editorial presenÇa queluz de baixo 2730‑132 barcarenapor acaso na agulha e gotas de sangue...

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A tradução desta obra foi apoiada pelo Finnish Literature Exchange FICHA TÉCNICA Título original: Punainen Kuin Veri Autora: Salla Simukka Copyright © Salla Simukka, 2013 Edição portuguesa publicada por acordo com Tammi Publishers e Elina Ahlback Literary Agency, Helsínquia, Finlândia Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014 Tradução do finlandês: Anna Toivola Câmara Leme Imagens da capa @ Serg Zastavkin / shutterstock.com Design da capa: Laura Lyytinen Fotografia da autora @ Karoliina Ek Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015 Depósito legal n.º 384344/14 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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A tradução desta obra foi apoiada pelo Finnish Literature Exchange

FICHA TÉCNICA

Título original: Punainen Kuin VeriAutora: Salla SimukkaCopyright © Salla Simukka, 2013Edição portuguesa publicada por acordo com Tammi Publishers e Elina Ahlback Literary Agency, Helsínquia, FinlândiaTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014Tradução do finlandês: Anna Toivola Câmara LemeImagens da capa @ Serg Zastavkin / shutterstock.comDesign da capa: Laura LyytinenFotografia da autora @ Karoliina EkComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015Depósito legal n.º 384344/14

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Há muito, muito tempo, no meio do inverno, quando os

flocos de neve leves como penas caíam das nuvens, uma rainha

sentada à janela de caixilhos de ébano do seu palácio costurava.

Enquanto ali costurava e olhava pela janela picou o seu dedo

por acaso na agulha e gotas de sangue pingaram sobre a neve.

As gotas vermelhas sobre o fundo branco pareciam tão engra‑

çadas que a rainha pensou:

— Quem me dera ter um filho branco como a neve, vermelho

como o sangue e escuro como o ébano!

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O manto branco de neve gelada brilhava. Sobre a neve anterior, caíra há quinze minutos uma nova camada de neve limpa e macia. Há quinze minutos tudo era ainda possível. O mundo era bonito e o futuro surgia algures em frente mais luminoso, mais calmo e mais livre. Um futuro pelo qual valia a pena tudo arriscar, deitar tudo a perder e libertar ‑se de uma vez por todas.

Há quinze minutos, uma chuva leve de neve gelada e macia espalhava, por cima da anterior neve que caíra, um cobertor fino de neve como plumas. Depois, a chuva de neve terminou tão depressa quanto começou e por entre as nuvens vislumbrou ‑se um raio de Sol. Dificilmente houvera um dia assim tão bonito durante todo o inverno.

De momento para momento, o branco ficava cada vez mais ver‑melho. Espalhava ‑se, ganhava terreno, entrava devagarinho pelos trilhos de neve e tingia ‑os à medida que avançava. Parte do vermelho salpicara para longe formando manchas na neve. De uma cor tão brilhante que, se a cor gritasse, gritaria em vermelho.

Natalia Smirnova olhava com os seus olhos castanhos para a neve tingida de gotas vermelhas sem conseguir ver nada. Não pensava em nada. Não desejava nada. Não temia nada.

Há dez minutos, nunca Natalia desejara e temera tanto na vida. Com as mãos a tremer enfiara um monte de notas na sua mala Louis Vuitton, genuína. Tentou ouvir a qualquer momento o mais pequeno barulho. Procurou acalmar ‑se e dizer para si própria que estava

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tudo bem. Porque ela havia tudo planeado. Mas, ao mesmo tempo, também sabia que nenhum plano era completamente fiável. Com um simples empurrão podia ‑se deitar abaixo e fazer desaparecer um plano cuidadosamente delineado durante meses.

A mala tinha lá dentro o passaporte e o bilhete de avião para Mos‑covo. Não ia levar mais nada com ela. No aeroporto de Moscovo, o irmão iria estar à espera dela com um carro alugado. O irmão levá ‑la ‑ia para uma cabana que ficava a centenas de quilómetros e que pouca gente conhecia. Lá, estariam à espera dela a mãe e a Olga, a sua pequena filha, de três anos, que ela há mais de um ano não via. A filha ainda se lembraria dela? Teriam tempo para se conhecer uma à outra enquanto estivessem escondidas na cabana durante um ou dois meses. O tempo que fosse necessário até ela se sentir segura. O tempo que fosse necessário até se terem esquecido dela.

