

compreendidas como o simples amálgama criado pela justaposição externa dos

diferentes meios, à maneira da “obra de arte total” wagneriana, cujo espectro ameaçava

retornar no contexto contemporâneo. No ensaio de 1965, Adorno assinavala o

retrocesso da ideia de “obra de arte total” e de seus epígonos, pela mescla externa dos

meios, pela “utopia abstrata” que procurava unificá-los “antes que os próprios meios o

permitissem”, antes que um meio “passasse a outro através de seu extremo”, isto é,

antes que seu desenvolvimento interno assim o permitisse242. O autêntico movimento de

imbricação origina-se, para Adorno, no interior de um processo dialético no qual o

desenvolvimento imanente do material específico de cada meio, ou seja, a intensificação

de seu processo de autonomização, conduz a um extremo tal, que levaria à própria

diluição das fronteiras dos meios, racionalmente estabelecidas pela própria Aufklärung.

Assim, o conceito de imbricação, que explicaria a articulação dos meios artísticos e a

superação de suas fronteiras tradicionais nas obras contemporâneas mais consistentes,

resulta da necessidade de compreender não a fusão abstrata, externa, entre os meios,

mas a reflexividade interna dos materiais que levaria à superação de suas fronteiras.

Essa necessidade conceitual pode ser resumida na seguinte observação de Jarvis:

“quanto mais as obras autônomas insistem em seu domínio livre sobre o material, tanto

menos se pode insistir em fronteiras absolutas entre as artes, primariamente definidas

em referência a tais meios”243.

O esquema do ensaio de 1966 consiste, primeiramente, em um diagnóstico de

época, assinalando exemplos notórios de imbricação (em artistas como Bussotti, Helms,

Schultze, Calder, Wotruba) e os antecedentes do processo de convergência. Em seguida, 242 GS 16, 637: “Das Wagnersche Gesamtkunstwerk und seine Derivate waren der Traum jener Konvergenz als abstrakte Utopie, ehe die Medien selbst sie gestatteten. Es mißglückte durch Vermischung der Medien, anstatt des Übergangs des einen ins andere durchs eigene Extrem hindurch” 243 JARVIS, Adorno: a critical introduction, p. 125

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

169

discute as insuficiências de representantes da estética moderna, como Hegel,

Schopenhauer e Kandinsky, que propuseram sistemas para a compreensão da síntese

teórica dos meios, seja pelo estabelecimento de paragone (no qual um meio deveria

“guiar” os demais), seja pela sua fusão abstrata “simbiótica” (Kandinsky); expõe

criticamente então as estratégias básicas de duas ontologias de arte contemporâneas –

Borchadt e Heidegger, que, de modo não dialético, priorizam um conceito genérico de

arte ou de pluralidade das artes; finalmente, encaminha um conceito negativo de arte,

que se coaduna com a problemática da perda de sentido decorrente do nominalismo

estético. Para o propósito do nosso capítulo, interessa-nos a última parte do ensaio, na

qual – após reconhecer a modificação da constelação dos meios na arte contemporânea,

que envolvia a mudança estrutural de procedimentos, o surgimento de gêneros como

happening (como “obra de anti-arte total”), e mesmo uma reavaliação do lugar social do

cinema – Adorno reitera a primazia do conceito de material. O aparente paradoxo da

reflexão adorniana estaria em denunciar o caráter postiço de toda teoria que define de

modo transcendental a especificidade de cada meio, e em conservar, ao mesmo tempo,

tanto o conceito modernista de autonomia quanto a própria especificidade de cada meio.

A aparente contradição dilui-se contudo no encaminhamento de seu conceito

negativo e dialético de arte. Para Adorno, a primazia objetiva da obra de arte e o

conceito de material seriam deixados de lado no momento em que se utiliza o termo

universalizante “arte”; ao se tentar definir previamente um termo como “arte”, a partir

do qual então suas “espécies” e “meios” seriam subsumidos, toma-se necessariamente a

heterogeneidade dos meios e a diversidade das obras como “acidentais”, instâncias

particulares do supra-conceito. Mas isso não significa que se deva abandonar por

completo o uso conceitual do termo “arte”. Mediante um expediente argumentativo

pouco comum, tendo em vista seu caráter quase pedagógico, Adorno compara a relação

entre o termo geral “arte” e as diversas artes específicas que o compõe com a relação

que uma orquestra possui com os instrumentos que a compõe. Segundo a metáfora, por

mais completa que seja uma orquestra, ela nunca será a continuidade integral dos

timbres efetivamente possíveis. Sempre se abrem “vazios” sensoriais (empfindliche

Lücken) entre os instrumentos, na medida em que a gama de possibilidades de formação

timbrística tende ao infinito (seja por conta da diversificação, do arranjo das formações,

ou mesmo pela composição direta da própria onda sonora viabilizada pela eletrônica).

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

170

No entanto, se a orquestra nunca vai comportar todo o espectro possível de timbres, ela,

por outro lado, contém em si a ideia dessa totalidade timbrística como telos, como

objetivo de seu próprio desenvolvimento (A arte e as artes, GS 10.1, 448). Algo

semelhante ocorreria na relação entre o conceito de arte – um conceito aberto e

negativo, nesse sentido, como o conceito de “orquestra” – e os meios artísticos

específicos. O denominador geral “arte”, tomado em sentido estrito, consistiria

precisamente nesse “formar-se” (ein sich Bildendes), que está apenas indiciado em cada

meio já estabelecido, mas que é incapaz de fundamentar ontologicamente um esquema

classificatório qualquer. Assim, se “a arte não se deixa destilar nem a partir da pura

diversidade das artes individuais nem a partir de uma pura unidade” (GS 10.1, 447), é

porque seu conceito não corresponde à denominação taxonômica de um gênero vasto

que abrigaria um conjunto de espécies, morfologicamente semelhantes a ponto de

permitir “fusões”. Os meios artísticos, para Adorno, criam relações descontínuas entre

si, seus materiais apresentam historicidades particulares, tornam-se independentes de

outros meios, quando emancipados e racionalizados no plano da história. Daí sua recusa

à toda ontologia que venha determinar a partir de um supra-conceito, a partir “de cima”,

as singularidades e eventuais semelhanças dos meios. Somente como antítese empírica à

sociedade, contudo, o termo “arte” define uma unidade dos meios, mas mesmo essa

antítese ocorre mediante a pluralidade essencial dos meios e mediante o caráter social

de aparência das obras: pelo fato de estar imersa na realidade empírica, “a constelação

que forma a arte e as artes habita a própria arte”244.

É necessário sublinhar novamente a razão pela qual Adorno preserva a

delimitação das fronteiras dos meios em sua irredutibilidade, mesmo quando reconhece

o conceito de convergência e o fenômeno de imbricação. A fim de rejeitar a redução

qualitativa de fenômenos artísticos a um termo geral (as artes não formam um

continumm), Adorno não abre mão de “diferenças essenciais” historicamente

consolidadas dos meios, uma separação racional dos meios, seja entre artes “baseadas

em imagens, imitativas, representacionais” e aquelas “originalmente despojadas das

imagens”, ou ainda, entre artes “conceituais” e “não-conceituais” (GS 10.1, 447). Os

significados de tais categorizações são continuamente tensionados pelas obras

244 A arte e as artes, GS 10.1, 448: „Konstellation von Kunst und Künsten wohnt der Kunst selbst inne“.

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

171

individuais, mas elas decorrem post facto e somente uma visão retrospectiva do

conjunto poderia inscrever tais diferenças em uma ontologia de arte acabada. De todo

modo, uma vez emancipadas e racionalizadas, essas diferenças estabelecem certas

“invariantes”, leis e “princípios imanentes” de desenvolvimento. A irredutibilidade,

marcada pela recusa tanto de uma categoria transcendental que realizaria “do alto” a

partilha sensorial em meios particulares específicos quanto de uma ideia ulterior de

síntese, permite compreender a erosão das artes e o conceito de imbricação sob outra

perspectiva. O rigor dialético pela delimitação dos meios, que, não custa insistir, se

preserva na filosofia adorniana mesmo tardiamente em 1966, remete assim a seu

conceito de material.

Como vimos anteriormente, o material, enquanto mediação histórica e parte

integrante do processo de dominação da natureza, difere radicalmente da “matéria” – no

caso da música, a organização dos sons, cuja produção e recepção são historicamente

determinadas, difere da ideia de som imediato, em estado “puro”, “natural”245; no caso

da pintura, do mesmo modo, a materialidade da linha ou da cor, tomada em estado

“puro”, em sentido não-histórico, seria irreal. Para Adorno, essa ideia de “matéria bruta”

integra-se ela mesma à “dialética da espiritualização” do material. Desse modo, a

emancipação do ruído em John Cage, por exemplo, que procurava eliminar por “decreto

estético” a não-historicidade do som, assim como a “espontaneidade” do action painting

de Pollock ou Kline sempre possuem, a contrapelo, um núcleo histórico e socialmente

intencional. A forma estética só atinge seu teor de verdade quando resulta de uma

exigência interna do material conferida por esse núcleo. A autêntica convergência entre

as artes, portanto, resulta de uma exigência dos próprios materiais, da articulação

interna de cada meio, que se materializa na obra singularizada. É nesse sentido que uma

“estética da obra” (e não de um estilo), comprometida em “resolver” problemas ou

explorar as possibilidades das obras anteriores, fornecidas pelo próprio meio de maneira

determinada, conduz à recusa adorniana de uma síntese ou sistematização das artes. A

imbricação, que dilui as fronteiras tradicionais dos meios, é assim impulsionada pela

própria categoria de autonomia dos meios, como negação determinada intra-estética

245 BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, Villeneuve d’Ascq: Presses Univ. Septentrion, 1999, p. 183

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

172

respectiva. Em TE, ao se contrapor à fetichização da categoria de novo, à sua

transformação em categoria abstrata, Adorno declarava que “quando a possibilidade de

inovação se esgota, a tendência da inovação deve mudar e ser buscada em outra

dimensão” (GS 7, 41). Essa busca em outra “dimensão”, determinada internamente pelo

material de cada meio, é o que melhor caracteriza a noção de imbricação. Em suma, o

processo a que Adorno se refere não corresponde à “intersemiose”, a uma convergência

no sentido da construção de “intermeios”, tampouco à “multimeios” artísticos; a

imbricação aqui significaria uma espécie de concórdia na écriture dos diferentes meios

dado pelo momento histórico, sua transformação em “parameios”246.

O tempo como “momento refletido”

Em Vers une musique informelle (1961), Adorno reafirmava a necessidade de se

preservar o “princípio imanente” vinculado ao meio musical, sua “pré-condição

específica”, advertindo que “negligenciar o tempo na música significa nada menos do

que falhar em uma de suas pré-condições materiais específicas”247. Atuaria ainda aqui o

ideal de Entwicklung. Porém, a partir do ensaio de 1966, tem-se a impressão de que essa

“pré-condição material específica” na música seria relativizada. Isso possivelmente

motivou alguns comentadores a considerar que Adorno “renunciaria” ao conceito de

pseudomorfose ou passaria a ter uma visão mais “positiva” dos processos de

convergência. Mas, caso tal consideração fosse procedente, Adorno estaria

simplesmente sinalizando que seu conceito de material teria sido um grande equívoco e

colocaria em risco a própria consistência de seu pensamento estético. A nosso ver, a

mudança na compreensão do a priori da dimensão temporal na arte musical procede

antes de uma modulação histórica do próprio conceito dialético de material: na medida

em que o regime de permanente inovação na música de vanguarda dos anos 50 e 60 foi

extenuado pelo nominalismo, Adorno agora passaria a considerar que o estágio agônico

e extremo da técnica foi atingido, no qual aquele mesmo princípio imanente da arte

246 Devo a Ricardo Fabbrini a sugestão do termo “parameios” e o comentário sobre a oposição adorniana à tradução intersemiótica entre os meios 247Vers une musique informelle in QUF, p. 310

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

173

temporal, sua condição de irreversibilidade e sucessividade, baseada no conceito de

Entwicklung, deixava de ser pré-condição material específica do caráter de aparência da

obra e passava a ser um momento. Essa inflexão radical é perfeitamente consistente com

com o movimento da dialética adorniana e de modo algum seria a resultante de

revisionismos. Por outro lado, essa inflexão é certamente uma das mais surpreendentes

em todo o pensamento musical (e estético) de Adorno. Ela surge na segunda metade dos

anos 1960, e seu alcance pode ser apreendido pela seguinte passagem de TE:

“(…) Sem dúvida, durante muito tempo prevaleceu o fato de que a música deveria organizar sugestivamente a sequencia intratemporal dos seus fenômenos: deixar que um acontecimento decorra de outro de um modo que permita tão pouca reversibilidade como o próprio tempo. Mas a necessidade desta sequencia temporal, conformemente ao tempo, nunca foi literal [wörtlich] mas fictícia, participação no caráter de aparência da arte. Hoje, a música rebela-se contra a ordem convencional do tempo; em todo caso, o tratamento [Behandlung] do tempo musical deixa espaço para soluções amplamente divergentes. Por mais questionável que seja o fato de a música poder ou não se esquivar à invariância temporal, é igualmente certo que esta, uma vez refletida, se torna um momento [Moment] em vez de um a priori.”

(GS 7, 42; TE 44-5, com alterações)

Tentemos interpretar a complexidade do que está sendo dito à luz do conceito de

imbricação. O que Adorno está colocando em questão aqui, tendo em vista a

radicalização do processo de autonomia da música contemporânea na década de 1960, é

nada menos do que a obrigatoriedade teórica com o ideal da Entwicklung, com a

irreversibilidade do tempo que desde os primeiros fragmentos sobre Beethoven

fundamentavam sua “autêntica filosofia da música”. Assim, o que seria essencial à arte

musical (“Sem dúvida, durante muito tempo prevaleceu”, a saber, durante toda a história

da arte musical até 1966, pelo menos), a “invariância temporal” passa a ser, em função

dos desdobramentos ulteriores da vanguarda em seu “protesto” contra a irreversibilidade

do tempo, um momento; a conformidade da música com a irreversibilidade do tempo

empírico e, por extensão, com uma lógica narrativa, descobre-se então “fictícia”,

aparente, e não mais “literal”, obrigatória. A arte temporal encontraria, em sua “busca

por outra dimensão”, o oposto de si mesma quando toma o próprio tempo musical como

um momento dialeticamente refletido. Trocando em miúdos, podemos ler a passagem

acima do seguinte modo: se a música contemporânea rebela-se contra a ordem

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

174

convencional do tempo, é porque neste ponto histórico da evolução do material, e

somente neste ponto histórico extremo no qual o meio passaria a desagregar a própria

“essência dialética” de si mesmo, tal ordem convencional não daria mais conta de

fornecer as possibilidades de inovação do material. O novo na arte musical, em sua

inelutabilidade histórica, precisaria então ser encontrado em “outra dimensão” – no

espaço. Lembremos que a negação determinada à ordem “convencional” e narrativa do

tempo é provocada por um estágio evolutivo extremo do material, cujo sentido

histórico, como descreve Almeida, sempre se define por “práticas conflitantes, que só

podem ser apreendidas no contexto da produção”248. Assim, Adorno não recua de sua

crítica à pseudomorfose nem do conceito de material, pois o processo que toma o tempo

musical como um momento é, sem dúvida, um processo distinto daquele de

pseudomorfose. O que a pseudomorfose realiza, enquanto falso movimento de

convergência, é a suspensão da irreversibilidade do tempo mediante de uma negação

abstrata, ou seja, mediante a “escamotagem” de um meio artístico sobre outro, mediante

a fusão entre os meios antes que fosse exigida pelo princípio imanente destes. Isso

porque, ainda que esteja vinculado ao processo de racionalização, a pseudomorfose

desconsidera a configuração específica do material musical. Já a inflexão que ocorre na

segunda metade da década de 60 no pensamento de Adorno (de onde viriam as noções

de convergência e imbricação) representa sua tentativa de dar conta, no plano

conceitual, do esgarçamento das possibilidades formais oferecidas pelos materiais. Com

a radicalização na década de 60, a evolução formal levaria à dissolução das próprias

invariantes da arte musical. É nesse contexto que, para Adorno, obras como

Atmosphères de Ligeti, nas quais “não se distinguem mais notas individuais” em sentido

tradicional, “realmente não aspiram mais ser música” (A arte e as artes, GS 10.1, 434).

Não aspiram mais ser música porque a invariância temporal que sempre presidiu, para

Adorno, a essência dialética da música teria sido dialeticamente colocada em questão: o

tempo musical (não-empírico) agora é subsumido como momento refletido da obra.

3.4 Nominalismo. Sentidos para a espacialização do tempo 248 ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 292

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

175

Boissière sugere que o conceitos de convergência e imbricação começam a ser

engendrados quando um nominalismo estético passa a prevalecer no cenário da arte

contemporânea249. Com o nominalismo – a emancipação estrutural de esquemas

herdados da tradição, o afastamento das convenções – a individualização formal das

obras provoca a perda do referente de alteridade. Uma vez que a obra, ao engendrar sua

própria forma, estabelece sua rede de relações sem remissão a formas anteriores, perde-

se a história sedimentada do material. Assim, a questão da diferenças entre as artes

individuais se torna questão para Adorno apenas no momento em que a emancipação

histórica da conceito de forma se concretiza pela exigência interna dos materiais e

quando os gêneros que antes abrigavam o estoque de modelos formais começam a

estiolar em sua exigência pelo novo. A imitação das artes entre si mediante um princípio

externo – como a pseudomorfose em Stravinsky – designava uma falsa convergência,

por ignorar tanto a especificidade quanto a historicidade do meio. Todavia, a imbricação

entre as artes individuais resultaria de uma conquista do alargamento reflexivo do

material no interior formal das obras. Ou seja, quando as obras, seguindo as “leis

imanentes”, encaminham-se ao nominalismo e atingem uma situação extrema, na qual

as fronteiras entre meios tendem a desvanecer – fenômeno que diverge, vale a pena

insistir, da revogação arbitrária, implícita na ideia de “síntese das artes”. Nesse sentido,

concordamos com Boissière, para quem o conceito de material justifica tanto a

exigência dialética de uma diferença dos meios quanto os processos de convergência e

imbricação posteriores250.

*

Encontramos, em resumo, três acepções de espacialização do tempo musical,

que valem ser novamente expostas. A primeira consiste na “objetivação do devir”

ocasionado pelo kairós musical, a suspensão dialética da passagem tempo no

Augenblick, que corresponde ao tipo intensivo – tema do capítulo 1. A segunda acepção,

ligada à pseudomorfose, refere-se à interferência externa e regressiva (Adorno a

249 Cf. BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, p. 181 250 Cf. Ibid., p. 193

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

176

denomina “processo violento”251) de um meio sobre outro, que não resulta de uma

reflexão imanente do material – tema do capítulo 2. A terceira acepção, decorrente das

exigências internas do material, é ocasionada pela sua progressiva racionalização da

manipulação serial que leva o próprio tempo a atingir seu oposto – tema deste capítulo.

Embora distintas, os dois últimos tipos de espacialização são consequências da

própria Aufklärung no século 20. Em FNM, Adorno notava que “a música ameaça se

cristalizar no espaço” (FNM, 79) nas duas tendências do modernismo musical

(construção em Schoenberg e pseudomorfose de Stravinsky) e assinalava a diferença no

tratamento específico dos choques que dissociam a experiência subjetiva: defesa

subjetiva, no caso de Schoenberg, assimilação irrefletida, no de Stravinsky. A terceira

acepção de espacialização – acepção tardia que aparece tanto em A arte e as artes

quanto no trecho citado acima de TE – pressupõe a superação das invariantes que, até

então, constituíam a essência dialética da música. Adorno percebe, em meados década

de 60, que o compromisso essencial em confrontar o tempo empírico tornou-se um

“momento” dialeticamente refletido, atinge seu oposto devido ao estágio agônico do

material musical e a retração da subjetividade. “A manipulação serial está fazendo o

tempo maleável, confinado. Não mais aberto, parece ser feito como espaço” (Música e

nova música, GS 16, 485), previa em 1960. Tendo em vista a radicalização da

autonomização do material, questiona-se nada menos do que a irreversibilidade que

fundamentava o Wesen da música, seu princípio imanente, enquanto Werden, devir.

Convém reiterar esse aspecto: o fundamento da irreversibilidade prevaleceu “durante

muito tempo” (TE, GS 7, 42), pelo menos até 1966 (pois ainda em "Vers une musique

informelle, de 1961, e Stravinsky, um retrato dialético, de 1962, o tempo musical ainda

continuava sendo, para Adorno, uma das "pré-condições essenciais da música"). Assim,

a partir de certo ponto histórico da evolução do material, ponto extremo que conduz à

suspensão da essência dialética do próprio meio, a ordem convencional do tempo

musical não daria mais conta de fornecer as possibilidades de expansão da lógica do

material e se mostra fictícia: ruptura histórica do compromisso da música com a 251 Cf. Musik und Neue Musik, GS 16, 485: “Agora a manipulação serial está fazendo o tempo maleável, confinado. Não mais aberto, parece ser feito como espaço. Isso não é consequencia de processo violento. Mas não deveríamos nos calar diante da profunda dificuldade de que o contínuo do tempo não é literalmente ‘simultâneo’, como a organização do tempo iria sugerir. Mal podemos imaginá-lo em isolamento de seu desenvolvimento a partir de baixo, de seu nascimento no impulso do instante”

Parte I – 3. Arte do tempo e arte do espaço

177

configuração do tempo. Aqui, Adorno parece estar em uma encruzilhada: a fim de

preservar o conceito de material, necessita “flexibilizar” o ideal de Entwicklung, superar

a verdade do conceito, e afirmar que aquelas “pré-condições” essencialistas, suas

invariantes que asseguravam sua existência, mostraram-se afinal fictícias diante da

dialética composicional.

Parte II – 3. Arte do tempo e arte do espaço

178

PARTE II

Parte II – Introdução

179

Introdução

“Escola de Darmstadt”: panorama histórico

Em 1946, por meio da articulação política de Wolfgang Steinecke, musicólogo e

então Kulturreferent (equivalente ao secretário de cultura) de Darmstadt, surgiram os

cursos voltados à discussão da nova música que se tornariam sinônimo da vanguarda

musical europeia dos anos 1950 e 60. Com os Internationale Ferienkurse für Neue

Musik, Steinecke pretendia reconstruir a vida cultural da cidade dizimada pelos

bombardeios de setembro de 1944. A institucionalização de cursos anuais, realizados

inicialmente no castelo de Kranichstein, nas imediações da cidade, previam ensino,

pesquisa e difusão da Neue Musik, das obras proibidas e então classificadas como

entartete Musik (música degenerada) durante a Alemanha nazista. Embora ainda tenham

sido ocasionalmente apresentados, nas primeiras edições do evento, trabalhos de

compositores que haviam ganhado projeção no nazismo, o interesse pela Segunda

Escola de Viena encontrava-se formalizado já no texto inaugural dos Ferienkurse de

1946, redigido por Steinecke:

“Estamos deixando para trás um tempo no qual quase todas as forças essenciais da nova música estavam longe da vida musical alemã. Por doze anos, nomes como Hindemith e Stravinsky, Schoenberg e Krenek, Milhaud e Honegger, Shostakovich e Prokofiev, Bartók, Weill, e muitos outros, foram proscritos. Por doze anos uma política cultural criminosa roubou da vida musical alemã suas principais figuras e sua continuidade (...) Hoje, as possibilidades para o livre desenvolvimento voltaram para nós. Se nosso novo sangue musical entrar em contato com as verdadeiras forças criativas do nosso tempo, poderemos renovar a vida musical alemã. É do reconhecimento dessa urgência que foram concebidos os Ferienkurse para nova música. (...) Representam a tentativa concreta de retomar ativamente os problemas de composição e de representação da nova música”252

252 STEINECKE, programa da edição de agosto de 1946 dos Ferienkurse (apud IDDON, New music at Darmstadt: Nono, Stockhausen, Cage, and Boulez, Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2013, p. 24). Wiggershaus resume o fervor institucional em torno da ideia de “nova música” durante os primeiros anos do pós-guerra na Alemanha: “No final dos anos 1940, a Alemanha Ocidental afirmava-se como centro de vanguarda da música internacional. Com eventos como o curso internacional de verão de Darmstadt para a nova música, os programas noturnos do sistema descentralizado de transmissão radiofônica do país, os festivais de música de Donaueschingen, os concertos de Música Viva em

Parte II – Introdução

180

Foi somente a partir de 1948, no entanto, com a transferência dos encontros para

o seminário Marienhöhe e com a escolha de René Leibowitz como convidado principal

do evento, que os Ferienkurse se destacaram na política cultural alemã. Leibowitz, ex-

aluno de Anton Webern, era provavelmente o maior entusiasta da técnica dodecafônica

na França. Copiando e distribuindo partituras até então ilícitas na Paris sob ocupação,

havia lançado em 1947 o livro Schoenberg et son école e publicaria uma didática

Introduction à la musique de douze sons em 1949. Durante os cursos de 1948,

empenhou-se fortemente na divulgação da técnica e de obras ligadas a ela. Como

resultado, a programação dos concertos da edição de 1949 em Darmstadt, em

cooperação com a rádio Sudwestfunk e com a Orquestra da rádio de Frankfurt, incluiu

nada menos do que sete obras de Schoenberg, além de diversas conferências sobre suas

descobertas e seus métodos composicionais253. Schoenberg, vivendo nos EUA desde o

exílio em 1934, chegou a ser convidado por Steinecke para os cursos de 1949 assim

como para os eventos dos anos seguintes, porém recusou os convites por problemas de

saúde. Também na mesma edição de 1949 dos Ferienkurse, ocorria a estreia de Modo

de valores e intensidades, a peça dos Quatro estudos de ritmo para piano, de Olivier

Messiaen, que catalisou o pensamento composicional por “parâmetros” e as operações

automáticas de composição, ao propor “escalas” de duração e intensidade. Como

veremos a seguir, essa sistematização modal – e não serial – de Messiaen viria a

constituir um dos eixos da ideia de serialismo integral, sobre a qual se apoiaria

inicialmente a produção da nova geração de compositores, principalmente Boulez,

Goeyvaerts (alunos de Messiaen) e Stockhausen254, no início da década de 1950.

Munique, etc, a República Federal tornou-se a Meca da nova música” (WIGGERSHAUS, A Escola de Frankfurt, p. 549, com alterações). Para uma ampla introdução sobre as origens dos cursos de Darmstadt e seus desdobramentos na década de 1950 e 1960, ver, além da obra citada de Iddon, os trabalhos de Borio/Danuser, Im Zenit der Moderne, e Deliège, Cinquante ans de modernité musicale. 253 Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 49–50 254 Embora Boulez e Goeyvaerts tenham, no fundo, influenciado a concepção de Modo de valores e intensidades, Boulez ficou surpreso com rigor construtivo da peça. Stockhausen, que participou dos Ferienkurse pela primeira vez em 1951, ouviu nesse mesmo ano a gravação de Modo de valores e intensidade, uma experiência que teria dado novo rumo à sua composição; segundo Griffiths, “o que imediatamente o atraiu era o que denominou uma ´fantástica música das estrelas´, a apresentação de uma música feita de notas isoladas, ´existindo por si mesmas em completa liberdade´ e ´formuladas individualmente em isolamento umas das outras´. Até então Stockhausen havia escrito peças dodecafônicas no estilo temático tradicional (...) a substancialidade física e o impacto sensorial (da peça

Parte II – Introdução

181

A expressão “Escola de Darmstadt” provavelmente começou a circular a partir

de 1956, com o sentido de um laboratório de experimentações, de um ateliê institucional

da nova música baseada no serialismo, cujo paradigma estaria no uso depurado da

técnica dodecafônica por Anton Webern255. Essa expressão pode induzir, todavia, a dois

erros históricos significativos. Primeiramente, insinua a convergência entre seus

participantes, obscurecendo suas diferenças teóricas por vezes conflitantes. Não há

como deduzir dos cursos em Darmstadt a narrativa de um movimento artístico

programático, organizado, fundado em um modelo particular de serialismo. É preciso

sublinhar a diferença entre o uso do termo em “escola de Darmstadt” e, por exemplo,

“escola de Viena” (ou ainda, “escola de Frankfurt”). Não obstante o grau de interação e

as eventuais afinidades entre compositores como Maderna, Nono, Boulez e

Stockhausen, suas implementações do serialismo seguiam vias independentes256, de

modo que dificilmente se sustenta a reconstrução monolítica do período, a qual mesmo

Adorno parecia às vezes ceder. Em segundo lugar, ainda que a obra de Webern tenha,

de fato, desempenhado um papel preponderante, as primeiras obras desses compositores

mostram a confluência de fatores que não necessariamente se vinculavam à escola de

Schoenberg. Os exemplos são diversos. A valorização da percussão e da eletrônica em

Edgar Varèse (principal convidado dos Ferienkurse de 1950, juntamente com Ernst

Krenek) não se alinhava aos interesses formalistas do serialismo, ao menos não nesse

momento; já Boulez considerava a organização das alturas em Webern um paradigma

tão relevante quanto a rítmica de Stravinsky e a “fluidez formal” das texturas de

Debussy. Mas bastaria lembrarmos de duas obras fundamentais da “Escola de

Darmstadt” que não se vinculavam ao princípio da série: 1) Modo de valores e

intensidades, peça de Messiaen apresentada em 1949 e matriz do pensamento por

de Messiaen) permaneceram essenciais para toda sua obra posterior” (GRIFFITHS, Modern music and after, New York: Oxford University Press, 2010, p. 43; 37) 255 Aparentemente, Ernst Rittel teria sido um dos primeiros a sugerir a existência de um “estilo de Darmstadt”. Durante o programa de rádio Nachstudio em 1955, havia comentado que uma nova obra de Nono era “um exemplo típico do que poderíamos denominar estilo de Darmstadt” (Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 125); Um ano depois, Walther Wehagen afirmava que a relevância dos debates e concertos nos “cursos” em torno do serialismo havia formado uma “escola de Kranichstein” (Ibid., p. 129) 256 Sobre as disputas políticas e conceituais entre, por exemplo, Nono e Stockhausen quanto ao uso de textos e uso da voz para integração à sistemática serial, ou ainda, sobre a diversidade de reações às conferências polêmicas de Cage de 1958, que levou ao colapso da ideia de “escola de Darmstadt”, ver o capítulo 5 do livro de Martin Iddon mencionado acima.

Parte II – Introdução

182

parâmetros, que não utilizava a técnica dodecafônica, mas uma sistematização modal;

2) Polifonica-Monodia-Ritmica, de Luigi Nono, cuja estreia ocorreu em 1951 e que foi

considerada “uma das obras fundadoras da ideia de Escola de Darmstadt”257,

fundamentava-se em permutações rítmicas provenientes de uma canção folclórica

brasileira que Nono havia tomado conhecimento através da compositora e pianista

carioca Eunice Catunda – a quem, por sinal, a partitura é dedicada. A estrutura de

Polifonica-Monodia-Ritmica não possui relações com o pensamento serial, fato

confirmado pela declaração do próprio compositor anos depois: “todos diziam que a

obra remontava Webern, mas ela se baseia na canção Iemanjá (...) Peguei esse material

e o utilizei tanto do ponto de vista rítmico quanto do ponto de vista intervalar para

Polifonica-Monodia-Ritmica”258.

Em que pesem fatores alheios ao princípio de série nas origens da “escola de

Darmstadt”, o empenho militante de Leibowitz e Herbert Eimert bem como o

“despertar” dos novos compositores nos anos 1950 (sobretudo Stockhausen, Nono e

Boulez) acabaram definindo retrospectivamente os contornos atuais da expressão.

Contribuíram para isso as publicações voltadas ao serialismo, principalmente a revista

Die Reihe (editada por Eimert e Stockhausen, a partir de 1955) e as Darmstädter

Beiträge zur Neuen Musik (criada por Steinecke em 1958). Para essa geração dos pós-

guerra, o serialismo propiciava um “despertar”, fazer tabula rasa da linguagem musical

em direção a um “estado zero” da composição – propósito que, alinhado às políticas de

internacionalização e de desnazificação, encontrou amplo suporte institucional na

Alemanha259. Em outras palavras, a catástrofe recente favorecia a pesquisa por um

257 IDDON, New music at Darmstadt, p. 44 258 NONO, Une autobiographie in Luigi Nono. Écrits. Paris: Christian Bourgois, 1993, p. 54: “(...) tous disaient qu’ il (Polifonica-Monodia-Ritmica) se basait sur Webern, alors que’en réalité il se basait sur un chant Iemanja, qui est au Brésil, la déesse de la mer. C’est un chant cérémonial (...) ; ce fut justement Catunda qui nous l’enseigna. Je pris ce matériau et je l’utilisai du point de vue rhythmique comme du point de vue intervallique dans Polifonica-Monodia-Ritmica” (apud PARASKEVAÍDIS, Apuntes sobre Luigi Nono y su relación con América Latina, disponível em: <http://www.latinoamerica-musica.net/historia/nono/apuntes.html> ) 259 Iddon compila uma extensa documentação das ações militares norte-americanas para assegurar as condições básicas de realização (transporte, alojamento, alimentação etc) das primeiras edições dos Ferienkurse. Registra, por exemplo, o transporte de um piano Steinway em um jipe com soldados do exército para o castelo de Kranichstein. No próprio folheto da programação de 1948, uma nota assinada pelo governo norte-americano deixava explícito o intervencionismo: “O governo militar norte-americano saúda e patrocina o desenvolvimento desses cursos e dos Internationale zeitgenossiche Musiktage pois representam um evento adequado à reconstrução da vida cultural alemã no espírito de liberdade, do

Parte II – Introdução

183

material “puro”, neutralizado, adequado a um novo começo, dissociado de

reminiscências históricas. A força cultural da “hora zero” (Stunde Null ou Nullpunkt), o

imperativo de eliminar vestígios do passado e criar novas formas de vida, não era nada

desprezível na intelligentsia alemã do imediato pós-guerra260. A inclinação para o

serialismo, portanto, talvez não tenha decorrido apenas das “necessidades estéticas

imanentes”, da progressão autônoma e histórica do material. Autores como Griffiths e

Zagorski consideram que os cursos de Darmstadt serviam à conveniência do

acirramento ideológico da Guerra Fria, no qual o “mundo livre ocidental” defendia a

“independência criativa irrestrita” para as novas ideias em oposição ao controle estatal

soviético; algo semelhante ao que teria ocorrido com a criação do documenta de Kassel

(criado em 1956) no contexto das artes visuais261. A “abstração serial” na Alemanha

Ocidental colocava-se em oposição à doutrina do realismo socialista, estabelecida como

política cultural oficial que, repercutindo também na vizinha Alemanha Oriental,

rechaçava todo “formalismo”. Seja como for, independente das circunstâncias de

origem e das implicações políticas posteriores, a expressão “escola de Darmstadt” viria

a denominar o grupo heterogêneo de compositores que, nos anos 1950, fundamentavam

seus projetos composicionais no princípio de série: a estética da serielle Musik.

progresso e da promoção do entendimento mútuo entre as nações. Desejamos sucesso à cidade de Darmstadt e a iniciativa que tomaram”. (Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 20). 260 Stephen Brockmann resume bem a situação por meio de uma referência à leitura de Peter Sloterdijk sobre o período: “Sloterdijk suggested that postwar Germans felt the necessity to break out of the hermeneutic circle of tradition and begin in a radically new way, rejecting all inexorable lines and heritages. The ability “to begin a new and almost ex nihilo” was, for Sloterdijk in 1988, “a necessary element in the profile of an intelligentsia which, after 1945, wanted to create forms of life worthy of being passed on in a nation full of bombed-out self-destructors.” (BROCKMANN, German Culture at the “Zero Hour”. In: FRANK TROMMLER (Org.), Revisiting zero hour 1945: the emergence of postwar German culture, Washington: AICGS, 1996, p. 11) 261 Cf. GRIFFITHS, A Concise History of Western Music, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 281. Ou ainda Zagorski: “Like the Kassel documenta for visual arts, which was ‘created in 1956 with the express intention to ‘‘demonstrate to the West, in a town close to the curtain which divided Europe in two, that Germany [had] never stopped being the country of modernity’’’, the Darmstadt courses provided a venue for the support and dissemination of new ideas. The new ideas were meant to be international in scope, and by the late 1950s the events in Kassel and Darmstadt promoted abstract art as a universal language and the idiom of the free world” (ZAGORSKI, Material and History in the Aesthetics of “Serielle Musik”. In: Journal of the Royal Musical Association, v. 134, n. 2, 2009, p. 313)

Parte II – Introdução

184

Webern como ponto de partida

A composição de Webern, marcada pelo abandono de esquemas formais da

tradição e pela racionalização dos elementos sonoros, permitia uma apropriação mais

formalista da técnica dodecafônica. Era, nesse sentido, o modelo mais adequado à

procura de caminhos “neutros” e “puros” da linguagem musical. Webern “foi o único

dos três músicos da Escola de Viena que tentou a aventura de anular e de arrancar do

sistema dos doze sons, recebido de seu mestre, todas as lembranças da linguagem tonal,

sempre prontas a se alojar nos desvãos da série e dos complexos sonoros originados por

ela”262. Se, em Schoenberg e Berg, as formas e texturas das tradições clássicas e

românticas ainda se faziam ouvir, em Webern, o estrito controle e a obsessão pela

simetria serial resultavam de certa extrapolação de sua prática atonal anterior, na qual se

constatava o anseio de renovação dos métodos de composição. A clareza na estrutura e

a atenção aos detalhes instituía um estilo quase “aforístico”. Essa extrema economia

absoluta dos meios era perceptível nas Seis bagatelas Op. 9 para quarteto de cordas

(1911), escrita uma década antes da invenção da técnica dodecafônica. Na 5a bagatela,

por exemplo (ver abaixo na Figura 4), a concentração motívica, refratária a repetições,

impede qualquer tratamento melódico ou divisão entre vozes principais e secundárias;

suas células motívicas soam de modo reticente, frágil (quase toda peça está em ppp,

com suaves pizzicati), como se a organização devesse destacar não as sonoridades mas a

consistência lógica da regra definida de antemão pelo compositor: a peça acaba quando

as doze notas aparecerem263. A peça dura pouco mais de um minuto. Embora ainda não

fosse serial, a sistematicidade levada ao extremo e uma textura que tende a valorizar

cada nota como entidade separada fizeram da obra precursora do pontilhismo serial dos

anos 1950.

262 BARRAUD, Para compreender as músicas de hoje, São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 104 263 Para exaustiva análise técnica das Seis bagatelas Op. 9, em particular sobre a direcionalidade de sua organização temporal oscilando entre periodicidades e apriodicidades estruturais, ver MENEZES, Música maximalista, São Paulo: Ed. Unesp, 2006, p. 135–189

Parte II – Introdução

185

Figura 4 – partitura inteira da quinta Bagatela op.9, de Webern

exemplo de seu estilo “aforístico”

Herbert Eimert, editor e autor do ensaio que abre o primeiro volume da revista

Die Reihe em 1955, descrevia Webern como “ponto de partida para compositores

contemporâneos”264, por ter justamente “descoberto a existência da nota” como

entidade independente, e não apenas como função na relação com outras notas. Em seu

O que é música eletrônica? (1955), Eimert censurava o arcaísmo daqueles que, como

Adorno em O envelhecimento da nova música, não reconheciam o potencial de criação

a partir da ideia de nota individual. Para Eimert, o que se considerava estágio terminal

da composição, contaminada pelo pathos do artista burguês romântico, era o início da

música serial em sua abordagem paramétrica do som. O programa de tal música

objetiva, vislumbrada em Webern, prescrevia uma reorientação da composição para a

microestrutura da nota individual. Ao reafirmar um novo paradigma de composição,

264 EIMERT, What is electronic music?. In: Die Reihe #1 - Electronic Music (eng. edition), Pennsylvania: Theodore Presser, 1958, v. 1, p. 1

Parte II – Introdução

186

Eimert colocava-se ao mesmo tempo contra a perspectiva daqueles, como Adorno, que

veriam nessa reorientação um catastrófico silenciar da subjetividade musical, o

derradeiro “mutismo” do papel do compositor265:

“Entre os compositores dodecafônicos, Anton Webern concebeu a série não subjetivamente, a tal ponto que ela funcionava externamente. Visto da perspectiva de Schoenberg isso seria cortar a vida na música: um silêncio, um mutismo, um fim. Na verdade, este fim é o nosso início. Se tais procedimentos se tornam absolutos, não é difícil discernir seu lado negativo, mortífero, como fez Adorno. (Mas) não é fora de propósito questionar a objetividade da música (...)

Nunca ocorreria a um músico do século 19 definir a nota por sua altura, duração e intensidade. A nota era entendida em sua relação com outras notas e com a tensão dentro da estrutura do acorde. O século 19 não perguntava o que era a nota mas qual sua função (...) na música eletrônica-serial, por outro lado, tudo, até o último elemento da nota individual, está submetido à permutação serial”266.

A nota adquire “existência”, portanto, quando concebida como o

entrecruzamento de suas parciais ou componentes sonoras. O exame de tais

componentes indicava, segundo Eimert, que “tanto acústica quanto musicalmente” os

modelos de composição tradicional eram incompatíveis com as novas poéticas baseadas

na construção do próprio som. Sob o aspecto prático, a ideia de composição por

“parâmetros” era motivada pelas pesquisas no campo da eletrônica, fonética, teoria da

informação e psicoacústica, que vinham sendo empreendidas pelo físico e musicólogo

Werner Meyer-Eppler na Universidade de Bonn. Meyer-Eppler e Eimert idealizaram a

criação do “Estúdio para música eletrônica” na rádio WDR de Colônia em 1951, ano

em que ambos também iniciavam suas peregrinações a Darmstadt. O grupo coordenado

por eles, incluindo posteriormente compositores como Stockhausen, Goeyvaerts e

Koenig, tornou-se, por assim dizer, o centro de referência da “música por parâmetros”,

desenvolvendo experimentos eletrônicos através de tapes, geradores de ondas e alto-

falantes. Eimert enfatizava que tal transformação do material pela eletrônica, contudo,

265 Eimert referia-se provavelmente à seguinte passagem de FNM (e reproduzida em Das Altern der neuen musik, que analisaremos no capítulo abaixo): “Mit Webern abdiziert verstummend das musikalische Subjekt und gibt sich dem Material anheim, das ihm doch mehr nicht gewährt als das Echo des Verstummens” (FNM, GS 12, 108) 266 EIMERT, What is electronic music?, p. 6–8

Parte II – Introdução

187

só foi possível mediante a “epifânica” descoberta de Webern. No fim do ensaio

inaugural de Die Reihe, observava que:

“(...) um novo modo de pensamento encontrou um material musical novo, transformado. Basta dizer que novos compositores estão fascinados e comprometidos com a grande descoberta ‘da nota’ em Webern (...) Embora não pudesse ainda pensar serialmente em termos de microacústica, ele alcançou o limite extremo do material instrumental, como se tivesse rompido com as propriedades do passado e estivesse pronto para seguir adiante. A música da nova geração após Webern segue a consequência lógica de sua obra”267

A consequência lógica a ser seguida consistia na extensão do princípio da série

aos demais constituintes ou “parâmetros” do som. Grosso modo, os parâmetros

correspondem aos constituintes obtidos a partir da análise frequencial – altura,

intensidade, duração, timbre – que, posteriormente submetidos a quantificações e

escalas, viriam a determinar o próprio material das poéticas seriais268. Ou seja, o que

seria apenas uma noção descritiva a respeito das propriedades específicas do som

passava a ser utilizado de maneira formativa na composição serial. Envolta pela crença

da neutralidade científica, a noção de parâmetros deveria garantir acesso à matéria

“bruta” do som para que se pudesse construir um novo universo, livre de

“inconsistências subjetivas” e reminiscências históricas da tradição. A organização

serial baseada em parâmetros articulava-se intimamente à guinada cientificista, que

abriria os caminhos para uma efetiva tabula rasa. Nesse sentido, “a noção de

parâmetros se tornou a noção teórico-musical mais importante dos anos 1950”269.

Mesmo para Boulez – que não explorou as consequências da eletrônica como

Stockhausen, optando por uma abordagem formal mais próxima da literatura – a

extensão do princípio de série era indispensável para se corrigir as distorções de sua

aplicação exclusiva ao campo das alturas, como ainda era o caso de Webern: 267 Ibid., p. 10 268 Cf. ZAGORSKI, Material and History in the Aesthetics of “Serielle Musik”, p. 280:“The categories from and to which the serial principle was expanded – from basic parameters such as pitch, duration, intensity and timbre to more global categories related to the entire course of form – were synonymous with the term ‘material’ in the 1950s”. Posteriormente, Henri Pousseur, em artigo de Die Reihe em 1957, expandiria o conceito para além dos 4 componentes, definindo “campos harmônicos”, “registros”, “tipos de comportamento morfológico”, “densidade cronométrica”, “densidade polifônica” também como “parâmetros” (Cf. Ibid., p. 304) 269 ZAGORSKI, Material and History in the Aesthetics of “Serielle Musik”, p. 303

Parte II – Introdução

188

“As descobertas que se seguiram à Escola de Viena provaram que o fato de se encarar a série unicamente sob o ângulo da altura provoca distorções quanto a seu uso, uma vez que os outros constituintes sonoros não se sentem (em termos acústicos) ligados à mesma organização que a altura. Era o caso de se generalizar esse princípio para todas as características do fenômeno som, ou seja, unificar e universalizar o princípio teórico da série”270

Tal universalização no serialismo integral preconizava não só um novo estilo ou

uma nova forma, mas um modo distinto de escrever e sentir música; nas palavras de

Boulez, um “modo de pensar polivalente” que procurava dissolver hierarquias

estabelecidas, questionando inclusive a distinção entre som e ruído. A militância serial

não economizava afrontas: “todo músico que não sentiu – não dizemos compreendeu,

mas sentiu – a necessidade da linguagem dodecafônica é INÚTIL. Porque toda sua obra

se situa aquém das necessidades de sua época”271, escrevia Boulez em 1952, ano em que

também acusava de “esclerose indefensável” o uso da técnica por Schoenberg. Outros,

como Stockhausen, encontravam no pensamento serial as feições de um misticismo

cosmológico e espiritual272. Como veremos a seguir, esse uso formativo dos parâmetros

para fins de composição, prefigurado na peça modal de Messiaen de 1949 e na

interpretação objetivista de Webern, e desenvolvido no início dos anos 1950 a partir de

pesquisas acústicas, representou um dos pontos centrais do embate teórico entre Adorno

e o serialismo.

