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Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web , http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf EDITORIAL Memorándum: memoria e historia em psicología Número 14 Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversos métodos de estudo Esta edigao da Memorándum propoe contribuigoes acerca de diversas maneiras de considerar o sujeito humano, ao longo do tempo: trata-se de teorías de longa duragao e que exerceram influencias inclusive na psicología contemporánea: a teoría médica dos temperamentos originada na cultura grega e utilizada até o século XIX {A teoría dos temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX de Al-Chueyr Pereira Martins, Carvalho da Silva e Mutarelli^; a concepgao do cortesao delineada pela filosofía moral que na primeira Idade Moderna buscara definir o sujeito a partir de determinado papel social (O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge de Míssio); a teoria psicanálitica em seus primordios na cultura brasileira dos inicios do século XX {A introdugao das idéias relativas á psicaná/ise de criancas no Brasil através da obra de Arthur Ramos de Ferreira Abrao). O artigo A pessoa como sujeito da experiencia. Contribuigoes da fenomenología del Mahfoud e Massimi evidencia a contri bu ¡gao da Fenomenología á discussao sobre os conceitos de pessoa e experiencia na Psicología contemporánea. Outro aprofundamento da contribuigao da fenomenología, no diálogo entre Husserl e Merleau Ponty, é o artigo "O serselvagem"e a hyletica fenomenología A heranga filosófica de "O visível e o invisíve/"de Ales Bello. O trabalho Ampliando os horizontes da racionalidade. Perspectivas fenomenologicas e cristológicos trinitarias sobre filosofía da religione e mística de Manganaro evidencia a necessidade, presente na cultura contemporánea, de um empenho teórico capaz de articular o nexo entre dois saberes presentes de modo conflituoso na tradigao ocidental - o saber filosófico e o saber teológico - sendo ambos importantes para a compreensao do sujeito humano. Urna modalidade de apreensao do sujeito no seu contexto comunitario de pertenga é proposta na pesquisa relatada em O comum em urna comunidade quilombola baiana no século XXIe o terreiro de candomblépor Rabinovich. Já o artigo Memorias da Pós-Graduagao em Psicología no Brasil: a Psicología Social da PUC-SP de Maria do Carmo Guedes visa contribuir á reconstituigao da memoria e da historia de urna comunidade académica de destaque no contexto da Psicología brasileira. Concluí esta edigao a resenha do livro O poder e a cruz. Colonizagao e redugoes dos jesuítas no Brasil (Massimi, Milao, 2008) por Colombo. Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Memorándum 14, abril/2008 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf

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Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversosmétodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web ,http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf

EDITORIAL

Memorándum: memoria e historia em psicologíaNúmero 14

Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversosmétodos de estudo

Esta edigao da Memorándum propoe contribuigoes acerca de diversas maneiras deconsiderar o sujeito humano, ao longo do tempo: trata-se de teorías de longa duragao eque exerceram influencias inclusive na psicología contemporánea: a teoría médica dostemperamentos originada na cultura grega e utilizada até o século XIX {A teoría dostemperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX de Al-Chueyr Pereira Martins,Carvalho da Silva e Mutarelli^; a concepgao do cortesao delineada pela filosofía moral quena primeira Idade Moderna buscara definir o sujeito a partir de determinado papel social(O cortesao moral de Baldassare Castiglione e o ordinario de Eustache du Refuge deMíssio); a teoria psicanálitica em seus primordios na cultura brasileira dos inicios doséculo XX {A introdugao das idéias relativas á psicaná/ise de criancas no Brasil através daobra de Arthur Ramos de Ferreira Abrao). O artigo A pessoa como sujeito da experiencia.Contribuigoes da fenomenología del Mahfoud e Massimi evidencia a contri bu ¡gao daFenomenología á discussao sobre os conceitos de pessoa e experiencia na Psicologíacontemporánea. Outro aprofundamento da contribuigao da fenomenología, no diálogoentre Husserl e Merleau Ponty, é o artigo "O serselvagem"e a hyletica fenomenología Aheranga filosófica de "O visível e o invisíve/"de Ales Bello.O trabalho Ampliando os horizontes da racionalidade. Perspectivas fenomenologicas ecristológicos trinitarias sobre filosofía da religione e mística de Manganaro evidencia anecessidade, presente na cultura contemporánea, de um empenho teórico capaz dearticular o nexo entre dois saberes presentes de modo conflituoso na tradigao ocidental -o saber filosófico e o saber teológico - sendo ambos importantes para a compreensao dosujeito humano.Urna modalidade de apreensao do sujeito no seu contexto comunitario de pertenga éproposta na pesquisa relatada em O comum em urna comunidade quilombola baiana noséculo XXIe o terreiro de candomblépor Rabinovich.Já o artigo Memorias da Pós-Graduagao em Psicología no Brasil: a Psicología Social daPUC-SP de Maria do Carmo Guedes visa contribuir á reconstituigao da memoria e dahistoria de urna comunidade académica de destaque no contexto da Psicología brasileira.

Concluí esta edigao a resenha do livro O poder e a cruz. Colonizagao e redugoes dosjesuítas no Brasil (Massimi, Milao, 2008) por Colombo.

Miguel MahfoudMarina Massimi

Editores

Memorándum 14, abril/2008Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP

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EDITORIAL

Memorándum: memory and history in psycologyNumber 14

Diverse modes of apprehending the subject and diversestudy methods

This Memorándum edition proposes diverse ways of considering the human subject,throw the time, having these theories long duration and influence even incontemporaneous psychology: the physician theory of temperaments, originated in Greekculture and used until the 19th century (The theory of temperaments: from the CorpusHippocraticum to the 19th century of Al-Chueyr Pereira Martins, Carvalho da Silva eMutarelNy); the courtier figure designed by the moral philosophy of the first Modern Agewitch searches to define the subject from a determined social part (The moral courtier ofBaldassare Castiglione and the ordinary of Eustache du Refuge of Míssio); thepsychoanalytical theory in its beginning in the Brazilian culture (The introduction of ideasrelating to the children psychoanalysis in Brazil through Arthur Ramos's work of FerreiraAbrao); the article The person as subject of experience: contributions of phenomenologyof Mahfoud and Massimi presenting the contribution of Phenomenology to the discussionabout the concepts of the person and the experience in contemporaneous psychology.Another deepening of the phenomenological contribution relating to the dialogue betweenHusserl and Merleau-Ponty is in the article "The wild Being" and the phenomenologicalhyletic: the philosophical inheritance of "The visible and the Invisible"'of Ales Bello.The work Enlarging the horizons of the rationality: Phenomenological and TrinitariansChristological perspectives about religión philosophy and mystics of Manganaro showsthe need, present in the contemporaneous culture, of an theoretical effort capable ofarticulating the connection between two knowledges present in a conflict way in theoccidental tradition: the philosophical knowledge and the theological knowledge - beingboth important to the comprehension of the human subject.A mode of apprehending the subject in his communitarian context of belonging isproposed in the research related in Whats common in an afro descendent community ofBahía in the 21th century and the "Terreiro de Candomblé"by Rabinovich.Now the article Memories of Gradúate Psychology courses in Brazil: the course of SocialPsychology of the PUC-SP intends to contribute to the reconstruction of the history of anacademic community of distinction in the Brazilian psychology context.

This edition is concluded with a review of the book The power and the cross: Colonizationand reductions of the Jesuits in Brazil (Massimi, Milán, 2008) by Colombo.

Miguel MahfoudMarina Massimi

Editors

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Equipe/ Editorial BoardEditoresMiguel MahfoudUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Marina MassimiUniversidade de Sao PauloBrasil

Consultores externos AdHocda Memorándum 14>1¿///0cConsultants of Memorándum 14

Ana LuciaUniversidade Federal de UberlándiaBrasil

Ana Maria J. VilelaUniversidade Estadual Rio de JaneiroBrasil

André Luis MasieroPontificia Universidade Católica MG BrasilBrasil

Aparecida Mitsuko AntunesPontificia Universidade Católica SPBrasil

Carmen Lucia CardosoUniversidade de Sao PauloBrasil

Cristina LhullierUniversidade Caxias do SulBrasil

Cristiano A. Roque BarreiraUniversidade de Sao PauloBrasil

Érika LourencoUniversidade Federal de Ouro PretoBrasil

Francisco T. PortugalUniversidade Federal Rio de Janeiro

Joao B. MadeiraUniversidade de Sao PauloBrasil

José Paulo GiovanettiUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Leda V. TfouniUniversidade de Sao PauloBrasil

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Márcio Luis FernandesInstituto Teológico CuritibaBrasil

Maria do Carmo GuedesPontificia Universidade Católica SPBrasil

Marilia Ancona LopesPontificia Universidade Católica SPBrasil

Mauro AmatuzziPontificia Universidade Católica CampiñasBrasil

Paulo R. A. PachecoUniversidade de Sao PauloBrasil

Paulo J. Carvalho da SilvaPontificia Universidade Católica SPBrasil

Raquel Martins de AssisUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

RaúlFernandesFaculdade Engenharia Industrial SBCBrasil

Regina H. F. CamposPontificia Universidade Católica SPBrasil

Saulo AraújoUniversidade Federal de Juiz de ForaBrasil

Conselho Editorial / Advisory Board

Adalgisa Arantes CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Alcir PécoraUniversidade de CampiñasBrasil

Angela Ales BelloPontificia Universitas LateranensisItalia

Aníbal FornariUniversidad Católica de Santa FéUniversidade Católica de La PlataArgentina

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Anna UnaliUniversitá La SapienzaItalia

Antonella RomanoÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Belmira BuenoUniversidade de Sao PauloBrasil

Caio BoschiPontificia Universidade Católica de Minas GeraisBrasil

Celso SáUniversidade do Estado do Rio de JaneiroBrasil

Danilo ZardinUniversitá Cattolica Sacro CuoreItalia

Ecléa BosiUniversidade de Sao PauloBrasil

Francesco BotturiUniversitá Cattolica Sacro CuoreItalia

Franco BuzziUniversitá Cattolica del Sacro CuoreItalia

Gilberto SafraUniversidade de Sao PauloPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Helio CarpinteroUniversidad ComplutenseEspaña

Hugo KlappenbachUniversidad San LuisArgentina

Isaías PessottiUniversidade de Sao PauloBrasil

Janice Theodoro da SilvaUniversidade de Sao PauloBrasil

José Carlos Sebe B. MeihyUniversidade de Sao PauloBrasil

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Luís Carlos VillaltaUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Luiz Jean LauandUniversidade de Sao PauloBrasil

María ArmezzaniUniversitá degli Studi di PadovaItalia

María do Carmo GuedesPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

María Efigénia Lage de ResendeUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

María Fernanda Diniz Teixeira EnesUniversidade Nova de LisboaPortugal

Martine RuchatUniversité de GenéveSuiss

Michel Marie Le VenUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Monique AugrasUniversidade Católica do Rio de JaneiroBrasil

Olga Rofrigues de Moraes von SimsonUniversidade de CampiñasBrasil

Pedro MorandeUniversidad Católica de ChileChile

Pierre-Antoine FabreÉcole des Hautes Études en Sciences SocialesFrance

Regina Helena de Freitas CamposUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Sadi MarhabaUniversitá degli Studi di PadovaItalia

William GomesUniversidade Federal do Rio Grande do SulBrasil

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Conselho Consultivo / Board of editorial consuitants

Adone AgnolinUniversidade de Sao PauloBrasil

Ana Maria Jaco VilelaUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

André CavazottiUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Arno EngelmannUniversidade de Sao PauloBrasil

Bernadette MajoranaUniversitá degli Studi di BergamoItalia

César AdesUniversidade de Sao PauloBrasil

Davide BigalliUniversitá degli Studi di MilanoItalia

Deise ManceboUniversidade Estadual do Rio de JaneiroBrasil

Edoardo BressanUniversitá degli Studi di MilanoItalia

Eugenio dos SantosUniversidade do PortoPortugal

Giovanna ZanlonghiUniversitá Cattolica del Sacro CuoreItalia

José Francisco Miguel Henriques BairraoUniversidade de Sao PauloBrasil

Marcos Vieira da SilvaUniversidade Federal de Sao Joao del ReiBrasil

Maria Luisa Sandoval SchmidtUniversidade de Sao PauloBrasil

Marisa Todeschan D. S. BaptistaUniversidade de Sao MarcosBrasil

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Mahfoud, M. & Massimi, M. (2008). Editorial: Diversas modalidades de apreensao do sujeito e diversosmétodos de estudo, Memorándum, 14, 01-08. Retirado em / / , da World Wide Web ,http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al4/edl4.pdf '

Mitsuko Aparecida Makino AntunesPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Nádia RochaUniversidade Federal da BahiaBrasil

Rachel Nunes da CunhaUniversidade de BrasiliaBrasil

Raúl Albino Pacheco FilhoPontificia Universidade Católica de Sao PauloBrasil

Vanessa Almeida BarrosUniversidade Federal de Minas GeraisBrasil

Equipe Técnica / Technical TeamMárcia Regina da Silva - Bibliotecária - Universidade de Sao Paulo - Biblioteca Central -Prefeitura Campus Ribeirao PretoMaria Cristina M. Ferreira - Bibliotecária - - Universidade de Sao Paulo - BibliotecaCentral - Prefeitura Campus Ribeirao PretoApoio técnico da Professora Cristina Dotta Ortega do Curso de Ciencias da Informagao eDocumentagao da USP campus Ribeirao Preto.Claudia Coscarelli Salum - Universidade Federal de Minas Gerais

Apoio / Supporteó by* LAPS - Laboratorio de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pos

Graduagao em Psicologia - UFMG* Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas FaFiCH - UFMG* Núcleo de Epistemología e Historia das Ciencias Miguel Rolando Covian -

USP/Ribeirao Preto* Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Faculdade de Filosofía, Ciencias e

Letras - USP/Ribeirao Preto* Biblioteca Prof. Antonio Luiz Paixao - FaFiCH - UFMG

A revista Memorándum é urna iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos em Psicologia eCiencias Humanas: Historia e Memoria",

vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e CienciasHumanas/UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofía,

Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP

The electronic scholarly journal Memorándum is an initiative of the Research Group"Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria",

linked to Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofía e CienciasHumanas/UFMG and to Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de

Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP.

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Amatuzzi, M. (2007). Experiencia: um termo chave para a Psicología. Memorándum, 13, 08-15.Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al3/amatuzzi05.pdf

Experiencia: um termo chave para a Psicología

Experience: a key term for Psychology

Mauro Martins AmatuzziPontificia Universidade Católica de Campiñas

Brasil

ResumoEste artigo examina o termo "experiencia" a partir de sua etimología e de seus usos emdiversas línguas ocidentais atuais, com a finalidade de clarificar seu significado para aPsicología tanto na teorizagao de sua prática como ñas pesquisas de inspiragaofenomenológica. Concluí que o termo tem um significado geral que se desdobra em duaspossíveis diregoes: um conhecimento adquirido com a prática e a vivencia emocional queé subjacente a esse conhecimento acumulado. A atengao psicológica de inspiragaofenomenológica, e a pesquisa com esse mesmo enfoque, sao polarizadas pelo olhar quese volta para o vivido, ou seja, para a carnada mais profunda da experiencia.

Palavras-chave: experiencia; vivencia; fenomenología; pesquisa; atengao psicológica.

AbstractThis text examines the term "experience" from its origin and uses in diverse currentWestern languages, aiming at clarifying its meanings for theoretical and practicalPsychology, as well as for phenomenological psychological research. It concludes that theterm has a general meaning that unfolds itself in two possible directions: a practicalacquired knowledge and the emotional experience that underlies to this accumulatedknowledge. The phenomenological psychological attention and research are polarized bythe look for the lived experience, that is, for the deepest level of personal experience.

Keywords: experience; living experience; phenomenology; research; psychologicalattention.

Vivemos num tempo em que nao acreditamos mais fácilmente em dedugoes ouelaboragoes teóricas como nos tempos do iluminismo. Em psicoterapia e mesmo emeducagao urna coisa é clara: o que move a pessoa nao sao idéias abstraías, mas aexperiencia vivenciada. As idéias podem abrir caminhos, mas dar passos por essescaminhos é urna questao de experiencia. As idéias podem também instituir descaminhos,sabemos disso. Há, sem dúvida, um trabalho grande e as vezes arduo a se fazer nomundo das idéias. Mas ele nao substituí a experiencia, a vivencia direta; integra-se comela, isso sim.Para compreendermos os processos psicológicos e sua pesquisa, o conceito deexperiencia parece, pois, fundamental. Nesse artigo pretendo apresentar urna exploragaodo conceito a partir do trabalho secular da elaboragao da linguagem no laboratorio dahistoria humana. Trata-se, porém, de urna primeira aproximagao. A evolugao das línguasque nos sao mais próximas pode nos ajudar no discernimento dos conceitos. Comegamoscom a etimología da palavra.Quem poderia imaginar que "perigo" e "pirata" fossem palavras relacionadas com"experiencia"? Pois assim é. Segundo nos informa o grande Dicionário Houaiss da LínguaPortuguesa (Houaiss & Villar, 2001), do antigo verbo latino depoente periri, restou oparticipio passado per/tus, que passou diretamente para o portugués com perito,habilidoso, experimentado. Daí também com a preposigao "ex" surge no latim

Memorándum 13, novembro/2007Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP

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experíentia, que significa prova, ensaio, tentativa, experiencia, e no latim imperial,experiencia adquirida. Assim o termo experiencia pode significar tanto urna tentativa,urna prova, num sentido mais objetivo de algo que se faz, como o que resta deaprendido a partir de varias provas no decorrer da própria vida, num sentido agora maissubjetivo. Derivaram daí: experimentum (prova pelos fatos, comprovagao) e o adjetivoexpertus (experimentado, que deu provas de conhecimento - donde no inglés expert,especialista, e no portugués experto no sentido de versado, conhecedor; mas naoconfundir com esperto que tem outra origem). De periri (tentar, provar, empreender,experimentar), de onde saiu experíentia (o que decorre da tentativa, doempreendimento), derivaram também periculum (tentativa, prova, risco, exame), oadjetivo periculosum (arriscado, perigoso), o verbo periclitor (fazer urna tentativa,arriscar, por em perigo), peritus (que sabe por experiencia, perito, instruido), imperítia(impericia, ignorancia). Daí derivaram em portugués: experiencia, perigo, perigoso,periclitante, perito, pericia. Ainda segundo Houaiss e Villar (2001) todas essas palavrasse relacionam com o grego peíra (prova, tentativa), o verbo peiráo (tentar, empreender),peiratés (aquele que tenta um golpe, bandido, pirata), empeiría (experiencia, e, comoimportagao direta feita pela filosofía, "empiria", conjunto de dados conhecidos nao peloraciocinio lógico, mas pela experiencia sensorial) e empeiríkós (que se dirige segundo aexperiencia) (ver também o clássico Ernout & Meillet, 1967).Como se vé, o termo experiencia, pela sua origem, significa o que foi retirado (ex) deurna prova ou provagao (-perientia); um conhecimento adquirido no mundo da empiria,isto é, em contato sensorial com a realidade. Experiencia relaciona-se com o que se vé,com o que se toca ou senté, mais do que com o pensamento. O que se deduz a partir doque se vé nao é propriamente "experiencial", mas pensado. Conhecimento experiencia/ éo diretamente produzido pelo contato com o real.Existe um modo de conceituar a experiencia que faz déla quase um fato objetivo. Rogers,por exemplo, a define como o que se passa no organismo e pode ser conscientizado oupercebido de forma ¡mediata (ver, por exemplo, Rogers & Kinget, 1975). É urnaconceituagao psicológica: delimita um campo sobre o qual pode incidir a consideragao dopsicólogo (como exercer cientificamente essa consideragao, essa é urna questao que naoquero tratar agora). Esse modo de conceituar corresponde á última das concepgoeslistadas por Ferrater Mora (2004) no verbete "experiencia" de seu Dicionário de Filosofía:a experiencia é vista como um fato interno. Segundo essa concepgao, na conceituagao deRogers, sao os símbolos da consciéncia que expressam a experiencia. Eles podem fazerisso adequadamente ou de modo distorcido. Mas também pode nao haver simbolizagaoalguma: nesse caso falamos entao de inconsciente, na acepgao comum desse termo(algo que é da ordem da consciéncia, mas nao foi simbolizado; algo que aconteceu ouestá acontecendo no campo psíquico, mas do qual nao me dou conta por qualquermotivo). Poderíamos entao falar de "experiencia inconsciente" (se é que pode ser válidaa jungao desses dois termos) como algo que se passa no ámbito da consciéncia (épsíquico), mas nao está simbolizado adequadamente (nao é consciente). E poderíamosfalar também da experiencia em si mesma considerada, independentemente de suaexpressao pelos símbolos da consciéncia, e portanto como algo anterior a qualquersimbolizagao.Mas existe um conceito mais intencional (ou relacional) de experiencia, como, porexemplo, o utilizado por Barbotin (2004): experiencia é contato com o real. Essa maneirade conceituar corresponde á primeira listada por Ferrater Mora (2004): a apreensao deurna realidade. Nesse sentido a experiencia é um fato originario, que fundamenta todosaber e toda agao (mesmo que nao todo comportamento). É nesse sentido também quea idéia de experiencia é usada por Martin Buber quando ele fala da experiencia religiosa(Buber, 1984). Dentro dessa maneira de conceituar devemos dizer que a experienciaproduz significados. Esses significados sao urna via de acesso ao real, neste sentido quelidar com eles permite ao ser humano a ampliagao das possibilidades e da complexidadeda agao, situando-a num patamar qualitativo de outra ordem em relagao ao simplescomportamento. Mas esse acesso ao real pelos significados expressos é sempre limitado:há sempre mais na experiencia vivida do que no significado que déla construímos. Por

Memorándum 13, novembro/2007Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP

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mais importante que seja o significado, ele nao contém a totalidade do real. E podemosdizer mais: a construgáo desses significados é influenciada por estruturas cognitivasobjetivas (como aquelas decorrentes das leis estruturais que a psicología da gestaltformulou), mas também pela historia individual (os significados que formam o contextopara esse novo que se constrói e que decorrem da historia de vida da pessoa) e pelaspossibilidades inerentes aos modelos culturáis (significados disponíveis na cultura, e quese manifestam, por exemplo, ñas possibilidades do idioma).Na primeira conceituagáo a experiencia é um fato que, embora seja psicológico ouinterno ao sujeito, é objetivo (passível de consideragao objetiva). Na segunda, nao épropriamente um fato, mas urna relagao, e o acesso a essa relagao enquanto talpressupoe urna reflexao do sujeito. Ela, em si mesma, é diretamente vivenciada comocontato.Tanto o conceito objetivo (um fato interno) como o intencional (a apreensao darealidade) cabe na palavra "experiencia" em nossa língua. E a palavra "vivencia" naoteria tanta importancia se nao fosse a fenomenología; mas antes de entendermos isso énecessário considerarmos a língua germánica.Em alemao existem ao menos duas palavras para "experiencia": Erfahrung e Erlebnis(em alemao os substantivos sao grafados sempre com letra maiúscula). A primeira temmais a ver com experiencia adquirida, aprendizagem pela prática, conhecimentoadquirido na vida (e nao nos livros). O verbo erfahren significa aprender, vir a saber,descobrir, experimentar; e fahren significa viajar, ir (no sentido de ir com algumacondugao), e por isso também dirigir um carro ou bicicleta, ou mesmo subir ou descer deelevador (ver, por exemplo, Keller, 2002). Erfahrung tem a ver, portanto, comconhecimento adquirido na prática da vida ou na vivencia de determinadosacontecimentos. Quando em portugués dizemos que alguém é muito "viajado" (com aconotagáo de ser urna pessoa experiente), isso poderia ser dito em alemao com a palavraErfahrung. - Já Erlebnis tem urna conotagáo mais ligada á emogáo sentida diante de umacontecimento concreto. Para dizer "aquela foi urna experiencia incrível", a palavra maiscorreta a ser usada seria Erlebnis e nao Erfahrung. Por isso Erlebnis significa mais"vivencia" do que aprendizagem; tem mais o sentido de experiencia vivida do que deexperiencia adquirida; mais o sentido de presenciar do que de aprender. O substantivoLeben significa vida, e o verbo erleben significa vivenciar, passar por, presenciar (Keller,2002). Erfahrung seria mais o aprendido, enquanto Erlebnis, o vivido. O primeiro termoimplica numa énfase no cognitivo acumulado enquanto o segundo no emocionalmomentáneo.Passar por urna vivencia {Erlebnis) é sentir o impacto de um encontró; é algo ¡mediato eanterior ás elaboragoes mentáis que poderiam ser feitas depois. Por isso o termo setornou importante na fenomenología. Ele expressa o que nos é dado de forma ¡mediata,o que experienciamos, antes mesmo de termos refletido ou elaborado qualquer conceitomais preciso. O conjunto dessa experiencia que assim nos é dada é o que Husserlchamou de Lenswelt (o mundo da vida, o mundo vivido) (por exemplo: Husserl, 2004).Esse mundo vivido nao é urna teoría, mas, diríamos nos psicólogos, é o referencial vividopara a elaboragáo de qualquer teoría significativa.Ocorre que nem em espanhol nem em italiano havia um termo que correspondesseexatamente a Erlebnis. Temos esperienza, prática, conoscenza, prova, em italiano paratraduzir "experiencia" (com énfase no cognitivo, correspondendo entáo a Erfharung); eexpressoes compostas ou circunloquios para traduzir o Erlebnis, como alias reconhece afilósofa Ales Bello (2004, 2006) felicitando o termo "vivencia" do idioma portugués. Emespanhol temos experiencia (aprendizagem pela prática, pelo viver) que corresponde aErfharung (experiencia adquirida); e, se nao fosse Ortega y Gasset nao teríamos nadapara Erlebnis assim como em italiano. Foi esse filósofo (Ortega y Gasset, 2002, porexemplo) que introduziu em espanhol o termo vivencia para traduzir o alemao Erlebnis,como nos informa o dicionário da Real Academia Española (1992). Vivencia significa ofato de viver ou experimentar algo, e seu conteúdo (portanto entendido dentro de urnaperspectiva de intencionalidade). Ferrater Mora, no verbete "Vivencia" de seu Dicionáriode Filosofía, transcreve a frase de Ortega em que ele introduz o termo em espanhol.

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Nessa frase Ortega y Gasset afirma que o verbo "viver", em expressoes como "viver avida" ou "viver as coisas", adquire um sentido especial: permanecendo depoente, eleadmite um objeto e significa entao "o género de relagao ¡mediata em que entra ou podeentrar o sujeito com certas objetividades". Ortega se pergunta entao como poderíamosdenominar "a cada atualizagao desta relagao". E responde: "Nao encontró outra palavrasenao Vivencia'. Tudo aquilo que chega com tal imediatez a meu eu que passa a fazerparte dele é urna vivencia" (citado por Ferrater Mora, 2004, p. 3035).Tampouco em francés existe o equivalente a vivencia. Existe expéríence, também com osentido de conhecimento adquirido na prática, e existe o verbo vivre, é claro (como emitaliano vivere, e em espanhol vivir) com seu participio passado vécu (vivido) que podeajudar na formagao de expressoes compostas. E existe o verbo sentir (sentir) com oscorrespondentes sentí (sentido, participio passado de sentir, mas que pode ser tambémsubstantivado) e sens (senso ou sentido). Todos esses termos {expéríence, vécu, sentí,sens etc) também podem ser usados, no francés, em expressoes compostas paraexpressar o que o Erlebnisquer dizer em alemao.Boa parte da fenomenología consiste em descrever esse vivido como ato do sujeito,diferente do conteúdo elaborado de conhecimentos acumulados a partir da prática davida. Algumas frases de Merleau-Ponty o ilustram. C'est quand les objets me donnentl'impression originaire du "sentí", quand ils ont cette maniere direct de m'attaquer, queje les dis existants (É quando os objetos me dao a impressao originaria de "algo sentido",quando eles tém essa maneira direta de me atacar, que eu os digo existentes) (Merleau-Ponty, 1972, p.228). Aqui é a palavra "sentido" (nao como substantivo, mas comoparticipio passado do verbo sentir - o que foi sentido) que ajuda Merleau-Ponty adescrever o vivido como algo diferente da posse de conhecimentos acumulados a partirda prática. Esse vivido nao é um significado ou urna idéia, acrescenta ele, embora possaapoiar posteriormente atos de expressao verbal com significado (signification). Mas essesatos, continua dizendo, visam um "texto originario" que nao pode estar desprovido desentido (sens). No sumario final do livro ele assim resume suas idéias: " / / faut distínguerla conscience comme lieu des signification et la conscience com me flux du vécu" (Énecessário distinguir a consciéncia como lugar de significagoes, da consciéncia comofluxo do vivido) (Merleau-Ponty, 1972, p.248). Podemos aproximar essa distingao deMerleau-Ponty aos dois sentidos do termo experiencia: significagoes acumuladas ouconhecimento adquirido, por um lado (Erfahrung), e fluxo do vivido ou vivencia, poroutro (Erlebnis).Podemos também aproximar esses dois sentidos de experiencia aos dois outrosanteriormente mencionados. A experiencia acumulada equivale á experiencia como fatointerno, e a vivencia (emocional) equivale a experiencia intencional pois nos faz afirmar aexistencia. Mas essa aproximagao nao pode ser total, nao é urna equivalencia. Aexperiencia como fato interno de que fala Rogers, por exemplo, nao se identificanecessariamente com conteudos produzidos resultantes da aprendizagem pela prática (eportanto significando conhecimentos e implicando em conservagao na memoria), poisincluí também um lado emocional de contato com a realidade, que Ihe dá um sentido queaponta para fora de si mesma como sentimento. E a experiencia intencional (o vivido deMerleau-Ponty) tem um sentido e, portanto, pode ser expresso em conteudos designificado. Urna coisa parece certa: o que pode ser claro em alemao, nao parece nadaclaro nos idiomas latinos. Isso nao é necessariamente ruim, pois pode provocarelaboragoes descritivas mais avangadas no sentido dos fenómenos.O que devemos reter por enquanto é que a vivencia pode ser expressa ñas línguaslatinas também pelo termo experiencia. Veremos depois que as vezes será bomacrescentar algum adjetivo para evitar confusoes dependendo do contexto.Urna outra diferenciagao que se introduz nos termos derivados de ex-peririé a que existeentre experimento e experiencia. Este último serve também para se referir aexperimento quando, por exemplo, falamos em urna experiencia científica. Contudo,nesse contexto, é o termo experimento que parece mais apropriado (Houaiss; Villar,2001, o método científico aparece mais associado a experimento do que a experiencia), eesse fato nao deixa de ser sugestivo. "Experimento" alude a eventos artificialmente

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provocados (em laboratorio), com controle de influencias (variáveis), visando averificagáo ou comprovagáo de hipóteses ou leis físicas ou associadas ao mundo físicoatravés de sua verificabilidade de tipo sensorial (mesmo que seja por instrumentos, eportanto em sentido alargado). Um estudo de correlagao, baseado em levantamentosestatisticamente controlados, mas sem manipulagao direta ou intencional do meio e simapenas observando o que se passa no ambiente natural, ainda poderia ser denominadode experimento? Provavelmente sim, mas já num uso um tanto derivado do termo, oupor extensao: na verdade esse estudo nao introduz modificagoes no ambiente, masapenas mede as mudangas que espontáneamente ocorrem (e poderia, por isso, serchamado de quase-experimental). Poderíamos dizer: existe um uso "duro" do termoexperimento (próprio das ciencias físicas), e existem usos mais maleáveis. Tudo issopressupoe urna visao de ciencia, e, por tras, urna visao de mundo real.Já o termo experiencia, embora possa ser usado também para se referir aosprocedimentos do método científico (duro), em si mesmo conota aspectos subjetivos e,quando usado na oposigao a experimento, refere-se mais a esses aspectos."Experimento" tem um sentido objetivo de algo que se faz externamente; e"experiencia", um sentido subjetivo de algo que se passa na interioridade do sujeito.Nesse contexto semántico, as ciencias humanas lidam muito mais com a experienciasubjetiva das pessoas ou de coletividades do que com fatos externos diretamentemensuráveis, e isso as obriga a repensar sua epistemología e seus métodos. Aprendercom experimentos é urna coisa, e aprender com a experiencia é outra. A fenomenologíaaqui se separa das ciencias naturais convencionais.Resta-nos considerar essa especie de coiné atual que é o inglés. Temos aqui experience(experiencia) tanto no sentido de ter experiencia em alguma coisa, conhecimentoadquirido com a prática (relacionando-se, portanto, com o alemáo Erfahrung), como nosentido de ter urna terrível experiencia (conotando o lado emocional, único, o impacto deum contato, relacionando-se com o Erlebnis alemáo). E esse termo pode ser também umverbo: to experience (experimentar). Donde o adjetivo experíenced, relativo a urnapessoa que obteve conhecimentos ou habilidades a partir da experiencia. E temostambém experiment, usado seja como substantivo (experimento, ao modo científico)seja como verbo (experimentar, fazer um experimento). Nesses aspectos é semelhanteao portugués.Em inglés, porém, a forma do gerundio (em geral terminada em ing) tem um uso bemmais ampio que ñas línguas latinas em geral, podendo mesmo ser visto como umsubstantivo ou um adverbio. No caso: experiencing. Talvez tenha sido Gendlin que fezdesse vocábulo um termo técnico para a psicología. Segundo ele existe urna diferengaentre experience e experiencing (ver, por exemplo, Gendlin, 1962; o próprio título dessaobra é um exemplo do que estamos considerando: Experiencing and the creation ofmeaning - experienciagáo e a criagáo do significado; dois gerundios usados comosubstantivos). Os termos, experience e experiencing, foram traduzidos em portuguéscomo "experiencia" e "experienciagáo" (este ainda um neologismo) respectivamente.Experience é um fato subjetivo para o qual, segundo Gendlin, nao há propriamente umreferencial empírico (daí a dificuldade das ciencias humanas); enquanto experiencing(experienciagáo) pode ter um referencial empírico, isto é, pode ser detectado edesignado pelo próprio sujeito que o vivencia, em seu corpo, como urna sensagáoinicialmente vaga e confusa, mas localizada e que teria implícita em si urnaintencionalidade. A capacidade de detectar o que está sendo experienciadocorporalmente pode ser desenvolvida através de um processo sistemático por elechamado de focusing, focalizagáo. Experienciagáo, portanto, para Gendlin, é maisconcreto do que experiencia: experiencia seria um construto, um conceito, eexperienciagáo é que seria aquilo que é designado por esse conceito, ou seja, a vivenciamesma.Com que outras palavras a vivencia poderia ser designada em inglés? Experiencing équase um termo técnico. De maneira mais comum: living (vivencia) ou lived experience(experiencia vivida). Eis, por exemplo, urna frase de Shapiro (1985, p.12): "The guidingideal of a phenomenological method is to develop a description of a given experience

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while remaining faithful to the appearance of that experíence as it ¡s ¡n the living of it' (Aorientagao ideal do método fenomenológico é desenvolver a descrigao de urna dadaexperiencia mantendo fidedignidade á sua aparéncia tal como ela é em sua vivencia - ou,numa tradugao mais livre: o ideal do método fenomenológico é a descrigao de urna dadaexperiencia de modo fidedigno a ela tal como se mostra quando vivenciada). E logoadiante, urna outra frase: "77?e /¡ved moment or /¡ved experíence is the plenum ofmeanings ¡n any moment of experíence prior to their explication" (o momento vivido ou aexperiencia vivida é a totalidade de significados de cada momento de experiencia,anterior á sua explicagao - ou: anterior ao seu desdobramento simbólico).No esforgo de se aproximar da vivencia enquanto evento detectável concreto, Gendlin(1962) usa também expressoes como felt meaning (significado sentido) e felt sense(sentido sentido). O termo meaning na primeira expressao tem a vantagem de conotarintencionalidade (o que aproximaría da vivencia), mas a desvantagem de conotar, para alíngua portuguesa, o significado construido como conceito (o que a distanciaría davivencia). E a tradugao do felt sense fica estranha em portugués porque nos obriga arepetir a palavra sentido, o que nao acontece em inglés.Gostaria de finalizar esse passeio vocabular com algumas sugestoes sobre o uso dostermos da familia semántica da "experiencia" tanto na prática do psicólogo como napesquisa.Esses termos apontam para um foco do olhar, ou se quisermos um foco da escutapsicológica, ou ainda um foco da atengao psicológica. Urna coisa é enfocar oscomportamentos tentando estabelecer urna rede de causas e efeitos. Outra coisa éenfocar o mundo vivido pela pessoa (no contexto da intercomunicagao). Na primeiraalternativa o psicólogo entra como técnico ou perito. Na segunda ele entra como umcompanheiro de buscas que antes de mais nada precisa compreender como as coisas seapresentam para a pessoa. Dentro de urna abordagem humanista urna procura dascausas pode até acontecer, mas só será válida enquanto estiver inserida num contextode encontró e busca conjunta.Encarando essa diferenga por outro aspecto: urna coisa é enfocar os mecanismosindividuáis ou coletivos subjacentes ao que está sendo problemático para a pessoa; eoutra coisa é enfocar diretamente os desafios que se colocam para a pessoa no horizonteque para ela se apresenta, sem as restrigoes impostas pelos modelos interpretativos (dopsicólogo, da própria pessoa ou da cultura ambiente).E ainda sob outro aspecto: urna coisa é olhar o problema da pessoa; e outra bemdiferente é olhar a pessoa que se encontra ali e faz urna tentativa (bem ou mal sucedida)de comunicagao (e as vezes de apelo urgente). A segunda postura só é possível dentrode um pressuposto bem diferente da primeira. Em termos genéricos, temos, de um lado,urna relagao sujeito-objeto, e, de outro, urna relagao sujeito-sujeito. Na segunda relagaoo sujeito se redefine totalmente, pois agora ele nao está diante de um objetomanipulável, mas diante de outro sujeito que pode ampliar seus horizontes no contextoda intercomunicagao.Pois bem, o que aparece aqui como a segunda postura, ñas tres comparagoes,corresponde a um olhar para a experiencia: como as coisas sao para os agentesenvolvidos na situagao. Esse olhar conjunto, desde que nao limitado pelos esquemasinterpretativos, pode desencadear o fluxo criativo do viver e é isso o que importa.Podemos, no entanto, aprofundar o foco desse olhar (a experiencia no sentido genéricodo termo) considerando os possíveis focos da pesquisa do humano (a experiencia nosentido mais profundo de vivencia).Num sentido mais específico o significado da palavra experiencia se desdobra, e numprimeiro momento se refere ao conhecimento adquirido na prática. Sendo isso um"acumulado", sua origem está no passado. A experiencia aqui implica em memoria. Masse pensarmos justamente na origem desse processo, veremos que se trata de um vivido.O que está na origem da experiencia adquirida nao é um livro, mas sao vivencias. Essasvivencias foram produzindo em nos um conhecimento tácito que foi crescendo e sefirmando a partir de alguma forma de inscrigao na consciéncia.

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O que importa na pesquisa de orientagao fenomenológica é ir além do sedimentado comoconhecimento já possuído (e guardado na memoria), e buscar aquela origem anterior asexplicagoes, para, a partir déla, reconstruir os significados tendo a indagagao dopesquisador como instigagao. Ou, usando urna metáfora: tendo a indagagao dopesquisador como anzol. É Clarice Lispector (1985) que diz que a palavra serve parapescar o que nao é palavra. Mas o que é isso que nao é palavra (mas que a palavrapesca)? É a vivencia anterior as formulagoes elaboradas; é a experiencia, sem dúvida,mas agora num sentido mais profundo.Essa realidade psicológica intencional mais profunda (anterior as formulagoes eelaboragoes conceituais) pode ser chamada de experiencia também. Mas para naoficarmos no sentido genérico ou cognitivo de experiencia, proponho que a denominemosnesse caso de vivencia. Ou entao acrescentemos um adjetivo á palavra experiencia, efalemos de experiencia ¡mediata, experiencia vivida, experiencia vivencia! ou mesmoexperiencia emocional. Essa experiencia vivida pode estar no passado, mas temos apossibilidade de nos referirmos a ela nao apenas consultando urna memoria já pronta,mas, de certa forma, reeditando a vivencia (e nesse caso a expressao mais adequadaseria experiencia vivencia!). Essa reedigao será tanto mais viva quanto mais oentrevistador souber conduzir urna busca experiencial, ou urna modalidade experiencialda reflexao (do próprio pesquisador ou de urna outra pessoa). Quando assimpresentificada essa reflexao, poderemos falar de significado sentido, ou de sentidosentido, ou mesmo de sentido experiencial presente; e se colocamos esse sentido nacorrente existencial (em transformagao), poderemos falar de fluxo experiencial. A arte dechegar ai é certamente um desafio ao psicólogo e ao pesquisador, pois implica em chegara esse vivido sem se deixar engañar pelas construgoes já existentes no sujeito, em sipróprio, ou na cultura ambiente, (pois essas construgoes foram feitas a partir de outrasperguntas), e, no entanto, chegar lá passando por essas construgoes.

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Nota sobre o autorMauro Martins Amatuzzi trabalha atualmente como docente do Programa de Pós-Graduagao em Psicología da Pontificia Universidade Católica de Campiñas, Brasil. Épsicólogo e doutor em Educagao. Contato: R. Luverci Pereira de Sousa 1656 / CidadeUniversitaria/ 13083-730 Campiñas - SP / Brasil. E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 07/02/2007Data de aceite: 30/12/2007

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A pessoa como sujeito da experiencia:um percurso na historia dos saberes psicológicos

The person as subject of experience: a route in the history of psychologicalknowledge

Marina MassimiUniversidade de Sao Paulo

Miguel MahfoudUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

ResumoDiscutem-se as definigoes de "experiencia" da historia da cultura ocidental queinfluenciaram a constituigao dos saberes psicológicos: desde Aristóteles até Wundt eJames. Originariamente entendida segundo dimensoes diversificadas, experiencia sereferia seja ao conhecimento sensorial e prático das coisas, seja á verificagao e á prova,seja ao conhecimento interior. Analisam-se nessa tradigao as contribuigoes de Agostinho,Roger Bacon, Tomás de Aquino e seus interpretes jesuítas em ámbito luso-brasileiro. Apartir da Idade Moderna, pela influencia das filosofías empiristas, experiencia foi reduzidaá dimensáo de conhecimento sensorial testado e comprovado conforme os criterios dométodo científico; a 'prática das coisas' foi definida como senso comum tendo acepgáonegativa; e o conhecimento interno foi restrito ao ámbito determinado pelos parámetrosdo conhecimento externo. Separavam-se assim dimensoes da experiencia anteriormenteconcebidas de modo unitario. Este conceito de experiencia foi utilizado no século XIX noestabelecimento de dominio, métodos e objetos da nova Psicología científica.

Palavras-chave: experiencia; historia das idéias; historia da psicología.

AbstractThe definitions of "experience" of Western culture that have influenced the developmentof psychological knowledge are discussed. Originally understood according to diversifieddimensions, experience referred either to the sensorial and practical knowledge of things,or to verification and proof, or to interior knowledge. In this tradition, the contributions ofAgustín, Roger Bacon, Aquinas, and their Jesuit interpreters are analyzed. As of theModern Age, due to influence of empiricist philosophies, experience was reduced to thedimensión of tested sensorial knowledge proven by the criteria of scientific methods; the'practice of things' was defined as common sense having a negative meaning; andinternal knowledge was restricted to the ambit determined by the parameters of externalknowledge. Dimensions of experience previously conceived in a unitary way wereseparated. This concept of experience was used in the 19th century in the establishmentof domain, methods, and objects of the new scientific Psychology.

Keywords: experience; history of ideas; history of psychology.