Natalia apagou uma voz na sua mente que insistentemente lhe dizia que eles não se iam esquecer dela. Que não a iam deixar desa‑parecer. Convencera ‑se a si mesma de que não era tão importante que não a pudessem em qualquer momento substituir por outra mulher. Eles não se dariam ao trabalho de a ir desenterrar do seu esconderijo.

Nestas atividades, havia sempre alguém que, por vezes, desa‑parecia. E também desaparecia dinheiro. Era uma coisa que fazia parte dos riscos do negócio, era como uma perda inevitável, como as frutas estragadas no supermercado que iam parar ao lixo.

Natalia não contou o dinheiro. O que fez foi encher a mala o mais possível. Uma parte das notas amarrotou ‑se mas isso não era importante. Uma nota de quinhentos euros amarrotada valia tanto como uma nota lisa. Dava ‑lhe para comprar comida que chegasse para três meses ou até quatro, se fosse mesmo poupada. Dava ‑lhe para pagar o silêncio de alguém durante bastante tempo. Quinhentos euros era para muita gente o preço a pagar por um segredo.

Natalia Smirnova, vinte anos, estava deitada de barriga para baixo no manto de neve com a cara encostada à neve fria. Não sentia o ardor da neve gelada na pele. Não sentia o frio gelado dos vinte e cinco graus negativos nas orelhas destapadas.

Que estranho que é este país e como é fria a sua primaveraNatalia, tu tens frio

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O homem cantou a canção com uma voz rouca e desafinada. Natalia não gostou da canção. A Natalia da canção era da Ucrânia, e ela era da Rússia. Mas, apesar disso, até gostou que o homem lhe tivesse cantado uma canção e lhe tivesse feito festas na cabeça. Ten‑tou não ouvir as palavras. Felizmente, até foi fácil. Sabia um pouco de finlandês e compreendia muito mais do que conseguia falar, e como já não se esforçava e deixava as ideias pousar, as palavras estrangeiras misturaram ‑se todas umas nas outras, perderam o sen‑tido e passaram a ser apenas uma sucessão de sons que se soltavam da boca do homem e lhe arranhavam o pescoço.

Cinco minutos antes, Natalia estava a pensar no homem e nas suas mãos um pouco desajeitadas. Iria ele ter saudades dela? Talvez um pouco. Talvez um bocadinho de nada. Mas não o suficiente porque ele não a tinha amado a sério. Se ele a tivesse amado a sério, tê ‑la ‑ia, como tantas vezes prometera, ajudado a resolver os problemas dela. Agora era obrigada a ser ela mesma a resolvê ‑los.

Há dois minutos apenas, Natalia estava a fechar a mala. A mala que transbordava de notas. Arrumara rapidamente as coisas à sua volta e olhara ‑se no espelho da entrada. Cabelos oxigenados, olhos castanhos, sobrancelhas finas e lábios vermelhos vistosos. Estava pálida. Abaixo dos olhos viam ‑se umas sombras escuras por não ter dormido. Estava de partida. Na boca tinha um travo a liberdade e a medo. Sabia a ferro.

Há dois minutos, olhara para o espelho, encarara o seu reflexo e erguera o queixo. Aproveitaria aquele momento para fugir.

Natalia ouviu a chave a rodar na fechadura. Ficou gelada. Pri‑meiro, ouviu uns passos, depois uns segundos passos e ainda uns ter ceiros. O trio. O trio estava a entrar em casa. E ela não tinha outra hipótese senão fugir.

Há um minuto, Natalia atravessou a cozinha a correr em direção à porta do alpendre. Atrapalhou ‑se com a fechadura. As mãos tremiam‑‑lhe tanto que quase não conseguia abrir a porta. Depois, afinal, como por milagre, a porta abriu ‑se e ela atravessou a correr o alpendre, coberto de neve, até ao pátio. As botas de montanha que calçava enterravam ‑se na neve, mas ela, apesar disso, continuou a correr sem olhar para trás. Não ouviu nada. Por momentos, pensou que, se calhar, ia mesmo conseguir escapar, encontrar uma saída, fugir e vencer.

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Há trinta segundos ouviu ‑se o disparo seco de uma arma equi‑pada com um silenciador e uma bala rasgou as costas do casaco de Natalia Smirnova. Rasgou ‑lhe a pele, passou por uma unha negra junto à coluna, furou ‑lhe os órgãos internos e atingiu finalmente também a alça da mala Louis Vuitton que ela abraçava contra a barriga. Natalia tombou sobre uma neve limpa e imaculada.