Adorno em Darmstadt e o incidente de 1951

O início da participação de Adorno nos cursos de Darmstadt coincide com seu

retorno ao Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt, após 15 anos de exílio na

Inglaterra e nos EUA. Em outubro de 1949, durante a viagem de volta à Alemanha,

270 BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 271 271 Ibid., p. 139 272 “O pensamento serial é algo que vem à nossa consciência e estará lá para sempre (...) É uma atitude espiritual e democrática diante do mundo. As estrelas estão organizadas de maneira serial (...) Se estudássemos as distâncias e proporções das estrelas provavelmente ecnontraríamos certas relações de múltiplos baseados em uma escala logarítimica” (COTT; STOCKHAUSEN, Stockhausen - conversations with the composer, New York: Simon and Schuster, 1973, p. 101)

Parte II – Introdução

189

Adorno encontrou Leibowitz rapidamente em Paris, que, em seguida, escreveu a

Steinecke recomendando o autor da recente Filosofia da nova música para os cursos de

Darmstadt do ano seguinte. Em 1950, Adorno esteve nos Ferienkurse pela primeira vez,

como professor de crítica musical. Entre 1950 a 1966, participou de nove edições dos

cursos, exercendo atividades de conferencista, crítico, intérprete, encarregado de

seminários, organizador de debates273. A importância que atribuía aos cursos pode ser

medida por esse intenso grau de envolvimento. Já em 1951, por exemplo, ao ser

convidado por Steinecke pela segunda vez, Adorno substituiu Schoenberg na

organização dos seminários de composição livre, interpretou ao piano suas Quatro

canções para poemas de Stefan George op. 7 e ainda proferiu duas palestras: uma sobre

a relação da vanguarda com a tradição e o problema da interpretação (Musik, Technik

und Gesellschaft), outra sobre a prática compositiva de Webern (Anton Webern), esta

última no congresso paralelo aos Ferienkurse sobre a técnica dodecafônica274. O suporte

a um congresso internacional dedicado exclusivamente à técnica dodecafônica, bem

como a estreia mundial, no mesmo ano, de “Tanzes um das goldene Kalb”, da ópera

Moses und Aron de Schoenberg, confirmavam não apenas que os Ferienkurse eram

reconhecidos como o núcleo simbolicamente mais relevante da vanguarda musical na

Alemanha, mas também que o paradigma da série havia se transformado em sua “força

de lei”; um paradigma contra o qual Adorno se opôs desde sua primeira participação. As 273 A cronologia das participações de Adorno em Darmstadt pode ser assim sumarizada: 1950 – Musikkritik 1951 – Arbeitsgemeinschaft fur freie Komposition + 2 palestras 1952 – não convidado. Escreveu, no entanto, o manifesto Fur die Kranischteiner Idee (GS 19, 630-2), impresso no programa dos cursos 1953 – não convidado (estadia nos EUA) 1954 – palestra Theorie der musikalischen Reproduktion 1955 – ciclo de conferências Der junge Schoenberg 1956 – ciclo de conferências Schoenbergs Kontrapunkt 1957 – ciclo de conferências Kriterien der neuen Musik 1958-1960 – não convidado 1961 – ciclo de conferências Vers une musique informelle 1962-1964 – não convidado 1965 – palestra no simpósio interno Form in der neuen Musik (com Boulez, Dahlhaus, Ligeti) 1966 – Arbeitsgespräch “Zeit in der neuen Musik” (com Ligeti); ciclo de conferências Farbe in der neuen Musik (ref. em ADORNO, Kranichsteiner Vorlesungen, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2014, p. 639–50) 274 Cf. Internationale Ferienkurse fur Neue Musik 1951. Dokumentation:Chronik in BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, Freiburg im Breisgau: Rombach, 1997, p. 544–551, vol. 3. Os Ferienkurse de fato não se limitavam ao contexto musical europeu. No congresso paralelo, logo antes da conferência de Adorno, a de Hans-Joachim Koellreutter descrevia a situação da “nova música” no Brasil (Guerra Peixe, Claudio Santoro, entre outros) e na América do Sul.

Parte II – Introdução

190

considerações reiteradas em Filosofia da nova música (publicado em 1949) sobre o

fetichismo dos meios e a crítica à sistematização da técnica dodecafônica sinalizavam o

dissenso contra qualquer tendência de perpetuação da técnica, na medida em que esta

restringiria a expressividade composicional. O conhecido incidente com Goeyvaerts e

Stockhausen, ocorrido no mesmo ano de 1951, viria a simbolizar sua relação conflitante

com a nova geração nos anos subsequentes, conflito cujo ápice seria atingido com a

conferência O envelhecimento da nova música (1954).

Tendo em vista sua relevância para a crítica adorniana, vale a pena detalhar o

incidente de 1951. Durante o seminário de composição livre do qual Adorno era então

responsável (substituindo Schoenberg), Stockhausen e Goeyvaerts haviam interpretado

o segundo movimento da Sonata para dois pianos op. 1, do próprio Goeyvaerts.

Adorno, perplexo com a recepção calorosa da peça por parte dos alunos após a

execução, passou a perguntar a Goeyvaerts que razões o levaram a escrever essa peça

para dois pianos, onde estava o senso de unidade, se havia pensado em antecedente e

consequente na formulação das frases. Stockhausen resolveu responder no lugar de

Goeyvaerts e, apesar de sua explicação sobre os procedimentos estruturais que

organizavam a peça, certamente alheios ao pensamento temático, Adorno insistia em

questionar a motivação para a escolha daqueles procedimentos que, no seu entender,

seriam irrelevantes para a construção do sentido musical. Adorno acrescentava que,

embora a peça tenha sido “feita” (gemacht), não estava “composta” (komponiert).

Conforme Stockhausen, a Sonata de Goeyvaerts era na época o experimento mais

próximo da ideia de determinação automática, marcada pela independência dos

parâmetros e pelo pontilhismo de Webern. Vinte anos depois, Stockhausen resumiria do

seguinte modo o incidente com Adorno:

“Em 1951, Goeyvaerts e eu tocamos sua sonata para piano. Só o movimento central: os dois movimentos eram complicados para eu aprender tão rapidamente. Tocamo-na em público durante o seminário, e ela foi atacada violentamente por Adorno. Na época, Adorno era considerado uma autoridade sobre a vanguarda: tinha acabado de escrever Filosofia da nova musica (...) Atacou essa música de Goeyvaerts, dizendo que era sem sentido, que estava em estado preliminar, que não estava composta, que era só um esboço para uma peça que ainda seria escrita. O segundo movimento dessa Sonata era de fato música pontilhista: apenas notas isoladas (...) Adorno não conseguia entendê-la. Ele disse: não há desenvolvimento motívico. Assim, fiquei lá no palco de calças curtas, parecendo um colegial, e defendi essa peça porque o belga não sabia

Parte II – Introdução

191

falar alemão. Eu disse: mas professor, você está procurando uma galinha em uma pintura abstrata’”275

Invertido, o relato não difere daquele que Adorno fez durante uma discussão

radiofônica em 1957:

“lembro-me que, quando analisei em detalhe a peça de Goeyvaerts e a considerei um enorme absurdo, alguns dos ouvintes, hoje importantes compositores da música serial, tomaram partido da peça de maneira enérgica (...) (ainda hoje) é preciso se opor à tese da imediatidade da objetividade artística, que, por razões filosóficas, considero inaceitável”276.

O episódio com Stockhausen e Goeyvaerts em 1951 certamente foi determinante

para a avaliação de Adorno sobre os desdobramentos ulteriores do objetivismo

serialista. Ao dizer que a peça não estava “composta”, ficava indiciado o ponto central

da discórdia ao longo dos anos 1950: a clivagem conceitual – que a serialização dos

constituintes do som esmaecia – entre matéria (Stoff, fisicalidade pura, neutralizada

ideologicamente em uma “segunda natureza”) e material (Material, a mediação

histórica das formas), ou ainda, entre técnica e composição. Essa clivagem, bem como a

eliminação do “caráter de linguagem” que a tabula rasa exigia e que Adorno

considerava inaceitável “por razões filosóficas”, parece-nos essencial para compreender

a peculiaridade da controvérsia de seus ensaios sobre a vanguarda dos anos 1950 e 60.

O episódio de 1951 apontava para um fenômeno ainda em vias de se generalizar e que,

com efeito, dominaria parte significativa da produção de Boulez e Stockhausen nos anos

1950. Como afirma Borio, “as novas representações do tempo musical que os

compositores do serialismo esboçaram nos anos 1950 e que discutiram em diversas

oportunidades (sobretudo nos Ferienkurse de Darmstadt) foram recebidas com grande

275 STOCKHAUSEN; MACONIE, Stockhausen sobre a Música: Palestras e entrevistas compiladas por Robin Maconie, São Paulo: Madras, 2009, p. 46–7 276 METZGER; ADORNO, Disput zwischen Theodor W. Adorno und Heinz-Klaus Metzger. In: Musik wozu: Literatur zu Noten, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980, p. 96. Nota-se o quanto o episódio foi marcante para Adorno pelas menções recorrentes em ensaios e conferências dos anos 1950 e 60, usadas para exemplificar a redução da subjetividade. Ver, por exemplo, Dificuldades I (1964), ensaio redigido mais de dez anos depois: “Ele (Goeyvaerts) realmente tinha reduzido a coisa toda, assim como fazem os filisteus (Spießbürger), a um exemplo de cálculo, a algo que até poderia estar correto – era muito entediante para eu verificar isso – mas que não possuía absolutamente nenhum sentido musical reconhecível ou convincente” (GS 17, 269)

Parte II – Introdução

192

ceticismo por Adorno”277. Contudo, Borio, assim como outros comentadores, não

percorrem a singularidade que legitimaria o ceticismo filosófico de Adorno em sua

confrontação com as teorias de Boulez e Stockhausen. Trata-se da tarefa que em alguma

medida buscamos realizar nos capítulos que se seguem.

277 BORIO, Kompositorische Zeitgestaltung und Erfahrung der Zeit durch Musik. Von Strawinskys rhythmischen Zellen zur seriellen Musik, p. 329

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

193

4. Boulez: sistema racional de tempo

4.1 Derivando estruturas de Messiaen e Webern

Os ensaios teóricos de Pierre Boulez dos anos 1950 não são apenas justificações

de escolhas composicionais ou bulas para a compreensão de obras. Antes, procuram

estabelecer, não sem a fácil propensão para a polêmica, uma complexa doutrina da

linguagem serial. Esta advém da apropriação de tradições diversas de pensamento,

trazendo o óbice das inconsistências teóricas: desde o axiomatismo matemático de

Rougier ao estruturalismo de Lévi-Strauss e às reflexões sobre contingência e

necessidade em Mallarmé e René Char. Neste capítulo, pretendemos expor brevemente

as consequências da reciprocidade entre produção musical e escritos teóricos que

incidem diretamente sobre seu conceito de forma e tempo musical.

No final dos anos 1940, Boulez havia estudado em Paris com os dois principais

compositores da geração de vanguarda do pós-guerra: primeiramente com Olivier

Messiaen e, em seguida, com René Leibowitz. Messiaen havia proposto uma uma nova

concepção de rítmica e dinâmica a partir de noções equivalentes aos modos no campo

das alturas. Como vimos, tal concepção realizou-se na peça para piano Modo de valores

e intensidades, o segundo de seus Quatro estudos de ritmo (1949-50), cuja estréia

ocorreu em Darmstadt em 1949. A ideia de Messiaen era relativamente simples: assim

como a música ocidental havia consolidado escalas para as dimensões da harmonia e da

melodia (na tonalidade, as escalas maiores e menores, a partir dos modos jônico e eólio

respectivamente), o estudo organizava a dimensão rítmica e as intensidades das notas

em “escalas” de valores de duração (desde ! até " ) e de nuances de dinâmica (desde ppp

até fff). Por analogia à escala cromática das alturas (as 12 notas no interior da oitava),

obtinha-se então uma sucessão cromática de durações e de intensidades. Messiaen criou

em seguida três divisões do campo cromático das alturas, cada uma delas relacionada a

modos de uma “escala de durações” e de uma “escala de dinâmica”. Vale ressaltar que

esses modos não constituiam séries, apenas coleções de valores que admitiam livre

distribuição, repetições e interdependência entre as dimensões; seu procedimento

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

194

distanciava-se da técnica dodecafônica. O ordenamento dessas coleções baseavam-se

apenas em decisões subjetivas, como evitar oitavas, e podia ser compreendido em uma

noção de tonalidade estendida.

Grosso modo, o serialismo de Boulez nascia da confluência entre essa

perspectiva extensiva dos modos em Messiaen e a abordagem mais objetivista da

técnica dodecafônica, com a qual Boulez havia tomado contato em Paris através de

Leibowitz, ex-aluno de Webern. Em um primeiro momento, para Boulez, tanto

Schoenberg quanto Berg fracassaram no uso da série, na medida em que permaneciam

tributários a uma retórica ainda vinculada à tonalidade, incompatível com o próprio

programa de uma “composição com doze notas relacionadas apenas uma a outra”278,

definido por Schoenberg. Sabemos que necrológios costumam evitar o tom do panfleto

ou da polêmica. No entanto, em fevereiro de 1952, poucos meses após morte de

Schoenberg, Boulez publicou um artigo-panfleto extremamente polêmico sob o título

Morreu Schoenberg. Escrito, nas palavras do autor, “sem o tolo desejo de escândalo”,

utilizava um vocabulário nada reverente para qualificar as fraquezas das obras

dodecafônicas do próprio inventor da técnica: “dificilmente se pode encontrar na

história da música uma ótica tão errada”, “caduquice”, “escleroses indefensáveis”,

“linguagem bastarda”, “clichês irritantes”279. Boulez evidentemente não pretendia

repudiar a invenção da técnica; criticava, pelo contrário, o “hiato inadmissível” entre o

uso de formas pré-clássicas e o avançado material dodecafônico descoberto pelo

compositor. Apesar da emancipação da dissonância e da posterior formulação do

“princípio da série”, a obra de Schoenberg manteve-se tradicional sob o aspecto

expressivo, expondo vestígios da linguagem tonal ultrapassada – um “fracasso”

construtivo que, diga-se de passagem, também Adorno havia apontado em 1949 como

sendo a “dificuldade central da forma dodecafônica”280. Isso porque a técnica de

Schoenberg limitava-se, segundo Boulez, à criação de um instrumento de regulação no

278 SCHOENBERG, Style and idea - Selected writings, Berkeley: University of California Press, 2010, p. 263 279 BOULEZ, Morreu Schoenberg. In: Apontamentos de aprendiz, São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 242–3 280 FNM, GS 12, 101: “O novo desejo de expressão (de Schoenberg) encontra-se recompensado pela expressão tradicional (...) Podemos pensar que a inadequação da expressão, a ruptura entre expressão e construção, é determinável como deficiência da construção, como irracionalidade da técnica racional”. Adorno considerava tal deficiência como consequência inevitável da própria natureza da técnica dodecafônica, estruturalmente avessa a toda repetição e simetria.

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

195

campo das alturas (melodia e harmonia), de uma “lei rigorosa para controlar a escrita

cromática”. Mas resguardava, ao mesmo tempo, parte considerável das fórmulas da

tonalidade, como arpejos, apojaturas, esquemas formais pré-clássicos (valsa, marcha,

rondó, suíte), além do emprego de uma rítmica “irrisoriamente pobre, feia mesmo”281.

Ao ainda pensar de maneira contrapontística, Schoenberg não explorou as

consequências da ideia de série. Em certa medida, o mesmo valia para Alban Berg282.

Os vestígios da retórica romântica em ambos impediam a formação de uma verdadeira

linguagem baseada no pensamento serial. O objetivo de Boulez não era construir novas

estruturas no interior de uma linguagem pré-existente. Ambicionando depurar a música

de toda lembrança da tonalidade, pretendia derivar estruturas do princípio da série.

Como vimos, para Boulez e praticamente toda a geração da vanguarda dos anos

1950, Webern foi quem de fato desvendou esse domínio serial. Em suas obras, a série já

se apresenta como função de intervalos, geradora de permutações, e não apenas como

“ultra-tema” decorrente do controle da escrita cromática – para Boulez, um dos

equívocos de Schoenberg foi o de confundir série e tema283. Eliminando a interferência

motívico-temática do princípio da série, Webern desvendava outras “retóricas”,

indicando concretamente permutações hierárquicas que viabilizariam a supressão dos

vestígios tonais. Além disso, seu trabalho timbrístico e de orquestração, colocado em

primeiro plano por meio da Klangfarbenmelodie, chamava a atenção para aspectos

constitutivos do som que, em larga medida, sempre foram subsidiários na história da

música ocidental284. Em 1954, Boulez enaltecia a precisão “epifânica” da técnica de

Webern sob um duplo aspecto: tanto pela capacidade de se opor à organização formal

pré-existente à obra, à “decadência da grande corrente romântica”, quanto pela 281 BOULEZ, Morreu Schoenberg, p. 243 282 No pequeno artigo Incidências atuais de Berg (1948), Boulez sentenciava corrosivamente toda a obra de Alban Berg a um “exotismo de bazar”, de pouco interesse, em razão do apego excessivo e vulgar à tradição romântica. Neste momento, pelo menos, Berg seria para Boulez não muito mais do que o “ponto extremo de uma linhagem pós-wagneriana em que se fundem a amável – em todos os sentidos horripilantes da palavra – valsa vienense e o enfatismo verista italiano” (Cf. BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 213) 283 Cf. Ibid., p. 271 : “As obras de Webern provaram que era melhor encarar a série como uma função hierárquica geradora de permutações” 284 O denso trabalho timbrístico de Webern torna-se pedagogicamente perceptível, por exemplo, em seu arranjo para orquestra da Ricercar a 6 da Oferenda Musical, de Bach: Webern segmenta a linha melódica do tema principal e de suas variações em pequenos fragmentos que são drasticamente contrastados, em sua própria justaposição, por conjuntos de timbres distintos. Como afirma Adorno, Webern traduz as relações motívicas de Bach em relações timbrísticas (Cf. FNM, GS 12, 88).

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

196

capacidade de reabilitar “o poder do som”, o “recurso de procurar a beleza do som por

si mesmo, a forma elíptica de pulverização” da linguagem antiga da tonalidade285.

Assim como Schoenberg, no entanto, Webern basicamente circunscrevia a série ao

campo das alturas. Um segundo problema, ligado à sua renúncia a esquemas formais

pré-existentes, era a dificuldade de escrever peças mais longas no tempo – algumas de

suas composições mais consistentes (como vimos na Bagatela acima) duram menos de

um minuto. No sentido de superar tais insuficiências formais no uso da série, é que

Boulez recorreu a Messiaen. Ao propor a criação de escalas e modos no plano da

duração e da dinâmica, Messiaen tornou concebível a extensão do princípio serial para

os demais componentes do som e para a organização formal do tempo.

Structures 1a: o “nec plus ultra”

Para Boulez, o principal erro de Schoenberg estava em não ter derivado

estruturas a partir da ideia de série. E, por estruturas, Boulez compreendia desde os

aspectos mais elementares da composição até a arquitetura global da obra. Tratava-se de

construir estruturas morfológicas e sintáticas adequadas ao universo linguístico revelado

pela série. Como vimos, o caminho para tanto estava na extensão do princípio. No final

de Morreu Schoenberg, Boulez esboçava um programa que no fundo já estava em curso

no início da década de 1950:

“Talvez se pudesse generalizar o princípio da série aos quatro componentes sonoros: altura, duração, intensidade e ataque, timbre. Talvez... Talvez... se pudesse reivindicar de um compositor um pouco de imaginação, uma certa dose de ascetismo, um pouco de inteligência também, enfim, uma sensibilidade que não se desmorone com a menor corrente de ar”286

Ao reinvidicar, na insólita homenagem a Schoenberg, “imaginação” e o

ascetismo de uma nova sensibilidade, e ao reiterar a palavra estruturas, Boulez

procurava legitimar um dos maiores experimentos de assepsia musical no pós-guerra.

285 Cf. “Incipit” in BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 247 286 BOULEZ, Morreu Schoenberg, p. 244

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

197

Com efeito, em sua peça Structures 1a (1951) para dois pianos287, o princípio da série é

aplicado pela primeira vez a todos os “constituintes” do som, o que deu origem à

expressão serialismo integral. Sendo um dos paradigmas de tabula rasa da composição,

Structures 1a pretendia mostrar o alcance construtivo da ideia de serialismo.

Na peça, são reguladas, além do campo cromático das alturas (tanto em seu fator

horizontal-sucessivo quanto em seu fator vertical-simultâneo), também a duração das

notas, os modos de ataque, as gradações de intensidade. Embora a forma que articula as

12 seções internas permaneça livre do princípio da série, são submetidas também a

serializações tanto a extensão temporal de cada seção, quanto a permutação dos

andamentos de cada seção – a peça contém apenas 3 andamentos: Très modéré; Moderé,

presque vif; Lent – assim como a sequência em que as seções aparecem. Boulez utiliza

apenas uma única série de base (ver Figura 5), que corresponde, por assim dizer, ao

elemento transcendental da peça. Em explícita homenagem a Messiaen, a série de base

escolhida é a mesma “Divisão 1” do estudo Modo de valores e intensidades, que

mencionamos acima. Boulez deduz então as 12 transposições possíveis da série de base

bem como suas formas derivadas (sob forma retrógrada, forma invertida e forma

retrógrada invertida)288. Essas transposições dão origem, por sua vez, a uma tabela de

distribuição, a matriz “O” (originária). Já a segunda tabela, a matriz “I” (invertida), é

obtida a partir do mesmo mecanismo, apenas invertendo-se a série de base (ver o

resultado das duas matrizes na Figura 6). Os números de 1 a 12 que compõem as tabelas

correspondem às notas da série de base original (1 – mib ; 2 – ré ; 3 – lá ; 4 – láb e assim

por diante). Cada nota escrita na partitura final resulta do cruzamento dessas duas

matrizes, que codificam previamente todos os parâmetros das notas.

287 Primeira peça do primeiro volume de Structures (1a, 1b, 1c) 288 Boulez segue até aqui o receituário da técnica dodecafônica proposta por Schoenberg em 1923: os doze sons da gama cromática são dispostos inicialmente em uma sequência, a ser escolhida pelo compositor. Através do “método de compor com doze sons que se relacionam apenas entre si” (segundo a definição de Schoenberg), uma nota só é repetida quando todas as demais tiverem sido apresentadas. O compositor pode utilizar a série, sem comprometer o fundamento que rege a técnica, sob a forma retrógrada (de trás para frente), forma invertida (a mesma sequência lendo-se de cima para baixo na partitura), e finalmente sob a forma de inversão retrógrada (de trás para frente e de cima para baixo). Além disso, autoriza-se a transposição da série para qualquer outra nota da escala, desde que sejam preservadas as relações entre os intervalos definidas na sequência de origem. Outro aspecto relevante é que se trabalha com classe de alturas e equivalência de oitavas, de modo que, por exemplo, dó1 e dó3, são consideradas notas funcionalmente equivalentes.

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

198

Figura 5 – Série de base de Structures 1a (1952) para 2 pianos, de Pierre Boulez

Racionalização das alturas

(sequência extraída de Modo de valores e intensidades, de Messiaen)

Tabela/matriz “O” (da série original/primária)

Tabela/matriz “I” (da série invertida)

Figura 6 - Tabelas de distribuição de notas de Structures 1a

As mesmas relações intervalares da série de base definem, por sua vez, a

racionalização dos 12 valores no campo das durações, de # até $. (Figura 7), bem como a

dos 12 valores de dinâmica, de pppp até ffff (Figura 8), e a dos 12 valores de modos de

ataque e articulação, de > até % (Figura 9).

Figura 7 - racionalização das durações

(valor rítmico das notas de semifusa a semínima pontuada)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

199

1= pppp 5= quasi p 9= f

2= ppp 6= mp 10= ff

3= pp 7= mf 11= fff

4= p 8= quasi f 12= ffff

Figura 8 - racionalização da dinâmica/intensidade

(de extremo pianissimo a extremo fortissimo)

Figura 9 - racionalização dos modos de ataque/articulação/acento

(marcato, staccato, normal, stacatissimo, sforzato, tenuto, etc)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

200

Figura 10 – Compassos iniciais de Structures 1a (1952) para 2 pianos

Piano I executa série original (ver série na figura “Racionalização das alturas” acima),

enquanto Piano II executa série invertida

Na Figura 10 acima, vemos a primeira página da partitura após a construção das

serializações e das duas matrizes correspondentes: as notas são distribuídas de tal modo

que o Piano I executa os valores correspondentes à matriz “O” (notemos que as

primeiras notas na partitura seguem a ordem da série original, sob equivalência da

oitava: mib – ré – lá – láb etc), enquanto o Piano II executa aquelas correspondentes à

matriz “I”. A peça consiste na apresentação completa das 48 formas da série das alturas

(série original das 12 notas, mais as séries resultantes das 3 derivações) articuladas com

as formações seriais de durações, as de dinâmica e as de modos de ataque; cada nota

equivale, como dissemos, a um “ponto de encontro” dessas formações. Naquela que é

considerada uma das mais completas análises de Structures 1a, György Ligeti descrevia

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

201

o plano de escrita de Boulez em basicamente três etapas, que intercalavam

intencionalidade do compositor (sua decisão) e automatismo estrutural e impessoal289:

1) momento inicial de decisão do compositor (escolha da série de base, disposição

dos elementos, escolha de critérios e das operações a serem executadas);

2) momento de completo automatismo (permutação dos elementos, operações

colocadas em “funcionamento, como em uma máquina, para fabricar

estruturas”)

3) momento de decisão e retrabalho das estruturas resultantes a partir dos raros

fatores não submetidos ao automatismo (registros, duração das fermatas,

andamento)

Contudo, mesmo os momentos 1 e 3, momentos decisionistas e não-automáticos,

resultam de uma atitude extremamente ascética, de uma “sobriedade cristalina”, que

pretende também reconduzir a intencionalidade subjetiva do compositor a um “estado

zero”. Parte considerável do trabalho compositivo localiza-se, com efeito, na dedução e

na combinatória das duas tabelas de distribuição de notas submetidas ao algoritmo.

Parece-nos importante ressaltar tal aspecto, pois orientará a crítica posterior de Adorno:

a pré-formação do material, acionando o engendramento das estruturas locais,

praticamente substitui a composição. O papel do compositor seria o de um operador

meticuloso que fixa valores dos parâmetros e arranjos das matrizes seriais. Em função

do automatismo, compor significa, aqui, deduzir as estruturas da série de base. Quanto à

interpretação dos dois pianistas, o que se exige é a eliminação de qualquer interferência

expressiva, de qualquer gesto de “afetividade romântica”. Nesse sentido, a peça pode

ser entendida como um casos mais extremos de hipertrofia construtiva da história da

música.

Ligeti fez questão de ressaltar que não considerava Structures 1a a obra mais

representativa de Boulez, tampouco do serialismo. Representava antes o experimento

“paradigmático de uma música algorítmica”, que apontaria para os limites da

289 LIGETI, Décision et Automatisme dans la Structure Ia de Pierre Boulez (1957). In: Neuf essais sur la musique, Genève: Contrechamps Éditions, 2001

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

202

racionalização serial290. Dito de outro modo: se Schoenberg não tinha ido longe o

suficiente, com as Structures, Boulez tinha ido longe demais (conforme o próprio

compositor afirmaria anos depois). Ainda assim, o desejo de atingir o “estado zero” da

composição, a fim de extipar as últimas reminiscências da tonalidade, exigia passar pela

etapa de um automatismo incondicional. A aposta era a de que o próprio material

pudesse apresentar objetivamente suas estruturas, sem a intervenção de um sujeito que

tenderia, por mais alerta que estivesse do contrário, a restabelecer “linearidades” no ato

da composição, ou seja, a incorporar morfologias de uma retórica pré-existente.

Prevalecia na aposta de Boulez um conceito positivo, naturalista e purificado de

material, ao qual se poderia ter acesso mediante a eliminação de hábitos e das

idiossincrasias do compositor historicamente situado. Na “alergia à expressão” de

Structures, ambicionava-se o “salto para o desconhecido”, a música do inumano. Um

processo algorítmico, aliado ao conjunto de escolhas residuais de um “arquiteto ou

engenheiro do som”, ofereceria a oportunidade para esse salto. Dez anos depois de

Structures, Boulez resumiria o desejo que orientou seu experimento:

“Meu plano baseou-se na seguinte ideia: eu queria apagar do meu vocabulário absolutamente todo vestígio do tradicional, no que se refere tanto às figuras e frases quanto ao desenvolvimento e à forma; queria então reconquistar pouco a pouco, elemento por elemento, os diferentes estágios do movimento melódico, de tal modo que se pudesse criar uma síntese inteiramente nova, uma síntese que não fosse estragada desde o início por corpos estranhos – especialmente reminiscências estilísticas” 291

Em clara resposta à objeção de Adorno em O envelhecimento da nova música

(1954), sobre os perigos do automatismo, Boulez afirmaria em 1963 que estava

“bastante informado” a respeito da inútil disputa com a máquina:

“foi-nos censurado como pecado mortal a renúncia do compositor e a fuga diante da responsabilidade. Fomos dissuadidos de querer concorrer com a máquina, apelando para os perigos do automatismo e para a inutilidade, pois a máquina sempre será vitoriosa (...) Todas estas advertências provém seguramente de pessoas inteligentes, senão bem-intencionadas; elas esquecem, no entanto, que também nós temos alguma capacidade, e que suas objeções já

290 Ibid., p. 84 291 BOULEZ, Da necessidade de uma orientação estética. In: A música hoje 2, São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 69–70

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

203

eram de nosso conhecimento muito antes de mergulharmos na dúvida baseada no número”292

Somente após a eliminação das reminiscências estilísticas, após o “mergulho na

dúvida baseada no número”, é que seria possível executar o plano de reconstruir “todas

as qualidades de morfologia, sintaxe e retórica, necessárias para a realização de uma

linguagem ‘orgânica’” baseada no serialismo293. O termo ‘orgânica’ nesse contexto

pode causar espanto. Afinal, no salto de Structures, a própria organização métrica e

elementar das durações, que pressupõe “uma experiência do tempo vivido como

princípio fundamental”, seria rompida. Mas o que Boulez defendia era um conceito de

duração musical dissociado de sua qualidade fisiológico-acústica originária, um

conceito que levaria a uma “situação anterior” à própria percepção humana e que estaria

fundamentado em relações matemáticas-cronométricas294. Esse novo conceito de

duração deveria quebrar, segundo Boulez, um dos hábitos mais arraigados da percepção,

o de “medir o tempo musical por uma espécie de oscilação de um pêndulo”295, a

pulsação básica subjacente a toda obra. Somente a partir desse “estado zero”, em

resumo, se conquistaria a gramática de outra linguagem orgânica e outro conceito

musical de tempo.

Resultado perceptivo e impasses de Structures

Aos ouvidos habituados a um regime elementar de direcionalidade, o resultado

perceptivo de Structures 1a não é muito animador. Pois se projeta a escuta de sons

isolados, de partículas ou “pontos” sonoros independentes entre si, como a primeira

página da partitura ilustra acima. Daí a denominação de “música pontilhista” ou

“pontual” (musique ponctuelle, punktuelle Musik), dada por Herbert Eimert em sua

conferência de 1953 em Darmstadt, para indicar a primeira fase do serialismo. Em

Structures, não é possível identificar “linearidades”. O imperativo de escrever uma peça

292 Ibid., p. 68 293 Ibid., p. 78 294 Ibid., p. 74 295 Ibid., p. 75

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

204

sem esquemas formais reconhecíveis compromete a sensação de continuidade, assim

como já se percebia no nominalismo de Erwartung, por exemplo. Contudo, a

atonalidade em Schoenberg não prescindia de um conjunto estável de “linearidades” por

baixo da superfície atonal e da ideia de progressividade, garantindo ao ouvinte o suporte

de alguma previsibilidade rítmica, recorrência motívica, além da retórica expressiva

baseada na tonalidade. Já na “assepsia” de Structures, são eliminadas progressões de

toda natureza, incluindo ritmo e dinâmica. Até mesmo a escolha da textura

monocromática da peça – dois pianos – atendia ao propósito de conceder maior

transparência no processo de isolamento das notas296. Convém observar que essa recusa

programática de qualquer motivação linear significava a recusa daqueles elementos que,

para Adorno em FNM, estabelecem “relações temporais autênticas”: “transições,

crescendos, diferença entre campo de tensão e repouso, entre exposição e

desenvolvimento, entre pergunta e resposta”297."Na medida em que relações internas da

técnica contrapontística, assim como repetições entre notas, não são mais perceptíveis, o

que se ouve não difere muito da dispersão entrópica, desordenada, de eventos pontuais.

O controle excessivo dos parâmetros induz à suspensão funcional da memória e

bloqueia o acesso às estruturas locais durante a interpretação (apenas a representação

gráfica da peça permite esse acesso). Assim, não se pode “acompanhar” a peça: sua

máquina combinatória impede a retenção dos instantes e a projeção de expectativas.

Diante da impossibilidade da construção de sentido na sucessão temporal dos eventos,

Structures desloca a percepção para a individualidade de cada evento sonoro. Boulez

defendia, como veremos a seguir, uma percepção “oblíqua” ou “diagonal”, um modo de

audição a posteriori (e não mais a priori, como o tradicional) como modo adequado à

percepção de obras seriais. Ao mesmo tempo, Boulez parece ter sido também o primeiro

a reconhecer o paradoxo e o fracasso de Structures: apesar do isolamento das notas, a

saturação de informação sonora contida em cada uma, em razão da determinação total

de seus componentes a partir das duas matrizes, se converte na sensação de puro arbítrio

e de uma lógica de indiferença total, no ato mesmo da execução.

296 LIGETI, Décision et Automatisme dans la Structure Ia de Pierre Boulez (1957), p. 91 297 FNM, GS 12, 179: “(...) was immer eigentlich zeitliche Relationen stiften könnte, den Übergang, die Steigerung, den Unterschied von Spannungs- und Auflösungsfeld, von Exposition und Fortsetzung, von Frage und Antwort (...)”

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

205

É preciso fazer a ressalva de que o serialismo integral “pontual” de Structures –

serialismo no qual obras como Kreuzspiel (1951), de Stockhausen, e Canti per 13

(1955), de Nono, também se inscrevem – foi um fenômeno de curta duração. Tratava-

se, na visão de Boulez, de uma etapa necessária para a compreensão dos limites da

linguagem serial. Isso aproximava Structures mais do campo experimental do “fazer”,

da práxis musical, do que do “compor”, da poiesis298. Portanto, Boulez estava

consciente das aporias a que levariam o experimento, e não por acaso chegou a dar à

peça o nome provisório “A là limite du fertile pays” (No limite da região fértil), título de

um quadro de Paul Klee299. O propósito de Structures era mostrar o abismo

intransponível para qualquer composição automática futura, era ser um nec plus ultra da

composição. Por outro lado, o experimento comprovava que qualquer aspecto do som

ou dimensão musical poderia ser submetido a transformações seriais. Em certa medida,

Boulez acreditava que – à semelhança de Ulisses que permanece preso a fim não ceder

ao encanto das formas tradicionais e da “imaginação” das sereias – o automatismo de

Structures permitiria a travessia segura em direção a um estilo subjetivo e a noções de

desenvolvimento adequadas à linguagem serial e que não fossem temáticas. O recurso à

essa aridez objetivista visava comprovar que era possível escrever uma peça totalmente

organizada sem resquícios de tematismo. Esse atematismo extremo, fruto do

automatismo, não permitia o agenciamento dos eventos sonoros no decurso perceptivo

do tempo Entretanto, essa impossibilidade estava longe de ser um efeito colateral

indesejado; o pensamento motívico-temático estava deliberadamente proscrito como

método de composição. Sua não-direcionalidade pretendia “tornar sensível” o presente

de um instante puro.

Uma vez realizada a quebra de hierarquias e “codificada” uma linguagem serial,

Boulez passou a empreender a busca pela gramática que forneceria as noções de

desenvolvimento correspondentes. Após a indiferenciação de Structures, Boulez

retornou, em Le Marteau sans maître (1955), ao “território da expressão”. Le Marteau 298 As próprias categorias de obra e forma teriam surgido no interior da poeisis musical. Para discussão sobre tal distinção Cf. ZAGORSKI, Material and History in the Aesthetics of “Serielle Musik”, p. 301 299 O desejo de encontrar o “estado zero” já constava em uma nota do diário de Paul Klee: “Quero ser como uma criança recém-nascida, sem saber nada sobre a Europa; ignorando poetas e modas, ser quase primitivo. E então realizar algo muito modesto, inventar por minha conta um motivo forma bem simples” (KLEE, apud GRIFFITHS, A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez, Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 136)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

206

voltava a apresentar texturas polifônicas, contornos melódicos discerníveis, coleções de

notas repetidas, campos de tensão e repouso. Destacava também o aspecto qualitativo e

sensorial do timbre, com sonoridades relativamente exóticas para os padrões ocidentais

– o vibrafone que imita o gamelão balinense, o violão que imita o koto japonês, além de

maracas, gongo, xilorimba. O canto falado para contralto, com poemas de René Char,

também se submetia ao propósito de valorização timbrística, pois se dissociava da

prosódia convencional e explorava, por exemplo, as sonoridades das sílabas. Se, por um

lado, esse retorno expressivo e a “alquimia da matéria sonora” sugeriam uma espécie de

neo-impressionismo, por outro, a obra obedecia ao rigor construtivo do pensamento

serial no plano das alturas e da forma. Boulez apenas introduzia certa flexibilidade e

expressividade para amenizar os exageros das tabelas de distribuição de Structures. Essa

flexibilidade controlada levaria o compositor a considerar, como veremos a seguir, a

própria indeterminação como aspecto relevante para o processo composicional.

Em resumo, estaríamos equivocados em considerar o gênero pointilhista de

Structures como arquetípico nas composições de Boulez dos anos 1950. Tratava-se de

uma etapa de transição. No fundo, não poderíamos nem mesmo supor que, após

Structures, o serialismo Boulez entraria em estágio de autocrítica (como parece sugerir

Adorno, por exemplo, na nota introdutória de Dissonanzen). O compositor parecia,

desde o início, estar convencido de que o potencial criativo não se circuncrevia a

procedimentos de “balística” e da determinação cega da nota a ser grafada na partitura a

partir de algoritmos e tabelas de distribuição. Em artigo publicado em 1954, Pesquisas

atuais, Boulez já indicava o absurdo – que, não obstante, havia se tornado comum entre

alguns compositores seriais, justificando em parte as objeções de Adorno – de delegar a

responsabilidade da composição a excessos aritméticos. Reconhecia a ausência de

variação global e a “monotonia exasperante” provocada pelo caráter estático da música

pontilhista:

“Esse estilo ´pontual´ apresentava outro incoveniente, e não dos menores. Os planos de estruturas se renovavam paralelamente de modo idêntico; a cada nova altura, nova duração dotada de nova intensidade. A variação perpétua – na superfície – gerava a ausência total de variação a um nível mais geral. Uma monotonia exasperante tomava posse da obra musical”300.

300 BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 33

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

207

Boulez reconhecia, portanto, em 1954, os impasses da hipertrofia construtiva do

automatismo, de modo que a crítica mais contundente de Adorno ao serialismo integral

(O envelhecimento da nova música, de 1954) dificilmente seria aplicável ao caso de

Boulez, para quem, afinal, “a composição e a organização não podem ser confundidas,

sob pena de inanição maníaca”301. Examinaremos em maior detalhe o ensaio adorniano

e sua pertinência ao caso de Boulez. Antes, porém, pretendemos expor as características

gerais de sua concepção estruturalista de forma, bem como seu “sistema racional de

tempo”, que estavam presentes tanto em Structures, quanto na 3a Sonata. Em que pesem

as convergências não enunciadas entre Boulez e Adorno (como distinção entre

composição e técnica), pretendemos mostrar que a concepção estruturalista de forma e

de tempo, da qual Boulez não abdicou mesmo na década de 1960, diverge

fundamentalmente do conceito histórico-materialista de Adorno.

4.2 Ângulo de audição a posteriori e o “sistema racional de tempo”

Uma vez que esquemas formais pertencem, segundo Boulez, exclusivamente ao

sistema tonal, o serialismo acabava deslocando a compreensão do problema tradicional

da “grande forma”. Questionando o hilemorfismo da concepção tradicional de forma, o

estruturalismo de Boulez recusava a pré-existencia da forma em relação ao conteúdo

vivido do material. Em sua conferência de 1960 em Darmstadt, Boulez esclarecia que

tal separação formou o que denominava “ângulo de audição” a priori da experiência

perceptiva tradicional:

“Até então, a música ocidental, com sua forte hierarquia preestabelecida para cada obra existente, se empenhara em estabelecer pontos de apoio numa forma dada no início. Naturalmente, podia-se ter surpresas, mas grosso modo a surpresa ocorria em função de certos esquemas formais, conhecidos da maioria. Na avaliação destes esquemas, a memória real desempenhava um papel importante (...) O papel da repetição era confirmar de modo tranquilizador a percepção através da memória (...)”302

301 Ibid., p. 32 Também no longo ensaio Auprès et au loin (1954), o compositor alertava para a confusão entre composição e organização, “o mal-entendido que nos ameaça” (Ibid., p. 184) 302 BOULEZ, A música hoje 2, São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 100

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

208

O ângulo de audição a priori operava, portanto, a partir de pontos de referência

para o reconhecimento de esquemas formais. Ainda que suscetível a modificações

históricas, o esquema assume, para Boulez, um caráter quase arquetípico e prefigura a

experiência do ouvinte em uma sintaxe dada, com modos previamente conhecidos de

articulação de suas “estruturas locais” (por exemplo, um esquema rondó A-B-A-C-A-D-

A). Mesmo as “surpresas” que divergem do esquema só são percebidas como tais

precisamente em função da existência anterior do esquema; a rigor, tais surpresas não

excederiam os limites do esquema. A discussão que move o tópico do “ângulo de

audição” – comparável ao ângulo de visão diante de uma arquitetura clássica – sempre

foi constante nos escritos de Boulez. Em Auprès et au loin (1954), o compositor

defendia a concepção anti-arquitetônica de forma, sem hierarquia distributiva na

organização das partes com o todo; seu conceito pretendeia se colocar contra os

“hábitos auditivos adquiridos em três séculos” para levar adiante uma concepção móvel

de forma, “instalada” na irreversibilidade vivida do tempo:

“agora de preferencia, seria válida uma forma vivida no próprio tempo, com tudo o que esta noção tem de irreversível – e não no tempo reduzido a uma noção de espaço temporal comparável ao espaço visual; naquele, a memória desempenhanhando o papel do olho capaz de um certo ângulo de visão”303

Boulez insistia na atuação de um certo “ângulo de audição, graças a uma

memorização imediata mais ou menos consciente”304, na percepção convencional do

tempo. O pensamento serial tensionaria essa organização, resultando em uma

temporalidade na qual os critérios formais se estabeleceriam a partir de redes de

diferenciação interna de seus elementos, à semelhança, por exemplo, dos “formantes”

que compõe um som305. Contra os modelos de organização a priori que constituem o

“fundo musical comum da sociedade” e contra o papel tranquilizador de referências já

conhecidas, o serialismo, na visão de Boulez, exigia uma modalidade de escuta

303 BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 183 304 BOULEZ, Son, verbe, synthese. In: Revue belge de Musicologie / Belgisch Tijdschrift voor Muziekwetenschap, v. 13, n. 1/4, 1959, p. 6 305 Em Pesquisas atuais (1954), Boulez sugeria, como alternativa ao tematismo para a organização dos eventos na obra, uma analogia com os formantes. Cf. BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 33: “Tomemos uma comparação acústica simples; o timbre de um som é devido à distribuição dos harmônicos: estes se repartem por grupos mais ou menos importantes segundo suas relações com o som fundamental e altura; são os ´formantes de um timbre´. Não poderíamos também encará-los como os ´formantes´ de uma obra?”