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Reducoes contemporáneas do conceito de experienciaNo contexto hodierno, encontram-se algumas redugoes da concepgao de experiencia(Molioli, 1992) que por sua vez fundamentam-se em alicerces teóricos propostos pelasfilosofías modernas e contemporáneas.Numa abordagem naturalista a experiencia é reduzida ao significado emocional, comoalgo que se adverte ¡mediatamente e de modo espontáneo. A qualidade emocionalcaracterizaría a experiencia, sendo a emogao determinada pelo contexto, interno ouexterno. A experiencia assim concebida é apenas um estado emocional puro, naopossuindo rigor ético pelo fato de nela o sujeito nao estar presente ativamente com sualiberdade e consciéncia, apenas acusando de modo passivo os próprios movimentospsíquicos.Em diversas outras abordagens a experiencia vem a ser reduzida a experimentalismo eexperimentagao. Tal redugao se fundamenta no pressuposto positivista de que éverdadeiro apenas aquilo que é verificável ou falsificável. Baseia-se na concepgao de queo real identifica-se com o que é passível de ser testado pela experimentagao, naopodendo ser ai incluidos valores ou relacionamentos pessoais (a menos que o sujeito sesubmeta a eles). De modo que a experiencia é tomada como um "provar" sem razoes.Noutras abordagens ainda a experiencia é entendida na forma de imediatismo: a partirda justa exigencia de urna relagao ¡mediata e direta com o mundo, superando todas asmediagoes, pode-se porém incorrer numa metafísica da unidade do real (concebida emtermos panteístas, holistas, energía cósmica etc.), onde a pessoa humana - contingente- sem consistencia, é tomada como um acídente a ser superado e o outro vem a serconcebido como objeto, sem a possibilidade de relacionamento com um tu pessoal.

Utilidade de urna leitura histórica do conceito de experienciaUrna leitura do processo histórico de constituigao dos varios sentidos da experiencia nacultura ocidental permite-nos compreender melhor as raízes da problemática atual.Específicamente para a psicología essa discussáo é decisiva. Com efeito, ao estabelecer odominio, métodos e objetos da nova psicología científica, autores como W. Wundt (1900)e W. James (1989) utilizaram conceitos de experiencia baseados na filosofía empirista enos postulados das ciencias naturais.Nesta ótica, diferenciavam e separavam dimensoes da experiencia que, na visáo própriada tradigáo ocidental (clássica, medieval e humanista) foram concebidas de modounitario: originariamente entendida segundo dimensoes diversificadas, o termoexperiencia referia-se tanto ao conhecimento sensorial e prático quanto á verificagáo eprova, ou mesmo ao conhecimento interior. O empirismo, no inicio da Idade Moderna,passa a reduzir a experiencia á dimensáo do conhecimento sensorial - a ser testado ecomprovado conforme os criterios do método científico. A "prática das coisas" passou aser definida como "senso comum", tendo acepgáo negativa; e o conhecimento interno foirestrito a um ámbito que somente poderia ser determinado pelos parámetros doconhecimento externo. Esta redugao foi contestada por Brentano e posteriormente porHusserl, por ser urna "naturalizagao" da experiencia humana que inviabilizaria aconstrugao da psicología como ciencia da pessoa.Percorreremos a seguir as principáis etapas deste processo.

A experiencia segundo AristótelesAristóteles discute o tema da experiencia no primeiro capítulo do primeiro livro daMetafísica (Aristóteles, século IV a.C./ 1969) a partir da análise da exigencia, implícita nanatureza humana, que a impele para as ciencias supremas e a sabedoria. A ciencia e aarte sao possíveis mediante a experiencia. O "desejo humano de saber" é universal e naose restringe ao conhecimento utilitario. A experiencia é urna etapa da aquisigao doconhecimento: varias lembrangas de urna mesma coisa chegam a constituir aexperiencia, independentemente de sua veracidade que poderia vir a ser verificada pelointelecto.Vejamos como Aristóteles concebe o dinamismo psíquico de elaboragao da experiencia.

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Em Analíticos posteriores ( I I , 19, 100 a 4) (citado por Abbagnano, 2003), o estagiritaafirma que, a partir da sensagáo, desenvolve-se o que chamamos de recordagáo, cujarepetigao possibilita a experiencia. Por isso, recordagoes quantitativamente significativasconstituem a experiencia como um conceito universal fixado na alma nos termos de urnaunidade que transcende a multiplicidade: é única e idéntica. Sua lembranga é preservadapela imaginagao e pela memoria, em forma de imagens.De modo semelhante, na obra Parva Naturalia (Aristóteles, sáculo IV a.C/1993), afirmaque os objetos presentes no mundo produzem impressoes no corpo através do órgao desentido, e impressoes na alma - a sensagao como urna especie de pintura conservada namemoria. Potencia comum a todos os animáis, a memoria preserva os vestigios dasensagao vivenciada.No De Anima (Aristóteles, sáculo IV a.C/2001), ao descrever as propriedades psíquicas,Aristóteles coloca a potencia da imaginagao como intermediaria entre a percepgao e opensamento, "implicando sempre a presenga da percepgao e além disto, encontrando-seela própria implícita no ato de julgar" (p. 97). A imaginagao nao é redutível á sensagao:"imaginar é formar urna opiniao exatamente correspondente a urna percepgao direta"(ídem). Da memoria e da imaginagao elabora-se entao a experiencia que por sua vez dáorigem as artes e as ciencias. Da experiencia surge também a inteligencia dos principios,de modo tal que, por indugao, a sensagao leva ao universal.Todavía, a experiencia constitui-se apenas numa etapa do processo de elaboragao doconhecimento, sendo as artes um nivel mais elevado do mesmo. Com efeito, aexperiencia serve ao homem para atestar que um certo fato aconteceu, mas nao paradefinir o motivo de seu acontecer. Conforme o autor afirma na Metafísica: "os homens deexperiencia conhecem o fato, mas nao o porqué; os outros (os homens de arte)conhecem o porqué e a causa" (Philippe, 2002, p. 162). Está nestes diversos níveis deconhecimento, por exemplo, a diferenga de competencias entre o arquiteto e o pedreiro:o primeiro possui o logóse a causa, o segundo a experiencia.Cabe também lembrar que ao definir a experiencia sensorial, Aristóteles, em De sommo(2, 455, a 13), parte dos Parva Naturalia (século IV a.C/1993) introduz a potenciapsíquica do "senso comum", ou seja, a capacidade geral de sentir á qual é atribuida afungao de constituir a consciéncia da sensagao (ou seja de "sentir o sentir") e deperceber as determinagoes sensíveis comuns aos varios sentidos (por exemplo:movimento, repouso, tamanho, número, unidade, aspecto):

existe também urna potencia comum que acompanhatodos os sentidos particulares, pela qual o animalpercebe que vé e ouve, pois com certeza nao é pelavisao que vé de ver nem é pelo paladar ou pela vistaque pode-se julgar a diferenga entre o branco e o doce,mas por meio de outra potencia comum a todos osórgaos de sentido: (...) o senso comum (Aristóteles,século IV a.C/1993, p. 86, trad. nossa).

Por fim, é importante considerar que, do ponto de vista semántico, Aristóteles, aodenominar experiencia, utiliza de tres palavras gregas diferentes: aisthesis - a saber,sensagao, sentimento e intuigáo -, empeiria - a saber, experiencia no sentido dehabilidade e prática - e peira - ou seja, prova e experimento (Fabris, 1997). Taldiversidade de termos indica a complexidade da concepgáo aristotélica de experienciaalertando para um necessário cuidado com o risco de simplificagoes.

A experiencia e o conhecimento de si mesmo, segundo AgostinhoSanto Agostinho (386/1998), nos Soliloquios, refere-se á experiencia em termos deconhecimento sensorial. No quarto capítulo, ao tratar da ciencia geométrica, afirma queesta requer como ponto de partida inicial a experiencia sensorial, mas logo superada emprol do entendimento:

Nesse assunto, tenho experiencia dos sentidos quasecomo de urna nave. Pois quando eles me conduziramao lugar do destino, onde os deixei, já como que em

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térra comecei a ponderar essas coisas com opensamento; durante muito tempo vacilaram-me ospés. Pelo que parece-me antes que se possa navegarna térra do que conseguir a ciencia geométricas com ossentidos, embora parega que estes sejam de algumaajuda para os que comegam a aprender (p. 26).

A vivencia da experiencia sensorial, porém, deve ser analisada em toda a suacomplexidade. A este respeito, Agostinho coloca, no capítulo sexto, urna importantedistingao entre olhare ver.

as coisas sao iluminadas pelo sol para que possam servistas, assim, como o é a térra e tudo o que é terreno;mas Deus é quem ilumina. Assim, eu, a razao, estouñas mentes como a visao nos olhos, como tampoucoolhar e ver. Por isso, a alma precisa de tres coisas: terolhos dos quais possa usar bem, olhar e ver. O olhar daalma é a mente isenta de toda mancha do corpo, isto é,já afastada e limpa dos desejos das coisas mortais, oque somente a fé, em primeiro lugar, Ihe podeproporcionar (p.30).

Tais afirmagoes implicam que toda experiencia sensorial (olhar) possui urna dimensaoracional (ver).No tratado A Trindade (399-422/2000, livro IV, capítulo 20), Agostinho usa o termo"experiencia" para referir-se a outro tipo de conhecimento que nao o sensorial: oconhecimento do "Verbo de Deus". Este "pode ser conhecido e percebido pela capacidadeda alma racional, que tende para Deus ou já é perfeita em Deus" (2000, p. 183). Aqui, oautor usa o verbo percipitur que significa conhecimento experiencial (no sentido de"ciencia saborosa", ou seja de um entendimento que envolve também a sensagao e oafeto). Na mesma obra, no livro IX (capítulos quarto e sexto) dedicado ao "conhecimentoda alma por si mesma" (pressuposto também do conhecimento alheio), Agostinho afirmaque este assume duas facetas: o conhecimento que cada pessoa tem da própriaexperiencia interior e o conhecimento racional:

urna coisa é o que cada individuo diz verbalmente, desua alma pessoal, quando está atento ao queexperimenta em seu interior: e outra coisa é a definigaoque dá a alma humana por um conhecimento,específico ou genérico, que possua. Assim, quandoalguém me fala de sua própria alma afirmando, porexemplo, que compreende ou nao isto ou aquilo; ouquer ou nao isto ou aquilo; eu acredito nele. Mas aocontrario, quando alguém me diz a verdade sobre aesséncia específica ou genérica da alma humana, eureconhego e aprovo (2000, p. 296).

Em suma, o conhecimento pessoal da própria experiencia acarreta a certeza moral ["verem si o que outro poderá acreditar, embora sem o ver" (ídem)]; ao passo que oconhecimento racional da alma requer a verificagao pela evidencia, a comprovagao peloraciocinio e o consenso universal ["contemplar na própria verdade o que outro tambémpode ver tao bem quanto ele" (ídem)]. O primeiro tipo de conhecimento "está sujeito asmutagoes dos tempos", o outro é "eterno e imutável" (ídem). Com efeito auniversalidade nao se atinge por via do conhecimento sensorial ["nao há de ser por tervisto previamente muitas almas com nossos olhos corporais que alcangaremos porcomparagao conhecimento geral ou parcial da mente humana" (ídem)], mas através datentativa de "definir de modo perfeito, o quanto podemos - nao qual seja o estado daalma de cada um, mas qual deva ser, conforme as razoes eternas" (ídem).Agostinho discute o conhecimento adquirido por experiencia, no capítulo quarto do livrodécimo do tratado, onde sustenta que, quando a alma procura conhecer racionalmente a

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si mesma, já sabe de ser alma e pelo conhecimento intelectual busca completar este seuconhecimento intuitivo dado pela experiencia:

Quando a alma procura conhecer-se, já sabe que éalma; caso contrario ignoraría se procura a si mesma ecorrería o risco de procurar urna coisa por outra. (...)Como sabe que ainda nao se encontrou toda, ela sabequal é a sua grandeza. E assim busca o que Ihe falta aseu conhecimento (Agostinho, 2000, pp. 318-319).

No capítulo oitavo do mesmo livro, Agostinho afirma que este saber possui ascaracterísticas da certeza, pois por si mesma a alma sabe de existir, de viver e deentender: "o que existe de mais presente á alma, do que a própria alma?" (2000, p.326). E, por fim, no nono capítulo, coloca que quando exortamos a alma: '"conhece-te ati mesma', no mesmo ato em que ela entende: 'ti mesma', ela se intui, e nao por outrarazao do que pelo fato de estar presente a si mesma" (ídem).Agostinho a valoriza o conhecimento experiencial que a alma tem de si própria, comoponto de partida de todo o processo intelectual. No capítulo décimo do livro décimo,afirma que a alma sabe com certeza que existe, vive e entende. Por isto é necessário"que a alma nao acrescente nada ao conhecimento (isto é, á autoconsciéncia) que temde si mesma, quando ouve a ordem de se conhecer" (2000, p. 327) e que "ela deixe delado o que pensa ou imagina de si e veja o que 'sabe', e fique com essa certeza" (ídem).Este "saber" experiencial da alma acerca de si mesma nao abarca apenas o campo do sere do entender mas também o da vontade ["do mesmo modo toda alma humana sabe quequer" (ídem)] e da memoria ["a alma sabe igualmente que se recorda" (ídem)]. Trata-seporém de urna apreensao unitaria de todo este dinamismo, pois "a alma sabe igualmenteque para querer é preciso ser, é preciso viver" e "ela sabe que para recordar, é precisoser, é preciso viver" (ídem). Portanto, o saber assim definido é um conhecimentoimplícito que a alma tem déla mesma, ao passo de que o pensar é um conhecimentoexplícito. Estes dois niveis de conhecimento sao unidos entre eles pela vontade, ou seja oamor entendido como desejo de possuir o objeto a ser conhecido.No livro décimo quarto (capítulo sétimo), Agostinho aprofunda esta distingao entre sabere pensar. Urna coisa é saber (ter notitia) e outra é pensar {cogitare). O saber depende damemoria, pois a alma tem conhecimento de tudo o que há na mente mesmo sem utilizaro pensamento, pela memoria; ao passo de que conhecer supoe também o entendimentoe o amor pelo objeto.

A experiencia segundo Tomás de AquinoTomás de Aquino, ao comentar a passagem de A Trindade (Livro IV, capítulo 20) que hápouco analisamos em que Agostinho se refere ao conhecimento experiencial de Deus,afirma que se trata de um "conhecimento saboroso" {Suma, I, qu. 43, 5,3), sendo que oconhecimento de Deus "nao é um aperfeigoamento qualquer do intelecto mas somentequando ele é instruido de tal modo que irrompe em afeigao de amor" (Aquino, 1267-68/2002, p. 685, vol. 1). E complementa:

também Agostinho usa de termos significativos: 'oFilho, diz ele, é enviado quando é conhecido epercebido'; percepgao significa, com efeito, umconhecimento experimental. E essa é o quepropriamente se chama sabedoria, ou ciencia saborosa,segundo se declara no Eclesiástico: "A sabedoria dadoutrina é segundo o seu nome" (ídem).

Já em outras partes da Suma, Tomás de Aquino refere-se ao termo experiencia nosentido aristotélico de conhecimento pelos sentidos (Suma, v. I I , Parte I, qu. 54, art.3):"há com efeito em nos experiencia enquanto conhecemos pelos sentidos as coisassingulares" (2002, p. 155, vol. 2), tendo afirmado em parágrafo anterior que "aexperiencia vem da memoria de muitas coisas, como se diz no livro primeiro daMetafísica" (2002, p. 154, vol. 2).

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Para melhor compreender esta expressao é fundamental lembrar que, segundo asistematizagao da psicología de Aristóteles realizada por Tomás de Aquino, os sentidosnao sao apenas os externos ligados aos cinco órgaos sensoriais, mas também há quatrosentidos internos, a saber fantasía, cogitativa (ou ratio particutaris), memoria e sensocomum. Cada um deles assume urna fungao específica na produgao do conhecimento: osenso comum realiza urna primeira unificagao das informagóes sensíveis transmitidaspelos sentidos externos, a fantasía ocupa-se de sua unificagao num quadro espago-temporal, a memoria armazena e ordena as informagoes em imagens e a potenciacogitativa proporciona urna primeira intelecgao dos elementos nao sensíveis, realizandoum primeiro nivel de reconhecimento do universal no sensível. A memoria e a cogitativafundamentam a virtude da prudencia, a qual por sua vez discerne o bem e o mal esugere a escolha do bem concreto, orientando a agao.

A experiencia segundo a filosofía, a teología e a mística medievaisA colocagao de Agostinho (399-422/2000) de que compreender é exercício dainteligencia ao passo de que saber algo significa realizar urna experiencia mais complexaem que o sujeito é implicado nao apenas com a inteligencia mas também com aliberdade, a vontade, os afetos e a sensibilidade, acarreta urna concepgao da relagao coma verdade que supera a dimensao intelectual. Tal visao perpassa a teoría doconhecimento da cultura medieval, em seus diversos planos filosófico, teológico emístico.No que diz respeito a esta última dimensao, destaca-se a contribuigao de Bernardo deClaraval (1009-1145), segundo o qual o conhecimento de Deus e de si mesmo acontecepor experiencia (Bernardo. Em: Lauand, 1998). Repetidamente, o monge refere-se nossermóes á experiencia do gosto da contemplagao divina e observa que somente podecompreender as verdades divinas quem fez "experiencias" délas. Numa famosa pregagaosobre o conhecimento (Sermao 36), por exemplo, ele estabelece urna analogía entre oconhecimento e a alimentagao: numa certa altura afirma que "basta um pouco deconhecimento de Deus para experimentar que Ele é piedoso e solicito (...) Deus se dá aconhecer nesta experiencia e desta maneira salutar, a partir do momento em que ohomem se reconhega indigente e clame ao Senhor, e Ele o ouvirá" (Bernardo, 1998, p.270).No Sermao 84 sobre Cántico dos Cánticos, Bernardo ressalta a necessidade que oconhecimento de Deus seja baseado na experiencia, própria ou dos outros (Santos,2001).Reiteramos há pouco que a experiencia é um conhecimento nao apenas intelectual. Comefeito, no Terceiro sermao da Ascensao, Bernardo frisa a importancia de que o espirito (ainteligencia) seja acompanhado pela alma (afetos), para que se possa fazer experienciade Deus. Se o afeto e, portanto, a vontade, nao forem purificados, a alma ficainteiramente tomada pelas distragóes, incapaz de receber as "visitas" do Senhor:"Experimenta e verás que as duas [distragoes e visitas] nao podem jamáis estar juntas"(Santos, 2001, p. 171).Evidentemente, atingir profundamente este conhecimento é possível somente ao"expertus" pois "quem disso tem a experiencia haverá de compreender melhor e demaneira mais feliz" (idem, p. 168). Mesmo assim, trata-se de um conhecimento aindaparcial: na pregagao sobre os Cánticos (32, 2-3), Bernardo refere-se ao fato de quenesta vida terrena, a alma devota pode "experimentar com freqüéncia a alegría pelapresenga do Esposo neste corpo, mas jamáis de forma muito intensa" (idem, p. 178).Desse modo, a mística prepara a reviravolta conceptual que será formulada pelo filosofomedieval Roger Bacon (1214-1292). Seguindo a tradigao de Agostinho, este filósofoinglés da Ordem dos Frades Menores, afirma em sua Opus Maior (IV,1, 1897-1900), quea alma nao repousa no conhecimento da verdade se nao a encontrar pela experiencia,pois esta proporciona á mente urna evidencia maior do que o raciocinio. Segundo Bacon,existem duas maneiras de conhecer: o raciocinio e a experiencia. O primeiro permite aconclusao, mas nao proporciona a seguranga do espirito, ao passo que somente aexperiencia proporciona a certeza. Pois, teoría e certeza nao sao sinónimos. Existem dois

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tipos de experiencia: a interna e espiritual (vida interior, mística) e a externa, adquiridapor meio dos sentidos. A primeira conhece as verdades sobrenaturais, a segunda asnaturais (cf. Reale e Antiseri, 1986). Pela primeira vez comparece na historia ocidental aconcepgao segundo a qual a teoría deve necessariamente ser comprovada pelaexperiencia: "Nu/lus sermo in his potest certificare, totum enim dependet ab experientia"(citado por Gilson, 1986, p. 598)

Experiencia na cultura da Reforma CatólicaA partir do sáculo XVI, os jesuítas foram entre os mais importantes porta-vozes dareforma católica na Europa e em varias áreas geográficas (inclusive na área luso-brasileira). Neste ámbito, encarregaram-se da difusao no meio das populagoes, datradigao do Ocidente cristao, através dos textos escritos mas sobretudo da transmissaooral, pela pregagao e pela 'conversagao' (peculiar prática de apostolado recomendada porInácio de Loyola) (1).O tema da experiencia, concebida no sentido tradicional do termo, é freqüente nosescritos jesuíticos de diversa natureza e finalidade. Em primeiro lugar, a "experiencia dascoisas" é urna das categorías que comparecem nos Catálogos Segundus, documentoselaborados a cada trienio pelos Provincias da Companhia, onde descreve-se a situagao decada membro e de cada residencia nos diversos locáis de presenga da Ordem (Massimi,2000).Em segundo lugar, o termo comparece nos escritos filosóficos: por exemplo, nos Manuaisdos Conimbricences, com muita freqüéncia as afirmagoes doutrinárias sao comprovadaspelas seguintes afirmagoes: "comprova-se esta verdade por meio da experiencia", "comoa experiencia quotidiana ensina", "a experiencia demonstra-o", "confirmase porexperiencia" (2).Em terceiro lugar, na correspondencia epistolar encontram-se expressoes como "i/é-sepela experiencia", "comecei a compreender pela experiencia", "a experiencia obriga-me ater esta opiniao " (3).Parece, portanto, que os pensadores da Companhia utilizam o termo nos sentidosaristotélicos ácima assinalados de empeiriae de peira.Num curioso sermao pregado no ano de 1665, em Salvador da Bahia, Brasil, pelo padrejesuíta Lourengo Craveiro (1665), tem-se o uso constante do termo experiencia paracomprovar a veridicidade das "receitas" sugeridas pelo pregador. Trata-se de receitasmetafóricas para o alimento da vida espiritual, baseadas em analogías referentes aoalimento da vida do corpo: aqui o termo experiencia (empregado dez vezes ao longo dodiscurso) assume ambas as conotagoes (que vimos presentes na tradigao filosófica eteológica, especialmente em Bernardo de Claraval) de: experimentar os efeitos dacomida pela via sensorial e de conhecimento espiritual (4).O termo final deste conhecimento por experiencia é a identificagao com o objetoexperimentado: a uniao mística. O convite do pregador introduz os ouvintes paracomprovar suas palavras: a todos é possível adquirir pela experiencia o conhecimentomais elevado possível ao ser humano: o da própria Pessoa divina.

A nova concepcao de experiencia da Idade ModernaNa Idade Moderna assiste-se a um questionamento do valor da experiencia assim comoentendido pela tradigao ocidental. Conforme assinala H. Arendt (1999), a revolugaocientífica e o surgir da mentalidade da Idade Moderna comportam a entrada, na cena dahistoria, do homo faber, capaz de fazer e de fabricar - inclusive a si mesmo. Esta novavisao do mundo acarreta - como conseqüéncia - urna nova concepgao do conhecimento,segundo a qual a verdade e a realidade nao sao dadas, nem se revelam ¡mediatamentena aparéncia. Se a concepgao tradicional baseava-se no pressuposto de que o real serevela por si mesmo, sendo as faculdades humanas adequadas para reconhecé-lo erecebé-lo, a Modernidade questiona a certeza de que "os sentidos como um todointegram o homem a realidade que o rodeia" (1999, p. 287). Conseqüéncia disto é quese perde a nítida separagao entre ser e aparéncia.

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Rene Descartes (1596-1650), introduzindo a dúvida metódica, resolve-a afirmando queos processos que se passam na mente do homem sao dotados de certeza própria epodem ser investigados, de modo que o homem, e nao a realidade, passa a ser a fonteda certeza. O pressuposto implícito desta doutrina é que a mente pode conhecer apenasaquilo que ela mesma produz e retém dentro de si, sendo a ciencia matemática o campoexemplar deste poder. O senso comum entendido como sentido de ajustamento de todosao mundo, passa a ser urna faculdade interior: o que os homens tém em comum nao émais o mundo, mas a estrutura da mente. Dilui-se a conexao entre pensamento eexperiencia dos sentidos, substituida pelo mundo da experimentagao científica.Desse modo, na Modernidade, o termo experiencia passa a designar a concepgao do realque o homem elabora através dos métodos de conhecimento escolhidos para tanto,dentre os quais, o mais fidedigno é o experimento científico.Significativo desta nova posigao é o pensamento do filósofo inglés David Hume (1711-1776). No Tratado da natureza humana (1749-40/1972), Hume (1972, p. 13) afirma serseu objetivo criar um método para a filosofía que "nao decorresse da invengao mas daexperiencia". Para isto, propoe examinar seriamente a natureza do entendimentohumano, utilizando-se do "espirito de exatidao e do raciocinio" (ídem). Coloca a hipótesede que a experiencia humana, assim examinada, possa ser compreendida da mesmaforma que o mundo natural.Segundo Hume (1972, p. 148), "a existencia de qualquer ser somente pode ser provadamediante argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos sefundam inteiramente na experiencia", e nao no raciocinio apríorí. Pois, "se raciocinamosa priori, qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer coisa. A queda do seixopode, pelo que sabemos, extinguir o sol, ou a vontade de um homem controlar osplanetas e suas órbitas". Ao invés, "é únicamente a experiencia que nos ensina anatureza e os limites da causa e do efeito, e permite-nos inferir a existencia de umobjeto partindo de um outro" (ídem). Inclusive este conhecimento experimental abarcatambém os fenómenos humanos: "Tal é o fundamento do raciocinio moral que constituí amaior parte do comportamento humano e que é a fonte de todas as agóes ecomportamentos humanos" (ídem).Tal crenga leva Hume a rejeitar totalmente toda a tradigao do conhecimento ocidental:

Quando percorremos as bibliotecas persuadidos destesprincipios, que destruigao deveríamos fazer? Seexaminarmos por exemplo um volume de teología oude metafísica escolástica e indagarmos: Contém algumraciocinio abstrato acerca da quantidade ou do número?Nao. Contém algum raciocinio experimental a respeitodas questóes de fato e de existencia? Nao. Portanto,langai-o ao fogo, pois nao contém senao sofismas eilusoes (1972, p. 148).

Esta posigao encontrará sua continuidade no século XIX na filosofía positivista (5) de A.Comte e H. Spencer, para os quais a ciencia é o único saber que permite apreender aexperiencia de modo unificado.Na Idade Moderna, porém, varios sao os pensadores que discordam da posigaocartesiana e humeana no que diz respeito á concepgao de experiencia. Dentre eles, oautor mais interessante é Giambattista Vico (1668-1744), filósofo e docente de retórica.Vico (2005) aponta a insuficiencia do método cartesiano em campo filosófico: afirma queo cogito ergo sum constitui-se numa certeza psicológica, mas nao numa ciencia nosentido pleno do termo, por atestar a existencia do pensamento e nao de suas causas.Evidencia também os perigos derivantes da aplicagao do modelo cartesiano que buscaafirmar a validade universal do método matemático para o conhecimento das ciencias danatureza e das ciencias moráis, por nao abarcar todos os aspectos da experiencia domundo natural e humano (6). Além do método matemático ser insuficiente para oconhecimento da natureza e do homem, baseia-se no procedimento cognitivo doraciocinio, que nao é o primeiro a se desenvolver no homem. Nesta perspectiva, nCiencia Nova (1744) resgata a importancia da memoria, da imaginagao e da fantasía e a

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necessidade de urna educagao intelectual atenta ao seu desenvolvimento; e reafirma aimportancia do senso comum, definido como "um juízo sem reflexao, comumente sentidopor toda urna ordem, todo um povo, toda urna nagao, ou por todo o género humano"(Vico, 1744; citado por Abbagnano, 2003 p. 873) (10). Com efeito, o conhecimento pelossentidos externos e internos, para Vico, pode constituir-se em sabedoria, ou seja numsaber voltado a regrar a agao humana de maneira que esta nao seja o resultado da purareatividade.

A experiencia na visao dos fundadores da psicología modernaO fundador da psicología científica, o médico e filósofo alemao W. Wundt (1832-1920),na introdugao de seu Compendio de Psicología (1900), coloca a experiencia como oconteúdo da nova ciencia que está propondo. Trata-se da experiencia concebida nomolde do empirismo e do positivismo. Assim vejamos.Em primeiro lugar, segundo este autor, todo fenómeno natural pode ser objeto dapsicología, na medida em que esta ocupa-se das representagóes suscitadas em nos poresses fenómenos. O objetivo da psicología é o de "explicar a formagao destasrepresentagóes e de sua relagao com as demais, bem como o de explicar os processosque nao se referem aos objetos externos como sentimentos e movimentos da vontade"(1900, p. 2, tradugao nossa).Assim Wundt rejeita a concepgao tradicional acerca da formagao das representagóespsíquicas. Nesta perspectiva, nega, em primeiro lugar, a existencia do "senso interno"concebido pela psicología aristotélico-tomista:

Um senso interno que, como órgao do conhecimentopsíquico, possa ser contraposto aos sensos externoscomo órgaos de conhecimento da natureza, nao existe.Pela ajuda dos sentidos externos, brotam seja asrepresentagóes das quais a psicología investiga aspropriedades, seja as representagóes que dao origemao estudo da natureza. Ao passo de que as excitagóessubjetivas que sao estranhas ao conhecimento naturaldas coisas, ou seja os sentimentos, as emogóes e osatos da vontade, nao nos sao dadas por meio de órgaosperceptivos especiáis, mas ligam-se ¡mediatamente ede forma definitiva as representagóes que se referemaos objetos externos (1900, p. 2).

Segundo Wundt, as expressóes "experiencia interna" e "experiencia externa" "nao sereferem a duas coisas diferentes, mas constituem-se apenas em dois pontos de vistadiversos, utilizados no conhecimento e no uso científico da experiencia, que por simesma é única. Estes pontos de vista diferentes originam-se na cisao ¡mediata daexperiencia em dois fatores: um conteúdo que nos é dado e o nosso conhecimento uesteconteúdo. Chama-se o primeiro destes fatores: objetos da experiencia; e o segundo:sujeito cognitivo. A afirmagao de que a existencia dos dois fatores - conteúdo objetivodado e sujeito de conhecimento -, nao é urna determinagao lógica preexistente aspesquisas ñas ciencias naturais e ñas ciencias do espirito, mas é apenas conseqüéncia efruto délas, já que a experiencia originaria em si é urna, leva Wundt a eliminar a relagaosujeito e objeto como condigao para a experiencia anterior á ciencia.Daqui, portanto, partem duas vias para o estudo da experiencia: a primeira é a daciencia natural - que considera os objetos da experiencia em sua natureza pensadaindependentemente do sujeito; a segunda é da psicología - que investiga o conteúdo daexperiencia em sua relagao com o sujeito e ñas qualidades que ¡mediatamente o sujeitoIhes atribuir. Por isso,

o ponto de vista da ciencia natural, sendo possívelapenas pela abstragao do fator subjetivo conteúdo emtoda experiencia real, pode ser designado como o daexperiencia mediata ao passo de que o ponto de vistapsicológico, que elimina a abstragao e seus efeitos,

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pode ser denominado de experiencia ¡mediata" (Wundt,1900, p.2).

Segundo Wundt, a experiencia ¡mediata é urna conexao de processos ou seja "fatosgerais que acontecem em nos e de suas relagoes recíprocas fixadas por leis" (1900, p.12).Todas as ciencias do espirito que, segundo Wundt fundamentam-se, na psicología,ocupam-se da experiencia ¡mediata. Wundt nao limita a psicología ao estudo do auto-conhecimento do sujeito mas quer que ela se ocupe também das relagoes deste com omundo externo e os outros, pois "a psicología tem por objeto o inteiro conteúdo daconsciéncia em sua constituigao ¡mediata" (1900, p. 4).Quanto ao método, Wundt afirma que a ciencia natural estuda a experiencia fazendoabstragao dos elementos subjetivos das representagoes (abstragao esta que porémimplica sempre integragao hipotética da realidade); ao passo que a psicología deve seabster de todas estas abstragoes e abordar a experiencia assim como ela se apresenta¡mediatamente e intuitivamente (objetos e movimentos subjetivos).Ao tratar da psicología, Wundt aponta as "possibilidades de constituigao" deste campo desaber, históricamente dadas: a psicología metafísica e a psicología empírica. Declara quepsicología empírica se ocupa da experiencia segundo duas diversas abordagens: apsicología do senso interno e a psicología da experiencia ¡mediata. A referente ao sensointerno toma os processos psíquicos tidos como "conteúdos de um dominio especial daexperiencia, conectado á experiencia natural dada pelos sentidos externos, masabsolutamente diferente déla" (1900, pp. 6-7). A abordagem referente á experiencia¡mediata, pelo contrario, nao reconhece diferenga alguma entre experiencia interna eexterna, sendo esta distingao devida ao diverso ponto de observagao assumido aoconsiderar a experiencia (por si mesma unitaria). A "psicología do senso interno" assumea posigao de que as ciencias naturais e humanas sao fundadas na diversidade geral deseus objetos e métodos, tendo como corolario a afirmagao de que existiría urnadiversidade metodológica entre as duas. Fundamenta-se no postulado metafísico acercada diferenga ontológica entre dados físicos e psíquicos. Deste modo, urna "psicologíametafísica" influiría sobre a pesquisa psicológica - fato que Wundt quer absolutamenteimpedir.Wundt propoe a unidade metodológica entre ciencias naturais e psicología, de modo queos métodos da psicología experimental possam ser concebidos como análogos aos dasciencias naturais. O mesmo valeria para todas as ciencias do espirito.A psicología - como ciencia da experiencia ¡mediata - é ciencia empírica, reintegrando asciencias naturais ao seu contexto originario dado antes das operagoes de abstragao.Como "ciencia das formas mais gerais da experiencia humana ¡mediata e de sua conexaoconforme leis" a psicología seria o fundamento das ciencias do espirito. Por se ocupar dascondigoes fundamentáis do conhecimento, a psicología seria a ciencia que aborda osproblemas do conhecimento e neste sentido é a ciencia empírica preparatoria para afilosofía.Em suma, no processo de fundagao da psicología moderna, a concepgao wundtiana deexperiencia elimina de sua génese a relagao entre sujeito e objeto do conhecimentoprocurando superar a visao da psicología filosófica tradicional em que a relagao sujeito-objeto acarreta a presenga do sujeito ativo na elaboragao da experiencia (processadapelas suas potencias psíquicas a partir da simples recepgao da sensagao pelo mundoexterno).

A experiencia na perspectiva de William JamesSegundo James (1842-1910), "experiencia significa experiencia de algo externo que sesupoe nos nos impressione, seja espontáneamente, seja como conseqüéncia de nossasagoes" (1891/1989, p. 1045, tradugao nossa). De modo que a experiencia seria oproduto das impressoes do mundo exterior que afetam a nossa mente; por outro lado,porém, ela seria responsável pelas formas do pensamento: "A experiencia nos molda acada hora e torna as nossas mentes um espelho das condigoes espago-temporais queexistem entres as coisas do mundo" (1989, p. 1046).

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Ao elaborar esta concepgáo, James se apóia em Spencer: deste cita um trecho ondeafirma que "todas as relagóes psíquicas, com excegáo das fixas, sao determinadas porexperiencias que correspondem a relagoes externas e que como tais estao em harmoníacom elas" (James, 1989, p. 1046) (7). O pensamento seria originado pela sucessao deestados psíquicos, estes resultantes de experiencias correlatas a impressóes do mundoexterior.Análogamente a Wundt, James pretende fundamentar a teoría do conhecimento napsicología, eliminando o papel ativo do sujeito na elaboragao da experiencia. O sujeito,concebido como mero receptor biológico passivo das influencias do meio ambiente énegado em seu ser pessoal.Buscando "um significado definido da palavra experiencia" (1989, p. 1053, tradugaonossa), James afirma: "restringirei a palavra 'experiencia' aqueles processos queinfluenciam a mente através da porta dianteira de associagao e de hábitos simples"(ídem). Nesta perspectiva, nao há diferenga qualitativa entre experiencia acumuladapelos seres vivos - através da cadeia de associagóes e da estruturagao dos hábitosmediante a repetigao - e a elaboragao da experiencia propriamente humana.

Experiencia segundo BrentanoA redugao da experiencia humana a pura reagao ao mundo exterior - em termos deexperiencia indiferenciada animal - é questionada pelo filósofo austríaco Franz Brentano(1838-1917), na obra Psicología do ponto de vista empírico (1874/1997).No primeiro capítulo, Brentano fala em "experiencia interna" como o meio que permite oacesso á vida da psique: "O uso lingüístico atual entende por psique o sujeito dasapresentagóes e das demais propriedades que podem ser percebidas de modo diretosomente mediante experiencias internas" (1997, p. 69, trad. nossa). O autor afirmaaderir a este uso da palavra e passa a definir a psicología como "a ciencia que nos ensinaa reconhecer as propriedades e as leis da psique que, por meio da experiencia interna,descubrimos de modo direto em nos, e por analogía, nos outros" (ídem).No segundo capítulo do tratado, dedicado ao "método da psicología e em particular áexperiencia que constitui-se em fundamento déla", aprofunda a questao, colocando que

percepgao e experiencia constituem a base tanto dapsicología quanto da ciencia natural. A fonte principaldo conhecimento psicológico é, sem dúvida, apercepgao interna de nossos próprios fenómenospsíquicos. Quaisquer coisas sejam - a apresentagao e ojuízo, a alegría e a dor, desejo e repulsao, esperanga etemor, coragem e desespero, decisao e vontade -nunca poderíamos ter consciéncia délas, se a percepgaointerna nao as apresentasse a nos (Brentano, 1997, p.93, tradugao nossa).

A categoría percepgao interna repropóe, entao, a fungao ativa do sujeito noprocessamento da experiencia. Nesta perspectiva, Brentano afirma que a "primeira eessencial fonte da vida psíquica é a percepgao interna, nao a observagao interna" (ídem),fazendo urna nítida distingao entre as duas. Tal distingao rigorosa é necessária devido áconfusao causada pelo empirismo, pois - retomando urna posigao kantiana -, Brentanoentende ser a percepgao interna incompatível com a observagao interna: de fato, aorealizar a observagao interna, instantáneamente modifico a percepgao interna. Aconfusao a este respeito, estabelecida na filosofía moderna, seria responsável inclusivepela negagao da percepgao interna proclamada por varios autores contemporáneos (8). Aomissáo de urna simples distingao induziu grandes erros - concluí Brentano.Portanto, é na percepgao interna que se funda a ciencia psíquica. Quanto aos limites daobservagao interna assinalados, o autor sugere algumas formas de compensá-los: urnadélas é a utilizagáo da memoria. Com efeito, no caso de fenómenos recém ocorridos,podemos de alguma forma observá-los, concentrando a atengáo nos tragos ainda vivosna memoria. Esta, porém, nao se identifica com a percepgao interna, nao tendo a mesmaqualidade de infalibilidade. Além disto, podemos ter um conhecimento indireto dos

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estados psíquicos alheios, sendo que as manifestagóes da vida psíquica interna induzemvariagóes perceptíveis externamente.

Experiencia segundo HusserlHusserl (1959/2002) aprofunda e supera o caminho crítico de Brentano no que dizrespeito ao conceito de experiencia, chegando a afirmar que o paralelismo experienciainterna e experiencia externa é falso, pois é fruto do dualismo cartesiano.Acompanhemos seus argumentos.A experiencia no processo de conhecimento é a modalidade unitaria em que o mundo davida é apreensível. O dado da experiencia no mundo da vida é o pressuposto seja doconhecimento científico, seja do conhecimento prático do homem no dia-a-dia. O mundojá dado na experiencia - mundo indeterminado cujo horizonte está sempre aberto aodesconhecido - é o horizonte sempre presente de todo conhecimento e nele nao existenenhuma idealidade geométrica (nem espago, tempo ou causalidade).Todavía, a cultura moderna, moldada pelo ideal galileiano, realizara urna sobreposigao daidealizagao do mundo matematizado á experiencia do mundo real, de modo que urnanatureza idealizada é substituida á intuigao pré-científica dada na experiencia. A cienciamoderna impóe á experiencia do mundo da vida um hábito ideal que nao existenaturalmente nele e que acaba por ser confundido pelo seu verdadeiro ser, mesmo quena realidade seja apenas um método.Urna das conseqüéncias desta redugao é a subjetivagao das qualidades sensíveis,retomada pelos empiristas: se o mundo intuitivo da vida, assim como é experimentado, émeramente subjetivo, todas as verdades da vida pré-científica e extra-científica, nao témvalor. A "verdade" está além do mundo da experiencia. O mundo em si, o mundo daexperiencia, é assim dividido em mundo subjetivo, psíquico, e mundo real,matematizável, objetivo.Surge entao a psicología como ciencia paralela as ciencias naturais; á psique é atribuidoum modo de ser análogo ao do mundo da natureza. As primeiras dificuldades donaturalismo revelaram-se justamente na área da psicología científica. A subjetividadeassim concebida aparece inatingível, produzindo assim um ceticismo que atinge naoapenas a ciencia mas também o mundo quotidiano. A psicología criou um paralelismoentre psique e corpo urna concebida como apéndice do outro.

O erróneo principio de querer considerar seriamentehomens e animáis como realidades dúplices - comouniao de duas realidades de géneros diferentes e aindaassim iguais em seu sentido e portanto de consideraras almas pelo método próprio da ciencia dos corpos,numa dimensao causal natural, como os corpos espago-temporais - suscitou a presumida obviedade de ummétodo determinável de modo análogo ao das cienciasnaturais. (Husserl, 2002, p. 241, tradugao nossa)

Esta posigao, definida por Husserl como "naturalismo", estendeu-se para além da ciencia,já que implicou também a consideragao de corpo e alma como duas carnadas reais naprópria maneira de conceber a experiencia. Com efeito, a divisao entre a experienciainterna e a experiencia externa, foi conseqüéncia deste falso paralelismo. Os doisconceitos permaneceram obscuros e em ambos os casos,

as experiencias sao pensadas como se fossem atuadaspor meio da fungao teorética: a ciencia da naturezadeve fundamentar-se na experiencia externa, ao passode que a psicología na experiencia interna: na primeiratemos a natureza física, na segunda o ser psíquico, oser da alma. Portanto, "experiencia psicológica" torna-se urna expressao equivalente a "experiencia interna"(Husserl, 2002, p. 252, tradugao nossa).

Husserl critica, neste sentido, a definigao brentaniana de percepgao interna, por serexpressao destas abstragóes paralelas: "A ingenuidade de considerar estes dados da

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experiencia psicológica iguais aos da experiencia corporal, leva a sua coisificagao"(ídem). Chegou-se assim a "conceber o dado interno como um átomo psíquico ou comoum conjunto de átomos", as "faculdades psíquicas, ou disposigoes psíquicas análogas asforgas físicas" (ídem), considerando-se paralelos também os objetivos das duas ciencias.A adesao á experiencia, entao, se torna suposigao ilusoria.Para superar este impasse, Husserl ressalta a necessidade de voltar á "experiencia real,anterior as versoes teoréticas, que determina originariamente o sentido daquilo que édado físicamente e psíquicamente no mundo da vida e que depois torna-se objeto dasciencias exatas" (2002, p.236, tradugao nossa). Esta "simples experiencia em que é dadoo mundo da vida, é o fundamento último de qualquer conhecimento objetivo.Correlativamente: este mesmo mundo, aquilo que ele é para nos (originariamente)devido á experiencia pré-científica, propoe todos os temas da investigagao científica"(ídem).