A poça vermelha debaixo de Natalia não parava de alastrar. Engolia a neve à sua volta. O sangue vermelho era ainda ávido e quente, mas a cada segundo que passava ia arrefecendo. Ouviram ‑se uns passos lentos e pesados aproximarem ‑se de Natalia Smirnova, deitada na neve. Ela não os ouviu.

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Estavam os três acotovelados uns contra os outros à porta. Que‑riam todos entrar ao mesmo tempo.

— Eh pá, afastem ‑se um bocado para eu conseguir enfiar a chave na fechadura.

— Mas tu alguma vez conseguiste enfiar alguma coisa onde quer que seja?

Gargalhadas, silêncio e mais gargalhadas.— Calma. É assim. A chave entra aqui. E roda devagar. Muito

devagar. Uau. Isto é uma coisa muito fora. Vocês estão a perceber que basta rodar a chave uma vez para se conseguir abrir uma fecha‑dura? Que alguém tenha um dia inventado um sistema destes? Se me perguntarem o que é que eu acho, eu acho que isto é a décima terceira maravilha do mundo.

— Cala ‑te e abre a porta.O trio empurrou a porta e entrou. O primeiro quase caiu.

O segundo deu uns gritos estridentes e riu ‑se ao ouvir o eco da sua voz no espaço amplo e vazio. O terceiro esforçou ‑se por se lembrar e acertou, à primeira, no número do código do alarme.

— Um... sete... três... dois. Porra, estava certo. E esta é a décima quarta maravilha do mundo; conseguir fazer parar um alarme carre‑gando nos botões. Caraças. Agora já sei o que é que vou ser quando for grande. Vou ser serralheiro. É ou não é uma profissão? Ter como emprego fazer fechaduras? Ou então... vou ser guarda.

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Os outros dois não o ouviam. Andavam a correr, a rir e a gritar, pelos corredores vazios e às escuras. O terceiro juntou ‑se a eles. As gargalhadas ressoaram pelas paredes, rodopiando pelas escadas.

— Nós somos os maiores!Maiores. Aiores. Iores. Ores. Res. Es. S.— E podres de ricos!Davam de propósito empurrões uns contra os outros e caíam no

chão. Rebolavam e davam guinchos. Faziam de anjos1 deitados no chão de pedra. Depois houve um que se lembrou.

— Nós somos ricos mas o dinheiro que temos é dinheiro sujo.— Ah, pois é. Dirrrty money.— Mas nós não tínhamos de ir para a tal câmara escura? Não

foi por isso que viemos aqui à escola?Se pelo menos ainda se conseguisse lembrar do que é que tinha

acontecido. Estava tudo coberto por uma névoa onde algumas imagens saltitavam como clarões. Uns a vomitar. Outros todos nus na piscina. Uma porta trancada, que não devia estar trancada. Uma jarra de cristal partida e cacos onde alguém ao pisar se tinha magoado. Sangue. Música aos berros. Oops! I did it again. Um êxito qualquer esquecido que alguém pusera a tocar em repeat. I played with your heart, got lost in a game. Alguém chorava inconsolavel‑mente, choramingava, não queria ajuda. O chão estava escorregadio do rum que se tinha entornado. Cheirava, ao mesmo tempo, a azedo e a doce.

As imagens não se deixavam organizar numa sequência lógica. Quem é que tinha trazido o saco de plástico? Em que altura? Quem é que o abrira, enfiara lá a mão, retirara de lá a mão e lambera os dedos? Quando é que eles tinham percebido?

Era preciso arranjar mais qualquer coisa. Depressa. Já.— Vocês ainda têm alguma coisa? Está ‑me a apetecer engolir

uma. — Eu tenho disto.

1 Fazer de anjos na neve é ficar deitado sobre a neve a abrir e fechar os braços e as pernas deixando assim marcada uma figura de «anjo». Só é possível depois de ter nevado muito. (NT)

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Três pastilhas. Uma para cada um. Puseram ‑nas na língua ao mesmo tempo e deixaram que elas se dissolvessem.