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

209

expansiva: “o pensamento tonal clássico fundamenta-se num universo definido pela

gravitação e atração, o pensamento serial fundamenta-se sobre universo em perpétua

expansão”306. O que se tornava regra era a renovação contínua dos procedimentos de

estruturação, fornecidos pelo material sonoro de cada obra. Na medida em que balizas

prévias deixam de existir, aprofunda-se uma escuta expansiva, instantânea. Para Boulez,

“a obra não é mais esta arquitetura estável indo de um ‘início’ em direção a um ‘fim’,

passando por inúmeras peripécias; as fronteiras são voluntariamente anestesiadas, o

tempo de escuta torna-se não direcional”307. A construção de um novo conceito de

tempo musical envolvia, portanto, “uma sintaxe, uma retórica e uma sensibilidade

novas”; ou ainda, no léxico de Boulez, um tempo irreversível, não homogêneo, não

direcional e, eventualmente, permeável a influências do acaso. Esse “ângulo de audição

a posteriori” seria a modalidade perceptiva mais adequada ao universo em expansão do

serialismo. Em vez da intervenção da memória nos esquemas formais, estabelecia-se

uma “paramemória” ou “memória virtual”, capaz de restituir a coesão entre os eventos

sonoros somente depois de decorrida toda a forma. Nas conferências de 1960 em

Darmstadt, Boulez expõe claramente a inclinação estruturalista de sua concepção de

forma e tempo, que elaborou nos anos posteriores a Structures:

“o tempo não pode ser somente liso ou somente estriado, mas a partir destas duas categorias e somente a partir destas duas posso desenvolver todo o meu sistema racional de tempo”308

Basicamente, esse sistema racional pressupõe a divisão entre estruturas locais e

estrutura global da obra, necessária para o conceito mais amplo de forma. Vale ressaltar

que, para Boulez, o sistema serial “contém todos os domínios que o precederam: tanto o

modalismo quanto o tonalismo”309. Por extensão, seu sistema racional de tempo coloca-

se como a metateoria que prevê todas as modalidades possíveis para a organização

temporal, seja no âmbito da microestrutura ou da macroestrutura, de qualquer fenômeno 306 Ibid., p. 272 307 BOULEZ, Son, verbe, synthese, p. 6 308 BOULEZ, A música hoje 2, p. 112 (grifo no original) 309 Ibid., p. 109 Boulez quer legitimar a prática serial como evolução natural e lógica da linguagem da música, inscrevendo-a em uma teleologia na qual “conceitos do novo domínio são mais gerais e mais abstratos do que os que compunham o domínio anterior (...)”. Assim como “o tonalismo generaliza o conceito de modalismo”, também uma escala tonal “pode ser considerada uma série no sentido restrito” e um modo pode ser interpretado “como um simples caso de permutação circular”. (ibid., p. 108-9)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

210

musical de qualquer domínio. Essa divisão entre estruturas locais e globais decorria da

apropriação explícita do estruturalismo de Lévi-Strauss, que questionava a distinção

hilemórfica tradicional entre forma e conteúdo. Boulez apoiava-se em particular na

seguinte passagem de Lévi-Strauss para justificar tanto a segmentação quanto as

afinidades entre estrutura local e estrutura global:

“Forma e conteúdo são da mesma natureza. O conteúdo recebe de sua estrutura a sua realidade, e aquilo que chamamos a sua realidade, e aquilo que chamamos forma é a estruturação (mise en structure) de estruturas locais de que se constitui o conteúdo”310

No campo das estruturas locais – denominado morfologia por Boulez –,

subsistem duas espécies: estrutura estática e estrutura dinâmica. O primeira corresponde

ao tempo amorfo ou liso, a segunda ao tempo estriado ou pulsado, a partir das quais se

desenvolve, como vimos, todo o sistema racional de tempo. Na estrutura estática, a

qualidade e quantidade de eventos sonoros permanece constante em sua evolução. Na

estrutura dinâmica, percebem-se em sua evolução alterações significativas na qualidade

e quantidade de eventos311. O critério para avaliação do grau de estaticidade ou

dinamismo de uma estrutura local é basicamente estatístico e se relaciona com a

medição cronométrica de suas pulsações. Para trazer tal distinção em termos musicais

concretos, poderíamos considerar o exemplo da figura do ostinato, célula rítmica

repetida continuamente. Se o ostinato for mantido sem nenhum tipo de alteração de

timbre nem de velocidade ou intensidade, engendrará provisoriamente uma estrutura

estática, de tempo liso. Já um ostinato que acelera ou cuja intensidade aumenta,

produzindo tensões que contribuem de modo mais enfático para a rítmica global,

constitui uma estrutura dinâmica, de tempo estriado312. Nota-se que a distinção não se

localiza na qualidade nem na densidade dos eventos do ostinato, mas em seu grau de

variação. Tal grau de variação é o que possibilita a constatação de pulsações e a

percepção de diferenças.

310 Ibid., p. 95 311 BOULEZ, A música hoje, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002, p. 97 312 DECARSIN (Org.), Inventions rythmiques et écriture du temps dans les musiques après 1945. In: Les écritures du temps (musique, rythme, etc.), Paris: l’Harmattan(: IRCAM, 2001, p. 80

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

211

A estrutura global da obra – denominada sintaxe – define, por sua vez, o regime

de incorporação e coordenação das estruturas locais (sejam elas estáticas ou dinâmicas),

sendo mais do que a mera soma destas. Para Boulez, o conceito de forma musical

consiste no conjunto de critérios de escolha que fornecem relações entre as estruturas

locais, na “estruturação” das estruturas locais no âmbito da macroestrutura. Portanto, a

estrutura global (sintaxe) engendra as estruturas locais (morfologia), como resume o

quadro abaixo:

A principal consequência dessa noção de estrutura global é que qualquer evento

sonoro pode se submeter a uma lógica formal coerente, incluindo aí a pura contingência.

Essa axiomática estruturalista de Boulez atendia a um duplo propósito: em primeiro

lugar, preservava o conceito de forma, sendo que este conceito agora tinha pouco ou

nada em comum com os esquemas clássicos tradicionais, historicamente exteriores ao

desdobramento imamente dos materiais (lembremos do esquema formal do rondó

mencionado acima); ou seja, um conceito de forma além do esquema. Em segundo

lugar, a estratégia permitia controlar racionalmente não somente a incidência do

automatismo em certa estrutura local (no caso, essa estrutura local seria estática, de

tempo amorfo e sem critérios de escolha) mas também permitia controlar a incidência

do acaso (que seria o caso de uma estrutura local dinâmica, de tempo estriado e com

critérios sempre variáveis de escolha). Este último aspecto do conceito de forma

respondia ao desiderato de incorporar racionalmente o acaso na composição, caminho

que ficou conhecido pela expressão de Boulez “organizar o delírio” – e não a

Estrutura global (sintaxe, macroestrutura)!

Estruturas locais (morfologia, microestrutura)

Duas espécies de estruturas locais:

estática (tempo amorfo ou liso) e dinâmica (tempo estriado ou pulsado)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

212

contraditória “organização do acaso” (afinal, controlar o acaso significaria destruí-lo).

No caso limite de o plano da sintaxe ser deixado à completa atuação do acaso (como em

Cage), não haverá forma alguma, apenas uma “simples amostragem de estruturas locais

com permutações amorfas”313. A proposta radical de Boulez de reunir três níveis de

estruturação – automatismo, intecionalidade subjetiva e contingência – consubstanciou-

se particularmente em sua 3a Sonata para piano (1958).

3a sonata para piano: a forma móvel

Relegar as estruturas musicais ao puro automatismo ou ao puro acaso nunca foi

o propósito de Boulez. A ação subjetiva e responsável da composição deveria evitar o

fetichismo do número e não ceder ao acaso “por inadvertência”. Por um lado, a

incorporação do automatismo subjetivamente controlado já havia sido experimentada

nas peças subsequentes a Structures (1b e 1c); de fato, como dissemos, o serialismo

integral em Boulez foi fenômeno de curta duração, apesar dos epígonos dos

“engenheiros seriais”. Por outro lado, Cage simplesmente mostrava que o estágio de

racionalidade da combinatória serial no início dos anos 1950 podia ser confrontada com

a irracionalidade total, sem que nada se alterasse na dimensão perceptiva. Segundo

Stefan Wolpe (precursor do experimentalismo norte-americano em Darmstadt

juntamente com David Tudor), o que realmente importava na música indeterminada do

grupo de Cage era o que estava sendo distribuído através do tempo musical, não a

ordem em que aparecia314, nem seus laços com a história das formas. Para tanto,

adotavam-se “condutas” para a emergência do acaso, como a ausência da distinção entre

som, ruído ambiente e silêncio, e a abdicação da vontade subjetiva do compositor. Na

conferência de 1958 em Darmstadt, Cage identificava na experiência contextualizada da

escuta a principal diferença entre a vanguarda norte-americana e a europeia. Enquanto

que, para os europeus, o papel do compositor permanecia central, prescrevendo e

impondo suas vontades sobre a experiência da escuta, para a vanguarda norte- 313 BOULEZ, A música hoje 2, p. 103 314 IDDON, New music at Darmstadt, p. 177. Em Intersection 3 (1953) de Morton Feldman, a sequência de eventos deve acontecer em determinada ordem, mas o momento exato no qual certo evento ocorre permanece indeterminado, forjando outro regime de continuidade. (Ibid., p. 205)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

213

americana, o objetivo era colocar o ouvinte no centro da experiência, limitando a escrita

composicional a indicações mínimas, praticamente residuais, a fim de dissolver

distinções entre arte e vida e, no limite, a própria categoria de obra musical. Prevalecia a

ideia de deixar os sons serem “eles mesmos”, um imperativo de máximo improviso, de

não obstruir o que se passa na escuta315. A única intenção era “imitar a natureza em seus

modos de operação” por meio de um “princípio de não-obstrução”, adequado a uma

imprevisibilidade perpétua que levaria à dissolução da obra316. Notemos que essa

abordagem de despersonalização, não-historicista, naturalista e mesmo mística (como a

deliberada referência ao zen-budismo), não deixava de ecoar a contrapelo uma

ultrapassada atitude ligada ao dadaísmo europeu do início do século 20.

De todo modo, o impacto de Cage sobre a vanguarda europeia no período pode

ser medido pelas reflexões sobre as operações do acaso nas diferentes abordagens do

pensamento serial; em Stockhausen, pela preocupação com eventos estatísticos e com a

ampliação do papel do intérprete, e em Boulez, pelo conceito de “forma móvel”. Para

Stockhausen, a incorporação do acaso poderia ocorrer admitindo-se certa flexibilidade

no andamento da execução (por exemplo, Zeitmaße, que analisaremos a seguir) ou

mediante a escolha aleatória por parte do intérprete dos caminhos e fragmentos da

partitura que irá percorrer (como Klavierstück 11): as operações do acaso resultam de

decisões dos intérpretes317. Também Boulez constatava em Darmstadt “uma

preocupação, para não dizer obsessão, com o acaso”318: uma preocupação relevante

demais para ser subestimada ou recusada. Contudo, Boulez não aceitava a ideia de

composição a partir de processos que apenas habilitavam rápidas decisões ao intérprete

durante a execução. Tampouco aceitava a pura indeterminação do som de Cage e sua

dissolução da ideia de obra. A “responsabilidade” sobre as intervenções do acaso não

315 Cage gostaria de “encontrar uma improvisação que não seja uma descrição do executante mas daquilo que se passa e que se coloca sob o signo da ausência de intenção” (KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000, p. 297). 316 Cf. BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, p. 111;113 317 Dedicada a David Tudor, a partitura da Klavierstück 11 (1957), de Stockhausen, consiste em 19 fragmentos espalhados em uma única página. De acordo com as instruções da peça, o intérprete pode escolher qualquer um dos fragmentos com o qual deseja começar e, em seguida, escolher qualquer outro fragmento. As indicações de dinâmica, de intensidade, definidas no final de um fragmento devem ser transferidas e utilizadas na execução do fragmento seguinte. A peça termina quando um fragmento qualquer for executado pela terceira vez; não há garantia, portanto, de que todos os fragmentos sejam executados numa interpretação “correta” da obra, o que estabelece uma estrutura geral “polivalente”. 318 BOULEZ, Alea. In: Apontamentos de aprendiz, São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 280

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

214

deveria ser deslocada do compositor para o intéprete ou para o ouvinte. A resposta de

Boulez viria da interação mais profunda entre escrita serial e operações de

indeterminação, operações que seriam imanentes à própria forma, sem referências a

modelos tradicionais. Enquanto Cage buscava a indeterminação do som, Boulez

trabalhava na indeterminação da forma. A responsabilidade do métier deveria estar

presente inclusive nas operações de abertura ao acaso319. O pensamento que articulava

sintaxe e morfologia, macroestrutura e microestrutura, deveria dar a resposta.

Alea, a conferência de Boulez que Metzger proferiu em 1957 em Darmstadt,

pode ser compreendida como a legitimação teórica de sua 3a Sonata para piano. Boulez

não precisava citar nomes em sua crítica à indeterminação “por inadvertência” ou “por

automatismo vigiado”. Reconhecia que a introdução do acaso na música de vanguarda

era proveniente, em sua forma mais elementar, de certa filosofia quase-oriental que, no

entanto, encobria uma fraqueza técnica da composição; nessa referência a Cage, Boulez

rechaçava a ausência de responsabilidade por parte do compositor que se entregava à

“magia pueril” de uma anti-arte. Por outro lado, também censurava o “trabalho

meticuloso da imprecisão” de Stockhausen, como o de viabilizar escolhas residuais ao

intérprete do tipo “pode-se alongar esta pausa, pode-se suspender este som, pode-se

acelerar...”320, a exemplo do que ocorre exatamente em Zeitmaße. Para Boulez, essa

imprecisão meticulosa seria algo como um “rubato generalizado” (que, na prática da

tonalidade, limitava-se apenas ao andamento, para finalidades expressivas). A intenção

de Boulez era absorver o acaso e “domesticar seu potencial”, através de sua

incorporação às estruturas. Desse modo, a irrupção do acaso poderia se dar, a despeito

da “vigilância” do compositor, na organização do material pré-composicional e durante

o próprio processo composicional, não somente no momento da interpretação. Podemos

dizer que a axiomática estruturalista de Boulez sempre contemplou certa permeabilidade

do acaso à forma, antes mesmo de se tornar “obsessão” pela nova geração. Como

vimos, uma concepção anti-arquetônica de forma, descrita em Auprès et au loin (1954), 319 Conceito central para Boulez, o métier consiste, segundo o compositor, na “trama constantemente tecida entre o adquirido e o desconhecido” (BOULEZ apud BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, p. 118), conceito que na década de 1960 passou a apontar para a necessidade não apenas de uma poética mas de uma “estética musical”. Adorno menciona esse conceito em diversos textos, por vezes em sentido equívoco. Ver, por exemplo, várias passagens de TE (GS 7, 71 ou GS 7, 509), Musik und neue Musik (GS 16, 484), Vers une musique informelle (GS 16, 536). 320 BOULEZ, Alea, p. 47

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

215

apontava para o regime de imprevisibilidade que viria a caracterizar posteriormente a

“forma móvel”. Na verdade, a necessidade do “controle do acaso” já aparecia muito

antes, em 1951, como mostra sua correspondência com Cage321. Em Alea, apenas

seriam desenvolvidos aspectos da poética já anunciada, aspectos que permitiram

justificar e melhor compreender as soluções que a 3a Sonata teria trazido para a

composição baseada no “impulso criativo livre”. Outra preocupação relevante no

horizonte teórico de Boulez a partir de meados dos anos 1950 era a recuperação de certa

linearidade, ou seja, de um sentido global dirigido que havia sido eliminado na

configuração “puctiforme” de Strucutres 1a. Assim, a 3a Sonata não abria mão da

realização de um “percurso”, ainda que problemático e atravessado por cesuras de

duração flexível (como silêncios), mas que possuiria lógica de desenvolvimento e

marcações claras de início e conclusão; tratava-se, segundo Boulez, de uma “nova

noção de desenvolvimento”, essencialmente descontínua, de uma nova modalidade de

“fraseado na interrelação das estruturas de natureza diversa”322. De acordo com a

descrição do compositor, a 3a Sonata respeitaria simultaneamente “o que a obra

ocidental tem de ‘acabado’, o seu ciclo fechado, e a ‘imprevisibilidade’ típica da obra

oriental, seu desenvolvimento aberto”323. Além de fornecer maior grau de diferenciação,

o recurso ao elemento aleatório habilitaria, assim, o retorno do não idêntico, do humano,

em contraposição à idolatria da composição.

A 3a Sonata para piano constitui o paradigma do que Boulez denominou “forma

móvel” e é, de fato, uma das obras mais impressionantes do século 20. Segundo

Alaistair Williams, “representa um marco não apenas na produção de Boulez, mas na

linguagem e nos conceitos da música do pós-guerra, pois envolve o esforço permanente

de trazer a dialética do controle e da liberdade para dentro do próprio material

musical”324. Vejamos o processo de formação da macroestrutura, que pretendia atender

às exigências de uma forma “não-unívoca” e relacionada à contínua transformação do

321 Na correspondência para Cage, em dezembro de 1951, Boulez afirma: “A única coisa com qual não estou satisfeito é, perdoe-me, o acaso absoluto. Acredito que o acaso deve ser extremamente controlado: por meio de tablas, séries de tabelas, acredito que seria possível direcionar o fenômeno do automatismo do acaso, seja ele escrito ou não.” (apud IDDON, New music at Darmstadt, p. 186) 322 BOULEZ, Alea, p. 51 Trata-se aqui de uma noção distinta da justaposição de “seções” que caracteriza o processo tradicional de montagem. 323 Ibid., p. 52 324 WILLIAMS, New music and the claims of modernity, Aldershot: Ashgate, 1997, p. 51

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

216

material em seu devir. De início, constatamos a recusa de uma travessia narrativa com

começo, meio e fim. O intérprete pode escolher livremente um dos cinco movimentos –

que Boulez chama de formantes325 – com o qual deseja iniciar a execução da obra (à

exceção do formante Constellation e de seu retrógrado Constellation-Miroir, que

constituem o núcleo central e – fato importante – o formante imóvel da obra). O gráfico

abaixo (ver Figura 11 abaixo) mostra as 8 permutações possíveis para a execução dos

formantes. Notemos que a disposição dos formantes possui uma ordem, mas esta ordem

não é sequencial, é ela mesma móvel. Por exemplo: caso o intérprete resolva iniciar com

Trope (II), deverá seguir – conforme as flechas de saída que indicam os caminhos

possíveis – para Antiphonie (I) ou Strophe (IV), que por sua vez bifurcam caminhos

distintos; caso resolva iniciar com Strophe (IV), deverá seguir para Trope (II) ou

Séquence (V), e assim por diante. Na sequência de execução, apenas Constellation deve

necessariamente ser o 3o formante da ordem.

Figura 11 – Gráfico contendo os oito arranjos possíveis dos cinco formantes da 3a Sonata para piano, de Boulez

Vejamos como Boulez estrutura internamente os formantes. Dentro de Trope (II)

– um título que remete à monodia do canto gregoriano – subdividem-se 4

“desenvolvimentos” (développants) autônomos, dispostos de maneira sequencial: Texte

→ Parenthèse → Commentaire → Glose → Texte. Essa sequência admite,

analogamente à macroestrutura da sonata como um todo, 8 permutações cíclicas (ver 325 Boulez apropria-se livremente aqui do termo proveniente da acústica, em um sentido bastante divergente daquele científico e literal que Stockhausen utiliza (ver capítulo da tese abaixo). Na conferência Forma, de 1961, reafirma-se esse uso livre e metafórico do termo “formante”, ao defini-lo como “conjunto dos critérios de escolha, capazes de engendrar, dentro da macroestrutura, pontos ou campos que possibilitam uma forma articular-se” (BOULEZ, A música hoje 2, p. 100)

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

217

Figura 12 abaixo). Ou seja, o formante pode iniciar ou terminar em cada um dos

développants, desde que a ordenação seja obedecida (se começar, por exemplo, com

Glose, deverá seguir para Texte, depois Parenthèse e Commentaire). A sonata

estabelece, portanto, uma estrita correlação simétrica entre a macroestrutura dos

formantes (com suas 8 permutações) e o arranjo dos développants no interior do

formante específico Trope (também 8 permutações). Se descermos mais um nível da

morfologia de Trope, veremos que a própria série de base de doze notas, que está

presente em cada um dos “desenvolvimentos” desse formante (em Texte ou Parenthèse,

digamos), está segmentada em 4 pequenos grupos, a partir dos quais se derivam então

outras 8 permutações.

Figura 12 – Os 4 “desenvolvimentos” (développants) do formante Trope (II) da 3a Sonata para piano, de Boulez

Assim, uma distribuição evolutiva absolutamente simétrica, labiríntica e

suscetível à indeterminação caracteriza a obra desde seu plano geral sintático, a

macroestrutura, até o plano do detalhe morfológico, a microestrutura dos grupos da série

de base. Resulta daí, na aposta de Boulez, a organização do delírio, a domesticação do

acaso, em abordagem distinta da indeterminação performática de Cage e Stockhausen.

Concede-se ao intérprete um feixe de possibilidades para cada estrutura autônoma.

Assim, a partitura não mais corresponde ao desdobramento linear de uma forma que

consistiria na “espacialização” da progressividade de eventos sonoros, ou em termos

adornianos, da articulação de relações musicais que se realizam no tempo326. O

326 Cf. Forma na nova música, GS 16, 607: “Sie [die Bedeutung des Wortes Form] erstreckt sich auf die in der Zeit sich realisierenden musikalischen Verhältnisse”

Texte!

Parenthèse!

Commentaire!

Glose!

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

218

resultado da sonata de Boulez elimina a ideia de forma externa ao tempo de execução,

pois este resultado se apresenta ele próprio como processo de formação, sendo imanente

ao devir, apesar de balizas que orientam seu caminho.

Com efeito, a integração do “coeficiente de acaso” às estruturas materializa-se

nos dois formantes da 3a Sonata que foram publicados até hoje327. Como vimos, em

Trope (II), os 4 “desenvolvimentos” (Texte, Parenthèse, Commentaire, Glose)

organizam-se sequencialmente, ainda que o ponto de partida do formante permaneça

arbitrário: uma mobilidade circular caracteriza a estrutura particular desse formante. Em

Parenthèse e Commentaire, encontram-se trechos indicados pelo sinal “Libre”, nas

quais o intérprete executa ou omite ad libitum, como se fossem interjeições opcionais às

seções indicadas pelo sinal “Tempo”. A Figura 13 abaixo ilustra os compassos finais de

Parenthèse, mostrando o trecho Libre (vif et ritardando), colocado literalmente entre

parênteses aos trechos Tempo. Os trechos Tempo e Libre pertencem a uma única

organização morfológica serial, não se colocam como camadas separadas. Libre quebra

a simetria das séries em Tempo através de uma versão caótica, baseada somente em

interpolações e notas acessórias das séries originais. Segundo Williams, essa alternância

entre as estruturas transparentes de Tempo e as estruturas densas e caóticas de Libre

torna mais perceptível a dialética de ordem e caos que orienta a sonata inteira328.

327 Boulez publicou até hoje apenas os formantes Trope (II) e Constellation-Miroir (III) e parte de Antiphonie (I); os demais formantes ainda permanecem em estágio de esboço, work in progress. 328 WILLIAMS, New music and the claims of modernity, p. 57. O procedimento de composição por parênteses é mencionado, equivocadamente, por Adorno em diversos textos, como Vers une musique.

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

219

Figura 13 – Final de Parenthèse, do formante Trope (II) da 3a Sonata, de Boulez

(obs. trecho entre parênteses marcado pelo sinal Libre)

Já o “desenvolvimento” Glose, do mesmo formante Trope (II), é um conjunto de

derivações sobre o desenvolvimento Texte. Admite-se aqui uma liberdade de

improvisação tão ampla que seu resultado perceptivo remete ao universo atonal, anterior

mesmo às obras dodecafônicas de Schoenberg. O material de Glose distancia-se tanto

da sua origem serial em Texte, que não é mais possível reconstruir o processo de

serialização sem acesso aos esquemas originais que o constituíram; não há rastros do

material serial, ao contrário do que ainda se constata em Texte e Parenthèse329.

Já no formante central da 3a Sonata, Constellation-Miroir (III), são apresentados

nove agrupamentos com dois tipos de sonoridades: “pontos” (sequencias de notas

isoladas) e “blocos” (acordes densos e arpegios). O formante se inicia com uma mistura

de “pontos” e “blocos”, em seguida, prossegue com três agrupamentos de “pontos”,

alternados com dois de “blocos”; os efeitos dessa alternância são acentuados através de

um trabalho de pedalização extremamente preciso. A sequência da macroestrutura de

Constellation-Miroir, ao contrário de Trope, é fixa, porém dentro de cada seção se

oferecem caminhos alternativos para ligar uma seção a outra, a partir de “setas de

indicação”. Boulez compara a mobilidade interna desse formante àquela “de um mapa

de uma cidade desconhecida”: embora as decisões estejam previamente limitadas pelo

329 Cf. Ibid., p. 55

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

220

traçado das ruas da cidade, o mapa indica que é sempre possível escolher mais de um

caminho para ir de um ponto a outro330. Por ser o formante central, Constellation

corresponde ao núcleo imóvel em torno do qual gravitam os outros quatro formantes na

“forma móvel” da 3a Sonata.

A partir da breve análise acima, podemos entrever que as referências primordiais

para a incorporação do acaso na 3a Sonata certamente não vinham exatamente de Cage.

A força construtiva encontraria seu modelo, na realidade, em Joyce e sobretudo em

Mallarmé, de Un coup de dés331. À morfologia e à sintaxe de um sistema racional de

tempo e da forma, Boulez acrescentava, assim, referências do território literário,

estratégia que se antecipava em Le Marteau, obra baseada em um conjunto de poemas

de René Char. A multiplicidade dos caminhos para se percorrer a obra, à semelhança de

um labirinto, retomava deliberadamente as estratégias de Mallarmé para potencializar a

influência do acaso. A partitura torna-se ele mesmo um texto auto-reflexivo, mostrando

que se trata de objeto construído e aberto à contingência, texto concebido como

comentário de si mesmo. A domesticação do acaso em Boulez significava integrar

dialeticamente a contingência ao sistema serial. Com isso, atinge-se o paroxismo

extremo da música totalmente determinada: aquela sobredeterminação de Strucutres 1a

dá lugar a uma sobredeterminação ainda mais abrangente, que ambiciona assimilar a

própria indeterminação – a última seara da “resistência” ao processo de racionalização

da música ocidental – como componente atuante de seu plano construtivo. Na medida

em que a estrutura da forma móvel deriva diretamente das propriedades do material, de

seus formantes, a 3a Sonata procura, assim, de acordo com Williams, “ontologizar o

paradoxo, transcender os extremos da identidade e da não identidade, fazendo da

interação entre construção e acaso a qualidade intrínseca do material, em vez de algo

que emerge na obra”332. Boulez procurava trazer o não idêntico, o “humano”, para o

universo serial, admitindo a abertura controlada à contingência. No entanto, ao tentar

dissolver, no material, a dialética entre o própria material e sua alteridade mimética, o

330 Ibid., p. 61 331 BOULEZ, Sonate, que me veux-tu?. In: Perspectives of New Music, v. 1, n. 2, 1963, p. 32: “What impelled me to write this Third Piano Sonata? It may well be that literary affiliations played a more important part than purely musical considerations (...) the two writers who have most stimulated my thinking and this most profoundly influenced me, namely Joyce and Mallarmé” 332 WILLIAMS, New music and the claims of modernity, p. 63

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

221

resultado da obra autônoma, em sua lógica dedutiva, aproximava-se da pura

heteronomia – a obra totalmente integral acabava perdendo o elemento de alteridade

sem o qual, em termos adornianos, nem mesmo poderia ser reconhecida como obra.

*

A trama conceitual de Boulez apoia-se, como vimos, em uma lógica

estruturalista, sob a qual mesmo o conceito de forma é pensado como estrutura: forma e

conteúdo não estão separados, morfologia e sintaxe obedecem à mesma função

estrutural e são passíveis de mesmo tratamento lógico dedutivo. Vimos que na 3a

Sonata, Boulez aplica simetricamente a estrutura de 8 possibilidades de permutações

desde o nível elementar, morfológico, de subdivisão da série de base, até o plano geral,

sintático, de organização dos formantes. O que prevalece aqui não é mais uma

concepção substancialista de forma, suscetível a transformações históricas, mas

simplesmente a redução da noção de forma à estruturação de relações sintáticas da obra,

a funções que independem de qualquer referência histórica ou mesmo qualquer

limitação antropomórfica. Segundo esse nominalismo, cada obra cria sua própria forma

a partir das possibilidades virtuais que são dadas pela sua morfologia. Sem dúvida,

caberia ainda ao métier e à “responsabilidade” do compositor a escolha das funções

necessárias para o engendramento dessas estruturas locais. Todavia, o que nos parece

relevante nesse contexto é o fato de que, apoiando-se no axiomatismo de Louis Rougier

e no estruturalismo, Boulez não hesita em defender uma concepção estritamente

funcional de forma:

Esta palavra-chave estrutura nos convida a uma conclusão – ainda segundo Rougier – que pode igualmente se aplicar à música: ‘o que podemos conhecer do mundo é sua estrutura, não sua essência. Nós o pensamos em termos de relações, de funções, não de substâncias e acidentes’. Assim deveríamos fazer: não partamos absolutamente das ‘substâncias e dos acidentes’ da música, mas pensemos nela ‘em termos de relações, de funções’”333

Em diversas ocasiões, Boulez remete-se ao método axiomático tanto para

legitimar sua recusa a morfologias preexistentes às obras quanto para fundar uma teoria

333 BOULEZ, A música hoje, p. 30

Parte II – 4. Boulez: sistema racional de tempo

222

da série generalizada334. Notemos o quanto essa aproximação entre método axiomático e

estruturalismo, bem como as implicações desse modelo científico, divergem da

abordagem dialética do material em Adorno, para quem forma e conteúdo, ainda que

mediados um pelo outro, não podem ser tomados por idênticos. O engendramento

funcional das estruturas impõe um fechamento da obra sobre si a tal ponto que se torna

imune a toda interferência subjetiva e a reminiscências formais históricas. Nesse

processo, a teoria de Boulez acaba cedendo a um formalismo que pressupõe o acesso

objetivo à “matéria bruta”, “natural”, de estruturas transcendentes. O processo baseado

na dedução coloca-se como uma espécie de motor para a transgressão permanente de

modelos formais. Entretanto, além de subsumir o particular ao conceito universal de

estrutura, Boulez não questiona, na correção e adequação científica do processo, o

propósito estético da transgressão e adequação.

Pelo que se analisou neste capítulo, é possível constatar uma estrita continuidade

entre Structures 1a e a 3a Sonata. Continuidade que foi percebida por Adorno, quando

dedicou a Boulez o ensaio tardio A forma na nova música (1966). Nesse ensaio, Adorno

recuperava o comentário crítico de Ligeti: por mais antípodas que tenham sido em suas

estratégias de incorporação do acaso, a mobilidade formal na 3a Sonata reencontra a

música da indeterminação de Cage. Ambas dissolvem o potencial crítico do conceito

dialético de forma. O comentário não foi ignorado por Boulez: em sua conferência

proferida em Darmstadt em 1963, publicada no Festschrift para os 60 anos de Adorno,

reconhecia que, diante dos excessos formalistas das práticas serialistas (incluindo a sua),

mostrava-se então urgente a “necessidade de uma orientação estética”335.

334 Para Boulez em 1961, a seguinte citação de Rougier constituiria o “enunciado básico” para todo pensamento musical: “O método axiomático permite construir teorias puramente formais que são redes de relações, tabelas de deduções já prontas. Por conseguinte, uma mesma forma pode se aplicar a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, com a única condição de que estes objetos respeitem entre si as mesmas relações que as enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria” (cf. Ibid., p. 28; 82) 335 BOULEZ, Da necessidade de uma orientação estética (1963). In: A música hoje 2. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

223

5. “Envelhecimento da nova música”

Na nota introdutória à terceira edição (1963) de Dissonanzen, Adorno pretendia

comprovar o alcance de seu ensaio O envelhecimento da nova música (Das Altern der

neuen Musik), observando com certa imodéstia que ele teria contribuído para a inflexão

das práticas composicionais de Boulez e Stockhausen em meados da década de 1950:

O texto [Das Altern] desenvolve temas que já haviam sido expostos em Filosofia da nova música, ou seja, antes da existência da escola serial. Não há proteções contra o abuso das reflexões dialéticas para fins reacionários; no entanto, tal abuso, logo após a publicação de Das Altern, foi tão escandaloso que é preciso deixar claro que o texto de modo nenhum pretendia enfraquecer a exigência da construção musical, mas sim impulsionar a reflexão, a fim de quebrar o ameaçador fetichismo do material. Nesse meio tempo, a escola serial produziu obras, como Marteau sans maître de Boulez e Zeitmaße de Stockhausen, que não tem mais nada em comum com bricolagem/remendos (Bastelei) extra-composicionais. E Stockhausen também levantou a questão teórica sobre o tempo musical, que está no centro de Das Altern. Se a crítica do autor contribuiu para essa nova tendência, não cabe a ele julgá-lo.

(Nota introdutória a Dissonanzen, GS 14, 11)

A nota sumariza características relevantes a respeito do ensaio: a recepção

controversa do texto, ocasionada principalmente pelas distorções de Herbert Eimert em

Die Reihe, a ênfase sobre o sentido musical e a questão do tempo. Concebido

originalmente como conferência para o festival de nova música de Stuttgart em abril de

1954, o texto foi proferido em mais duas ocasiões, depois revisto para publicação na

revista Der Monat em 1955 e, por fim, expandido e revisto mais uma vez para inclusão

em Dissonanzen, de 1956. Essa dedicação bastante atípica a um texto de intervenção

bastaria para comprovar a relevância que o autor lhe atribuía. De fato, sabemos que o

ensaio consubstanciou a crítica mais veemente de Adorno ao serialismo, uma crítica que

havia sido delineada no final do ensaio imediatamente anterior, Sobre a relação

contemporânea entre filosofia e música (1953). Porém, como fica explícito na nota

acima, Das Altern recuperava em larga medida os tópicos de Filosofia da nova música

(FNM), elaborados antes de 1950, portanto, antes da “escola serial”. A modulação

desses tópicos para o contexto de avaliação do serialismo integral em seu momento de

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

224

apogeu demonstra a tenacidade com a qual Adorno preserva seu conceito de forma e

tempo musical, em nítido confronto com as concepções de Boulez e, como veremos no

capítulo seguinte, com a teoria morfológica de Stockhausen. Acreditamos que, mesmo

após a atenuação do automatismo serial a partir de meados da década de 1950, o

substrato da crítica de O envelhecimento não se modifica. Ao contrário das sugestões

em torno do revisionismo adorniano a partir em Vers une musique informelle,

consideramos que a atinência ao conceito histórico de material e ao impulso mimético-

expressivo da composição, contra os excessos da racionalização que eliminavam o

caráter de linguagem e o caráter de aparência da obra, confere estabilidade à posição

crítica de Adorno. Observaremos que, afinal, a despeito das adaptações de

circunstância, os pressupostos de seu conceito de tempo musical, mesmo quando

confrontados com as novas concepções do pós-guerra, não são passíveis de

reavaliações.

5.1 Um falso precursor

Em Das Altern, Adorno questionava a interpretação objetivista da obra de Anton

Webern por parte do serialistas, questionamento semelhante àquele prefigurado na

seção “Os compositores” da primeira parte de FNM. Não seria exagero afirmar que

nessa seção de FNM se enraízam as objeções de Adorno a todo serialismo que viria em

seguida. De saída, é preciso afastar a hipótese de que Adorno encontraria no serialismo

um caminho legítimo, em contraposição à música da indeterminação, para o livre

desenvolvimento das “tendências do material”, a culminação inevitável das experiências

da Segunda Escola de Viena. Como se, a partir de uma oposição entre serialismo e

música indeterminada, Adorno estivesse reencenando em 1954 a metodologia

implementada em FNM, “Schoenberg e progresso” e “Stravinsky e reação”336. Na

realidade, tanto a redução racionalista do material quanto a celebração dadaísta de uma

336 Trata-se de uma visão relativamente difundida, mas pouco amparada por um exame mais detido ao teor dos escritos musicais. Cf. CAMPBELL, Boulez, music and philosophy, New York: Cambridge University Press, 2010, p. 71 E também ZAGORSKI, Nach dem Weltuntergang, p. 685: “the themes and methodology of his Darmstadt lectures are directly linked to his earlier pairing of Schoenberg and Stravinsky”

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

225

anti-arte que fragilizava a categoria de obra no interior da sociedade administrada,

apontavam para a mesma crise de sentido: a perda do caráter de linguagem da nova

música337, que Adorno denominava com o neologismo “des-linguistificação

(Entsprachlichung) do material” (GS 18, 173). Ao mesmo tempo, Adorno reconhecia os

méritos e a “responsabilidade construtiva” de certo pensamento serial, o que se

comprova não só pela apreciação de obras seriais como Le Marteau e Zeitmaße

(conforme vimos na nota introdutória à Dissonanzen), mas pela sua participação

significativa em Darmstadt. Precisamente em função de tal reconhecimento é que a

controvérsia com a geração de compositores “pós-Webern” pôde afinal se estender.

Mesmo assim, sabendo que as objeções em Das Altern se encontravam em FNM, não é

fácil compreender a razão pela qual o livro de 1949 foi utilizado para legitimar as

pesquisas seriais dos anos 1950. Max Paddison, por exemplo, resume a recepção do

livro de Adorno nesses termos:

“O impacto de FNM nos anos logo após sua publicação em 1949 foi considerável. Há relatos de jovens compositores que aprendiam alemão apenas para ler o livro no original. Seus dois temas principais – a tendência histórica do material como progresso, culminando no serialismo; e o ataque ao neoclassicismo como regressão – encontraram forte recepção entre a geração de compositores que estava surgindo no pós-guerra, baseada em Darmstadt. FNM parecia fornecer a legimitação teórica e filosófica para os experimentos com o serialismo integral que sucederam a peça de Messiaen, Mode de valeurs et d´intensités (também de 1949), nas obras de Boulez e Stockhausen no início dos anos 1950”338

Contudo, FNM certamente não fornece a legitimação filosófica para

desdobramentos “pós-Messiaen” ou “pós-Webern”, tampouco sanciona o uso

sistemático da série como “progresso”. É provável que a recepção positiva do livro

descrita por Paddison tenha ocorrido em função de uma série de mal-entendidos, a

começar pelos conceitos de progresso e material. Em FNM, Adorno era veemente o

337 O afastamento do caráter de linguagem diz respeito a um dos aspectos fundamentais da filosofia da música de Adorno: o processo esclarecido de “linguistificação” (Versprachlichung), ou ainda, de espiritualização ou “subjetivação” da música que significa sua transformação histórica em convenção e, ao mesmo tempo, em expressão, mediante a preservação do momento mimético. Esse aspecto idiomático, na filosofia adorniana, vincula-se essencialmente à tonalidade (cf. Sobre a relação contemporânea entre música e filosofia, GS 18, 161) 338 PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 265

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

226

bastante em sua descrição sobre a “dessensibilização do material” e a “má abstração”

induzidas pelo princípio dodecafônico da série em sua pretensão normativa. Lembremos

do exposto em FNM: Adorno apontava para o despotismo cego de uma composição

fundamentada em sistemas e a imobilidade a-histórica inerente às obras tardias de

Webern. No livro, o uso da técnica dodecafônica por parte de Schoenberg e Berg era

compreendido como mera “pré-formação”, “dispositivo de segurança” acessório, na

medida em que os dois compositores escreviam com a técnica e não a partir dela;

quebravam, com isso, o “encanto” (Bann) imposto pelas suas regras. Já Webern, na

visão de Adorno, ambicionava “fazer a própria técnica falar”, fazer a exigência da série

coincidir com a exigência da obra339. As últimas obras de Webern seriam, nesse sentido,

transcrições de esquemas seriais em notas, como se das transcrições estivesse garantido

o sentido musical. Adorno acreditava que, com a eliminação da distinção entre esquema

serial e composição, Webern não mais “compõe” em sentido estrito, apenas “dispõe”

notas previamente dadas pelo esquema. Nas Variações para piano op. 27 e do Quarteto

op. 28, o “fetichismo da série” no plano das alturas tornava-se evidente, passando a

exercer controle sobre o processo: “a partir do momento em que o compositor julga que

a lei da série tem sentido por si só, ele a fetichiza” (FNM, GS 12, 107). Adorno

denunciava, portanto, a elevação da ideia de série a um princípio transcendental, a

hipóstase cujo “encanto” estabeleceria coerência das relações sonoras, dispensando a

função antes destinada à expressividade. Em sua renúncia de intervenção subjetiva, as

obras tardias de Webern manifestariam um “silenciar” composicional. Tal “mutismo

melancólico”, correspondendo à própria retração da subjetividade no plano social,

concedia ao mesmo tempo uma força paradoxal a Webern: o teor de verdade de suas

obras consiste na expressão da impossibilidade de expressão, ou na expressão agônica

do inexpressivo, através da extrapolação do momento construtivo. Desse modo, apesar

e ao mesmo tempo por causa do fetichismo dos meios, Webern exteriorizava a

insuficiência do sujeito e a transformava em singularidade poética:

“Webern deu-se conta da insuficiência do sujeito (...) o sujeito é tão incapaz diante da realidade que a exigência de expressão beira quase à vaidade; tão solitário que não pode mais esperar seriamente encontrar alguém que o

339 Cf. seção “Die Komponisten” in FNM: “Berg hat versucht, den Bann der Zwölftontechnik zu brechen, indem er sie verzauberte; Webern möchte sie zum Sprechen zwingen (GS 12, 105)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

227

compreenda. Com Webern, o sujeito musical abdica, fica mudo, abandona-se ao material, que ainda se mantém como eco de seu silenciar”

(FNM, GS 12,108)

Convém sublinharmos essa aporia à qual chegariam as obras tardias de Webern –

uma aporia que Adorno procura indicar com o advérbio “ainda” acima. Na tentativa de

realizar “a fusão do esquema da fuga e da sonata”, Webern herdava as contradições

presentes em Schoenberg, contradições que conferiam sentido às obras mediante uma

“Aufhebung do contraponto”; superação esta que a técnica dodecafônica, ao fundir a

dimensão vertical e horizontal da música, pretendia encarnar340. Todavia, prossegue

Adorno, nas últimas obras de Webern, não há mais o contraponto, apenas sons dispersos

que configuram o “monumento de uma música que silencia na indiferença”. Esse

silenciar composicional de Webern representaria, para Adorno em FNM, o ponto

extremo que, na verdade, corresponderia à paralisia da dialética histórica do material.

As últimas obras de Webern ainda preservam o “eco do silenciar” do sujeito

composicional; porém, após o eco, resta o silêncio e a indiferença. As consequências

dessa passagem de FNM não podem ser minimizadas. Elas mostram claramente que só

o fato de cogitar a possibilidade de uma “escola pós-Webern” – como se

desdobramentos formais fossem possíveis a partir desse “mutismo composicional” em

Webern, a partir do fim da ideia de expressão e de um abandono ao cálculo serial – seria

um enorme contrassenso à música especulativa e à própria dialética do material. Em

outras palavras, FNM não fornece uma legitimação filosófica para os experimentos de

uma “escola serial”. Portanto, o que efetivamente surpreende em tais passagens de FNM

não é tanto o aspecto premonitório, a antecipação da crítica à objetividade que

caracterizaria a geração dos anos 1950 na busca pelo “grau zero” – lembremos das

declarações de Boulez sobre a “assepsia” necessária da linguagem, cuja aposta era

defender, sim, que “a lei da série tem sentido por si só”. O que efetivamente surpreende 340 Na seção “Organização total dos elementos” de FNM, a origem da técnica dodecafônica é concebida como a redução das dimensões vertical e horizontal da música a um denominador comum, como desejo de “superar (aufheben) as duas tendências contraditórias da música ocidental, a polifonia da fuga e a a homofonia da sonata” (GS 12, 57). O contraponto procurava resolver historicamente tal contradição; no entanto, as últimas obras de câmara de Webern já não “conhecem mais contraponto algum: seus sons esparsos são os restos deixados pela fusão do vertical com o horizontal, como se fossem o monumento de uma música que silencia na indiferença” (idem).

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

228

é antes a suposta influência que FNM poderia ter tido na consolidação do serialismo

como paradigma do pós-guerra (conforme a sugestão de comentadores como Paddison),

sobretudo quando consideramos a crítica de Adorno à normatividade da técnica

dodecafônica e ao fetichismo em Webern já nesse livro. Além disso, os conceitos de

progresso e de material expostos no livro divergem de maneira significativa dos

conceitos de progresso e material dos compositores do pós-guerra, tornando sem

fundamento a suposição de que Adorno seria um dos inspiradores do serialismo.

5.2 Teimosa racionalização

Em Das Altern der neuen Musik, o ensaio de 1954, Adorno retoma o mesmo tópico

de FNM para evidenciar as aporias da racionalização integral e da deliberada aversão a

toda espécie de intencionalidade expressiva. Para ele, a nova geração de compositores

reinterpretava a técnica dodecafônica sob uma perspectiva formalista, baseada no

Webern tardio, transformando-a em sistema e ignorando com isso a gênese das

motivações que levaram Schoenberg a concebê-la. Abdicavam igualmente do lirismo

das miniaturas expressionistas de Webern. Para Adorno, a manipulação obsessiva dos

“engenheiros do serialismo”, substituindo a composição por diagramas e abstrações

alienantes, conduziam a um completo esmorecimento criativo e à escrita de “música

para festivais de música” (Musikfestmusik). O envelhecimento significava não só a

irrelevância social desses experimentos baseados no princípio da série, mas

principalmente sua reversão em mitologia através de sua “pseudomorfose em ciência”,

negligenciando o potencial de negatividade da própria arte musical. Adorno considerava

que tal objetivismo “ameaçador” atingiria igualmente compositores “talentosos”341.

Estava em jogo uma objeção em bloco aos rumos da nova música dos anos 1950, cujo

maior representante na época era, sem dúvida, Boulez. Em carta a Kolisch de 1954,

Adorno apontava para o “isolamento hermético” da nova música em Darmstadt,

341 Como veremos a seguir, Heinz-Klaus Metzger sugeriu em sua crítica ao ensaio que as considerações de Adorno em Das Altern eram basicamente motivadas pelas reminiscências do episódio conflituoso com Stockhausen em 1951. No entanto, a argumentação de Das Altern parece-nos conceitualmente densa o bastante para limitar-se a esclarecimentos de um conflito ocorrido três anos antes.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

229

provocado por “compositores brutos dodecafônicos (Zwölf-Töne-Wüterichen) que

trabalhavam no estilo de Boulez e que desejavam simplesmente destruir a música em

favor de uma teimosa racionalização”342. Em Das Altern, proferida pela primeira vez

dois meses antes da carta, Adorno repudiava, sob um elogio protocolar a Boulez (único

compositor da nova geração a ser mencionado no ensaio), as tendências “tecnocráticas”

que recusavam qualquer conceito da subjetividade como “puro capricho”:

“No topo (de tal tendência) está Pierre Boulez, estudante de Messiaen e Leibowitz, um músico extremamente culto e talentoso, com alto senso formal, cuja força se expressa mesmo quando ele rejeita toda subjetividade. Ele e seus discípulos buscam dispensar toda liberdade composicional, junto com todo vestígio do idioma musical, como se fosse puro capricho. (...) tal racionalização integral na música nunca havia sido concebida” (Das Altern, GS 14, 151-2)

A substituição da expressividade pelo ordenamento objetivo-calculador de

intervalos, durações, graus de intensidade, prescrevia, sem dúvida, uma radicalidade

sem precedentes na história da música, indo além de Webern; mas, ao mesmo tempo,

tratava-se de uma radicalidade insignificante, terminal, na qual nada mais se

desenvolveria. Essa “estabilização” derradeira da radicalidade era o oposto do impulso

especulativo que dela seria esperado. Para Adorno, quando a sobredeterminação

envolve a suspensão resoluta da historicidade das formas, perdem-se as diferenças entre

fato musical (ligado ao material e ao significado das formas) e o puro fenômeno sonoro.