ConclusaoNo percurso aqui proposto, urna leitura do processo histórico de constituigao dos variossentidos de experiencia na cultura ocidental nos permitiu compreender que as hodiernasconcepgoes reducionistas tém suas matrizes em algumas filosofías da Modernidade,fundamentando posigoes difundidas na Psicología contemporánea. Tais filosofíassepararam dimensoes da experiencia que, na visao própria da tradigao ocidental(clássica, medieval e humanista) foram concebidas de modo unitario.Vimos que para Aristóteles e Tomás de Aquino, a experiencia se constituí numa etapa doprocesso de elaboragao do conhecimento, atestando a ocorréncia de um certo fato pelapercepgao sensorial e pela memoria. Reconhecemos no pensamento de Agostinho ummarco fundamental na conceituagao de experiencia como conhecimento que a alma temde si própria, ponto de partida de todo o processo intelectual; e que sua definigao deste"saber" experiencial nao abarca apenas o campo do ser e do entender mas também o davontade da memoria. A partir disto, Agostinho diferenciara o saber assim definido, dopensar como exercício da inteligencia, sendo que tal visao perpassou a teoría doconhecimento na cultura medieval, em seus diversos planos filosófico, teológico emístico. Seu desfecho no século XIII foi a doutrina de Roger Bacon de que oconhecimento da verdade se fundamenta na experiencia, a qual proporcionaría á menteurna evidencia maior do que o raciocinio, devendo a teoría necessariamente sercomprovada pela experiencia. Vimos que a difusao destas concepgoes nao se restringiuapenas á cultura européia, sendo introduzidas também em outros contextos culturáis,como por exemplo na cultura brasileira dos séculos XVI e XVII, por obras dos jesuítas.Observamos que por obra de alguns filósofos da Idade Moderna (Descartes e Hume)ocorreu um questionamento do valor da experiencia assim como entendido por estatradigao, diluindo-se a conexao entre pensamento e experiencia sensorial, substituidapelo mundo da experimentagao científica, de modo que o termo experiencia passara adesignar a concepgao do real que o homem elabora através dos métodos deconhecimento escolhidos para tanto, dentre os quais, o mais fidedigno é o experimento.Verificamos que no processo de fundagao da psicología moderna - especialmente aelaboragao wundtiana -, ocorreu a eliminagao da relagao entre sujeito e objeto doconhecimento na génese da experiencia e portanto o ocultamento da presenga do sujeitoativo na elaboragao da mesma. De modo análogo, observamos que W. James elimina opapel ativo do sujeito na elaboragao da experiencia, sendo este concebido como meroreceptor biológico passivo das influencias do meio ambiente e sendo negado em seu serpessoal.

Esta redugao da experiencia humana a pura reagao ao mundo exterior - em termos deexperiencia indiferenciada animal foi questionada por Brentano e por Husserl, o qualtematiza a volta á experiencia real, anterior as versoes teoréticas, que determinaoriginariamente o sentido daquilo que é dado no mundo da vida, fundamento último dequalquer conhecimento objetivo.Parece-nos que no contexto atual, o resgate de concepgoes mais abrangentes deexperiencia, propostas ao longo da historia, seja necessário para alicergar urna Psicología

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voltada para a pessoa humana e enxertada na cultura. A retomada da experiencia comolugar de encontró entre subjetividade humana e mundo real foi realizada por Husserl e éjustamente percorrendo seu caminho que se poderá proceder de modo rigoroso nestaempreitada.

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Wundt, W. (1900) Compendio di Psicología (L. Agliardi, Trad.). Torino: Clausen. (Originalpublicado em 1896).

Notas(1) A discussao desta contribuigao encontra-se nos textos de Caeiro, F. G. (1982). Opensamento filosófico do sáculo XVI ao sáculo XVIII em Portugal e no Brasil. Em Acta, ICongresso Luso-Brasileiro de Filosofía (pp. 51-90). Braga: Revista Portuguesa deFilosofía. Veja também em: Caeiro, F. G. (1989). El problema de las raíces históricas,em: E. M. Barba; J. M. P. Prendes; A. U. Pietri; J. V. Serrao; S. Savala (Eds.).Iberoamérica, una comunidad(pp. 377-389). Madrid: Ediciones de Cultura Hispánica.(2) Tais expressoes encontram-se nos seguintes tratados dos filósofos jesuítas deCoimbra: Góis, M. (1957). Disputas do curso sobre os livros da ética a Nicómaco, deAristóteles em que se contém alguns dos principáis capítulos da Moral (A. B. Andrade,Trad.). Lisboa: Instituto de Alta Cultura (Original publicado em 1593); Góis, M. (1607).Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu in Libro de Generatione etCorruptione Aristotelis Stagiritae nunc recens omni diligentia recogniti et emendati.Venezia: Vincenzo Amadino; Góis, M. (1593). Commentarii Collegii ConimbricensisSocietatis Iesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur.Usboa: Simao Lopes;Góis, M. (1602). Commentarii Collegii Conimbricensis Societati Iesu, in tres Libros deAnima, Venezia: Vincenzo Amadino.

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Massimi, M. & Mahfoud, M. (2007). A pessoa como sujeito da experiencia: um percurso na historiados saberes psicológicos. Memorándum, 13, 16-31. Retirado em / / , da World WideWeb http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al3/massimimarifoud01.pdf

(3) Exemplos destas expressoes utilizadas ñas cartas jesuíticas se encontram em:Massimi, M.; Mahfoud, M.; Silva, P. C. J. & Avanci, S. H. S. (1997). Navegadores,colonos, missionários na Terra de Santa Cruz: Um estudo psicológico da correspondenciaepistolar. Sao Paulo: Loyola.(4) "Se as almas febricitantes, enfermas, comerem esta galinha desta sorte adubada,serlhesha muy proveytosa: pizem e mortifiquem o corpo, esquegaose das delicias, eregalos do mundo, que quizerem tomar o gosto a este regalado bocado, e acharao porexperiencia. Que a quem mortifica o corpo, e se esquece do mundo, he muito gostosa eproveytosa iguaria o Divino Sacramentó' (Craveiro, 1665, p.6).(5) A respeito consultar: Vanni-Rovighi, S. (1999). Historia da filosofía contemporánea(A. P. Capovilla, Trad.). Sao Paulo: Loyola (Original publicado em 1980).(6) Sobre Vico ver: Reale & Antiseri (1986).(7) Cf. Spencer, H. Principies ofpsychology: §§ 189, 205 e 208.(8) Cf. Psicología do ponto de vista empírico: primeiro volume, capítulo 2: Brentano(1997/1877) se refere ao Curso de Filosofía Positiva (1930) de Comte, o qual afirmara aimpossibilidade de conhecimento quando o órgao observante e o observado sejamidénticos.

Nota sobre os autoresMarina Massim\, formada em psicología pela Universidade de Padova (Italia), mestra edoutora em Psicología pela Universidade de Sao Paulo, docente junto ao Departamentode Psicología e Educagao da Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade deSao Paulo, Campus de Ribeirao Preto; especialista em historia da psicología e das idéiaspsicológicas. Contato: [email protected] Mahfoud é formado em Psicología, Mestre e Doutor pela Universidade de SaoPaulo, professor adjunto do Departamento de Psicología na Faculdade de Filosofía eCiencias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil.Coordenador do Laboratorio de Análises de Processos em Subjetividade (LAPS) junto ámesma instituigao. Suas pesquisas referem-se as áreas de memoria, cultura esubjetividade. É líder dos Grupos de Pesquisa "Estudos em Psicología e CienciasHumanas: Historia e Memoria" e "Historia da Psicología e Contexto Sócio-cultural".Contato: [email protected]

Data de recebimento: 16/12/2006Data de aceite: 30/12/2007

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Esperienza e intenzionalitá nella fenomenologia diHusserl

Experience and intentionality in Husserl's phenomenology

Carmine Di MartinoUniversitá degli Studi di Milano

Italia

RiassuntoL'articolo dimostra che la fenomenologia é una filosofía dell'esperienza e che nelrisalimento all'esperienza risiede la specificitá dell'atteggiamento fenomenologico.L'esperienza é per Husserl ¡I manifestarsi stesso delle cose, ¡I loro darsi nell'evidenza,luogo ultimo di ogni datitá e legittimazione, ¡I "primum reale". Mette in luce le affinitá e leprofonde divergenze tra la necessitá di ritornare all'esperienza come fondazioneoriginaria della conoscenza, proposta sia dalla fenomenologia e che daN'empirismomoderno di Locke, Berkeley e Hume: quella riesce a superare gli errori ed i controsensi diquesto. Per cogliere l'operare dell'esperienza, secondo Husserl, bisogna avvalersi di unmétodo adeguato, quello áe\V" epoché' e della "riduzione" fenomenologica, chiave diaccesso alia fenomenologia trascendentale. L'esempio di analisi fenomenologica delmondo percettivo (inteso come uno "strato" dell'intero mondo dell'esperienza) mostrache cosa significhi per Husserl disporsi sul terreno dell'immanenza, cioé dell'esperienza"pura", fenomenologicamente considerata, per rendere ragione della "costituzione" ditutto l'essente.

Parole chiave: fenomenologia; esperienza; Edmund Husserl.

AbstractPhenomenology is a philosophy of experience and its specificity can be found in theprocess of returning to experience. For Husserl, experience is the manifestation of thingsthemselves, their occurrence in evidence, the place of all given beings and of alllegitimation, the "primum real". It evidentiates the affinities and divergencies betweenphenomenology and modern empirism regarding the need to return to experience as theoriginal foundation of knowledge; it points that phenomenology can overeóme mistakesand contradictions of empirism. According to Husserl, in order to aprehend experience inact, it is necessary to have an adequate method: the "epoché" and phenomenologicalreduction are the keys to unravel transcendental phenomenology. The example ofphenomenological analysis of the perceptive world (a layer of the world of experience)evidentiates what it means to enter the terrain of imanence, or "puré" experience takenphenomenologically, to give reason to the constitution of every being.

Keywords: phenomenology; experience; Edmund Husserl

La fenomenologia é, da parte a parte e a dispetto di una vulgata contraria, una filosofíadell'esperienza. É una filosofía "che si fonda suN'esperienza e che rimane nell'esperienza,in contrapposizione alie filosofie nelle quali si parla solo di forme e funzioni diconoscenza, delle loro condizioni, di conoscenze o principi ontologici non esperibili"(Brand, 1970, p.57). Tutto l'itinerario husserliano é caratterizzato dall'esigenza imperiosa

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di partiré dall'esperienza e di farvi costantemente ritorno. Ció appartiene alia mossainaugúrale stessa della ricerca di Husserl, ai cromosomi del suo atteggiamento filosófico,se consideriamo che ¡I tentativo di Filosofía de/1"aritmética é, sintéticamente, quello direndere contó deN'origine del concetto di numero a partiré dall'atto del contare. Sonó giáqui all'opera un'istanza di radicamento nell'esperienza e un criterio metódico dichiarificazione genetico-intuitiva che resisteranno alia successiva e severa decostruzione(condotta con acribia da Husserl stesso nelle Ricerche logiché) dell'ereditá psicologisticache quell'esordio ospitava: essi si promettono, intatti, alie future e piü matureelaborazioni di una genealogía della lógica delle opere tarde. In questo debutto, che sispende alia ricerca di una giustificazione intuitiva del concetto di numero, si delineadefinitivamente uno stile di pensiero destinato ad imporsi, in cui "chiarificazionefilosófica" equivale a "regressione" al piano dell'esperienza, quale luogo originario di tuttele formazioni intellettuali e di tutte le validitá in genere.Se con un balzo ci riferiamo aN'ultimo testo di Husserl, La crisi delle scienze europee,ritroviamo in esso, in un'altra forma, la medesima urgenza: quella di una riconduzionedell'universo delle teorie e delle obbiettivita ideali delle scienze all'esperienza del mondo-della-vita in cui esse necessariamente si radicano. L'intento é anche qui di operare unaregressione al terreno delle evidenze intuitive e di mostrare attraverso quali processiidealizzanti-astrattivi ¡I mondo obbiettivo della scienza si sia venuto costruendo "sopra"quello originario dell'esperienza pre-scientifica. In questa riconduzione alia sferasoggettivo-relativa del mondo-della-vita ne va della sensatezza stessa del progetto e delprocederé scientifico, che é tanto grávido di risultati quanto accecato riguardo al lorostatuto, vittima com'é della superstizione obbiettivistico-naturaMstica dell'in-sé. Obliato ¡Iprocesso di idealizzazione e matematizzazione della natura, occultata la prassiintersoggettiva che ha consentito di mettere capo alie sue oggettualitá, ¡I mondo"idealizzato e matemático" scoperto dalla scienza si propone come ¡I "vero essere", dicontro alia realtá solo "apparente" del mondo dell'esperienza pre-scientifica. Lo scienziatonaturalista

non si rende contó che ¡I costante fundamento del suolavoro concettuale, che nonostante tutto é soggettivo, é¡I suo mondo circostante della vita, che egli presupponecostantemente ¡I mondo-della-vita in quanto terreno, inquanto campo di lavoro, e che soltanto su di essohanno un senso i metodi di pensiero, i suoi problemi.Chi sottopone alia critica, chi cerca di chiarire quellapoderosa compagine metódica che dal mondocircostante intuitivo porta alie idealizzazioni dellamatemática e che lo interpreta come un essereobbiettivo? (Husserl, 1961, p. 354).

Questo é ¡I controsenso del naturalismo: la natura "prodotta", ottenuta mediante uncomplesso di operazioni determínate e apparsa storicamente una prima volta, finisce percircoscrivere la natura "esperita" da cui é sorta per ritaglio ed erigersi a natura assoluta,sganciata cioé da quelle operazioni che ne hanno accompagnato e consentitol'apparizione. Husserl mette a nudo questo paradosso e cerca di rimettere sui piedi quelloche era stato rovesciato a testa in giü.Quella husserliana non é una operazione di retroguardia, vagamente conciliatoria, chemira a recuperare una qualche legittimitá a quel mondo intuitivo-soggettivo che loscienziato assegna senza indugi alia sfera della psicología. Ponendo ¡I problema delrisalimento al mondo-della-vita, la fenomenologia, senza in alcun modo mettere indiscussione la scienza, intende piuttosto liberarla dalle superstizioni che ne minaccianointimamente la "razionalitá", oltre che la sensatezza in rapporto all'umana esistenza. Noné una impresa di poco contó, dal momento che ¡I senso dell'obbiettivitá scientifica "édiventato per noi tanto ovvio, che ci costa fatica persino renderci contó che esso é ¡Iprodotto di uno sviluppo e che occorre indágame i motivi originan e l'evidenza originaria"(Husserl, 1961, p. 373). É alia filosofía che peculiarmente compete questa indagine.Occorre dunque tornare aN'origine, vale a diré, di nuovo, all'esperienza. "Si tratta cioé di

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risalire a quel fondamento di senso che é costantemente co-fungente nella scienza, almondo che ci é dato cosí come ci é dato nell'esperienza reale, al "mondo dellasensibilitá". Nella vicenda della storia, questo mondo si presenta in molti stili particolari,ma rimane invariabile nella sua invariabile struttura genérale" (Husserl, 1961, p.376).Senza entrare in ulteriori dettagli, ci importa qui sottolineare che, in questo risalimentoall'esperienza, che intende orientare lo sguardo alie evidenze e insorgenze di sensoprimarie, risiede la cifra dell'atteggiamento fenomenologico, di un gesto di pensiero chedoveva riscuotere un vasto, seppure spesso genérico, interesse da parte di tantidiscepoli: "Non ci possono bastare i significati ravvivati da intuizioni lontane e confuse, daintuizioni indirette - quando sonó almeno intuizioni. Noi vogliamo tornare alie cosestesse" (Husserl, 1968, p. 271). L'esperienza é per Husserl ¡I manifestarsi stesso dellecose, ¡I loro darsi nell'evidenza; essa é ¡I luogo ultimo di ogni datitá e legittimazione, ¡I"primum reale". In questo senso egli dice in Idee I, parlando della propria prospettiva:"noi siamo i veri positivisti", che significa: noi ci atteniamo all'esperienza con rigore e nonci appelliamo ad altra fonte che all'esperienza. É ció che viene consacrato nel principio ditutti i principi. "Ma basta con le teorie assurde. Nessuna teoría concepibile puó indurci inerrore se ci atteniamo al principio di tutti i principi: cioé che ogni intuizione originalmenteofferente é una sorgente legittima di conoscenza, che tutto ció che si da originalmentenel intuizione [Intuition] (per cosí diré in carne e ossa) é da assumere come esso di da,ma anche soltanto nei limiti in cui si dáf' (Husserl, 2002, p. 52).Oltre l'esperienza non vi é altra fonte di legittimazione. Ogni "realtá", nel senso piü lato,tale da includere anche le oggettualitá "irreali" (ideali), si offre e puó offrirsi, sicostituisce e puó costituirsi, vale a diré si rivela e puó rivelarsi nel suo senso solo in unaesperienza. Tutto ció che si manifesta é relativo o interno ad una esperienza. "Esperienzaé l'operazione in cui per me, l'esperiente, l'essere esperito "é la", e nel modo in cui esso éla" (Husserl, 1966, p. 288). II che non significa affatto sciogliere la "trascendenza" dellecose nell'acido di una malintesa dipendenza dalla soggettivitá, ma, al contrario, reperirela fonte di legittimazione razionale di questa stessa trascendenza. "É ancora pur semprel'esperienza che dice: questa cosa, questo mondo, per me, per ¡I mió proprio essere, édel tutto trascendente. É mondo "oggettivo", e come tale é anche esperibile ed esperitoda altri" (Husserl, 1966, p. 289). Nell'esperienza é proprio questo "mondo del tuttotrascendente" che si costituisce, si offre, nel suo senso di "mondo trascendente", e nonuna sua parvenza. Se si tratti di essere o di parvenza, di realtá o ¡Ilusione, é sempre inuna esperienza reale e possibile che si rende evidente. Anche ¡I senso deN'"inesperibile" odeH'"inconoscibile", al quale eventualmente ci appellassimo, dovrebbe trovare la propriafondazione originaria in una esperienza (1). Ora, "questo fatto cosí ovvio, tantoimportante eppure tanto misconosciuto, deve assumere una parte céntrale in tutte leprese di coscienza fondate di principio: ¡I fatto cioé che qualcosa come un oggetto (peresempio anche un oggetto físico) attinge il senso ontico che gli é proprio (per ¡I quale poiesso - in tutti i modi possibili di coscienza - significa ció che significa) soltanto a partirédai processi vissuti dell'esperienza" (Husserl, 1966, p. 204). Com'é perfettamente ovvioed evidente, l'esperienza implica un riferimento necessario e costitutivo alia soggettivitáesperiente. L'esperienza é infatti sempre mía, tua, nostra (ma al riguardo dovremointerrogarci piü avanti).

L'ingiunzione a ritornare all'esperienza come fondazione originaria di ogni conoscenzasembra avere una certa affinitá o assonanza con ¡I gesto deM'empirismo moderno e con lasua congenita inclinazione a ridurre I'esse al percipi (il germe Ínsito in ogni empirismo équello dello scetticismo e "l'essenza di ogni scetticismo é ¡I soggettivismo" (Husserl,1989, p. 74)). L'accostamento non deve stupirci. É manifestó, del resto, ¡I profondointeresse di Husserl per 1'empirismo, che si documenta e si motiva in ben note analisi.Nella riflessione filosófica di Locke, Berkeley e Hume egli rintraccia proprio l'inizio -nascosto in oscuritá ed errori, controsensi e assurditá - di quella impostazione di ricercache caratterizza la fenomenologia trascendentale, per la quale di ogni realtá si deve poterrendere contó nell'esperienza. La legittimitá permanente deN'empirismo moderno, al di ládi tutte le premesse e conseguenze inaccettabili, della deriva scettica che gli appartiene,consiste nel tentativo di ricondurre "ogni conoscenza alie sue fonti intuitive originarie

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nella coscienza, nell'esperienza interna, chiarificandola sulla loro base" (Husserl, 1989,p.160). Sebbene questo riferimento alia coscienza e all'esperienza interna soffra di palesifraintendimenti psicologistico-naturalistici legati a doppio filo aN'ereditá cartesiana, conl'empirismo e segnatamente con Locke si compie ¡I passo decisivo che conduce dal cogitocartesiano a una "scienza" del cogito, vale a diré a una indagine sistemática ed eidetico-descrittiva di quel campo o terreno d'esperienza a partiré dal quale ¡I mondo si costituiscenei suoi sensi e nelle sue validitá.

Ció che vi é qui di realmente grande, quell'aspetto chenon solo di fatto fa época, ma che ha un significatopermanente, é la prima comparsa di un métodointuizionistico, del principio giá ricordato dell'evidenza,del ritorno alie fonti originarie dell'intuizione a partirédalle quali ogni conoscenza deve esseresistemáticamente chiarita. A questo proposito édecisiva l'idea che sotto ¡I titolo dell'e^o cogito vi sia uncampo in sé concluso di tutte le fonti originarie, ¡Icampo delle datitá assolute e delle evidenze immediate,che deve diventare ¡I campo originario di ogni studio(Husserl, 1989, p.161).

La questione e l'istanza metódica deN'empirismo vanno riconosciute e sospinte verso ¡Iloro inveramento. Una critica radicale deN'empirismo dell'esperienza interna - quella cheHusserl si prefigge di compiere - deve perció, oltre a smascherarne le costruzionisurrettizie, appropriarsi di ció che esso effettivamente vede, vale a diré sgomberaredefinitivamente ¡I campo "dai pregiudizi oggettivistici che ci rendono ciechi nei confrontidell'aspetto specificamente trascendentale, della soggettivitá pura e del vivere edell'operare che si realizza sotto ¡I titolo della coscienza pura, in cui qualsiasi possibileoggettivitá si appropria del senso e dell'essere per un possibile io" (Husserl, 1989,p.162). Husserl intende in altri termini difendere 1'empirismo da se stesso, liberando inesso ¡I núcleo di quell' "empirismo vero e autentico" che in definitiva si chiama"fenomenologia" e che comporta ¡I superamento della scepsi empiristica come di ognialtra scepsi. Sarebbe assai difficile comprendere l'itinerario filosófico husserliano senzatenere contó di questo obbiettivo sempre presente: un superamento dello scetticismo -nemico giurato della possibilita della conoscenza - che sappia al tempo stesso portare acompleta chiarezza e ad effettivo compimento "l'impulso trascendentale" (Husserl, 1989)che si trova in esso celato. Lo scetticismo richiama, pur nella forma negatrice che le écongenere, l'incompiutezza del razionalismo antico e moderno:

Finché non viene indagata la soggettivitá conoscitivache deve essere intesa come correlato essenziale ditutte le scienze e di tutte le conoscenze reali e possibili,finché non viene fondata una scienza genérale e pura diqualsiasi coscienza conoscitiva possibile, in cui ogniesser vero appare come risultato di un operaresoggettivo, nessuna scienza, per quanto sia per altriaspetti razionale, é razionale in ogni senso, in sensocompleto (Husserl, 1989, p. 73).

Qui, nell'omissione di tale indagine, risiede la debolezza del razionalismo, ¡I suo déficit dirazionalitá. AM'empirismo fa tuttavia difetto - tra le altre cose - una concezione adeguatadell'esperienza. Ció dipende da un fraintendimento determinato, di cui, secondo Husserl,fu vittima per primo Descartes, e con luí tutta la tradizione moderna (empiristica inspecie). Se nelle sue due prime Meditazioniavviene indubbiamente, attraverso Vepoché,la grande scoperta del cogito, "della soggettivitá trascendentalmente pura, in séassolutamente chiusa, che puó sempre prender coscienza di se stessa, in unaindubitabilitá assoluta" (Husserl, 1989, p. 79) -, egli non é tuttavia riuscito adappropriarsi della portata effettiva di tale scoperta, mancando ¡I senso genuino dellaproblemática trascendentale. Descartes non pensa nemmeno lontanamente aW'ego cogitocome a una sfera di esperienza a partiré da cui tutte le oggettualitá e tutte le conoscenze

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svelano ¡I loro senso proprio. Egli rimane "impigliato nel pregiudizio obbiettivistico"(Husserl, 1989, p. 88) e finisce per intendere ¡I cogito come una res, "un frammento delmondo oggettivo, Vunico dato in modo immediato e in una indubitabilitá assoluta"(Husserl, 1989, p. 88), a partiré dal quale si puó assicurarsi del resto del mondo. Ma inquesto modo la grande novitá delle Meditazioni viene del tutto fraintesa, divenendooltretutto foriera delle assurditá psicologistiche e naturalistiche che attraversano l'etámoderna fino a raggiungere la nostra. NeN'impostazione di Descartes si fronteggianodunque una cosa pensante, un "dentro", una mente, di cui dobbiamo essere certi, e unacosa estesa, un "fuori", un mondo di corpi, di cui dobbiamo dubitare, poiché i sensi cipossono sempre ingannare. Va da sé che, una volta stabilito ¡I dualismo delle sostanze, ¡Iproblema che innanzitutto si pone, se si vuole fondare una conoscenza "oggettiva", équello del passaggio dall'ambito psicológico (in cui si trovano deposítate le nostreimmagini del mondo) a quello ontologico, dall'interno all'esterno, dai "vissuti soggettivi"alie "cose" che li trascendono, dalle idee chiare e distinte nella nostra mente alia realtáfuori di noi. Se io posso essere certo solo di me stesso e dei miei atti, dei miei vissutisoggettivi, chi mi autorizzerá a conferiré alia credenza che questo mondo esista e aliascienza che noi conseguiamo di esso quel senso extra-soggettivo che essenecessariamente esigono? "Descartes si perde qui" (Husserl, 1989), quando pone ¡Iproblema di questa dimostrazione e di questo "ponte", che assicuri ¡I passaggiodall'interno della mente all'esterno del mondo, ricorrendo com'é noto all'esistenza di unDio, ¡I quale, per mantenersi fedele a se stesso, non puó decidere di ingannarci.Proprio qui si mostra all'opera ¡I fraintendimento denunciato da Husserl, che si trasferisceda Descartes aN'empirismo. Solo quando si é interpretato, nell'atteggiamentoobbiettivistico del naturalista e dello psicólogo, Vego cogito come una "cosa pensante" ocome "io psichico", perció come un frammento del mondo, si puó porre ¡I problema del"ponte". In quanto pensa ¡I cogito sul modello della res, Descartes non si avvede cherispetto aW'egoe alia vita egologica dischiusi daU'epoché(e súbito ricoperti) non ha alcunsenso parlare di un "fuori" (cosí come non ha senso parlare di un "dentro", di uno spaziochiuso, a proposito del cogito), poiché "tutto ció che é mondano e quindi anche l'esserepsichico proprio, l'io in senso usuale, attinge ¡I proprio senso appunto alie funzionidell'ego" (Husserl, 1961). Descartes "non comprese come tutte le distinzioni tra l'io e ¡Itu, tra l'interno e l'esterno si "costituiscano" soltanto nell'ego assoluto" (Husserl, 1961, p.106). Naturalmente, in questa lettura é in azione la reinterpretazione husserliana delcogito cartesiano come soggettivitá trascendentale, ovvero come soglia di manifestativitáo come principio di fenomenicitá, ¡I che implica una concezione intenzionale e nonsostanzialistica del cogito stesso. In questa prospettiva, tutto ció che mi é dato e vale perme svela ¡I suo senso in quanto cogitatum delle mié cogitationes, in quanto correlato deimiei atti soggettivi. Ció che Descartes avrebbe dovuto vedere, per non tradire ¡I sensodella sua stessa scoperta, é che nell'evidenza del cogito é incluso qualcosa diestremamente articolato. "Sum cogitans: piü concretamente questo enunciato evidentesuona: ego cogito - cogitata qua cogitata. Ció include tutte le cogitationes, sia lecogitationes particolari sia la loro sintesi fluente neN'unitá universale di una cogitatio; ¡Imondo in quanto cogitatum, e tutto ció che io volta per volta gli attribuisco, ha in esseper me una validitá d'essere" (Husserl, 1961, p. 106). A Descartes sonó tuttavia estraneeentrambe le cose, tanto la dimensione trascendentale del cogito quanto la sua - ad essaintimamente connessa - struttura intenzionale. Nella Crisi Husserl afferma che"l'intenzionalitá, che costituisce l'essenza della vita egologica" é rimasta in Descartes aliostato latente ^cogitatio" sarebbe un altro nome dell'intenzionalitá) e, nel corso del1923/24, Storia critica delle idee, sottolinea che tutti gli enigmi e le difficoltá in cui egli siavvolse dipendevano dal fatto che "la coscienza non veniva per nulla studiata comecoscienza operante' (Husserl, 1989, p. 83; corsivo nostro) in cui si realizzanostrutturalmente un possesso e una conferma diretta di oggettualitá e non di immagini.Emerge dunque ¡I grande tema, vero punto archimedico della fenomenologia,deN'intenzionalitá. La cecitá nei confronti deN'intenzionalitá attraversa tutto 1'empirismomoderno. La medesima denuncia viene infatti ribadita ed estesa negli stessi termini aLocke, ¡I quale non vede "ció che era giá sfuggito a Descartes, impedendogli di pervenire

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a una vera scienza trascendentale, e cioé che qui ¡I compito reale é quello di compiereuna indagine sistemática della coscienza come coscienza di qualche cosa" (Husserl, 1989,p. 91). La possibilitá di intraprendere una scienza trascendentale - la possibilitá in altritermini di "un empirismo vero e autentico" - é dunque essenzialmente legata a unaconcezione intenzionale della coscienza e dell'esperienza. Al contrario, a una nozioneobbiettivistico-psicologistica della soggettivitá fa riscontro una concezione internalisticadell'esperienza. Quest'ultima, cioé, ricondotta ad un fatto psicológico, si caratterizzacome un complesso di eventi "interni", variamente interpretato come un processo diacquisizione di immagini e raffigurazioni (di "idee") del mondo esterno. Per 1'empirismo,l'esperienza é ció che accade in un "dentro" della soggettivitá, che cioé si consuma in unospazio psichico chiuso in se stesso contrapposto al mondo: solo di essa noi possiamoavere una conoscenza adeguata. Tutta la teoría gnoseologica di Locke, che si sviluppanell'ambito di questa psicología obbiettivistica, lascia pertanto cadere ¡I problemacartesiano della "trascendenza" delle validitá psicologiche interne, di come esse possanofondare un essere extra-psichico. Egli "assume semplicemente l'ego come anima; el'anima conosce le proprie situazioni interne, i propri atti e le proprie facoltá appuntonell'evidenza della propria esperienza del sé. Soltanto ció che é rivelato dall'auto-esperienza interna, soltanto le nostre "idee" sonó evidentemente date. Tutta ladimensione del mondo esterno viene esclusa" (Husserl, 1961,p. 112). É solo l'ambitodella nostra esperienza interna, Túnico immediatamente evidente, a costituire ¡I campodell'indagine scientifico-psicologica che dovrá condurre alia chiarificazione filosófica ditutti i problemi della conoscenza. II progetto e ¡I procedimento metódico deN'empirismolockiano sonó con ció dispiegati: un'indagine descrittivo-evolutiva puramente immanentedell'esperienza psichica, una sorta di storia naturale dell'anima, di quella "tavoletta dicera sulla quale i dati psichici vanno e vengono", che consenta di mostrare come siformano tutte le nostre rappresentazioni, le quali ci permettono certo di trarre conclusionisul mondo trascendente, ma non di attingerne una conoscenza fondata. Di quil'"agnosticismo" lockiano nei confronti delle possibilitá della scienza.Questo empirismo é, ad un tempo e in un certo senso, vicino alia fenomenologia elontanissimo da essa. É vicino nel progetto di una analisi puramente immanentedell'esperienza interna mediante la quale interrogare trascendentalmente tutte le nostreconoscenze; é incommensurabilmente distante in quanto intende, sulla base di unanaturalizzazione (assunta come ovvia) della coscienza, l'esperienza interna come unaesperienza psichico-naturale, "come esperienza di sé nel senso naturale oggettivo di unacomponente dell'esperienza psicofisica" (Husserl, 1989, p. 137), senza nessunaconsapevolezza della distinzione tra "esperienza di sé psicológica" ed "esperienzatrascendentale" e, cosa ancora piü determinante, senza nessuna consapevolezza dellaessenza intenzionale della coscienza. Locke é cieco di fronte a questa distinzione ed écieco nei confronti deN'intenzionalitá. "La psiche é un reale chiuso in sé come ¡I corpo"(Husserl, 1961, p. 113). Egli si rivela dunque del tutto incapace "di vedere la coscienzanella sua proprietá essenziale e di sottoporla come tale aN'analisi puramente intuitiva,all'analisi delle possibili forme di coscienza e delle sue sintesi, implicazioni e modificazioniche sonó regolate da leggi essenziali" (Husserl, 1989, p. 137). L'immenso territorio diindagine che la scoperta deN'intenzionalitá dischiude rimane cosí totalmente precluso aliasua vista.

Locke (e con luí la psicología successiva) resta cieco rispetto a questa dimensionefundaméntale dell'intenzionalitá, che costituisce Y abe della intera vita psichica, proprio acausa della ingenua naturalizzazione della coscienza e del conseguente "sensualismo deidati psichici" (i quali si troverebbero, in analogía ai dati fisici, impressi su un fogliobianco, inizialmente non scritto). Ma é difficile persino comprendere, trascurandol'intenzionalitá, in che modo una psicología come scienza autentica possa prendere avvio.Naturalmente, osserva Husserl, anche nell'analisi lockiana si parla di continuo di elementicostitutivi intenzionali. Come é inevitabile, "Locke si esprime in termini come: percezione,rappresentazione "d i " cose, fede "in qualche cosa", volontá di "qualcosa" e simili. Ma eglinon considera ¡I fatto che nelle percezioni, nei "vissuti" di coscienza é sempre presente,come tale, ció di cui essi sonó coscienza, ¡I fatto che la percezione é in se stessa

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percezione di qualche cosa, di "questo albero" (Husserl, 1961, p. 113). Qui é ¡I punto.Aprirsi a questo carattere fundaméntale della vita di coscienza che é l'intenzionalitásignifica riconoscere che ogni esperienza é esperienza di oggetti, di cose, cioé luogo didatitá in origínale e di manifestazione diretta delle "cose stesse", nella loro peculiare"realtá". Ció che si da nelle molteplici forme della nostra esperienza e nella specificitá deimodi ad essa relativi - si tratti del percepire, del ricordare, dell'immaginare, e cosí via -non sonó contenuti psichici, inscatolati in uno spazio psichico, ma le cose stesse.Prendiamo l'esperienza della percezione. "Non é forse assolutamente evidente - affermaHusserl - che, quando vedo, ad esempio un tavolo, una casa, un albero, non vedoqualcosa come dei complessi sensoriali o delle immagini interne di..., dei segni di unalbero o di una casa, ma l'albero, la casa stessa?" (Husserl, 1989, p. 130). E se anchefossi vittima di un inganno o di una allucinazione, se la casa si rivelasse ¡Ilusoria, sarebbeancora in una esperienza percettiva che mi si imporrebbe la distinzione tra la casaallucinata e la casa reale. Per definiré ¡Ilusoria una percezione devo necessariamenteprendere le mosse da un'altra percezione che é in contrasto con essa e la corregge o ladepenna. Solo la percezione corregge la percezione. Perció, "é evidente in ogni caso che,se la cosa é reale, la cosa reale stessa non é altro che la cosa percepita e che éfundamentalmente assurdo diré che ¡I percepito stesso sarebbe soltanto una immagine oun segno di una cosa che é vera in sé, che non cadrebbe, in ció che essa propriamente é,nella mia percezione" (Husserl, 1989, p. 131). Nel quadro di una concezione nonintenzionale e quindi internalistica dell'esperienza é, al contrario, fin dall'inizio chiaro cheogni nostra esperienza é murata dentro i confini dello spazio psichico e non puópretendere di avere un significato obbiettivo. Privi di una comprensionedeN'intenzionalitá, Locke e i suoi discendenti sonó costretti a duplicare, anzi a multiplicare¡I mondo: da un lato vi sarebbe la realtá stessa, ¡I presunto modello originario, dall'altra ¡Isistema di immagini percettive che ¡I soggetto ha di essa, i quali sonó di principioinconfrontabili, in quanto tale operazione richiederebbe la disponibilitá del modello, cioédella realtá come é in sé indipendentemente dalla percezione.

L'empirismo di Locke diventa perció "un idealismo paradossale" e si avvolge in una seriedi assurditá. "II fundamento di tutto ció rimane ¡I sensualismo e l'apparente ovvietá delfatto che Túnico indubitabile terreno di qualsiasi conoscenza é l'esperienza di sé e ¡I regnodei dati immanenti. Su questa base Berkeley riduce le cose corporee che appaiononell'esperienza naturale a complessi di questi stessi dati sensibili in cui le cose appaiono"(Husserl, 1961, p. 114). II mondo esperito si risolve nei complessi sensoriali (visivi,tattili, acustici, ecc.) dati di volta in volta al soggetto conoscente. La realtá trascendenteviene in questione solo come contenuto di esperienza, non come realtá in se stessa: lanatura trascendente si riduce alia natura esperita, la quale consiste nei complessi di datisensoriali immanenti unificati associativamente, e ogni legalitá naturale si riduce a unalegalitá induttiva di questi complessi sensoriali. Dall'immanenza dell'esperienza -concepita in senso psicologistico e sensualistico - non si puó uscire: "da dati immanenti,io posso passare ad altri dati immanenti, ma non al trascendente, a ció che non épercepibile" (Husserl, 1989, p. 166). Si giunge cosí alia nota tesi, esse est percipi.Berkeley finisce cioé per dissolvere ¡I mondo in una finzione. Di nuovo, pero, per Husserlnon si puó arrestarsi qui. Nel senso di questa massima si annuncia, infatti, per Husserl,benché compromesso alia radice dal sensismo naturalístico, "il primo tentativosistemático di rendere teoréticamente intelligibile la costituzione del mondo reale (ilmondo físico con quello anímale) nella soggettivitá conoscitiva" (Husserl, 1989, p.165).Bisogna quindi avere occhi per vedere che Berkeley cerca di fondare la prima teoría"costitutiva" immanente del mondo materiale, tenta cioé di determinare scientificamente,a partiré dalle esperienze che si sviluppano nell'immanenza, e puramente a partiré daesse, ¡I senso del mondo esperito, sebbene egli, essendo, non meno di Locke, del tuttocieco nei confronti dell'intenzionalitá, non possa accederé a una posizione adeguata ditale problema.