— Está a bater. Uau! ‘Tá a bater bué da bem.Na câmara escura. Escuridão. Depois um deles acendeu a luz.— Venha a luz. — E a luz veio.O saco de plástico em cima da mesa. O saco aberto.— Que fedor. — O dinheiro não fede. O dinheiro cheira, cheira bem. — Eh pá, isto não faz sentido, isto é muita massa. — E nós vamos dividi ‑la entre nós. — Isto é mesmo espetacular! Nunca me aconteceu nada assim.

Eu adoro ‑vos. Adoro o mundo.— Porra, não te estiques. Assim não consigo concentrar‑me e ‘tou

a ficar com tusa.— Mas dá sempre para dar uma aqui. — Não, aqui não! ‘Bora mas é começar a lavar. Água nas tinas para a revelação de fotografias. As notas dentro

de água. Pendurá ‑las uma a uma para secarem.— A isto é o que eu chamo lavagem de dinheiro. Ouçam bem,

isto sim é que é lavagem de dinheiro.

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— Acorda! Acorda já! Levanta ‑te! Se eu fosse a ti, nem pensava em voltar a adormecer!

Os berros enchiam os ouvidos de Lumikki Andersson. Aquela voz a berrar era ‑lhe infelizmente familiar. Era a sua própria voz. Ela tinha gravado no telemóvel os seus próprios gritos como desperta‑dor, pensando que isso a faria levantar ‑se da cama quentinha mais facilmente do que com outra coisa qualquer. Funcionava. De facto, não iria voltar a adormecer.

Sentou ‑se aos pés da cama ainda meio acordada e olhou para o calendário Muumi2 que tinha pendurado na parede. Segunda‑‑feira, dia 29 de fevereiro. Um dia adicional de um ano bissexto. O dia mais inútil do ano. Porque é que não podia ser um feriado internacional? De qualquer maneira já era um dia a mais. Então, porque é que era preciso fazer qualquer coisa importante ou pro‑dutiva nesse dia?

Lumikki enfiou os pés nas suas pantufas em forma de ouriços e arrastou ‑se até à cozinha. Deitou o café e a água para a cafeteira de tipo italiano. Nessa manhã não iria conseguir concentrar ‑se no mundo dos livros sem um café expresso forte. Ainda estava escuro, muito escuro para uma pessoa estar acordada. Mesmo que já hou‑vesse bastante neve acumulada não havia ainda muita claridade.

2 Muumi é talvez a figura mais célebre da ilustração infantil finlandesa e nór‑dica. (NT)

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A escuridão não iria dar folga durante muito tempo. Manteria as terras do Norte constrangidas até praticamente aos finais de março.

Odiava esta fase do inverno. Neve e temperaturas negativas, demasiado de ambas. A primavera não se vislumbrava. O inverno continuava e continuava, não havia qualquer esperança de terminar e tudo parecia lento e aborrecido, como que paralisado. Tinha frio em casa, tinha frio na rua e tinha frio na escola. Paradoxalmente por vezes parecia que só não tinha frio quando tomava banho dentro do buraco no gelo3, mas a verdade é que também não podia pas‑sar lá a vida. Lumikki vestiu uma camisola grande de lã cinzenta e encheu a chávena de café. Foi bebê ‑lo para o único verdadeiro quarto do seu estúdio, que tinha uns esplêndidos dezassete metros quadrados. Enroscou ‑se no cadeirão já muito gasto e tentou sentir‑‑se mais quente. Entrava frio pela janela, embora no outono ela a tivesse calafetado.

O café sabia a café, à maneira. Mas também não queria outra coisa. Ela simplesmente não suportava aqueles cafés com sabor enjoativo e esquisito de chocolate ‑avelã ‑cárdamo ‑baunilha. Café preto e forte, cada coisa no seu lugar.

A mãe voltara a ficar horrorizada quando a tinha visitado da última vez. «Tu nunca quiseste decorar isto?» Não, não queria. Já vivia naquele estúdio há cerca de um ano e meio. Apenas um col‑chão grosso no chão a fazer de cama, uma secretária, o portátil e um cadeirão. No início, a mãe tinha insistido em comprar uma cama e uma estante, mas ela tinha dito perentoriamente que não. Os livros estavam empilhados no chão. O único «elemento decorativo» era o calendário Muumi a preto e branco. Porque é que haveria ela de se esforçar em criar um cantinho especial? Não estava propriamente a brincar às casinhas. O estúdio não era mais do que o local onde ela iria viver durante os últimos anos do secundário. Não era uma casa no sentido de ela querer criar raízes nela durante mais tempo. Quando terminasse o liceu, Lumikki estaria livre para poder ir para onde qui‑sesse, sem ter de ficar com saudades de ninguém nem de nada.