Como consequência do achatamento, restam apenas estímulos sonoros vazios e uma

“caricatura da lógica musical” (GS 14, 162). As peças seriais seriam, segundo Adorno,

“rigorosamente sem sentido (sinnlos) sob o aspecto musical”, pois sua lógica

construtiva, reduzida de maneira caricatural à disposição atomística das notas, recusava

qualquer “realização da experiência viva da escuta (lebendig hörenden Vollzug)” (GS

14, 156). De fato, mesmo a falta de sentido, por negação determinada, poderia conferir

sentido, assim como a falta de expressão pode ser uma das figuras de expressão, como

foi o caso do último Webern. Contudo, para Adorno, a radicalidade programática do

342 Cf. carta a Rudolf Kolisch em junho de 1954: “Du wirst bemerken, daß die Opposition in Kranichstein weniger von den Reaktionären als von den Zwölf-Töne-Wüterichen im Stile von Boulez ausgeht, die nun wirklich die Musik zugunsten der stursten Rationalisierung abschaffen möchten” (ADORNO apud TIEDEMANN, Nur ein Gast in der Tafelrunde - Adorno: kritisch und kritisiert. In: STEPHAN, Rudolf (Org.), Von Kranichstein zur Gegenwart: 50 Jahre Darmstädter Ferienkurse!; 1946 - 1996, Stuttgart: DACO Verlag, 1996, p. 151)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

230

serialismo perderia até mesmo essa dimensão negativa. As peças seriais careciam de

sentido por negação abstrata, rejeitavam o caráter de linguagem e a “sedimentação

formal” do material, elementos que garantem a expressão. Aniquilando um dos polos da

dialética entre expressão e construção, os compositores serialistas, aderindo à

“segurança das séries”, quebravam assim a mediação que confere sentido às obras. Para

Adorno, portanto, o equívoco fundamental estava na interpretação do conceito de

expressão como “vestígio” da tonalidade, como resto incompatível com a pureza da

nova linguagem em seu empenho científico pela “consistência”. Qualificava como

ingenuidade supor que a devoção matemática, visando erradicar “por decreto” restos

expressivos do idioma gasto, bastaria para superar o conceito de subjetividade. Pois

dessa aparente objetividade resultava um estágio mítico, pré-subjetivo do material, a

perda de sua tensão interna (Spannungverlust). Como vimos, o material não

corresponde à “reserva natural dos sons”, diretamente acessível pelo conhecimento

científico, mas consiste nas configurações historicamente situadas de modelos

composicionais disponíveis ao compositor343. Seguir as “tendências do material” não

significa expandir o conhecimento tecnológico e teórico sobre a natureza dos sons; tal

“pseudomorfose em ciência” significa nada menos do que a ruína da arte, o “infortúnio”

(Unheil) contra si mesma (GS 14, 159)344. A mediação da autêntica objetividade

estética, o “avanço do material”, só se realiza pela força que mobiliza a tensão criativa

com o próprio material. Essa força de configuração autônoma da forma é tanto a pré-

condição da arte e de seu teor de verdade quanto o único meio de expressão. Pois

pertence à essência da arte musical, mímese que não se deixa apreender pela dominação

instrumental da natureza, preservar a memória daqueles rastros deixados pela força

evolutiva dessa mesma dominação. A autonomia musical, segundo Adorno, está na

343 Cf. seção “Tendência do material” in FNM, GS 12, 38: “Supor uma tendência histórica dos meios contradiz a concepção tradicional do material definido do ponto de vista físico (...) mas o material de composição difere tanto da totalidade de sons da qual o compositor dispõe quanto a língua falada difere dos sons que estão à sua disposição” 344 Borio sugere que a especificidade anti-científica do conceito de material em Adorno seria tributária de Ernst Bloch, principalmente do ensaio Über das mathematische und dialektische Wesen von Musik, no qual Bloch afirma a primazia da dialética, enquanto representação histórica do tempo, na formação essencial da música, em detrimento da técnica e da matemática: “Nicht die Mathematik also, sonder die Dialektik ist das Organon der Musik, als der höchsten Darstellung historischer, schicksalgeladener Zeit” (cf. BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, p. 444–5). Apesar da explícita referência a esse ensaio em FNM, parece-nos mais adequado afirmar que a postura de Adorno deriva de uma dialética mais abrangente entre mímesis e racionalidade que se manifesta também nos trabalhos não-musicais.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

231

libertação da “natureza”, das sedimentações históricas decorrentes do próprio

desenvolvimento das formas, e essa libertação só se efetiva pelo sujeito. Assim, os

progressos técnicos devem ser pensados à luz das necessidades subjetivas concretas, da

configuração específica do material, de suas contradições e seus rastros, e não impostos

“de cima para baixo” a partir de planejamentos abstratos científicos. Adorno pretendia

mostrar que o planejamento matemático-científico pressupõe a crença em uma essência

não dialética da música. E que sse planejamento estava claramente colocado pela

axiomática e pelo existencialismo em Boulez. Como vimos acima, Boulez declarava no

mesmo ano de publicação de Das Altern que:

“É impossível deixar de constatar que as exigências da música atual seguem paralelas a certas correntes da matemática ou da filosofia contemporâneas”345

Adorno, por sua vez, contestava tais exigências:

“É fútil a esperança de que através de manipulações matemáticas um “ser-em-si” puramente musical apareça; de que é possível seguir leis da natureza, ao passo que as organizações do material são produtos de arranjos humanos, como o temperamento e a equivalência da oitava. Desiludido, o homem transforma um produto artificial em fenômeno primitivo e reza nele; um autêntico exemplo de fetichismo. Há algo infantil nessa pureza de intenção. É a paixão pelo vazio, talvez o pior sintoma do envelhecimento. Regras alienadas e pré-determinadas são seguidas cegamente – como um bom aluno de escola seguiria – excluindo a tensão com subjetividade, sem a qual não há nem arte nem verdade”

(Das Altern, GS 14, 159)

A racionalização serial fundamenta-se, para Adorno, na perspectiva fetichista de

um acesso imediato ao material, da neutralização da história que convém a uma filosofia

da identidade. Essa reversão em mito ocultava, porém, a própria inscrição do serialismo

no telos da progressiva racionalização dos sons. Os compositores operavam, em

primeiro lugar, como se o temperamento equidistante de 12 frequências no campo das

alturas e suas regras de afinação não fossem produto do espírito humano, consolidado

no século 18 na Europa346. Mais do que isso, operavam como se o pensamento serial

345 BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 171 (ensaio Auprès et au loin, 1954) 346 Por um lado, Adorno considera inevitável a progressiva racionalização em direção à construção integral, nos moldes do pensamento de Max Weber: “Não há dúvida de que a história da música é uma

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

232

não fosse criação de Schoenberg. Era necessário, para Adorno, quebrar o “encanto”, a

reificação do sistema serial em sua “alergia à expressão”. Na esteira argumentativa de

Das Altern, dois compositores surgiam como paradigmas contra essa hipertrofia do

primeiro serialismo e de seu “existencialismo” subjacente347: não por acaso, Schoenberg

e Beethoven.

Schoenberg contra a composição dodecafônica

Como vimos, Boulez desqualificava, em seu artigo Morreu Schoenberg, as

contradições provenientes de uma “linguagem bastarda”, de um “hiato inadmissível”

entre formas pré-clássicas e o avançado material por ele emancipado348. Em nítida

oposição a Boulez, contudo, Adorno enaltece em Das Altern justamente a mediação das

contradições entre a dimensão subjetiva e objetiva em Schoenberg. Eram precisamente

tais contradições – a preservação de elementos expressivos como “construção temática,

exposição, transição, continuidade, campos de tensão e repouso” (GS 14, 150) em meio

à nova lógica construtiva da técnica dodecafônica – que estabeleciam a coerência e o

sentido das duas últimas fases de Schoenberg. Sem dúvida, a transferência para a

técnica dodecafônica de elementos estranhos a ela – como transição (pressupondo níveis

de modulação harmônica) e mesmo a ideia de tema (pressupondo variações, notas

‘livres’) – leva às inconsistências estruturais apontadas por Boulez. Mas essas progressiva racionalização. Teve passos, como a reforma guidônica, a introdução da notação mensural, a invenção do baixo contínuo, a afinação temperada e finalmente a tendência à construção integral da música, irresistível desde Bach, e hoje levada ao extremo” (Ideias para a sociologia da música, p. 262). Distinguindo-se de Max Weber, porém, Adorno considera que a racionalização é apenas um dos aspectos sociais e que a música “foi também, e sempre, a voz do que ficara para trás no caminho dessa racionalidade” (ibidem) 347 Essa retração do sujeito, convertida em programa, remetia aos dogmas da filosofia existencial de extração heideggeriana: “em vez da intenção subjetiva, o próprio Ser deveria ser escutado” (Das Altern, GS 14, 157). Veremos como Adorno responde, nesse contexto, ao existencialismo de Goeyvaerts, explicitamente defendido como programa composicional. 348 Ver discussão no capítulo anterior, especialmente na descrição do artigo de 1952 de Boulez, “Morreu Schoenberg”. Ao comentar o polêmico artigo de Boulez, Adorno definiu essa rebelião à liberdade, subjetividade e expressão como um tipo de rebelião à figura do pai. Isso, no entanto, fazia perder de vista o exemplo mais importante de Schoenberg: “Im Klima dieser auf Schönberg verpflichteten Musik ist ein Anti-Schönbergisches offenbar, eine Art Rebellion gegen die Vaterfigur, die freilich dieser, paradox genug, ein Zuviel an Freiheit, Subjektivität und Ausdruck vorwirft. Nicht umsonst hat Pierre Boulez einen manifestartigen Aufsatz »Schönberg est mort« überschrieben. Worum es geht, ist in der Sache vorgegeben, von der diese Komponisten losmöchten” (Neue Musik heute, GS 18, 131)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

233

inconsistências estruturais não significam, para Adorno, incoerência composicional.

Nesse sentido, vale a pena destacar esta passagem fundamental de Das Altern para o

conceito de composição:

“foi apenas por força desses (elementos expressivos, como transição e tema) e de outras categorias tradicionais relacionadas, que o sentido musical, a composição autêntica, sendo mais do que mero ordenamento, foi salva em meio à técnica dodecafônica”349.

O que Adorno afirma é que são precisamente as inconsistências de Schoenberg

que revelam a força de sua “composição autêntica” (eigentliche Komponieren) contra o

“mero ordenamento” (bloße Anordnung) das notas, contra a aplicação rigorosa, para não

dizer mecânica, da técnica. Afinal, a própria técnica dodecafônica provinha do “solo da

tonalidade”, solo do qual se tornou possível a criação da “lei rigorosa para a escrita

cromática” (segundo a definição do próprio Boulez) enquanto imperativo histórico após

a fase de “emancipação da dissonância”. Todavia, se Schoenberg inventou a técnica,

nem por isso se contentou com ela350. Pois caso seguisse estritamente as imposições da

regra, a composição seria refém da pré-formação dos meios, simples tautologia ou

citação de um material pré-concebido. Em um artigo de 1935, Por que música

dodecafônica?, Adorno falava da troca subreptícia entre a simples pré-formação dos

meios e o resultado final da obra, confusão esta que seria tão absurda quanto equivaler,

na pintura, o arranjo da palheta de cores ao quadro pronto351. Em resumo, a técnica

dodecafônica não é uma técnica de composição. Se Adorno assinalava os riscos do

sacrifício da composição que uma conversão da técnica dodecafônica em sistema

poderia trazer, era porque a técnica em si produz “imobilidade a-histórica”, sua ordem

“apaga virtualmente o sujeto”, de modo que as obras dodecafônicas mais rigorosas se

aproximavam do neoclassicismo objetivista e inexpressivo de Stravinsky352. Zagorski

sugere que, em Das Altern, a apreciação da técnica dodecafônica de Schoenberg é mais

349 Das Altern, GS 15, 150: “(...) hat einzig kraft jener und verwandter Kategorien bei Schönberg inmitten der Zwölftontechnik der musikalische Sinn, das eigentliche Komponieren, soweit es mehr ist als bloße Anordnung, sich gerettet” (grifo nosso) 350 Cf. Toward an Understanding of Schoenberg (in Essays on Music), p. 638: “O maior ensinamento de Schoenberg era o fato de nunca ter se acomodado com o que conquistou” 351 Ver primeira frase de Warum Zwölftonmusik?, GS 18, 114: “Keiner, der die Palette eines Malers sieht, wird ohne weiteres darauf verfallen, sie für ein Bild zu halten.” 352 Ver seção de FNM “Inversão na não-liberdade” (Umschlag in Unfreiheit)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

234

generosa do que aquela exposta em FNM353, provavelmente em razão do contexto da

escrita, no qual o pensamento serial já havia, por assim dizer, assumido a “força de lei”

na vanguarda. No entanto, a autocrítica feita por Adorno em seu ensaio anterior, Sobre a

relação contemporânea entre filosofia e música, indicava outras razões para a discreta

reavaliação interpretativa da técnica.

Nesse ensaio de 1953 Adorno declarava que, em diversas seções de FNM, havia

analisado a técnica dodecafônica de modo excessivamente abstrato, deixando em

segundo plano sua cristalização nas obras (Sobre a relação contemporânea entre

filosofia e música, GS 18, 165). A violação da “primazia do objeto” em FNM teria, em

primeiro lugar, fortalecido a imagem equivocada de Schoenberg como precursor do

“sistema serial”. Em segundo lugar, teria acriticamente endossado a tese de que cada

dimensão musical possuiria essência própria, independente uma da outra, como se

instrumentação e estruturação harmônica, por exemplo, fossem concebíveis

separadamente no processo composicional354. Todavia, somente o contato com a

configuração particular da obra – e não apenas com a tendência do material – permitiria

avaliar a necessidade e a coerência do conjunto das escolhas subjetivas de articulação

entre as dimensões em um compositor. Nesse sentido, as “inconsistências” das obras

dodecafônicas tardias de Schoenberg – que Adorno exemplifica no retorno “áspero” de

elementos expressivos nos fragmentos de Moses und Aron e em Sobrevivente de

Varsóvia op. 46 – não estavam “condenadas ao fracasso”, ao contrário da sentença de

FNM355, que, de resto, sob tal aspecto, também se assemelhava àquela acusação de

Boulez contra Schoenberg. Só estariam “condenadas” para a perspectiva analítica que

toma cada dimensão separadamente, sem considerar as consequências de uma dimensão

sobre outra. Quando essa perspectiva atua sobre a totalidade do processo composicional,

o que se tem é o próprio “fetichismo do material”, criticado tanto em FNM quanto em

353 Cf. nota 49 de ZAGORSKI, Nach dem Weltuntergang, p. 693 354 Cf. Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 167: “Aber der technische Sachverhalt führt über manche Aussagen der »Philosophie der neuen Musik« hinaus. Der Teil über die Zwölftontechnik war allzusehr noch dem Herkommen verpflichtet in der These, daß jegliche musikalische Dimension eigenen Wesens, in weitem Maße unabhängig von den anderen sei.” 355 Cf. idem (GS 18, 169): “Angesichts solcher Leistungen, die keineswegs aus Regel und System der Zwölftontechnik stammen, sondern aus der Konfiguration der Werke aufsteigen, mag das technische Kunstwerk doch nicht so auswegslos zum Mißlingen verurteilt sein, wie es in der »Philosophie der neuen Musik« sich darstellt”

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

235

Das Altern. Ou seja, o que se tem é restrição da composição a um aspecto ou a uma

dimensão do material, como o ritmo (no caso de Stravinsky) ou a técnica serial (no caso

de Boulez), que assume a totalidade da construção. Não por acaso, no final desse

mesmo ensaio de 1953, Adorno condenava a “regressão da consciência” de uma “escola

dodecafônica” em vias de se consolidar, de uma vanguarda serial que seria “não menos

resignada do que os conformistas que escrevem o que as pessoas querem ouvir”, de uma

vanguarda, enfima, que acreditaria na “força violenta do sistema” (Sobre a relação

contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 175-6). Assim como também não era

casual, no mesmo contexto, a aproximação entre a divisão dos “dados psicológicos

fundamentais do som” de Boulez – a origem do pensamento por parâmetros – e o

fetichismo rítmico de Stravinsky:

“(...) o compositor francês Boulez, estudante de Messiaen, concebeu um sistema em que relações rítmicas supostamente estão ligadas à totalidade da construção. No fim, todos os dados psicológicos fundamentais do som – sua altura, qualidade, intensidade, duração e timbre – são como que inventoriados e combinados sistematicamente em todas as suas possibilidades contrastantes. O objetivo final é neutralizar um dado por outro. Nesse sentido, um tipo de equilíbrio estático é intencionado, de modo não muito distinto de Stravinsky. A música resultante, parecida com obras tardias de Webern, lembra sons individuais dissociados entre si, dando a impressão de algo abstruso.”

(Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, GS 18, 174)

A crítica contra Boulez acima seria ainda mais pertinente ao conceito de fase-

fundamental da teoria morfológica de Stockhausen, que analisaremos no capítulo

seguinte, mas que à epoca ainda não havia sido formulada. Cabe observar desde já, de

todo modo, que o princípio da série coloca-se, para Adorno, como “por si só criticável”,

pois tende a substituir o trabalho autônomo da construção e a redefinição funcional da

forma por derivações de um “pensamento serial” que totaliza dimensões musicais.

Sistematizar a série implica abandonar a estrutura complexa e articulada da composição

que caracterizava a práxis de Schoenberg, abandonar a mesma estrutura que deu

existência ao princípio de série. Portanto, a extensão da racionalização aos demais

parâmetros significava bloqueio do processo de autonomização da forma. Reforcemos

este argumento: Adorno legitima o princípio da série quanto este é considerado no

interior da estrutura complexa e fortemente articulada de composição; em Schoenberg,

as consequências de uma dimensão sobre outra estariam previstas na organização geral

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

236

da obra. Adorno insiste que Schoenberg não “descobriu” a técnica, mas a “inventou”

(GS 18, 175). Escrever com a técnica era uma maneira de “disciplinar” e regular a

dissonância, após a “desordem” do atematismo constatada na atonalidade livre – ela

seria a tentativa, entre outras possíveis, de escapar da aporia colocada pelo atematismo.

Por conseguinte, o uso da técnica era funcional, subordinado a uma “externalidade”, a

uma instância subjetiva que, longe de refletir a “intenção” do compositor ou replicar

“seu conteúdo psíquico”, revelava-se como mimese autêntica do espírito na música.

Para Schoenberg, seria totalmente arbitrária a cristalização da técnica em sistema auto-

referencial, ainda que tal sistema pudesse ser decifrado a partir da “natureza dos sons”,

enunciando um “puro Ser” da música. Assim, o que o objetivismo existencialista da

vanguarda dispensava como “mero capricho” – atitude que Adorno comparava do

positivismo na filosofia356 – era, de fato, a tensão criativa enfrentada pelo inventor

diante de sua invenção; em Boulez, podemos dizer, essa tensão se dissolvia na

axiomática estruturalista; em Stockhausen, na unificação frequencial dos parâmetros.

Ao desatar os laços com a história e seus problemas, esse objetivismo positivista atuava

como se a própria ideia de série não fosse datada. Em Das Altern, Adorno faz questão

de enfatizar esse equívoco:

“Não familiarizados com as conquistas autênticas da escola de Schoenberg e em posse das regras dodecafônicas, tomando estas como apócrifas sem levar em conta aquelas conquistas, esses compositores se satisfazem com malabarismos de séries, como se ela fosse um substituto da tonalidade. Daí não resulta composição alguma, e isso conduz a uma situação paradoxal: o desaparecimento da tradição dentro da nova música (...) No lugar dessa tradição, transformam um ideal musical, por si só criticável, em um falso positivo e desprezam a espontaneidade e o esforço a partir dos quais a ideia surgiu”

(Das Altern, GS, 14, 162)

Tal dissolução representava, então, a neutralização do impulso produtivo,

transformando-se em “falso positivo” e em “falsa segurança”. A vitalidade original da

técnica se perdia, na medida em que, degenerada a procedimento, reproduzia um ideal

estático e puramente racionalizado de música, sem a força da produção dinâmica de

356 Boissière apresenta as simetrias teóricas entre as querelas de Adorno contra o positivismo de Popper e contra o serialismo BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, Cap. 7.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

237

sentido. Tal encapsulamento matemático, como Adorno dirá em 1955, leva à

“liquidação do compor na composição”357. De maneira premonitória, a crítica à

transformação da série em sistema e de seu uso como substituto da tonalidade já se

encontrava na menção que Adorno faz em FNM aos “jovens compositores” dos

EUA358; e isso é ainda mais surpreendente se lembrarmos que a redação de FNM nos

anos 1940 se deu quando o serialismo na Europa praticamente não existia ou, pelo

menos, era completamente desconhecido por Adorno na Califórnia. O ponto em comum

entre os compositores dos EUA e da Europa no pós-guerra localiza-se na assunção da

série como sistema “seguro” que substituiria a necessidade de se criar articulações no

material: a capitulação das finalidades expressivas da composição diante de seu meios

técnicos. Em ambos os grupos, a imediatez objetiva dispensava questionamentos sobre

o próprio uso do sistema, como se, da mera aplicação da série, o sentido musical já

estivesse assegurado. Esse fetichismo, como afirmava a nota de 1963 de Dissonanzen,

viria a ser uma feição “ameaçadora” à nova música.

Beethoven: idêntico, retroatividade e angústia

Vale destacar novamente a importância de FNM para a definição dos contornos

críticos de Das Altern: fetichismo e infantilismo das intenções; colapso da

subjetividade; concepção mítica e a-histórica de material; redução a relações

matemáticas; substituição da “composição” pelo “arranjo” das notas; “estabilização da

música”. Também quanto ao problema do tempo musical, em particular da “repetição”,

a convergência entre FNM e Das Altern é notória; e tal perspectiva permanecerá

consistente nos anos seguintes, incluindo o ensaio de 1965 dedicado a Boulez, Forma

da nova música (a ser analisado no último capítulo). Vimos que, em Das Altern, Adorno

sugere uma neutralização do material no último Webern, estabelecendo a escuta

357 “die Liquidierung des Komponierens in der Komposition” (Neue Musik heute, GS 18, 132) 358 Adorno refere-se à articulação entre dodecafonismo e pesquisas matemáticas em Milton Babbit e Elliott Carter nos anos 1940: “Daher die Bereitschaft so vieler junger Musiker – gerade in Amerika, wo die tragenden Erfahrungen der Zwölftontechnik entfallen – im »Zwölftonsystem« zu schreiben, und der Jubel, daß man einen Ersatz für die Tonalität gefunden habe, so als ob man es in der Freiheit nicht einmal ästhetisch aushalten könnte und diese unter der Hand durch neue Willfährigkeit zu substituieren habe”. (FNM, GS 12, 70)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

238

atomizada, refratária à escuta estrutural. Na base desse serialismo, prevalecia então uma

ideia estática de música, segundo a qual a disposição “geométrica” das notas confundia-

se com o evento produzido (Das Altern, GS 14, 152). Mais do que isso, a declarada

aversão a repetições do serialismo tinha como premissa equivocada o fato de que o

“elemento igual que retorna” (das wiederkehrende Gleiche) na música seja realmente

igual. Adorno afirma que o que seria válido em uma representação espacial

esquemática, não o é na música. Trata-se de uma experiência trivial da escuta: ao ouvir

pela segunda vez a execução de um motivo musical qualquer, a nova aparição do

motivo não só não possui o mesmo significado de sua primeira aparição, como

modifica, no ato de rememoração, o significado da primeira aparição. Já uma disposição

atomística das notas na partitura, aniquilando, segundo Adorno, o nexo geral de sentido

(Sinnzusammenhang) e a intervenção da memória mediante a recusa programática a

repetições, representa simplesmente a negação do tempo musical e da dinâmica à qual a

música deve, no entanto, sua razão de ser:

Na medida em que a música acontece inteiramente no tempo, é dinâmica a tal ponto que no curso da música o idêntico vira o não-idêntico, assim como o não-idêntico, por exemplo, uma reexposição reduzida (verkürzte Reprise), pode virar o idêntico.

(Das Altern, GS 14, 152)

Notemos que o significado desse “elemento igual que retorna” (de um

Wiederkehr) é diferente do tópos da repetição mítica (Wiederholung) que atravessa a

filosofia adorniana, por exemplo, na rejeição à “construção do tempo musical” em

Wagner e Stravinsky que analisamos na Parte I da tese. No caso do “retorno”, a volta de

um motivo simples – que, na representação espacializada da partitura, seria um igual,

um idêntico – faz emergir, sobretudo em sua aparição inesperada, o não-idêntico, em

função do processo de rememoração no curso do tempo. Por outro lado, o não-idêntico

de uma “reexposição reduzida” do esquema da sonata – cuja brevidade na partitura não

coincide com a extensão da seção da exposição – transforma-se no idêntico ao evocar

brevemente os temas da exposição sem nenhum tipo de implicação subjetiva autêntica,

justificando-se apenas para fins de simetria do esquema. Ou seja, quando se apresenta

novamente todo o material temático na tônica, atenuando-se o conflito latente entre

tônica e dominante da seção da exposição, o gesto do compositor sinaliza não mais do

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

239

que sua mera conformidade ao protocolo exigido pelo esquema. A sedimentação da

forma, no caso da “reexposição reduzida”, se sobrepõe à dimensão efetivamente criativa

do sujeito; com a confirmação do que estava previsto antes da escuta, o não-identico da

reexposição converte-se em idêntico. Em contraposição à esse tipo de espacialização ao

qual o serialismo cede, Adorno utiliza o exemplo da articulação formal em Beethoven –

a matriz, como queremos comprovar neste tese, do conceito adorniano de tempo

musical. Vejamos como a reexposição em Beethoven pode exercer uma função

primordial na construção da forma:

“Os efeitos mais poderosos da forma em Beethoven dependem de um elemento que retorna (ein Wiederkehrendes), antes um simples tema que então se revela um resultado, adquirindo um sentido completamente modificado. Com frequência, o significado da passagem precedente só é estabelecido por sua recorrência posterior (nachträglich). O início da reexposição pode engendrar o sentimento de algo extraordinário (Ungeheuerliches) ter acontecido antes, mesmo que esse extraordinário não pudesse ser localizado naquele instante. Os construtivistas ‘punctiformes’ não só se furtam dessas possibilidades da construção autêntica da forma, como também falham em perceber que, mesmo contra sua vontade, relações temporais se estabelecem e dão um significado completamente transformado àquilo que no papel se coloca como idêntico.”

(Das Altern, GS 14, 152)

Como afirmamos na parte I da tese, Adorno menciona frequentemente o

problema da reexposição em Beethoven359. Mais tarde, na monografia sobre Mahler

(1960), Adorno chega a aproximar esse tratamento da seção da reexposição, sobretudo

nas obras do tipo intensivo que materializam o kairós, à teodiceia do existente em

Hegel. Explica que a reexposição no esquema da sonata só se converteu efetivamente

em problema com Beethoven, pois o deslocamento da força composicional para o

dinamismo da seção central do desenvolvimento (para o Werden em detrimento ao Sein

no classicismo) tornava inútil ou abominável o retorno dos temas em seu sentido

convencional. O efeito produzido pela seção de reexposição seria comparável àquele

produzido sobre o espectador de um filme que, devendo permanecer sentado em sua 359 Em TE, Adorno utiliza praticamente o mesmo trecho de Das Altern – sobre o “extraordinário” que emerge retrospectivamente na música a partir de um evento anterior – para explicitar o elemento espiritual na obra de arte em geral: “In Musik vermag ein Ereignis oder eine Situation eine ihnen vorhergehende Entwicklung nachträglich zu einem Ungeheuren zu prägen, auch wenn das Vorhergegangene an sich es gar nicht war. Solche retrospektive Verwandlung ist exemplarisch eine durch den Geist der Werke” (TE, seção “Sobre a teoria da obra de arte”, GS 7, 275)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

240

poltrona no cinema após o final, precisa rever seu começo. Para evitar esse retorno

inútil, a solução encontrada por Beethoven foi redefinir a função da reexposição. Ela

então não mais se apresenta como a seção que mantém o equilíbrio formal do esquema,

mas como destino para o qual todo o desenvolvimento do movimento, afinal, se

encaminhava desde o início:

“no momento fecundo da entrada da reexposição, Beethoven apresenta o resultado (Resultat) da dinâmica, do devir, como a confirmação e a justificação de tudo o que se passou, daquilo que, de todo modo, existiu. Essa é sua cumplicidade com os grandes sistemas idealistas, com a dialética hegeliana, na qual a quintessência (Inbegriff) das negações, e com isso do próprio devir, leva à teodicéia do existente (Seienden)”

(Mahler, GS 13, 241)

Voltando à citação acima de Das Altern sobre Beethoven, notamos que Adorno

não se limita a destacar mais um vez seu tour de force na reexposição, ou seja, a

destacar a alteração funcional da reexposição pela transformação retrospectiva do

conjunto no curso do tempo. Mais do que isso, afirma que o gesto de Beethoven

pertence à “construção autêntica da forma” (eigentiliche Formgestaltung). E aqui

devemos ressaltar o paralelismo com a “composição autêntica” (eigentiliche

Komponieren) que havia sido atribuído a Schoenberg alguns parágrafos antes em Das

Altern. Portanto, no contexto do ensaio de 1954, Beethoven e Schoenberg aparecem

como representantes da composição autêntica, de um trabalho que seria ignorado pelos

“construtivistas punctiformes” do serialismo. A concepção autêntica do tempo e de sua

“gramática” subjacente360 exige que se conceda a primazia do efeito das relações entre

notas sobre a memória, relações que decorrem da experiência viva da escuta, em

detrimento das relações entre notas que seriam dadas por esquemas e tabelas indicando

lugar na partitura, independentemente do referencial de escuta. Embora tal concepção

pareça reforçar um truísmo, para muitos compositores do período, o referencial de

360 Vale relembrar os elementos da “gramática” que, em FNM, definem as “relações temporais autênticas” (eigentlich zeitliche Relationen): “den Übergang, die Steigerung, den Unterschied von Spannungs- und Auflösungsfeld, von Exposition und Fortsetzung, von Frage und Antwort (...)” (FNM, GS 12, 179); mostramos acima que esse elementos comparecem em Das Altern para qualificar o caráter expressivo da escrita tradicional de Schoenberg: “Themenbildung, Exposition, Übergang, Fortsetzung, Spannungs- und Auflösungsfelder, und was dergleichen Begriffe” (Das Altern, GS 14, 150)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

241

escuta seria efetivamente secundário ao processo de composição. Quando Adorno

reivindicava a “verdade do ouvido”, a “experiência viva da escuta”, não se referia a uma

obviedade. Para ele, o serialismo, em razão de sua aversão constitutiva ao passado das

formas, convertia-se em mero decalque da experiência social do tempo, aderindo

ideologicamente ao estado de coisas presente. Incapazes de confrontar o tempo

empírico, cediam à neutralização cultural. Como vimos na Parte I da tese, a vitalidade

expressiva de Schoenberg decorria de sua capacidade de configuração e registro formal

da angústia, sobretudo na atonalidade livre de Erwartung e Pierrot Lunaire. A

expressão da Angstbereitschaft, para Adorno em FNM, consistia no locus de

preservação da subjetividade. Em Das Altern, retoma-se o tópico da angústia, desta vez

em chave agônica:

“O momento da angústia (das Moment der Angst) que marcou as grandes obras fundadoras da nova música foi reprimida. Talvez a angústia tenha se tornado tão opressiva na realidade que sua imagem não dissimulada seria quase insuportável: reconhecer o envelhecimento da nova música não significa tomar esse envelhecimento como algo acidental” (Das Altern, GS 14,145).

Assim, os sintomas do envelhecimento da nova música, em termos sociais,

correspondem àqueles da “contração da liberdade, do colapso da individualidade que

indivíduos desintegrados e desamparados confirmam” (Das Altern, GS 14, 165). Isso

não seria acidental, pois o envelhecimento da nova música é outro nome para a

“impossibilidade de todas as livres iniciativas no mundo administrado, que não tolera

nada que fique fora dele ou que não possa ser integrado como elemento de oposição”

(GS 14, 166). Por outro lado, a eventual retomada da liberdade musical – ensejo

fundamental, como veremos, de Vers une musique informelle, de 1961 – dependeria da

plena consciência desse estado de coisas, buscando novos modelos de formalização da

angústia. Faltava ao serialismo, em todo caso, ao contrário dos gestos de Schoenberg,

Berg e Webern, a consciência histórica de problemas expressivos e contraditórios das

técnicas que vieram após o fim da tonalidade. Distante de toda concepção formalista ou

naturalista, o fato musical, para Adorno, é sempre “subjetivamente mediado”361.

361 Como bem observa Boissière, o diagnóstico do enfraquecimento da subjetividade, de uma música “estranha ao eu”, é identificado por Adorno tanto no serialismo quanto na música aleatória de maneira

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

242

Consequentemente, o objetivismo do serialismo o fazia refém de um presente eterno, de

uma temporalidade mítica em meio à racionalização extrema da técnica.

5.3 O debate com Metzger

Não há qualquer indício de que a crítica de Adorno em Das Altern tenha

contribuído para a inflexão composicional de Boulez em meados da década de 1950, ao

contrário do que o filósofo havia sugerido na nota introdutória a Dissonanzen362.

Todavia, a conferência de proferida pela primeira vez em 1954 certamente provocou

mal-estar entre os defensores das abordagens seriais. O musicólogo Heinz-Klaus

Metzger, na época um dos principais defensores do serialismo, formalizou tal

desconforto em 1957 no ensaio O envelhecimento da “Filosofia da nova música” (Das

Altern der Philosophie der neuen Musik), sinalizando já no título a inadequação dos

critérios adornianos para a avaliação da nova música. É preciso lembrar que os

privilégios de Adorno como conferencista convidado para os cursos em Kranichstein-

Darmstadt vinham sendo questionados. Na realidade, desde o episódio de 1951, Adorno

ganhava reputação de persona non grata em círculos específicos de Darmstadt. Em

carta de fevereiro de 1956, Luigi Nono, nessa época o compositor mais influente dos

Ferienkurse, chegou a requisitar a Wolfgang Steinecke, responsável pela organização

dos cursos, simplesmente a exclusão de Adorno como convidado, por conta da

“obsolescência” de suas doutrinas ainda vinculadas a uma estética pré-serial: “basta de

palestras acadêmicas doutrinárias de Adorno e de outros do tipo, e sim (organizemos)

palestras com pessoas de hoje para os que são de hoje!”363. Embora ainda tivesse sido

convidado em 1956 (com o ciclo de conferências Schoenbergs Kontrapunkt) e 1957 equivalente. Sua avaliação não se preocupa em distinguir as recusas ao estado objetivo do material que orientaria ambos os projetos, por mais que seus pontos de partida sejam radicalmente distintos. Em ambos, impõem-se a exterioridade da experiência do sujeito composicional ao método de construção da obra. (Cf. BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, p. 169) 362 Ver o comentário de CAMPBELL, Boulez, music and philosophy, p. 79–80: “It is clear that Boulez considered his own critique to have been independent and prior to that of Adorno (…) This view is supported by a letter he wrote to Pousseur around October 1952, and in which he registers his reaction on hearing the recording of Polyphonie X (…) It is undoubtedly the case, then, that between 1952 and 1954, with or without Adorno’s contribuition, Boulez had already moved decisively away from any kind of ‘automatic activity’ and its resultant ‘greyness’” 363 Carta de Nono para Steinecke, 25/2/1956 (apud IDDON, New music at Darmstadt, p. 127).

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

243

(Kriterien der neuen Musik), ambos enfatizando a “coerência composicional” e a

subordinação funcional da técnica para fins compositivos (atacando novamente o

serialismo em sua suposta idolatria científica), todas as sugestões de cursos e

conferências enviadas por Adorno nos três anos posteriores, de 1958 até 1960, foram

recusadas, não recebendo sequer resposta de Steinecke. O retorno de Adorno a

Darmstadt só viria a ocorrer em 1961 (com Vers une musique informelle), ainda assim

graças à intervenção enérgica de Stockhausen, conforme o próprio relato de Adorno a

Rudolf Kolisch364. Não chega a surpreender que a crítica de Metzger, transmitida pela

Westdeutscher Rundfunk em 1957 e publicada no quarto volume de Die Reihe em 1958,

tenha ocorrido no mesmo ano em que Adorno deixou de ser convidado para os

Ferienkurse.

A correspondência entre ambos revela que a intenção de Metzger de contra-

argumentar a conferência de Adorno datava já do mês de sua primeira transmissão em

1954365. Na realidade, a intensa correspondência entre ambos (de 1954 a 1965) dá a

impressão de que suas divergências teóricas eram praticamente residuais. Se, por um

lado, Adorno revela uma apreciação muito mais ambivalente das obras seriais do

período, por outro, Metzger concordova com os pressupostos filosóficos adornianos. No

fundo, Adorno considerava toda polêmica fruto de um “mal-entendido” que seria

resolvido oportunamente: o que teria ocorrido no Streitgespräch entre Adorno e

Metzger, transmitido pela mesma Westdeutschen Rundfunk em 1958. Poucos anos

depois, Metzger publicaria Das Altern der jugsten Musik (1962), parafrasendo

novamente o título da conferência de Adorno, mas reconhecendo desta vez que as 364 Stockhausen havia informado que só participaria dos Ferienkurse de 1961 sob a condição de que Adorno voltasse a ser convidado naquele ano. Na carta a Rudolf Kolisch de 13/6/1961, Adorno comentava, com certa surpresa, a insistência de Stockhausen: “Es dürfte Dich interessieren, daß die Tatsache, daß ich nach Kranichstein wieder eingeladen wurde, keinem anderen als Stockhausen zuzuschreiben ist (…) Er hat sich selbst zur weiteren Mitarbeit in Kranichstein bereit erklärt nur unter der Bedingung, daß ich wieder eingeladen wurde” (ADORNO, Kranichsteiner Vorlesungen, p. 646). O filósofo já não havia sido convidado para os cursos de 1952, fato que o irritou consideravelmente, como prova o teor cerimonioso da carta a Steinecke, na qual registrava seu incômodo e solicitava esclarecimentos, um teor que se repetiu nos anos em que não foi convidado: “Vielleicht darf ich Ihnen ganz offen sagen, dass ich ein wenig traurig bin, dass ich in diesem Jahr nicht zur Mitwirkung an den Darmtstädter Kursen aufgefordert wurde, nachdem ich glaube, dass das, was ich versucht habe, von recht intensiver Wirkung war (…) Ich wäre Ihnen recht dankbar, wenn Sie mir gelegentlich etwas über die Hintergründe dieser Angelegenheit sagen wollten” (Ibid., p. 642) 365 Em maio de 1954, Adorno pede a Metzger que aguarde a publicação de Das Altern para só então publicar sua Kontroverse, com o que Metzger concorda na carta enviada três semanas depois. (cf. ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 7/5/1954 e 29/5/1954)

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

244

“profecias de Cassandra” difundidas pelo filósofo oito anos antes – profecias sobre os

sinais de estabilização e de falsa satisfação de uma “música para festival de música” –

acabaram, por fim, se realizando366.

De todo modo, em 1957, com O envelhecimento da “Filosofia da nova música”,

Metzger decidiu combater a diatribe materialista de Adorno em termos igualmente

polêmicos. Apontava, em primeiro lugar, para a inconsistência de Das Altern com o

próprio conceito de material que havia sido central em FNM. Se antes, segundo

Metzger, a tendência objetiva e histórica do material ditava o “progresso da arte

musical”, depois, em Das Altern, a expansão da técnica dodecafônica, herdeira dessa

tendência, parecia ser tomada como regressiva, o que indicava que Adorno

“silenciosamente” se despedia de suas premissas de FNM. Na visão de Metzger,

Adorno não havia percebido que a técnica dodecafônica era historicamente tão

necessária quanto um dia foi a tonalidade367 – declaração que reverberava claramente,

como vimos, os escritos de Boulez. Assim, o anacronismo das escolhas de Schoenberg,

que optou por não desenvolver as consequências do princípio de série, não deveria

retirar a legitimidade de tendências que, de fato, expandiam o campo possível da

composição. Segundo Metzger, compositores como Boulez, Stockhausen e Pousseur

impulsionavam a verdadeira dialética entre o progresso histórico do material e a

intenção composicional, assumindo subjetivamente suas contradições internas. Ao

contrário do que Adorno imaginava, tais compositores preocupavam-se em estabelecer

sim coerência subjetiva, mas para além do padrão antecedente-consequente e das

relações motívico-temáticas, nas quais Adorno parecia localizar exclusivamente a

construção de sentido: “ele não conhece o conceito de grupo de Stockhausen?”368,

questionava Metzger, que, com o exemplo de Stockhausen, afirmava a coerência

reclamada pelo ensaio adorniano.

366 No texto de 1962, Metzger testemunha uma espécie de falência do serialismo em todas as suas vertentes: desde Pli selon pli, de Boulez (exemplo de regressão da linguagem e do “perigo da falta de perigo”) a Il canto sospeso ou Intolleranza 1960 de Nono (“que processava musicalmente o grito de torturados em séries de doze notas para receber aplausos no próximo festival”), passando por Carré, de Stockhausen (“primeira manifestação de sua falência artística”). Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 293–4 367 METZGER, Das Altern der Philosophie der Neuen Musik. In: EIMERT, Herbert; STOCKHAUSEN, Karlheinz (Orgs.), Die Reihe #4 - Junge Komponisten, Wien: Universal Ed., 1958, p. 68 368 Ibid., p. 70

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

245

Quanto ao comentário de que os “discípulos de Boulez” substituíam a

composição pelo ordenamento objetivo-calculador, Metzger respondia simplesmente

que, mesmo na tonalidade, arranjos de intervalos, alturas, durações, envolviam certa

organização matemática. A objeção de Adorno simplesmente descartava, portanto, as

atividades que buscavam atingir, independente de uma sistemática decretada e de

ordenamentos mecânicos, “a unidade da forma”369. Ao não conseguir detectar

diferenças estruturais no uso da ideia de parâmetros entre obras como Mode de valeurs

et intensités, de Messiaen, e Structures 1a, de Boulez, compreendo-as como parte de um

único fenômeno, os argumentos de Adorno revelavam um “arsenal” crítico devedor dos

primeiros indícios de ruptura com a tonalidade. Essa visão “estacionária de cinquenta

anos atrás”370 o tornava incapaz de constatar a proliferação das novas poéticas seriais.

Nesse sentido, era sintomático o fato de Adorno não citar nenhuma obra contemporânea

em Das Altern, de não se empenhar em mostrar em constelações técnicas concretas o

fenômeno da stasis que pretendia criticar. Sua análise de sobrevôo baseada em

generalizações carecia precisamente de sua premissa mais cara: o contato com as obras,

a relação mediada dos objetos com a verdade da crítica. Adorno teria falhado “em

consultar fontes primárias e mesmo secundárias de qualquer tipo”371, preferindo emitir

juízos sem conhecimento do repertório posterior a Structures. Metzger ironizava a

acepção jornalística do termo “pontilhista” (Punktuelle) que Adorno ainda utilizava,

distinta da que Herbert Eimert havia definido na conferência de Darmstadt em 1953.

Segundo Eimert, a divergência das dimensões da melodia e da harmonia, das dimensões

horizontais e verticais que remontavam à atonalidade livre, encontraria sua superação

dialética na organização rítmica frequencial da música pontilhista, organização que por

sua vez serviu de ponto de partida para, por exemplo, a teoria do tempo de Stockhausen.

Nas palavras de Metzger, “devemos agradecer nosso conhecimento atual sobre o tempo

musical” a essa teoria372, na medida em que aprofundava a análise dos efeitos sobre o

“tempo vivido” (Erlebniszeit) gerados por um controle mais rigoroso da rítmica e da

determinação cronométrica das durações. Portanto, a acusação adorniana de que os

compositores de “música para papel” (Papiermusik) não mais distinguiam tempo vivido 369 Ibid., p. 71 370 Ibid., p. 72 371 Ibid., p. 67 372 Ibid., p. 73. Analisaremos no capítulo seguinte a teoria de Stockhausen.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

246

e medida do tempo reduzia, de maneira sumária e esquemática, toda a complexidade

perceptiva da teoria de Stockhausen. Dito de outro modo, a diversidade de organizações

temporais na música contemporânea mostrava caminhos que escapavam do que Adorno

acreditava ser possível. Zeitmaße, por exemplo, introduzia uma abordagem mais fluida

nas concepções de pulsação e de andamento, o que era perceptível apenas na música

solo, e inaugurava um regime de sobreposição de camadas rítmicas e temporais até

então inaudita na música de câmara373. Nesse sentido, termos como “estaticidade” e

“espacialização”, usados para descrever obras como Zeitmaße e Gruppen, ignoravam a

multiplicidade da experiência do tempo que mesmo uma redisposição física do som no

espaço realiza sobre a sensibilidade374.