Chi si inoltra fino in fondo nella direzione tracciata da Berkeley é Hume, ¡I quale "fondauno psicologismo radicale di tipo sostanzialmente nuovo, che basa tutte le scienze sullapsicología, che é tuttavia una psicología puramente immanente e al tempo stesso

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puramente sensistica" (Husserl, 1989, p. 170). Tutte le categorie scientifiche attraversocui pensiamo un mondo obbiettivo e tutte le categorie del mondo pre-scientifico, cosícome l'identitá dei corpi esterni e l'identitá dei soggetti esperienti non costituiscono chefinzioni psicologiche. L'intero mondo, con le sue oggettivitá non é, per Hume, che uninsieme di formazioni apparenti, allestite nella soggettivita psicológica secondo leggiimmanenti. La scienza non puó a sua volta che essere una auto-illusione dellasoggettivita, che ha lo scopo di organizzare opportunamente tali finzioni in rapporto aipropri interessi vitali e obbiettivi pratici. É l'anima dunque che "produce" Tintero mondo,o meglio, la finzione o la rappresentazione interna dell'intero mondo. "Noi diciamo peresempio: "l'"albero laggiü e distinguiamo dall'albero i suoi mutevoli modi di apparire. Manell'immanenza psichica nulla é presente se non questi "modi di apparizione". Si tratta dicomplessi di dati e poi ancora di altri complessi di dati, per quanto regolati, "collegati"l'un l'altro mediante l'associazione; é appunto questo collegamento che spiega lapossibilita deM'illusione di esperire una identita" (Husserl, 1961, p.115). Hume si proponedi chiarire l'origine di tale ¡Ilusione esclusivamente a partiré dall'immanenza psicológica,tramite le leggi dell'associazione (che presiede al collegamento tra le "idee") edell'abitudine. "II naturalismo della coscienza risolve la soggettivita in atomi dellacoscienza, in elementi fattuali ultimi, sottoposti a leggi meramente fattuali di coesistenzae di successione. Questi atomi della coscienza sonó le percezioni (...) e alie leggi naturaliesterne corrispondono qui le leggi interne dell'associazione e dell'abitudine" (Husserl,1989, p. 174). La conclusione, ben nota, é che tutte le realtá, tutto l'essere, quello deicorpi materiali e quello degli spiriti, si riduce a dati psichici, a cumuli di percezioni prive diun io.Se da un lato Husserl denuncia, insieme alia "disonestá intellettuale" (Husserl, 1989) diHume, ¡I carattere assurdo e autocontraddittorio del suo finzionalismo, che come ogniscetticismo e irrazionalismo dissolve se stesso, dall'altro lato - come avviene neiconfronti di tutto 1'empirismo - egli intende libérame, al fine di compierla, la "nascostaveritá" (Husserl, 1961, p. 117), una veritá che é impossibile non considerare. Ció che sifa strada con Berkeley e Hume é un "modo completamente nuovo" di considerare tantol'obbiettivitá delle scienze quanto l'obbiettivitá del mondo in genérale. Grazie alia lororadicalizzazione della riconduzione cartesiana all'ego cogito, all'io conoscitivo nella suaimmanenza, diviene per la prima volta possibile e necessario "rendersi contó del fatto -che queste scienze non avevano affatto considerato - che la vita di coscienza é una vitaoperante (leistend), una vita che, bene o male, produce un senso d'essere; sia la vitasensibilmente intuitiva, sia, a maggior ragione, la vita scientifica" (Husserl, 1961, p.118). Ció mette profundamente in questione non solo "l'obbiettivismo matematizzante"delle scienze, ma l'obbiettivismo in genérale, quello "che aveva dominato i millenni"(idem). L'apporto irrinunciabile dello scetticismo humeano consiste, per Husserl, nellaliberazione dalla perdurante ingenuitá dell'obbiettivismo, che risiede nel non accorgersiche ¡I mondo, con tutti i suoi sensi e contenuti determinati, non é altro - enecessariamente - che una validita sorta nella soggettivita esperiente. Questo é l'impulsotrascendentale della scepsi di Hume, che diviene súbito chiaro se trasformiamo la suateoría e le sue affermazioni globali nel suo "problema": "L'enigma del mondo nel sensoultimo e piü profondo, l'enigma di un mondo ¡I cui essere é essere in virtú di unaoperazione soggettiva, e che lo é in una evidenza tale che non é possibile pensarneun'altra - questo, e nessun altro, é ¡I problema di Humé' (Husserl, 1961, p. 124).Qui, su un simile crínale, si colloca l'intento profondo, ¡I progetto effettivo dellafenomenologia, che assume fino in fondo la sfida contenuta in uno psicologismosensistico controsenso, "nello sviluppo di un empirismo da parte a parte assurdo"(Husserl, 1989, p. 190), che rappresenta "l'assoluta bancarotta di qualsiasiconoscenza"(Husserl, 1989, p. 194). Husserl intende farsi carico e rispondere al "problema di Hume",che é in veritá e soprattutto l'autentico "problema di Husserl". Solo comprendendoquesto punto infiammato noi possiamo indovinare l'indole della fenomenologia, ¡I suoparticolare carisma teórico. Non sorprende, in tale luce, che Husserl affermi: "Appuntoquesto é l'aspetto per noi significativo dello scetticismo di Hume, di questo soggettivismosensistico conseguente: nonostante ¡I fatto che non vi sia qui nemmeno un principio che

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possa essere ritenuto scientifico, tuttavia si tratta di una filosofia intuizionisticapuramente immanente, e quindi di una forma anticipatoria dell'unica filosóficaintuizionistica autentica, della fenomenologia" (Husserl, 1989, p. 195). La filosofiahumeana precorre, in un certo senso, la fenomenologia, giacché ¡I compito chequest'ultima si assegna é proprio quello di elaborare una autentica filosofia immanente,che sappia cioé rendere contó della trascendenza, della realtá "in sé" del mondo, diquesto mondo giá da sempre dato, a partiré dall'esperienza, assumendo quindi l'istanzaÍnsita dietro le assurditá scettiche e non limitandosi a dimostrarne le distorsioni e iparadossi. La fenomenologia vuole legittimare ¡I "realismo" (un realismo che nonappartiene piü pero alia opposizione realismo/idealismo) e la possibilitá della conoscenza.Ma, proprio in vista di tale compito, bisogna trasformare ¡I "cattivo soggettivismo"dell'empirismo scettico in "quel soggettivismo che é postulato come necessario" (Husserl,1989, p. 200). É ció che ¡I razionalismo moderno avrebbe dovuto fare e non ha fatto;paradossalmente, esso é rimasto cieco alia profonditá del suo stesso tema: "Lasoggettivita trascendentale della comunitá totale di soggetti singoli, trascendentalmenteassociata attraverso una possibile comprensione reciproca, restó non vista, in unasituazione di ingenua anonimitá, e fu ben lontana dall'esser riconosciuta come ¡I piüradicale e ¡I piü importante di tutti i temi scientifici. Non si vide che essa é ¡I correlatoessenziale dell'universo delle oggettivitá che, considérate in modo esclusivamente"positivo", sonó temi di ogni esperienza naturale. Ma dicendo "correlato essenziale" sivuol diré che l'oggettivitá senza la soggettivita trascendentale é semplicementeimpensabile" (Husserl, 1989, p. 197-8). II razionalismo moderno non si é avveduto chesenza una tematizzazione e una scienza della soggettivita trascendentale o dellasoggettivita pura non é possibile "nessuna filosofia, e neppure una scienza della natura edello spirito, una metafísica" (Husserl, 1989, p. 198). Ma bisogna intendersi sul sensodella soggettivita pura o trascendentale e sulla possibilitá di una scienza ad essa relativa.Per cogliere la soggettivita pura occorre smarcarsi dal terreno dell'atteggiamentoobbiettivistico e naturale (lasciamo per ora in sospeso che cosa questo implichi dal puntodi vista del método). "L'essere come coscienza e come ció che é cosciente nella coscienza[é] qualcosa di toto coelo diverso rispetto a ció che si presenta come cosa reale nellaconsiderazione naturale e obbiettiva del mondo" (Husserl, 1989, p. 177). L'intera analisifilosófica dell'etá moderna ha fallito su questo punto, cosalizzando la coscienza sullascorta di Cartesio e falsando in senso psicológico la soggettivita e ¡I trascendentalismo.Anche Kant - che puré compie effettivi passi in direzione della soggettivita trascendentale- rimane legato, secondo Husserl, alia psicología naturalística e a una concezionedell'anima "come una componente dell'uomo psico-fisico nel tempo della natura"(Husserl, 1961, p. 144). Se tentiamo di risalire al senso intuitivo delle parole che egli usaper diré che cosa sia la soggettivita trascendentale, ci troviamo "nella sfera umanapersonale, nella sfera psichica, psicológica" (Husserl, 1961, p. 143). Ma la soggettivitatrascendentale non puó essere né la soggettivita psicológica né la soggettivita reale,psico-fisica. Anche quest'ultima rientra, infatti, come tutte le "realtá" costituite, nellasfera di ció che ottiene ¡I suo senso a partiré dalla soggettivita trascendentale o, in altritermini, dalla soggettivita "costitutiva": essa stessa presuppone cioé una soglia dimanifestazione di quel senso d'essere che le é proprio. La soggettivita trascendentaledeve essere, al contrario, assolutamente apodittica e costituire ¡I principio ultimo difenomenicitá di tutto ció che é dato. Essa é quella "soggettivita originariamente esorgivamente fungente" (Husserl, 1961, p.126) necessariamente presupposta in ognisvelamento di senso, in ogni produzione di validitá, in ogni messa in questione.NeM'emergenza di qualsivoglia senso d'essere é implicata, cioé, sebbene in maniera nontemática e normalmente inconsapevole, una operativitá soggettiva, una "vita ultimaoperante" (Husserl, 1961, p.157), che si articola in una molteplicitá di modi, i quali sisviluppano secondo una struttura típica regolata. Tale "vita operante universale"(Husserl, 1961, p.173) non si realizza soltanto negli atti del percepire, del ricordare,dell'immaginare, oppure del rappresentare, del giudicare, del fondare, ma anche in quellidella vita affettiva e valutante, nei desideri, nelle tendenze e nelle volizioni, e non puóesclusivamente essere intesa nel senso di una "attivitá", poiché essa si presenta altresl,

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al livello piü basso, quello della costituzione primordiale della cosa, come "passivamente"fungente. La soggettivita trascendentale é, dunque, quel complesso di operazioni attivo-passive entro le quali ¡I mondo diviene per noi quel mondo che é. Essa é, in altri termini,la dimensione "dativa" che necessariamente funge nella manifestativitá.La scoperta di questa "vita ultima operante", di questo campo di "esperienzatrascendentale" coincide con la scoperta propriamente "husserliana" dell'intenzionalitá(nella differenza da quella brentaniana e dai suoi antecedenti tradizionali): la vita dellasoggettivita é da parte a parte "vita intenzionale"; l'essenza deH'originario "operaresoggettivo" (nella duplice dimensione attivo-passiva) implicato nella rivelazione delmondo é "intenzionalitá". Fin dalle Ricerche logiche, luogo della prima messa a puntodella nozione di intenzionalitá, Husserl insiste sul fatto che la relazione intenzionale nonvada intesa come qualcosa che la coscienza dovrebbe realizzare: l'intenzionalitá non éuna attivitá di connessione col mondo che si aggiunge in un secondo momento a unacoscienza che sarebbe giá se stessa senza di essa (e tale connessione non é nemmeno,come abbiamo detto, puramente e semplicemente "attivitá"). Quando si dice che lacoscienza é sempre coscienza-di qualcosa non si fa che prendere atto di una strutturaoriginaria dell'esperienza (come aveva ben compreso Heidegger, reinterpretandola,precisamente in questo senso "strutturale", come In-der-Welt-seirí). La relazioneintenzionale non si instaura a posteriori, non é da pensare nei termini di un "ponte" traun "interno" psichico chiuso in se stesso e l'"esterno" della realtá. L'intenzionalitárappresenta anzi, sotto questo profilo, ¡I definitivo congedo dalla metáfora del ponte,quindi da una riduzione psicologistico-internalistica della soggettivita e da una concezionedell'esperienza caratterizzata da una teoría delle immagini mentali (comeraddoppiamento segnico-raffigurativo del mondo). Avviene qui, se si vuole, unrovesciamento del senso tradizionale della metáfora: ¡I "ponte" é portato alio scopertocome relazione originaria, la quale cioé, come si direbbe in un linguaggio estraneo aquello della fenomenologia, precede i suoi poli. Se l'intenzionalitá é connessioneoriginaria, ció significa che essa non dipende da una volontá del soggetto, questi non nedispone e non la potrebbe istituire né interrompere a suo talento: essa fungeoriginariamente e costantemente in una molteplicitá di modi operativi, é "intenzionalitáfungente" (Husserl, 1961, p. 233), sebbene nell'atteggiamento naturale resti ignota.Quando, mentre lavoro, vedo ¡I tavolo davanti a me, sentó lo scalpiccio dei passi perstrada, mi ricordo improvvisamente di un appuntamento, immagino una tranquillavacanza al mare, ecc, l'intenzionalitá necessariamente funge, secondo modalitá diverse,intrecciate fra loro e di principio analizzabili (a cominciare da quelle del percepire, delricordare, dell'immaginare che sonó in primo piano, cui corrispondono un percepito, unricordato, un immaginato, ecc), anche se funge in modo completamente anónimo. Taleanonimía é da intendersi in un senso duplice. Se ora sottraggo l'intenzionalitádaN'anonimia in cui funge e la metto a tema, essa continua, in questo atto stesso diesplicitazione, a fungere anónimamente in un altro senso: l'atto che tematizzal'intenzionalitá fungente é infatti esso stesso uno dei modi del fungere, che non possorendere temático e oggettuale nel momento in cui lo vivo. Proprio in quantol'intenzionalitá é originariamente fungente, essa si trova cioé nel continuosopravanzamento di se stessa. Mentre ne esplicito e indago concretamente ¡I fungere inquesta o quella esperienza (e ció prefigura un campo sterminato e inaudito di ricerchesopra la "costituzione" della realtá nelle sue varié regioni), al tempo stesso, in questo"fare conoscitivo" si replica necessariamente l'intenzionalitá nel suo anónimo fungere.Non si tratta di un paradosso, bensl di una attestazione di originarietá: non solo lafenomenologia porta lo sguardo suN'intenzionalitá fungente, ma ne é essa stessa unamodalitá.

Se l'intenzionalitá é ¡I titolo di una relazione originaria, questo significa che non vi sonó"vissuti" e "oggetti" dapprima non-intenzionali che successivamente entraño in relazionee si coordinano fra loro, ma che tra mondo e coscienza di mondo, tra i modi di darsi dellediverse oggettualitá e i modi dell'intendere soggettivo, tra ¡I "come" dell'intentum e ¡I"come" úeW'intentio, tra ¡I "noema" e la "noesi", come anche l¡ chiama Husserl, vi é percosí diré una coordinazione originaria, una indeducibile coappartenenza, una connessione

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assoluta, una correlazione che non é istituita a posteriori, ma precede e consentequalsivoglia istituzione. É propriamente questo che Husserl nomina con "a-prioriuniversale della correlazione" (Husserl, 1961, p. 186). Ora, tale correlazione rappresentala struttura stessa della manifestativitá, giacché "noi non abbiamo un altro mondoessente che quello che si manifesta e ottiene senso a partiré dalle nostre manifestazioni eintenzioni. Non abbiamo altro mondo esistente in sé che quello ¡I cui in sé ottiene in noistessi senso e validitá, confermata nei suoi modi propri" (Husserl, 1959, p. 462). Non atorto, Husserl afferma a piü riprese che la tradizione moderna é rimasta sorda aliacorrelazione intenzionale (almeno in proporzione a quanto ha interpretato in manieranaturalistico-psicologistica la coscienza) e, piü in genérale, che questa "correlazione delmondo (del mondo di cui sempre parliamo) e dei suoi modi soggettivi di datitá non hamai suscitato lo stupore filosófico" (Husserl, 1961, p. 192). Sebbene si fosse giá inqualche modo annunciata nella filosofía, essa non é mai divenuta ¡I tema di una"peculiare scientificitá" (idem). Ci si é perció preclusi l'accesso a quel "regno delle madri"di tutte le conoscenze a cui conviene accederé se si vuole percorrere la via di un veroradicalismo filosófico e "trasformare l'ovvietá universale dell'essere del mondo", che per ¡Ifenomenologo é ¡I piü profondo degli enigmi, "in qualcosa di comprensibile e ditrasparente" (Husserl, 1961, p. 206).La scoperta husserliana dell'intenzionalitá, vale a diré della "correlazione trascendentalesoggetto-oggetto", contiene ¡I riconoscimento di quanto segué: "il mondo che é per noi,che nel suo senso e nel suo essere-cosl é ¡I nostro mondo, attinge ¡I suo senso d'essereesclusivamente alia nostra vita intenzionale, attraverso un complesso di operazionitipiche che possono essere rilevate a priori - rilevate e non costruite attraverso dubbieargomentazioni ed escogitate attraverso processi mitici di pensiero" (Husserl, 1961, p.207). Si trova qui un possibile manifestó deN'idealismo fenomenologico, a cui Husserl nonha mai voluto rinunciare. Esso non ha tuttavia ¡I senso di dedurre l'essere del mondodalle operazioni della soggettivitá. Per questo non bisogna rivolgersi alia fenomenología,ma a quelle scienze che intendono spiegare l'esperienza - la visione di un colore, peresempio - mettendo in campo la struttura del cervello e ¡I suo modo di recepire eorganizzare gli stimoli esterni, i quali non vanno ovviamente piü intesi come l'azzurro delcielo o ¡I biancore di una spiaggia marina (questo lo pensa ¡I senso comune imprigionatonelle apparenze), ma come onde elettromagnetiche e simili, che colpiscono quellamacchina della visione che noi saremmo in veritá. Nella fenomenología non si tratta ditrovare ¡I senso del mondo nel modo in cui é fatto ¡I soggetto, nelle sue proiezioni, ma diveder sorgere tale senso dall'interno della nostra esperienza del mondo assunta einterrogata fenomenologicamente. Si tratta, pertanto, di avere di mira propriol'esperienza che tutti facciamo, l'esperienza in ogni senso "comune", di prenderla nellasua "purezza", di guardarla cioé con occhi nuovi e attenersi solo ed esclusivamente adessa (diremo tra breve come questa possibilitá si apra e venga assicurata). E si puóparlare di "esperienza" in modo filosóficamente fondato, libero da pregiudizi e ingenuitánaturalistico-obbiettivistiche, solo nei termini di quella originaria e universale correlazioneimplicata dal titolo "intenzionalita" e resa temática dalla fenomenología. A motivo di ció,quest'ultima si propone come la via ad un "realismo" effettivamente radicale, che resisteall'aggressione scettica proprio in quanto ottiene la sua legittimazione a partirédall'esperienza e dal suo operare. L'essere e l'essere "in sé" del mondo si costituiscono eguadagnano la propria legittimazione precisamente a partiré dai decorsi e dalle legalitáinterne dell'esperienza, riconosciuta nella sua originaria struttura intenzionale. Si dispiegacon ció tutto ¡I programma della fenomenología trascendentale, giá in qualche modochiaro fin da L'idea della fenomenología: indagare come ¡I mondo giá-dato si costituiscenell'operare dell'esperienza. Si tratta di esplicitare tutte le forme di correlazioneintenzionale che presiedono alia manifestazione dei sensi molteplici del mondo. "Ció cheé, in qualsiasi senso, concreto o astratto, reale o idéale, ha i suoi modi di datitá e, dallaparte dell'io, ha i suoi modi intenzionali, i modi di validitá e gli inerenti modi di evoluzionesoggettiva dell'intenzione stessa" (Husserl, 1961, p. 193). E questo ¡I compito dell'analisiintenzionale-costitutiva che, di principio, é chiamata a rispondere a ogni domanda

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relativa alia costituzione dell'essente, sviluppandosi sia sul lato noetico sia su quellonoematico.Per cogliere l'operare dell'esperienza, per portare l'attenzione sulla "correlazionetrascendental" bisogna avvalersi di un método adeguato, quello óe\V"epoché' e della"riduzione" fenomenologica ("messa tra parentesi" del mondo e fenomenizzazione,ri(con)duzione ai fenomeni, riduzione dell'essere a fenómeno). Esso rappresenta la vera epropria chiave di accesso alia fenomenologia trascendentale. Com'é noto, Husserl non hamai smesso di tornare, con continué introduzioni e illustrazioni, sul significato e sullanecessitá del suo método. Dall'altra parte, non vi é nulla di piü controverso úe\Vepoché edella riduzione tra i continuatori, oltre che tra i critici, della fenomenologia. La posizionedi Heidegger e di Merleau-Ponty ha in qualche modo segnato una intera generazione diinterpreti: essi considerano, seppure in modi diversi, la riduzione e le questioni che vigravitano attorno come una traccia persistente di cartesianesimo, che trattiene lafenomenologia nei limiti di un idealismo soggettivistico, di un coscienzialismo senzamondo, in contrasto con i suoi motivi piü innovativi. La riduzione trascendentalecomporta ed esige, per Heidegger, "la soggettivitá assoluta come la cosa della filosofía"(Heidegger, 1980, p. 171). In modo piü sfumato, Merleau-Ponty sostiene che "il piügrande insegnamento della riduzione é l'impossibilitá di una riduzione completa"(Merleau-Ponty, 1965, p. 23), giacché per compierla noi dovremmo essere "spiritoassoluto". Questi traduce perció la riduzione fenomenologica in "riduzione esistenziale"che lascia apparire, non una soggettivitá che si possiede senza resti (assoluta), bensll'heideggeriano "essere-nel-mondo". Ora, per quanto tale interpretazione della riduzioneabbia fatto scuola, essa non coglie nel segno e, per cosí diré, intende preservare lafenomenologia proprio da quella piega idealistico-soggettivistica che dapprima leattribuisce.Se Vepoché si caratterizza, in una assonanza solo fórmale col gesto cartesiano, comesospensione dell'atteggiamento naturale e della sua tesi genérale - "la tesi del mondo",in virtü della quale ¡I mondo é assunto come in sé reale ed esistente -, essa non hatuttavia affatto lo scopo di dubitare della realtá del mondo, di ignorarla, rinunciarvi oescluderla, per volgersi únicamente verso r"interioritá" auto-evidente e assoluta dellacoscienza e dei suoi atti. La ricerca trascendentale dischiusa úaW'epoché riguarda alcontrario proprio ¡I mondo nel suo senso autentico. Perció Husserl ritiene, in ErstePhilosophie, che sia "meglio evitare ¡I termine "residuo" fenomenologico, cosí come quellodi "messa fuori circuito del mondo". Queste espressioni inducono fácilmente a credereche d'ora in poi ¡I mondo fuoriesca dal tema fenomenologico e che invece di ció sianotemi fenomenologici solo gli atti "soggettivi", i modi di manifestazione ecc. che siriferiscono al mondo" (Husserl, 1959). Vepoché non intende in altri termini operare unasostituzione del centro di interesse dell'indagine filosófica: non piü ¡I mondo, bensl lacoscienza e i suoi vissuti. Essa consiste piuttosto in un altro modo di guardare ¡I mondo,che implica anche un altro modo di guardare la soggettivitá: si tratta del passaggio dauna indagine diretta del mondo, che lo assume semplicemente come ovvio ed é ignaradel légame che la sua manifestazione e ¡I suo senso necessariamente intrattengono conla vita operante della soggettivitá, a una indagine ¡ndiretta, o riflessiva, che interrogainvece l'esperienza del mondo e la "costituzione" (il sorgere) in essa di quel senso e diquella manifestazione. II riferimento a una "messa tra parentesi" del mondo non rivestedunque altro significato per ¡I fenomenologo che quello di inibire la posizione ingenua(naturale, quotidiana) del mondo per poterlo cogliere in quanto correlato intenzionale,vale a diré come "fenómeno". Da una parte, la riduzione sottrae ¡I mondo all'astrazione incui esso viene mantenuto dall'atteggiamento naturale (diretto), e lo rivela nella sua pienaconcretezza, ovvero come una formazione di senso costituita; dall'altra, essa strappa lavita della soggettivitá a una considerazione obbiettivistico-naturalistica di se stessa, aliasua ignoranza della propria trascendentalitá, e la apre quindi alia autocoscienzatrascendentale.

Ció si mostra in piena chiarezza nella Crisi, dove viene perseguita la cosiddetta "viaontologica" della riduzione. In quel contesto, dopo aver indicato la necessitá di una primaepoché da tutte le scienze obbiettive, per tematizzare ¡I terreno del mondo-della-vita,

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Husserl introduce la necessitá di una seconda decisiva epoché, che conduce aliasoggettivitá trascendentale. Egli mette pertanto a confronto i due possibili modi dirapportarsi al mondo giá-dato e ai suoi oggetti. II primo é quello nórmale, in cui citroviamo innanzitutto e per lo piü, che precede per ragioni essenziali tutti gli altri: essomira direttamente agli oggetti (anche eventualmente nel senso di una ricerca orientata auna conoscenza scientifica) e ha nel mondo ¡I campo universale verso cui sonó orientatitutti gli atti. Ma vi é anche un secondo modo, interamente diverso, ¡I quale si annuncia,rispetto al primo, come del tutto innaturale. Esso muove dalla considerazione che ¡Imondo e gli oggetti non ci sonó soltanto dati, ma che "noi diventiamo coscienti di essi (edi tutto ció che é supposto onticamente) attraverso modi soggettivi di apparizione e didatitá, anche se non vi badiamo affatto e se di gran parte di essi non abbiamo ¡I mínimosospetto" (Husserl, 1961, p. 172). Se consideriamo questo fatto nell'ottica di una radicalemodificazione dello sguardo, di un mutamento totale del nostro atteggiamento, laconclusione é presto detta: "Stabiliamo un conseguente interesse universale per ¡I comedei modi di datitá e per gli stessi onta, ma non direttamente bensl in quanto oggetti nelloro come, interessandoci appunto esclusivamente e costantemente al come, al modo incui sorge per noi la validitá unitaria universale, ¡I mondo nell'evoluzione delle validitárelative, delle apparizioni soggettive, delle opinioni, al modo in cui si costituisce per noi lacostante coscienza dell'esistenza universale, deN'orizzonte universale degli oggetti reali,realmente essenti, ciascuno dei quali anche quando é presente alia coscienza nella suaparticolaritá, come semplicemente esistente, lo é soltanto nell'evoluzione delle sueapprensioni relative, dei suoi modi di apparizione e di validitá" (Husserl, 1961, p. 172).Come appare da questo lungo brano, Vepoché che Husserl propone nella Crisi non chiededi distogliere lo sguardo dal mondo delle cose per dirigerlo a una mente, un interno delsoggetto, una immanenza psichico-coscienziale, bensl al "come universale dell'essere-giá-dato del mondo", ai "modi di datitá" che gli ineriscono. L'astensione dallapartecipazione alie validitá del mondo giá dato, implicata daW'epoché, non ha pertanto ¡Isenso di escludere ¡I mondo, ma di renderlo indagabile in maniera completamente nuova,vale a diré nella sua "genesi" fenomenologico-costitutiva (non metafísica) e nella suacorrelazione con la vita esperiente della soggettivitá. A tema é sempre ¡I mondo, ma"puramente ed esclusivamente in quanto ha, secondo certimodi, un senso e una validitádi senso nella nostra vita di coscienza, in forme sempre nuove" (Husserl, 1961, p.176). IInostro occhio si volge quindi a quelle forme e a quei modi di manifestazione in cui sicostituiscono gli enti e le validitá di senso che normalmente sorreggono la nostra vita e,di qui, alia soggettivitá nel suo operare, alia vita di coscienza trascendentale. Non appenasi esercita Vepoché nel senso detto, "il mondo-della-vita diventa un primo titolointenzionale, un índice, un filo conduttore per una indagine che voglia risalire aliamolteplicitá dei modi di apparizione e alie loro strutture intenzionali. A un secondo gradoriflessivo, é possibile considerare ¡I polo egologico e ció che é proprio della sua identitá"(Husserl, 1961, p. 198).

Ma che cosa si "vede" nel nuovo sguardo reso possibile daW'epoché, inquell'atteggiamento riflessivo di secondo grado che riflette non direttamente sugli enti,ma sul "come" del loro essere dato, che ha cioé di mira le forme del nostro esperire e glioggetti in quanto esperiti? Serviamoci di un esempio. Entro nell'aula e mi trovo di fronteuna cattedra. Opero Vepochée mi interesso esclusivamente al "come" del suo essere-giá-dato. Assumo, per iniziare, la percezione di questa cattedra come tema della miadescrizione. Ritorno riflessivamente e tramite una libera variazione presentificante suisuoi "modi di datitá", sia dal punto di vista noetico sia da quello noematico. Nellariflessione fenomenologica "vedo" che questa cattedra mi si offre sempre da uno qualsiasidei suoi lati. Questo lato é propriamente percepito, ma essa ha ancora altri lati, che nonsonó visibili, e tuttavia lo possono diventare. "É come se l'oggetto mi dicesse: qui c'éancora qualcos'altro da vedere, girami da tutti i lati, percorrimi con lo sguardo, vienimipiü vicino, aprimi, frazionami. Getta sempre nuovi sguardi d'insieme e compi rotazioni daogni lato. Cosí mi conoscerai in tutto ció che sonó, nella totalitá delle mié proprietá disuperficie, delle mié interne proprietá sensibili" (Husserl, 1993, p. 35). Mi accorgo -nell'atteggiamento fenomenologico - che, nel procederé della percezione, la cattedra mi

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é data in modo continuo come unitá nella molteplicita di apparizioni mutevoli e di scorcirelativi a piü forme d'esperienza. La percezione include, infatti, ¡I vedere, ¡I toccare, ecc,e ció che é visto attraverso ¡I vedere é per sé qualcosa di diverso da ció che é toccatoattraverso ¡I toccare. Nonostante ció, dico che si tratta di un'unica e medesima cattedra eche diversi sonó solo i modi della sua rappresentazione sensibile. Se anche mi attengoúnicamente al vedere, mi trovo nuovamente davanti a una molteplicita di apparizioni:durante l'evoluzione del vedere io vedo la superficie della cattedra ora da un lato oradall'altro, e in ogni fase ció che é visto é qualcosa di diverso; ma attraverso tutti questimodi una sola e medesima cosa - la cattedra - é consaputa come quella che si manifestain essi. Nell'atteggiamento diretto noi vediamo l'oggetto, la forma, ¡I colore, ecc: é solonella riflessione che vediamo la molteplicita delle prospettive e ¡I suo rapporto aN'unitáoggettuale e vediamo anche che questi modi fenomenici non sonó, nel loro fluiré, unmero insieme di manifestazioni senza connessioni: essi concorrono piuttosto neN'unitá diuna sintesi, che dovrá a sua volta essere interrogata quanto alia sua genesi.Ogni lato mi da qualcosa della cosa vista. Ma se attraverso ogni lato che di volta in voltapropriamente si da io vedo la cosa (la cattedra) ció significa che io ho presente semprepiü di ció che esso effettivamente mi offre. Emerge qui ¡I tema deN'orizzonte. Lapercezione é possibile solo nella forma di un effettivo avere coscienza di lati e di un co-avere coscienza di altri lati non dati originalmente. Dal versante noetico, dell'atto, ¡Ipercepire é dunque un "miscuglio" (Husserl, 1966, p. 35) di presentazione effettiva e divuoto indicare, che rimanda a possibili nuove percezioni. Dal versante noematico, delsenso oggettuale, ¡I percepito si da per "adombramenti", in modo tale che ció che é divolta in volta dato rimanda a qualcosa di non dato, appartenente tuttavia a quelmedesimo oggetto e co-presente. "Ció che viene percepito, nei modi di manifestazioneche gli sonó propri, é ció che é in ogni momento del percepire: é un sistema di rimandicon un núcleo fenoménico nel quale quei rimandi trovano ¡I loro sostegno" (Husserl,1966, p. 35). Tanto sul versante noetico quanto su quello noematico i modi di datitá della"cosa" non si presentano pertanto mai isolatamente: ognuno di essi é un rimando adaltre manifestazioni non ancora date e ad altri momenti-cattedra che ancora non simanifestano. Ora, le connessioni dei rimandi costituiscono al tempo stesso gli "orizzonti"dei nostri vissuti intenzionali e la condizione dell'apparire delle cose. "In ogni percezionedi una cosa é implícito un "orizzonte" di modi di apparizione e di sintesi di validitá chenon sonó attuali e che tuttavia sonó co-fungenti": senza l'implicazione di questamolteplicita inattuale di apparizioni "non ci sarebbero date le cose, né ci sarebbe dato ¡Imondo dell'esperienza" (Husserl, 1961, p. 186). Tutto ció che effettivamente si da(noeticamente, questa "percezione" attuale; noematicamente, questo "adombramento"della cosa) é manifestazione-di (una cattedra, per stare aN'esempio) solo in quanto éintrecciato ad un orizzonte aperto di percezioni possibili e di ulteriori adombramenti. Adogni manifestazione di cosa di una qualsiasi fase percettiva inerisce un nuovo orizzonte,un nuovo sistema di possibili manifestazioni, di possibili decorsi di aspetti con i rispettiviinscindibili orizzonti.

Da questi rapidi accenni ad analisi che Husserl elabora in maniera estremamentearticolata, si evince che, nella percezione, "la singolaritá non é nulla" (Husserl, 1961, p.189): ogni "percezione" porta implícitamente con sé un intero sistema percettivo e ogni"manifestazione della cosa" porta con sé un intero sistema di manifestazioni nella formadell'orizzonte intenzionale interno ed esterno. Non vi é solo, infatti, l'orizzonte "interno"(il sistema delle percezioni possibili della cosa e ¡I sistema dei lati e profili di essa che nonsonó attualmente dati e sonó tuttavia co-presenti e co-intenzionati); "di fronteallmorizzonte interno", c'é un "orizzonte esterno", appunto perché la cosa é in un campodi cose; e ció rimanda infine al mondo nel suo complesso, al "mondo della percezione"(Husserl, 1961, p. 189). La cosa ha un senso soltanto in un ámbito a partiré dal quale"ció che é realmente percepito rimanda a qualcosa che co-esiste immediatamente o nellevicinanze, o a qualcosa che é lecito aspettarsi, che in questo caso é co-cosciente solo inmaniera oscura e vuota di intuizione" (Husserl, 1959, p. 148). Questa cattedra che staora davanti a me non ha alcun senso fuori da queN'orizzonte di rimandi che é costituitodall'aula, daN'atrio, dall'edificio, ecc, ovvero da quel complesso di cose che funge da

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campo percettivo momentáneo e che rappresenta un "ritaglio "del" mondo" (Husserl,1961, p. 189). Perció, Husserl afferma che le cose sonó presentí alia coscienza in quantodisposte " nel/'orizzonte del mondo. Ogni oggetto é qualche cosa, "qualche cosa a partirédal mondo" ("etwas aus der Welt"), dal mondo che é presente alia coscienza in quantoorizzonte" (Husserl, 1961, p. 171) e che ha un modo d'essere del tutto diverso da "ungruppo di cose".Ció che nella riflessione fenomenologica sull'esperienza percettiva, grazie aU'epochée aliainterrogazione del "come", appare in modo chiaro é che la percezione (nel suo dupliceversante noetico/noematico) non é costituita da eventi singolari né puntuali (istantanei):la percezione possiede strutturalmente un orizzonte e si mostra come un decorsotemporalmente esteso in cui nessun momento é isolabile, come una sintesi costante incui ogni presenza effettiva é sempre intrecciata con la non-presenza (la co-presenza). Ledue dimensioni - tempo e orizzonte - sonó evidentemente inseparabili. Se vi é orizzonte,vi é correlativamente anticipazione, preafferramento, predelineazione. E dobbiamointendere questa "lógica" dell'anticipazione come originaria, non vincolata ad alcunaprecognizione giá acquisita: essa é la precognizione primordiale, si potrebbe diré. Dalpunto di vista noetico, ogni percezione rimanda a possibili nuove percezioni; dal punto divista noematico, ogni lato o profilo della cosa rimanda ad un ulteriore lato o profilo: ognimanifestazione porta insomma con sé un plus ultra, una tendenza che spinge verso lemanifestazioni non ancora date nella forma di una predelineazione e di una attesaanticipatrice vuota e indeterminata. E tuttavia, quando vedo ¡I lato anteriore dellacattedra e mi trovo sospinto in una predelineazione verso ¡I lato posteriore co-presente eco-intenzionato in modo vuoto, "si tratta in ogni caso di un rimando ad una formacorpórea, ad una colorazione corpórea, ecc, e solo manifestazioni che adombrinoqualcosa di simile, che - nell'ambito di questa predelineazione - determinino in manierapiü precisa ció che é indeterminato, possono coerentemente integrarsi" (Husserl, 1966,p. 36). Nell'attesa preafferrante non vi é dunque arbitrarietá. Ma con ció é giá implicato ¡Irapporto tra la "protenzione" (che nel procederé della percezione esterna ha la forma dicontinué attese anticipatrici che devono essere riempite) e la "ritenzione", vale a diréquel presente effettivo che é or ora defluito e che tuttavia non é ancora uscito dalla sferadella presenza: la ritenzione si rovescia in avanti nella protenzione, come "stile delpassato proiettato nel futuro". Protenzione e ritenzione rimandano a loro volta alpresente e alia presentazione in senso proprio, al momento "Hético" del processotemporale, quello in cui avviene ¡I riempimento. "Nel continuo procederé della percezioneabbiamo, come in ogni percezione, protenzioni che si riempiono costantemente grazie alsopraggiungere di nuovi elementi, che si fanno avanti nella forma di "ora"originariamente impressionali" (Husserl, 1966, p. 38). Ma ogni nuovo riempimento é alcontempo uno svuotamento. Non appena un nuovo lato diventa visibile, infatti, un altroche lo era appena divenuto diventa non piü visibile, per divenire infine completamenteinvisibile, senza tuttavia andaré perduto. II lato che non é piü immediatamente visibileviene "mantenuto" e viene "assunto insieme" con quello che giá lo precedeva. L'ambitooriginario di questa operazione é, com'é chiaro, "la ritenzione ininterrottamente co-fungente" (Husserl, 1966, p. 39). Attraverso questo decorso percettivo, in cui siproducono rapporti sempre piü complessi e significativi tra intenzione e riempimento, trapredelineazione e ritenzione, avviene queH'originario prendere atto in virtü del qualel'oggetto sconosciuto si trasforma in oggetto conosciuto. In questo processo diacquisizione originaria giocano un ruólo rilevante la rimemorazione e la possibilitá diriattualizzazione della ritenzione attraverso una nuova percezione del medesimo che ha ¡Icarattere del riconoscere: "Girando attorno, avvicinandomi, tastando con le mani, ecc,posso rivedere tutti i lati giá noti, l¡ posso esperire nuovamente: sonó dunque pronti perla percezione, e ció vale anche per ¡I futuro" (Husserl, 1966, p. 41).

Ci accorgiamo allora che i decorsi manifestativi sonó in un essenziale rapporto con"molteplicitá correlative di processi cinestetici, che hanno ¡I carattere peculiare dell™iofaccio", delT'io mi muovo" (e anche dell™io mantengo immobile")" (Husserl, 1961, p.188) e che ineriscono al corpo proprio. Le cosiddette "sensazioni di movimento", chedecorrono, durante la percezione, nel movimento degli occhi, del capo, ecc, sonó

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coscienzialmente correlate alie corrispondenti manifestazioni percettive, in modo tale cheio posso per esempio diré: "Se muovessi gli occhi in quella e quell'altra direzione, cisarebbe un decorso corrispondente, in un ordine determinato, di queste e queste altremanifestazioni visive; se muovessi gli occhi in quella e quell'altra direzione, alloradecorrerebbero altre serie di manifestazioni e altre dovrebbero esserecorrispondentemente attese" (Husserl, 1966, p. 45; corsivo nostro). Questa connessioneintenzionale indicata dall'espressione "se-allora" rappresenta ¡I sottofondo di qualsiasi"diretta certezza d'essere della cosa nella sua presenza" (Husserl, 1961, p. 189). Se,infatti, relativamente al sistema dei miei movimenti corporei io sonó soggettivamentelibero (in ogni momento posso voluntariamente scegliere questa o un'altra linea dimovimento), "riguardo alie manifestazioni non sonó libero: se realizzo una linea nel liberosistema dell™io mi muovo", allora sonó preliminarmente predelineate le manifestazionifuture" (Husserl, 1966, p. 45). La motivazione cinestetica é un aspetto della costituzionenoematica essenziale per l'oggettivazione dell'oggetto percettivo. Solo grazie a questosistema di concordanze, vale a diré solo in quanto le sue manifestazioni sonócinesteticamente motívate, ció che si manifesta si costituisce come "un oggettopercettivo trascendente, e cioé come un oggetto che é piü di quanto percepiamo, unoggetto che puó continuare a sussistere anche se é scomparso dalla mia percezione"(Husserl, 1966, p. 46). Al contrario, quando si produce una rottura in questo accordo,l'essere si trasforma in apparenza, oppure in dubbio, o in un essere-possibile, in unessere-probabile. Muta ¡I senso in cui la cosa era stata percepita. "La certezza d'essere,che include anche la certezza preliminare di poter portare, nel corso della percezione e inun libero orientamento delle cinestesi, le inerenti molteplicitá a un decorso concorde,spesso scade, e tuttavia si mantiene sempre, attraverso una rettifica che fungeimplícitamente e costantemente, una concordanza della percezione complessiva delmondo" (Husserl, 1961, p. 190). A questo occorre aggiungere che nella percezione delmondo noi non siamo mai isolati, bensl in un légame essenziale con gli altri uomini.Come nella mia vita si produce una concordanza tra le mié serie di esperienze e irispettivi risultati, cosí nella vita in comune si produce una concordanza intersoggettivadella molteplicitá delle validitá e di ció che in esse é valido.

Quanto abbiamo sia puré sommariamente richiamato (alludendo alia struttura dellapercezione, ai concetti di orizzonte e di mondo, alia temporalitá fenomenologicaimmanente, alia connessione tra i decorsi manifestativi e le cinestesi corporee, aliaconcordanza intersoggettivitá delle validitá) rappresenta un indizio di quella indagine,resa possibile óaW'epoché, del mondo nel "come" dei suoi modi di datitá, delle struttureintenzionali manifesté o implicite senza le quali né gli oggetti né ¡I mondo si rivelerebberoper noi secondo ¡I senso e ¡I modo d'essere che essi hanno. Abbiamo inteso fornire unriferimento esemplificativo all'analisi costitutiva del mondo percettivo, ¡I quale non é altroche uno "strato" dell'intero mondo dell'esperienza. Ma attraverso questi sintetici cenni sipuó giá cominciare a intravedere che cosa significhi per Husserl disporsi sul terrenodell'immanenza, cioé dell'esperienza "pura", fenomenologicamente considerata, perrendere ragione della "costituzione" di tutto l'essente. Che in gioco vi sia una "scienza"del come universale dell'essere-giá-dato del mondo e non una filosofía autoconfinantesinella sfera delle mere opinioni, lo si evince da questo eloquente commento:

Anche se abbiamo considerato propriamente soltanto ¡Imondo percettivo, e nell'ambito di esso, soltanto ¡I suoaspetto corpóreo, ci viene suggerita la convinzione chenon si tratti di fattualitá casuali, anzi, che nessun uomopensabile, comunque possa trasformarsi, potrebbeesperire ¡I mondo attraverso modi di datitá diversi daquelli che noi abbiamo delimitato in genérale (Husserl,1961, p. 192).