3 Chama ‑se «avanto» e é uma abertura que se faz num lago ou num mar gelado para tomar banho, geralmente depois da sauna. (NT)

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Mas também não sentia como sua a casa dos pais em Riihimäki. Atualmente, sentia ‑se uma estranha naquela casa. As coisas e os objetos faziam ‑lhe lembrar coisas que ela preferia ter esquecido. Mas fosse como fosse, essas recordações surgiam ‑lhe demasiadas vezes, ora nos sonhos, ora nos pesadelos.

Quando saíra de casa, a atitude dos pais fora estranhamente contraditória. Às vezes parecia que se sentiam aliviados. É verdade que o ambiente em casa tinha sido muitas vezes pesado mas era o que havia sido sempre. Pelo menos durante o tempo todo de que Lumikki se conseguia lembrar. Nunca conseguira perceber o que é que provocava aquela rispidez, visto que a mãe e o pai não se zan‑gavam abertamente entre eles e ela também nunca lhes levantava a voz. Quando a mudança dela se aproximara a mãe e o pai passaram a abraçá ‑la longamente de vez em quando, o que era estranho e até mesmo constrangedor porque em casa não havia esse hábito.

Depois de a abraçar, a mãe colocou o rosto de Lumikki entre as mãos e olhou para ela muito atenta e estranhamente durante muito tempo.

— Nós só te temos a ti. Só a ti.Fora o que a mãe repetira com ar de quem ia desatar a chorar

a qualquer momento. Lumikki começara a sentir ‑se angustiada. Quando finalmente mudara, com a ajuda dos pais, as suas coisas para Tampere e fechara pela primeira vez a porta de casa, depois de eles se terem ido embora, foi como se tivesse largado um peso de cima dos ombros, um peso que ela própria nem sabia que carregava.

— Tens a certeza de que ficas bem?Era o que a mãe perguntava sempre. O pai reagia de uma maneira

mais prática. — Flickan blir snart myndig. Hon maste ju klara sig. A rapariga

vai rapidamente tornar ‑se uma mulher. E vai ter de sobreviver. E a verdade é que Lumikki desenrascava ‑se sozinha. E cada dia

que passava melhor ainda. Naquela manhã o reflexo do espelho da casa de banho mostrava

uma rapariga com um ar cansado. O efeito da cafeína no orga‑nismo estava a ser muito demorado. Lumikki lavou a cara com água fria e atou os seus cabelos castanhos. Os pais tinham ‑na bati‑

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zado com um nome4 que não correspondia à realidade. Os seus cabelos não eram pretos, a sua pele não luzia brancura nem os seus lábios eram vermelhos vistosos. Com uma tinta para o cabelo e com maquilhagem ela teria conseguido fazer correspon der o reflexo no espelho com o nome, mas não via qualquer motivo para o fazer. Bastava ‑lhe o reflexo no espelho e a opinião dos ou tros não tinha importância nenhuma.

Lumikki demorou três minutos a pensar no que ia vestir para a escola. Depois, decidiu ficar com a camisola cinzenta e vestiu umas calças de ganga. Umas botas de montanha, um casaco de lã preto, um cachecol, umas luvas verdes e um gorro cinzento. Nas costas uma mochila da marca Fjallraven5.

Doía ‑lhe a barriga de fome. Abriu o frigorífico, mas este nem luz tinha. Há duas semanas que a lâmpada se tinha fundido e ela não havia tido paciência para a trocar. Teria de comprar uma sanduíche ou duas na cafetaria da escola. E café, claro.