Para Metzger, a caracterização pejorativa da música eletrônica serial como

“Webern em um órgão Wurlitzer” dava a entender que Adorno ou desconhecia a “força

explosiva” das sonoridades de Gesang der Jünglinge, de Stockhausen, ou seu ouvido

funcionava diferentemente dos demais375. Metzger rebatia também a acusação ingênua

de que os compositores do serialismo manifestavam “alergia à ideia de expressão”. As

questões do caráter de linguagem, tecnificação, cientificização e fetichismo sobre as

quais a filosofia de Adorno se apoiava dependiam de um conceito de expressão

associado a elementos “declamatórios, exclamativos ou interjetivos”, próprios da

tonalidade e que ainda prevaleciam em Anton Webern376. Ou seja, certa feição do

espressivo, evocando a tradição clássico-romântica da doutrina das formas, parecia

ainda definir para Adorno o elemento linguístico da música (das Musiksprachliche). Em

Stockhausen, no entanto, a formulação de uma nova expressividade se manifestava em

gestos que divergiam do tradicional espressivo, como, por exemplo, a súbita troca no

valor de intensidades das notas, os saltos entre campo das alturas, as modificações de

andamento e velocidade.

Por fim, Metzger considerava que Adorno havia formado seu injusto preconceito

sobre o serialismo a partir do episódio de 1951, tomando “Boulez por Goeyvaerts”. Se a

reprimenda à ideia da música como “voz do puro Ser” deveria, com razão, se dirigir aos 373 Ibid., p. 78 374 Ibid., p. 74 375 Ibid., p. 76 376 Ibid., p. 78–9

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

247

argumentos de Goeyvaerts, estes argumentos certamente não seriam representativos da

música do pós-guerra377. Tanto o preconceito de Adorno quanto a ressalva de Metzger

eram procedentes. De fato, a propensão para se atingir um “puro Ser” e a deliberada

busca da estaticidade sonora orientaram Goeyvaerts na escrita de sua Sonata para dois

pianos (1951), cuja estreia em Darmstadt (sendo Stockhausen um dos intérpretes e

defensores) havia sido duramente criticada por Adorno, como vimos no início da Parte

II da tese. Em carta a Jean Barraqué de 1951, Goeyvaerts expressava claramente o

desejo de construir uma música estática:

“Você sabe que quero chegar em uma música em que tudo – absolutamente tudo – esteja contido em uma ideia geradora. Altura, duração, intensidade, densidade, timbre, ataque, sujeitos a um denominador geral sintético com suas subdivisões... A coisa toda parece algo imóvel, estático, o que é, por assim dizer, a análise da estrutura do ´Ser´, sua adaptação ao tempo”378

Metzger insistia, no entanto, que boa parte das discussões em Darmstadt e em

Die Reihe afastavam-se do tom existencialista de Goeyvaerts, algo que as

generalizações de Adorno não alcançavam. Na realidade, para Mategzer, a prática

composicional movia-se em grande velocidade e por diferentes caminhos, e Adorno não

parecia estar interessado em acompanhá-los, deixando de lado oportunidades de ouvir a

música efetivamente produzida e preferindo, em vez disso, “reler as provas de

Dissonanzen”379. Por fim, Metzger lamentava os efeitos nocivos do ensaio adorniano de

1954, que acabava servindo a propósitos reacionários, dificultando certa legitimação

social das experiências seriais inclusive junto ao público especializado. Adorno não

teria calculado “os aplausos do lado errado” que viriam de uma análise tão corrosiva.

No quarto volume de Die Reihe, logo após o ensaio de Metzger, impresso com o

subtítulo Intermezzo I, um artigo apócrifo com o subtítulo Intermezzo II (dando a

impressão de que Metzger também o havia escrito) escancarava uma tabela com

citações de Das Altern na coluna da esquerda e, na coluna da direita, declarações

praticamente idênticas, de mesmo teor contra o serialismo, feitas pelo crítico

ultraconservador Hellmut Kotschenreuther, cuja defesa de “retorno à natureza”

377 Cf. ZAGORSKI, Nach dem Weltuntergang, p. 695 378 GOEYVAERTS (apud GRIFFITHS, Modern music and after, p. 38) 379 METZGER, Das Altern der Philosophie der Neuen Musik, p. 66

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

248

deplorava toda a obra de Schoenberg e saudava o ideário nazista do Blut und Boden380.

A comparação, que pretendia desqualificar de maneira irreverente o ensaio de Adorno,

dava a entender que sua presença em Darmstadt, afinal, não fazia muito sentido. Sem o

respaldo de Metzger, a comparação – cuja autoria se descobriu ter sido do próprio editor

de Die Reihe, Herbert Eimert – irritou profundamente Adorno, que pediu a Steinecke e a

Metzger a retratação pública do artigo381. Essa irritação transparecia na nota introdutória

de Dissonanzen, que citamos no início deste capítulo, e na qual Adorno sublinhava a

necessidade de corrigir o “abuso escandaloso” de suas reflexões dialéticas para fins

reacionários.

A resposta de Adorno a Metzger

Antes mesmo da publicação da crítica de Metzger contra Adorno no quarto

volume de Die Reihe, o filósofo havia expressado sua indignação com o tom do artigo,

sobretudo por ter amplificado diferenças que considerava apenas pontuais:

“Estou certo de que Boulez conhece Das Altern e creio que, assim como você, ele também tem uma avaliação positiva desse ensaio. Trata-se aqui realmente de diferenças pontuais. Por isso, lamento que uma polêmica entre nós tenha vindo a público e que você tenha permitido a aparição do seu ensaio sem que eu o soubesse. Seria no mínimo elegante me oferecer um espaço de resposta no mesmo volume.”382

Já na carta enviada dois meses depois, Adorno rebatia parte das acusações de

Metzger, que viriam motivar o debate entre ambos gravado em outubro de 1957 e

380 Cf. Intermezzo II – Adorno und Kotschenreuther in Die Reihe #4 - Junge Komponisten, Wien: Universal Ed., 1958, p. 81–85 381 Metzger mostrou-se preocupado em eliminar dúvidas sobre a autoria da tabela e reclamou da prática editorial de Eimert, cuja autoria teria sido „unfairness charakterisierte“, conforme sua carta de setembro de 1960. Também informa a Adorno que pediu a Alfred Schlee (editor da Universal Edition) a retificação da confusão com uma nota de esclarecimento (Cf. ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 29/9/1960) 382 Ibid., f. 08/02/1957

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

249

transmitido no ano seguinte pela mesma Westdeutscher Rundfunk383. Adorno aproveitou

a oportunidade para reafirmar seu desagrado:

“As obras de cujo desconhecimento você me acusa (de Boulez e Stockhausen) foram concluídas todas após a publicação de Das Altern. (...) Você sabe muito bem que eu não absolutizo categorias como antecedente e consequente. Mencionei essas categorias para dar uma representação concreta do que eu queria dizer com sentido musical. (...) Estou convencido da existência de sentido musical em Boulez, mesmo que eu não consiga analisar particularmente a obra; já em Stockhausen, tenho dificuldade maior, mas me deixo convencer. Totalmente desconhecido para mim é Cage, mas nunca no meu trabalho me preocupei em falar sobre ele e sobre seus empreendimentos (...) Por fim, devo dizer francamente que o tom da polêmica me incomodou e não me parece adequado à solidariedade intelectual que considero haver entre nós”384

Eximindo Le Marteau e Zeitmaße do escopo crítico do ensaio (como procurava

deixar claro na nota introdutória de Dissonanzen), Adorno reforçava também que o

trabalho teórico de Stockhausen (como o tempo passa) havia sido publicado três anos

mais tarde, tornando absurda a objeção de Metzger de que Adorno “desconhecia” o

trabalho. Mas o ponto central da correspondência bem como da discussão gravada de

1957 estava no conceito de sentido musical, motivado, no fundo, por um equívoco de

Adorno. De fato, em pelo menos dois momentos determinantes de Das Altern, Adorno

dava espaço para interpretações ambíguas quanto ao seu conceito de material:

“(...) a expansão do material musical atingiu seu extremo.”

(Das Altern, GS 14, 154)

“(...) a consequencia de que se atingiu a fronteira absoluta do espaço sonoro da música ocidental.”

(Das Altern, GS 14, 155)

Vale a pena explicitarmos a confusão, que está na sobreposição do conceito de

técnica ao conceito de material. Sem dúvida, o processo de racionalização parecia

383 A íntegra do diálogo entre Adorno e Metzger foi transcrita e publicada sob o título “Disput zwischen Theodor W. Adorno und Heinz-Klaus Metzger (1957)” na coletânea METZGER, Musik wozu: Literatur zu Noten, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980 384 ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 26/04/1957

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

250

atingir seu extremo com a composição por parâmetros e com a expansão da matéria

sonora, sobretudo a partir da incorporação de métodos da eletroacústica. Tais avanços

tecnológicos pertenciam às “forças produtivas da música” (GS 16, 498). Mas de modo

nenhum as forças produtivas da música poderiam conduzir o conceito de material ao

“extremo”; na verdade, a mera insinuação de “fim” do material (a ser atingido

eventualmente em algum momento da história) implica o uso inadequado do conceito.

Pois atribuir teleologicamente um momento “extremo” do material revogaria seu

movimento e suas configurações históricas particulares. O conceito de material

pressupõe não somente o conjunto de técnicas disponíveis ao compositor e de pesquisas

sobre a natureza dos sons (cujo paroxismo, sim, pode ser eventualmente atingido), mas

envolve sobretudo a posição histórica dessas técnicas e da formalização dessas

sonoridades, posição esta que não é apreensível pela neutralidade científica: o material

refere-se dialeticamente ao “como”, à mediação e ao confronto específico entre

compositor e sociedade, e não ao “o que” imediato e transcendental dos sons385. Em

analogia à fricção marxista entre as “forças produtivas” e as “relações de produção”,

podemos afirmar que a técnica e o material, em resumo, são conceitos distintos: a

objetividade tecnológica não coincide com a objetividade estética. Notemos, portanto,

como a própria filosofia de Adorno não admite a passagem acima do seu ensaio de

1954. Na hipótese de que teria sido atingida a “fronteira absoluta do espaço sonoro

histórico da música ocidental” e o “extremo do material musical”, Adorno acabou

utilizando de maneira equivocada o termo “material”. O deslize semântico trouxe

consequências que não passaram despercebidas por Metzger, para quem mesmo essa

fronteira fictícia, “como se fosse uma espécie de entropia de todas as possibilidades

materiais históricas produzidas”, certamente não existe386. Para sermos condizentes com

385 Ver seção anterior 3.3 Convergência, imbricação e rejeição de uma síntese sistemática . Para a especificidade do conceito de material e sua divergência, por exemplo, com a concepção de Max Weber (material como processo racional acumulativo, fundamentado no temperamento), remeto novamente ao livro de Jorge de Almeida. Para Almeida, a sedimentação histórica das formas dá sentido não apenas ao material, com suas práticas conflitantes que se apreendem na configuração das obras e no contexto da produção, mas também dá sentido à própria ideia de sentido musical. Daí a ausência de definição estável de material: ela se torna o centro da dialética entre artista, obra e sociedade (Cf. “Conclusão – A dialética do material” in ALMEIDA, Crítica dialética em Theodor Adorno). 386 Cf. METZGER, Das Altern der Philosophie der Neuen Musik, p. 77. E logo antes: “Ein Ende dieser Expansion scheint vorerst noch nicht abzusehen, jedenfalls nicht, solange überhaupt die technologische Entwicklung als solche anhält.” (Ibid., p. 76). Borio e Danuser também comentam esse equívoco de Adorno em BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, p. 438.

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

251

o conceito, é necessário reconhecer que embora as pesquisas de Boulez, Stockhausen e

Pousseur estivessem conduzindo a expansão da matéria sonora disponível, elas não

asseguravam, por si só, o progresso do conceito de material. Para sermos justos com

Adorno, devemos reconhecer que Metzger erroneamente viu nesse deslize conceitual

um abandono por parte do filósofo de suas premissas apresentadas em FNM.

Na discussão radiofônica de outubro de 1957 entre Adorno e Metzger, Adorno

procurou, de início, esclarecer a confusão sobre o conceito de material, reafirmando a

dimensão histórica de elementos pertencentes à constituição da linguagem musical, a

despeito das questões ligadas à tecnologia387. Reforçando a centralidade da análise

imanente das obras, Adorno declarava que não teve acesso, quando da escrita de Das

Altern, às partituras da “escola serial e eletrônica”, mas que se colocava contra toda e

qualquer instância positivista na música. Adorno citou uma declaração de Hermann

Scherchen de que a música havia entrado em estágio científico, que ela mesmo havia se

tornado científica. Por isso, “por razões simplesmente filosóficas”, considerava

inaceitável a tese da imediatidade da objetividade artística, que neutralizava a ação do

sujeito composicional388. Esta tese orientaria, por exemplo, obras de Goeyvaerts e

mesmo a peça orquestral Allelujah, de Luciano Berio. Em resposta, Metzger concordava

com a observação de que tais obras aderiam a procedimentos quase mecânicos, mas não

com a generalização de Scherchen aos casos de Boulez e Stockhausen. Metzger pediu

em seguida para que Adorno explicasse o conceito de “elemento linguístico-musical”

(der Begriff des Musikprachlichen) ao qual constantemente se reportava. Fazendo a

ressalva de que não havia explicações exatas e unívocas para tais conceitos, Adorno

esclarecia que o sentido musical e o elemento linguístico não se localizam na dedução

abstrata de estruturas nem na exposição minuciosa das técnicas e procedimentos

utilizados, mas na articulação refletida de cada elemento particular, com toda sua

complexidade técnica que subjaz à totalidade da obra, ou seja, na inteligibilidade da

aparência sensorial criada pela técnica; aquilo que na fase dodecafônica de Schoenberg,

prossegue Adorno, eram sancionados como “critérios qualitativos”: fraseamento,

Formbildung, articulação. Como contra-exemplo desse elemento linguístico, falou de

387 METZGER; ADORNO, Disput zwischen Theodor W. Adorno und Heinz-Klaus Metzger, p. 91 388 Ibid., p. 96

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

252

uma situação “imaginária” em que um compositor iniciante seria questionado sobre suas

escolhas na partitura:

“(...) pergunta-se ao iniciante: ‘o que quer dizer esta frase? Por que ela está aí? No que ela contribui para a construção do todo?’ Se ele responder ‘bem, isso é exatamente o retrógrado da inversão da frase que havia aparecido três páginas antes’, essa resposta não será satisfatória, a não ser que fique evidente seu “para quê”, ou seja, de que maneira essa frase, nesse lugar determinado, nesse contexto específico, está realmente contribuindo para a coesão final da obra (Zusammenschluß des Gebildes) (...) algo que vai muito além de uma dedução abstrata”389

O contra-exemplo nada imaginário (pois evocava mais uma vez o incidente com

Stockhausen e Goeyvaerts em 1951) alinha-se ao conteúdo de Das Altern e de textos

anteriores, como o pequeno artigo de 1952 no qual se suspeitava daqueles “que se

dizem de vanguarda, simplesmente porque confiam cegamente em séries e retrógrados,

perdendo as conquistas de Schoenberg e a capacidade de discernir entre o que possui

sentido e o que não possui” (Entwicklung und Formen der neuen Musik, GS 18, 122). O

sentido musical não estava na absoluta “correção” das técnicas empregadas, mas na

intenção que a domina e a tensiona em contextos particulares com finalidades de

expressão. Metzger também concordava que, para a construção de sentido, mais

importava a posição funcional das estruturas na obra, do que procedimentos utilizados.

Apenas frisava, ao fim do diálogo, que era exatamente essa a preocupação de Boulez e

Stockhausen.

Apesar da importância desse debate para a reavaliação sobre a vanguarda no

final dos anos 1950 (o que se refletiu no tom mais ameno de Vers une musique

informelle), Adorno não parecia convencido com a observação de Metzger de que os

compositores não abdicavam da questão de sentido. Em 1960, quando o serialismo já

dava sinais de declínio, Adorno ainda censurava, à maneira do ensaio de 1954, a prática

de certos compositores seduzidos pelo “fantasma da segurança da série” e os riscos do

“fetichismo, uma espécie de crença de segunda ordem na matéria bruta, da substituição

dos meios pelos fins” (Zum Stand des Komponierens in Deutschland, GS 18, 135-6) –

um fantasma que, a bem dizer, já estava completamente extinto a essa altura. Nesse 389 Ibid., p. 103

Parte II – 5. “Envelhecimento da nova música”

253

mesmo texto, Adorno utiliza pela primeira vez o termo musique informelle, termo então

caracterizado como o “reino almejado da liberdade” (ersehnte Reich der Freiheit) em

contraposição ao total determinismo e ao tabu que proibia a necessidade subjetiva de

expressão (GS 18, 138).

Analisaremos o ensaio de 1961, Vers une musique informelle, que não apenas

marca o retorno de Adorno a Darmstadt (sob os esforços de Metzger e Stockhausen),

como também ficou conhecido, nas palavras de Wiggershaus, como sua “obra de teoria

da música mais importante depois de Philosophie der neuen Musik”390. Antes, porém,

procuraremos detalhar no próximo capítulo as premissas e os desdobramentos teóricos

de “...como o tempo passa...”, o ensaio de Stockhausen que Adorno tomou como o

principal estudo sobre o tema no pós-guerra, e expor as reações ambivalentes do

filósofo diante da nova morfologia.

390 WIGGERSHAUS, A Escola de Frankfurt, p. 554

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

254

6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

6.1 “como o tempo passa”

No contexto de Vers une musique informelle, o alvo privilegiado da crítica à

espacialização do tempo é certamente o ensaio “...como o tempo passa...” (…wie die

Zeit vergeht…), que Stockhausen redigiu no final de 1955, publicando no terceiro

volume de Die Reihe (1957), como preâmbulo para suas composições Zeitmaße,

Gruppen für drei Orchester e Klavierstück 11. Tendo em vista que o ensaio de

Stockhausen seria, para Adorno, o mais importante trabalho sobre as relações da música

contemporânea com a dimensão temporal391, convém apronfundarmos seus

pressupostos técnicos e suas implicações teóricas principais.

De início, Stockhausen propõe a unificação dos campos perceptivos das alturas e

das durações, mediante a noção de fase-duração (Phasendauer), a partir da qual se

regulam intervalos entre impulsos sonoros quaisquer392. A definição de fase-duração

permite a Stockhausen segmentar as esferas da macro-acústica e da micro-acústica em

termos da “distância” cronométrica entre os impulsos. Constitui-se então uma única

estrutura temporal, o continuum que ligaria os campos perceptivos “tradicionais”. O que

se chama convencionalmente de “duração” equivaleria a uma fase-duração qualquer que

esteja entre 8’’ (ou a frequência de 1 impulso a cada 8 segundos, 0,125 Hz ) e 1/16’’ (ou

a frequência de 16 impulsos por segundo, 16 Hz). Uma vibração periódica de 2 Hz será

ouvida, portanto, como uma duração de ritmo regular. Esse intervalo de 8’’ a 1/16’’ –

equivalente ao campo das durações ou à área temporal da métrica e do ritmo (entendido 391 Vers une musique informelle, GS 16, 495: “Kein Zufall, daß Stockhausen in der theoretischen Arbeit ‘Wie die Zeit vergeht’, wohl der wichtigsten über diesen Komplex,…”. Adorno deve essa declaração sobre a importância do ensaio de Stockhausen à recomendação explícita de Metzger. Em carta de julho de 1961, havia solicitado sugestões de peças e de ensaios teóricos para preparar as conferências de Vers une musique. Em resposta, Metzger afirmou que o ensaio de Stockhausen era nada menos do que o “documento central da teoria serial”: “Als das zentrale Dokument der seriellen Theorie ist Stockhausens Abhandlung ‘Wie die Zeit vergeht’” (ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 13/07/1961) 392 “Impulsos”, no escopo do ensaio, correspondem simplesmente a alterações sucessivas de tipo silêncio-som-silêncio ou som-som, não importando a natureza do som (nota ou ruído). Cf. STOCKHAUSEN, ... how time passes ... In: Die Reihe #3 (eng. edition), 1959, p. 10

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

255

como ordenamento regular das durações) – é deduzido da observação das invariantes

antropomórficas na percepção sensorial-acústica. De fato, em fases que ultrapassam o

limite de 8’’, Stockhausen constata que a percepção humana não dispõe mais da

capacidade de comparar valores de duração, de distinguir suas proporções. No outro

extremo dessa área temporal, na fase de 1/16’’ (= 16 Hz), atinge-se uma zona perceptiva

ambígua, na qual não se pode mais detectar adequadamente a sequência de impulsos

como “duração” ou ritmo. Com uma frequência de impulsos superior a 16 Hz,

atravessa-se o limiar psicoacústico a partir do qual tais impulsos passam a ser

percebidos como uma “altura” contínua, não mais como “duração”. Assim, uma

sequência de impulsos regulares de fase-duração 1/32’’ (32 Hz) estabelece o que

denominamos “uma nota grave” – na realidade, uma frequência muito próxima da nota

si mais grave do piano (ver Figura 15 abaixo). Aumentando-se progressivamente a

frequência393 (ou diminuindo-se a fase entre impulsos regulares), percorre-se então todo

o campo das alturas – passando, por exemplo, pelo lá central de 1/440’’ (440 Hz), que

serve de base para o temperamento e para a afinação do piano – até se chegar a 1/6000’’

(6000 Hz), a nota mais aguda perceptível pelo ouvido; impulsos gerados em frequência

superior a 16000 Hz, segundo Stockhausen, não são mais “escutados”.

Desse modo, o espectro frequencial que vai de 8’’ a 1/6000’’ cobriria a

totalidade dos campos perceptivos tradicionais das durações (fases entre 8’’ a 1/16’’) e

das alturas (fases entre 1/16’’ a 1/6000’’). A diferença entre a figura rítmica de colcheia

[ & ] (de 2 Hz, considerando $ = 60 no metrônomo, por exemplo) e a nota dó central (de

~524 Hz), por exemplo, pode ser reduzida à simples diferença frequencial, à diferença

de regulação periódica dos intervalos entre impulsos. A ideia fundamental, portanto, é a

de que não haveria diferenças de natureza entre duração e altura de um som, apenas

diferenças de comprimento de suas fases constitutivas.

Para Stockhausen, tal constatação, tornada possível pelos avanços da eletrônica,

consolidaria as “bases de uma nova morfologia do tempo musical”394, no qual os

campos das durações e das alturas se integram em um espectro contínuo de fase-

durações. Essa morfologia, sobre a qual se baseia a poética de Zeitmaße e Gruppen,

393 Experimento que pode ser realizado com um gerador eletrônico de impulsos sonoros 394 STOCKHAUSEN, ... how time passes ..., p. 11

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

256

permite criar paralelos entre os parâmentros sonoros tradicionais, de modo que assim

como definimos “escalas de alturas”, podemos igualmente definir “escalas de

durações”; a relação intervalar da oitava no campo das alturas (relação de 1:2, como a

de dó3 a dó4, por exemplo) pode ser observada também na relação 1:2 entre durações

(uma “oitava temporal” existe, por exemplo, entre & a ' ou entre $ e & ). Utilizando a

notação tradicional, poderíamos tomar uma sequência rítmica de base qualquer, como

[ & $ $. ], e transpô-la uma “oitava-temporal” acima, resultando em [ ' & &. ], ou uma

“oitava-temporal” abaixo, [ $ ( (. ]. Ao conceber uma “escala cromática de 12 durações”,

Stockhausen propõe a dispersão logarítmica de doze valores de duração no intervalo de

uma oitava temporal, em referência às mesmas subdivisões cromáticas no campo das

alturas – desde a proporção intervalar 1:2, como oitava, até a menor proporção dada

pela relação de fase 2!" , como um “semitom” duracional. A partir de uma fase

fundamental qualquer (em alusão à nota ou som fundamental no campo das alturas395), é

deduzida a “série harmônica superior das durações” para a criação de uma escala

cromática de durações. Assim, se a fase fundamental escolhida for a semibreve de valor

100’’ no metrônomo [ " = 100 ], então o primeiro “harmônico” superior será a oitava

temporal superior [ ( = 200 ], o segundo harmônico a quinta temporal subsequente

[ !)" = 200 ], e assim por diante até que seja atingido o 12º valor rítmico para a formação

da escala cromática duracional. Mediante essa análise do campo da macro-acústica (ou

campo das durações), definido pelas fase-durações entre 8’’ e 1/16’’ (0,125 Hz a 16

Hz), Stockhausen demonstra a existência de aproximadamente sete “oitavas temporais”,

quais sejam:

Figura 14 – espectro frequencial, de 0,125 Hz a 16 Hz, as sete “oitavas temporais” do campo das durações

395 Ver teoria tradicional sobre a “série harmônica” que acompanha qualquer som fundamental no campo das alturas (por exemplo, MED, Teoria da música, Brasília: MusiMed, 1996, p. 93)

8’’– 4’’ – 2’’– 1’’– 1/2’’ – 1/8’’– 1/4’’– 1/16’’

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

257

Figura 15

espectro frequencial, de ~27 Hz (lá0) a ~4200 Hz (dó8), aprox. sete oitavas do campo das alturas no piano

Considerando a extensão das sete oitavas já conhecidas do campo das alturas (no

piano, essa extensão seria de ~27 Hz, na nota mais grave, a ~4200 Hz, na mais aguda,

conforme Figura 15 acima). Somada à extensão das sete “oitavas temporais” (Figura 14

acima), Stockhausen chega à seguinte conclusão:

a totalidade do “tempo musical estaria circunscrita a 14 oitavas-temporais, no qual o compositor regula as proporções das relações de fase tanto na esfera da duração quanto na esfera da altura”396

Com isso, Stockhausen fornece um modelo de racionalização integral do tempo

musical, incluindo a unidade de tempo no compasso, o tempo metronômico do

andamento, além de parâmetros como timbre, intensidade e até mesmo, como veremos a

seguir, a noção de forma. Trata-se de uma estratégia, sem precedentes na história da

música, de redução de todos os componentes do som a um elemento comum, a

frequência de vibrações sonoras. Tal estratégia é o desdobramento da declaração que

abre o ensaio: “a música consiste em relações de ordem no tempo”397; apesar do caráter

aparentemente trivial do enunciado, uma alta complexidade teórica revela-se na

circunscrição do conceito de tempo a propriedades fundamentalmente acústicas.

Segundo Maconie, Stockhausen teria duas motivações para a integração da

altura e da duração – uma estética e outra racional398. Por um lado, tratava-se de

396 STOCKHAUSEN, ... how time passes ..., p. 21 397 Ibid., p. 10 398 MACONIE, Other planets: the music of Karlheinz Stockhausen, Lanham: Scarecrow Press, 2005, p. 145

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

258

resolver questões da prática composicional no âmbito da música eletrônica, em especial,

de conciliar as exigências do pensamento serial com as ideias colocadas em circulação

por Werner Meyer-Eppler, com quem Stockhausen estudou e trabalhou no início dos

anos 1950 e que defendia a existência de um conjunto único e sistemático de proporções

dos parâmetros sonoros399. Por outro lado, altura e duração deveriam estar

racionalmente vinculados, pois Stockhausen já havia experimentado em estúdio os

efeitos de aceleração e desaceleração de fluxos de impulsos que a teoria de Meyer-

Eppler sugeria. O desenvolvimento dessa nova abordagem distanciava-se, portanto, do

método “pontilhista” que caracterizava as primeiras experiências do serialismo integral,

cujo pressuposto exigia a independência dos parâmetros e a autonomia de suas séries –

pressuposto do qual o serialismo de Boulez em Strucutres, e mesmo a peça orquestral

de Stockhausen de 1952, Punkte, seriam tributários. Na técnica originária do

“pontilhismo”, como vimos, cada nota individual deveria possuir relevância no contexto

discursivo da peça independente das demais notas. Esse tratamento matematizante

dissolve de antemão o estabelecimento de hierarquias, sejam elas de ordem harmônica,

rítmica ou de textura. Já com a unificação proposta por Stockhausen, sublinhava-se, ao

contrário, a interdependência dos parâmetros e, por extensão, das notas que lhe serviam

de suporte. Os parâmetros, afinal, seriam componentes parciais de uma única estrutura

essencial: a fase-duração ou, simplesmente, o tempo musical. Tal estrutura,

comprovada pela acústica e pelos experimentos com a eletrônica, exige o

reconhecimento, por sua vez, uma hierarquia complexa dada pela fase fundamental a ser

escolhida no ato de composição; o conjunto das notas deveria, então, expressar

igualmente as relações hierárquicas dess interdependência. Quanto à assimilação dessa

nova morfologia no trabalho de composição, Stockhausen sugere que esta seria

concedida ao compositor cuja percepção adere, de início, a um “tempo multi-

dimensional”:

“Se um compositor experimenta o tempo musical como tempo multi-dimensional, sua composição também será multi-dimensional; para ele, proporções sentidas ou medidas, tempo quantificado e campo temporal,

399 Como vimos, Werner Meyer-Eppler foi um dos primeiros teóricos a difundir a ideia de “pensamento por parâmetros” do som – duração, altura, intensidade (ataque ou dinâmica), timbre. Cf. também IDDON, New music at Darmstadt, p. 66; MENEZES, A teoria da unidade do tempo musical de Karlheinz Stockhausen. In: Música maximalista, São Paulo: Ed. Unesp, 2006, p. 260

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

259

determinação sistemática e aleatória, representam extremos entre os quais haverá lugar para inúmeros estágios intermediários (…) Como poderia existir, afinal, uma representação musical de tempo, se ela não resultasse do próprio ato de composição?”400

Em Zeitmaße e Gruppen, Stockhausen comprovaria as possibilidades de

“representação musical” de um “tempo multi-dimensional”.

Gruppen e o conceito acústico de formantes

Para Stockhausen, a estrutura musical de uma obra qualquer pode ser reduzida à

configuração de relações entre complexos de pulsações sonoras, em última anàlise, à

configuração da rítmica e de suas “parciais”, o que evoca a noção de formantes, termo

também proveniente da acústica. É importante ressaltar que o sentido científico de

formantes adotado por Stockhausen diverge profundamente daquele que Boulez atribui

em sua conotação estruturalista (ver capítulo acima sobre Boulez, em particular a

análise da 3a Sonata para piano). A noção de formantes desempenharia papel central na

poética de Stockhausen na segunda metade da década de 1950, ganhando força

sobretudo em Gruppen für drei Orchester (1955-57). Os formantes correspondem às

subdivisões rítmicas de uma fase fundamental comum401, que, conforme descrevemos

acima, são análogos aos “harmônicos” parciais de uma nota fundamental no campo das

alturas; trata-se dos “harmônicos das durações”. Desse modo, se tomarmos a mesma

fase fundamental do exemplo acima, uma semibreve [ " ], o primeiro formante será a

própria fase fundamental [ " ], o segundo formante (ou subdivisão rítmica) será a fase

fundamental dividida por dois [ ! ! ], o terceiro formante será a fase dividida por três

[ ! 3! ! ], o quarto formante será [ $ $ $ $ ], e assim sucessivamente até o 12º formante, que

completa o “espectro de formantes” dessa fase fundamental.

De acordo com Maconie, a obra Zeitmaße (1955-56), para cinco instrumentos de

sopro, seria antes “um esboço, uma colagem de diferentes camadas rítmicas”, um estudo

400 STOCKHAUSEN, ... how time passes ..., p. 38 401 Cf. Ibid., p. 17

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

260

que explora a descoberta dos formantes e da flexibilidade rítmica dos andamentos, sem

pretensão à coerência de uma organização geral402, o que viria a ocorrer apenas com

Gruppen. Na segmentação temporal de Zeitmaße, o conteúdo efetivo dos eventos

encontra-se completamente dissociado. Em Gruppen, no entanto, introduz-se “uma

nova grandeza de escala à musica serial”, cuja integridade a coloca como “a música

mais ambiciosa de Stockhausen produzida até então (…), consequência de sua premissa

maior, qual seja, a unificação das estruturas da altura, ritmo e cor sonora”403. Escrita

para três conjuntos orquestrais dispostos em torno do público, cada qual com seu

próprio regente, a peça consiste na justaposição de 174 “grupos rítmicos”, que duram

em média poucos segundos e são distribuídos entre as orquestras, sendo executados

sucessivamente entre elas (com ocasionais passagens de execução simultânea em duas

ou mesmo nas três orquestras)404. Um “grupo” – conceito que Stockhausen havia

desenvolvido em Kontra-Punkte (1952-3) para solucionar as aporias do “pontilhismo”

de Punkte (1952) – consiste em uma coleção de notas tomada como identidade, devendo

ser percebido como um instante alargado. Em Gruppen, não há pulsação básica. Cada

grupo rítmico possui uma duração fundamental determinada, base para seus respectivos

formantes, e um andamento específico, já que até mesmo o andamento segue o princípio

da série. De fato, os tempi (ou indicações metronômicas) dos grupos são determinados

por uma “escala de 12 andamentos” – uma escala logarítmica de fator 12! ! cuja razão

expusemos acima. A escala é deduzida a partir da “oitava-temporal” entre 60 e 120

bpm405 com unidades de compasso transitórias. Posteriormente, é submetida à série de

base da obra. Os valores metronômicos aproximados da escala de andamentos em

Gruppen são:

402 Em Zeitmaße, Stockhausen estabelece cinco “regiões temporais”, sendo uma rigidamente definida pelo metrônomo e as quatro demais definidas pelo contexto e pela capacidade de interpretação dos músicos, recebendo apenas indicações genéricas: (1) tempi entre 60-120 bpm; (2) “tão rápido quanto possível”; (3) um ritardando subjetivo, indo de “muito rápido” a “aproximadamente um quarto” do muito rápido; (4) um accelerando subjetivo; (5) “tão lento quanto possível” (MACONIE, Other planets: the music of Karlheinz Stockhausen, p. 147) 403 Ibid., p. 148. A cor sonora é serializada mediante o ajuste das “parciais”, dos formantes de uma mesma fase. Ver discussão abaixo. 404 Em como o tempo passa, o compositor anuncia o procedimento que serviria de modelo para Gruppen: “(…) três orquestras, que tocariam independentemente uma da outra, às vezes em diferentes tempi, orientando-se umas pelas outras apenas por pontes de entrada” (STOCKHAUSEN, ... how time passes ..., p. 25) 405 O segundo grau dessa “escala de andamentos”, por exemplo, é dado pela expressão 60#×# 212 ≈"63,5"

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

261

Figura 16 – “escala de 12 andamentos” (em bpm), utilizada em Gruppen

Figura 17 - série de base de Gruppen para todos seus atributos (não apenas alturas),

incluindo a escala de 12 andamentos apresentada na figura acima

Ou seja, não apenas os parâmetros, mas até mesmo as prescrições de andamento na

peça são submetidos à técnica serial, a partir de uma única série que define as fases

fundamentais e projeta as relações de interdependência dos atributos. Este seria o traço

constitutivo mais relevante da peça (e não tanto o caráter espetaculoso da disposição de

três conjuntos orquestrais): trata-se da aplicação mais sistemática da nova morfologia,

em que se atribuem fases fundamentais aos grupos, com seus formantes rítmicos e

andamentos específicos. É desse modo que os grupos rigorosamente determinados

expõem tanto o vínculo entre a macro e a micro-acústica, sob o denominador comum da

frequência de vibrações, quanto uma complexa “polifonia” de uma escala de tempi, uma

superposição de andamentos serializados: “cada grupo na obra é composto como a

imagem de uma altura particular em uma oitava particular com um timbre particular

(…) toda a estrutura rítmica é a vasta amplificação de uma linha melódica serial”406. A

totalidade da obra – ou seja, a justaposição de todas suas fase-grupos, na terminologia

do compositor – constitui, por sua vez, uma espécie de matriz temporal supra-ordenada,

de modo que os grupos seriam então as manifestações hierárquicas do espectro de uma

fase fundamental mais ampla, dessa matriz temporal407. Gruppen representa, assim, “um

exemplo de peça em que tudo foi minuciosamente pensado, não dando margens para o 406 GRIFFITHS, Modern music and after, p. 100 407 Isso permite Stockhausen definir a peça inteira, que dura mais ou menos 23 minutos, como um simples timbre, cujos formantes, dados por essa matriz temporal supra-ordenada, se distendem no âmbito da macro-estrutura (campo das durações)

60 – 63,5 – 67 – 71 – 75,5 – 80 – 85 – 90 – 95 – 101 – 107 – 113,5 –120

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

262

aleatório, um demiurgo que vai assombrar a imaginação de Stockhausen”408. A

composição rejeitaria, nesse sentido, a via de algumas soluções de Zeitmaße e

Klavierstück 11, obras que, apesar de terem sido escritas no mesmo período e à luz da

mesma teoria, são mais permeáveis à incorporação de fatores de incerteza interpretativa

(ver nota 402 acima). Portanto, podemos dizer que Gruppen define o arquétipo da “nova

morfologia” do tempo musical. A força de sua austeridade composicional levou o

musicólogo Celestin Deliège a afirmar que, embora também esteja igualmente presente

na elaboração de várias obras de Stockhausen, a teoria enunciada em “ ‘wie die Zeit

vergeht’ é, no fim, a teoria de uma única obra – Gruppen”409.

6.2 “A unidade do tempo musical”

Se, em “como o tempo passa”, a descoberta da correlação entre alturas e

durações germinou a ideia de uma racionalização convergente do tempo musical, no

ensaio posterior, A unidade do tempo musical (1961), Stockhausen expande a “nova

morfologia”, atribuindo o mesmo princípio de organização frequencial a todos os

parâmetros sonoros. Não sem uma considerável extravagância especulativa, até mesmo

a categoria de forma musical, historica e conceitualmente instável, é aqui sintetizada em

termos frequenciais. O compromisso teórico com a unicidade da estrutura musical

proveniente do ensaio anterior é claramente reafirmado: “é possível reconduzir todas as

propriedades sonoras perceptíveis a um único âmbito organizador – o das sucessões de

impulsos organizados no tempo”410. Haveria, na reafirmação desse compromisso, a

crítica implícita a algumas vertentes do serialismo, como a abordagem estruturalista de

Boulez, que, como vimos, preestabelecia a divisão independente dos parâmetros para

formação de séries. Stockhausen procura ressaltar novamente, no artigo de 1961, a

correlação da “composição colorística, da composição harmônica e melódica e da

composição métrica e rítmica”, em outras palavras, o nexo estrutural interno entre

408 DELIÈGE, Cinquante ans de modernité musicale: de Darmstadt à l’IRCAM!: contribution historiographique à une musicologie critique, Sprimont: Editions Mardaga, 2003, p. 232 409 Ibid. 410 STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical. In: Música eletroacústica: história e estéticas, São Paulo: Edusp, 1996, p. 142

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

263

timbre (cor sonora), altura e duração. Os critérios de base temporal-frequencial passam

agora a descrever também o parâmetro da intensidade e dos ataques, em termos de

aumento ou redução da amplitude, de “envelope dinâmico” da sucessão de impulsos.

Aquilo que classificamos como “ruído” indica, por sua vez, ausência de estabilidade,

irregularidade na sucessão dos impulsos, sem uma altura definida.

Já o timbre (ou cor sonora) reduz-se a um conjunto de divisões parciais, sub-

períodos no interior da sucessão de impulsos corerspondente a uma altura constante e

reconhecível; isso valeria tanto para o timbre “puro” e “regular”, gerado

eletronicamente, quanto para o timbre de um instrumento tradicional, compreendido

como a resultante de divisões irregulares ou irracionais dos formantes em uma

frequência estável no campo das alturas. Notemos como, desse modo, a própria

dimensão sensorial e qualitativa do som, a princípio refratária à racionalização, se

decompõe em micro-estruturas frequenciais, em “ritmos aperiódicos sem métrica

reconhecível”411. É interessante observar que, na conferência Música e nova música

(1960), Adorno ainda chamava a atenção para o fato de que o timbre escapava da ideia

do continuum temporal – em explícita referência a “como o tempo passa” – mas

reconhecia igualmente a irreversibilidade da tendência empreendida por Stockhausen:

“(Hoje) o compositor tem à sua disposição – pelo menos em tese – um continuum de alturas, dinâmicas e durações, mas, até agora, ainda não de timbres. (…) Essa ausência, a eletrônica promete superar. A integração de todas as dimensões da música em um único continuum é um dos aspectos centrais da nova música. Stockhausen definiu claramente isso como programa”

(Música e nova música, GS 16, 491-2)

Com efeito, em A unidade do tempo musical de 1961, Stockhausen procura

“superar essa ausência” e consumar justamente o programa que Adorno sugere em

1960. Aqui se fecharia o círculo teórico que define qualquer fenômeno musical como

um conjunto de organizações de impulsos: uma teoria na qual todas as dimensões e

todos os elementos sonoros se correlacionam. Segundo Flo Menezes, o texto de 1961 de

Stockhausen retrata “o apogeu da grande revolução operada pela música eletroacústica 411 Ibid., p. 144 O compositor justifica o paralelismo entre timbre e ritmo: “o timbre está para o som fundamental assim como o ritmo para a métrica” (Ibid., p. 148)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

264

com relação à confrontação do compositor com o tempo musical, ao mesmo tempo em

que representa o esgotamento do pensamento estrutural de origem serial”412.

Kontakte e a integração da forma

A ambição surpreendente da integração de todos os elementos por oitavas-

temporais chega a atingir até mesmo o plano da forma musical. No contexto do artigo,

define-se a forma como a totalidade de “relações temporais de complexos mais longos”,

ou ainda, de “durações na ordem de grandeza que vai de alguns segundos a cerca de 15-

30 minutos (considerando a duração média de ‘movimentos’ ou de obras inteiras)”413.

Convém sublinhar que Stockhausen não se refere apenas às formas de composições

eletrônicas em geral ou de obras da nova música, mas a toda e qualquer manifestação

musical jamais realizada414. Sua teoria pretende dar conta do “âmbito temporal musical

total” e, para tanto, incorpora essas durações da “forma musical” (de 8’’ a ~34’)

àquelas 14 oitavas-temporais (ver Figura 14 e Figura 15 acima) que, de acordo com o

artigo anterior, já circunscreviam a noção de tempo musical. São deduzidas então 8

“oitavas-temporais” a mais, concernentes ao âmbito da “forma musical”, que se

encontram na região temporal entre 8 segundos a ~34 minutos (= 2048 segundos),

conforme a figura abaixo415:

Figura 18 – espectro das 8 “oitavas temporais” no âmbito da “forma musical”

412 MENEZES, A teoria da unidade do tempo musical de Karlheinz Stockhausen, p. 259 413 STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical, p. 144 414 É digno de nota, nesse sentido, que o compositor conceba a duração de óperas e oratórios longos, superiores a 30 minutos, como “formas compostas”. Cf. Ibid., p. 145 415 Ibid. Na realidade, Stockhausen indica “15-30 minutos”, hesitando em incluir a ‘fase’ de 2048’’ (aprox. 34 minutos) como duração pertencente ao âmbito da ‘forma musical’. Com o objetivo de evitar dificuldades suplementares que a teoria já suscita, optamos por incluir a última ‘fase’ como a última “oitava-temporal”, o que não afeta de modo algum o argumento do compositor.

8’’– 16’’ – 32’’– 64’’– 128’’– 256’’ – 512’’– 1024’’– 2048’’

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

265

Vale lembrar que a concepção estritamente cronométrica de “forma”, desligada

do conteúdo qualitativo dos eventos e de toda história, não foi abandonada por

Stockhausen mesmo em 1971416. No texto de 1961, chega-se à conclusão de que uma

obra musical seria um fenômeno de organização de impulsos sonoros, ocorrendo na

região frequencial entre 1/4200 de segundo (correspondente ao som mais agudo

perceptível pelo ouvido) a aproximadamente 34 minutos (a “duração média” de um

“movimento”), ou seja, no interior de 22 oitavas temporais. Por sua vez, categorias da

percepção tradicional como timbre, harmonia, melodia, métrica, rítmica, dinâmica,

forma, seriam apenas campos parciais de um tempo unitário417. Assim, todas as

propriedades subordinam-se à categoria de um continuum baseado em formantes,

simplesmente denominado de “tempo musical”, radicalizando as consequências do

ensaio anterior, “como o tempo passa”. Segundo a expressão de Flo Menezes, “o som,

que era do tempo, dá lugar ao tempo do próprio som”418. O mesmo vale para a

composição em geral: construção e sonoridade, antes separadas, agora se unem, tornam-

se idênticas na construção do som. Stockhausen promove a unidade entre som e

estrutura.

Kontakte (1959-60) traduziria esteticamente alguns modelos possíveis de

transições entre os campos perceptivos no interior do continuum, de modo que variações

originais de altura, uma vez aceleradas, são ouvidas como variações de timbre, ou

inversamente, “a percepção de ‘timbre’ se transforma na percepção de ‘melodia’”419.