Attraverso Vepoché si tratta dunque di ritornare all'esperienza, ma non all'esperienzanaturale o naturalísticamente intesa, psicofisica o psicológica (o anche neurologica, comepiü fácilmente si direbbe oggi), bensl all'esperienza pura o trascendentale, in cui sicostituisce (si manifesta) ¡I senso del mondo e di ogni essente e che, sotto questo profilo,

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"precede" anche quella naturale. L'esperienza trascendentale coincide con la sfera diquella correlazione tra ¡I mondo e i suoi modi "soggettivi" di datita che non ha maisuscitato lo stupore filosófico. Non hanno luogo qui alcun introspezionismo e alcuninternalismo: l'esperienza pura non é né interna né esterna, poiché i sensi di "interno" edi "esterno" si formano appunto nell'esperienza fenomenologicamente intesa. Ladimensione sospensiva dell'atteggiamento fenomenologico (per cui non ci si impegna inaffermazioni ontologiche sull'esistenza o non esistenza) ricopre precisamente l'ufficio direnderci accessibile nella sua purezza questo campo di esperienza e ¡I sistema di veritá apriori che ad esso appartiene. La correlazione, infatti, non é da intendersi come un merofatto, per quanto universalmente constatabile: "nella sua fattualitá si annuncia unanecessitá essenziale, che attraverso un método adeguato puó essere tradotta ingeneralitá essenziali, in un poderoso sistema di veritá a priori di nuovo tipo" (Husserl,1961, p. 193). Qualsiasi essente, in quanto entra nella manifestativitá e vale per me - oper qualunque altro soggetto pensabile - come essente, é l'indice di una correlazionetrascendentale e della sua "molteplicitá sistemática". Ogni essente diventa perció filoconduttore per una indagine che intenda risalire alia molteplicitá dei suoi modi diapparizione e alie rispettive strutture intenzionali.L'autentica profonditá di questo progetto filosófico - che ha avuto ampia realizzazionenelle opere di Husserl - si mostra nell'analisi dell'ultimo livello dell'esperienzatrascendentale, quello relativo alia sensibilitá o sensualitá originaria, caratterizzato dellesintesi passive a cui giá abbiamo alluso sopra di sfuggita accennando alia costituzionetemporale. "In ogni caso - scrive Husserl -, ogni costrutto dall'attivitá presupponenecessariamente come grado inferiore una passivita che determina la datita, seguendo laquale noi ci imbattiamo nella costituzione secondo genesi passiva. Quel che nella vita ci sipresenta, per cosí diré, bell'e pronto, come mera cosa esistente (fatta astrazione da ognicarattere spirituale che la rende conoscibile, per esempio, come martello, tavolo,prodotto artístico, ecc), é ció che é dato neN'originarietá del se stesso nella sintesidell'esperienza passiva. Come tale, questa cosa é presupposta alie attivitá spirituali cheiniziano con l'apprensione attiva" (Husserl, 2002, p. 102). Questo significa che a livellodella mera cosa esistente e - prima ancora - delle unitá sensibili minime, sonó giáall'opera delle sintesi, dei modi di datita, delle strutture intenzionali: solo che si tratta disintesi passive, che in parte precedono e in parte comprendono tutte le sintesi attive.Anche qui, cioé, vige la correlazione tra ¡I mondo e i modi di datita, ma in una forma cheeselude l'attivitá e che, in questo senso, é "pre-egologica". Le sintesi percettive, inquanto sintesi attive, si fondano sulle sintesi passive, giacché queste fornisconocostantemente alie prime "ogni materia" (Husserl, 2002, p. 103). La formazione deglioggetti sensibili originan va ricondotta dunque alio strato ultimo dell'esperienzatrascendentale, che si annuncia come pre-egologico e pre-oggettuale, dominato dallesintesi passive della temporalitá e dell'associazione: queste ultime non appartengonoovviamente all'oggetto sensibile nella sua "materialitá" naturalísticamente concepita, maall'oggetto In quanto si manifesta o nel suo originario manifestarsi, ovvero all'oggettofenomenologicamente ridotto. Proponendosi pertanto di risalire fino alia costituzionesensibile, la chiarificazione fenomenologica del senso d'essere del mondo giá-dato siimbatte in una operativitá puramente passiva e nelle sue legalitá genetiche immanenti.La sintesi temporale rappresenta "la lettera A nell'ABC della costituzione di ognioggettivitá che divenga cosciente e della soggettivitá per se stessa esistente" (Husserl,1966, p. 177). Essa garantisce ¡I collegamento fra i dati secondo durata, coesistenza esuccessione, indipendentemente dal contenuto di essi. Se i dati non fossero essi stessioriginariamente unificati, se cioé la coscienza impressionale delle apparizioni attuali noncontenesse la coscienza ritenzionale di quelle precedenti e l'attesa protenzionale di quelleimminenti, in ogni istante del decorso sarebbe cosciente solo un único dato, isolato daisuoi momenti contigui, non vi sarebbe unificazione e quindi nemmeno esperienza diqualsivoglia unitá. La sintesi temporale é dunque "la forma di tutte le forme, ¡Ipresupposto di tutte le connessioni che costituiscono una unitá. Forma significa qui perofin dapprincipio ¡I carattere che necessariamente precede ogni altro nella possibilitá diuna unitá intuitiva. La temporalitá, come durata, coesistenza e successione, é la forma

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necessaria di tutti gli oggetti unitariamente intuibili e perció la forma di intuizione di essi"(Husserl, 1995, p. 149).Solo in forza di questa strutturazione fórmale della sintesi temporale si rende possibile lacostituzione di unitá e si compie ogni obbiettivazione: se ¡I dato sensoriale non avesse isuoi orizzonti di passato e di attesa originan non sussisterebbe alcuna esperienza. Ora, ¡Imovimento di temporalizzazione, in virtü del quale noi possiamo parlare di un "flusso"impressionale-ritenzionale-protenzionale ("Questo flusso é qualcosa che noi chiamiamocosí in base al costituito, ma che non é nulla di temporalmente "obbiettivo"" (Husserl,1981, p.13), é un processo anónimo e passivo, non influenzabile volontariamente.Quanto ad esso ¡I soggetto non puó che diré: "Qui io non ci posso fare niente". Lastruttura e la vita del "presente vívente fluente-stante" non dipendono da un fare dell'io:¡I "flusso" accade, fluisce, non si realizza a partiré da una attivitá egologica, anzi, questadipende da quello. II processo originariamente temporalizzatore é infatti la condizione dipossibilitá di ogni obbiettivazione e al tempo stesso di ogni "soggettivazione" (vale a dirédella costituzione della soggettivitá stessa).Se la sintesi temporale é la condizione fórmale dell'esperienza, la sintesi associativarappresenta invece la condizione contenutistica. Essa presiede cioé alia strutturazione ealia organizzazione determinata dei dati iletici nell'immanenza, a partiré dalla peculiaritádei contenuti. La sintesi associativa ha a che fare con quelle forme di collegamento chesonó all'opera nei dati, nel loro presentarsi, e che non dipendono da una attivitá sintéticadel soggetto (né sonó da intendersi, empiristicamente, come connessioni del puro viverepsichico). Si tratta di strutture sintetiche appartenenti ai contenuti stessi inmanifestazione (al materiale sensibile immanente all'esperienza) e senza di esse nessunmondo determinato apparirebbe. "I collegamenti contenutisticamente piü generali chesussistano tra gli oggetti emersi sonó la somiglianza (o l'eguaglianza) e la nonsomiglianza, oppure, in termini piü pregnanti: i collegamenti deN'omogeneitá edeN'eterogeneitá" (Husserl, 1966, p. 181). Le associazioni originarie, a differenza delleassociazioni di senso comune, sonó quelle che presiedono tanto alia connessione quantoalia emergenza delle unitá fenomeniche originarie. Abbiamo cosí la "fusione a distanza"nella coesistenza (di macchie rosse su uno sfondo bianco, per esempio) e nellasuccessione (la ripetizione di colpi di martello), che riguardano dati giá separatamenteemersi; in secondo luogo vi sonó la "fusione da vicino" nella coesistenza (una macchiarossa su uno sfondo bianco), e nella successione (un suono che si espandeuniformemente), che riguardano l'emergenza stessa di una unitá sensibile. Quest'ultima,oltre a stare in collegamento di coesistenza e di successione con altre unitá sensibili, éanche in se stessa una interna struttura sintética. La nostra esperienza, cioé, non vaspiegata nei termini di sensazioni semplici, corrispondenti a dati sensibili atomici, cheaspetterebbero successivamente di essere sommati: l'unitá sensibile mínima é giá unasintesi, una continuitá omogenea, che si distingue da una totalitá, da uno sfondo.Affinché emergano parti effettivamente concluse non basta infatti ¡I fenómeno originariodella "fusione", ma é necessario quello correlativo e co-originario del "contrasto", cioédella separazione all'interno di un campo complessivamente omogeneo. In altre parole, larivelazione del mondo al livello ultimo della sensibilitá é un movimento caratterizzato dalegalitá genetiche immanenti indipendenti dalla attivitá soggettiva. Se tutto ¡I mondofosse infatti uno stesso suono o uno stesso colore, sentiré un suono o vedere un coloresarebbe impossibile, pur supponendo un soggetto visivo-uditivo all'opera: devepresentarsi almeno una differenza nel campo sensibile omogeneo, giacché un solo suonosignifica nessun suono. II contrasto é dunque un fenómeno originario che designa "larelazione di unitá tra un dato emergente e quello dal quale emerge" (Husserl, 1966, p.192). Ma allora l'omogeneitá di ogni campo sensibile é condizione di possibilitá dellafusione associativa e lo stesso contrasto "resta comunque un fenómeno deM'omogeneitá"(Husserl, 1966, p. 192): solo all'interno di una omogeneitá complessiva un dato puórisaltare rispetto agli altri per contrasto. Questo significa che ¡I campo sensibile - ovveroun sistema complessivo di somiglianze - deve essere presupposto e predato: quando simanifesta un colore é infatti necessariamente giá aperta la totalitá del campo sensibile.Potremmo proseguiré in questa linea la ricca e articolata analisi delle sintesi associative

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che Husserl ci offre. Ma ció che ci interessa sottolineare é che qui noi non ci troviamo difronte a risultati di atti, bensl a una dinámica interna ai materiali sensibili, a una cinéticadei contenuti stessi in manifestazione, a sintesi cioé che si realizzano interamente dallaparte dei contenuti e non del soggetto, in virtü delle quali emergono le primordiali unitásensibili. Ovviamente, quando si parla di costituzione delle unitá sensibili, non si intenderiferirsi alia loro "produzione", ma al loro darsi e modo di darsi nell'esperienza, aliestrutture che rendono possibile l'esperienza del mondo al suo livello ultimo. A riguardodelle sintesi che vi si trovano all'opera, ¡I soggetto non puó che diré di nuovo: "Qui io nonci posso fare niente".Non sarebbe tuttavia comprensibile quanto detto sin qui se non si tenesse contó che iprocessi passivi richiamati, che non dipendono da un fare dell'io, sonó anch'essinecessariamente per l'io. É ció che diventa chiaro nel concetto di "affezione". "Le unitáper sé si costituiscono comprensibilmente secondo i principi, che abbiamo mostrato, dellaconcrescenza e del contrasto, e in quanto unitá per sé esse esistono eo ipso anche perl'io, lo colpiscono" (Husserl, 1993, p. 220). Perció, nella misura in cui, a partiré dallafusione e dal contrasto, emergono unitá sensibili, ci troviamo in presenza di una affezione(siamo sempre all'interno di una correlazione). "Ció che si distingue in se stesso fungeaffettivamente" (Husserl, 1966, p. 184), cioé esercita sull'io una forza: questo noncomporta che tutto ció che colpisce l'io sia avvertito; vi é una "gradualitá dell'affezione",ed é conformemente a tale nozione che Husserl attribuisce "a ogni dato costituito edistinto per sé uno stimolo affettivo sull'io" (Husserl, 1966, p. 221). Ogni costituito ésempre rivolto a me, a un io, é per me, per quanto possa essere avvertito secondo un"grado zero" di vivacitá. Noi siamo giá sempre colpiti e colpibili dalle tendenze affettivedel mondo in costituzione, siamo cioé sempre esposti al mondo in quanto si manifesta:esso ci raggiunge secondo gradi diversi di intensitá affettiva, ma non ne siamo maiestranei. Per chiarire i rapporti qui implicati, Husserl opera una distinzione: "Un qualsiasiquid costituito é pre-dato se esercita uno stimolo affettivo, é dato se l'io ha aderito aliostimolo" (Husserl, 1966, p. 220). II pre-dato é uno stimolo affettivo sull'io, e anche se lasua emergenza é fuori dal nostro campo di interesse, esso é rivolto a noi, ci coinvolge, ciinterpella. Viene cosí in primo piano ¡I secondo lato dell'affezione: oltre alia tendenzaaffettiva che l'oggetto esercita sull'io, essa significa l'essere colpito, l'essere attratto, e latendenza a volgersi dell'io stesso. L'affezione desta dunque nell'io una inclinazione aprendere attivamente posizione. Le "unitá affettive" emergono su questo piano comecondizione dell'atto oggettivante, in quanto offrono all'atto intenzionale di afferramento,in cui si costituirá originariamente l'oggetto, ¡I materiale preformato e giá strutturato apartiré dal quale esso potra determinarlo. Con ¡I volgimento, la tendenza che si dirigesull'io si traduce in una tendenza che scaturisce dall'io: daM'"affezione" si passa alia"ricettivitá" (e di qui alie successive stratificazioni dell'esperienza cui non faremo alcuncenno). Ma una direzione di senso é giá predelineata passivamente prima del volgersi esenza ¡I volgersi: l'affezione reclama un volgimento che puó risolversi nella rispostaricettiva, la quale consiste tuttavia nella partecipazione a un senso d'essere che si é giáformato passivamente. II soggetto si attiva dunque nella risposta, nell'aderire, nel lasciaressere l'automanifestarsi del fenómeno (il "recepire" si svela "come quella funzioneoriginaria dell'io attivo che consiste meramente nel rendere manifestó, nel guardare enell'afferrare attenzionalmente ció che si costituisce nella passivitá stessa come prodottodella sua propria intenzionalitá"; Husserl, 1966, p. 104). Sullo sfondo di questi rimandialie sintesi passive e all'affezione, l'atto noetico non puó piü venire considerato come lamessa in forma soggettiva del mondo, bensl come ¡I riconoscimento di una direzione disenso che si é formata passivamente e che si impone al soggetto. Questo é ció che qui cipreme sottolineare: ¡I senso "estético" del mondo non é una proiezione del soggetto.Dagli accenni alia teoría della costituzione passiva appare chiaro allora che Vepochéfenomenologico-trascendentale non intende affatto ricondurre ¡I mondo all'attivitá di unsoggetto, ma rendere tematiche le strutture dell'esperienza trascendentale entro cuiappare ¡I mondo giá-dato di cui sempre parliamo. Husserl vuole, cioé, attraverso essa,nella rinuncia a tutti i presupposti, interrogare le condizioni di manifestativitá del mondoin un massimo di fedeltá all'esperienza, ed é in quest'ottica che affiorano, neN'ambito

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della fenomenologia genética, le sintesi passive. Husserl riconosce con ció quelladimensione della vita-che-esperisce-il-mondo in cui hanno luogo processi di costituzioneanonimi e non influenzabili egologicamente: agli ultimi livelli della costituzionefenomenologica non compare (a dispetto di un luogo comune che ha fatto ¡I suo tempo)un soggetto sovrano, trasparente a se stesso e che decide del senso, bensl una passivitáegoica. Non si tratta, pero, di giocare la passivitá contro l'attivitá, come se si trattasse diopporre un momento della fenomenologia all'altro, quanto di cogliere in questi sviluppil'obbiettivo che Husserl ha sempre avuto di mira: interrogare l'ovvietá del mondo, vedere¡I mondo giá-dato come al primo giorno, rendere ragione del suo senso d'essere, senzacostruire o dedurre, ma sempre e soltanto rivolgendosi all'esperienza nella sua purezza.A tema é costantemente ¡I senso, la "costituzione" del senso del mondo: non lo"creiamo", ma siamo originariamente implicati nel suo svelamento.

Nota(1) Scrive in proposito Husserl: "Non v'é alcun luogo pensabile dove la vita di coscienzasia o debba essere spezzata si da farci pervenire ad una trascendenza che potesse averemai altro senso da quello di un'unitá intenzionale che si presenta nella stessa soggettivitádi coscienza" (Husserl, 1966, pp 291-292).

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Nota in riguardo all'autoreCarmine Di Martino insegna Propedéutica filosófica all'Universitá degli Studi di Milano. Isuoi interessi si sonó prevalentemente rivolti alia fenomenologia husserliana, al pensieroheideggeriano e ai loro sviluppi in área francese. Tra le sue pubblicazioni piü importanti:// médium e le pratiche (Milano 1998) e Oltre il segno. Derrida e /'esperienzadell'impossibile (Milano 2001). Contatto: [email protected].

Data de recebimento: 28/12/2006Data de aceite: 30/12/2007

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Pressupostos antropológicos para uma ética profissional

Anthropological assumptions of professional ethics

Eduardo Dias GontijoUniversidade Federal de Minas Gerais

Brasil

ResumoO objetivo deste trabalho é realizar uma reflexao introdutória sobre os pressupostosantropológicos que subjazem tanto á vida como á reflexao ética. Esta reflexao assumeum caráter relevante para o psicólogo, tanto devido aos excessos da racionalidadecientífica, que tende a eclipsar a racionalidade ética, como pelo fato da psicología definir-se primordialmente como ciencia prática. Sao indicados alguns pressupostos que devem,explícita ou implícitamente, serem assumidos sempre que nos aproximamos, querreflexiva, quer praticamente, do campo dos fenómenos moráis. A tese a ser demonstrada— que nao poderia ser mais trivial — é a de que o homem é constitutivamente um ser derazao e liberdade.

Palavras-chave: antropología filosófica; ética profissional; razao; liberdade.

AbstractThe aim of this paper is to develop an introductory reflection about the anthropologicalassumptions that underlie both moral actions and ethical thinking. This reflection is ofgreat relevance to the psychologist, due to the excesses of scientific rationality, whichtends to cast a shadow on ethical rationality, and also to the fact that psychology isprimarily defined as a practical science. It will be pointed out a set of ideas which should,explicitly or implicitly, be assumed every time we enter, either through reflection oraction, the field of moral phenomena. The thesis to be developed — which expresses atrivial idea — is that man is constitutively a being of reason and freedom.

Keywords: philosophical anthropology; professional ethics; reason; freedom.

Com o advento da modernidade, a racionalidade científica tornou-se de tal mododominante sobre todas as outras formas de racionalidade — estética, filosófica e religiosa— que passou a eclipsar e mesmo a entrar em confuto ou contradigao com aquelasmaneiras de pensar sobre o homem e seu agir que sao e devem ser assumidas eadmitidas em nossas experiencias éticas e moráis. Nos breviarios iluministas a cienciateve inclusive a presungao de dispensar a ética filosófica e a religiao, pois se concebeucomo uma especie de guia de viagem necessário e suficiente para orientar o caminhar dohomem no mundo. Ora, essa hipertrofia do pensar científico que se fez acompanhar deuma correlata hipotrofia do pensamento ético evidentemente acarretou e continuaacarretando conseqüéncias especialmente dramáticas tanto no plano das práticasprofissionais concretas como no campo da pesquisa científica. Muita ciencia, pouca ética:está ai uma das fórmulas atuais para o fomento científico da perversao humana.Refletir sobre os pressupostos antropológicos que servem de fundamento para umareflexao ética deverá constituir, no ensino da psicología, um passo imprescindível paracaptar e compreender o sentido das relagoes entre ciencia, profissao e ética (1). Significaentender, por exemplo, que, assim como a medicina, a psicología nao se definiuprimordialmente como uma ciencia. Rigorosamente falando, a psicología definiu-se antescomo uma prática, uma profissao — uma professio, uma atividade prática, uma ars,como diziam os medievais. Enquanto profissao, ela adota um ponto de vista distinto doponto de vista científico, pelo qual torna-se movida nao por uma libido teorizante e pelafruigao do problemático, mas por uma libido adjuvans, uma libido ajudante. Seu objetivoessencial nao é explicar, mas ajudar, e para isso ela pode e deve servir-se da ciencia e

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déla tomar o que é eficaz ou que Ihe interessa em seu propósito capital e irrenunciávelde aliviar o sofrimento humano e promover e manter a saúde psíquica dos individuos.É exatamente isso o que o sentido etimológico do termo professio nos revela. Atravésdele, constatamos que assumir uma profissao significou, originariamente, professar certaforma de vida, consagrar-se e dedicar-se a uma missao — modelo paradigmático dessaatitude sao os votos sacerdotais — através de um juramento público de carátereminentemente ético. Uma expressao inaugural desse vínculo indissolúvel que uneciencia e profissao por meio de uma postura ética encontramos no famoso juramentohipocrático — primeiro código de ética profissional na historia da humanidade — onde ojovem médico professa seus deveres principáis, de respeito e solidariedade aos colegasde profissao como forma de honrar a profissao, de buscar o beneficio dos pacientes,evitando-lhes possíveis danos, e de agir com integridade e honestidade com relagao ásociedade:

Eu juro por Apolo - médico - por Esculapio, Higéia,Panacéia e por todos os deuses e deusas que, deacordó com a minha habilidade e julgamento, cumprireiestes compromissos:Respeitarei quem me ensinou esta arte como se forameu pai.Repartirei com ele meus bens e suavizarei suasnecessidades se for necessário.Olharei para seus filhos como se fossem meus irmaos.Pelo preceito, leitura e qualquer outro modo deinstrugao, darei conhecimento da arte aos meuspróprios filhos e aos de meus mestres, se quiseremaprendé-la, sem retribuigao, nem condigao de especiealguma, bem como a qualquer colega ligado porcompromisso e juramento, conforme a lei da Medicina.Seguirei aqueles regimes que, de acordó com minhahabilidade e julgamento, considerar benéfico aos meusdoentes e me absterei de tudo que for nocivo edeletério.Nao darei venenos mortais a ninguém, mesmo que sejainstado, nem darei a ninguém tal conselho e, domesmo modo, nao darei as mulheres pessário paraprovocar aborto.Viverei e praticarei minha arte com pureza e santidade.Qualquer que seja a casa em que penetre, lá irei embeneficio dos doentes e abster-me-ei de qualquer atode maldade ou corrupgao e ainda de sedugao demulheres e homens.Tudo aquilo que tenha ou nao relagao com a prática daminha profissao, ver ou ouvir da vida dos homens quenao deva ser divulgado, nao divulgarei, respeitandotudo aquilo que deva ficar secreto.Enquanto conservar sem violagao este juramento, queme seja concedido gozar a vida e a prática da arte,respeitado por todos os homens, em todos os tempos.Que outro seja o meu destino se transgredir ou violareste juramento. (Hipócrates, século IV a. C./2000, pp.17-18).

Outra razao que encontramos para nos determos neste tipo de reflexao é decorrente dofato de que atualmente nos encontramos num período histórico muito importante — eque poderia muito bem ser denominado, segundo o filósofo Vittorio Hósle (1997), a erada superinformagao (2), ou, de acordó com o escritor Hermán Hesse (1943/1970), a erado folhetim — a qual poderia ser caracterizada pela cotidiano confronto — para nao dizer

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bombardeio — com um número cada vez maior de informagoes, tanto para o cidadaocomum como para o homem de ciencia. No mundo da vida, como resultado da enormeproliferagao dos meios de comunicagao, os individuos se defrontam com uma torrentediaria de informagoes, sem precedentes em qualquer período histórico. Já no campo daciencia, a comunidade científica se depara, por um lado, com o crescimentoverdadeiramente exponencial do número de disciplinas e especialidades, tornandoimpossível aos homens de ciencia dominar adequadamente o seu próprio campo de saberem sua unidade. Por outro, como conseqüéncia da exigencia feita aos membros daacademia de se submeterem ao rigoroso imperativo categórico publish or perish, epublicarem artigos e mais artigos em periódicos científicos ainda que nao tenham nadade relevante a dizer, multiplica-se o número de informagoes irrelevantes e que poderiammuito bem ser ignoradas. Com tudo isso, o saber torna-se cada vez mais fragmentado e— o que é mais lamentável — a cada dia nos sentimos menos capazes de compreenderquais sao os principios constitutivos nossa própria ciencia. Pois o que foi perdido nesteprocesso foi a indispensável clareza, tao cara aos pioneiros, que se deveria possuir comrelagao ao escopo, aos objetivos e aos fundamentos — epistemológicos, antropológicos,metodológicos ou éticos — de nossas próprias disciplinas e empreendimentosintelectuais.No campo da psicología, sabemos o quanto essa problemática acaba configurando umestado de coisas dramático. Como se senté o estudante de psicología diante da enormedispersao das correntes de pensamento psicológico, cada uma fazendo um diferentedesenho do homem, num louco mosaico de antropologías setoriais que nao sereconhecem entre si, caminhando parí passu com a crescente fragmentagaoepistemológica e metodológica, e desembocando numa profunda desorientagao ética nocampo das práticas profissionais? O mesmo é válido em setores específicos do saberpsicológico. Por exemplo, alunos de psicología tém hoje acesso a um grande número deteorías e idéias psicanalíticas, mas poucos sao capazes de compreender quais sao osprincipios constitutivos dessa disciplina.Nada mais urgente, portanto, que orientarmos a reflexao na diregao dos pressupostos,sejam eles epistemológicos, filosóficos, antropológicos, metodológicos ou éticos. Nopresente contexto, nos perguntaremos o que significa pensar científicamente, e o quesignifica pensar éticamente.

O passo á reflexao: a questao antropológicaTalvez a questao mais fundamental para o homem, questao para a qual convergem todasas outras interrogagoes (3), seja aquela que se expressou paradigmáticamente atravésdaquele imperativo que, segundo a tradigao, estaría inscrito no pórtico do famoso templode Delfos, na Grecia antiga: Gnóte seautón, conhece-te a ti mesmo. Déla derivam todasas outras questoes, e, em especial, um conjunto de tres questoes capitais — sobre aorigem do cosmos, sobre a origem da vida e sobre a origem do homem. Todas elasenvoltas em misterio, é necessário dizer, e igualmente nao respondidas de mododefinitivo.Perguntar-se sobre a origem do cosmos — ou sobre a origem de todas as coisas queexistem — significa procurar dar inteligibilidade á passagem de um estado de coisasprimordial indiferenciado para um estado de coisas diferenciado e ordenado. Estasmesmas idéias elementares relativas á passagem do indiferenciado ao diferenciadoencontram-se tanto no mito hebraico da Génese (4) — no qual o que está na origem étohu-et-bohu (5), espanto e estupefagao diante do vazio e da solidao, que por sua vezcede lugar á luz e á ordem da natureza, etc. —, em todas as cosmologías antigás(suméria, fenicia, aramaica, egipcia) e na moderna teoría do Big Bang.A segunda questao, sobre a origem da vida — do salto á vida — pressupoe adiferenciagao de uma substancia corpórea inanimada para uma substancia corpóreaanimada (6). As respostas para esta questao encontram-se expressas nos mitos, ñasteorías da evolugao e nos modelos vitalistas.A terceira pergunta fundamental, sobre a origem do homem, pressupoe a passagem oudiferenciagao de um género animal irracional a um género racional, da natureza á

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cultura, sendo ao mesmo tempo, portanto, uma pergunta sobre a origem da consciénciaou da razao humana. Esta questao antropológica elementar, como sabemos, tende adesdobrar-se, por sua vez, em uma serie exponencial de outras questoes, das quais asmais centráis encontram ñas célebres perguntas de Porfirio uma formulagao clássica: oque somos? (qual é a natureza ou esséncia do homem?), de onde viemos? (qual é agénese do homem?), para onde vamos? (qual é o destino do homem?).

Primeiro pressuposto antropológico: zóon lógon échon, o homem é um ser derazaoA razao constituí o passo antropológico elementar e decisivo na evolugao da vida —passo que Teilhard de Chardin denominou le pas de la reflexión — que provoca osurgimento de uma propriedade emergente pela qual se verifica um modo de relagaocom o mundo qualitativamente diferente daquele que prevalecerá no mundo animal, sobo esquema estímulo-resposta. Pelo passo á reflexao, o homem transcende o estado denatureza, onde os eventos sao determinados por um tipo de causalidade fisio-química epassa a situar-se no mundo da cultura, na qual impera um novo tipo de causalidade: aordem de sentido, ou ordem simbólica.A razao é congénere á emergencia do homem enquanto homem: o homem é um serconstitutivamente racional. E é por esse motivo que, com toda razao, o homem foiconcebido pela tradigao filosófica, a partir da clássica definigao aristotélica, como zóonlogikón, ou como um zóon lógon échon: literalmente, um animal dotado de palavra. Foi apartir dessa formulagao aristotélica que hoje dizemos que o "homem é um animalracional".A razao define-se essencialmente como faculdade de ordem e expressa a idéia de quetoda experiencia que o homem faz do mundo é ordenada pela linguagem, é mediadalingüísticamente. Ora, se toda experiencia propriamente humana do mundo é mediadapela linguagem, entao o logóse, intranscendível, o que significa — para a infelicidade dosmodernos profetas do apocalipse da razao — que nao se pode pular fora da razao ou dalinguagem, ou seja: qualquer crítica da razao só pode ser feita de um ponto de vista queé sempre da própria razao.O saber pelo logos ou o conhecimento racional é sempre, independentemente do seuestágio de desenvolvimento, um conhecimento normativo, que se desenvolve segundoregras: ele implica num distanciamento intencional do sujeito com relagao a si mesmo eao mundo, e na reinterpretagao reflexiva destes segundo códigos que a própria cultura -enquanto face objetiva da razao - vai estabelecendo ao longo da historia.A partir de seu advento no mundo humano, a razao humana irá diferenciar-se em tresformas principáis:1. A razao teórica— do verbo grego theóréó, ver, contemplar, observar, examinar, olharcom interesse — é um predicado fundamental do homo sapiens. Ela expressa a idéia deque o homem — em grego ánthropos, que segundo uma fantasía etimológica significa umanimal que assume uma postura ereta que Ihe permite contemplar as estrelas — é umser que, contemplando a realidade á sua volta, se vé diante da necessidade iniludível deinterpretá-la narrativamente, tendo em vista encontrar sentido para o seu ser no mundo.A razao teórica, sendo eminentemente descritiva, é normativa para o ver/contemplar (7)as coisas e irá assumir inicialmente a forma de mythos, ou relato fantástico sobre aorigem das coisas, da vida e do próprio homem, depois logos demonstrativo, ou filosofía,e finalmente assumirá a forma da ciencia.A razao teórica ordena nosso ver as coisas e tem como seu telos — ou fim — a verdade.Exemplo paradigmático da razao teórica encontra-se ñas ciencias da natureza.2. A razao poiética (do grego poieín, fazer, agir) ou produtiva, razao construtiva ouracionalidade técnica, característica do homo faber, que se vincula á fabricagao deinstrumentos, á construgao de artefatos, á transformagao da natureza e as artes. Comotodo saber, o saber poiético é normativo e ordena o fazer tendo em vista um fimconcreto objetivado (8). Pela razao poiética, o homem, diferentemente do animal, seconfigura como um ser que transforma o mundo segundo o conhecimento —transmissível — do seu fazer.

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A razao enquanto poiética orienta o nosso fazer e efetiva-se ñas belas artes ou no mundodos objetos e das obras construidas pelo homem.3. A razao prática (do grego praxis, agir) ou racionalidade ética é um predicadofundamental do homem como ser que encontra no ethos — em sua dupla face de hábito(eGoq) e costume (r|9oc;) — a sua morada mais própria. A razao prática é igualmentenormativa e orienta o agir do homem para o seu fim próprio, seja como zoón politikón,tendo em vista o bem comum ou a vida em comunidade, seja como agente que visa seupróprio bem ou a sua própria realizagao.A razao enquanto prática orienta o nosso agir e efetiva-se no bem.A razao tem por vocagao o universal. Pela palavra o homem vai para além do egoísmo aque estaría confinado em sua mudez para ultrapassar os limites da sua própria pele elangar-se no mundo humano, tendo por horizonte a comunidade dos homens. Noutraspalavras, enquanto ser razoável, o homem visa á universalidade, isto é, á comunidadecom os homens através o compartilhamento de suas experiencias (ainda que, no planofático, os níveis de universalidade possam diferir, e eventualmente reduzir-se a umapequeña comunidade).No plano teórico, a universalidade visada pelo logos assume a forma da relagao entre overdadeiro e o falso, os quais exprimem as formas de legitimagao dos discursos dasdiversas culturas ou períodos civilizatórios. No plano da razao poiética, no seu aspectotécnico, a universalidade se exprime pela idéia de correto/incorreto. Finalmente, no planoda praxis, da racionalidade ética, a universalidade se exprime pela idéia de bem. O Bem,em certo sentido, é o universalmente verdadeiro ou consensualmente válido do ponto devista da razao prática ou da existencia moral.Esta última premissa nos remete ao nosso segundo pressuposto antropológico.

Segundo pressuposto antropológico: o homem é um ser de liberdadeO fato do homem se constituir como um ser de liberdade decorre do fato dele ser derazao: o fato da liberdade advém do fato de que o homem é capaz de ordenar o seu agiratravés do logos.Em sua existencia meramente biológica, o homem é um ser natural, sujeito as cadeias dedeterminagao bio-fisio-químicas presentes no mundo da natureza. Mas, evidentemente,embora ele seja também um ser pertencente á natureza, ele nao pode ser captadoapenas do ponto de vista de uma racionalidade estritamente natural (9). Do ponto devista epistemológico, as ciencias naturais nao podem esgotar o ser do homem. Nomesmo momento que comegam a fazé-lo, transgredindo assim o principio deautolimitagao intrínseca a qualquer ponto de vista, transformam-se em grosseirosreducionismos.Todo ser existente no cosmos se encontra submetido a leis. E o homem também. Mas ohomem se encontra também submetido a um conjunto de normas que diferem das leisnaturais. Tratam-se neste caso de leis que ele próprio se dá, mas que nao seguénecessariamente. Diferentemente da maga de Newton, que nao se deu a lei dagravidade, e nem pode transgredir essa lei que ela nao se deu, pois a seguénecessariamente, o homem é um ser livre na medida mesmo em que se dá leis, normas,regras, mas nao as segué necessariamente, isto é, ele pode transgredi-las.Do mesmo modo que a razao, também a liberdade é intranscendível: nao podemos pularfora da liberdade, assim como nao podemos pular fora da própria sombra. Nao se podeestar aquém ou além da liberdade, isso é: aquém ou além do bem e do mal ou danecessidade de escolher entre um bem e um mal. Outra conseqüéncia disso é que, seuma moral concreta e histórica pode ser criticada — e de fato deve forgosamente sé-lo,na medida em que devemos ter uma postura crítica diante da nossa realidade — todacrítica á moral só pode realizar-se a partir de um ponto de vista que deve sernecessariamente moral. Embora as moráis históricas concretas possam e devam sercriticas, nao se pode nunca criticar amoral.

Conclusao: por que existe uma questao ética?

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Existe sempre uma questao ética quando é dirigido um apelo á agao do homem, e estaagao é contingente e nao necessária, isto é, ela nao é, do ponto de vista dos agentes,inteiramente determinada pelo curso das coisas ou pela necessidade natural (10). Poisquando uma agao é inteiramente determinada pela necessidade natural, nenhumaquestao ética seria passível de ser colocada. Uma questao ética só é possível sob acondigao de haver uma certa contingencia na agao; se as agóes fossem totalmentecondicionadas, nao haveria nem moralidade nem ética. E a reflexao ética carecíaabsolutamente de sentido.O homem se depara sempre com duas realidades diante de si: a realidade da physis, danatureza, e a realidade do ethos. E ele próprio é um ser de dupla natureza. Physis eethos sao duas evidencias originarias, primeiras e ¡mediatas: somente um insensatoseria incapaz de diferenciar estes dois níveis de realidade, e somente ele seria capaz denegar tanto a evidencia da physis como do ethos (11).Mas, embora possua um referente bem determinado, a physis é antes de qualquer coisaum conceito. Ñas suas premissas, nos encontramos sempre diante um certo tipo deracionalidade determinista — indispensável á epistemología das ciencias, pois principio deinteligibilidade das coisas — que pressupóe a existencia de relagóes causáis no mundo,no sentido de considerar que nela existem encadeamentos entre os fenómenos queobedecem á lei da necessidade e da universalidade. Dizemos que existe uma relagaocausal entre um fenómeno A e um fenómeno B quando o aparecimento de A acarretanecessariamente o aparecimento de B, e tal relagao se estabelece em conformidade comuma lei que é apreensível pela razao humana. No caso das relagoes causáis, no universoda physis, o evento-causa deve preceder sempre, no tempo, o evento-efeito. Aexistencia de relagoes causáis no mundo é condigao de inteligibilidade desse mesmomundo.E no caso do ethos, ou da agao humana?Também no caso das agoes, há eventos antecedentes e conseqüentes, mas a relagaoentre eles nao é necessária, mas sim contingente, isto é, ela poderia ser sempre de outramaneira. Isso nao quer dizer, de forma alguma, que o mundo das agoes sejadesordenado ou caótico, mas apenas que a lógica que rege o mundo da physis é distintoda lógica que rege o mundo do ethos, da agao.Dizemos que a relagao entre os antecedentes da agao e a própria agao é determinadanao por eventos-causa, mas pelo logos, ou por razóes: motivagóes, desejos, intengóes,objetivos, etc. Se na physis o elo que liga os eventos-causa e os eventos-efeito é denatureza causal, no ethos ou na agao, o elo que liga a agao com suas razóes é denatureza lógica. No mundo do physis, impera a causalidade fisio-química; no mundo doethos, impera uma causalidade de sentido: em suma, o ethos é regido pelo logos, pelapalavra, pelo discurso, pela linguagem.Dizendo de outro modo, o que distingue o encadeamento causal no dominio da naturezado tipo de elo causa-efeito estabelecido pela agao consiste no fato de que, no caso daagao, a situagao comporta uma encruzilhada, uma bifurcagao. Há na agao umaindeterminagao que Ihe pertence essencialmente. Só há agao humana onde intervémurna indeterminagao na seqüéncia dos acontecimentos.É justamente nestas encruzilhadas, nesta indeterminagao que se coloca o problemaético: que via escolher diante de uma encruzilhada, uma bifurcagao? Para a agao, emcada estado de coisas que se apresenta abre-se um horizonte de possibilidades. Aindeterminagao característica da agao só deixa de existir em virtude de uma iniciativaque depende inteiramente da existencia de um agente.Desse modo, o agente se experimenta como um ser cindido interiormente, entre aquiloque é e aquilo que pode ser ou fazer de si mesmo. Num certo sentido, ele já é o que seabre como horizonte de seu ser. Nele existe uma tensao que Ihe é constitutiva, entre oser que Ihe é dado no presente a si mesmo e o ser tal como aparece a si mesmo comoprojeto no futuro.Com tudo isso, quero apenas expressar algo banal, de conhecimento de todos: só há umproblema ético na medida em que pensamos o homem como um ser que é capaz deescolher, isto é, ordenar a sua agao de acordó com o entendimento de sua agao.

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Um ser capaz de ordenar a sua agao é um ser livre e razoável. Um ser autónomo.Liberdade, neste sentido, significa, em resumo, a capacidade humana de seautodeterminar. Existe, pois, um problema ético porque o homem é um ser de liberdadee de razao. E existe um problema ético porque o homem é um ser que sonha a si mesmocomo ser de liberdade e de razao que realiza efetivamente sua razao e sua liberdade.É por isso que a liberdade acaba tendo, no pleno concreto das nossas existencias — sejacomo individuo, seja como uma comunidade ou uma nagao — o caráter de luta. Luta peladireito á própria soberanía, no caso das nagóes, dos povos, e luta que se exerce contraos obstáculos que se colocam sempre em nossa historia contra a nossa capacidade e onosso direito inalienável de autodeterminagao.No plano de nossa ética profissional, o primeiro imperativo, o primeiro juramento sópoderá ser: lutemos pela autonomía daqueles que nos procuram, nossos clientes. É paraisso que existimos. É por isso que trabalhamos. É por isso que nos dedicamos á nossaprofissao. Nela, buscamos sentido para o que somos e fazemos. Por ela, buscamosampliar o horizonte de liberdade, tanto o nosso próprio, como daqueles que nosprocuram.

Referencias bibliográficasChouraki, A. (1995). No principio (C. Azevedo, Trad.). Rio de Janeiro: Imago Ed.

(Original publicado em 1992).

Hesse, H. (1970). O jogo das coritas de vidro (L. A. Viotti, F. L. de Souza, Trads.). SaoPaulo: Brasiliense. (Original publicado em 1943).

Hipócrates, (2000) Conhecer, cuidar e amar. O Juramento e outros textos. (D.MarinoSilva Trad.). Sao Paulo: Landy. (Original do século IV a.C).

Hosle, V. (1996). Philosophy in an age of overinformation, or: What we ought to ignorein order to know what really matters. Aquinas, 39, 307-320.

Hósle, V. (1997). Filosofía na Era da superinformagao, ou: O que devemos ignorar paraconhecer o que realmente importa. Síntese Nova Fase, 24, 315-329.

Ladriére, J. (1995). Ética epensamento científico (H. Japiassu, Trad.). Sao Paulo: Letrase Letras.

Lima Vaz, C. H. (1998). Escritos de filosofía II: Etica e Cultura. Sao Paulo: Ed. Loyola.

Ortega y Gasset, J. (1982). Missión de la Universidad y otros ensayos sobre educación ypedagogía. Madrid: Alianza Editorial.

Notas(1) Inspiro-me aqui em um texto de Ortega y Gasset (1982).(2) Este é o tema de um interessante artigo de um dos mais brilhantes representantes dageragao atual dos filósofos alemaes, Vittorio Hosle (1996), e que tive o grande privilegiode traduzir para efeitos de publicagao no numero 78, de 1997, da revista Síntese NovaFase, dirigida pelo saudoso amigo Padre Vaz.(3) Sou grato ao meu amigo Ivan Domingues pela inspiragao sobre as questóesantropológicas, tratadas brilhantemente em um curso que fiz com ele, sobreEpistemología ñas Ciencias Humanas.(4) Sao estes os primeiros versos da Génese, na magnífica e erudita tradugao de AndréChouraki (1995, p. 1):No principio Elohíms cria va os céus e a térra,a térra era desordem e deserto (tohu-et-bohu),

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urna treva sobre as faces do abismo (Tiamat),mas o so pro (rouah) de Elohíms pía navasobre as faces das aguas.(5) Tohu significa espanto, estupefagao, e bahu significa vazio e solidao, o que expressaa idéia que, diante do vazio originario, o homem se enche de espanto e estupefagao.(6) Um bom exemplo dessa idéia encontra-se na famosa árvore de Porfirio(7) Interessante observar os termos utilizados para descrever aspectos da razao teóricasao geralmente metáforas óticas: refletir, especular, esclarecer, iluminar, etc.(8) Para Aristóteles, o saber poiético visa á perfeigao do objeto.(9) É claro que ele também nao poderia ser captado apenas de um ponto de vista moral.(10) Ver Ladriére, 1995.(11) Ver Lima Vaz, 1988.

Data de recebimento: 02/02/2007Data de aceite: 30/12/2007

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Movimentos da atengao: um diálogo com Will iam James

Movements of attention: a dialogue with William James

Gustavo Cruz FerrazVirginia Kastrup

Universidade Federal do Rio de JaneiroBrasil

ResumoO tema da atengao vem ganhando cada vez mais destaque na contemporaneidade. Naoapenas na psicología, mas também ñas mais diversas esferas de nossa vida cotidiana semanifesta um claro interesse em torno do tema. Este artigo busca explorar a atengao doponto de vista de seu funcionamento, a partir de urna análise da vertente psicológica dotrabalho de William James. Nao se trata aqui de urna curiosidade histórica que visaríaacompanhar todo o percurso de sua conceituagao acerca da atengao, mas sim deressaltar algumas nuances de sua investigagao que tém sido pouco valorizadas pelostrabalhos de psicología da atengao e que ganham especial importancia no contexto dacontemporaneidade. Nogoes como as de seletividade, interesse e focalizagao saotrabalhadas em articulagao com o conceito de fluxo do pensamento, com o objetivo de secontrapor á concepgao de um funcionamento homogéneo da atengao e privilegiando suadimensao de flutuagao.

Palavras-chave: William James; atengao; consciéncia.

AbstractThe attention subject is getting more and more exposure in contemporary times. Notonly in psychology, but in the most different spheres of our everyday lives, a greatinterest is showed about the subject. This article seeks to explore attention from thestandpoint of its functioning, by analyzing the psychological perspective of WilliamJames's work. It's not a matter of historical curiosity, with the solé purpose ofaccompanying the course of its definition towards attention, but of highlighting someaspects of his investigation that have been underestimated by the works of thepsychology of attention, and that gain significant importance in the context of ourpresent time. Notions such as selectivity, interest and focalization are developed alongwith the concept of stream of thought, in order to oppose itself to a conception of ahomogeneous functioning of attention and privileging its floating dimensión.

Keywords: William James; attention; consciousness.

IntrodugaoO tema da atengao vem ganhando cada vez mais destaque na contemporaneidade. Naoapenas na psicología, mas também ñas mais diversas esferas de nossa vida cotidiana semanifesta um claro interesse em torno do tema: seja no campo do consumo e dapropaganda, no qual sao buscadas urna serie de estrategias de captura da atengao, sejano campo do trabalho e da escola onde a atengao é tomada como pré-condigao para obom desempenho, ou ainda no campo da saúde onde se faz cada vez mais presente odiagnóstico de TDA/H (transtorno do déficit de atengao e hiperatividade). Pode-se notarurna crescente demanda por um gerenciamento eficaz e produtivo da atengao, de formaque esta se configura contemporáneamente como urna especie de bemcognitivo/subjetivo a ser trabalhado. Este interesse pela atengao encontra ressonáncianos trabalhos de urna serie de autores que, mesmo a partir de campos de abordagemdistintos e com análises mais ou menos críticas, colocam a atengao como foco de suasdiscussoes. Alguns exemplos sao trabalhos como o de Pierre Lévy (2004), que busca

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mostrar a importancia da atengao em um contexto em que as relagóes económicasganham novas configuragóes a partir do ciberespago, desenhando-se assim urnaeconomía da atengao; Jonathan Crary (2001) que faz urna análise histórica acerca daconstituigao do individuo atento a partir da virada do sáculo XIX para o sáculo XX; otrabalho de Rossano Cabral Lima (2005), que se volta para o recente 'boom' dediagnósticos de TDA/H, questionando a posigao de que este seria resultado de umaprimoramento diagnóstico por parte do saber psiquiátrico e buscando relacioná-lo anovos padróes culturáis de produgao de subjetividades; ou ainda o trabalho de LucianaCaliman (2006), que sitúa a constituigao do individuo atento e do individuo desatento nointerior do processo histórico de biologizagao moral da atengao.Pode-se notar a grande diversidade dos campos a partir dos quais as questóes referentesá atengao sao colocadas e, conseqüentemente, a ampia gama de aspectos que Ihe saorelacionados. Isto indica que o conceito de atengao ganha diferentes nuances e recobreurna serie de fenómenos distintos, situando-se como ponto de cruzamento entrediferentes discursos e tirando daí, talvez, sua forga e seu lugar privilegiado de análise.Este crescente interesse pelo estudo da atengao tem levado a urna releitura de autoresdo sáculo XIX que tiveram contribuigóes relevantes e origináis sobre o tema (cf. Camus,1996; Mialet, 1999; Crary, 2001; Vermersch, 2002). Este artigo busca explorar aatengao do ponto de vista de seu funcionamento, a partir de urna análise da vertentepsicológica do trabalho de William James. Na psicología, assim como no atual cenário dasciencias cognitivas, essa discussao ganha contornos especiáis tendo em vista a retomadados estudos da consciéncia a partir da década de noventa. Nao se trata aqui de urnacuriosidade histórica que visaría acompanhar todo o percurso de sua conceituagao acercada atengao, mas sim de ressaltar algumas nuances de sua investigagao que tém sidopouco valorizadas pelos trabalhos de psicología da atengao e que ganham especialimportancia no contexto da contemporaneidade. Nogóes como as de seletividade,interesse e focalizagao sao trabalhadas em articulagao com o conceito de fluxo dopensamento, com o objetivo de se contrapor á concepgao de um funcionamentohomogéneo da atengao (Kastrup, 2005) e privilegiando sua dimensao de flutuagao.