À entrada da escola apanhou com a azáfama habitual. Esta‑vam todos com pressa e cada um tentava gritar mais alto do que o outro. Eram os alunos de expressão artística, superinteligentes e supercriativos da escola. Lumikki sabia que estava a ser demasiado mazinha mas havia manhãs em que lhe era especialmente difícil suportar aquelas roupas todas coloridas, aqueles gestos dramáticos e as excentricidades que iam até ao limite da decência. Mas por detrás da irritação de Lumikki havia, porém, um sentimento de gratidão. Poder frequentar precisamente aquela escola. Já não precisava de estar em Riihimäki. Tinha ‑se candidatado àquela escola de vertente artística para poder sair de Riihimäki. De outro modo, podia ter sido difícil para os pais aceitar a mudança para Tampere e a candidatura à escola artística era um bom pretexto. E de facto, durante os pri‑meiros anos da escola, Lumikki sentira ‑se como se houvesse entrado no paraíso. O sentimento esvanecera ‑se aos poucos quando o ir às

4 Lumikki = Branca de Neve. (NT)5 Marca sueca muito conhecida de mochilas. (Tem uma raposa como símbolo e

fama de ser extremamente resistente.) (NT)

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aulas tinha passado a ser uma coisa quotidiana e ela começara a ver que por detrás dos sorrisos dos colegas se escondiam também muitos sentimentos de inveja, hipocrisia, mentira, egoísmo e insegurança.

Felizmente, além da algazarra, sentia ‑se no edifício da escola um calor que conseguiu despertar novamente os membros entorpecidos de Lumikki. Ela sabia que dentro em pouco começaria a sentir um ardor impiedoso quando o sangue começasse mesmo a circular para os dedos dos pés e das mãos. Devia ter mesmo enfiado duas meias de lã nos pés. Colocou o casaco no bengaleiro e correu pelas escadas abaixo até à cantina e à cafetaria que havia lá ao pé.

— Então e, desta vez, a sanduíche é com temperos ou sem? — perguntou a empregada quando a viu.

— Tanto faz — respondeu ela. — E um café grande.— E sem espaço para o leite — riu ‑se a empregada e encheu o

copo descartável até à borda. Lumikki sentou ‑se à mesa da cafetaria e deixou que o calor

a aquecesse lentamente. Ai, ai, ai. Era impossível evitar o ardor. Man teve as mãos por um momento à volta do copo e deu depois uma trinca no pão. A sanduíche vegetariana era grande e saborosa. O tomate estava maduro e o pimento estaladiço. Quando pagava do seu bolso, Lumikki era vegetariana. Com o dinheiro dela não comprava carne. Mas quando eram os outros a pagar ou a cozinhar, aí, sim, comia carne. Talvez fosse hipócrita mas era prático.

Na mesa ao lado sentaram ‑se, de repente, três raparigas. Uma tinha os cabelos louros espetados. Outra não parava de tocar nos cabelos escuros e curtos. A terceira torcia as pontas dos cabelos rui‑vos com os dedos. Nas imediações sentia ‑se o aroma dos perfumes YSL, Baby Doll, Britney Spears Fantasy e Miss Dior Chérie.

— Se o gajo hoje me despreza como se eu não existisse, eu expludo. Nas festas, ele tem a lata de fazer comigo o que quer, mas na escola nem sequer me cumprimenta. Nem dá para acreditar que já tem dezoito anos.

— E eu vou explodir à mesma. Não devia ter tomado aquelas últimas bebidas. Nem sequer sei o que é que continham.

— Calma. Também eram só bebidas.Berros a fingir pavor. Olhos esbugalhados.

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— Não ‘tás a insinuar que...?— Era preciso ser ‑se mesmo cego para não reparar no tamanho

das pupilas da Elisa. Até porque a conversa dela já estava a ficar mesmo acelerada.

— Mas ela fala sempre assim. — Mas aquilo estava mesmo a mil à hora. Espreitadelas à volta. Três cabeças unidas e sussurros. Lumikki

esvaziou o copo de café e olhou para o relógio. Ainda tinha dez minutos até a aula começar. Levantou ‑se e guardou a sanduíche. Não tinha paciência para ouvir as conversas daquele grupinho dos perfumes da mesa ao lado e já não aguentava mais o cheiro.

Raparigas centradas na imagem de si próprias que mais tarde iam tentar entrar em direito ou em economia. Estavam naquela escola artística porque tinham tido uma média alta e porque eram «assim, criativas».

Grandes artistas e ainda maiores intelectuais para quem a escola era uma maneira de se mostrarem.

Os génios da matemática andavam sempre com um ar um pouco perdido.

Os comuns e banais, que enchiam os corredores, entupiam as esca‑das, formavam filas para a cantina e eram todos iguais uns aos outros, tinham todos a mesma maneira de falar e cheiravam ao mesmo. Daqui a uns anos ninguém se lembraria dos nomes deles. Mesmo agora, ninguém os conhecia.