Sem dúvida, Gruppen já explorava as possibilidades compositivas fornecidas pelo

preceito da unificação dos parâmetros, mas, em Kontakte, a nova morfologia se

expandia graças ao uso da eletrônica e da criação direta do som. A composição

caracteriza-se por uma técnica mista (de interação entre sons produzidos ao vivo por

intérpretes, basicamente de percussão, e um fluxo de sonoridades gravadas em fita

416 Ver a palestra Quatro critérios da música eletrônica (1971): “O que é forma em música? Bem, normalmente dizemos uma estrutura musical de entre um ou dois minutos de uma peça de música de entretenimento, e uma hora e meia de uma sinfonia de Mahler, que é mais ou menos a mais longa que encontramos na música da tradição ocidental. (...) Assim de acordo com a perspectiva fixa de nossa tradição, a forma varia entre dimensões de cerca de um minuto e 90 minutos”. (STOCKHAUSEN; MACONIE, Stockhausen sobre a Música, p. 82) 417 STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical, p. 144 418 MENEZES, Música maximalista, p. 351 419 STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical, p. 146

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

266

magnética420), promovendo contatos não apenas entre timbres instrumentais conhecidos

e timbres sintéticos inclassificáveis, mas também entre os parâmetros, entre formas e

velocidades de impulsos em diferentes camadas. De fato, a maior parte dos eventos

sonoros na obra foi extraída de transformações das estruturas de impulsos. Os

procedimentos de construção e desconstrução timbrística tornavam-se viáveis por meio

de recortes e colagens de fitas magnéticas contendo impulsos gravados, posteriormente

submetidas a acelerações e desacelerações, de modo que o ato compositivo muitas vezes

consistia em “cortar o tempo com a tesoura”, como resumiria Luciano Berio anos

depois421. Assim, os timbres gerados eletronicamente resultavam da aceleração em

estúdio de determinados ritmos específicos ou ‘melodias’ que comparecem como tais na

obra. Após as experiências realizadas em Kontakte, Stockhausen chegou a argumentar

que se um timbre qualquer poderia ser distendido no campo da macro-estrutura

transformando-se em forma musical, então, inversamente, a compressão em meio

segundo de uma sinfonia inteira de Beethoven poderia definir um novo timbre422.

Em suma, o tratamento independente dos parâmetros e uma obsessiva aversão à

repetição de esquemas formais marcaram a prática compositiva de Stockhausen no

período. Dos experimentos de Gruppen e Kontakte sobreveio posteriormente o conceito

de forma-momento, base para as diversas versões da obra Momente elaboradas entre

1961 e 1969. Com a forma-momento, Stockhausen abdicava de qualquer modelo de

linearização e progressividade sonora (mesmo de um encadeamento elementar como

começo, meio e fim) e direcionava a escuta à individualidade do instante. Na obra, o

“momento” corresponderia a uma entidade estrutural independente, relativamente

estável e imediatamente reconhecível (por contraste de timbre, harmonia ou padrão

rítmico, por exemplo), que estaria livre das implicações de um desenvolvimento

acumulativo. Com a forma-momento, estabelecia-se um regime de escuta não-

processual, “flutuante”, concentrado no agora. Cada “momento” (de poucos segundos

de duração) participaria de uma lógica composicional que, dissociada do compromisso

420 Há também, no entanto, uma versão eletrônica pura da obra 421 Cf. MENEZES, A teoria da unidade do tempo musical de Karlheinz Stockhausen, p. 264 422 A qualidade do som resultante difere, nesse sentido, de uma sinfonia de Schoenberg, cuja compressão produziria uma sonoridade mais “ruidoso”, na medida em que “há mais aperiodicidades em Schoenberg” do que na estrutura mais periódica de uma sinfonia de Beethoven. Cf. STOCKHAUSEN apud MACONIE, Other planets: the music of Karlheinz Stockhausen, p. 145

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

267

com narratividade, hierarquias funcionais, climax, ressaltaria a experiência sonora do

imediato. A forma-momento seria então o amadurecimento de um modo de

implementação da stasis, da espacialização radical da experiência subjetiva do tempo na

música, que Stockhausen procurava engendrar desde como o tempo passa.

6.3 A ambivalência de Adorno sobre a teoria de Stockhausen

Como anunciamos no início do capítulo, a exposição da morfologia de

Stockhausen aqui se justifica em razão do lugar decisivo que ocupou na conferência

adorniana de 1961, Vers une musique informelle. A motivação para que Adorno

confrontasse teoricamente a morfologia não seria somente técnica. Em primeiro lugar,

Vers une musique simbolizava o retorno de Adorno a Darmstadt, após quatro anos sem

ter sido convidado para os cursos. Parecia imprescindível a confrontação pormenorizada

– e não apenas o comentário de sobrevôo, ao qual Adorno havia cedido em Das Altern,

conforme o anátema de Metzger – com o arcabouço teórico de certas práticas seriais

que, a seu ver, renunciavam ao critério da mediação subjetiva. Ou seja, Adorno não

deveria se limitar à exposição filosófica, histórico-materialista, do conceito de tempo

musical; deveria avaliar os falsos pressupostos e as inconsistências que as próprias

teorias induziam. Em suma, se, como afirma Borio, “reconstruir a temporalidade na

música era para Adorno a tarefa primária da musique informelle”423, a morfologia do

tempo musical de Stockhausen, em seu propósito de conciliar as descobertas da

eletroacústica às exigências do pensamento serial, não poderia ser desprezada por

Adorno. Seguindo a explícita indicação de Metzger, a teoria de Stockhausen não lhe

aparecia somente como a formulação mais audaciosa e consequente do pós-guerra. Para

Adorno, a morfologia de Stockhausen representava nada menos do que a etapa final do

processo histórico de racionalização dos parâmetros sonoros424; algo que havia sido

423 BORIO, Die positionen Adornos zur musikalischen Avantgarde zwischen 1954 und 1966. In: Adorno in seinen musikalischen Schriften, Regensburg: G. Bosse, 1987, p. 166 424 Com a construção integral do serialismo, teria sido concluída (vollendet) a progressiva racionalização da música descrita por Max Weber em Fundamentos racionais e sociológicos da música. Cf.

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

268

preconizado pelo mesmo desde 1953, antes mesmo de o pensamento por “parâmetros”

entrar em circulação no debate musicológico do período425. Em A função do

contraponto na nova música (1957), por exemplo, Adorno inscrevia no processo de

“organização total” dos elementos, iniciado com Schoenberg, aquilo que viria a ser o

fundamento da morfologia de Stockhausen:

“Desde Schoenberg, a nova música move-se objetivamente na direção da organização total, unidade integral. Por isso, ela não mais concede independência às dimensões individuais da música (…) Em vez disso, ela luta para unificar todas essas dimensões (…) e derivá-los de um núcleo idêntico. Essa tendência não se limita apenas à técnica dodecafônica e à guinada serial subsequente, que chega a integrar até mesmo o tempo à organização total.”

(A função do contraponto na nova música, GS 16, 147)

Notemos que a descrição acima, feita em 1957, alinha-se perfeitamente à ideia

de interdependência dos parâmetros defendida por Stockhausen, sobretudo quanto à

integração do tempo à organização total. No entanto, também já nesse texto, Adorno

discordava da submissão das dimensões musicais à síntese de um tempo frequencial-

cronométrico: “degradar essas dimensões a um denominador comum é um dos desastres

da prática contemporânea” (GS 16, 147). O ensaio prenuncia a atitude ambivalente de

Adorno em relação à teoria da unificação de Stockhausen. Cabe enfatizarmos essa

ambivalência, que, por sinal, não passou despercebida pelo próprio Stockhausen426.

Dificuldades I (1964): “Danach darf man wohl sagen, daß von den Seriellen nicht Mathematisierungen der Musik willkürlich ausgeheckt wurden, sondern eine Entwicklung besiegelt, die Max Weber in der Musiksoziologie als Gesamttendenz der neueren musikalischen Geschichte bestimmte: der fortschreitenden Rationalisierung der Musik. Sie hätte in der integralen Konstruktion sich vollendet” (GS 17, 269, grifo meu) 425 Cf. final de Sobre a relação contemporânea entre música e filosofia (1953): “ (…) todos os dados psicológicos fundamentais do som – sua altura, qualidade, intensidade, duração e timbre – são como que inventoriados e combinados sistematicamente na música em todas as suas possibilidades contrastantes. O objetivo final é neutralizar um dado por outro.” (GS 18, 174) 426 O compositor estava consciente das críticas de seu “adversário”, como comprova o trecho de uma carta para Adorno escrita pouco antes de 1961: “Sua grande força fica evidente pelo número de seus adversários; sua grande fraqueza é que seus adversários não são reais (...) Quando leio seus livros e seus artigos, sei que eu sou verdadeiramente seu adversário, ainda que nem possamos suspeitar disso quando nos encontrarmos. (...) As coisas que aconteceram na minha música recentemente estão em tamanha divergência com seu pensamento que você se surpreenderá se um dia descobri-las” (STOCKHAUSEN apud IDDON, New music at Darmstadt, p. 286)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

269

Por um lado, Adorno sempre manifestou de maneira superlativa sua admiração

pelo rigor composicional de Gesang der Jünlinge, Zeitmaße, Kontakte e Gruppen. Na

correspondência com Metzger em 1958, indicava que, ao ouvir Gruppen pela primeira

vez em Colônia, ficou “extraordinariamente impressionado, não apenas pelo nível

formal, mas também pela proposta de uma linguagem musical nova e ao mesmo tempo

fortemente articulada à sua maneira”427. Em 1960, reconhecia o potencial construtivo do

continuum eletrônico, citando Gesang der Jünlinge como um dos “experimentos mais

vigorosos nesse sentido” (Música e nova música, GS 16, 492). Em 1961, reafirmou,

desta vez diretamente a Stockhausen, que Gruppen foi “de todas as suas obras, aquela

que mais o impactou”428. Em diversas oportunidades, Adorno fez declarações

semelhantes aos elogios que abrem Vers une musique informelle429. Para ele, a questão

dos parâmetros e da interdependência entre os domínios sonoros havia atingido seu

desenvolvimento mais apurado em Stockhausen:

“(…) a questão da identidade dos parâmetros foi conduzida teoricamente por Stockhausen com uma energia tal, que acabou atingindo os extremos da questão” (Música e técnica, GS 16, 236)

“Na escuta tradicional, a música se desdobra das partes em direção ao todo, em sintonia com o próprio fluxo do tempo. Este fluxo – ou seja, a relação entre a sucessão temporal dos eventos musicais e o fluxo puro do tempo em si – tornou-se problemático e se apresenta ao trabalho da composição como tarefa a ser pensada e dominada. Não é acidental que em seu ensaio teórico “como o tempo passa” – claramente o mais importante nesse assunto – Stockhausen tenha discutido a questão fundamental de saber como atingir a unificação dos parâmetros de altura e duração no interior dessa divisão” (Vers une musique, GS 16, 495)

“Devemos a Stockhausen a descoberta (Einsicht) de que a estrutura métrica e rítmica da música, incluindo da música atonal e dodecafônica, permaneceu nos limites da tonalidade (...) Desde então, o fato de as relações entre todas as dimensões da composição serem estabelecidas, uma afetando diretamente as demais, tornou-se consolidado na música. (...) Toda tentativa de ignorar esses desenvolvimentos recentes está destinada ao fracasso” (Vers une musique, GS 16, 499)

427 ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 15/09/1958 : „(…) und war ausserordentlich davon beeindruckt, nicht nur durch das Formniveau, das wirklich keinen Zweife mehr zulässt, sondern auch durch die weitgehend neue und dabei doch auf ihre Weise höchst artikulierte Musiksprache, die da vorliegt.“ 428 ADORNO; STOCKHAUSEN, Briefe Adorno-Stockhausen (TWAA Br 1493), f. 28/4/1961 : “Von all Ihren Sachen hat mich dies Werk doch am stärksten berührt“ 429 “Von Werken der Kranichsteiner oder Darmstädter Schule wie Stockhausens 'Zeitmaßen', 'Gruppen', 'Kontakten', 'Carré', vom 'Marteau sans maître' von Boulez, von dessen Zweiter und Dritter Klaviersonate und der Flötensonatine habe ich bedeutende Eindrücke empfangen.” (GS 16, 494)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

270

O tom das declarações não deixa dúvidas: as descobertas de Stockhausen haviam

adquirido o estatuto de “incontornáveis”. Ao mesmo tempo, Adorno não cessou de

apontar para as limitações dessas mesmas descobertas, tendo em vista seus pressupostos

físico-acústicos. Essa positividade induzia à eliminação do caráter de linguagem e

ignorava a conformação histórica do material, reduzindo o âmbito da composição a um

simulacro cientificista. Acreditamos que a maior ênfase da crítica adorniana, no final da

década de 1950, aos trabalhos de Stockhausen se deve a uma motivação elementar430.

Como Metzger havia indicado a Adorno, a teoria de Stockhausen consistia no

“documento central da teoria serial”431. O reconhecimento de que essa teoria

representava, portanto, o “estágio mais avançado” do pensamento serial possibilitaria a

Adorno renovar sua crítica materialista ao serialismo como um todo. Com efeito, a

polêmica contra o serialismo, deflagrada em 1951 (ou antes, se considerarmos FNM)

estendeu-se até os últimos escritos musicais de Adorno, mesmo em um contexto no qual

a predominância do pensamento serial não mais existia432.

É nesse sentido que, novamente, não identificamos revisionismos estruturantes

por parte de Adorno quanto à crítica em Das Altern der neuen Musik; as modulações em

Vers une musique não deveriam nos iludir quanto à consistência de seu conceito de

tempo. Como havia sido exposto em Das Altern, a adoção de um conceito fisicalista

revogaria nada menos do que o substrato histórico da arte musical. Ou seja, a

experiência da temporalidade não poderia ser compatível com uma concepção temporal

determinada por princípios de mensurabilidade cronométrica. O problema mais grave

dessa abstração estaria “em reduzir as obras a entidades estáticas (...) a simples arranjos

caleidoscópicos de partículas elementares, (nos quais) as dimensões da altura e da

430 No final dos anos 1950, Stockhausen era, na visão de Adorno, o principal téorico da geração de compositores do pós-guerra. Apesar das referências a Boulez, elas “são excedidas pelas referências a seu colega alemão” (CAMPBELL, Boulez, music and philosophy, p. 83–4). 431 Cf. carta para Adorno: “Als das zentrale Dokument der seriellen Theorie ist Stockhausens Abhandlung ‘Wie die Zeit vergeht’” (ADORNO; METZGER, Briefe Adorno-Metzger (TWAA Br 1005), f. 13/07/1961) 432 Exemplos da crítica tardia à ideia de denominador comum dos parâmetros localizam-se, por exemplo, em A forma da nova música (1966): “as diferentes dimensões devem antes interagir umas com as outras no processo vivo de composição musical em vez de serem reduzidas a uma matéria original (Urmaterial) comum” (GS 16, 624)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

271

duração não se movem mais no tempo estético”433. Em Da relação contemporânea

entre filosofia e música (1953), Adorno insistia que o tempo estético não é o da

experiência cronométrica, ainda que o contenha refletido. O argumento essencial que

motiva a crítica de Adorno a Stockhausen quase dez anos depois em Vers une musique,

portanto, já estaria portanto prefigurado nesse texto: “o tempo musical é realmente

(wirklich) musical – ou seja, não apenas tempo mensurável da peça – ele é dependente

do conteúdo musical e por sua vez determina este conteúdo, é o meio concreto de

mediação do sucessivo” (Da relação contemporânea..., GS 18, 158). Podemos dizer que

a perda da distinção qualitativa entre os parâmetros, resultante de uma definição

científica de tempo como espectro de relações frequenciais, como conjunto de “oitavas-

temporais” pertencentes ao âmbito da micro ou da macro-acústica, compromete a

“mediação do sucessivo” referida por Adorno.

Com a teoria da interdependência dos parâmetros, não só duração e altura

deveriam possuir a mesma natureza, como também as “diferenças de percepção

acústica são todas no fundo reconduzíveis a diferenças nas estruturas temporais das

vibrações”434. Segundo Stockhausen, a proposta de uma fusão entre altura e duração

seria encorajada pela própria percepção sensorial, que efetivamente não “disseca” em

parâmetros um evento sonoro qualquer: “nossa percepção apreende um determinado

evento sonoro como um fenômeno unitário e não como fenômeno constituído por

quatro propriedades diversas (timbre, altura, intensidade, duração)”435. Tais

propriedades seriam apenas campos parciais, modos específicos de expressão,

prossegue Stockhausen, de um tempo unitário; daí poderem ser reconduzidas a uma

único parâmetro estrutural. Vimos, no capítulo anterior, que mesmo a noção de forma,

como totalidade de “relações temporais de complexos mais longos”, enquadra-se a esse

esquema. No ensaio Estrutura e tempo vivido (publicado em 1955 em Die Reihe #2),

Stockhausen afirmava que nossa percepção da passagem do tempo resultava de

diferentes processos de alterações, descritíveis em termos da análise multidimensional

dos sons e passíveis de formulação matemática. Também a densidade das alterações dos 433 GOEHR, Doppelbewegung: The musical moviment of Philosophy and the philosophical movement of music. In: Elective Affinities: Musical Essays on the History of Aesthetic Theory, New York: Columbia University Press, 2011, p. 39 434 STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical, p. 142 (grifos no original) 435 Ibid.

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

272

eventos condiciona essa percepção; um evento simplesmente repetido possuiria o grau

mais baixo de alteração, enquanto um evento totalmente surpreendente (por exemplo, a

entrada súbita em fortissimo de um instrumento em textura orquestral em pp), o grau

mais alto de alteração. No primeiro caso, temos a percepção de um tempo “mais lento”;

no segundo, de um tempo “mais rápido”436. Stockhausen deduz então 4 modos de

“moldagem temporal”, de intervenção sobre a densidade das alterações – modo de

ataque, densidade vertical, andamento, registro – para demonstrar que exisitira, afinal,

uma dependência recíproca entre estrutura sonora e vivência temporal437. De acordo

com essa concepção, a música poderia então abandonar a prerrogativa de se projetar

necessariamente como fluxo temporal sucessivo para se projetar como conjunto de

“campos de possibilidades”, não mais obedecendo à lógica linear, mas criando uma

lógica de “constelações”438. A ideia de correlação matemática entre as estruturas

inspiraria os ensaios subsequentes do compositor (como o tempo passa e A unidade do

tempo musical) e a identificação de um denominador comum, a fase-duração, a todos

os parâmetros para fins de composição.

Para Adorno, no entanto, a exclusão do referente qualitativo da percepção, por

um lado, e do conteúdo como “meio concreto de mediação do sucessivo”, por outro,

simplesmente aniquila a temporalidade estética. A hipótese de Stockhausen conduz à

subordinação do domínio perceptivo à análise científica de impulsos, em última análise,

à subordinação do domínio musical à acústica. Quanto à distinção entre percepção

qualitativa e a mensuração de propriedades sonoras, que seria deixada de lado por

Stockhausen, talvez uma analogia com a projeção cinematográfica seja aqui

esclarecedora:

“o essencial é que nós percebamos imagens móveis na tela, e pouco importa que essa mobilidade seja só aparente, que ela resulte na verdade da sequência de imagens fixas projetadas a uma cadência de 24 quadros por segundo. É na experiência perceptiva vivida pelo espectador, e não nos dados óticos que

436 STOCKHAUSEN, Structure and experiential time. In: Die Reihe #2, 1955, p. 64 “By experiential time (Erlebniszeit) we mean the following: when we hear a piece of music, processes of alteration follow each other at varying speeds; we have now more time to grasp alteration, now less (...) Experiential time is also dependent on the density of alteration: the more surprising events take place, the ´quicker´ time passes; the more repetitions ther are, the ´slower´ time passes” 437 Cf. Ibid., p. 71 438 Cf. BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, p. 456–7

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

273

condicionam essa experiência, que se elabora o pensamento criativo do cineasta”439

A crítica ao uso formativo dos parâmetros

O critério da experiência perceptiva limitaria, portanto, o alcance do projeto

teórico de Stockhausen. A noção de parâmetro é sempre retrospectiva, ou seja, surge na

análise do complexo das qualidades sonoras, de suas interações que todavia se

apresentam à nossa percepção como um único fenômeno dado – o que, aliás,

Stockhausen não desconsidera. Ocorre que em uma obra como Kontakte, cuja

composição se baseia em larga medida no pensamento por parâmetros, Stockhausen

propõe “transições” entre os campos perceptivos timbre e altura, mediante variações

quantitativas frequenciais440. Isso contradiz sua própria declaração a respeito do

fenômeno unitário da percepção. Pois essa ideia de “transição”, de “passagem gradual”

de um campo perceptivo a outro, requer necessariamente que uma noção formativa de

parâmetros esteja em curso. Dito de modo mais claro, o compositor utiliza aqui a noção

de parâmetros não mais como elemento de análise mas como elemento próprio de

composição, como se um parâmetro estivesse dotado de uma existência pré-analítica

que pudesse ser manipulada. Assim, ideia de composição por parâmetros (que, de resto,

também Boulez aceitou em suas obras) toma um procedimento retrospectivo de análise

dos fenômenos acústicos, do qual se origina a própria noção de parâmetro, e

simplesmente inverte o procedimento: em vez do complexo do fenômeno sonoro para a

decomposição analítica em parâmetros, parte-se dos parâmetros para uma síntese

compositiva do fenômeno sonoro (para a “construção do som”). Stockhausen não teria

observado o “erro categorial” desse procedimento, o de transformar elementos de

439 BAYER, De Schönberg à Cage: essai sur la notion d’espace sonore dans la musique contemporaine, Paris: Klincksieck, 1981, p. 82 Não custa observar que a comparação permanece procedente, mesmo considerando a tecnologia dos dispositivos digitais, que possibilitam captação e exibição a uma cadência superior a 24 quadros por segundo. 440 Ver discussão acima sobre a passagem de A unidade do tempo musical em que se descreve um exemplo de Kontakte: “a percepção de ´timbre´ se transforma na percepção de ´melodia´, a ´cor´ se decompõe em uma sucessão de ´alturas´ particularizadas” (STOCKHAUSEN, A unidade do tempo musical, p. 146)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

274

análise descritiva em fatores de síntese compositiva, no qual se passa a operar com os

parâmetros individualmente. Um erro que foi diagnosticado com precisão por Carl

Dahlhaus no seminário de 1966 sobre Forma na nova música, do qual Adorno também

participou. Para o musicólogo, assim como não é possível conceber melodia sem ritmo,

nem ritmo sem duração e gradação dinâmica, do mesmo modo,

“um parâmetro individual é abstrato. Uma qualidade sonora, separada das outras, não possui existência real. Apenas o complexo possui concretude (...) Mesmo que os parâmetros estejam submetidos separadamente ao princípio serial, um grupo de notas é todavia percebido como algo que resulta da interação de qualidades sonoras”441

A confusão entre gênese e resultado que decorre desse procedimento ignora o

fator qualitativo, irredutível à análise, do próprio som. Assim, a inversão operada na

construção de Kontakte – na qual, portanto, a noção de parâmetros é usada como

elemento formativo de relações sonoras e habilitaria “transições entre campos

perceptivos” – essa inversão só se torna possível mediante a neutralização do fator

qualitativo da experiência perceptiva dos campos da altura, intensidade e duração. A

posterior substituição por um conceito quantitativo e identitário, a partir do qual se

produzem as séries baseadas em parâmetros, seria então a consequência previsível da

teoria. O que se exclui no processo, contudo, é a não-identidade dos parâmetros que a

análise sonora havia desvelado pela primeira vez. O tratamento quantitativo e distintivo

de parâmetros, sem levar em conta suas interações, requer a suspensão da experiência

perceptiva elementar do som. Torna-se sem sentido. Ainda que se admita a hipótese do

continuum espacio-temporal (posteriormente questionada em seus fundamentos pela

própria física do som), a teoria não deveria ignorar que toda experiência concreta impõe

a distinção qualitativa das propriedades sonoras, irredutíveis, apesar de sua

interdependência. Essa não-identidade constitutiva das propriedades sonoras torna

absurda a ideia de “transição entre campos perceptivos” e, por extensão, torna sem

sentido o uso formativo de parâmetros interdependentes para fins composicionais. O

critério supostamente científico aqui é insensato.

441 DAHLHAUS, Form. In: Schoenberg and the New Music: Essays by Carl Dahlhaus, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 253

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

275

Adorno explorou a fundo o problema da unificação dos parâmetros442. Embora

tenha reconhecido como inevitável esse processo de integração, rechaçava a ideia do

denominador único não só por questões filosóficas, mas por questões elementares do

próprio campo científico da psicoacústica; em 1958, comentava que “a obra de arte

técnica torna-se sem sentido, ou mesmo falsa, sempre que ignora essa não-identidade e

trata o não-igual como igual, multiplicando laranjas com máquinas de escrever”

(Música e técnica, GS 16, 236). Já em Vers une musique, detectava nesse rebaixamento

quantitativo da percepção não apenas as “aporias do pensamento serial” (Aporie des

Seriellen) como também suas “limitações, defeitos” (Defekte). Em uma passagem

fundamental da conferência, Adorno resumia o problema:

“A mais problemática (das aporias do pensamento serial) refere-se à união da altura e da duração sob o denominador comum do tempo. Stockhausen (...) tomou essa identidade mais seriamente do que qualquer outro compositor (...) O fator temporal objetivo em todos os parâmetros e o tempo experimental vivo do fenômeno não são de modo algum idênticos. Duração e altura pertencem a domínios musicais diferentes, mesmo que na acústica sejam compreendidos sob a mesma chave. Na controvérsia sobre esse ponto, o conceito de tempo é usado equivocadamente: ele cobre tanto o temps espace quanto o temps durée, tanto o tempo fisicamente mensurável, quase espacializado, quanto o tempo da experiência (Erlebniszeit). O discernimento (Einsicht) de Bergson sobre tal incompatibilidade não pode ser eliminado. ”

(Vers une musique, GS 16, 531, grifo meu)

Notemos que Adorno utiliza aqui argumento semelhante ao do texto de 1953

(Da relação contemporânea...), sobre a separação essencial entre experiência qualitativa

e objetividade cronométrica. Em Vers une musique, Adorno reforça o argumento,

sublinhando a incompatibilidade entre eventos objetivos físicos e reações subjetivas que

mesmo a psicologia experimental e positivista de Weber-Fechner já havia demonstrado.

Adorno sugere que “noções logarítimicas” – em referência à “escala cromática das

durações” que vimos no ensaio “como o tempo passa” – não seriam suficientes para

forjar a correspondência entre estímulos sensoriais e a intensidade psicológica das

sensações. Portanto, ainda que se tome um princípio puramente científico que reduza o

442 Adorno não estava sozinho nessa crítica. Hans Heinz Stuckenschmidt também questionava em 1955 a pré-determinação serial e o nivelamento quantitativo dos parâmetros: “quando fortissimo e pianissimo tem mesmos direitos, o mais forte sempre vence” (Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 119)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

276

fenômeno musical a um “aglomerado de elementos sensórios”, a relações acústico-

frequenciais, “não parece muito sensato deduzir o tempo musical a partir de dados

objetivos físicos” (Vers une musique, GS 16, 532). Não parece sensato basicamente por

dois fatores: em primeiro lugar, porque oculta uma profunda inadequação científico-

conceitual, uma confusão que precede questões de ordem estética da composição. A

própria psicologia experimental da qual depende a morfologia de Stockhausen admite

que o transcurso do tempo pertence ao âmbito psicológico das sensações, às invariantes

antropomórficas – um fato científico que deveria bastar para inviabilizar o uso

formativo e unificador de parâmetros. Embora possamos traduzir os campos perceptivos

em termos quantitativos de vibrações frequenciais (assim como podemos compreender

determinada “cor” em termos quantitativos), na efetividade concreta da experiência

percebemos a “altura”, a “duração”, o “timbre” como qualidades incomensuráveis. Em

segundo lugar, “não parece sensato deduzir o tempo musical a partir de dados

objetivos”, porque a percepção do fenômeno físico não pode ser dissociada da dimensão

histórica, da mediação pela qual o fenômeno físico é subjetivamente constatado. Três

anos antes de Vers une musique, Adorno descrevia o paradoxo ocasionado pela

estruturação completa das dimensões musicais a partir de um denominador comum;

uma distinção entre tempo físico e tempo vivido é novamente evocada:

“Uma distinção deve ser feita entre o fenomeno objetivo físico (…) e a mediação subjetiva do fenômeno musical, algo que não pode ser equiparado aos processos físicos, assim como um fenômeno de percepção (Wahrnehmungsphänomen) não deve ser confundido com os eventos no cérebro que o causou”

(Música e técnica, GS 16, 237)

É interessante observar que a crítica ao nivelamento do plano empírico-científico

com o plano estético na morfologia de Stockhausen não difere da crítica à

pseudomorfose sobre a pintura de Stravinsky, que preparava o “fim do bergsonismo

musical” ao lançar o tempo-espaço contra o tempo-duração, em função do procedimento

de “blocos sonoros”, conforme a análise de Filosofia da nova música (GS 12, 176).

Como vimos no capítulo 3 da tese, Adorno admitia explicitamente tal aproximação,

com a ressalva de que se em Stravinsky o tempo ainda era tratado “como se fosse

espaço”, Stockhausen teria ido além ao literalmente assimilar o tempo no espaço, ao

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

277

converter o tempo em fator do sistema serial: uma pseudomorfose que seria inerente ao

processo da Aufklärung musical. Na música determinada de Boulez e Stockhausen,

portanto, o tempo estaria plenamente concebido como puro Dasein, não mais como

Werden. Uma adesão “existencialista” (similar, para Adorno, aos preceitos da ontologia

fundamental de Heidegger) que havia sido objeto central da crítica aos “engenheiros da

música serial” em 1954, retornaria agora em Música e técnica:

“O desdobramento da música no tempo, cuja essência é gerar algo novo, o que nunca existiu, contradiz o caráter de pré-determinação. Essa extirparia a música de seu elemento próprio, o tempo; música totalmente determinada não seria mais algo em devir (ein Werdendes) mas apenas um simples ser-aí, e seu devir no tempo degeneraria em ilusão (Illusion), em simples irrealidade”

(Música e técnica, GS 16, 247)

Segundo Adorno em 1964, Stockhausen havia percebido essa radicalização

absurda de deduzir estruturas a partir de um Urmaterial. Mas o filósofo insistia no

“equívoco conceitual” apontado dez anos antes, em Das Altern:

“(na premissa do serialismo integral), identifica-se o tempo físico objetivo, de acordo com frequência de vibração e relações de harmônicos, com o tempo musical, com a sensação da duração musical, que é essencialmente mediada subjetivamente. Os compositores seriais encontraram esse problema anos atrás. Os mais avançados dentre eles, Boulez e Stockhausen, estão trabalhando intensamente sobre isso. O que mais me preocupa, contudo, é a própria ideia de determinação total (...) Aquilo que eu previ anos atrás como envelhecimento da nova música está literalmente acontecendo”

(Dificuldades ao compor, GS 17, 268)

Sem dúvida, a possibilidade de estruturação direta do som conquistada pela

eletrônica representavam, para Adorno, um avanço significativo das “forças produtivas

da música”. Nesse sentido, a despeito de uma “concepção estática de música” e de suas

contradições teóricas internas, Adorno admirava a coerência entre prática e justificação

teórica no trabalho de Stockhausen443. No entanto, esse mesmo avanço, constituindo a

443 Em Vers une musique, Adorno sublinha a coerência entre obra e justificação teórica em Stockhausen: “minhas primeiras reações a Zeitmaße (...) coincidiram plenamente com sua teoria da estaticidade resultante de um dinamismo generalizado, assim como sua teoria da cadência” (GS 16, 495)

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

278

etapa agônica da racionalidade instrumental da música, conduzia à eliminação de sua

própria história:

Poderíamos questionar se a racionalidade integral para a qual a música se encaminha simplesmente é compatível com a dimensão do tempo; se a racionalidade, afinal, como o poder do igual e do quantitativo, não nega o não-igual e o qualitativo, dos quais a dimensão do tempo é inseparável. Não é casual que todas as tendências de racionalização – no mundo real bem mais do que na estética – se dirigem para a eliminação de procedimentos tradicionais e virtualmente, portanto, da história.

(Música e nova música, GS 16, 485)

Assim, em concordância com uma época em que os sujeitos estariam cada vez

mais “despojados de suas memórias”, a unificação dos parâmetros institui

dialeticamente uma situação aporética, a um só tempo progressiva e regressiva. Por um

lado, a racionalidade integral (integrale Rationalität) impulsiona as forças produtivas da

música, ampliando meios técnicos, incorporando e controlando dimensões antes “não-

racionalizadas” da matéria sonora. Por outro lado, procura negar o “não-igual” e o

“qualitativo” próprio ao tempo, subjugando-os ao poder do “igual” e do “quantitativo”.

Como dissemos, essa inadequação no uso formativo dos parâmetros havia sido

mencionada por Adorno na conferência de 1957 em Darmstadt (Critérios da nova

música), em particular durante a exposição do “conceito de desenvolvimento e de tempo

na nova música”. Essa parte da conferência foi removida e substituída na versão final

impressa por uma crítica ao fetichismo rítmico em Stravinsky444. Mas vale a pena nos

determos nessa exposição da conferência original, cuja transcrição apenas recentemente

se tornou acessível, através da publicação das Kranichsteiner Vorlesungen445. Na

conferência original, Adorno mobiliza o conceito de tempo musical para questionar os

pressupostos da composição a partir de “elementos originários” (Urelemente), como

“intervalo, som, tempo” ou “ritmo” – outro modo de designar a composição por

parâmetros. O conceito abstrato de tempo inerente à noção de elementos originários

opõe-se ao “tempo musical autêntico (eigentliche musikalische Zeit), que sempre está

444 cf. Kriterien der neuen Musik, publicada em Klanfiguren, GS 16, 170-228, que analisamos no capítulo 2 acima 445 Cf. ADORNO, Kranichsteiner Vorlesungen, p. 372–8

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

279

relacionado ao conteúdo (Inhalt) específico da música, ou seja, aos eventos musicais

específicos que se desdobram no tempo.”446. Tais eventos devem estar organizados em

uma “sequência plena de sentido temporal” (sinvolle zeitliche Abfolge) mas que não se

deduz de elementos originários. Assim, privilegiar um elemento originário a fim de

estabelecer relações temporais, um elemento como ritmo, seria um “engano” (ein Trug),

na medida em que tais elementos decorrem de camadas de abstração e mensurabilidade

visando a análise de fenômenos447. Adorno vê então no conceito de elemento originário

o mesmo problema que caracterizava Stravinsky. Pois do privilégio concedido a um

elemento resultava a mera justaposição de eventos sonoros, alienados do tempo

(zeitfremde), uma bricolagem cronométrica (Bastelei), que nada mais teria a ver com a

obra de arte “viva” (lebendige Kunstwerk). Para Adorno, portanto, uma autêntica

“formulação do tempo significa uma formulação dialética do tempo”. Essa formulação

leva em conta eventos musicais concretos, e não de supostos fenômenos originários do

tempo (Urphänomen der Zeit)448. A partir do momento em que o compositor se refere a

um tempo in abstracto, como fazem os ditos compositores “rítmicos” (die Rhytmiker),

então não se obtém nada diferente daquilo já foi previamente definido e ordenado:

apenas a hipóstase arbitrária de um conceito mecânico de tempo. O denominador

frequencial “tempo” na morfologia de Stockhausen eliminaria o tempo musical em sua

definição in abstracto de tempo.

A ontologia do tempo frequencial-cronométrico

Como resumiram Borio e Danuser, “a divergência entre Adorno e Stockhausen

no que se refere ao tempo vivido pode ser atribuída às suas avaliações divergentes sobre

a relação entre o quantitativo e o qualitativo”449. A concepção do denominador geral

incorre em um duplo equívoco: primeiro, como vimos, na transformação de um fator de

análise em fator de síntese, o que seria improcedente inclusive sob o aspecto científico

da acústica e da psicologia experimental; segundo, na renúncia ao tempo vivido e 446 Ibid., p. 374 447 Ibid. 448 Ibid., p. 374–5 449 BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, p. 457

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

280

subjetivo, impondo um estágio primitivo de experiência, de retorno à fisicalidade, sem

laços com a história450. Com efeito, é impossível não perceber o quanto a teoria de

Stockhausen, ancorada nas descobertas da acústica e da eletrônica, abre caminho para a

cristalização metafísica de todo fenômeno musical: insinua-se nela uma verdadeira

ontologia musical cuja essência, cuja οὐσία, corresponde ao tempo frequencial-

cronométrico. Para Adorno, contudo, a música tornava-se com isso não apenas “sem

sentido”, mas “falsa” em sua negação da história. Essa perda da tensão ocasionada por

um material totalmente pré-formado constituiria a contrapartida regressiva do serialismo

em Stockhausen. Mediante a assimilação racional do tempo, sua teoria reificava a

totalidade da prática, extrapolando o pensamento identitário. Independentemente do

traço anedótico, era bastante sintomático que, segundo a morfologia de Stockhausen, a

diferença entre uma sinfonia de Beethoven e uma peça de Schoenberg se dava

primordialmente em termos de “periodicidades” estruturais, através da comparação das

ondas sonoras correspondentes que resultariam da compressão temporal de suas

gravações:

“(...) se for capaz de comprimir uma sinfonia de Beethoven inteira em meio segundo, então você tem um novo som, e sua microestrutura interior foi composta por Beethoven. Naturalmente ele tem uma qualidade muito particular comparada ao som resultante da compressão de uma outra sinfonia de Beethoven. Isso sem mencionar uma sinfonia de Schoenberg, porque há muito mais aperiodicidades em Schoenberg, essa estaria mais próxima de um ruído, enquanto a de Beethoven seria uma vogal, por ser mais periódica em sua estrutura” 451

Aqui, história e produção de sentido dadas pela dialética do material são

radicalmente extintas. O salto para fora da história do material não difere do que

ambicionava o fenômeno, historicamente determinado, da música totalmente

indeterminada. Arriscamos uma hipótese interpretativa dos impasses da racionalização

integral dos parâmetros. O processo irrefreável de racionalização, especificidade da 450 Em 1955, Adorno já mostrava que o imperativo de consistência nos experimentos eletrônicos induz à regressão a algo “não–artístico”, à mera física do som: “Die reine Konsequenz aus dem Material regrediert vollends aufs Kunstfremde, bloß Tonphysikalische, wie denn in der Tat einige deutsche Punktuelle sich elektronischen Experimenten zuwandten.” (Neue Musik heute ,GS 18, 133) 451 STOCKHAUSEN; MACONIE, Stockhausen sobre a Música, p. 53. Cf. também nota 422 acima. Lembremos que o conceito de “forma” de A unidade do tempo musical legitimaria a comparação que Stockhausen propõe aqui.

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

281

música ocidental segundo Max Weber, parece coincidir, à primeira vista, com o

movimento de uma filosofia da história, de matriz hegeliano-marxista, aplicada às

formas musicais. Contudo, se, para Weber, a racionalidade musical apresenta-se como

um tipo de racionalidade instrumental, sendo ela mesma orientada a fins, para Adorno,

a obra de arte caracteriza-se pela mediação tanto de seu aparato técnico-instrumental

quanto da irracionalidade social que marca seu momento de produção. Ambos os

fatores participam do teor histórico de verdade da obra. Assim, se a racionalidade

estética envolve uma “racionalidade orientada a valores” e não-instrumental (segundo a

tipologia de Weber), é porque a obra autônoma, locus da mediação subjetiva de uma

“finalidade sem fim”452, carrega no interior de si as antinomias do seu momento

histórico. É nesse sentido que, para Adorno, o progresso dialético do material está na

tensão subjetiva entre dois regimes de racionalidade – instrumental-científica e estética-

orientada a valores. Privilegiar apenas uma racionalidade não assegura sua autonomia.

Se a música não deveria ceder à pseudomorfose em ciência, é porque não deveria

abandonar o “lugar indispensável do sujeito”, a tensão subjetiva entre os dois regimes

de racionalidade:

“(...) o continuum do tempo não é, com efeito, dado “simultaneamente” (gleichzeitig), como supõe a organização racional; não se pode esquecer que é inerente ao tempo desdobrar-se a partir “de baixo”, do impulso dos momentos individuais. Isso designa objetivamente, do ponto de vista do material, o lugar indispensável do sujeito na música e, por extensão, o problema que a música atualmente deve enfrentar”

(Música e nova música, GS 16, 485)

Enfrentar a questão do lugar do sujeito na música significava impedir a

subsunção do conceito de tempo a um esquema racional-positivista, cientificamente

indiferente ao tempo histórico e à racionalidade estética. O programa-manifesto de Vers

une musique, em sua exortação para que a vanguarda revisasse seus procedimentos,

exigia em primeiro lugar a não assimilação do tempo como dimensão quantitativa: “Sob

o aspecto da consciência do tempo, a prática contemporânea sinaliza incongruências

(Mißverhältnisse) que tornam urgente uma revisão desses procedimentos” (Vers une

452 Cf. PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, cap. 3

Parte II – 6. Stockhausen: morfologia do tempo musical

282

musique, GS 16, 532). Analisaremos, no último capítulo da tese, a exortação

programática que Adorno efetua nesse conhecido ciclo de conferências, bem como a

importância crescente que a dimensão histórico-materialista do tempo musical adquire

nos escritos musicais posteriores.

Parte II – 7. Depois do serialismo

283

7. Depois do serialismo

7.1 Musique informelle: metateoria de Filosofia da nova música?

A primeira referência ao termo música informal está no pequeno artigo Sobre a

situação da composição na Alemanha (1960), em que se preconiza a existência de

“reino almejado da liberdade, uma verdadeira musique informelle” (GS 18, 138). O

conceito de música informal consubstancia a rejeição programática àquilo que o filósofo

vinha qualificando desde 1949 como a “negação do tempo” na nova música. A

interlocução com Metzger nesse período praticamente baliza o conteúdo das

conferências de 1961 que deram origem ao conhecido ensaio. Nele, verificamos o

esforço de esclarecer os conceitos de material, forma e expressão, à luz dos

desdobramentos do serialismo no final dos anos 1950. O manifesto de uma música

informal ou “a-serial”, segundo a sugestão de Metzger453, marcava o retorno do filósofo

aos Ferienkurse de Darmstadt, após a polêmica de 1957. Por não esconder uma

deliberada dimensão propositiva, trata-se de um texto heterodoxo na ensaística de

Adorno: logo nos primeiros parágrafos, ao justificar o título em francês, declara

“gratidão à nação para a qual a tradição da vanguarda é sinônimo da coragem

(Zivilcourage) de produzir manifestos” (GS 16, 495).

O estranhamento provocado por Vers une musique informelle – uma das mais

conhecidas e talvez mal compreendidas contribuições de seu pensamento musical – não

se deve tanto a seu conteúdo, mas principalmente à maneira quase tética, proposicional,

almejando uma intervenção real, em que se dá o peso de manifesto e traz o incômodo de

insinuar um regime preceptivo para a música454. Pois, fundamentalmente, Adorno

453 “Aserielle”, termo tomado de Metzger como equivalente de “música informal”: “einen der exponiertesten Begriffe, den einer informellen oder, wie Metzger es nannte, aseriellen Musik” (Vers une musique informelle, GS 16, 495) 454 Colabora para o tom programático o fato de, em várias passagens, Adorno utilizar o futuro do pretérito ("música informal seria...", "música informal deveria...", "esta seria a tarefa primordial...") alternadamente com asserções como: “a vanguarda exige uma música que pegue o compositor de surpresa (...) música informal é a idéia de algo não totalmente imaginado (...) a intenção não é reinstaurar composição temático-motívica como requisito indispensável (...) música informal se rebela contra fé extrema do

Parte II – 7. Depois do serialismo

284

reexpõe no ensaio uma temática que já havia sido trabalhada: o problema do

nominalismo, do fetichismo dos meios e da rebelião contemporânea à constituição de

universais; o modelo da tensão subjetiva entre tematismo e atematismo na prática de

Schoenberg e a perda dessa tensão no pós-guerra; a insuficiência composicional do

pensamento por parâmetros, ao valorizar mais a nota individual do que a relação entre

notas; a necessidade do caráter de aparência da obra e da criação subjetiva de sentido.

É preciso reconhecer que o modo de exposição de Vers une musique se afasta da

vociferação performática de Das Altern e se aproxima do tom conciliatório do segundo

ensaio sobre Stravinsky (analisado na Parte I da tese), escrito praticamente na mesma

época, em 1962. Observamos aqui um curioso paralelismo no encaminhamento

argumentativo desses dois ensaios tardios, que merece ser explicitado. Ambos os textos

começam com um esboço de auto-crítica: no caso de Stravinsky, um retrato dialético

(1962), com a breve reavaliação do procedimento de montagem e o reconhecimento da

atribuição indevida de uma norma externa e um enunciado (Aussage) à aparência

concreta da obra; no caso de Vers une musique (1961), com impressões favoráveis sobre

obras da “escola de Kranichstein ou Darmstadt”, a concordância de que aspectos

tradicionais como campos de tensão e repouso, antecedente e consequente (a “retórica

expressiva” ainda presente em Schoenberg) não mais constituem categorias a priori455.

Vemos alguém disposto a modificar suas posições (“não é possível afirmar que”, “é

preciso corrigir”). No entanto, logo após a auto-crítica, Adorno sempre acrescenta um

“no entanto” que absorve dialeticamente o momento de auto-crítica para então

material e organização absoluta (...) música informal não é neutralismo cultural, mas crítica do passado” etc. Raymond Geuss comenta a estranheza provocada pelo ensaio em sua dimensão prática, sob a perspectiva hegeliana do “vôo da coruja”: “In particular dialectical philosophy could not be used for giving directions about how to act. Dialectic was precisely not supposed to be a form of Besserwisserei (…) There is something inherently odd about Adorno’s project in ‘Vers une musique informelle’ of using a dialectical method to tell us where music must, could, might, or ought to go. Strictly speaking, a Hegelian dialectician should claim that the ‘outcome’ of a conflict, tension, contradiction, etc. can be seen to be ‘rational’ or ‘logical’ only retrospectively.” (GEUSS, Morality, Culture, and History: Essays on German Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 146). Todavia, o comentário de Geuss parece passar ao largo do propósito de intervenção social que subjaz ao projeto da teoria crítica. 455 Ver a passagem já citada do ensaio sobre Stravinsky, que analisamos na seção 2.4 O ensaio “Stravinsky, um retrato dialético” acima: “Man könne nicht, wie ich, den Scheincharakter des Kunstwerks gegen die Ideologie von Aussage, Echtheit und Eigentlichkeit verteidigen und dann doch den Schein dessen bezichtigen, daß er Schein sei”. (GS 16, 386); e em Vers une musique: “In Kranichstein habe ich einmal (...) geziehen mit der Frage: »Wo ist hier Vorder- und Nachsatz?« Das wäre zu berichtigen” (GS 16, 504, grifos meus)

Parte II – 7. Depois do serialismo

285

determinar com maior rigor suas posições precedentes. A estratégia retórica dos textos

consiste em um apurada Aufhebung da auto-crítica inicial (“é necessário corrigir isso,

mas mesmo assim...”456). Essa modulação retórica traz, no contexto desses dois ensaios,

a vantagem de expandir o campo das avaliações iniciais a respeito de Stravinsky e do

serialismo, preservando contudo seu núcleo crítico-conceitual e a posição inicial. Como

insistimos ao longo da tese, não há lugar para revisionismos conceituais em Adorno,

senão para atualizações de ocasião457. Vejamos como o autor utiliza, em Vers une

musique informelle, a mesma estratégia retórica para dialeticamente atualizar as

relações, à primeira vista de oposição e de mútua exclusão, entre pensamento motívico-

temático e pensamento serial. Essa atualização terá implicações decisivas para seu

conceito de tempo musical na virada dos anos 1960, como procuramos comprovar no

final da Parte I da tese458.