Voltando a atengao para William JamesJames possui urna extensa obra que se caracteriza pelo interesse por diversos campos desaber, debrugando-se sobre temas como a consciéncia, a relagao mente-corpo e aexperiencia religiosa. Essa diversidade de interesses se faz notar nao só a partir de urnaanálise de sua obra como um todo, mas também na forma como conduz cada um deseus trabalhos. Sua psicología é constantemente inspirada pelo estudo do funcionamentodo cerebro, sua filosofía se dirige em alguns momentos para as questóes metafísicas,mas se volta sempre para a vida em sua dimensao pragmática e dinámica. Suasdiscussóes científicas e sua análise do método experimental nunca o levaram aabandonar a introspecgao, tomada em sua dimensao experiencial. Desta forma, podeparecer difícil estabelecer urna linha que organize sua obra. Contudo, sente-se ainda hojea influencia da riqueza de seu pensamento ñas mais diversas áreas de saber.Ainda que nao seja possível estabelecer esta sistematizagao de forma rígida, pode-seestabelecer algumas linhas gerais. Pode-se dizer que há um primeiro momento,psicológico, que consiste básicamente nos dois volumes dos Principios de Psicología(James, 1952/1890) e em duas obras posteriores Psychology: briefer course (James,1892/1992) e Talks to Teachers (James, 1924/1899) (que sao, na verdade,desdobramentos dos Principios), e um segundo momento, filosófico, do qual fazem parteseus textos sobre o pragmatismo e sobre o empirismo radical (James, 1904/1974;McDermott, 1977). Tal divisao teria sido indicada pelo próprio James (Guttman, 2005).Outra forma de organizagao é aquela apontada por David Lapoujade (1997, 1999), quecoloca o ano de 1904 como um marco em sua obra devido ao aparecimento do conceito deexperiencia pura nos textos dos Ensaios em Empirismo radical (1904/1974) (1).Urna vez que o objetivo nao é fazer um mapeamento da obra jamesiana, mas sim analisaralgumas linhas menos privilegiadas de seu trabalho sobre atengao, o foco principal destetrabalho se concentra na vertente psicológica de sua obra.

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James se notabilizou na historia da psicología por sua crítica ao empreendimentoelementarista e associacionista da psicología de seu tempo, crítica esta que tem noconceito de fluxo do pensamento um de seus pontos altos. No que concerne maisespecíficamente ao tema da atengao, seu trabalho é constantemente citado como urnadas maiores referencias no campo (Arvidson, 1998; Mialet, 1999). Mialet afirma quemesmo trabalhando no final do sáculo dezenove James 'admiravelmente delimitou seuscontornos' (Mialet, 1999), definindo as questóes fundamentáis, a comegar pela maiscentral:'o que é a atengao?'

Todos sabem o que é a atengao. É a agao de tomarposse realizada pelo espirito, de forma clara e vivida,de um entre outros varios objetos ou series depensamentos simultáneamente possiveis. Focalizagao,concentragao da consciéncia sao sua esséncia. Implicao afastamento de algumas coisas para ocupar-seefetivamente de outras (...) (2) (James,1890/1952, p.375).

Urna vez que o tema é vasto e possui urna serie de questoes que poderiam Ihe serarticuladas, como as diferentes variedades de atengao, os diferentes elementos aos quaisse poderia prestar atengao simultáneamente, sua dimensao quantitativa e seus limites,para citar apenas algumas, e urna vez também que a análise de James é cheia de idas evindas, buscaremos trabalhar a partir desta definigao, destacando alguns pontosimportantes e expondo os conseqüentes desdobramentos.Nota-se de inicio a importancia da nogao de urna 'agao de tomar posse'. Como o próprioJames (1890/1952) ressalta, na afirmagao citada ácima de que 'todos sabem o que é aatengao', essa nogao encontra-se muito próxima do que se considera no senso comum oque é estar atento. Há um 'ater-se a' que caracteriza este estado. Ao fixar-se em umdeterminado objeto ou pensamento, a atengao opera urna selegao, pois deixa de lado urnaserie de outros objetos ou series de pensamentos possiveis. Percebe-se já aqui a presengade algumas nogóes que serao de extrema importancia tanto na conceituagao de Jamesquanto para os estudos posteriores acerca da atengao: a seletividade e a focalizagao ouconcentragao, que para ele sao sinónimos. Arvidson (1998) afirma que grande parte dosestudos contemporáneos se resume ao estudo da atengao seletiva e, em sintonía com oque havia afirmado Mialet, cita James com urna das referencias neste empreendimento.Contudo, Arvidson também afirma (o que é de extrema importancia aqui), que esteprivilegio quanto á atengao seletiva é muitas vezes desconectado do contexto do fluxo dopensamento. É válido, portanto, tentar desdobrar esta 'agao de tomar posse' sob a luzdeste conceito, remetendo, por um lado, ao aspecto ativo e seletivo desta 'agao', e, poroutro lado, a seu aspecto de focalizagao ou concentragao. O aspecto ativo e seletivorepresenta urna atitude em relagáo á multiplicidade de objetos e pensamentos que se nosapresentam; já o aspecto de concentragao ou fixagáo incide sobre o conjunto de 'objetosou series de pensamentos' aos quais se volta a atengao.Comecemos pelo que diz respeito á seletividade. Como foi colocado anteriormente, há umesforgo na teoría psicológica jamesiana de se contrapor á psicología de seu tempo,buscando mostrar o quao hipotética e abstrata é urna concepgao da mente erigida a partirdo conceito de sensagao. A tarefa psicológica seria, para James, a descrigao e explicagaodos estados de consciéncia enquanto estados de consciéncia, logo, sem reduzi-los aconteúdos elementares invariantes (as sensagóes). O fato primeiro da ciencia psicológicaé, assim, também o mais geral: quando estamos despertos se desenrola em nos urnasucessao de estados, de campos, de ondulagóes, urna corrente ou fluxo de pensamento.

Assim, pois, há em nos campos de consciéncia: eis aquium fato geral. Um segundo fato é que os camposconscientes concretos sao sempre complexos. Estaocompostos de sensagóes de nosso corpo e dos objetosque nos rodeiam, de lembrangas, de experienciaspassadas, de pensamentos, de coisas distantes, desentimentos, de satisfagao ou molestia, de desejos e

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aversóes, de estados emocionáis juntamente comoutras orientagóes da vontade, tudo em extremavariedade de combinagóes e permutagóes (James,1899/1924, p.20).

Segundo o autor, ainda que esta tese seja vaga, nao é hipotética. A vida mental nao é umagregado de partes, mas se apresenta como um todo unitario e complexo que flui notempo. Todas estas ordens de componentes, que compóem os campos de consciencia,estariam presentes a um mesmo tempo e em graus diferentes, podendo variar e fazendooscilar sua relativa intervengao. No entanto, a cada momento teríamos um componentecomo mais proeminente, como um foco de nossa atengao, enquanto os outros aspectosconfigurariam um fundo, ou urna margem. Esta distingao foco x margem é de extremaimportancia, sendo amplamente utilizada nos estudos da atengao seletiva. O cenáriodescrito por Arvidson, conforme colocado anteriormente, aponta para este fato. Masdevemos nos lembrar também de sua ressalva quanto ao esquecimento no que concerneao contexto do fluxo do pensamento, que se evidencia no constante uso da metáfora dofoco de luz. A atengao seria este foco que ilumina determinados elementos deixando urnaserie de outros á sombra. Considera-se que tudo aquilo que está fora do foco de minhaatengao (na regiao de sombra) comparece como um ruido, algo ao qual nao se atende eque nao guarda relagao positiva com o que está sob o foco. Desta forma seríamos levadosa pensar um funcionamento homogéneo e um modelo binario (0-1) da atengao (Kastrup,2005) o que - ao deixar de lado a constante variagao, oscilagao e recíproca intervengaoentre os diversos componentes dos campos de consciencia - atenúa as nuances dadimensao dinámica da consciencia. Ora, era exatamente isso o que James buscavaressaltar ao pensar a consciencia como um fluxo e justamente isso o que constituí o tragoespecífico e novo de seu pensamento. É o que aponta David Lapoujade (1997, p. 8) emsua análise:

nos Principios de Psicología (1890/1952), as realidadespsicológicas sao concebidas como fluxos que seentrecruzam e se interpenetram num verdadeiro'emaranhado'. A consciencia nao se define como urnarealidade substancial, nem mesmo como um atoreflexivo. Ela é o movimento daquilo que se fazconsciente. Naquele livro, com efeito, se mostra como aconsciencia nao cessa de tragar seus limites nopensamento, como ela se estende ou se contrai fora doinconsciente que a margeia.

Vale destacar também que James nao faz urna distingao precisa entre atengao econsciencia, sendo a seletividade urna característica da consciencia de forma mais geral.James chega a formular no capítulo 5 dos Principios: "a consciencia é, em todas asocasióes, primeiramente, urna agencia seletiva" e completa, "a parte enfatizada estásempre em estreita conexao com algum interesse sentido pela consciencia como supremonaquela ocasiao" (James, 1890/1952, p. 91). Para James o fenómeno da atengao nao foitematizado pelos teóricos da psicología empírica inglesa porque estes tomam as faculdadessuperiores do espirito como produtos puros da experiencia, e a experiencia para estes seresume a um puro "dado". James recusa esta concepgao de experiencia (3), colocandoque:

desde o momento em que alguém pensa sobre oassunto, vé o quao falsa é urna nogao de experienciaque a fizesse equivalente a simples presenga frente aossentidos de urna ordem exterior. Milhóes de itens daordem exterior sao presentes aos meus sentidos semque nunca propriamente entrem em minha experiencia.Por qué? Porque nao tem interesse para mim. Minhaexperiencia é aquilo a que me convém atender (James,1890/1952, p. 260).

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A atengao rompería entao com esta receptividade pura, implicando um certo grau deatividade. Aqui cabem algumas colocagoes. Esta atividade, segundo nossa perspectiva, naoé a marca de um sujeito fechado em si mesmo (discussao que será mais detalhadaadiante), mas remete á possibilidade de produgao de novas e singulares experiencias. Naotemos todos as mesmas experiencias diante do mundo, o mesmo se dando até para ummesmo individuo. James aponta constantemente nos Principios para o que ele denominoude falacia do psicólogo, que consiste na confusao entre objeto pensado e o pensamentoque visa o objeto. Foi exatamente por conferir primazia ao objeto, com suas propriedadesinvariantes e seu caráter discreto e descontinuo, que a psicología teria encontrado extremadificuldade em remontar á dimensao fluida e continua da experiencia. Na busca porvalorizar esta dimensao continua e fluida, mas relacionando-a aos momentos maisestáveis da consciéncia, James estabelece a importante distingao entre "partessubstantivas" {substantive parts) e "partes transitivas" {transitive parts) do pensamento.As partes substantivas, sao aquelas em que o pensamento parece adquirir urna formadefinida e limitada, podendo ser sustentadas e contempladas sem mudanga. Já osmomentos de passagem, ou partes transitivas, sao os pensamentos das relagoes, sendoelas estáticas ou dinámicas, que sao normalmente obtidas entre o que foi considerado nosmomentos de parada (4). Como disse James:

Quando temos, de fato, urna visáo geral do maravilhosofluxo de nossa consciéncia, o que nos espanta, emprimeiro lugar, é essa diferente rapidez de suas partes.Como a vida de um pássaro, ele parece ser feito deurna alternancia de vóos e pousos (James, 1890/1952,p.158).

É devido, portanto, á tentativa de escapar á falacia do psicólogo que James dá acento áexistencia das partes transitivas do pensamento que, ainda que sejam de difícil apreensáo,nao deveriam ser tomadas como nao presentes ou nao existentes. James coloca quetemos o hábito de "nao prestar atengao as sensagoes como fatos subjetivos, massimplesmente usá-las como degraus, para passar ao reconhecimento das realidades, cujapresenga elas revelam" (James, 1890/1952, p.150). Oblitera-se assim a enormidade deexperiencias diferentes que se tem diante do mundo, assim como de suas diferentesarticulagoes no tempo, em nome de urna presenga objetiva que se ofereceria árepresentagao. A seletividade aponta, portanto, para o caráter singular de cadaexperiencia.Deve-se notar também aqui que o sinal desta atividade seria o interesse, pois é a partirdeste que se delimitam as énfases e acentuagoes realizadas, delineando em últimainstancia o que se faz presente ou ausente á experiencia. Para ele

estes escritores (da psicología empírica inglesa) témignorado, pois, o deslumbrante fato de que o interessesubjetivo pode, ao colocar seu poderoso dedo índicenos itens particulares da experiencia, acentuá-los de talmaneira que dé as associagoes menos freqüentes maispoder para moldar nosso pensamento do que possuemas associagoes mais freqüentes. O interesse elemesmo, ainda que sua génese seja perfeitamente eindubitavelmente natural, faz á experiencia muito maisdo que é feito por ela (James, 1890/1952, p. 372).

Tem-se entao um outro elemento importante na concepgao jamesiana e que se articulatanto á questao da seletividade quanto á questao da distingao entre atengao voluntaria eatengao involuntaria, a ser tratada mais adiante: o interesse. A atengao é orientada pelointeresse, pois é por meio deste que se opera a seletividade. Deve-se, entretanto, tomaralguns cuidados com tal colocagao. Pode-se dizer que grande parte dos trabalhos queconsideram as análises de James sobre atengao como voluntaristas, ou seja, colocam aatengao como sendo 'guiada' por um eu, por um ato de vontade que orienta e sustenta aatengao, enfatizam e reforgam a importancia da nogao de interesse em sua teoria. Há, defato, um lugar para tal interpretagao, pois tensoes e hesitagoes permeiam a obra de James

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- característica esta que nao deriva de inconsistencia, mas sim de certa ousadia nopensamento, que busca apreender os fenómenos em sua multiplicidade e concretude. Noentanto, é possível também, gragas á riqueza e ao ímpeto de seu trabalho, buscardesdobrar e atualizar outras linhas, igualmente presentes. A afirmagao citada ácima deque há urna génese "natural" do interesse dá indicios, de que este nao representa urnafaculdade de um sujeito fora do tempo e descolado do mundo, mas se sitúa no plano dasagoes de um organismo em seu meio. "O pensamento empírico de um homem depende decoisas que experienciou, mas o que estas serao é, em grande medida, determinado peloshábitos de atengao do homem" (James, 1890/1952, p. 185). A nogao de hábito aqui éimportante pois, para além de seu caráter de repetigao, implica urna dimensao temporal,apontando para um campo aberto de possíveis e urna dimensao de fronteira. Há ummomento de passagem ou urna interface entre o eu e aquilo que Ihe é exterior, mas que,posteriormente, o constituirá. Hábitos podem ser contraídos. A partir de tais indicios póde-se dizer que o eu nao comparece como fonte ou substrato da consciéncia, ou seja, o eunao é primeiro em relagao á experiencia, mas deve ele próprio se constituir a partir daexperiencia (5). Como afirma Lapoujade (1999, p. 22):

cada campo de consciéncia está entao em urna relagaoindireta de interpretagao com os momentos queprecedem. Um momento de nós-mesmos interpreta umoutro. Cada momento é, com efeito, urna especie deintérprete excéntrico, meio-interior e meio-exterior(interior á consciéncia, mas exterior ao presente doqual ela tem consciéncia atualmente).

A experiencia se remodela continuamente a partir de seus movimentos, está imersaneste fluxo constante. Daí as palavras de James de que 'o pensamento é, ele mesmo, opensador' (James, 1890/1952, p. 259). Daí também a colocagao de Lapoujade citadaanteriormente de que para James a consciéncia "é o movimento disso que se fazconsciente" (idem, p. 9). Trata-se de urna forma de pensar que nega a experiencia comoum puro dado e que busca ressaltar a dimensao ativa no processo da atengao, sem aomesmo tempo recair em urna concepgao que considera a atengao urna faculdade de umsujeito fechado em si mesmo. Tal concepgao ganha ressonáncia, ainda que com matizespróprios, em Maurice Merleau-Ponty (1971, p. 45), quando afirma:

O empirismo nao vé que temos necessidade de saber oque procuramos, sem o que nao o procuraríamos, e ointelectualismo nao vé que temos necessidade deignorar o que procuramos, sem o que novamente nao oprocuraríamos.

Cabe agora analisar o segundo ponto, que havia sido destacado anteriormente: afocalizagao ou concentragao, e que comparece articulado ao suposto caráter Voluntarista'da concepgao jamesiana da atengao. Na definigao citada no inicio do presente artigo ganhaénfase a 'agao de tomar posse', que é complementada pela nogao de focalizagao ouconcentragao. Esta idéia estaría atrelada a nogao de captura, mais específicamente, defixagao. A atengao seria caracterizada por esta dupla operagao de selegao e fixagao,concretizada no 'ato de prestar atengao'. Mas nao seria estranho que um autor que definea experiencia subjetiva consciente como fluida, e que também nao faz distingao entre aatengao e a consciéncia, definir a atengao como pura fixagao, deixando de lado sua fluideze suas modulagoes?No texto Talks to Teachers, urna publicagao de 1899 cujo conteúdo reproduz um conjuntode temas dos Principios em versao sintetizada para ser apresentada em palestras parapedagogos, fica clara a preocupagao de James com esta questao. As idéias apresentadas jáestavam presentes nos Principios, no entanto, dado o objetivo daquelas palestras, nota-seurna grande preocupagao da parte de James em apresentar seu pensamento da formamais clara e acessível possível. Urna das questoes mais importantes, segundo ele, eracomo 'capturar' o interesse dos alunos (6), ou seja, como tornar interessante aquilo que osprofessores buscavam ensinar, pois 'dizer de um objeto que é interessante é somenteoutro modo de afirmar que excita a atengao' (James, 1899/1924, p. 115). É importante

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notar aqui a maneira como James encaminha suas colocagoes. Ali onde se poderia esperarrecomendagoes de rigor quanto á disciplina e o desenvolvimento de técnicas para ogerenciamento e sustentagao do esforgo, James acentúa exatamente a dimensao deflutuagao da atengao. É certo que uma serie de fatores envolvendo a disciplina, assimcomo a necessidade de um esforgo de concentragao, ganham espago e sao abordados, noentanto a énfase recai sobre outros aspectos, como é o caso da flutuagao. É característicodo operar da atengao flutuar. Referindo-se a Helmholtz, James coloca: "a tendencia naturalda atengao, quando se abandona a si mesma, consiste em passar a coisas sempre novas"(James, 1890/1952, p. 273). Isto pode ser notado por meio de um pequeño exercíciopassível de ser realizado por qualquer pessoa e que consiste em fixar os olhos em umponto fixo do espago. Dá-se entao um estado no qual ou o próprio olho vagueia paraobjetos distintos ou o espirito alcanga uma especie de "solene sentido de entregar-se aoinerte e transitorio curso do tempo" (idem, p. 261). Há assim sempre uma passagem,procuramos sempre um aspecto novo do objeto, e James ressalta que se isso é verdadepara a atengao sensorial (7), o é ainda mais para a atengao intelectual. A atengaovoluntaria, que se caracteriza pelo sentimento de esforgo, nao se sustenta por muitotempo. James afirma: "a atengao voluntaria é, pois, uma questao essencialmentemomentánea" (James, 1899/1924, p. 118). Esta opera por puxoes ou sacudidelas, assim,"o processo, qualquer que seja, esgota-se em somente um ato" (idem, p. 117). Daí aarticulagao, apontada anteriormente, entre as nogoes de fixagao, interesse, e a distingaoentre atengao voluntaria e involuntaria. A 'agáo de tomar posse' que caracteriza o estadoatento nao ganha seu trago mais proeminente no repetido esforgo por fixagao, e a própriafixagao nao consiste em um isolamento do objeto sobre o qual se debruga. A nogao defixagao ganha, portanto, uma nova nuance que permite uma abertura para que se pense aatengao em suas diferentes modulagoes. James promove aqui uma inversao interessante.A título de exemplo analisa a questao da atengao dos 'genios'. Segundo ele, costuma-seatribuir a genialidade destes a capacidade de manter a atengao fixada e sustentada em ummesmo objeto por longos períodos de tempo. Em suas palavras:

Comumente se eré que os genios se sobressaem aosoutros por seu poder de atengao sustentada. Namaioria deles, há de se temer que a 'faculdade' assimchamada seja de especie passiva. Suas idéiasdeslumbram, qualquer assunto se ramifica ante seusespíritos infinitamente férteis, e assim podem estarextasiados por horas. Mas é seu genio que os fazatentos, nao sua atengao que os faz genios. E, quandopenetramos na raiz da questao, vemos que diferem doshomens menos no caráter de sua atengao que nanatureza dos assuntos sobre os quais se entregasucessivamente. No genio, estes formam uma serieconcatenada, sugerindo-se mutuamente por sua leiracional. Por conseguinte, chamamos sua atengao de'sustentada' e o tópico da meditagáo por horas de 'omesmo'. No homem vulgar a serie é em sua maiorparte incoerente, os objetos nao tem lago racional echamamos a atengao ambulante e sem fixagao (James,1890/1952, p. 274).

O genio mantém sua atengao acesa exatamente por sua capacidade de tornar o objetointeressante, ou seja, por ser capaz de fazé-lo variar sem cessar. O que se valoriza saoas relagoes estabelecidas. Diante de uma mente genial os objetos sao mais vivos pois seramificam, apresentam uma serie de relagoes possíveis que se desdobram, ganhando,consequentemente, sempre uma faceta nova. Desta forma articula-se o velho e o novo, ouno no múltiplo. É a potencia de articulagao, a multiplicidade de relagoes possíveis, queconfigura a fixagao. Esta estaría assim mais próxima da questao da sustentagao do queda focalizagáo, pois diz respeito mais a dimensao temporal necessária para que estasmúltiplas articulagoes se fagam, do que a um processo de focalizagáo ou congelamento

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do fluxo. Certamente se produz um jogo de luz e sombra, pois há urna inteligibilidadeentre estas possiveis articulagoes urna vez que se mostram mutuamente relacionadas. Aprópria nogao de focalizagao guarda sua importancia, urna vez que aponta para ainteligibilidade e consistencia destas articulagoes, mas é fundamental que se destaqueessa possibilidade de modulagao e variagao da dinámica atencional. Desta forma abre-seespago para graus cada vez mais variados de complexificagao e, conseqüentemente,abre-se espago para relagoes muitas vezes nao previsiveis, ou seja, para a criagao. Estascolocagoes, mais urna vez, encontram ressonáncia ñas palavras precisas e extremamenterefinadas de Merleau-Ponty (1971, p. 46):

A primeira operagao da atengao é pois de se criar umcampo, perceptivo ou mental, que se possa dominar(Ueberschauen), onde movimentos do órgaoexplorador, onde evolugoes do pensamento sejampossiveis sem que a consciéncia perca pouco a poucosua aquisigao e se perca ela mesma ñastransformagoes que provoca. (...) A atengao comoatividade geral e formal nao existe pois. Há em cadacaso urna certa liberdade para se adquirir, um certoespago mental para se dispor. Falta fazer aparecer opróprio objeto da atengao. Trata-se ai, ao pé da letra,de urna criagao.

Nota-se também, voltando á citagáo de James, que nao se trata de urna capacidadeprivada e já desenvolvida em certos 'privilegiados' pois, ao se remeter a Vaiz da questáo'e falar dos 'genios', James aponta também para a 'natureza dos assuntos sobre os quaisse entrega sucessivamenté (grifo nosso). Retomamos aqui a colocagáo citadaanteriormente de que 'o pensador é, ele mesmo, o pensamento' (James, 1890/1952, p.259). O ato atencional nao se resume, entáo, ao ato de 'prestar atengao', que seriatotalmente dirigido por um sujeito, pois há um constante jogo entre aquilo que seestabiliza e o que está por advir, tal como comparece na colocagáo de Merleau-Ponty deque a atengao cria um campo no qual evolugoes do pensamento sao possiveis sem quese percam. Percebe-se a tensao entre a flutuagao e a fixagao, característica da atengao,e que é também expressa da seguinte forma por James (1899/1924, p. 124):

O máximo de atengao será logrado quando se obtiverurna harmonía sistemática ou unificagao entre o novo eo velho. Curiosa circunstancia é que nem o novo e nemo velho sao por si só interessantes; o absolutamentevelho é insípido, e o absolutamente novo nao chamabastante atengao. O velho no novo é o que maisestimula (...), o velho com alguma novidade. Ninguémassistirá a urna conferencia sobre um assunto que naoguarde conexao alguma com coisas já sabidas; todosgostam de saber algo mais sobe pontos já conhecidos.Tal ocorre com a moda, que todos os anos nos trazurna pequeña modificagao nos trajes do ano anterior;se a alteragao fosse feita de urna vez, a soma de dezanos nao seria agradável á vista.

Tem-se aqui um bom exemplo da perspicacia do pensamento jamesiano e de seu estilodespojado ao transitar por exemplos e situagoes que, ainda que diversas, possuemsempre urna atualidade e concretude. Suas colocagoes permitem desdobramentos earticulagoes entre aspectos que pareceriam opostos. O interesse permanece sendoimportante em suas colocagoes sobre atengao, contudo, a forma como este comparecerevela urna faceta múltipla. Nenhum interesse se esgota no objeto, urna vez que é pormeio de um contraste, ou de urna tensao, entre o novo e o velho que algo é notado eque a atengao se sustenta, se fixa. Por outro lado nao se resume a atividade deliberadade um eu, no ato de "prestar atengao", pois, novamente, a atengao tende a flutuar edesdobrar novos aspectos dos objetos e novas possibilidades de experiencia. Assim

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presentifica-se a complexidade do ato atencional, que nao se esgota no objeto ou nosujeito, na fixagao ou na flutuagao, na atividade ou na receptividade, e que comportadiferentes modulagoes tendo, portanto, um funcionamento nao homogéneo.

Consideragoes fináisAbordar o tema da atengao na sua complexidade implica em um constante desafio, poiseste esforgo comparece intimamente articulado as diversas maneiras pelas quaisestabelecemos lagos nao só com o mundo, mas também com os outros e conosco. Éinteressante notar aqui que Lapoujade (1997,1999), ao se referir á forma com que Jamesbusca instituir um conhecimento psicológico, se utiliza do termo devir consciente. Apsicología deveria constituir um método capaz de entrar em relagao de imanéncia comestes movimentos da experiencia que "se fazem conscientes". Da mesma maneira, Depraz,Várela e Vermersch (1999, 2003), ao retomarem o estudo da experiencia nacontemporaneidade, também dirigem seu trabalho para o estudo da experiencia de devir-consciente, para o qual buscam desenvolver urna metodologia de investigagao específica.Para além de urna mesma terminología nota-se a proximidade na forma de abordagem daexperiencia, como se pode perceber a partir da colocagao de Várela e Shear (1999, p. 14):"a experiencia humana nao é um dominio fixo, predeterminado. Ao invés disso, ela émutante, mutável e fluida. (...) Ela se move e muda, e sua exploragao é também parte davida humana". Todo o esforgo consiste na constituigao de um método capaz deacompanhar estes movimentos, o que requer a constituigao de urna atengao sensível aeste processo. Nota-se assim a valorizagao daquilo que a experiencia possui de potenciacriadora e a importancia concedida ao aspecto ético da questao, o que é extremamentesignificativo na contemporaneidade, quando o tema da atengao comparece como lugar decruzamento entre discursos de normalizagao e de criagao (Lima, 2005; Caliman, 2006). Aobra de James constituí um fértil momento neste empreendimento, possuindo um alcanceque pode ser vislumbrado a partir de suas palavras ao encerrar seu classico capítulo sobreo fluxo do pensamento:

A mente, em resumo, trabalha sobre os dados querecebe de forma semelhante ao escultor que trabalhasobre seu bloco de pedra. Em certo sentido, a estatuaesteve lá por toda a eternidade. Mas havia milhares deestatuas diferentes ao lado déla, e se deve ao escultoro fato de té-la deslindado entre todas as outras. Assimé com o mundo de cada um de nos, por mais diferentesque possam ser as varias visoes que temos dele, tudorepousa imerso no caos primordial de sensagoes, quefornece a mera materia para o pensamento de todosnos indiferentemente. Podemos, caso haja interesse,fazer as coisas retornarem áquela continuidade escurae desarticulada de espago e nuvens errantes de átomosincontáveis, que a ciencia chama o único mundo real.Mas, durante todo o tempo, o mundo que nos sentimose, no qual vivemos, será aquele que nossos ancestraise nos mesmos, por esforgos lentamente acumulativosde escolha, deslindamos a partir deste, comoescultores, rejeitando simplesmente certas porgoes doestofo dado. Outros escultores, outras estatuas damesma pedra! Outras mentes, outros mundos domesmo monótono e inexpressivo caos! Meu mundo éapenas um entre milhoes de mundos igualmenteimersos, igualmente reais para quem possa té-Iosabstraído (James, 1890/1952, p. 187).

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Notas

(1) É importante colocar, contudo, que apesar da importancia concedida a este conceito,Lapoujade afirma que há urna proximidade entre os momentos psicológico e filosófico de James,havendo já nos textos psicológicos indicios do que seria posteriormente desenvolvido com oconceito de experiencia pura (Lapoujade, 1999).(2) Todas as tradugoes aqui apresentadas de obras nao traduzidas para o portugués sao denossa responsabilidade.(3) A posigao de James acerca do empirismo ganhará mais consistencia a partir de 1904 com oconceito de experiencia pura, cf. James (1904/1974).(4) É fundamental, contudo, que se tome cuidado para que nao se considere estes conceitoscomo correspondendo a estados discretos existentes, urna vez que recairíamos no mesmoproblema de explicar o que se coloca entre eles constituindo urna passagem, crítica esta que écomentada pelo próprio autor em urna nota de rodapé na página 167 de Principios de Psicología(James, 1890/1952).

(5) Esta questao merecería um maior aprofundamento, o que extrapolaría os limites e objetivosdeste artigo. Para urna discussao sobre o tema cf. Várela, Thompson e Rosch (2003).(6) Nota-se aqui a proximidade com questoes colocadas por professores e educadores nacontemporaneidade, quando se faz crescente a queixa acerca do comportamento e dacapacidade de concentragao de seus alunos.

(7) James (1890/1952) estabelece urna distingao entre a atengao sensorial, que seria voltadapara os objetos dos sentidos (como sons ou cores, por exemplo) e a atengao intelectual (ouideacional) que seria voltada para objetos ideáis ou representados (como urna lembranga ou umdeterminado pensamento, por exemplo).

Nota sobre os autoresGustavo Cruz Ferraz é psicólogo e atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduagao emPsicología da UFRJ. Bolsista do CNPq- Brasil. Contato: Av. Princesa Isabel , 334 /503, bl.3, CEP22011-010 - Rio de Janeiro (RJ)/ Brasil. E-mail: [email protected]

Virginia Kastrup é doutora em Psicología e pesquisadora do CNPq. Professora do Instituto dePsicología e do Programa de Pós-Graduagao em Psicología da UFRJ. Publicou A invengao de si edo mundo (Papirus, 1999) e diversos artigos em coletáneas e revistas especializadas. Seu

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trabalho situa-se na interface entre os estudos da cognigao e da produgao da subjetividade.Contato: Rúa Prof. Ortiz Monteiro 276/401, Bl. A. Laranjeiras. Rio de Janeiro - RJ. 22245-100.E-mail: [email protected]

Data de recebimento: 21/12/2006Data de aceite: 30/12/2007

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Corpos enredados - germinados: a questao do corpo emFoucault e Merleau-Ponty

Entangled-germinated bodies: the issue body in Foucault and Merleau-Ponty

Fernando de Almeida SilveiraUniversidade Federal de Sao Paulo

Brasil

ResumoMichel Foucault estuda o corpo enredado, submetido aos embates das forgas dospoderes-saberes, que se articulam estratégicamente na sociedade ocidental. E Merleau-Ponty visa á experiencia sensível que germina enquanto estrato originario da correlagaocorpo próprío-mundo, como urna regiao de sentidos que nao se limita a seus significadoshistórico-culturais pois representa nossa abertura ao Ser em geral. Esta pesquisacompara o corpo enredado foucauldiano com o corpo germinante merleau-pontyano eavalia em que medida a perspectiva genealógica foucauldiana dissolveria a nogao desubjetividade que reside, em Merleau-Ponty, na experiencia do corpo próprio. Verificou-se que a tentativa de Foucault de submeter o corpo germinante de Merleau-Ponty ámesma pressuposigao discursiva do seu corpo enredada é urna forma de desconsideraras singularidades da paisagem enunciativa da corporeidade na fenomenología merleau-pontyana. Este trabalho se desenvolve através da leitura de bibliografía dos referidosautores, comentaristas e de outros autores da filosofía moderna (Agencia Financiadora:FAPESP).

Palavras-chave: corpo-alma; Foucault; Merleau-Ponty.

AbstractMichel Foucault studies the entangled body, submitted to the forces of power-knowledge,strategically articulated in Western society. Merleau-Ponty aims at the sensibleexperience that germinates as originary stratum of the correlation body proper-world, asa región of feelings that is not limited by historical-cultural meanings, therefore itrepresents our opening to the Being in general. This research compares Michel Foucault'sentangled body with Merleau-ponty's germinated body, in order to evalúate in whichextent his genealogical perspective is able to dissolve the subjective notion that residesin the experience of Merleau-Ponty's proper body. It was verified that the Foucault'sattempt to submit Merleau Ponty's germinated body to the same discursivepresupposition of his entangled body is a form of disrespect to the singularities of theconcept of body in Merleau-Ponty's phenomenology.

Keywords: body-soul; Foucault; Merleau-Ponty.

IntroducaoA análise do processo de constituigao do sujeito moderno no contexto das cienciashumanas tem, tanto em Foucault como em Merleau-Ponty, dois autores que investigamtais questóes em seus efeitos sobre os corpos e almas dos individuos, afetados pelaincidencia histórica de tais discursos-práticas (1).Se na sua arqueología das ciencias modernas (principalmente em As Palavras e as Coisas- 1966), Foucault destaca que a analítica da finitude do homem, implementada peloadvento da Modernidade, principalmente no transcurso do sáculo XVIII, faz surgir ohomem na sua posigao ambigua de sujeito e objeto de conhecimento, é Merleau-Pontyquem aponta que o estatuto epistémico do homem, na Modernidade, deixa escapar ofenómeno da percepgao, inclusive a que nos interessa diretamente, no contexto daPsicología, na medida em que os saberes psi também se revestem, em muitas de suasinvestigagóes, do mesmo caráter de impessoalidade e objetivagao da experiencia

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perceptual do corpo inerentes a outros ámbitos das ciencias modernas. Sob esteparadigma, Merleau-Ponty (1945/1994) aponta que, para o psicólogo, a experiencia dosujeito vivo tornava-se por sua vez "um objeto e, longe de reclamar urna nova definigáodo ser, ela se localizava no ser universal" (p. 139).Este objeto diferenciado, em oposigáo ao real, seria o psiquismo. A crítica de Merleau-Ponty a este conceito psicológico se deve ao fato dele também ser tratado como urnasegunda realidade, como um objeto de ciencia, sujeito as leis semelhantes deobjetivagao, inerentes a outros ramos de ciencias. Ou seja, a Psicología tambémconfiguraría um "saber objetivo" sobre a realidade, "quando o sistema das cienciastivesse acabado" (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 68).Assim, no que se refere específicamente as imanéncias do corpo, veremos suadegradagao em "representagáo" do corpo, na medida em que se renega a suacaracterística de "fenómeno", em proveito da categoría de "fato psíquico". E, sob omanto deste novo conceito, "Ver' e 'sofrer'" se tornam "representagóes confusas", naconstituigao de urna nova ordem de razóes científicas (Merleau-Ponty, 1945/1994, p.139).Esta existencia categorial apriorística das emanagóes corpóreas, sejam elascientíficamente correlacionadas com o contexto mais material do corpo(exemplificativamente, o "ver", o "tocar", o "cheirar"), seja no que se refere asemanagóes anímicas também objetivadas (o "sentir", o "intuir", o "pensar") saoreapropriadas pela Psicología e utilizadas nos fundamentos metodológicas de diversossaberes psicológicos, na ansia da Psicología de constituir seu próprio objeto enquantociencia.No entanto, é em A Fenomenología da Percepgáo (1945/1994) que vemos Merleau-Pontyse debrugar com mais acuidade no processo de interiorizagao da ciencia em seu acesso ádíade corpo/alma.Se o aspecto dissociativo entre a experiencia perceptual e o corpo como organismo-sededa organizagao dos aparelhos sensoriais já fora sistematizado pelas ciencias psicológicascomportamentais e outros ramos das ciencias, o aparente avango no sentido daconstituigao de um discurso sobre o psiquismo enquanto representagóes anímicas doseventos de urna consciéncia discursivamente em construgao escondería, segundoMerleau-Ponty, o mesmo processo já visto em outras áreas de conhecimento, promotordo decentramento da experiencia perceptual em nome de urna consciéncia que,simultáneamente, a tudo investigaría e a tudo esquadrinharia enquanto elementoalavancador dos estudos da Psicología, sendo também um dos núcleos primordiais nao sóda intelecgáo científica mas também dos próprios processos psíquicos considerados comopuros, acabados e em si.Ou seja, o discurso da introspecgáo psíquica só transformaría a emergencia dosfenómenos psíquicos em mais um objeto corpóreo-anímico dentre outros, em sintoníacom todo o processo de coisificagáo dos corpos/almas, empreendido pelas cienciasmodernas, os quais, por sua vez, também assim o sao utilizados, corriqueira einadvertidamente enquanto coisas, pelo senso comum.Um aspecto interessante nesta objetivagao do psiquismo se verifica a partir daconstatagáo merleau-pontyana de que a verificagáo da introspecgáo psíquica só seadquire por nossas relagóes com o outro. É assim que o psicólogo produziria seu saber,ao "olhar seu corpo através dos olhos do outro e ver o corpo do outro como urnamecánica sem interior". Ou seja, ao universalizar o psiquismo, transformando-o em umobjeto, ele "recalcava tanto sua experiencia do outro como sua experiencia de si mesmo"(Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 140).No entanto, as questóes do corpo próprio, na medida em que nele habitamos, nosprovocam um chamamento á experiencia perceptiva. É assim que a uniáo entre a alma eo corpo nao será considerada em Merleau-Ponty enquanto entrelagamento de objetosisoláveis.Ou seja, o retorno ao ámbito enunciativo-discursivo da realidade perceptual nos fazsempre retomar a raiz ontológica do vivido, presente inescapavelmente em nos mesmos,enraizada em nossos corpos, de forma que "a génese da percepgáo desde os 'dadossensíveis' até o 'mundo', devia renovar-se em cada ato de percepgáo, sem o que os

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dados sensíveis teriam perdido o sentido que deviam a essa evolugao" (Merleau-Ponty,1945/1994, p. 141).Sob esta ótica originaria, o psiquismo, da mesma forma que o corpo próprio em suamaterialidade, nao pode ser considerado como elemento exterior á experiencia etotalmente objetivado, já que reúne em si "o seu passado, seu corpo e seu mundo"(Merleau-Ponty, 1945/1994, pp. 140-141).Em suma, deparamo-nos com aquilo que em outros momentos Merleau-Pontydenominava de psicología descrítiva, a qual seria "encontrar urna primeira abertura ascoisas sem a qual nao haveria conhecimento objetivo" (Merleau-Ponty, 1945/1994, p.142).Por sua vez, com necessária reiteragao, ressaltamos certa aproximagao entre Foucault eMerleau-Ponty no que se refere á emergencia dos saberes psi, na medida em que ambosrevelam o processo histórico-constitutivo de aderéncia dos discursos do psiquismo sobrea corporeidade, mesmo que mantidas as diferengas sobre as formas de incidencia destasverdades no seu processo de atuagao sobre os corpos/almas, conforme estamosapresentando neste trabalho.Em termos das articulagoes das enunciagoes de corpo entre estes dois autores, podemosdestacar que, em Foucault, os confrontos de forgas entre o corpo e os saberes/poderesimplicam em relagoes desiguais, desencontradas e entrecortadas.Em estudos anteriores (Silveira; Furlan, 2001 e 2003), diagnosticamos que, paraFoucault (1979, p. XII), o poderintervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos individuos - o seu corpo- e que se sitúa ao nivel do próprio corpo social, e nao ácima dele, penetrando na vidacotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.Esta perspectiva é constantemente direcionada para o desenvolvimento daquilo que seconfigurou como sendo a microfísica do poder, ou seja, o foco na corporeidade de cadaindividuo - com seus hábitos, instintos, pulsoes, sentimentos, emogoes, impulsos evicissitudes - como o ponto fundamental sobre o qual atua um emaranhado complexo deurna serie de lutas e de confrontos inerentes a tais saberes, no processo de produgao depoder.Dentre tais práticas, podemos enumerar, ilustrativamente, os suplicios, as disciplinas, asdisposigoes do corpo no tempo e no espago, os métodos de auto-exame e de controle, osmecanismos panópticos de vigilancia, os atos e as práticas confessionais (de cunhoreligioso ou científico), a confecgao de laudos periciais e psicológicos sobre as disposigoesdos corpos-almas, os exames médicos (que esquadrinham tanto o corpo como a almados pacientes, dos loucos, dos excluidos), conceitos de higiene física e de demografía.É este conjunto de constatagoes que se configura enquanto urna nova fase do seuprojeto histórico-filosófico: a fase genealógica, enquanto "um diagnóstico que seconcentra ñas relagoes de poder, saber e corpo na sociedade moderna" (Rabinow;Dreyfus, 1995, p. 117).Esta fase é representada principalmente por "Vigiar e Punir"(Foucault,1975)/ enquantoum estudo que se volta para a constituigao dos mecanismos de poder/saber, através daprática penal/punitiva e do implemento de fórmulas genéricas de dominagao, de cunhodisciplinar e de vigilancia, presentes em toda a sociedade moderna, e por "Historia daSexualidade - Volume I - A Vontade de Saber" (1976), na qual Foucault mostra aimplementagao do dispositivo da sexualidade.Desta maneira, a genealogía foucauldiana foi se revelando como portadora de urna novaestrutura analítica de produgao histórico-filosófica, porque reconhece a validade doestudo da corporeidade no que nela se manifesta como mais próximo, tambémdenominada de historia efetiva (nítidamente de inspiragao nietzscheana): "a historiaefetiva" [...] langa seus olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, osalimentos e a digestao, as energías; ela perscruta as decadencias" (Foucault, 1979, p.17).E esta apropriagao dos aspectos relegados da corporeidade instaura urna verdadeiravivificagao da filosofía do corpo. Neste sentido, sua criagao intelectual é multi-sensorial:

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valoriza na filosofía as emanagoes físico-sensorias do corpo e as eleva a condigoes dedetentores de historia.Assim sendo, ao focalizar suas investigagoes no contexto das singularidades próprias dacorporeidade, Foucault passa a relevar como historia os eventos e marcas destacorporeidade os quais, a principio, sao comumente considerados como "nao possuindohistoria, os sentimentos, o amor, a consciéncia, os instintos" (Foucault, 1979, p. 15)., epassa a rastreá-los através de um estudo minucioso, revelando-os enquanto apropriadospor urna complexa serie de articulagoes estratégicas de saberes e de poderes, os quaisutilizam o corpo como seu alvo e, mais do que isto, como seu comego.Ñas palavras de Foucault (1979, p. 22):O corpo: superficie de inscrigao dos acontecimentos (enquanto que a linguagem osmarca e as idéias os dissolvem), lugar de dissolugao do Eu (que supoe a quimera de urnaunidade substancial), volume em perpetua pulverizagao. A genealogía [...] está portantono ponto de articulagao do corpo com a historia. Ela deve mostrar o corpo inteiramentemarcado de historia e a historia arruinando o corpo.Em outros termos, o corpo é o campo (porque as forgas atravessam e constituem arealidade da corporeidade, nao há forga sem corpo) de forgas múltiplas, convergentes econtraditórias, e o próprio lugar da sedimentagao de seus combates. Ou ainda,

[...] sobre o corpo se encontra o estigma dosacontecimentos passados do mesmo modo que delenascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; neletambém eles se atam e de repente se exprimem, masnele também eles se desatam e entram em luta, seapagam uns aos outros e continuam seu insuperávelconfuto (Foucault, 1979, p. 22).