Também havia alguns que eram simpáticos e inteligentes. Mas ela não tinha o hábito de desprezar os outros. Sabia que para muitos deles o papel era apenas um disfarce, uma máscara que se punha antes de as aulas começarem e que servia para ajudar a encontrar um lugar entre centenas de outros. Ela não os criticava por isso. De qualquer maneira, tinha decidido, logo no primeiro dia de aulas, que não se deixaria absor‑ver por nenhuma categoria, não ficaria submetida a nenhum grupo de referência, que servisse para os outros fazerem suposições sobre ela.

Lumikki assistira de forma vaga e divertida à criação de divisões, grupos e gangues. Tinha permanecido de fora, à parte. Mas não era uma freak solitária que se arrastasse pelos cantos vestida de preto. O seu nome era conhecido.

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Lumikki Andersson. Finlandesa ‑sueca de Riihimäki. A que tinha sempre uma opinião ponderada sobre qualquer questão. A que tirava vintes quer a física quer a filosofia. A que tinha feito de Ofélia de tal modo que um ou dois profes‑

sores se tinham zangado e o resto se tinha comovido.A que não participava em nenhum acontecimento da escola ou

em qualquer outro acontecimento coletivo.A que comia sempre sozinha, mas nunca tinha ar de estar sozi‑

nha.Ela, ela era a peça estranha do puzzle, a que não tinha um lugar

próprio, mas que, de repente, podia, se quisesse, encaixar ‑se onde quer que fosse.

Ela não era como os outros. Ela era exatamente como os outros. Lumikki aproximou ‑se da porta da câmara escura e olhou em

volta. Não havia ninguém. Entrou e fechou a porta atrás de si. Estava às escuras. Abriu sem hesitar a segunda porta e entrou para a câmara escura. As mãos já estavam habituadas àquelas distân‑cias. Uma escuridão impenetrável. O silêncio. A serenidade. Aquele momento só dela antes de as aulas começarem. O esvaziamento. O recarregar das baterias. Um ritual diário que ninguém conhecia. Um hábito que era, ao mesmo tempo, uma lembrança do passado e um elemento do presente. Durante anos a fio tinha tido de procurar esconderijos por causa do medo que sentira. Descobrir cantos secre‑tos e portos de abrigo tinha sido para ela uma condição de vida. Agora já não era uma questão de medo mas de uma vontade de ter um sítio só dela, mesmo num espaço que era de todos. A câmara escura era o seu refúgio de liberdade, onde ela podia acalmar ‑se um pouco antes de ter de enfrentar as conversas, as vozes, as opiniões e os sentimentos dos outros.

Lumikki encostou ‑se contra a parede e com os olhos bem abertos olhou para a escuridão. Esvaziou a mente de todos os pensamentos. O mais fácil de tudo era abstrair ‑se do quotidiano, dos pensamentos inúteis que giravam à volta dos eixos; a próxima aula de matemática, a eventual ida às compras depois das aulas, ir talvez à noite à aula de combate. Mas, naquele momento, nem sequer as ideias superficiais lhe saíam da cabeça. Algo estava a impedi ‑lo. Algo estava a perturbá ‑la.

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O cheiro.Havia na câmara escura um cheiro diferente do habitual. Não

conseguiu identificá ‑lo. Avançou um passo. Alguma coisa lhe tocou na cara e ela deu um pulo para trás e acendeu a lâmpada vermelha.

Uma nota de quinhentos euros. Dezenas de notas de quinhentos euros que estavam penduradas

a secar na câmara escura. Seriam verdadeiras? Lumikki tocou com a mão na superfície da nota mais próxima. Pelo menos o papel pare‑cia verdadeiro. Verificou se a tina de revelação tinha fotografias e acendeu a luz normal.

Colocou uma nota contra a luz. A linha de água correspondia à mesma figura que aparecia em contraluz. O selo de segurança e o holograma estavam nos sítios certos. Se as notas não fossem autên‑ticas seriam falsificações muitíssimo bem feitas.

O líquido nas tinas de revelação era acastanhado. Lumikki tocou nele com o dedo. Água.

Olhou para o chão da câmara escura no qual se viam umas manchas vermelhas e acastanhadas. Olhou para um dos cantos de uma nota onde se encontrava exatamente a mesma cor vermelho‑‑acastanhada. Nesse momento, percebeu logo porque é que na câmara escura havia um cheiro esquisito.

Era o cheiro a sangue.

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