Atematismo e serialismo: figuras dialéticas do tematismo?

Em Vers une musique, Adorno observa no percurso compositivo de Schoenberg

uma oscilação permanente entre os extremos do atematismo e do tematismo, da

liberdade e da organização total459. Em Erwartung op. 17, Schoenberg havia sentido que

456 Conforme analisado na Parte I, tal efeito surge em Stravinsky, retrato dialético na seguinte passagem:“Das Plausible dieser Einwände ist nicht zu unterschätzen. Aber sie vernachlässigen ein Zentrales. Etwas an Strawinskys Musik stimmt immanent nicht; »il y a quelque chose qui ne va pas«” (GS 16, 387); já em Vers une musique, após reconhecer a transitoriedade de “elementos expressivos tradicionais”, certamente por influência do debate com Metzger, propõe a criação de “categorias equivalentes” a tais elementos, pois seriam “indispensáveis” à articulação formal (GS 16, 504). 457 Consideramos equivocada a difundida tese do “revisionismo” adorniano após a polêmica com Metzger, endossada por diversos comentadores; por exemplo, Iddon: “Metzger would hear nothing from Adorno that might approach a revision of his views until 1961, when Adorno presented ´Vers une musique informelle´ at the Ferienkurse” (IDDON, New music at Darmstadt, p. 141, grifo meu) – ou ainda, Müller-Doohm na extensa biografia sobre Adorno: “Following this act of self-criticism as well as a revision of the concept of the composing subject, on the one hand, and the musical material, on the other, Adorno called for (in agreement with Metzger´s ´aserial music´) what for the first time he termed musique informelle” (MÜLLER-DOOHM, Adorno: A Biography, Cambridge: Polity, 2009, p. 396–7); ou ainda BORIO, “Dire Cela, Sans Savoir Quoi”!: The Question of Meaning in Adorno and in the Musical Avantgarde. A lista de autores que insistem na ideia de revisionismo é considerável. 458 Exploramos tais implicações na análise dos ensaios sobre música e pintura (1965) e A arte e as artes (1966), e de TE, principalmente na discussão da integração do próprio tempo como fator de composição na prática serial. 459 Tal oscilação seria demonstrada com uma sequência cronológica de obras, a partir do Segundo quarteto op. 10, em especial o 3o movimento (temático) e o 4o movimento (tendência para o atemático).

Parte II – 7. Depois do serialismo

286

o trabalho motívico-temático prejudicaria o fluxo narrativo do monodrama, forçando a

composição ao atematismo que inaugura a atonalidade. Porém, na leitura de Adorno, a

composição atemática de Erwartung não cede ao simples acaso, à disposição arbitrária

de notas, mas supera e conserva (aufhebt) o “espírito do trabalho motívico-temático” no

interior da própria obra; ou seja, o atematismo radical de Erwartung transforma

dialeticamente o próprio tematismo, alterando retrospectivamente a cadeia de relações

anteriores e a totalidade de seu conceito. Depois do monodrama, o conceito de

tematismo passa a subsumir toda música – incluindo Erwartung. Pois “integra

complexos parciais de autonomia relativa em um contexto geral (Zusammenhang) que

se manifesta através de seus caracteres e de suas relações umas com as outras”, indo

além de similaridades e variações motívicas, indo além, inclusive, de um fundamento

como “tema” (Vers une musique, GS 16, 515). Aprofundemos sob outro ângulo a

análise desse aspecto problemático e suscetível a interpretações controversas.

O que Adorno está afirmando com todas as letras, em Vers une musique, é que o

atematismo de Erwartung constitui a nova figura do conceito especulativo de

tematismo, figura esta que nega o próprio princípio de tema. Os impulsos e as relações

motívicas de Erwartung, embora não produzam temas, são descendentes, desvios dos

temas (Abkömmlinge von Themen, idem). A nova configuração do tematismo em

Erwartung supera dialeticamente a noção tradicional de tema em sua relações motívicas

elementares. Nessa nova configuração da composição temática de aparência atemática

– sob a qual deveríamos compreender as obras de Schoenberg e Webern do período

médio – constata-se a dependência recíproca e a tensão entre momentos autônomos

individuais (particularidades), e organização total (totalidade). Ocorre que, para

Adorno, toda composição temática carrega consigo o telos de uma organização total.

Em resumo, com Erwartung, o conceito de tematismo absorve a composição atemática

em seu telos da organização total.

Mas Adorno não interrompe o argumento. Na sequência do ensaio, passa a examinar

a relação entre serialismo e tematismo, adotando analogamente a mesma estratégia para

Desde então: Op. 11 (3o mov), atemático; Cinco peças op. 16, maior parte temático; Erwartung op. 17, totalmente atemático; Pierrot op. 21 e Quinteto op. 26, temático; Trio de cordas op. 45, atemático. (Vers une musique, GS 16, 500)

Parte II – 7. Depois do serialismo

287

vincular o atematismo e o tematismo em Schoenberg. Projeta-se então um outro modo

de compreensão do serialismo. No pensamento serial, segundo Adorno, diferenciação

(Differential) e integração (Integral) simplesmente se equivalem, a ponto de a

construção (diferenciação) assumir a totalidade da obra por extrapolação460: a integração

de todos os parâmetros da nota individual não contém nada de qualitativamente distinto

de sua totalidade (Vers une musique, GS 16, 516). Acontece que, para Adorno, essa

extrapolação do pensamento serial encontraria sua motivação profundo no mesmo telos

da organização total que se encontrava já presente na composição motívico-temática, no

tematismo. Desse modo,

“pode-se compreender o pensamento serial não como contrário ao pensamento motívico-temático. A própria música serial originou-se (entstand aus) da totalidade do pensamento motívico-temático, isto é, da extensão desse princípio para incluir o tempo (Zeit) e o timbre (Farbe) (...) A diferença pode ser dita do seguinte modo: na composição serial, a unidade é pensada como um existente imediato (als unmittelbar Seiendes) e um oculto (Verborgenes); na composição motívico-temática, por outro lado, a unidade se define sempre como um devir (als Werdendes) e um revelado (Offenbarendes)”

(Vers une musique informelle, GS 16, 516, grifos meus)

Adorno está propondo aqui uma leitura radicalmente diferente daquela que vê

oposição entre tematismo e pensamento serial. Insistamos no que está sendo dito: o

serialismo converte-se em figura oculta do tematismo, em figura estática e não mediada

(unmittelbar) que se coloca como puro existente (Seiendes). No percurso histórico de

dominação da natureza da Aufklärung musical, o serialismo acaba integrando não

apenas o timbre, mas o próprio tempo em sua totalidade sistemática – e, poderíamos

acrescentar, também o acaso, como na 3a Sonata de Boulez ou em Klavierstück 11 de

Stockhausen – incorrendo consequentemente no arbítrio da pura stasis, rejeitando o

caráter de aparência e bloqueando o próprio percurso histórico da totalidade (dinâmica)

do tematismo, seu telos. Quando o Differential e o Integral se tornam equivalentes,

como seria no caso do serialismo, então simplesmente não há mais tempo musical,

460 No início da Parte I da tese, vimos que o motivo seria, para Adorno, um Zeitdifferential, “unidade diferencial para a criação de relações temporais” (Zweite Nachtmusik, GS 18, 51)

Parte II – 7. Depois do serialismo

288

apenas a transitoriedade empírica de eventos justapostos461. O pensamento de integração

serial produz “uma disposição de elementos um após o outro no tempo (das zeitlich

Aufeinanderfolgende) que nega a sucessividade (Sukzessivität) e sabota a

responsabilidade com o devir (Werden)” (Vers une musique, GS 16, 518). A música

passa, mas não desenvolve. Adorno não está reavaliando, portanto, suas considerações a

respeito do serialismo como as que haviam sido apresentadas em Das Altern, de 1954.

Apenas inscreve a oposição entre música motívico-temática e música serial em uma

noção dialética mais abrangente de relação (GS 16, 519), noção esta que seria a figura

ulterior do tematismo.

Estaríamos enganados se acreditássemos que, através desse conceito especulativo de

tematismo, Adorno realizaria a hipóstase da noção de relação em detrimento da nota

individual. O próprio filósofo dissipa a conjectura: “não há notas sem relações, assim

como relações sem notas” (Vers une musique, GS 16, 522). Fazer da “relação entre

notas” um absoluto imediato, um “primeiro”, seria o erro invertido da hipóstase da nota

individual. Lembremos que Eimert perguntava-se pelos atributos imediatos que dão

existência à nota individual e não mais pela sua função ou relação462. Para Adorno, nno

entanto, toda busca por um originário, por um “primeiro”, seja na música ou na

filosofia, estaria sentenciada ao anátema da reificação da consciência, ideologia

(semelhante ao que contaminaria a fenomenologia de Husserl e Heidegger em sua

obsessão pelo “elemento originário” na esteira de uma prima philosophia). Por outro

lado, é difícil não enxergar, nessa dialética da Sukzessivität entre “nota individual” e

“relação entre notas” no contexto do princípio de “variação em desenvolvimento”, a

base da reflexão adorniana sobre o trabalho motívico-temático. O tematismo apresenta-

se como a verdadeira “dessemelhança de um semelhante”, a concretização dialética “do

transcurso do tempo na substância musical”463. Ressaltemos, mais uma vez, a conclusão

subjacente a Vers une musique quanto ao conceito especulativo de tematismo: o

conceito de tematismo incorpora e vai além do trabalho motívico-temático tradicional,

além da escrita atemática e da técnica dodecafônica de Schoenberg, além do 461 Notemos que, segundo tal concepção, também a música indeterminada de Cage descartaria a totalidade dinâmica de relações, mas, por negação abstrata. 462 Ver Introdução da Parte II da tese 463 “Thematische Arbeit, das Prinzip, das den abstrakten Zeitverlauf in der musikalischen Substanz konkretisiert, ist stets nur Ungleichheit eines Gleichen” (Vers une musique informelle, GS 16, 506, nota 6)

Parte II – 7. Depois do serialismo

289

pensamento serial. O conceito supera dialeticamente tais abordagens composicionais

como momentos internos de seu movimento. Como Adorno deixa claro na passagem

destacada acima, o tematismo constitui pura e simplesmente, em sua unidade dialética,

o próprio devir (Werden) e, portanto, a essência (Wesen) da arte musical.

Música informal como “tendência”; o informe em Valéry

É no interior desse empenho de superar o pensamento motívico-temático

tradicional e o serialismo, através da interpretação especulativa do conceito de

tematismo, que podemos então compreender o projeto adorniano de música informal.

Tanto em FNM quanto em Vers une musique, a perspectiva dessa composição autêntica

da liberdade esteve aberta “por volta de 1910” (GS 16, 497) – justamente a época de

ruptura com o tematismo, a época na qual Schoenberg escreveu Erwartung op. 17 e Die

glückliche Hand op. 18. Acreditamos que, entre as tentativas de conceitualização de

música informal, talvez a mais emblemática seja esta: música informal seria uma

terceira via entre a “selva de Erwartung e a tectônica de Die glücklichen Hand” capaz

de recolocar esses dois marcos da atonalidade livre em uma nova relação dinâmica

(Vers une musique, GS 16, 531). Ou seja, marcos anteriores à técnica dodecafônica. Em

um pequeno artigo sobre Alban Berg, publicado quatro meses antes da conferência,

Adorno esclarecia que Berg permanecia atual para o atual estágio da composição

precisamente porque

“desenvolveu, independentemente da técnica dodecafônica, procedimentos que se aproximam mais daquele impulso primário da atonalidade, de uma musique informelle, do que daquilo que a atonalidade (depois) racionalizou”

(Descobertas composicionais de Berg, GS 16, 415)

O impulso primário de ruptura da atonalidade fornece o modelo, portanto, para a

música informal, independente da técnica dodecafônica. O desenvolvimento da

articulação entre construção formal e liberdade composicional dos anos 1910 teria sido

interrompido, segundo Adorno, muito mais por fatores sociais e ideológicos (duas

Guerras, emergência da indústria cultural) do que por fatores imanentes à linguagem

Parte II – 7. Depois do serialismo

290

musical; ainda que a dimensão de fait social seja constitutiva da obra de arte. O que

Adorno defende como “tendência” em Vers une musique seria, portanto, a retomada do

pensamento livremente atonal, porém sem passadismos, sem repetição de estilo ou

“relaxamento da lógica da história”. Essa tendência a-serial não ignora o serialismo,

mas, reconhece seus estágio agônico, pretende superá-lo. O simples aggiornamento das

aspirações do expressionismo não bastaria para definir o ideal utópico do programa. O

que a referência à atonalidade livre, transposta para o contexto pós-serial dos anos 1960,

reestabelecia era o horizonte crítico contra toda ontologia das formas musicais. Mas sem

abrir mão de categorias que viabilizariam precisamente a crítica. Por isso, Vers une

musique pode ser considerado mais do que um texto de intervenção, mais do que a

definição de uma agenda – musique informelle representaria, nas palavras de Mahnkopf,

a metateoria de Filosofia da nova música464.

As origens da acepção de informe que Adorno emprega não são explicitadas,

embora o termo fosse conhecido nas artes plásticas. Certamente, há reminiscências da

art informel dos anos 1950, movimento radical de pintura não-figurativa que se afastava

do construtivismo geométrico e integrava a gestualidade corporal, o tachismo e a

aplicação de materiais e texturas não convencionais à superfície da tela465. No entanto,

parece-nos mais condizente ao ideal proposto pelo ensaio a descrição de informe que

encontramos em Degas dança desenho (1938), o pequeno livro de Paul Valéry muito

admirado por Adorno:

“Eu pensava às vezes no informe. Há coisas – manchas, massas, contornos, volumes – que têm, de alguma maneira, somente uma existência de fato: são percebidas por nós, mas não conhecidas; não podemos reduzi-las a uma lei única, deduzir seu todo da análise de uma de suas partes, reconstruí-las por meio de operações racionais. Podemos modificá-las com bastante liberdade. Elas não têm outra propriedade senão ocupar uma região do espaço... Dizer que são coisas informes é dizer não que não têm formas, mas que suas formas não

464 “Vers une musique é a metateoria de Filosofia da nova música, (livro) no qual o diagnóstico da racionalização antecipa o problema do serialismo, a partir da generalização do princípio da série dodecafônica; é também um texto filosófico fundamental, pois se empenha em reafirmar as principais categorias de seu pensamento musical: tempo, forma, material, sujeito, construção, composição, lógica, expressão, sentido” (MAHNKOPF, Adornos Kritik der neueren Musik. In: Mit den Ohren denken: Adornos Philosophie der Musik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 259) 465 Entre os principais representantes, poderíamos citar Jean Dubuffet e Jean Fautrier, na França, e Bernhard Schultze, na Alemanha; nos EUA, seria equivalente ao “expresionismo abstrato”, de Jackson Pollock, Willelm de Kooning, Mark Rothko. Cf. BORIO, Musikalische Avantgarde um 1960: Entwurf einer Theorie der informellen Musik, Laaber: Laaber-Verlag, 1993, p. 83–4

Parte II – 7. Depois do serialismo

291

encontram em nós nada que permita substituí-las por um ato de traçado ou reconhecimento nítido. E, de fato, as formas informes não deixam outra lembrança senão a de uma possibilidade...”466

Valéry ilustra aqui um elemento essencial para o conceito adorniano: o informe

não é a ausência de formas, mas a singularidade formal inscrita na própria coisa. É a

individualidade da obra marcada por certo nominalismo em sua confrontação com

esquemas abstratos. Pelo informal, prevalece uma concepção que não mais opõe o

universal da forma pré-estabelecida e o elemento particular irredutível; uma

objetividade que se esgota no interior da obra e abandona qualquer pretensão de

universalidade abstrata e heterônoma. Evita-se, com o informal, tanto a “má

universalidade” de fórmulas gastas quanto a absolutização do elemento particular.

Adorno não pretende fundar uma “estética do ideal de expressão”, atribuindo a primazia

do comportamento mimético sobre a dimensão construtiva. Na tendência em que se

confronta dialeticamente esquemas externos, a composição deveria construir de modo

objetivo sua própria substância. Uma substância que “não podemos reduzir a uma lei

única, deduzir seu todo da análise de uma de suas partes”, como afirma Valéry.

A mediação do informe seria, portanto, a expressão da estrutura da objetividade

musical através do sujeito e não contra ele (GS 16, 495). Recuperar essa dimensão

subjetiva e “orgânica” envolve seguir os impulsos não-sistemáticos, não-mecânicos, do

material. Nessa reflexão sobre os procedimentos convencionais, permanece incerto o

resultado: “a vanguarda exige uma música que pegue o compositor de surpresa (...) seria

a idéia de algo não totalmente imaginado” (GS 16, 523); “a utopia artística hoje é fazer

coisas que não sabemos o que são” (GS 16, 540)467. Se Adorno não fornece as

prescrições que seriam aguardadas de um manifesto, é porque a música informal,

regime de renovação do material no próprio ato de composição, por definição inibe

definições. Esse regime, é preciso insistir, não leva à “liquidação” abstrata das

categorias tradicionais. De fato, Adorno admite que categorias como “antecedente e 466 VALÉRY, Degas dança desenho, São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 78–9. De fato, não encontramos em lugar algum da produção adorniana referências à descrição do informe em Valéry. Entretanto, a referência não nos parecerá extravagante se considerarmos que esse pequeno livro sobre Degas foi o tema central do ensaio de 1953, O artista como representante, incluído em Notas de literatura I (GS 11, 114) 467 A frase, que encerra o texto de Vers une musique, remete explicitamente à sua epígrafe – Dire cela sans savoir quoi (Beckett).

Parte II – 7. Depois do serialismo

292

consequente, campos de tensão e repouso, progressão, desenvolvimento, contraste,

afirmação” (GS 16, 505) não poderiam mais ser tomadas a priori – uma declaração que

poderia fazê-lo rever sua participação no incidente com Stockhausen e Goeyvaerts em

1951. Mas – e este “mas” cumpre função primordial no ensaio – caberia à música

informal propor a criação de “equivalentes” (Äquivalente) dessas antigas categorias que

fossem adequadas ao novo material, a fim de reestabelecer o sentido das diversas

possibilidades que o habitam. Se falar em “sentido” nessa época dava impressão de

reacionarismo romântico, por outro lado, o que estava em questão era a própria razão de

existir da arte468. E dela dependia a “busca de equivalentes”, isto é, a transformação de

categorias tradicionais tanto de análise quanto de composição. Afinal, para ser mais do

que “aglomerado de notas” (Tonhaufen), a música não deveria prescindir de categorias

capazes de fornecer “articulação” (Artikulation) imanente ao próprio tempo da obra (GS

16, 505). Adorno propõe, em Vers une musique, essa transformação das categorias

tradicionais através de uma “teoria material das formas” (materiale Formenlehre).

Teoria esta definida por Ligeti com a “contribuição mais importante para uma teoria

histórica das formas”469.

Teoria material das formas: a categoria de variante em Mahler

Adorno não desenvolve explicitamente sua teoria material em Vers une musique

informelle, limitando-se a indicar que seria a matriz para o engendramento dos

“equivalentes” das categorias tradicionais. Contudo, podemos afirmar – juntamente com

Borio, Paddison e Danuser470 – que essa teoria não só está na origem da ideia de música

468 “Cegueira contra o sentido (Sinn) ou renúncia ao sentido em geral na mera atividade, tem se tornado tão difundido que simplesmente lembrar do sentido se torna suspeito de um reacionarismo romântico, quando na realidade o que se faz é uma reflexão da razão de ser da arte.” (Kriterien der neuen Musik, GS 16, 182) 469 “O aspecto histórico da forma foi analisado em profundidade por Adorno. Chamo a atenção em particular para o livro que dedicou a Mahler, a contribuição mais importante para uma teoria histórica das formas” (LIGETI, La forme dans la musique nouvelle. In: Neuf essais sur la musique, Genève: Contrechamps Éditions, 2001, p. 143) 470 Ver comentário de Borio: “aquilo que a música informal é no plano composicional possui um análogo na teoria musical: a teoria material das formas” (BORIO, “Dire Cela, Sans Savoir Quoi”!: The Question of Meaning in Adorno and in the Musical Avantgarde, p. 61); ou ainda, Paddison: “(...) the origins of Adorno’s concept of musique informelle are clearly to be seen in his ‘material theory of musical form’”

Parte II – 7. Depois do serialismo

293

informal como também é seu correlato no plano da análise musical. Em uma nota de

rodapé de Vers une musique, Adorno remetia a “teoria material das formas” à sua

monografia sobre Mahler, publicada no ano anterior. A monografia pretendia

encaminhar uma teoria adequada para a compreensão dos “gestos composicionais” e

“caracteres fisionômicos” das obras de Mahler. Coexistindo com a tradicional, a teoria

material engendraria categorias cuja validade se circunscreve ao contexto da obra.

Recusava, com isso, a mediação do todo com as partes através de uma estrutura

previamente lançada sobre o objeto. No caso de Mahler, ligavam-se à fisiognomia das

obras categorias imanentes como “variante” (Variante), “suspensão” (Suspension),

“ruptura” (Durchbruch), “preenchimento” (Erfüllung), “recorrência modificada”. A

análise empreendida no livro constitui o caso provavelmente mais consequente da

crítica materialista de Adorno. Ainda que referências diretas à “teoria material das

formas” sejam esparsas, no fundo, não difere da perspectiva imanente de uma análise

comprometida a “fazer a música falar”. No capítulo sobre os “caracteres” de Mahler,

Adorno expõe textualmente a teoria:

“A partir de categorias como ‘suspensão’ ou ‘preenchimento’ nasce uma ideia cujas implicações vão além dos limites de sua obra. Essa ideia poderia contribuir para fazer a música falar por meio da teoria: a ideia de uma teoria material das formas, ou seja, de uma dedução de categorias formais a partir de seu sentido (no contexto da obra). A teoria acadêmica das formas passa ao largo dessa teoria material na medida em que opera com a ajuda de classificações puramente abstratas – como a que distingue “tema principal”, “ponte”, “tema secundário”, “tema conclusivo” – sem que essas divisões sejam concebidas segundo sua função. Em Mahler, categorias concretas se superpõem às categorias abstratas convencionais.

(Mahler, GS 13, 193-4)

Na aplicação dos equivalentes formais, a teoria material permitiria restituir a

unidade de sentido dos processos composicionais. Não se trata de um “repositório” de

categorias de tipo arquitetônico-esquematico (“tema principal”, “tema secundário”,

“coda” etc), ainda que tais categorias permitam estabelecer uma primeira camada de

(PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 182). Já Danuser redigiu um ensaio específico sobre a contribuição da teoria material de Adorno ao pensamento musical contemporâneo, a partir de uma reavaliação dessa teoria encaminhada em Mahler e TE à luz da dialética entre forma e material e dos tipos expressivos e sociais de sua filosofia. Cf. DANUSER, “Materiale Formenlehre” - ein Beitrag Theodor W. Adornos zur Theorie der Musik. In: NOWAK, Adolf; FAHLBUSCH, Markus (Orgs.), Musikalische Analyse und Kritische Theorie: zu Adornos Philosophie der Musik, Tutzing: Hans Schneider, 2007.

Parte II – 7. Depois do serialismo

294

sentido. A universalidade que subjaz aos equivalentes só adquire sentido quando em

contato com a particularidade da obra; sem referência à obra, os equivalentes seriam

insignificantes. Para Adorno, são os gestos composicionais de Mahler que, modificando

funções previstas do material, inspiram a teoria. Gêneros e tipos formais esteriotipados

como marcha, valsa, sonata, rondo, scherzo são reconfigurados no interior de suas

obras, de modo que não só sua estereotipia é colocada em primeiro plano como também

suas fissuras, “o caráter fragmentário que está abaixo da unidade aparente das

convenções tradicionais”471. Aí estariam os “criptogramas da modernidade” da escrita

mahleriana. Em que pese o anacronismo do material, seu deslocamento qualitativo

quebra expectativas previstas nos esquemas, desintegrando a forma à medida que a

afirma. Desse modo, Mahler incorpora a um só tempo a dimensão normativa da forma e

a crítica a ela: familiar e estranho se condensam.

Vejamos o exemplo da categoria material de variante. Em oposição ao princípio

tradicional de variação, ela explicaria o caráter singular da formação dos temas nas

sinfonias de Mahler. Sabemos que o princípio tradicional de variação atua, grosso

modo, a partir de um tema original, cuja estabilidade seria dada por suas relações

motívicas internas. Essa estrutura identitária do tema necessita ser preservada para que

ocorram, afinal, múltiplas alterações em seu desenho melódico, padrão rítmico,

timbrístico, de registro etc472. O princípio de variação fundamenta-se em uma lógica

dedutiva: expõem-se as ideias essenciais, quee, em seguida, são submetidas a

desenvolvimentos. Segundo Adorno, a formação temática em Mahler extrapola o

princípio de variação a ponto de não torná-lo mais reconhecível. Ou seja, não há mais

distinção entre um original e uma variação do tema: a identidade do tema se volatiza

em suas variantes. O conceito de tema, como “algo posto de modo determinado (eines

bestimmt Gesetzten) e em seguida modificado, não convém a Mahler” (GS 13, 235).

Seu trabalho composicional passa a privilegiar o dinamismo da formação temática e não

seu resultado. Se não há um “original”, cada nova apresentação do tema seria um

“original”, de conteúdo motívico móvel, que não encontra configuração clara, positiva,

definitiva: “as variantes expropriam (enteignen) do tema a sua identidade” (Mahler, GS

471 PADDISON, Adorno’s aesthetics of music, p. 275 472 Que se pense, por exemplo, no tema da ária que abre e encerra as Variações Goldberg, de Bach, tema que emoldura suas 30 variações.

Parte II – 7. Depois do serialismo

295

13, 236), restando dele apenas um “vulto”, uma figura genérica (Gestalt), que suas

diferentes instâncias dão corpo. Se quisermos ainda falar em identidade do tema, esta

deverá consistir no conjunto qualitativo de suas diferentes variações. O tema consiste

em suas variantes. Para Adorno, no primeiro movimento de sua Nona sinfonia, a

técnica da variante de Mahler radicaliza-se. A repetição da seção de exposição temática

desse movimento é tão elaborada, em suas contínuas variantes, que a repetição da seção

de exposição “é percebida espontaneamente como a primeira parte da seção de

desenvolvimento; só retroativamente é que se esclarece o que deveria ser chamado de

desenvolvimento” (Mahler, GS 13, 300). Essa diversidade dos temas liga-se

intimamente à articulação épica do tempo. Os temas em Mahler “não são mais

indiferentes ao devir musical (...) eles obedecem a impulsos, tornam-se outros, se

retraem, se expandem, envelhecem, modificando profundamente um elemento outrora

fixo” (GS 13, 221). Essa técnica progressiva da variante é comparada ao “momento

épico-romanesco de figuras sempre diferentes e ao mesmo tempo idênticas” (Mahler,

GS 13, 234). Os temas assumem características de personagens da epopeia, cuja

identidade não se estabiliza, em conformidade à tradição oral do narrador na qual cada

apresentação elabora um traço diferente do personagem narrado. Como se Mahler

estivesse à procura de uma composição “entre aspas”, de um estilo “indireto” de

composição, sua música narrativamente nos diz: “escutem, isto é um desenvolvimento”

ou “era uma vez uma sonata” (GS 13, 244).

A técnica mahleriana da variante, enquanto crítica produtiva do princípio de

variação temática, estende-se aos demais elementos do idioma musical do compositor.

Ela oferece o paradigma para as formas da escrita épica, na medida em que aderem às

ruínas da linguagem tonal e produzem ao mesmo tempo um distanciamento destas

(Mahler, GS 13, 236). Se a transformação crítica atinge inicialmente a elaboração

temática, em seguinda se aplica à orquestração, ao uso do contraponto, à arquitetura

formal. Mahler não inventa modelos de orquestração, não inventa formas. Mas, por

meio da extensão da técnica da variante, traços da música de concerto, da música

popular, do Volkslied, do exotismo oriental (da escala de tons inteiros de Canção da

terra), são assimilados negativamente. São apresentados em desintegração como kitsch,

não possuindo compromisso com a evolução do material. A originalidade aqui reside

em um gesto composicional que desnaturaliza as relações de esquemas pré-

Parte II – 7. Depois do serialismo

296

estabelecidos, fazendo o kitsch, a convenção, falar por si mesmo. As reminiscências

dessa descrição com o estilo tardio de Beethoven não são casuais.

Invariantes: os “equivalentes” na música informal?

As categorias que Adorno cria para traçar a fisionomia composicional de Mahler

são instâncias paradigmáticas dos “equivalentes” no projeto de música informal473: a

categoria de variante em Mahler seria “equivalente” e mantém relação com a categoria

tradicional de variação. Se insistimos na centralidade dos “equivalentes” em Vers une

musique, é porque Adorno claramente deseja reabilitar o potencial crítico de categorias

em um contexto pós-serial, como já avançava em Critérios da NM, propondo uma

tipologia de categorias de desenvolvimento, pois mesmo na música não temática,

“as relações entre Agora e Depois não devem ser arbitrárias, devem estar legitimadas no curso do tempo, não simplesmente em razão da identidade matematica estática de suas partes constituintes”

(Kriterien, GS 16, 224)

Conforme a crítica contra Adorno que vimos na Parte I, está saturada de

pressupostos uma passagem como “devem estar legitimadas no curso do tempo”. Sua

tipologia de categorias de desenvolvimento desejava reabilitar em contexto pós-serial

fundamentos como “consequencia, antítese, novo ataque, transição, resolução” (idem),

sem os quais a tensão dialética da espiritualização musical se desvanece. Dito por

extenso: se Adorno reconhece que “progressão, desenvolvimento, contraste, afirmação”

não podem mais ser consideradas categorias musicais a priori (Vers une musique, GS

16, 505), se reconhece que a obrigatoriedade de tais categorias entrou em colapso com o

473 Assim como Mahler, também em Berg se encontrariam modelos de “equivalentes” formais. No Primeiro Quarteto op. 3, Adorno observa a mediação (pela forma rondó no segundo movimento, por exemplo) do informe, de um material que se apresenta como resto não submetido à forma. Se a “microtécnica de restos” de Berg ainda opera com estruturas herdadas da tonalidade (sonata, rondó, pensamento temático), elas são expostas de tal modo que acabam perdendo sua função vetorial de ordenação. O princípio de variação temática não é seguido. A maior parte dos temas possui caráter flutuante, indefinido, de variações mínimas e de modificações rítmicas em torno do intervalo de 2a. menor (Cf. BOISSIÈRE, Adorno: la vérité de la musique moderne, p. 92–3).

Parte II – 7. Depois do serialismo

297

serialismo, ao mesmo tempo ressalta que sem “equivalentes” de tais categorias a música

perdem sua razão de ser. A criação de “equivalentes” significa, desse modo, uma das

exigências fundamentais tanto da teoria quanto da prática contemporâneas. A ideia de

“equivalentes” será marcante para Adorno nos ensaios musicais dos anos 1960, a

começar pela ênfase em Berg, na complexidade assimétrica das largas extensões

temporais de suas obras. Em Descobertas composicionais de Berg (1961), descrevia-se

o paradigma para a confrontação das normas que prescreviam de cima para baixo a

primazia da série sobre a organização do material.

Determinação e indeterminação: extremos se tocam

Podemos dizer que nem a forma-momento nem a “incorporação controlada” do

acaso na 3a Sonata de Boulez contemplariam o ideal da música informal, pois seriam

indiferentes a uma temporalidade na qual os eventos sejam legitimados entre si no

decurso da forma. O serialismo – figura estática do conceito especulativo de tematismo,

como vimos – não atenderia ao preceito constitutivo de sucessão orgânica, o que, para

Adorno, é o que assegura a possibilidade de uma autêntica experiência musical. Ou seja,

não leva em conta o abismo entre forma intencional e forma resultante. Mesmo em

obras altamente organizadas, como a 3a Sonata, a discrepância entre o produzido e o

percebido acontece pelo simples fato de que o ouvinte não possui acesso às suas

estruturas. Embora no contexto de Vers une musique, a crítica seja direcionada menos a

Stockhausen e Boulez do que a Herbert Eimert (pois este falhava em detectar as

implicações estéticas de uma distinção entre ciência e obra da arte), o serialismo em

todas as suas manifestações recai sob o mito da estaticidade: assim como Stravinsky, o

serialismo expõe a “imagem de uma música em si estranha ao tempo (das Bild einer in

sich zeitfremden Musik)” (Vers une musique, GS 16, 529). A ambição da “organização

virtualmente total”, que procurava incorporar o acaso em seu processo constitutivo,

desprezava a organicidade do não-idêntico, do ainda não-totalizado, do resto que

pertence à essência da obra de arte (GS 16, 526). Para Adorno, o pensamento por

parâmetros sequer enfrentava o dilema na relação entre forma temporal e conteúdo

musical (GS 16, 518).

Parte II – 7. Depois do serialismo

298

Por sua vez, na música indeterminada de John Cage, a tautologia “um som é um

som” significava o descompromisso com qualquer superestrutura ou historicidade; o

som possuiria “poderes metafísicos”. É preciso notar que a provocação da anti-arte não

é desprezada por Adorno: “dispensar a anti-arte como cabaré ou piada de alto nível seria

tão falso quanto sua celebração” (GS 16, 533). Cage teve o mérito de evidenciar a crise

do sentido e de definição mesmo de obra, realizando um “protesto à cumplicidade da

música com a dominação da natureza” (Vers une musique, GS 16, 534). Na contramão

de leituras que constatam em Cage a ausência de atividade sintética subjetiva, Adorno

estava convencido de que mesmo o Concerto para piano fornecia um sentido a

contrapelo, justamente no deliberado rigor de evitar articulações e interconexões (GS

16, 536). A intencionalidade de evitar intencionalidade (a exemplo do uso da

simbologia do I Ching como instrumento de “decisão” para as escolhas entre ruído e

silêncio) faz com que a anti-arte seja mais do que ela mesma. Mas isso condicionava o

fracasso, dado de partida, do princípio de “não-obstrução”, de “não-intencionalidade”,

da ideia de eliminação do “desejo do compositor”474. A passividade aqui ambicionava

colocar entre parênteses o pertencimento social e histórico de cada evento sonoro. Mas

um problema suplementar aqui se coloca: a não-historicidade do som é incompatível

com seus pressupostos e suas formas de produção. “Música e som divergem”, resume

Adorno. A tentativa de neutralização social da anti-arte recai assim em positivismo,

aderindo à heteronomia social. Pois ceder espontaneamente àquilo que a realidade

oferece é um dos signos fundamentais da ideologia. A rejeição em bloco à ideia de

sentido supõe que o enfraquecimento do papel subjetivo se transforme em virtude

estética (transformação que Boulez repreendia em Alea). Entretanto, o achatamento das

circunstâncias históricas do qual depende a resignação diante do acaso esvazia o

potencial crítico da arte. Assim, como lembra Jimenez, “entre as várias atitudes de tipo

reacionário, Adorno denuncia aquela que pensa que o mesmo material sonoro pode ser

474 De maneira semelhante a Adorno, Stockhausen procurava demonstrar nas conferências de Darmstadt em 1959 que a ambiguidade notacional de Cage define, contra a sua vontade, um campo restrito de possibilidades e que a indeterminação, uma vez inscrita na partitura, resulta de intenções e desejos composicionais. (Cf. IDDON, New music at Darmstadt, p. 242)

Parte II – 7. Depois do serialismo

299

utilizado indiferentemente da época e da sociedade; considerar que o artista é livre

diante do material é negar a interação entre sujeito e sociedade”475.

Os extremos se tocam. Como havia observado Ligeti476, música serial e música

indeterminada, antitéticas entre si, induzem a efeitos semelhantes na separação radical

entre construção e percepção musical. Engendram um estado de permeabilidade

absoluta entre o sons, a perda de sensibilidade dos intervalos. Se o serialismo extrapola

a construção, tendendo à dissociação entre composição e material, a música da

indeterminação a rejeita. Contudo, ambas se fundamentam na hipóstase do fenômeno

acústico, na ideologia de que o som individual bastaria por si: enquanto na prática

serial, “decompõe-se tudo até o parâmetro do som individual para então se reconstruir o

todo” (Vers une musique, GS 16, 520), na indeterminação, em analogia ao action

painting, a obra se reduz a “criptogramas da ação direta” do sonoro, decalque da

realidade. Ambas se tornam estranhas ao sujeito e ao tempo estético. A música informal

ambicionava a superação dessa antinomia, através da recuperação da dialética entre

repetição e não-repetição, entre identidade e não-identidade das formas. Era preciso

questionar a “destemporalização do tempo” que subjazia à filosofia e à música.

7.2 Forma, cor e tempo: os últimos escritos musicais

O simpósio de 1965

Com a morte de Wolfgang Steinecke em 1961, Adorno retornou aos Ferienkurse

em Darmstadt apenas em 1965 para participar do simpósio Forma na nova música, com

intervenções de Ligeti, Dahlhaus, Boulez, Brown, Mauricio Kagel. O simpósio

confirmava as perspectivas semelhantes entre os autores quanto à perda do caráter

vetorial e à espacialização do tempo na nova música. No fundo, tratava-se de examinar

475 JIMENEZ, Theodor W. Adorno: art, idéologie et théorie de l’art, p. 66 476 LIGETI, Évolution de la forme musicale (1960). In: Neuf essais sur la musique, Genève: Contrechamps Éditions, 2001, p. 125

Parte II – 7. Depois do serialismo

300

se o próprio conceito universal de “forma” ainda era válido, se sua obsolescência já não

havia sido sentenciada pelo nominalismo. Talvez por deliberado menosprezo à maneira

com que o simpósio se organizou (ou a Dahlhaus), Boulez rendeu-se ao escárnio de um

happening: “a forma, esta primorosa pedra filosofal, em cuja procura gastam tanto

tempo as grandes crianças inteligentes, sérias e aplicadas: encontrá-la-ão?” E, com

piparotes retóricos, citava Rimbaud: “Uma noite tomei a Forma em meu colo. E achei-a

amarga e a insultei”477. Na realidade, como vimos no capítulo 5, Boulez havia

concebido uma complexa teoria estruturalista sobre forma, que rejeitava o hilemorfismo

tradicional. E havia trabalhado no conceito de forma móvel e forma aberta.

No simpósio, Carl Dahlhaus apontava para a insuficiência das abordagens seriais

e, em particular, para o disparate da ideia de forma móvel (sob a qual compreendiam

também a forma-momento de Stockhausen): por mais “móvel” que seja no papel, por

mais flexível que seja a indicação de um percurso na partitura, a aparência do que será

interpretado sempre será “fechada”, na medida em que o ouvinte só tem acesso a uma

versão por vez, à percepção de um só resultado. Para o ouvinte da 3a Sonata, a

variabilidade e as pontencialidades estruturais da obra oferecidas aos intérpretes

simplesmente não existem. Dahlhaus declarava de maneira taxativa que “o problema da

forma, ou da coerência musical, que eles (os procedimentos seriais) supostamente

teriam resolvido, sequer foi colocado”478. Era compreensível e legítimo que um

compositor quisesse simplesmente abandonar o conceito de forma, por considerá-lo

datado e inadequado à prática de sua época. Porém, quem ainda quisesse refletir sobre o

assunto, deveria tratar de coerência das partes com o todo, de equilíbrio entre detalhe e

contexto ou de articulação entre elementos homogêneos e heterogêneos. Mais do que

isso, deveria reconhecer a dimensão histórica constitutiva de qualquer conceito de forma

(sem a qual a ideia de desvio ou ruptura perde sentido), bem como a necessidade de um

grau mínimo de abstração e de repetição. As séries são neutras, incapazes de produzir

477 A conferência de Boulez foi publicada sob o título “Periforma” em A música hoje 2. Cf. BOULEZ, A música hoje 2, p. 127 478 DAHLHAUS, Form, p. 252

Parte II – 7. Depois do serialismo

301

qualquer forma: “uma forma é tão independente do princípio serial quanto a sintaxe de

uma linguagem é independente de regras fonológicas”479.

O simpósio de 1965 confirmava também a convergência entre Ligeti e Adorno

quanto ao problema da espacialização. De fato, a partir da década de 1960, Ligeti

passou a ocupar um papel mais relevante do que Boulez e Stockhausen no pensamento

musical de Adorno480. O compositor, por sua vez, estava bastante familiarizado com a

estética adorniana: “Ligeti foi o primeiro compositor que deu atenção à problemática da

espacialização do tempo musical esboçada por Adorno”, confirmam Borio e

Danuser481. Tendo em vista essa convergência, vale a pena examinarmos a conferência

de Ligeti no simpósio. Além de traçar o panorama das modificações da forma nos anos

1950, lançava luz à crítica materialista de Adorno.

Ligeti: desdobramentos da música informal

De início, Ligeti recusava uma noção substancialista de forma. Forma musical

não consistia apenas na relação das partes com o todo. Embora a definição se aplique a

esquemas formais consolidados pela tradição – fuga, rondó, suíte, sonata etc – seu

conceito em música, tomado em toda sua extensão, envolve particularidades

relacionadas à função de cada parte/fase do desdobramento musical. Ou seja, as partes

(ou “estruturas locais”, segundo Boulez) não são apenas componentes que se reportam

ao todo, mas estabelecem uma rede interna de relações, que encaminham o transcurso

tempo e cumprem nele uma função vetorial (ou de “linearidade”, no léxico bouleziano).

A transição para a reexposição temática na sonata clássica, por exemplo, adquire

comportamento musical próprio e significação única, que não é identificada apenas pela

sua posição na forma (na “estruturação”). Para Ligeti, o estruturalismo de Boulez

ignorava o efeito de retroatividade que uma estrutura local, em sua sintaxe, exerce sobre

479 Ibid., p. 257 480 Em correspondência de 20/7/1964, Adorno afirmava que, entre os compositores da nova geração, Ligeti era com quem ele tinha maior afinidade teórica: „Es gibt unter der sogenannten jungen Komponistengeneration kaum einen, mit dem ich mich so wahrhaft verstehe wie mit Ihnen; das möchte ich nachdrücklich aussprechen“ (ADORNO; LIGETI, Briefe Adorno-Ligeti (TWAA Br 903a)) 481 BORIO; DANUSER (Orgs.), Im Zenit der Moderne, p. 454

Parte II – 7. Depois do serialismo

302

a estrutura global morfológica, um efeito que não está previsto na estruturação sintática

da obra. Em segundo lugar, se a noção de forma apresenta uma analogia direta com o

espaço, revela-se aí uma antinomia essencial na música. Pois ao contrário da noção de

forma em outros meios artísticos, a forma musical constitui a abstração espacializada,

transformação por visão retrospectiva de conjunto, do desenvolvimento temporal da

música482. O próprio vocabulário da música fundamenta-se em relações espaciais

sempre imaginárias, desde o nível associativo imediato – altura dos sons, intensidade

(entendida como distância/proximidade do campo sonoro), coloração timbrística – até o

nível mais abstrato, quando se fala em espaço harmônico ou no próprio

desenvolvimento musical como arquitetura sonora.

Na concepção de Ligeti, “a mobilidade é inerente à forma, mas a forma ela

mesma não é móvel”483; ela resulta da espacialização do processo temporal da obra –

uma declaração que expõe a inadequação do conceito de forma móvel de Boulez quanto

de forma-momento de Stockhausen. A forma não pode ser apreendida como móvel ou

momentânea, pois a mobilidade, o movimento caracteriza qualquer fenômeno musical

se inscreve, espacializada, na forma musical. Além disso, os esquemas formais evoluem

historicamente, e a própria forma sonata serve como notório exemplo. Referindo-se à

“teoria material das formas” de Adorno484, Ligeti considera que a sintaxe particular de

uma obra pressupõe as transformações de significado anteriores e engendra um espaço

virtual integrando momentos passados e momentos presentes. As singularidades da

obra, afinal, são reconhecíveis apenas através da tomada de consciência de pontos

comuns e pontos divergentes em relação à tradição. O sentido integral da forma deriva

do encadeamento histórico total de significações, subjacente à configuração musical de

uma obra particular.

Assim, os princípios que definiram a forma musical na tradição (aqui sempre

entendida como o trajeto histórico que se encerra no fim das possibilidades formais da

tonalidade, no fim da “autoridade de lei” do pensamento diatônico) podem ser

sintetizados em três aspectos: relação das partes entre si e com o todo; analogia com o

482 LIGETI, La forme dans la musique nouvelle, p. 140 483 Ibid., p. 151 484 Ibid., p. 143

Parte II – 7. Depois do serialismo

303

espaço; vinculação histórica485. As estruturas da tonalidade eram dadas previamente à

sua execução e forneciam pontos de apoio nítidos à memória auditiva. A previsibilidade

da recorrência temática, das articulações cadenciais, das expectativas de resolução de

dissonâncias, garantiam a homogeneidade e a continuidade discursiva no tempo. O

princípio básico de polarização da tônica era, enfim, capaz de sustentar a arquitetura

simétrica no tonalismo e de constituir integralmente seu idioma hierarquizante.