Ou seja,[...] Lá onde a alma pretende se unificar, lá onde o Euinventa para si urna identidade ou urna coeréncia, ogenealogista parte em busca do comego - dos comegosinumeráveis [...] A marca da proveniencia permitedissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e recantos desua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos(Foucault, 1979, p. 20).

Este caráter dissociativo do eu, com seus comegos inumeráveis, múltiplos edissociadores, possibilita a compreensao de urna dinámica desse "eu" na qual corpo ealma estáo submetidos a processos múltiplos de constituigáo histórica.Ou seja, corpo e alma, portanto, sao interpenetrados de historia e articulados através dediferentes contextos discursivos, os elementos co-construtores de múltiplos focos desubjetivagáo, de forma que se torna imprescindível associá-los ao processo de edificagáoda própria identidade histórica do individuo.Dentro deste universo no qual poder e saber estáo intimamente ligados, o que se frisa,portanto, é que "nao há constituigáo de poder sem constituigáo correlata de um campode saber, nem saber que nao suponha e nao constitua, ao mesmo tempo, relagoes depoder" (Foucault, 1975, pp. 29-30).Com isto, supera-se a neutralidade difusamente presente em diversos gruposintelectuais, de que "fazer ciencia nao é fazer política", ou a concepgáo na qual a cienciaestá dissociada de qualquer disputa pelo poder.Muito pelo contrario, ao reconhecer o Mame estreito entre saber e poder, Foucault langa aciencia e a todos os saberes (os quais reconstróem e rearticulam o binomio secular docorpo e da alma) a urna relagáo de suporte teórico e epistemológico de múltiplosinteresses, inerentes aos rearranjos das conformagoes de poderes imanentes a cadamomento em nossa sociedade.

Método e ObjetivosEsta pesquisa compara o corpo enredado foucauldiano com o corpo germinante merleau-pontyano e avalia em que medida a perspectiva genealógica foucauldiana dissolveria a

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nogao de subjetividade que reside, em Merleau-Ponty, na experiencia do corpo próprio.Este trabalho se desenvolve através da leitura de bibliografía dos referidos autores,comentaristas e de outros autores da filosofía moderna, em um enfoque transdisciplinar,que se remete tanto ao campo da psicología como da filosofía, na medida em que seanalisa a complexa correlagao entre o corpo vivido e corpo histórico, e o processo deconstrugao da identidade do sujeito moderno.

ResultadosNa obra de Foucault, o corpo surge enredado(2) em embates tensos, através decravamentos de verdades sobre a materia e que, na constante reincidencia confirmadoradestes entrelagamentos, se caracteriza por movimentos de ligamentos e dedesligamentos, de conexóes e de rupturas, de conjugagóes e de descontinuidades, naoenquanto polaridades bem definidas, mas em arranjos difusos, instáveis e provisorios.É assim que consideramos que Foucault se apropriou da concepgao de rede, do ponto devista enunciativo (e somente sobre esta premissa), como conceito-chave paraprincipalmente elucidar a complexidade das confrontagóes dos poderes-saberes, em suasinterpenetragóes nos grupos de agenciamentos sobre os quais se apoiam e seconfirmam/produzem continuamente, sejam eles as prisóes, as escolas, os quartéis, asfábricas, dentre outros.Assim, a grade de especificagao rede emerge articulada as grades de especificagao corpoe alma como sinalizadora de "urna complexidade limítrofe, na qual a multiplicidade e oentrelagamento das forgas atuantes passam a ser cada vez mais intensamenteconsideradas pelo pesquisador, o que gera dois sentidos básicos: primeiramente,reconhecer a complexa relagao de forgas presentes ñas relagóes sociais da sociedademoderna. E noutro sentido, sensibilizar o pesquisador sobre o fato de que é necessário'se muñir de urna rede de análise que torne possível urna analítica das relagoes depoder'" (Silveira, 2004, p. 98).Ou seja, a grade-conceito rede se remete "nao apenas no sentido de sua adesao aodiagrama social mas também ao próprio processo perceptual do pesquisador, ao edifíca-lo em seus estudos" (Silveira, 2004, p. 98).Isto ocorre na medida em que Foucault utiliza desta concepgao enquanto pressuposigao,com finalidade funcional, para dar visibilidade á emergencia dos embates instáveis deseus mapeamentos e cartogramas. E no sentido de permitir visualizar discursos, corpos eforgas em certas disposigóes estratégicas.É desta maneira que a filosofía foucauldiana é um pragmatismo, um funcionalismo doponto de vista bélico-estratégico. Assim, ao invés de discorrer sobre a estruturaperceptual da existencia (que é o caso de Merleau-Ponty), ele apresenta determinadafungao existencia/ de certas redes de forgas históricamente posicionadas. Ñas palavras deDeleuze, "a existencia como um produto de urna serie de jogos discursivos, de forgas eestéticos, que tém no exercício do pensamento e de suas bordas a possibilidade deatravessamento da historia, enquanto elemento que nos separa de nos mesmos"(Deleuze, 1992, p. 119).Nestes seus desencontros, a quebra e a ruptura das combinagóes das forgas sobre oscorpos é elemento primordial na constituigao, nao só da corporeidade mas,simultáneamente, de subjetividades. É a encarnagao do corpo produzida pela incidenciade forgas históricas. É, como vimos, a historia arruinando o corpo e o dilacerando atravésda constituigao intensiva de verdades sobre ele incidentes.Por outro lado, parece-nos bem diferente a configuragao das enunciagóes do corpoperante os saberes modernos e cotidianos em Merleau-Ponty.O que vemos em Merleau-Ponty é a contraposigao entre urna enunciagao perceptiva docorpo próprio (tomada enquanto anterioridade estruturante do ser-no-mundo) em facede urna estrutura epistémica das ciencias ou de conhecimento do senso comum que visainstaurar seus pressupostos, a partir dos quais urna nova ordem das razóes se efetivarána medida em que conseguir conformar posteriormente o seu primado perante ofenómeno perceptual.

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É sob este prisma que notamos em Merleau-Ponty, certa continuidade entre os saberes eo corpo enquanto grade de especificagao. O caráter originario do corpo, em suadimensao fenoménica, exige-nos conceber que as ciencias e as verdades do dia-a-diapossuam um caráter relativamente derivativo da percepgao. Ou seja, sua descrigao dovivido, centrada em muitos momentos na corporeidade, imprime nela urna característicaestruturante da realidade e do mundo. Em outras palavras, o corpo nao é, como vimosem Foucault, urna pega num jogo de dominagóes, mas é um dos elementos genéticos naformagao e na expressao de sentidos e de significagóes.É como se, para a consolidagao de seus discursos, Merleau-Ponty partisse dapressuposigao de que esses elementos estao imbricados um no outro, numentrelagamento que ocorreria a partir de um campo perceptivo originario, referente aocorpo próprio-no mundo-diante das coisas e que se desdobraria em ampios e diversosprocessos de produgao de verdades dele decorrentes, através de enunciagóes e devisibilidades que tendem a se configurar sucessivamente, de maneira entrelagada, seminterrupgao ou com apenas pequeños intervalos, se comparados com a redefoucauldiana, em seu caráter recortado e devassado pelas forgas.Esta configuragao geral da corporeidade em Merleau-Ponty pode ser denominada detessituraou tramadas enunciagoes e das práticas.Assim sendo, compreendemos que a tessitura enquanto imbricagao configura o corpopróprio enquanto estrato originario dos corpos científicos e cotidianos e enquanto urnainstancia primeva a partir da qual estes corpos se desenvolvem como urna dobra, maisou menos sobreposta e entrecruzada ao corpo vivido, de acordó com sua inter-relagao ásua dimensao fenoménica originaria.Desta forma, o corpo próprio é urna instancia de brotamento e de germinagao dessasoutras enunciagoes da corporeidade, a partir da qual se langariam outras visibilidades decorporeidade, e por nos denominada de saber perceptivo, saber este que, como vimos,sempre coloca o fenómeno perceptual como anterior e fundante de qualquer ordem derazóes.Compreendemos que esta nossa verificagao é urna emergencia enunciativa, a qual naoimplica que esta nogao de brotamento e de germinagao seja encontrada literalmente emA Fenomenología da Percepgao. No entanto, do ponto de vista da percepgao corporal dosujeito, temos um exemplo que demonstra o aspecto de brotamento, de maneiraevidente, conforme o trecho a seguir:

Mesmo cortado do circuito da existencia, o corpo nuncase curva inteiramente sobre si mesmo. Mesmo se meabsorvo na experiencia de meu corpo e na solidao dassensagóes, nao chego a suprimir toda referencia deminha vida a um mundo, a cada instante algumaintengao brota novamente de mim, mesmo que seja emdiregao aos objetos que me circundam e caem sobmeus olhos, ou em diregao aos instantes que sobrevéme impelem para o passado aquilo que acabo de viver(Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 228, grifo nosso).

Isto nos remete a um aspecto central de nosso trabalho: o corpo próprio como foco debrotamento de sentidos, e nao só de sentidos mas, conforme já apresentamos sobreoutras palavras, de significagoes, na sua relagao mundana.Portanto, Merleau-Ponty (de um ponto de vista enunciativo e epistémico e, portanto,constituidor de verdades), considera o corpo próprio enquanto um elemento através doqual o processo de racionalizagao da realidade vem encobrir, sobrepor, ocultar ofenómeno perceptual nele inerente em sua relagao originaria com as coisas e no mundo.Ou seja, é possível reconhecer que este caráter originario da dimensao fenoménica é quepermite urna maior correlagao recíproca entre o corpo próprio e o corpo objetivado.

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Discussoes

A Questao da Originariedade dos CorposA fungao do fenomenólogo tem um cunho de descrigao do vivido e do experiencial,deslocando o eixo central da análise reflexiva das ciencias ou do senso comum. ConformeMerleau-Ponty, o real deve ser "descrito, nao construido ou constituido." Isto se justificapois considera que o real é um "tecido sólido" (confirmando a imagem enunciativa deurna tessitura), que "nao espera nossos juízos para anexar a si os fenómenos maisaberrantes, nem para rejeitar nossas imaginagóes mais verossímeis." (Merleau-Ponty,1945/1994, p. 6). Ou seja, o real é o campo originario na constituigao dos seuscorrelatos fenómenos.Neste processo descritivo, Merleau-Ponty se insere na corrente fenomenológica queutiliza, enquanto instrumental metodológico, do retorno as coisas mesmas (tambémdenominado de reducao transcendental), concepgao desenvolvida de maneira central porHusserl e também apropriada por Merleau-Ponty enquanto instrumento paracompreensao do universo pré-reflexivo originario das coisas e da presenga do ser-no-mundo.A esta nova conceituagao existencial e sua instrumentalizagao podemos denominar defilosofía transcendental, na medida em que é também urna filosofía para qual "o mundoestá x a I i', antes da reflexao". Este mundo é reconhecido como urna "presengainalienável", que demanda do pesquisador um esforgo no sentido de "reencontrar estecontato ingenuo com o mundo, para dar-lhe um estatuto filosófico" (Merleau-Ponty,1945/1994, p. 1).Ñas palavras de Merleau-Ponty, retornar as coisas mesmas é remontar "a este mundoanterior ao conhecimento do qual toda determinagao científica é abstrata, significativa edependente, como a geografía em relagao á paisagem - primeiramente nos aprendemoso que é urna floresta, um prado ou um riacho" (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 3).Assim, Merleau-Ponty edifica urna filosofía nao objetivista (ou naturalista), nemmetafísica, psicologista ou subjetivista, mas sim urna reflexao radical de segundo grau,na medida em que releva a importancia primordial da experiencia perceptiva.Por sua vez, justamente enquanto crítica á fenomenología transcendental, Foucault,segundo Deleuze, rejeitaria tres formas de "fazer comegar a linguagem", conforme aseguir:

[...] pelas pessoas, ainda que sejam pessoaslingüísticas ou embreagens (a personologia lingüística,o 'eu falo' ao qual Foucault sempre oporá a pre-existencia da terceira pessoa enquanto nao-pessoa); oupelo significante enquanto organizagao interna oudiregao primeira á qual a linguagem remete (oestruturalismo lingüístico, o 'isso fala' ao qual Foucaultopóe a preexistencia de um corpus ou de um conjuntodado de enunciados determinados); ou, finalmente, porurna experiencia originaria, urna cumplicidade primeiracom o mundo que nos abriría a possibilidade de falardele, e faria do visível a base do enunciável (afenomenología, o 'Mundo diz', como se as coisasvisíveis já murmurassem um sentido que a nossalinguagem só precisaría levantar, ou como se alinguagem se apoiasse num silencio expressivo, ao qualFoucault opóe urna diferenca de natureza entre ver efalar (Deleuze, 1988, p. 65 -gr i fo nosso).

Gostaríamos de situar nossos destaques ácima específicamente sobre o que diz respeitoaos questionamentos de Foucault sobre o processo de formagao discursiva dafenomenología.Foucault, na sua ambigua admiragao crítica de seu professor, Merleau-Ponty e numaanálise mais ampia da fenomenología, argumenta que "as tensóes flutuantes entre urna

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teoría do homem baseada na natureza humana e uma teoría dialética para a qual aesséncia do homem é histórica conduzem á busca de uma nova analítica do sujeito", nocaso, a fenomenología de Merleau-Ponty, pela qual tentou-se uma disciplina, ao mesmotempo, empírica e transcendental, embasada num a priori concreto, o corpo vivido,através da qual se descreveria "o homem como uma fonte autoprodutora de percepgáo,cultura e historia" Foucault a chama de 'analítica do vivido' ou, de acordó com Merleau-Ponty, 'urna fenomenología existencial'" (Rabinow; Dreyfus, 1995, p. 36).Para Foucault, esta "análise do vivido" se instaurou modernamente tentando "umacontestagáo radical do positivismo e da escatologia; que ela tenha tentado restabelecer adimensao esquecida do transcendental; que tenha querido conjurar o discurso ingenuode uma verdade reduzida ao empírico, e o discurso profético que promete, enfim,ingenuamente, a vinda do homem á experiencia" (Rabinow; Dreyfus, 1995, p. 36).Portanto, Foucault ressalta que a análise do vivido emerge de uma formagao discursivaque se remete tanto aos estudos empíricos sobre a positividade da natureza do homemcomo á dialética de um devir histórico que exige a apreensao do homem em constanteabertura e transformagao.Neste contexto, a fenomenología sitúa a corporeidade em uma espacialidade irredutívelaos efeitos da historia (já que fonte da percepgao, inclusive, histórica). É o corpo quefundamentaría, distinta e simultáneamente, tanto as experiencias empíricas do ser-no-mundo como a emergencia de sua historicidade, já que é apreendido como foco dasedimentagao e da experimentagao dos processos de significagoes histórico-culturais(Foucault, 1966, p. 337).E a partir desta enunciagao entre natureza e historia que o espago do corpo e o tempo dacultura se comunicariam na fenomenología, enquanto bases enunciativas para aconstituigao de uma psicología descritiva do vivido. Ñas palavras de Foucault, afenomenología "procura articular a objetividade possível de um conhecimento danatureza com a experiencia originaria que se esboga através do corpo; e articular ahistoria possível de uma cultura com a espessura semántica que, a um tempo, seesconde e se mostra na experiencia vivida" (Foucault, 1966, p. 337).Ora, para Foucault, a analítica do vivido nao surge como uma conciliagáo tardía entre oduplo empírico-transcendental, através déla entáo reconfigurados, a partir darecombinagáo entre natureza e cultura, tendo o corpo como suporte de uma experienciaoriginaria, fundante da percepgao e da historia do homem. Esta formulagáo discursiva,seria contemporánea á emergencia do postulado antropológico, nao se apresentandocomo renovadora. Para Foucault, a grande questao a ser investigada é "severdadeiramente o homem existe" (Foucault, 1966, p. 338), indagagáo abordada nao sóem As Palavras e as coisas, como no conjunto de toda a sua obra.O que se vé emergir neste retorno as coisas mesmas (segundo Foucault, a partir deDeleuze), é uma descrigáo coincidente do mundo em relagáo direta (mas tambémrecortada e lacunar, já que aberta) ao que se configura como experiencia perceptiva, decunho emergentemente corpóreo, intersubjetivo e intramundano.É o que veríamos, sob certos ángulos no trecho abaixo, principalmente sobre o que serefere á relagáo horizonte-corpo em seu aspecto simultáneamente constituinte eirredutível:

[...] Digo que percebo corretamente quando meu corpotem um poder preciso sobre o espetáculo, mas isso naoquer dizer que alguma vez meu poder seja total; ele sóo seria se eu pudesse reduzir ao estado de percepgaoarticulada todos os horizontes interiores e exteriores doobjeto, o que por principio é impossível (Merleau-Ponty,1945/1994, p. 399).

Neste sentido se, como vimos, o corpo apreende o mundo enquanto singularidades emconstante atualizagáo, Merleau-Ponty reconhece que a corporeidade possibilita, por outrolado, um olhar que capta a realidade com certa fidedignidade entre o que se vé e o quese diz sobre o que se vé, da seguinte forma:

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[...] Na experiencia de urna verdade perceptiva,presumo que a concordancia até aqui sentida semanteria para urna observagao mais detalhada; confiono mundo. Perceber é envolver de um só golpe todoum futuro de experiencias em um presente que a rigornunca o garante, é crer em um mundo (Merleau-Ponty,1945/1994, p. 1).

Este seria um dos pontos enunciativos mais divergentes entre Foucault e Merleau-Ponty.Segundo Deleuze, Foucault foi o estudioso que, ao destacar a imersao dos corpos emcertos jogos de saber/poder, concebeu a disjungao entre o que meus olhos véem e aquiloque minha boca diz a respeito do que vejo. Esta disjungao promovería as seguintesfragmentagoes, segundo Orlandi:[...] Quebra-se entre ver e dizer qualquer intrínseca afinidade mutua. Quebrase aapressada e ingenua adesao á reflexividade do corpo próprio. Ver e dizer sao forgados aconviver como heterogeneidades numa pressuposigao recíproca instável (Orlandi, 2004,p. 50, grifo nosso).Ou seja, nao há relagao direta entre o que vejo e o que digo sobre o que vejo. De talmaneira que a própria enunciagao do caráter originario ou selvagem do corpo perceptualé comprometido na medida em que nao há correspondencia direta entre este discurso e arealidade material do corpo, já que esta conceituagao surge como emergenciaenunciativa que atravessa o corpo histórico, no exercício do poder-saber. Desta forma,trata-se de urna criagao histórica de urna corporeidade e nao a visibilidade direta de umcorpo próprio ou originario.Isto porque nao há exterioridade aos jogos de saberes-poderes. Portanto, é inconcebívelum corpo selvagem anterior a qualquer articulagao dessas forgas, pois "o Ver e o Falarsempre estiveram inteiramente presos ñas re/acoes de poder que e/es supoe eatualizam." (Deleuze, 1988, p. 89, grifo nosso), já que "ver e falar é saber, mas nos naovemos aquilo de que falamos, e nao falamos daquilo que vemos" (Deleuze, 1988, p.117).Este arranjo de forgas ocorreria na medida em que, como já vimos, saberes e poderesestao em urna relagao de pressuposigao recíproca, de forma que os saberes nao seriamum espelho fiel de um mundo fenoménico originario, já que posicionado e contaminadopelos interesses políticos dos poderes que o atravessamOu seja, a própria descrigao do vivido só teria sentido em certo contexto enunciativo quepermitiría certa visibilidade do fenómeno perceptual e da própria fenomenologíaenquanto discurso históricamente situado, reforgando o que já dissemos sobre Foucaultde que nao há nada sob o saber, ou seja, nenhuma instancia originaria, nem sequerperceptiva, nem enquanto registro corporal. Reiteramos aqui, as palavras de Deleuze,segundo as quais, para Foucault "tudo é saber, e esta é a primeira razao pela qual naohá experiencia selvagem: nao há nada antes do saber, nem embaixo dele" (Deleuze,1988, p. 117, grifo nosso).Isto porque "o saber nao é a ciencia, nao é separável desse ou daquele limiar onde ele étomado: nem da experiencia perceptiva, nem dos valores do imaginario, nem das idéiasda época ou dos dados da opiniao corrente" (Deleuze, 1988, p. 61 , grifo nosso).É assim que no contexto das analíticas foucauldianas, o que recém-denominamos desaber perceptivo se configuraría como urna determinada rede de verdades de cunhofenomenológica, da qual alguns postulados estamos elencando e na qual a nogao decorpo próprio seria nao a emissao enunciativa mais exatamente descritiva dacorporeidade real, mas sim um anexo discursivo ao corpo enquanto eixo diagramável emurna determinada cartografía, no caso ontológico-existencial-fenomenológica.Ou seja, o saber é elemento, para Foucault, conascente á própria constituigao dasensibilidade corpórea, já que incide politicamente na maneira desencontrada comovemos e dizemos sobre nossos próprios corpos.

Resultados

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No que se refere específicamente á questao da originariedade do homem com o mundo,segundo Foucault, temos que esta cumplicidade primordial da fenomenología com omundo fundaría "a possibilidade de falar dele, de Ihe designar e de Ihe nomear, de Ihejulgar e de conhecer, finalmente, sua forma de verdade. Se tal discurso existe, o quepode ele ser, entao, em sua legitimidade, senao urna discreta leitura?" (Foucault,1970/2000, p. 50).É o que reitera o discernimento epistémico de Foucault ao considerar que o corpoperceptual, em sua expressividade original e selvagem no mundo, é urna criagaodiscursiva, que só tem efeito na medida em que oculta a sua própria invengao.Isto afeta diretamente a concepgao de corpo originario em Merleau-Ponty enquanto umdos focos do exercício desse enredamento.Este rearranjo, ao produzir novas articulagoes de verdades sobre o corpo próprio, podeconstantemente resvalar naquilo que Foucault mesmo denomina de estabelecer urnacrítica "distanciada" de certos arranjos de saberes sem, no entanto, entrar maisprofundamente no seu respectivo dispositivo de produgao de verdades.Em que pese a maneira muitas vezes magnífica deste tipo de abordagem (relembremos,por exemplo, as análises de Foucault sobre o dispositivo da sexualidade e suascorrelagoes genealógicas com a Psicanálise sem, porém, discutir sobre os elementosconstituintes do próprio discurso psicanalítico: complexo de Édipo, recalque, sublimagao,dentre outros), devemos considerar que, do ponto de vista das análises do corpo emMerleau-Ponty, é importante situar qual o tipo de arranjo enunciativo e seusdeslocamentos específicos que permitiram a emergencia do discurso do corpo originariopara que, ao considerar o corpo como um mero campo de embate de múltiplos discursos,nao se perca, justamente, a disposigao específica do contexto no qual foi constituido.É aqui que salientamos o que temos denominado de corpo germinante como aenunciagao merleau-pontyana do corpo próprio.A partir desta concepgao imbricada de corpo vemos que sua fungao, enquanto grade deespecificagao, é correlacionada a outras enunciagoes, dentre elas, as de natureza e deconsciéncia. Como também diante da nogao de espirito, enquanto elemento maisassociável á racionalidade e á cultura do homem, e á concepgao de consciénciaperceptiva, como foco da expressividade originaria do ser-no-mundo.E verificar seus arranjos é fundamental para estabelecer suas diferengas as enunciagoesfoucauldianas.Do ponto de vista da correlagao corpo-alma, este caráter germinado da enunciagao dapercepgao só se evidencia na medida em que Merleau-Ponty anuncia o caráterconascente entre a via de espirito e a vida perceptiva no seu aspecto corporal emundano. É o que poderíamos denominar de coextensividade generalizada entre oselementos do corpo e da alma, já que o vínculo que se estabelece entre um e outro nao édissociável do caráter originario da experiencia perceptiva enquanto pressuposigaocentral da fenomenología merleau-pontyana.É o que vemos concebido por Merleau-Ponty, inclusive ñas suas consideragoes sobre ocorpo e a alma em A Estrutura do Comportamento [Y^^IIY^IT).Nesse livro, ele destaca a relagao substancial (e portanto, nao diretamente relacionada aum funcionalismo estratégico) entre corpo e alma, nao enquanto categorías dedeterminada ordem das razoes, dissociada do vivido, mas enquanto duas esferasinterconectadas em um processo dialético que Ihes é característico:

[...] Nos nao defendemos um espiritualismo quedistinguiría o espirito e a vida ou o espirito e opsiquismo como duas 'potencias do ser'. Isto se tratade urna 'oposigao funcional' a qual nao pode sertransformada em 'oposigao substancial'. O espirito naoé urna diferenga específica que viria a se juntar ao servital ou psíquico para fazer um homem (Merleau-Ponty,1942/1972, p. 196).

Ou seja, só se pode pensar ñas esferas psíquicas e vitáis do ser humano desde quecorrelacionadas entre si, dentro de um contexto peculiar que distingue absolutamente o

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homem vívente de um mero animal apenas racional. Em outras palavras, nao existiriaminstancias estruturais do comportamento humano fechadas em si, mas sim, em estadode germinagao nascente, imbricadas.Isto nos levaría a considerar a opacidade existente entre a racionalidade (enquantoexpressividade da cultura do homem) e o instinto, já que imbricados. Isto porque, paraMerleau-Ponty, o homem nao é um animal racional, pois "a aparigao da razao e doespirito nao deixa intacto nele urna esfera dos instintos fechadas em si" (Merleau-Ponty,1942/1972, p. 196).A mesma abordagem epistémica se verifica quando Merleau-Ponty, ao se referir a textode Goldstein (o qual, por sua vez, ao citar Herder), esclarecería que "se o homem tivesseo sentido de um animal, ele nao teria a razao" (Merleau-Ponty, 1942/1972, p. 196).Este é mais um exemplo no qual o ser encarnado manifesta o entrecruzamento intrínsecoentre duas formas distintas de natureza, transfigurando-as em sua humanidade. ParaMerleau-Ponty, o homem nao pode jamáis ser um animal pois sua vida "é sempre maisou menos integrada do que esta de um animal" (Merleau-Ponty, 1942/1972, p. 196).É assim que reconhecemos que as enunciagoes do corpo e da alma em Merleau-Ponty, aomesmo tempo que mostram a imbricagao entre os aspectos animáis e mais sublimadosno homem, por sua vez, destacam de sua visibilidade a sua singularidade irredutível, demaneira que é inadequado pensarmos um animal como sendo um homem primitivo, ou ohomem como um animal mais elaborado. Rompe-se, com isto, urna continuidadeevolucionista dualista para dar espago á referida imbricagao expressiva de determinadaestrutura de ser.Por sua vez, o ámbito espiritual do homem só pode ser compreendido dentro de"situagoes concretas ñas quais ela se encarna" (Merleau-Ponty, 1942/1972, p. 28). É oque podemos denominar, ilustrativamente, de historia perceptual-cultural encarnada.Ñas palavras de Bimbenet (2004), temos na experiencia perceptual as premissas de"urna nova filosofía do espirito" enquanto ""espirito fundamental encarnado", a qual "nao/he renega sua proveniencia natural; como ela comporta também o germe de urnafilosofía da natureza, capaz de dar conta da aparigao nela de um espirito cognoscente"(Bimbenet, 2004, p. 29, grifo e tradugao nossa).Com isto, "o homem fica em toda parte naturado, até na mais elevada de suasrealizagoes espirituais", como também "o espirito continua apoiado na natureza", deforma que "o homem conquista sua originariedade pelo mesmo movimento que Iheinscreve na natureza; sua especificidade de ser humano e sua proveniencia natural naofazem alternativa" (Bimbenet, 2004, p. 27, tradugao nossa).Em outras palavras, teríamos a humanizagao de todas as enunciagoes referentes aocorpo e á alma do homem, inclusive a que diz respeito á originariedade do corpoperceptual. Sua especificidade humana o reveste de um caráter natural, constituida noprocesso de germinagao de urna historicidade perceptiva, na elaboragao da racionalidadedo homem e, portanto, referente a urna natureza de segunda ordem, ou, mesmo queressoe redundante ou contraditório, um corpo de segunda natureza.Isto se refere indiretamente ao aspecto de que a aparigao germinada da razao no homemé, portanto, fruto de processos ocultos de maturagao até sua visibilidade, pois germinar éabrirse, tornarse visível e exposto após maturagao, a qual, no caso, se refere áimbricagao do aspecto instintual do homem com seu ámbito cultural-racional, naconstituigao de urna singularidade própria e, portanto, inteiramente humana.Ñas palavras de Bimbenet, "[ . . . ] o homem é um ser todo inteiro natural, que escapaportanto todo inteiro da natureza, pela consciéncia que ele, déla toma" (Bimbenet, 2004,p. 13, tradugao nossa).Esta difusao de razao com selvageria transforma o corpo humano, de maneira indistintaentre o que venha ser cultural e natural, entre o que venha a ser contemporáneo eprimitivo em nossos corpos.É assim que podemos inserir essa nogao de consciéncia em Merleau-Ponty nao sob urnaperspectiva idealista e cartesiana mas relacionada á consciéncia perceptiva, que semanifesta nesta relagao intrínseca entre o perceptual e o cultural em nossos corpos.

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Isto nos leva a conceber o corpo como elemento de conjugagao das enunciagoes danatureza e da cultura. Rompendo com um dualismo separatista do que venha sernatural-instintual, de um lado, e cultural-histórico de outro, teríamos que a primeiraconseqüéncia deste dispositivo germinativo em Merleau-Ponty é, ao contrario, "a rejeigaode dividir o homem em dois setores, no qual um se tornaría a natureza, e o outro, aconsciéncia" (Merleau-Ponty, 1942/1994, p. 196).Ou seja, rompendo com qualquer perspectiva ¡solada e recortada da natureza em geral,Merleau-Ponty reconhece que o espirito do homem "nao se trata de um espirito ¡solado.O espirito é nada ou é urna transformagao real e nao urna idéia do homem. Porque elenao é urna nova forma de ser, mas urna nova forma de unidade, ele nao pode repousarnele mesmo" (Bimbenet, 2004, p. 30, tradugao nossa).Isto nos leva a urna conformagao discursiva na qual a consciéncia perceptiva e o ato deconhecimento se entrelagam, o que nos levaría á seguinte composigao:

[...] Se é verdade que a consciéncia perceptiva seexperimenta, simultáneamente, como um ato deconhecimento e como um acontecimento corporal [...],também urna teoría da percepgao terminanecessariamente por efetuar a ultrapassagem daoposigao entre o espirito e a natureza (Bimbenet, 2004,p. 220, tradugao nossa).

É neste movimento enunciativo que, diferentemente de urna emergencia de forgasincidentes sobre corpos, de cunho bélico e provisorio, o caráter estruturante do corpo eda alma em Merleau-Ponty, tem um cunho germinante, pois evidencia a diferengamarcante de urna estrutura (comportamental e/ou ontológica) de determinado ser,visível a partir da maturagao de certos jogos de brotamentos, os quais se manifestam ese afirmam no mundo enquanto diferenga irredutível a apenas categorías racionáis, nocaso em questao, referente a um corpo originário-selvagem, dissociado de um corpohistórico-cultural.Isto nos leva a concordar com Bimbenet que considera que qualquer que seja o nomeque Merleau-Ponty Ihe dé - ser bruto, logos selvagem, expressao primordial, natureza -este campo designa "tudo o que de nossa experiencia nao possa ser anexado álinguagem e que, portanto, contem já a possibilidade da linguagem. Ou seja, que estaarqueología é inseparável, ao mesmo tempo, de urna teleología, se nos a entendamospela possibilidade para o conjunto deste campo de comportar um porvir de expressao"(Bimbenet, 2004, p. 220, tradugao nossa).O que temos em questao é urna expressividade difusa e imbricada do ser humano,embasada no corpo próprio, caracterizada por dois movimentos correlatos: "na diregaoda arché de urna natureza, mas também na diregao da té/os da razao" (Bimbenet, 2004,p. 220, tradugao nossa).Ou seja, Merleau-Ponty reinventa urna enunciagao diferenciada do corpo próprio, em suaconformagao originaria, na qual, como vimos, natureza e razao, corpo e espirito,arqueología da consciéncia perceptiva e teleología das razoes se constituemmutuamente, em urna conformagao que germina do próprio corpo enquanto presengaexistencial.Por sua vez, esta dinámica de enunciagoes, em seus efeitos sobre o que venha a ser acorporeidade, como vimos, é diferente em Foucault.Isto porque a enunciagao do corpo em Foucault é relacionada primordialmente a rupturase a descontinuidades dos tensos embates que arruinam o corpo, inerentes aos seusenredamentos pelas forgas, e em Merleau-Ponty, a sua enunciagao se refereprincipalmente a irrupturas e a germinagoes, de cunho deiscente.Desta maneira, consideramos que apenas a partir do reconhecimento destas diferengasarqueológicas, na maneira de constituigao enunciativa do corpo nestes dois autores, éque poderemos melhor compreender a fungao discursiva da corporeidade em cada urnadélas.É assim que podemos reconhecer que a tentativa de Foucault de submeter o corpogerminante de Merleau-Ponty á mesma configuragao discursiva do que denominamos de

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seu corpo enredado é urna forma de desconsiderar as singularidades da paisagemenunciativa características na fenomenología merleau-pontyana.Isto, devidamente dito por Foucault ou Deleuze, a partir do ocultamento das diferengasdestes arranjos epistémicos sobre o que venha a ser o corpo, só pode funcionar namedida em que a sua arqueogenealogia, ao invés de ser um instrumental diagnósticoflexível, passa a funcionar, neste caso específico, como urna ferramenta exclusivamenteforjada a partir de determinada pressuposigao sobre os corpos {em rede).Este pressuposto demonstra as especificidades de sua analítica a qual, enquantoperspectiva de enredamento, é eficaz quando direcionada para urna diagnose de cortes,no estudo dos jogos práticos-discursivos analisados na superficie e que muitas vezes,como no caso em questao, nao se imbricam com outras dizibilidades da corporeidade.Isto, a nosso ver, esvazia o caráter impactante das consideragoes poéticas econtundentes de Foucault, principalmente no que se refere á fenomenología de Merleau-Ponty já que suas críticas sobre os limites déla, só emergem quando referenciadosexclusivamente á concepgao de corpo enredado como única e, portanto, monótonamaneira de contextualizagao dos corpos.Este caráter monótono do corpo apenas enredado em Foucault nao diminuí a consistenciade sua extraordinaria obra que se desenvolve, decorrentemente, a partir deste regimeenunciativo do corpo, conforme apresentamos ao analisar sua arqueogenealogia.No entanto, como efeito colateral a esta maneira única de se aproximar dascorporeidades {em rede), o que poderíamos reconhecer como vivacidade e agudeza dascolocagoes de Foucault, parece-nos passar a se apresentar como urna refinada iraniasobre o que venha a ser o corpo originario em Merleau-Ponty, como recurso derradeirono encobrimento dos limites - inevitáveis ou nao, tema para futuros estudos - de suaprópria grade epistémica a respeito dos corpos em geral.

A Aplicacao das Análises do Corpo em Foucault e Merleau-Ponty na PsicologíaAcreditamos que este trabalho, ao posicionar históricamente a constituigao dos discursospsicológicos, seja sob a crítica de Foucault as ciencias humanas em geral, seja no que serefere aos ampios mecanismos discursivos de constituigao do corpo e da alma modernos,possa oferecer subsidios para o pesquisador da Psicología no sentido de localizar o seuposicionamento individual (na sua clínica, laboratorio, hospital, universidade einstituigoes em geral), no sentido de desenvolver urna estrategia de atuacao, tantoprática quanto teórica.Esta atitude do psicólogo ocorreria a partir da desnaturalizagao de seu discurso, seja noque se refere aos conceitos de normal e patológico dos individuos psicologizados, sejaquanto á ingenua concepgao de que, ao empregarmos termos rotineiros (como, porexemplo, referentes ao sujeito enquanto crianga, adolescente, velho), estamosabsolutamente nos relacionando a escalas evolutivas naturais do desenvolvimento, aoinvés de estarmos, como vimos, posicionando o individuo a um contexto sócio-históricode forgas, no qual tais nomenclaturas já estao impregnadas de historicidade e deinteresses políticos, no contexto histórico-combativo da própria afirmagao da Psicologíaenquanto ciencia.Isto nos leva a abranger este tipo de consideragao nao só a certos termos técnicosdesenvolvimentistas, mas também a certas concepgoes diversas, como as quecostumeiramente utilizamos em nosso grupo de pesquisa. Dentre elas: familia, individuo,sociedade. Ou certas conceituagoes mais instrumentáis como interacao, re/acao, dia/ogia,significacao, sentidos, a/teridade, papéis, etc.Todos estes conceitos, seja sob a genealogía de Foucault ou de Merleau-Ponty, exige queas situemos como criacoes culturáis.Isto nos remete a Merleau-Ponty que considera que "no homem, tudo é natural e tudo éfabricado", na medida em quenao há urna só palavra, urna só conduta que nao deva algo ao ser simplesmentebiológico - e que ao mesmo tempo nao se furte á simplicidade da vida animal, naodesvie as condutas vitáis de sua diregao, por urna especie de regu/agem e por um genio

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do equívoco que poderiam servir para definir o homem (Merleau-Ponty, 1945/1994, p.257, grifo nosso).É a partir desta intrínseca correlagao entre o natural e o cultural que podemos focalizar aquestao sobre as correlagoes do corpo entre estes dois autores, enredada ou brotada,conforme apresentamos neste trabalho. Este tipo de analítica nos levaría as seguintesindagagoes enquanto potencial instrumental metodológico: em outros contextos depesquisa, estaríamos abordando o corpo enquanto germínagao ou enredamento? Se asduas formas se encontram presentes em urna mesma discursividade, qual a suacombinagao? E, além disto, haveria outras formas de paisagens enunciativas do corpo eda alma, em outros filósofos, psicólogos e pesquisadores?Acreditamos que as recém-descritas paisagens enunciativas do corpo, ao articularemFilosofía e Psicología, podem propiciar um maior rigor dos estudos psicológicos, tanto doponto de vista epistémico como na construgao e emergencia de nossa percepgaoenquanto pesquisadores e psicólogos, em nossos contextos singulares de atuagao.

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Notas(1) Esse trabalho originou-se de urna parte da tese de doutorado: "Corpos sonhados-vividos: a questao do corpo em Foucault e Merleau-Ponty", de Fernando de AlmeidaSilveira e Reinaldo Furlan, em 2005, Departamento de Psicología e Educagao da FFCL,Ribeirao Preto - USP. Meus agradecimentos á Fapesp, pelo financiamento desse projetode Doutorado e aos professores Reinaldo Furlan, Maria Clotilde Rossetti Ferreira, EtienneBimbenet, Frédéric Gros, Marina Massimi, Jacqueline Carroy e Antonella Romano.(2) Destaca-se que o foco de nossa analítica se sitúa, principalmente, na denominadafase genealógica de Foucault. As outras fases, principalmente a denominada fase daestética da existencia, demandam um estudo á parte.

Nota sobre o AutorFernando de Almeida Silveira é advogado, psicólogo, Doutor em Psicología na área deFundamentos Históricos e Epistemológicos da Psicología. Departamento de Psicología eEducagao - USP - Ribeirao Preto. Pós-Doutor em Filosofía na área deEpistemología da Psicología - Departamento de Filosofía e Metodologíadas Ciencias - UFSCar - Sao Carlos. Professor Adjunto de Psicología eHumanismo, e de Ética da Universidade Federal de Sao Paulo - Campus Baixada Santista.Contatos: Enderego para correspondencia: Universidade Federal de Sao Paulo. CampusBaixada Santista. Avenida Almirante Saldanha da Gama, 88/89. Ponta da Praia - Santos -CEP 11030-400. Enderego eletrónico: [email protected]

Data de recebimento: 21/12/2006Data de aceite: 30/12/2007

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De mae para filha, o legado da exclusao social: umestudo de memorias autobiográficas

From mother to daughter, the legacy of social exclusión: a study ofautobiographical memories

Luciene Miguez-NaiffUniversidade Salgado de Oliveira

Celso Pereira de SáUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

Brasil

ResumoA presente pesquisa se propós a descrever e comparar as memorias autobiográficaspautadas em urna vivencia de pobreza e exclusao relatadas por 15 maes e 15 filhas. Asentrevistas foram submetidas a um procedimento de análise de conteúdo, através dacategorizagao das respostas as diferentes classes de questóes colocadas: lembrangas dainfancia, vida amorosa, balango da condigao social, esperangas e arrependimentos.Concluímos que as memorias autobiográficas de maes e filhas trazem sempre á tona avida de seu grupo social, seja nos relatos de urna infancia de violencia e trabalho, ouem urna vida atual de altos e baixos financeiros, recheada de situagóes de desempregoe de carencias materiais, além da vida amorosa de solidao. As esperangas saodirecionadas para a busca da conquista de seu espago na sociedade; através da forga devontade pessoal e de oportunidades externas.Palavras-chave: memoria autobiográfica; exclusao social; transmissao intergeracional.

AbstractThis study described and compared autobiographical memories framed by the livedexperience of poverty and exclusión as narrated by mothers and their daughters. Forthe interviews, an outline was prepared, designed to amplify the information,judgements and thinking ventured by the interviewees about their own condition associally excluded persons and triggered by the act of recalling and narrating their lifehistories. The lives of mothers and daughters follow similar courses, given that thedifficulties encountered by both display the same characteristics marked by theircondition as women in an underprivileged social environment. Autobiographicalmemories highlight the life of their social group, whether in accounts of childhoods ofviolence and work, or in their present lives of financial ups and downs, with situations ofunemployment and material wants. Their hopes are directed to the endeavour to maketheir way in society by virtue of individual will power and external opportunities.Keywords: autobiographical memory; social exclusión; inter-generational transmission.

IntroducaoO uso das perspectivas conceituais e teóricas da memoria social e do campo de estudode fontes oráis, além de contribuigóes da teoría das representagóes sociais, comosuportes para o presente estudo, exerce papel fundamental para se entender como ofenómeno da exclusao vem agindo ao longo da vida dos individuos, em suas práticassociais do presente, em suas lembrangas do passado e, por fim, em seus projetos defuturo.

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Criados e pensados em momentos e contextos diferentes, os conceitos de memoria social- e seu afim, memoria coletiva - e de representagóes sociais possuem semelhangas ecomplementaridades muito úteis para o estudo de aspectos do passado e do presente degrupos sociais (Sá, 2005; Roussiau & Bonardi, 2002). Nesta perspectiva, buscamos, ñasmemorias autobiográficas das muiheres responsaveis pela transmissao intergeracional nogrupo familiar, o conteúdo representacional socialmente compartilhado da exclusao,partindo do principio sugerido por Halbwachs (1925/1994) de que as lembrangasindividuáis estao intrínsecamente imbricadas com a memoria coletiva, porque déla fazemparte.Esse resgate da heranga simbólica transmitida de mae para filha é o que Vítale (2002)chama de "legados geracionais". Em pesquisa realizada com tres geragóes de muiheres,aquela autora encontrou tres tipos de legados deixados de geragao para geragao:legados de ordem, legados de solidariedade e legados de fé: "estes legados geracionaisrepresentam para estas muiheres as bases para a vida familiar" (p.93).