Ligeti observa que os princípios tradicionais de forma não perderam totalmente

sua validade na música contemporânea. A validade, contudo, mudou de natureza.

Assim, apresenta quatro particularidades subordinadas a essa mudança486: 1) não há

mais esquemas formais pré-estabelecidos; 2) a articulação rítmica desliga-se de

qualquer base métrica ou pulsação regular; 3) não há mais sintaxe geralmente válida; 4)

a função dos elementos musicais, que marcava as fases dentro da forma tradicional,

agora é relativa e acompanha a uma sintaxe individualizada. Sem a consideração dessas

particularidades, prossegue Ligeti, corre-se o risco de não se encontrar qualquer forma

na música contemporânea. Pois o conceito tradicional de forma envolvia

necessariamente o caráter vetorial da função dos elementos musicais, a fim de situar o

ouvinte no transcurso temporal da obra. Na medida em que a sintaxe é então

individualizada na obra, a função dos elementos se desvanece, e o conceito tradicional

de forma não mais captura a mudança.

Todavia, a validade da forma na música contemporânea estava assegurada não

apenas pela nova relação das partes com o todo, pela nova analogia com espaço, mas

principalmente pelo ancoramento histórico do material. Por um lado, notava-se a

propensão à estaticidade musical. Por outro, apesar da proliferação de possibilidades

formais, acumulava-se na recente história da nova música uma certa reserva de modelos

composicionais:

“saltos aperiódicos por grandes intervalos seguidos de uma parada repentina e de retomada de movimentos serrilhados irregulares; campos sonoros imóveis cuja arquitetura é geralmente de tipo cluster; objetos sonoros quase isolados no espaço da forma; freqüência de certas combinações multicolores, como

485 Ibid., p. 144 486 Ibid., p. 145–6

Parte II – 7. Depois do serialismo

304

pequenas figuras rítmicas rápidas e leves de percussão encobertas por sonoridades de vibrafones e de sinos”487.

O reconhecimento desses padrões revelaria a própria tendência dos materiais a

se fixar historicamente. Nesse sentido, Ligeti declara de maneira brilhante o paradoxo

da forma na música contemporânea: “estes modelos já estão tão enraizados nos hábitos

(composicionais) que acabaram se transformando em práticas tão comuns quanto um

dia foi a cadência perfeita”488. Ou seja, apesar da multiplicidade de sintaxes, o maior

risco da música contemporânea não seria a suposta ausência de formas universais, mas

sim um estatelamento em modelos semelhantes, em esterieótipos que obscurecem a

gama de possibilidades formais, constituindo um novo academicismo. A crítica de

Ligeti, direcionada aos procedimentos seriais e aleatórios, mostra o agravamento da

pobreza desses modelos, pois as formas resultantes, em que pesem as diferenças

metódicas e intencionais dos procedimentos, permanecem praticamente idênticas. As

“músicas no papel”, prosseguia Ligeti, perdiam sua razão no momento em que o

resultado musical se separa do trabalho composicional como se fosse um subproduto;

assim, declarava Ligeti no simpósio de 1965,

“se em 1954 a crítica de Adorno (em Das Altern) só era válida com restrições, ela se tornou acertada em seu prognóstico para a evolução dos anos seguintes, para a situação em torno de 1960” 489

Ligeti sugeria que, para evitar esses clichês (a não-intencionalidade da música

aleatória como caso extremo do clichê), o compositor deveria dispor de alguma

concepção de esquema, pelo menos como ponto de partida. Enfatizava que, sem a

primazia de uma visão global de forma, de uma pré-organização da totalidade, seria

impossível evitar a “esclerose” de clichês não intencionados que consolidavam um

maçante academicismo490.

487 Ibid., p. 147 488 ibidem 489 LIGETI, La forme dans la musique nouvelle, p. 149 490 Ibid., p. 152

Parte II – 7. Depois do serialismo

305

Retomando o problema da repetição em Beethoven e a linearidade

A conferência de Ligeti alinhava-se em seu conteúdo à de Adorno, que abriu o

simpósio de 1965 (publicada como Forma na nova música, GS 16, 607-627). Essa

intervenção de Adorno no simpósio – que rendeu o último texto publicado sobre a nova

música – envolvia aspectos de seu conceito de tempo musical, como espacialização,

irreversibilidade e articulação. Ela é de especial interesse para nossa tese, pois

demonstra de que maneira Adorno preservou, em um contexto pós-serial, seu ideal de

Entwicklung – trabalhado pelo menos desde os anos 1940 e implícito na crítica à

“dissociação do tempo”. Livrando esse ideal de sua conotação motívico-temática

originária, Adorno definia a linearidade como atributo essencial do conceito estético de

forma. Assim como Critérios da NM, essa conferência complementa Vers une musique

informelle. Adorno não avança especificamente, como fez Ligeti, sobre o problema da

forma móvel ou da forma-momento, nem sobre o repertório de modelos estáticos e

“acadêmicos” nas práticas seriais. No entanto, embora a versão impressa da conferência

tenha sido dedicada a Pierre Boulez, o conteúdo explicitava a convergência teórica entre

Adorno e Ligeti.

Dois tópicos em Forma na nova música merecem ser destacados: a breve

geneaolgia da categoria de “repetição” na música autônoma, em particular na forma

sonata, “forma decisiva dos tempos modernos” que sintetizaria historicamente a tensão

entre particular e universal (Form in der neuen musik, GS 16, 608); e a tendência

contemporânea à desintegração como fruto da integração total, processo equivalente ao

do estilo tardio no qual se manifestam as antinomias sociais. Vejamos com Adorno

repõe a questão da repetição. Vimos que a música autônoma, em seu ideal de

irreversibilidade, anseia liberar-se de toda “repetição”. Sua utopia localiza-se em uma

temporalidade irreversível, não repetitiva, o que já estaria indiciado na “incoveniência”

da seção de “reexposição” da forma tal como Beethoven a enfrentava (o A’ no esquema

da sonata A-B-A’). Afinal, a reexposição seria um dado arquitetônico, simetricamente

espacial, profundamente alienado ao tempo. Era inadequada à “música

constitutivamente temporal” (“die konstitutiv zeitliche Musik”), “rigorosamente

temática” de Beethoven, “o crítico subjetivamente dinâmico de toda ontologia musical”

(GS 16, 612). Assim, como vimos na Parte I da tese, a reexposição em Beethoven

Parte II – 7. Depois do serialismo

306

sempre careceu de certa legitimação. Na medida em que a lógica composicional, levada

às últimas consequencias, anseia liberar-se da reexposição, ela sempre representou um

tour de force para Beethoven (GS 16, 612). Para Adorno, as composições da Segunda

Escola de Viena tensionavam em expressão essa inconveniência em seu fluxo articulado

de tempo. Esse conflito acabou comprometendo, nas primeiras obras atonais, não

apenas a ideia de forma e simetria, mas também elementos básicos como tema – daí o

abandono simultâneo tanto dos grandes esquemas quanto do tematismo entre 1907 e

1913, período da atonalidade livre.

Ocorre que a dialética da forma musical autônoma, em seu anseio de eliminar

toda “repetição”, não prescinde desse elemento oposto: para que a forma tenha sentido,

ela requer o vínculo a algum elemento de repetição, à recorrência de um igual, sem o

que degenera na monotonia da pura diferença. A contradição está no fato de que mesmo

a irreversibilidade à qual a música aspira só pode ser compreendida através do retorno

de um igual (an der Widerkehr von Gleichem), ou seja, contra si mesma: daí o “caráter

duplo do tempo” na definição de Adorno (Form in der neuen Musik, GS 16, 619). Toda

forma exige uma espécie de “reexposição”, de simetria, em suma, de linearidade. O

serialismo, em sua aversão estrutural a simetrias, tropeçaria nessa contradição,

rompendo com a “dialética do sucessivo” que preside a evolução da forma autônoma.

Adorno acredita que mesmo as composições mais radicais e “atomísticas” de Webern

não dispensavam características semelhantes às da sonata; os “nós” (Knoten) em

Webern seriam “desenvolvimentos mínimos, cujas resoluções lembram algo como uma

reexposição, embora nenhum elemento motívico-temático seja repetido” (GS 16, 615); a

antiga função de reexposição seria aí substituída por recursos como a recorrência de

timbres semelhantes.

Adorno toma cuidado para não deduzir dessa dualidade uma teoria ontológica

das formas, com categorias inavariantes. Lembremos a passagem de TE, que

comentamos no final da Parte I da tese, na qual o tempo musical é qualificado como

momento refletido após a “ordem convencional do tempo” ter então se revelado fictícia.

Essa estaticidade refletida, estaticidade de segunda ordem que “encapsularia” a

dinâmica do tempo, foi mencionada em TE e exemplificada por Zeitmaße, de

Stockhausen:

Parte II – 7. Depois do serialismo

307

“A dinâmica, liberada de toda referência estática e não mais discernível como tal por contraste a algo fixo, inverte-se em algo que paira em suspensão (Schwebende), que não progride. A Zeitmaße de Stockhausen lembra, em seu aspecto fenomênico, uma cadência elaborada, uma dominante totalmente composta e, no entanto, estática”

(TE, GS 7, 239)

Zeitmaße revela-se estática, pois o momento de resolução da tensão – o elemento

igual contrastante – foi suprimido. A comparação da obra como uma função dominante

destituída de uma “tônica” correspondente pretendia ilustrar a pura indiferença temporal

que decorre de totalidades parciais e fragmentárias, sem simetrias. Ou seja, “a relação

entre semelhança e diferença é categoria formal indispensável” (Form in der neuen

Musik, GS 16, 615) e “a passagem do tempo deve ser articulada”. Por outro lado,

Adorno também observava que o enunciado não quer dizer nada se não se levar em

conta a configuração específica da obra. Percebemos aí mais uma remissão à “teoria

material das formas”, apresentada na monografia sobre Mahler, retomada em Vers une

musique: certas categorias e princípios adquirem universalidade e são indispensáveis

somente no contato material com as obras, não são dedutíveis a priori. Nesse sentido,

mesmo a sucessividade que caracteriza a construção imanente do tempo musical só se

tornaria compreensível concretamente:

“a sucessão de uma parte B a uma parte A deveria revelar-se de modo imanente, não de modo tectônico, espacial. A necessidade desta e de nenhuma outra sequencia temporal (Zeitfolge), necessidade que antes os esquemas bem ou mal prescreviam, deveria fundar-se na composição como tal. Este é o problema da forma em sentido estrito. (...) Isso exige categorias que atualmente estão desaparecendo, como a de linha e de linearidade (Linienzug)”

(Form in der neuen Musik, GS 16, 620)

Devemos reconhecer a fragilidade da prudência argumentativa de Adorno de

evitar qualquer interferência ontológica sobre afirmações que, de fato, pressupõem

certas “invariantes” estruturais. Pois, sem tais invariantes, não são compreensíveis as

afirmações “a passagem do tempo deve ser articulada”, “a sucessão da parte B a uma

parte A deveria revelar-se de modo imanente”. Impossível não observar nesse “dever

ser” um resíduo metafísico, sobretudo em um momento histórico no qual os conceitos

Parte II – 7. Depois do serialismo

308

de forma móvel, forma aberta e forma-momento questionavam precisamente a

necessidade de categorias como linearidade para a construção estética do tempo

musical. Ressaltemos novamente uma proposição dessa conferência no simpósio de

1965, que em nada difere do que havia sido apresentado em Filosofia da nova música: a

“música constitutivamente temporal” é aquela “rigorosamente temática” e

sucessivamente articulada.

Funktion der Farbe in der Nm; Tempo na nova musica

Borio observa que, “nos anos 1960, Adorno estava convencido de que o

problema do tempo era a questão decisiva da situação musical”491. Como tentamos

mostrar ao longo da tese, esse problema estava no centro da reflexão adorniana pelo

menos desde os anos 1940, prolongando-se em Das Altern e Vers une musique. De todo

modo, a observação de Borio chama a atenção para um fato relevante: a questão do

tempo musical torna-se, de fato, ainda mais crítica para Adorno no contexto pós-serial,

sobretudo a partir de Vers une musique (1961). Isso acabou exigindo de Adorno a

retomada dos tópicos da espacialização e da pseudomorfose (o que ocorreria tanto em

Stravinsky, um retrato dialético, 1962, retomando a segunda parte de FNM, quanto no

segundo ensaio sobre as relações entre música e pintura de 1965, retomando aquele de

1950). Sob essa perspectiva, ficam mais claras as razões pelas quais o conceito de

imbricação entre os meios artísticos (na conferência A arte e as artes, 1966) e a

emancipação da cor na composição por “superfícies sonoras”

(Klangflachenkomposition), adquirem importância para Adorno nesse período. O novo

campo de reflexão advém precisamente das discussões com Ligeti e do contato com

obras pós-seriais, como Atmosphères (1961). Tais discussões ensejariam o conceito de

convergência dialética entre os meios e a consequente valorização do timbre como

elemento de coesão e estruturação de simetrias formais para além do tematismo

tradicional.

491 BORIO, Die positionen Adornos zur musikalischen Avantgarde zwischen 1954 und 1966, p. 167

Parte II – 7. Depois do serialismo

309

Antes de encerrarmos o capítulo e a segunda parte da tese, cabe fazermos um

breve comentário sobre as duas últimas participações de Adorno em Darmstadt, em

1966. Adorno proferiu três conferências sob o título A função da cor na música492,

sendo que precisamente Atmosphères, de Ligeti, era indicada como o modelo mais

consequente de uma Farbekomposition493. As conferências não se limitavam, contudo, à

nova música. Ambicionavam fazer uma história do uso funcional da cor sonora para

fins compositivos desde Bach até Ligeti, passando pela orquestração em Berlioz,

Debussy, Mahler, Strauss e a segunda escola de Viena. Não chega a surpreender que,

mesmo no âmbito de uma genealogia sobre a Farbekomposition, Adorno ainda concedia

primazia ao trabalho motívico-temático. A ideia central: embora não exista timbre sem

altura, nem altura sem timbre, o timbre pertence mais ao acidental da música, ao passo

que o campo das alturas mais ao essencial494. A instrumentação (que não se confunde

com a organologia, o estudo sistemático dos instrumentos) sempre dependeu de

relações motívicas entre os sons e não dos sons individuais como tais; a polifonia

sempre foi pré-condição para uma instrumentação produtiva. Segundo Adorno, o

timbre, não sendo um absoluto, sempre esteve subordinado à construção motívica,

desempenhando a função de esclarecer acontecimentos motívico-temáticos, de torná-los

audíveis através da diferenciação sonora. Quando essa matéria motívico-temática se

desintegra com o advento do pensamento atonal, essa função histórica do timbre

também se perde; assim, para Adorno, era preciso desenvolver “equivalentes” à antiga

função, o que por sua vez envolvia categorias semelhantes às do pensamento motívico.

Por fim, também em 1966, Adorno participou do grupo em Darmstadt que

preparia um simpósio denominado “O tempo na nova música”. O simpósio não

ocorreu, mas a discussão, realizada em conjunto com Ligeti, Rudolf Stephan, Herbert

Brun e Wolf Rosenberg, foi transcrita e publicada495. No início, Adorno deixava claro

que a ideia para o simpósio se deu pela “afinidade extraordinária” entre sua conferência

492 Publicadas apenas recentemente (2014) em ADORNO, Kranichsteiner Vorlesungen, p. 447–540 493 Ibid., p. 454 494 Ibid., p. 528 495 A transcrição da mesa-redonda preparatória encontra-se nos Darmstadt-Dokumente, editado por Metzger (METZGER; RIEHN (Orgs.), Darmstadt-Dokumente: Internationale Ferienkurse für neue Musik. I, München: Edition Text + Kritik, 1999, p. 313–30)

Parte II – 7. Depois do serialismo

310

sobre “Forma na nova música” e a de Ligeti, proferidas no ano anterior496. Essa

afinidade era a de um “forte mal-estar” (starkes Unbehagen) quanto à “má

espacialização”, à “teimosa pseudomorfose em espaço” à qual ainda cediam produções

recentes na nova música497: obras nas quais só havia campos de tensão, não mais

campos de repouso. Adorno mencionava o “envelhecimento” da nova música,

preconizado mais de dez anos antes. A perda de “função vetorial” (termo que Adorno

tomava de Ligeti) sinalizava a indiferença quanto à separação, de caráter bergsoniano,

entre o fenômeno objetivamente físico do som e seu campos perceptivos. De modo

geral, a intervenção de Adorno na discussão não trazia nada de novo em relação ao que

havia exposto nos anos anteriores. O que efetivamente surpreende, à primeira vista, era

a persistência de Adorno quanto à necessidade de se recuperar “estruturas semelhantes a

motivos” (motivähnliche Gebilde): “considero infinitamente difícil pensar a música em

geral, renunciando àquilo que se denomina, em sentido mais abrangente, de

‘pensamento motívico’”498. Devemos recordar, no entanto, que, conforme Vers une

musique, o alcance do conceito especulativo de tematismo em Adorno ia além do mero

pensamento motívico-temático. No interior desse conceito, a expressão “estruturas

semelhantes a motivos” (ähnliche) ganhar outros contornos. Para Adorno, em 1966, a

questão não mais se localizava na oposição entre serialismo e indeterminação, mas

simplesmente na ausência regressiva de direcionalidade, fosse ela ocasionada pela

regulação ou programação abstrata499, pela capitulação à técnica sem preocupação com

a mediação subjetiva dos eventos, fosse ela provocada pela aleatoriedade absoluta.

A ambiguidade que Adorno formulava era extrema: por um lado, reconhece que

o desenvolvimento objetivo do material (as forças produtivas técnicas) sobrepujaram as

capacidades de reação dos compositores (forças subjetivas de produção). A tensão entre

esses polos era visível em Schoenberg, para quem a “dimensão artesanal” da

composição não era obsoleta e garantia a “homeostase” entre tendências objetivas e

496 ADORNO; LIGETI; ET AL., Internes Arbeitsgespräch (1966) - Zur Vorbereitung eines Kongresses mit dem Themenschwerpunkt “Zeit in der Neuen Musik”. In: Darmstadt-Dokumente: Internationale Ferienkurse für neue Musik. I, München: Edition Text + Kritik, 1999, p. 313. Ligeti respondeu que não considerava a afinidade tão surpreendente, pois dizia ter sido diretamente influenciado por vários escritos de Adorno sobre a questão da forma. 497 Ibid., p. 314 498 Ibid., p. 319 499 Ibid., p. 324

Parte II – 7. Depois do serialismo

311

força subjetiva. Com as novas técnicas, porém, constatava-se uma enorme desproporção

entre a técnica e a composição, o que praticamente inviabilizava as capacidades

subjetivas de seguir as tendências objetivas do material. Por outro lado, Adorno insistia

que, para sair dessa situação da “falta de tensão” (Entlastung) e superar o bloqueio da

liberdade composicional, era indispensável a recuperação da ideia de sucessividade,

direcionalidade e processualidade imanente. Pois essa seria, enfim, a “essência

dialética” da música e de seu protesto contra a irracionalidade mítica na sociedade

administrada. Uma situação em sursis.

Conclusão

312

CONCLUSÃO

Uma coisa e outra, provavelmente, eram verdade: ao seu olhar retrospectivo, o tempo ali passado afigurava-se tanto excessivamente longo como excessivamente breve. Um único aspecto desse tempo, entretanto escapava-lhe sempre: a sua duração real – admitindo-se ser o tempo um fenômeno natural a ser lícito relacionar com ele o conceito da realidade

THOMAS MANN, A montanha mágica

Os escritos que examinamos nas duas partes da tese dão subsídios para que se

constate não apenas a existência de um conceito preciso de tempo musical em Adorno,

como também sua fundamentação em uma espécie de “metafísica da antifonia

motívica”. O ideal de Entwicklung ganha plena visibilidade nos fragmentos sobre

Beethoven, mas sobretudo na crítica semelhante à “compulsão à repetição” em

Stravinsky e à espacialização no serialismo. Sem esse aporte metafísico, sem elementos

transcendentais, a crítica imanente gira em falso. Sem tais elementos, descrições como

“confrontação com o tempo”, kairós, aparição tornam-se incompreensíveis. O truísmo

adorniano de que irreversibilidade, sucessividade, processualidade, seriam fatores

constitutivos da essência dialética da música perde sua obviedade em função da

insistência com que esses termos são evocados. Eles revelam ex negativo a presença e a

atuação crítica do conceito materialista de tempo nos ensaios sobre os quais nosso

estudo se deteve. Não foram poucos comentadores que viram nessa “metafísica da

antifonia motívica” um deslize transcendental do materialismo adorniano. O medium da

música deveria, por definição, compactuar com o sucessivo. Ela envolve, segundo

Klein, a passagem subreptícia da “simples constatação da pura fisicalidade do som, de

seu meio puro no devir, para um compromisso com a organização de uma historicidade

interna da composição”. Seria, portanto, uma concepção ideológica ao universalizar a

perspectiva da Entwicklung como equivalente ao tempo musical e de dissimular tal

universalização.

Todavia, o influxo metafísico no conceito não corresponde à totalidade de seu

campo de significação. O conceito de tempo em Adorno solicita uma leitura

temporalizante, na medida em que possui, como todo conceito dialético, um núcleo

Conclusão

313

histórico de verdade. Procuramos defender que, embora Adorno retire da antifonia

motívica o substrato essencial do conceito, também prevê modalidades distintas de

configuração temporal: as reconstruções do épico em Beethoven e Mahler seriam casos

de negação e suspensão dialética do conceito. A negação determinada do ideal de

Entwicklung não implica, portanto, inconsistência da forma musical. No anos 1960,

Adorno mostrava que uma ruptura com a própria essência da música, a sucessividade,

era condizente com o estágio técnico do material e com seu princípio imanente de

desenvolvimento. No final do capítulo 3 da tese, vimos que a imbricação das artes, a

fusão dialética que Adorno toma como objeto a partir de 1966, sinalizava que a

espacialização do tempo constituiria um momento dialético refletido do próprio

conceito especulativo de tempo – afirmação que é explicitamente retomada em Teoria

estética. O mesmo ocorreria com o conceito especulativo de tematismo, que

descrevemos no capítulo 7 a partir da análise de Vers une musique informelle. É preciso

avaliar, portanto, o lugar que o momento transcendental possui na crítica imanente de

Adorno. Talvez os indícios desse lugar estejam na monografia de Mahler: “a

impossibilidade de toda metafísica se torna a última metafísica” – asserção que, de

resto, converge com a frase que encerra a Dialética Negativa, um pensamento “solidário

com a metafísica no instante de sua queda”. A metáfisica que resguarda a ideia de

reconciliação é a não sistemática.

Tal constatação não elimina o reconhecimento das ambivalências e tensões

internas do texto adorniano. Constantemente, lemos em seus ensaios, por exemplo, que

a possibilidade de emancipação da música de sua stasis e sistematização estaria

bloqueada no contexto da sociedade totalmente administrada. O estágio mais avançado

no pensamento serial apenas interiorizava, em sua propensão à neutralidade científica, o

impulso de racionalização fundamentado no princípio de troca que atua sobre as

diversas esferas da vida social. A tal ponto que o próprio direito de existência da

música, seu lado “dionisíaco” e sua referência à alteridade mítica contra a qual deveria

se opor, encontrava-se em declínio. Por outro lado, Adorno também insistia que a nova

música deveria preservar sua força esclarecida de protesto, seu potencial de dissenso

contra os padrões de reificação social. A exortação nos anos 1960 por uma música

informal dava a entender que a força mimético-expressiva não havia se esgotado.

Conclusão

314

Justapostas, as declarações se contradizem. Sob a perspectiva da dialética, essa

contradição é o índice da verdade das declarações.

Nesse sentido, ao contrário da opinião dos comentadores que mencionamos,

insistimos não haver revisionismos de qualquer natureza na crítica de Adorno a

Stravinsky ou ao pensamento serial. O ensaio sobre música informal traz uma tentativa

espantosa de compreender o serialismo em um escopo mais amplo do pensamento

temático para, então, apontar as insufiências formais do princípio de série. Tentamos

descrever a operação retórica que Adorno empreende nos ensaios tardios para manter a

consistência de seus primeiros trabalhos em Frankfurt. Transformações conceituais,

modulações inerentes ao processo dialético, não significam revisionismos. É possível

hoje consentir com a observação, como a de Metzger em 1957, de que Adorno talvez

tivesse uma visão caricata de serialismo, baseada em uma projeção infeliz feita a partir

do incidente com Goeyvaerts em 1951, que remontava sua antiga indisposição com a

técnica dodecafônica. Com distanciamento, podemos dizer que sua descrição do

serialismo como sistema totalizante não correspondia ou não estava a altura da potência

expressiva de Le marteau sans maitre, de Boulez. Ou ainda, que uma antropologia de

corte idealista atua em sua crítica à morfologia do tempo de Stockhausen. Essas

observações sobre suas insuficiências, todavia, apenas confirmam que não há um

“jovem Adorno” e um “tardio”, mas uma estrita continuidade teórica, com todas as

coerências e equívocos que isso acarreta.

Um excurso: defender Adorno contra seus defensores – música informal, conceito pós-moderno?

Para concluir, propomos um último excurso sobre a atualidade do conceito de

música informal. À primeira vista, não seria tão problemática a afirmação de que o

conceito de música informal “inclui uma revolta contra as irreversíveis necessidades do

tempo estético, mudança e progresso modernistas”, termos de Fredric Jameson em O

marxismo tardio500. A crítica aos excessos do serialismo – seja na assimilação estrutural

500 JAMESON, O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da dialética, p. 318

Conclusão

315

do tempo e do acaso em Boulez, seja na ontologia baseada na οὐσία de um denominador

de fase-duração em Stockhausen – induzia à heteronomia cujo resultado pouco se

distinguia, no entendimento de Adorno, da replicação da irracionalidade social na

música indeterminada. Contribui para a suposição de uma “revolta contra as

irreversíveis necessidades do progresso modernista” o apelo à retomada de gestos

composicionais de Schoenberg na atonalidade livre; um período que teria sido

interrompido mais por fatores sociológicos e ideológicos do que propriamente musicais.

Contudo, se uma música da liberdade encontraria seu paradigma em obras do

passado, não deveríamos disso deduzir o enaltecimento neutro de estilos antigos:

“música informal não é neutralismo cultural, mas crítica do passado” (GS 16, 525).

Referendar o passadismo como solução para impasses do presente seria não perceber a

dinâmica concreta da história. Para Adorno, a evolução da técnica não se conformava

necessariamente com o conceito dialético de progresso musical. No entanto, a música

informal não prescreve o abandono impaciente da autonomia modernista em direção ao

“informal” pós-moderno. Nesse sentido, é no mínimo suspeita a redução de um conceito

tão central para a reflexão adorniana à condição de “excessivamente pós-moderno” – a

exemplo das leituras de Jameson e de comentadores como Robert Kaufman501. Embora

Adorno tenha, de fato, questionado o próprio direito de existência da arte em um mundo

colonizado pela exterioridade do valor de troca e pelo desbotamento da expressividade,

a categoria de autonomia não é abandonada. A recusa da falsa totalidade no serialismo,

da “má universalidade” (schlechte Allgemeinheit) de formas ontologizadas do passado,

significava a reposição de um ideal utópico associado ao modernismo. Não está em

questão o “relaxamento da lógica da história”, como sugere Jameson, pois não está em

questão demolir os alicerces materialistas da teoria estética. Embora reconhecesse a

situação aporética da obra de arte, Adorno salientava que, ao evitar as dificuldades

técnicas da análise imanente das obras musicais, da sua estrutura micrológica,

limitando-se apenas às esferas da distribuição e do consumo, o crítico sancionaria de 501 Cf. KAUFMAN, Red Kant, or the Persistence of the Third “Critique” in Adorno and Jameson. In: Critical Inquiry, v. 26, n. 4, 2000, p. 720: “Vers une musique informelle considers what was then being called musique informelle and has since been deemed the New Music's entry into postmodernism; Adorno discusses John Cage, Olivier Messiaen, Herbert Eimert, and others, particularly in relation to second Viennese school modernism. (...) As might be predicted, Vers une musique informelle is filled with reflections on the constructionist heritage, but also (as Jameson rightly notes) with a perhaps surprising sympathy for the postmodernists' retreat from late constructivist hyperformalism.”

Conclusão

316

antemão “a precedência da dimensão mercadológica da música” que justamente deveria

desmistificar502. Elimina a primazia do objeto. A constatação do pós-moderno como

momento de completa espacialização da experiência do tempo talvez se solidarizasse à

crítica adorniana da estaticidade musical. No entanto, o que Adorno atribui à

estaticidade serial seria uma tendência de progressiva racionalização do material e não a

disposição sincrônica de formas e estilos do passado503. Com o conceito crítico de

música informal em 1961, talvez esteja em curso a reafirmação do modernismo musical.

Jameson descarta o conceito de indústria cultural, na medida em que teria

perdido validade crítica no estágio pós-industrial de financeirização do capital, a partir

dos anos 1970. A expansão da cultura passaria a agenciar setores primordiais da

economia, mediante novas formas de interrelação institucional entre os media e o

progresso tecnológico. Esse estágio modificaria a própria esfera da circulação dos

objetos culturais. Assim, a absorção integral dos produtos de entretenimento e das obras

de arte, mesmo a mais avançada e radical, pela forma-mercadoria demandaria o

tratamento dos fenômenos culturais em termos de economia política. Em outras

palavras, a autonomia que guiava a modernidade estética fracassou como projeto

emancipatório. Ao descartar o conceito de indústria cultural, também se dissolve o de

modernismo ou vanguarda. Consequentemente, Jameson passa a apostar, contra

Adorno, no impulso utópico coletivo da cultura de massas504.

Um decreto consistente, caso Adorno não ressaltasse a ambiguidade subjacente à

obra de arte autêntica: ela é tanto campo de autonomia das formas quanto fato social

heterônomo, inscrição no vórtice de condições materiais e históricas específicas (o que

implica, de saída, rejeitar a ideia de arte pela arte, de autonomia cega e “religião da

arte”). Enquanto permanecer a expressão sismográfica das distorções sociais e

“memória do sofrimento acumulado”, a vanguarda resiste ao tempo porque “em sua

expressão admite-se o momento de negatividade radical em comparação aos 502 Ideias para Sociologia da Música, p. 263 503 “A relação mais crucial da música com o pós-moderno certamente passa pelo próprio espaço”; a MTV como modelo da ‘espacialização da música’. Cf. JAMESON, Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio, p.304 504 PIZER, Jameson's Adorno, or, the Persistence of the Utopian, p. 142-3. E também p. 148: “Jameson characterizes Adorno's modernism as somewhat dated, particularly when he considers how even the most powerfully oppositional works associated with this movement have been coopted in the postmodern world to further the process of absolute commodification”

Conclusão

317

procedimentos tradicionais”505. Tenderíamos a desmistificar ainda com maior acuidade

o ansioso fim da modernidade, cuja destinação utópica seria datada para Jameson em

razão da emergência do pós-modernismo, se recordássemos o aforismo de Minima

Moralia a esse respeito:

“(…) Modernidade é uma categoria qualitativa, de modo algum cronológica. Por menos que aceite a formulação abstrata, ainda necessita da renúncia à superficialidade convencional, à aparência de harmonia, à ordem fortalecida pela mera figuração (…)”

(Minima Moralia, aforismo 140, “Culminação dos tempos”, Trad. Gabriel Cohn) 506

Não deveríamos inferir daí um salto da noção de modernidade para fora da

história. Mas ver na modernidade uma conquista histórica da qual todo objeto que aceda

à condição de arte (ainda hoje, pelo menos) não deveria abrir mão. Teria o modernismo,

afinal, como “mito voltado contra si mesmo”, como “história do esforço pela

maioridade”507 (seguindo a referência kantiana), história sedimentada da cisão moderna

da subjetividade, realmente atingido seu estágio final de realização no torvelinho

cultural do capitalismo financeirizado e transnacional, como propõem as descrições do

pós-moderno em Jameson? Ainda que se cogite a possibilidade de a estética modernista

se converter em mero necrológio da arte508, o exemplo da música informal comprova

que ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Compositores que se reconhecem influenciados pelo ensaio sobre a música

informal apontam para a fecundidade das ideias seminais do conceito. Entender a

escansão pós-serial da temporalidade na música espectral dos anos 1970, a reativação

crítica do tematismo em Boulez nos anos 1980 ou o trabalho de camadas polirrítmicas e

de microtons em Ferneyhough – julgar tais obras sob o olhar de epifenômenos de uma

505 JIMENEZ, Theodor W. Adorno: art, idéologie et théorie de l’art, p. 177 506 GS 4, 249: “(…) Modernität ist eine qualitative Kategorie, keine chronologische. So wenig sie auf die abstrakte Form sich bringen läßt, so notwendig ist ihr die Absage an den konventionellen Oberflächenzusammenhang, an den Schein von Harmonie, an die vom bloßen Abbild bekräftigte Ordnung (…)” 507 TE 44, GS 7, 41: “O moderno é um mito voltado contra si mesmo; sua intemporalidade torna-se catástrofe do instante que rompe a continuidade temporal”. E também TE 74, GS 7, 70-1: “Die Geschichte der Moderne ist eine der Anstrengung zur Mündigkeit” 508 TE, GS 7, 13. “Ästhetik heute hat keine Macht darüber, ob sie zum Nekrolog für die Kunst wird”

Conclusão

318

estética modernista implica a desistência de ver na arte contemporânea mais do que

imagem paródica e espacializada de fórmulas gastas. Analisemos a questão sob a

perspectiva de dois compositores contemporâneos que procuram, por vias opostas,

perpetuar o conceito modernista adorniano.

Vimos que a história do serialismo não convém a narrativas unívocas. A

vanguarda dos anos 1950 e 60 esteve marcada por sobressaltos e inconsistências, que

resultavam da ebulição constante de novas técnicas. Também a história da música dita

pós-serial, com sua complexa rede de relações, inibe uma leitura linear. O que se sabe é

que o ano de 1968, além de ter ramificado novas formas de subjetivação política com as

aspirações de Maio, marcou o fim de uma era de experimentações baseadas na força de

lei do pensamento serial e na repulsa às formas musicais tradicionais. Dito isso, e

mesmo sabendo dos riscos da má interpretação, arrisquemos um olhar final e de

sobrevôo na música de vanguarda sendo produzida, a partir de dois exemplos alemães

atuais da música pós-serial. Duas vertentes contraditórias entre si, que procuram a

retomada de formas do passado e a antiga tensão entre regra e emancipação da regra: as

obras de Helmut Lachenmann e Wolfgang Rihm.

Lachenmann, que foi assistente de Luigi Nono, afastou-se completamente das

imposições do serialismo. Sua poética nasce da exploração acústica dos instrumentos da

orquestra tradicional que, segundo o compositor, foram “recalcados” como

inadmissíveis na prática interpretativa. Ele deseja integrar à composição os sons

“secundários” que os intérpretes necessariamente produzem ao tocar um instrumento,

como os que resultam da pressão do arco e do escorregar dos dedos sobre as cordas, a

respiração, os sussuros nos instrumentos de sopro, as reverberações não intencionadas –

uma poética que, segundo o compositor, constituiria uma “música concreta

instrumental”509 e que foi rechaçada pelos padrões da cultura burguesa. É assim que, em

peças como Pression (1970) para violoncelista solo e Guero (1970) para piano,

desvenda-se um espaço sônico mais amplo dos instrumentos, indo além de parâmetros

como altura e duração e transformando aquilo que tradicionalmente denominamos 509 “Lachenmann derived the notion of ‘musique concrète instrumentale’ from Pierre Schaeffer’s concept, originating in the 1940s, of ‘musique concrète’ – music that deploys recorded sounds as opposed to electronically generated sounds” (WILLIAMS, Music in Germany since 1968, New York: Cambridge University Press, 2013, p. 76)

Conclusão

319

“ruídos” em objetos sonoros de composição. Lachenmann cria novas formas musicais

cuja inteligibilidade se dá na percepção das condições físicas, das energias e resistências

mecânicas envolvidas no próprio gesto de produção do som510. Em Accanto (1976-77),

propõe um conceito de “desfamiliarização” da música tradicional que traz implicações

excêntricas à compreensão do conceito de forma. Nessa peça escrita para clarinete e

orquestra, surgem alusões – às vezes subliminares, às vezes escancaradas – ao Concerto

para clarinete em lá maior, de Mozart. As sonoridades, porém, estão de tal modo

constituídas e se encontram a tal ponto deslocadas de suas funções usuais, que as

referências ao concerto de Mozart assumem um aspecto incômodo na peça, soando

como se fossem ruídos. Em uma inversão inesperada, tais referências abandonam sua

feição de cânone ocidental e se apresentam explicitamente como elementos de exceção

na obra. Parecem perder aquela familiaridade decorrente de sua propagação enjoativa

pela indústria cultural – diga-se de passagem que se trata de um procedimento bastante

diverso da fusão arbitrária ou paródica da montagem e das citações musicais.

Assim como Lachenmann, Wolfgang Rihm também frequentou os cursos de

Darmstadt e foi aluno Nono e Stockhausen. Considerado um dos representantes do

“neo-romantismo” ou “neo-expressionismo” contemporâneo, Rihm reintroduz modelos

de uma retórica expressiva tradicional que tinham sido proscritos pela cartilha serial nos

anos 1950. Sua expressividade vincula-se confessadamente a Mahler e à atonalidade

livre dos anos 1910. Mas tensiona a preexistência dessa retórica às instabilidades

formais que sempre estiveram em sua origem e que foram, por assim dizer, sublimadas

pela tradição ulterior. Não por acaso, Rihm é um dos compositores que diz textualmente

responder ao programa da música informal. Nesse sentido, ambiciona dissolver

categorias da música tradicional, reinventando contudo o escopo expressivo dessas

mesmas categorias. Não sem algum quixotismo presunçoso, Rihm declarou certa vez

sua admiração por Vers une musique informelle: “Leio com bastante frequência esse

texto e desde o início tive a sensação de ser diretamente convocado por ele: parece que

foi direcionado para mim”511. Essa influência torna-se explícita, por exemplo, no título

510 No prefácio da partitura de Pression, podemos ler: “Except for places where pitches are notated in the traditional manner, the notation of this piece does not indicate the sounds, but the player’s actions.” (Ibid., p. 79) 511 Cf. Ibid., p. 159

Conclusão

320

da série de suas peças sinfônicas Vers une symphonie fleuve I-IV (1992-1998). Por um

lado, a ênfase no trabalho timbrístico, de criar continuidades através do contraste de

texturas – procedimento típico da música pós-serial – não impede que Rihm também

dialogue com a tradição do pensamento temático anterior ao serialismo. Incorpora,

assim, células rítimicas previsíveis, figuras melódicas e progressões harmônicas tonais,

ainda que interrompidas ou expostas de maneira nostálgica nas peças. As formas que

utiliza não obedecem a esquemas, são elas mesmas fluídas, mas expõem claramente um

sentido progressivo. Este sentido é dado, em Vers une symphonie fleuve, por dinâmicas

progressivas nas cordas, altamente carregadas de expressão, e ruídos percussivos

massivos que se intensificam no decorrer da peça, como se a obra tivesse seguido uma

ramificação, uma linha específica de desenvolvimento (uma entre outras linhas

possíveis) a partir da matéria sonora inicial. A técnica confere uma extensão temporal e

direcionalidade que não existiam na atonalidade livre, a cujo universo sonoro, no

entanto, Rihm sempre se refere. Por outro lado, definida como work in progress, cada

uma das peças expande o material da precedente, seguindo outras linhas de

desenvolvimento e exigindo eventualmente a alteração retroativa da anterior – o que não

raro faz com que o compositor revise partituras já publicadas, executadas e gravadas.

Assim, embora os modelos expressivos de Vers une symphonie sejam bastante

convencionais, o compositor empenha-se, tanto quanto Lachenmann, em desvendar

graus e possibilidades formais de estranhamento, fornecidos pela exploração de uma

matéria sonora inicial qualquer. Não se trata mais de desestabilizar formas do passado,

como nos gestos expressivos da atonalidade, mas de reagir a uma instabilidade das

formas tomada como inevitável desde o início. Uma instabilidade cuja cristalização

sonora e relação com o material sempre depende de seu momento histórico de produção

e percepção.

*

Dissonância designa o que “soa distante”, a opacidade que compromete a

inteligibilidade da ordem, o potencial de dissenso. Com a emancipação da dissonância

no século 20, foi o caso de se reconhecer que toda estabilidade é ilusória e que aquilo

que soa distante e provoca o dissenso aponta, afinal, para a verdade da música. Uma

verdade sempre por se fazer, avessa a todo conformismo. Diante dos impasses da

Conclusão

321

modernidade filosófica e musical, talvez seja o caso de ainda parafrasear o célebre

início de Dialética Negativa e afirmar que a negatividade essencial da filosofia e da

música, o dissenso real, crítico, do conceito e da dissonância, “que um dia pareceu

ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização”.

Índice de figuras

322

ÍNDICE DE FIGURAS

FIGURA!1!–!ENTRADA!DO!4º!TEMA!NA!SEÇÃO!DE!DESENVOLVIMENTO!(COMP.!284!EM!DIANTE),!1º!MOV.!DA!3ª!SINFONIA!MI!

BEMOL!MAIOR!(EROICA),!BEETHOVEN!......................................................................................................!67!FIGURA!2!–!TENDÊNCIA!À!ESTATICIDADE!E!“REPETIÇÃO”!A!PARTIR!DO!COMPASSO!202'1º!MOV.!DA!6ª!SINFONIA!EM!FÁ!

MAIOR!(PASTORAL),!BEETHOVEN!.............................................................................................................!86!FIGURA!3!–!OCORRÊNCIA!DO!ACORDE!“AUGÚRIOS”!!INÍCIO!DO!2º!MOVIMENTO!SAGRAÇÃO'DA'PRIMAVERA,'STRAVINSKY!..!118!FIGURA!4!–!PARTITURA!INTEIRA!DA!QUINTA!BAGATELA'OP.9,'DE!WEBERN!EXEMPLO!DE!SEU!ESTILO!“AFORÍSTICO”!...........!185!FIGURA!5!–!SÉRIE!DE!BASE!DE!STRUCTURES'1A'(1952)!PARA!2!PIANOS,!DE!PIERRE!BOULEZ!RACIONALIZAÇÃO!DAS!ALTURAS!

(SEQUÊNCIA!EXTRAÍDA!DE!MODO'DE'VALORES'E'INTENSIDADES,'DE!MESSIAEN)!...............................................!198!FIGURA!6!c!TABELAS!DE!DISTRIBUIÇÃO!DE!NOTAS!DE!STRUCTURES'1A!......................................................................!198!FIGURA!7!c!RACIONALIZAÇÃO!DAS!DURAÇÕES!(VALOR!RÍTMICO!DAS!NOTAS!DE!SEMIFUSA!A!SEMÍNIMA!PONTUADA)!...........!198!FIGURA!8!c!RACIONALIZAÇÃO!DA!DINÂMICA/INTENSIDADE!(DE!EXTREMO!PIANISSIMO!A!EXTREMO!FORTISSIMO)!...............!199!FIGURA!9!c!RACIONALIZAÇÃO!DOS!MODOS!DE!ATAQUE/ARTICULAÇÃO/ACENTO!(MARCATO,!STACCATO,!NORMAL,!

STACATISSIMO,!SFORZATO,!TENUTO,!ETC)!.................................................................................................!199!FIGURA!10!–!COMPASSOS!INICIAIS!DE!STRUCTURES'1A'(1952)!PARA!2!PIANOS!PIANO!I!EXECUTA!SÉRIE!ORIGINAL!(VER!SÉRIE!

NA!FIGURA!“RACIONALIZAÇÃO!DAS!ALTURAS”!ACIMA),!!ENQUANTO!PIANO!II!EXECUTA!SÉRIE!INVERTIDA!...............!200!FIGURA!11!–!GRÁFICO!CONTENDO!OS!OITO!ARRANJOS!POSSÍVEIS!DOS!CINCO!FORMANTES'DA!3A

!SONATA!PARA!PIANO,!DE!

BOULEZ!.............................................................................................................................................!216!FIGURA!12!–!OS!4!“DESENVOLVIMENTOS”!(DÉVELOPPANTS)!DO!FORMANTE!TROPE'(II)!DA!3A

!SONATA!PARA!PIANO,!DE!

BOULEZ!.............................................................................................................................................!217!FIGURA!13!–!FINAL!DE!PARENTHÈSE,'DO!FORMANTE!TROPE'(II)!DA!3A

!SONATA,!DE!BOULEZ!(OBS.!TRECHO!ENTRE!PARÊNTESES!

MARCADO!PELO!SINAL!LIBRE)!.................................................................................................................!219!FIGURA!14!–!ESPECTRO!FREQUENCIAL,!DE!0,125!HZ!A!16!HZ,!AS!SETE!“OITAVAS!TEMPORAIS”!DO!CAMPO!DAS!DURAÇÕES!256!FIGURA!15!!ESPECTRO!FREQUENCIAL,!DE!~27!HZ!(LÁ0)!A!~4200!HZ!(DÓ8),!APROX.!SETE!OITAVAS!DO!CAMPO!DAS!ALTURAS!NO!

PIANO!...............................................................................................................................................!257!FIGURA!16!–!“ESCALA!DE!12!ANDAMENTOS”!(EM!BPM),!UTILIZADA!EM!GRUPPEN!.....................................................!261!FIGURA!17!!c!SÉRIE!DE!BASE!DE!GRUPPEN!PARA!TODOS!SEUS!ATRIBUTOS!(NÃO!APENAS!ALTURAS),!!INCLUINDO!A!ESCALA!DE!12!

ANDAMENTOS!APRESENTADA!NA!FIGURA!ACIMA!........................................................................................!261!FIGURA!18!–!ESPECTRO!DAS!8!“OITAVAS!TEMPORAIS”!NO!ÂMBITO!DA!“FORMA!MUSICAL”!..........................................!264!

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323

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