A feminizagao da pobreza ñas familias brasileirasO censo 2000 mostra o crescimento do modelo monoparental, cujo responsável familiar éa mulher, principalmente no inicio da vida dos filhos. No Rio de Janeiro, 27,7% daschangas de zero a seis anos estao em domicilios chefiados por muiheres. Nessa fase, aschangas precisam de urna infra-estrutura social e económica para se desenvolver deforma satisfatória. O dado preocupante que o estudo mostrou foi que, no Brasil, 60% daschangas nessa faixa etária vivem em domicilios chefiados por muiheres com rendimentomedio de no máximo dois salarios mínimos (IBGE, 2000). A feminizagao da pobreza vemaumentando progressivamente e atualmente coloca a figura da mulher como alvoestratégico de agóes de inclusao social. Esse conceito já é adotado mundialmente paradefinir essa particularidade dos estudos sobre pobreza, como salienta Novellino (2002,p.l):

O conceito "feminizagao da pobreza" representa aidéia de que as muiheres estao ficando mais pobresdo que os homens. De acordó com o HumanDevelopment Report 1995: a pobreza tem o rostode urna mulher - de 1,3 bilhóes de pessoas napobreza, 70% sao muiheres. A pauperizagao dasmuiheres tem sido relacionada a um aumento naproporgao de familias chefiadas por muiheres.Como consequéncia, os estudos sobre feminizagaoda pobreza tém se voltado, principalmente, paraanalisar as familias chefiadas por muiheres.

Wortmann (1987) define a familia de baixa renda como matrifocal, isto é, tem o homemcomo urna figura provisoria e temporaria. Essa estrutura familiar é básicamente formadapela mulher, seus filhos e seus parentes. A principal definigao da familia de baixa renda,feita pelo autor, assim se configura:

Unióes maritais consensuáis e transitoriasreconhecidas como legítimas pelo próprio gruposocial; legitimidade dos filhos de tais unióes noplano ideológico do grupo; unióes esporádicas comou sem co-residéncia socialmente aprovados;énfase maior nos lagos maes-filhos, comparadosaos lagos pais-filhos e aos lagos conjugáis; gruposdomésticos com chefia feminina, propriedade dacasa pela mulher; mae permanente como pontofocal do grupo doméstico e parceiros masculinoscirculantes; dependencia com relagao a urna redede parentesco articulada pelas muiheres;importancia dessa rede para o equilibrio da unidade

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Miguez-Naiff, L. & Sá, C. P. (2007). De mae para filha, o legado da exclusao social: um estudo dememorias autobiográficas. Memorándum, 13, 88-99. Retirado em / / , da World Wide gWeb http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al3/migueznaiffsa01.pdf

de mae-filho; viés matrilateral da rede deparentesco (p. 299).

A familia reproduz nela mesma a tensao entre o exercício moderno do individualismo e anecessidade de pertencimento (Favart-Jardon, 2002). Esta tensao, acrescida daimportancia que a familia tem na formagao das representagoes e da memoria dosindividuos, coloca esse espago como privilegiado para estudos de relagoes interpessoais edo processo de transmissao intergeracional das vivencias compartilhadas.

Memorias sociais e autobiográficasO conceito de memoria social, da forma como vem sendo apropriado atualmente, tembásicamente suas origens nos pressupostos originalmente formulados pelo sociólogofrancés Maurice Halbwachs e pelo psicólogo inglés Frederic C. Bartlett (Sá, 2005; Sá,Vala & Móller, 1996).Influenciado pela sociología de Durkheim, as idéias de Halbwachs valorizavam osaspectos coletivos de conceitos até entao entendidos como básicamente individuáis,como a consciéncia e a representagao (Namer, 1987). Tanto Halbwachs quanto Durkheimacreditavam que o comportamento individual era regido a partir de leis de causalidadesocial. Assim, a idéia da existencia de urna liberdade pessoal estava limitada, na suagénese, por urna especie de determinismo coletivo. Enfatizando a impossibilidade de sepensar a memoria como urna estrutura mental individual, Halbwachs (1925/1994,1950/1990) afirma que os individuos lembram dentro de um grupo social, usamreferencias determinadas pela sociedade, tém a tendencia a utilizar as memorias deoutras pessoas para reforgar suas próprias, e se baseiam em urna estrutura delinguagem e comunicagao na construgao de suas lembrangas.Isto nao quer dizer que, por serem todas memorias coletivas, as pessoas lembremsempre a mesma coisa. Na verdade, segundo Halbwachs, as lembrangas individuáis saopontos de vistas de urna situagao vivida coletivamente. Varios desses pontos de vista,vividos em grupos diferentes, respondem pelo aspecto individual da memoria. No bojodesta concepgao, a memoria é social porque está apoiada em "quadros sociais" dereferencia que estruturam nossa memoria e a inserem na memoria da coletividade a quepertencemos. Sao eles: monumentos, patrimonio arquitetónico, paisagens, datas,personagens históricos, tradigoes e costumes, regras de interagao, folclore e música, eaté mesmo tradigoes culinarias.No campo da psicología social, um dos principáis teóricos foi Frederic C. Bartlettfortemente influenciado pela escola inglesa de antropología, cujo trabalho enfatizou oaspecto construtivo da memoria. O conceito talvez mais importante inaugurado porBartlett no ámbito da memoria social foi o de "convencionalizagao social" (Bartlett,1932/1995). A convencionalizagao social se refere aos processos pelos quais um sistemacultural ou um de seus elementos (um texto, urna imagem, urna idéia) é transformadoquando transferido de um grupo para o outro, até que toma urna forma distinta, estávele aceita pelo grupo receptor e ajustada as técnicas e convengoes estabelecidas há muitotempo dentro do grupo (Jodelet, 1999).

Novas possibilidades no estudo da memoria social, em termos do seu contudo e vém seapresentando atualmente com a aproximagao teórico-metodológica entre a teoría dasrepresentagoes sociais, inaugurada por Serge Moscovia (1984) entre 1961 e 1976, asperspectivas teóricas de Halbwachs quanto á memoria coletiva e as teorizagoes acerca daconvencionalizagao social de Bartllet. Um ponto comum entre essas tres perspectivas é aimportancia que elas atribuem aos fatores sociais na construgao e no funcionamento dopensamento e da memoria em sociedade.Podemos dizer que existe urna relagao de complementaridade entre esses dois camposde estudo. Se, por um lado, as representagoes sociais vém em busca de tornar o naofamiliar em familiar por meio da comunicagao entre os individuos e grupos sociais no dia-a-dia e, portanto, no presente, é no passado que os grupos encontram os elementos queorganizam e dao sentido a essas representagoes. A memoria, por sua vez, é constituidade representagoes sociais do passado, que se apresentam sob a forma de lembrangas e

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reminiscencias (Jedlowski, 1997). Assim, tanto a memoria integra o conteudorepresentacional quanto as representagoes sociais fazem parte das lembrangas. Amemoria se alimenta de lembrangas do passado, mas é configurada pelo presente e portudo o que o influencia. Além disso, as representagoes sociais atuais podem influir nadeterminagao do conteudo que as lembrangas terao no futuro, pois, segundo Roussiau eBonardi (2002, p. 36), "as representagoes sociais sao guias ou filtros no momento emque o individuo tiver de fazer escolhas de informagoes e conhecimentos que seraoarmazenados".Os conceitos de memoria social e de representagoes sociais podem ser vistos comoconceitos que se sobrepoem. Pertencendo aos registros do pensamento social, arepresentagao social e a memoria sao processos que se somam no entendimento doindividuo no que se refere á sua qualidade de ser social, ou seja, á sua identidade social.A relagao entre memoria e identidade é sentida tanto no plano individual, permitindo umsentimento de continuidade, quanto no plano coletivo, favorecendo um sentimento depertencimento aos membros do grupo (Jodelet, 1999).Poderemos ter reconstrugoes diferentes do nosso passado em fungao da identidade socialque assumimos no momento de lembrar. Portanto, ao falar de memoria é importanterelacioná-la ao grupo social no qual a pessoa está inserida, já que a memoria está aservigo da identidade do grupo e tende sempre a reforgá-la. Segundo Meihy (1996, p.96):

A memoria social é o conjunto das manifestagoes degrupos que guardam visoes articuladas sobre si esobre o mundo. A base cultural de algumascomunidades explica a adesao de setores sobreprincipios gerais, éticos ou políticos que ampiascarnadas das populagoes organizam.

Memoria é trabalho de reconstrugao e depende da convivencia das pessoas com osgrupos de referencia a que estao expostas (Bosi, 2003). Por isso, buscamos ñasmemorias da vida pessoal de maes e filhas o conteudo social e compartilhado daexclusao. Nesse sentido, incorporamos ao quadro de referencia teórico-conceitual destapesquisa urna corrente no estudo da memoria social que permite apreender o social portras das narrativas individuáis: a memoria autobiográfica.As pesquisas em memoria autobiográfica vém sendo desenvolvidas pela correntenaturalista ou observacional da psicología cognitiva americana, e se orientam para ainvestigagao dos aspectos estruturais e de organizagao das memorias pessoais.Resultados do estudo da memoria autobiográfica tém corroborado as proposigoescomuns a Halbwachs e a Bartlett quanto a um entretecimento das experiencias vividascom as condigoes sociais de vida das pessoas.Como um dos mais atuantes pesquisadores de memoria autobiográfica, Conway (1995)identifica tres níveis de conhecimento autobiográfico, que se organizam para dar forma álembranga do jeito que conhecemos: (a) períodos de vida - largos períodos de tempo,típicamente medidos em anos, que representam as metas, planos e temas do Eu,durante períodos particulares; (b) eventos gerais - registros de eventos extensos erepetidos que ocorrem durante períodos de semanas e meses; (c) eventos específicos -lembrangas de imagens, sensagoes, odores e outras características sensório-perceptuaisassociadas a urna experiencia. A memoria de eventos gerais contém conhecimento quepode ser usado para acessar detalhes sensório-perceptuais dos conhecimentos deeventos específicos (CEE). Através dessa organizagao hierárquica das lembrangas, oconhecimento contido nos "períodos de vida" permita o acesso aos "eventos gerais" e oconhecimento destes leve, por sua vez, ao acesso aos CEEOs níveis de conhecimento autobiográfico sao representados em estruturas deconhecimento na memoria de longo prazo e sao organizados em termos de conhecimentotemático e temporal. A memoria autobiográfica, segundo Conway (1998) possuiinformagoes sobre o individuo e suas experiencias pessoais; no entanto, a maioria doseventos em nossas vidas sao rotineiros e sao fundidos em urna memoria genérica quecontém os elementos comuns da experiencia.

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Conway (1998) também salienta a importancia de se observar a identidade geracionalnos estudos de memoria autobiográfica, já que membros de urna mesma coortegeracional compartilham experiencias e conhecimentos comuns:

Os problemas existenciais histórico-sociais enfrentadospor urna coorte geracional e a conceitualizagao destesproblemas pelos membros individuáis da coorteconduzem á construgao de planos e metas que saosimilares entre os individuos de urna coorte (p. 60).

Nesta perspectiva, os membros de urna coorte geracional compartilham suasexperiencias e conhecimentos comuns na memoria autobiográfica e semántica. Aspesquisas realizadas com esse enfoque determinam o final da adolescencia e o comegoda vida adulta como o período de formagáo da identidade geracional. Durante a formagáodo "Eu" estável, que normalmente acontece no período de transigáo entre a infancia e avida adulta, o sujeito tende a agrupar as memorias mais importantes que iráo influenciarsua identidade. Essa característica da memoria autobiográfica é chamada de boom dereminiscencia. No comego da vida adulta, o individuo se identifica como membro de umgrupo social e incorpora seu papel nesse grupo; mais tarde, por volta dos 35 anos, osujeito tem condigoes de fazer urna narrativa coerente de sua vida e as lembrangas maisvividas e em maior número serao as lembrangas do boom.Segundo Echabe e Castro (1998), existe urna relagao estreita entre memoria, identidadesocial e práticas sociais. Urna das hipóteses importantes a ser considerada na presentepesquisa é a formagáo de urna identidade social pelo grupo de sujeitos, a partir davivencia de situagoes semelhantes e da reconstrugao de sua memoria O passado, assimcomo as vivencias de cada um, sao identitários e compoem o que chamamos do "Eu". Osmembros de grupos sociais partilham momentos e situagoes comuns e suas memoriassao, portanto, sociais; no entanto, existe urna dimensao idiossincrásica defendida peloindividuo ao trazer seu passado á tona. A sensagao de ser dono de seu próprio passadoconfere identidade ao "Eu" presente, sem que isso negué a possibilidade dosparticipantes de um grupo social terem similaridades no que lembram e principalmentecomo lembram.A idéia da transmissao intergeracional de padroes de comportamento é amplamenteestudada e diz respeito ao que se passa entre as geragoes (Jedlowski, 2001). Aofalarmos sobre isso, normalmente nos remetemos á cultura de urna sociedade e á suahistoria, mas existem situagoes que podem ser estudadas em urna dimensao microssocialcomo na familia. A familia é o primeiro e menor núcleo social a que um individuo estáexposto, e, portanto, o lugar privilegiado de absorgao dos valores, idéias, percepgoes ememorias do grupo social do qual faz parte. A memoria familiar é a memoria de cadamembro e também de seu conjunto. Estudar a memoria na familia é urna forma devisualizar exatamente o que Halbwachs quer dizer com a dimensao social que a memoriaapresenta (Favart-Jardon, 2002). Segunda a autora, "cada memoria familiar individual éplural e se estende tanto nos registros individuáis quanto coletivos" (p.312).A memoria, ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros,reforga os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais. Um dos aspectosmais importantes da teoría de Halbwachs é a importancia atribuida á linguagem e ácomunicagao entre os grupos na formagáo da memoria social ou intersubjetiva comodepoem Fentress e Wickham (1992, p.8):

Halbwachs tinha por certo razao ao afirmar que osgrupos sociais constroem as suas próprias imagensdo mundo estabelecendo urna versao acordada dopassado e ao sublinhar que estas versoes seestabelecem gragas á comunicagao, nao por via dasrecordagoes pessoais.

A linguagem é a maneira pela qual a memoria se expressa; entender a narrativa podedar pistas bastante importantes sobre como a memoria está organizada e como ela secoloca no contexto de interagao que exigiu seu resgate. Dependendo do contexto, anarrativa e, conseqüentemente, a memoria serao reorganizadas. Portanto, as lembrangas

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trazem, além dos conhecimentos autobiográficos dos acontecimentos em si, oconhecimento semántico relacionado ao ambiente social dos individuos (Conway, 1998).A memoria é entendida como um dos importantes fatores responsáveis pela transmissáogeracional. Ñas transmissoes familiares, a expectativa criada entre a geragao mais velhae a mais nova se reflete na memoria dessa familia e no modo pelo qual essa memoria vaiser transmitida (Favart-Jardon, 2002). A familia é o local mais identitário para o sujeito,é onde ele se define, segundo Bosi (2003), é o lugar onde o individuo é mais fortementedestinado.A forma de, na presente pesquisa, as mulheres entrevistadas reviverem e reverem suashistorias pela oralidade dá conta de um material rico de acontecimentos autobiográficos,que na maioria das vezes nao está organizado em forma de eventos específicos quepoderiam, por exemplo, estar relacionados a fatos históricos ou políticos. A memoriaautobiográfica do grupo estudado está mais relacionada aos períodos de vida extensosque trazem á tona o cotidiano, e as situagoes relacionadas ao que Bosi (2003) chama degrandes marcos da memoria tais como casamento, nascimento, morte de entes queridos,primeiro filho, etc.

MétodoConsistiu o objetivo da presente pesquisa em descrever e comparar a formagao damemoria autobiográfica pautada em urna vivencia de pobreza e exclusao, a partir daanálise dos conhecimentos autobiográficos que compoem os períodos de vida dasmulheres pesquisadas. Entendendo que a formagao das familias de baixa renda tem amulher/mae como componente principal e mais importante na manutengao dos vínculosfamiliares, estas memorias foram investigadas junto a mulheres e suas filhas. Alémdisso, foram verificadas as práticas de transmissáo intergeracional que revelavamaspectos da dimensao psicossocial de perpetuagao das condigoes sociais vividas pelossujeitos.O recorte de género aqui adotado decorre das observagoes previas da natureza dasfamilias excluidas evidenciadas, nao apenas em um estudo exploratorio previo querealizamos, mas também em diversas pesquisas desenvolvidas nesse contexto, quemostram, sistemáticamente, as familias de classes mais pobres sendo formadas, em suaestrutura básica, por mulheres e seus filhos, aos quais se acrescentam eventualmentecompanheiros e outros agregados (Salem, 1981; Santos, 1978; Woortmann, 1987;Rocha-Coutinho, 1994). Essas mulheres sao, na maioria das vezes, as provedorasfinanceiras e responsáveis pela manutengao do grupo familiar.Nossas colaboradoras compreenderam um total de trinta mulheres que viviam na cidadedo Rio de Janeiro, divididas em dois grupos de maes e filhas: (a) um grupo principal de15 mulheres com idades entre 35 e 57 anos, moradoras de favelas ou invasoes; (b) umgrupo secundario de 15 filhas das mulheres do grupo principal, com idades a partir dos17 anos. As mulheres que compunham o grupo das filhas também eram maes.Acompanhamos aqui a estrategia delineada por Rocha-Coutinho (1994), que, em suapesquisa sobre o universo feminino, salienta a importancia de poder resgatar as falas demaes e filhas submetidas á influencia de discursos diferentes e muitas vezescontraditórios:

Preferimos fazer uso de pares de maes e filhas a fimde, ao termos possibilidade de confrontar osdepoimentos, melhor podermos observar asrepresentagoes ñas filhas do tipo de autoridadeutilizado em sua casa e das expectativas de suasmaes em relagao ao papel a ser desempenhado e áposigao a ser por elas ocupada na sociedade quandoadultas (p.164).

O recorte de idade do grupo principal de colaboradoras seguiu a orientagao de Conway(1998), que argumenta ser a partir dos 35 anos que as lembrangas da etapa da vidaentre 12 e 21 anos - isto é, o "boom" de reminiscencias - ficam mais nítidas. Além

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disso, a partir de 35 anos o individuo é capaz de desenvolver urna narrativa de vida,organizando sua memoria em torno de um "eu" mais estável.Coleta e Ana Use dos dadosEntrevistas semidiretivas, conduzidas segundo um roteiro previamente elaborado, foramrealizadas ñas residencias das colaboradoras e, com a autorizagao destas, gravadas. Asentrevistas foram transcritas e submetidas a um processo de análise de conteúdo, apartir das cinco grandes áreas temáticas em que se organizava o próprio roteiro: (a) Vidaatual; (b) Infancia; (c) Vida amorosa; (d) Condigao social; (e) Arrependimentos eesperangas.As respostas a cada questao foram submetidas a um processo de categorizagao que fezemergir as palavras ou sentengas que simbolizavam a forga expressiva dosacontecimentos e opinioes mais importantes. A categorizagao levou em conta arelevancia que o tema apresentado tinha em cada questao e também no conjunto daslembrangas. As colaboradoras foram tomados como "unidades de enumeragao", de modoque nao importavam quantas "unidades de registro" (falas) cada um deles tivesse emurna dada categoría, mas apenas a presenga ou ausencia daquele tipo de rememoragao(categoría).As categorías evidenciadas através do tratamento quantitativo mínimo ácima descritoforam objeto de urna análise qualitativa considerando o inteiro conjunto de historias quenossas colaboradoras nos proporcionaram.

ResultadosOs resultados globais sao apresentados sob a forma de textos interpretativos que seorganizam em torno de cada urna das cinco grandes áreas temáticas que representamos marcos de vida que as colaboradoras apresentaram como norteadores de suasnarrativas, quais sejam: lembrangas da infancia, vida amorosa, balango da condigaosocial, esperangas e arrependimentos.Lembrangas da vidaAs maes trabalharam na infancia e, por isso, associam poucas lembrangas boas a essafase, em que as dificuldades financeiras foram marcantes. Tiveram urna mae rígida, mastrabalhadora, e muitas perderam a mae cedo por problemas de saúde. O pai nao suscitaboas lembrangas, sempre calado ou ausente. Poucas se lembram de terem brincado ouse divertido e percebem urna perda significativa na qualidade da vivencia do que significaser crianga. Acham que deixaram de ser crianga ainda cedo, transformando-sedefinitivamente em adultas quando comegaram a ter os seus filhos.As filhas brincaram e se divertiram mais que suas maes e nao trabalharam tanto nainfancia. Lembram de urna vida familiar violenta e de urna mae rígida e muitas vezesruim. Resgatam boas lembrangas da escola e acham que viraram adultas quandoperderam a inocencia, ou seja, no momento que entraram em contato, por algummotivo, com as vivencias do mundo adulto (vivencia sexual, mundo do trabalho,violencia).As maes estudaram até a quinta serie e, portanto, tém no máximo cinco anos de estudo;muitas sao o que chamamos de analfabetas funcionáis, ou seja, passaram pelos bancosda escola durante alguns anos, mas nao dominam a escrita e a leitura. Estaodesempregadas e sem condigoes de voltar ao mercado de trabalho, antes ocupado, namaioria das vezes, com o trabalho doméstico remunerado. A dificuldade de reinsergao nomercado tem varias causas, sendo as principáis: acumulo de demandas em casa, comocuidado de netos, filhos e parentes doentes e os problemas de saúde incapacitantes. Onúmero de filhos é elevado, com relato de pouca ou nenhuma utilizagao de métodoscontraceptivos durante a vida sexual ativa. Suas casas estao precisando de reparosestruturais e movéis e isso causa desconforto e sofrimento no dia-a-dia. Pouco sedivertem, a nao ser assistindo á televisao.As filhas tém nivel educacional melhor do que as maes, mas também se encontramdeficitarias para serem inseridas no mercado de trabalho. O oficio de doméstica, além depouco valorizado, nao se apresenta como opgao para a maioria das entrevistadas, querelatam nao saber cuidar da casa. O aumento da escolaridade e o nao aparecimento de

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lembrangas ligadas ao trabalho na infancia, aliados a boas lembrangas de brincadeiras,sugerem que as filhas puderam ser changas e nao foram desde cedo "preparadas" paraserem donas-de-casa como suas maes. As diversoes atuais ficam por conta da televisaoe dos filhos. As filhas tém poucos filhos, mas também relatam dificuldades em utilizarmétodos contraceptivos e, principalmente, em planejarem sua gravidez.Vida amorosaAs maes nao apresentam boas lembrangas da vida amorosa, que revelam ser fonte desofrimento e solidao, e nao tiveram com suas maes uma relagao de diálogo sobrecasamento e sexo. Alegam que eram inocentes e sonhadoras quando investiram na vidaa dois e que seus maridos nao corresponderam a suas expectativas. Esse parceiro, alémde violento e ausente, trocava de parceira com muita facilidade e nao ajudava namanutengao financeira como se esperava e nem na criagao dos filhos.As filhas vivenciam uma vida a dois com mais esperanga e, por serem ainda muito novas,acreditam que nao terao o destino de desilusao experimentado por suas maes.Balango da condigao socialA vida é mais difícil pela falta de trabalho e dinheiro para as maes. A dificuldade deinsergao no mercado de trabalho, assim como a baixa escolaridade, sao, em parte,responsáveis por essa percepgao. A vida da mulher é mais difícil do que a do homempelas responsabilidades assumidas na casa e na criagao dos filhos; no entanto, emrelagao ao mercado de trabalho, acreditam que está difícil para todos. A percepgao devida boa é associada a paz, saúde e dinheiro, visao compartilhada pela sociedade comoum todo, mas que, no grupo das maes, configura-se como desejos reprimidos por umavida de privagoes e sofrimentos. Algumas acreditam que suas maes viveram em umtempo melhor para as muiheres e que, portanto, podem ter tido uma vida maisagradável. Essa conclusao nao é calcada em relatos ou lembranga de vivencias dainfancia, mas na visao idealizada do tempo em que as muiheres eram sustentadas peloshomens e o mundo era melhor, porque era menos violento e com mais oportunidades.As filhas acham que a vida é mais difícil principalmente pela falta de dinheiro e tambémde oportunidades de trabalho. Tém clareza de que a vida das suas maes foi e é pior queas suas próprias, principalmente por terem ainda diante de si um futuro para mudar seudestino. Acreditam que a mulher está numa situagao desprivilegiada em relagao aohomem, principalmente no que diz respeito á responsabilidade de ter de assumir osfilhos.Esperanzas e arrependimentosAs maes tém na forga de vontade sua maior esperanga para reverter o quadro de miseriaem que se encontram; o importante, dizem, é nao esmorecer diante das dificuldades econtinuar enfrentado as adversidades. Tém no local de moradia a maior fonte de desejode mudanga, por ser esse espago violento e nao garantir seguranga para seus filhos,além da falta de infra-estrutura e de servigos básicos acessíveis. Acreditam que, setivessem estudado mais no passado, poderiam estar vivendo um presente menos difícil epensam ser esse o melhor conselho que podem dar a seus filhos, em quem hojedepositam suas esperangas de futuro. Acham que driblar as dificuldades associadas auma vida de exclusao social passada por geragoes envolve, além da forga de vontade,um pouco de ajuda externa, ou seja, de oportunidades.As filhas compartilham com as maes a idéia de que a forga de vontade pode serdeterminante na discriminagao entre aqueles que conseguem progredir financeiramente eaqueles que nao conseguem. Sonham com uma oportunidade de insergao no mercado detrabalho, para mudarem de status social e poderem sair do local de moradia. Aescolaridade também é um fator importante para ajudar na obtengao de um empregomelhor em qualidade e remuneragao.

Discussao e conclusaoFalar de exclusao social como fenómeno socioeconómico nos remete, muitas vezes, aestudos envolvendo estatísticas, índices oficiáis, tabelas, gráficos e todo o instrumentalnecessário para guiar macro-políticas e pensar solugoes viáveis para o problema no país.No presente estudo, focalizamos os aspectos subjetivos da vivencia da exclusao, como

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ela afeta as práticas sociais, as historias de vida e as memorias autobiográficas de nossascolaboradoras. A exclusao é mais do que o resultado de urna situagao socioeconómicadesfavorável, é urna condigao que define quem a ela está submetido e envolvesentimentos, cognigóes, tomadas de decisao e comportamentos. Ouvindo nossascolaboradoras, pretendemos nos aproximar desse conhecimento e permitir a elas odesvelar dos significados ocultos e ocultados de suas vivencias. Nosso encontró foi com avida que pulsa por tras do que conhecemos como exclusao social. Esta historia é délas esomente elas podem contá-la, como argumenta Takashima (1994, p.91):

Ñas familias, as pessoas devem se reapropriar desuas capacidades e criatividades em elaborar eescrever sua trajetória histórica tornando-se,mesmo em meio a suas fragilidades, necessidadesde apoio e assisténcia, em sujeitos de direito a urnacidadania; portanto, meio e fim de um mesmoprocesso.

Cada lembranga traz consigo conteúdos do passado e da vivencia dos fatos lembrados,mas também a lógica do presente, com todas as suas interferencias, como aspectosculturáis, socioeconómicos, representagóes sociais, crengas e percepgóes, queestruturaram o passado trazido á tona por seu porta voz, o sujeito que lembra. Apobreza e a vivencia continua dessa realidade levam a um empobrecimento da memoriasocial, pela falta de espagos socialmente propicios ao compartilhar desse passado.Halbwachs (1990) nos mostra que características como linguagem restrita, carencia deinformagóes sobre fatos da vida nacional, distanciamento de referencias institucionaislevam a urna precariedade dos "marcos sociais da memoria".Como argumenta Conway (1998), depois dos 35 anos de idade o individuo é capaz deolhar para tras e organizar sua historia em torno da identidade geracional que foiformada no comego da vida adulta, período em que ocorre a identificagao com o gruposocial e o sentimento de pertenga a esse grupo. Ñas historias de nossas colaboradoras,percebemos que as maes conseguem resgatar memorias mais bem organizadas emperíodos de vida, mais ampliadas e estruturadas entre si. As filhas organizam seusrelatos autobiográficos em memorias episódicas, e por estarem ainda na idade deconstrugao de sua identidade geracional, trazem conteúdos mais ligados á infancia, aindapróxima do seu dia-a-dia.As historias das maes e das filhas entrevistadas guardam semelhangas entre si,conseqüéncia da intergeracionalidade da vivencia da exclusao, bem como disparidades,em consonancia com o tempo social e histórico do qual cada urna délas faz parte.Transformagoes importantes se deram ñas últimas décadas no que diz respeito as nogoesde ser mulher, das leis que protegem as criangas e os adolescentes, da valorizagao daescola, da vulgarizagao de informagóes sobre a psicología do desenvolvimento, entreoutras. Essas transformagoes geraram mudangas ñas representagóes sociais e ñaspráticas dos diversos grupos sociais que compóem a sociedade em que vivemos. Naoobstante, no caso das nossas entrevistadas, apesar de encontrarmos diferengas entre asrealidades vividas pelas maes e pelas filhas, as semelhangas e a repetigao sao as marcasfortes e determinantes do futuro que se descortina para as novas geragoes.No campo das representagóes sociais, Vala (2000) argumenta que a imersao em ummesmo contexto de relagóes e práticas sociais, suscita representagóes semelhantes, fatoque acontece também com a memoria social. Segundo Halbwachs (1994), a vivencia emum mesmo grupo social afetaria a forma de organizar e selecionar as memorias, pois olembrar é social. As mulheres participantes desta pesquisa tém como principalcaracterística a falta de perspectiva de ascensao social, marca indelével da condigao demiserabilidade e que interfere diretamente em suas cognigoes e estrategias desobrevivencia. A emergencia de um presente de muitas carencias leva tanto ao abandonode projetos de futuro quanto á dificuldade em organizar memorias e lembrangas dopassado. Encontramos ñas falas das entrevistadas esperangas e sonhos que carecem decomportamentos e planos de metas voltados para a sua efetiva realizagao, apesar deterem claro o que querem e o que precisam. Isso indica urna incongruencia entre o

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Miguez-Naiff, L. & Sá, C. P. (2007). De mae para filha, o legado da exclusao social: um estudo dememorias autobiográficas. Memorándum, 13, 88-99. Retirado em / / , da World Wide 07Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al3/migueznaiffsa01.pdf

pensar e o agir, provavelmente fruto de urna vivencia que nao apresenta saídasdisponíveis e alcangáveis para a exclusao social.A renda é sem dúvida um fator determinante na definigao de um miserável, mas osestudos sobre exclusao apontam a educagao como um meio importante dereversibilidade dessa situagao. Essa consciéncia da importancia da educagao como meiode ascensao social esteve muito presente ñas falas das colaboradoras, no entanto aescola nao faz parte das principáis escolhas que elas fizeram nos últimos anos em suasvidas. Isto pode estar indicando urna serie de variáveis que interferem na permanenciados mais pobres na escola, dentre as quais se encontram: inadequagao da escola paralidar com a pobreza, fato que geraria a sistemática evasao escolar nesse grupo social;necessidade de geragao de renda ¡mediata e, portanto, falta de tempo para ir á escola;gravidez precoce; vida muito presa as necessidades do presente, sem compromisso comos ganhos futuros que a promessa da escolaridade poderia oferecer.Concluímos que as vidas das maes e das filhas seguem trajetórias semelhantes, dadoque as dificuldades de ambas apresentam as mesmas características marcadas por suacondigao de mulheres em um meio social desprivilegiado. Mesmo vivendo diferengasgeracionais, algumas situagoes sao pregnantes em ambas as historias de vida. Suasmemorias autobiográficas trazem sempre á tona a vida de seu grupo social, seja nosrelatos de urna infancia de violencia e trabalho, ou em urna vida atual de altos e baixosfinanceiros, recheada de situagoes de desemprego e de carencias materiais, além da vidaamorosa de solidao, sentindo-se vítimas da armadilha de seus próprios sonhos de urnavida feliz ao lado do companheiro. As esperangas sao direcionadas para a busca daconquista de seu espago na sociedade; nao pedem nada de graga, nao contam com asorte, pedem apenas oportunidade para "irem á luta" atrás de seus sonhos. Enfim, tudoisso reproduz o cotidiano das mulheres de seu grupo social.

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Notas sobre os autoresLuciene Alves Miguez Naiff - Doutora em psicología social pela Universidade do Estado doRio de Janeiro. Professora titular do Programa de pos graduagao stricto sensu empsicología social da Universidade Salgado de Oliveira, pesquisadora do CentroInternacional de Pesquisas sobre a Infancia da Pontificia Universidade Católica do Rio deJaneiro. Enderegos para contato: Rúa Conselheiro Olegario 34/103 Maracaná. Rio deJaneiro - e-mail - [email protected]

Celso Pereira De Sá - Professor Doutor Titular da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. Professor do Programa de pos graduagao stricto sensu em psicología social daUERJ. Enderegos para contato _ Rúa Sao Francisco Xavier, UERJ -Rio de Janeiro - e-mail- sá[email protected]

Data de recebimento: 23/03/2006Data de aceite: 30/12/2007

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Historia do movimento estudantil na psicología: leiturase reflexoes acerca do ENEP (Encontró Nacional dos

Estudantes de Psicología)

Psychology student activism history: reflections about the ENEP (PsychologyStudents' National Meeting)

Marcelo Afonso RibeiroInstituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo

Brasil

ResumoVisa a reconstrugáo da historia e memoria do ENEP (Encontró Nacional dos Estudantes dePsicología), com o intuito de analisar a dinámica de funcionamento do movimentoestudantil na Psicología e verificar sua importancia para a própria Psicología. Enquantoum movimento específico, inserido nos movimentos estudantis e sociais, se constituí emobjeto de estudo privilegiado, no sentido do resgate da historia e das interrelagoes entresaber psicológico, identidades culturáis, comunidade psi e seu papel político. Utiliza aanálise de documentos escritos e de depoimentos de pessoas que viveram o movimentono período entre 1960 e 1990. Tem como eixo norteador a microesfera do ENEP e amacroesfera dos movimentos sociais e estudantis. Concluí que o movimento estudantilna Psicología carece de urna maior organizagáo, continuidade e legado histórico, muitasvezes se tornando um fim em si mesmo, mas que o ENEP constituí importante espago deinfluencia na formagao de futuros psicólogos.

Palavras-chave: movimento estudantil; movimentos sociais; historia da psicología;características do estudante.

AbstractThis study aims at the history's reconstruction of the ENEP (Psychology Students'National Meeting) with the purpose of analyzing the psychology student activismdynamics and points out its importance for psychology itself. As a specific movementinside the social movements and student activism, it is a privileged study's object,whereas establishes the history and the relations between Psychology's knowledge,cultural identities, "psi" community and its political role. Uses the analysis of writingdocuments and the testimonies' gathered from those who lived the movement in theperiod between the 60's and the 90's. The guideline is the microcosm of ENEP and themacrocosm from the social movements and the student activism. Findings demónstratethat the Psychology student activism requests more organization, more continuity andmore history legacy, and sometimes has a meaning only for its own, although the ENEPis configured as a very important influence for the future psychologist's development.

Keywords: student activism; social movements; history of psychology; studentcharacteristics.

IntroducaoO presente artigo é urna síntese das principáis contribuigoes que a dissertagao demestrado "ENEP (Encontró Nacional dos Estudantes de Psicología) - historia e memoriade um movimento" trouxe para o campo da Historia da Psicología através dos quatroeixos de análise propostos no próprio título: ENEP, historia, memoria e movimento.Quatro questoes se colocam, quatro eixos foram propostos, algumas consideragoes sefazem necessárias (1).

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Por que o ENEP com eixo condutor da pesquisa?A Historia da Psicología no Brasil nos remete ao longínquo período colonial, no qual jáexistia o interesse pelo estudo da subjetividade e do comportamento no ámbito dacultura brasileira. Atravessando os sáculos, o interesse pela psicología e seus fenómenosfoi crescendo e se difundindo, chegando no sáculo XIX as Instituigóes de Ensinobrasileiras, para no sáculo seguinte, mais precisamente em 1934, surgirem os primeiroscursos universitarios de Psicología (Massimi, 1990), que culminaram com aregulamentagao da profissao de psicólogo pela Lei 4119 de 27 de agosto de 1962 (Meló,1983). Em seu texto de 1975, Angelini dizia:

O mencionado diploma legal que regulamentou aprofissao em nosso país, nao surgiu por acaso, mas foiresultante de um movimento de varios anos por partede profissionais que se empenharam perante o PoderExecutivo e Legislativo através de associagóes dePsicología existentes na década de 50, especialmenteda Associagao Brasileira de Psicólogos, da AssociagaoBrasileira de Psicotécnica, hoje Associagao Brasileira dePsicología Aplicada e da Sociedade de Psicología de SaoPaulo, bem como do apoio das entao Cátedras dePsicología e Psicología Educacional das universidadesoficiáis, principalmente de Sao Paulo e Rio de Janeiro(p.32).

Nesse contexto surgiram também o Sindicato dos Psicólogos, os Conselhos Federal eRegional de Psicología, regulamentados pela Lei 5766 de 20 de novembro de 1971 (VanKolck, 1975) e também um movimento de estudantes chamado de ENEPsi, precursor doatual ENEP (Encontró Nacional dos Estudantes de Psicología).O ENEPsi acabou com a repressáo da ditadura militar, sendo totalmente inviabilizado apartir do Decreto - Lei 477 de 26 de fevereiro de 1969, "... que coibia toda e qualquermanifestagáo política ou de protestos no interior dos estabelecimentos de ensino públicosou particulares" (Sanfelice, 1986, p.74), o que incluía qualquer encontró organizado porestudantes.O ENEPsi retornou a partir de 1976, com o nome de ENEP, por iniciativa de algunsestudantes e se inspirando nos ENEs (Encontros Nacionais de Estudantes), quepreconizavam o ressurgimento da UNE (Uniáo Nacional dos Estudantes) (2).Embora 1976 marque a rearticulagáo do movimento, no período anterior já existia urnamobilizagáo, como cita Sanfelice (1986):

Cumpre notar que, antes do Encontró Nacional, osestudantes se utilizavam das reunióes da SociedadeBrasileira para o Progresso da Ciencia (SBPC) paratentar urna articulagáo do movimento estudantil e namais absoluta clandestinidade (p.79).

Transcreve-se a seguir um trecho extraído do relatório do X ENEP, realizado em PortoAlegre, no Estado do Rio Grande do Sul, que explícita os objetivos políticos e daformagáo profissional inerentes ao mesmo:

O Encontró Nacional de Estudantes de Psicología(ENEP) tem por objetivo promover a integragáo dosestudantes de todas as partes do país, viabilizando umcanal de troca de informagóes, de idéias e de assuntos.Busca unificar as lutas e as reivindicagóes específicasde cada escola, ligando-as as lutas gerais de todos osestudantes do País.A importancia do ENEP se expressa nos varios setoresprofissionais (escolar, clínico, industrial, saúde,comunidade), oferecendo instrumentos e informagóesde seu desenvolvimento ñas diferentes escolas.Possibilita assim, a apreciagáo de temas relevantes

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vinculados á prática cotidiana de profissionais nosdiversos setores de atuagáo do psicólogo.Através de discussoes em plenárias e/ou em grupos,pretende-se alcangar urna compreensao maisaprofundada acerca do exercício de nossa profissao econfrontá-la com a formagáo profissional dosestudantes na Universidade. Propicia, pois, aoportunidade de apresentagao, a nivel nacional, dascontribuigoes de estudantes relativas aos problemas doensino universitario de Psicología do país.Além de buscar aprofundar essas questoesconcernentes á profissao do psicólogo, pretende aindacontribuir ñas lutas mais gerais tanto no ámbito daUniversidade como da própria sociedade. Busca discutirtemas como movimento estudantil, Uniao Nacional deEstudantes (UNE), conjuntura nacional, Universidade,etc.Objetiva, dessa forma, promover o debate no interiordo curso de todas as questoes relativas á nossarealidade, criando um movimento unificado com osdemais cursos e os movimentos populares.Podemos afirmar que o ENEP cumpre importante papelna medida em que constrói um espago para oestudante de Psicología aprofundar as especificidadesdo curso e articulá-las com a realidade social na qual seinsere (3).

Esse preámbulo se fez necessário como forma de localizar o ENEP dentro da historia econfigurar seu espago, como um espago onde se reflete o panorama estudantil brasileiro,mais específicamente na área de Psicología, se constituindo, entáo, como um ponto departida e também como ponto de referencia, estrutura da presente pesquisa; local deonde irradiará a luz que iluminará parcialmente, pois toda iluminagáo é parcial, omovimento estudantil e os movimentos sociais, de urna forma geral.A Historia faz um recorte, por isso é importante ter em vista que em qualquer tentativade reconstrugáo histórica, o que se está fazendo é um recorte, nao o recorte, nemabrangendo o todo, nem tampouco alcangando o real - movimento da ordem doimpossível (4).Por isso que, metafóricamente, o facho de luz que sair do ENEP iluminará partes domovimento estudantil geral e dos movimentos sociais.

... é impossível conceber o problema da evocagáo e dalocalizagáo das lembrangas se nao tomarmos paraponto de aplicagáo os quadros sociais reais que servemde ponto de referencia nesta reconstrugáo quechamamos memoria (Halbwachs, 1950/1990, p.9-10).

O ENEP cumprirá, entáo, o papel de quadro social real, servindo como ponto dereferencia nesta reconstrugáo, eixo condutor da pesquisa. O período dos encontros serátomado como o período a ser analisado, partindo-se da idéia de que no ENEP seencontram reflexos do que tomou lugar no intervalo entre os encontros. Neste sentido, oENEP pode se constituir como urna ruptura no fluxo continuo do movimento estudantil naárea de Psicología, tornando-se, em tese, momento de suspensáo do quotidiano etambém de sua reflexáo.

Por que historia?Como primeiro passo, cabe definir o que pensó ao falar em historia (2o eixo dapesquisa).Poderíamos caracterizá-la como o campo lógico da Historia, aquele que remete á Historiacomo disciplina, portanto á ciencia histórica e suas peculiaridades, campo herdeiro do

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logos grego, básicamente realizando a (re)construgao através de documentos escritos(5). Promove urna conexao das descontinuidades do fluxo constitutivo da historia aoinseri-la no tempo cronológico, tentando fixar o eterno devir.Tomarei a liberdade de nomear esta historia de historia oficial, e sua linguagem comologos, Mas será que esta é a única forma de retomada do passado?O terceiro eixo proposto se coloca.

Por que memoria?A memoria nos possibilita urna rememoragao do passado seguida de urna reatualizagaodo vivido, onde a cronología perde espago para o livre desenrolar das lembrangas.

O pensamento do ser é rememorativo [grifo do autor]porque se dirige a este esquecido e nao para apreendé-lo e trazé-lo de volta ao presente como se fora um enteá nossa disposigao. (Figueiredo, 1994, p.59-60).

Se caracteriza por urna diferenciagao com relagao á historia, pois nao propoe urnaracionalizagao do passado, mas antes urna localizagao de imagens e lembrangas, queressurgem num instante de abertura, nos arriscando até em falar na memoria coletivacomo a linguagem mítica da modernidade, e nomeando-a de campo mítico da historia.

A memoria é este trabalho de reconhecimento ereconstrugao que atualiza os "quadros sociais" nosquais as lembrangas podem permanecer e, entao,articular-se entre si (Mahfoud & Schmidt, 1993, p.290).

Tanto a memoria histórica, como a memoria coletiva, fazem parte do processo daHistoria, que como ciencia, vive momentos de sedimentagao e mudanga, que podem serintercalados seguidamente, a fim de que a reconstrugao do passado encontré semprerespaldo no presente, e que dessa maneira, a historia da humanidade possa caminhar,sempre neste processo infinito de sedimentagao e mudanga.

Se a memoria é o lugar de um continuum [grifo doautor] que, todavía, pode ser perdido, readquirido,reevocado e distorcido, a Historia é a reconstrugao dosnexos que ligam entre si varios segmentosdescontinuos e a racionalizagao dessasdescontinuidades (Cardini, 1993, p.326).

A memoria tem vida curta, se nao for registrada, por isso se utiliza da historia pararesistir ao tempo. A historia resiste ao tempo, por isso sua importancia, mas necessita damemoria para se (re)atualizar e tornar o passado mais vivo.Historia e memoria, ciencia e fábula, logos e mythos, realidade e ficgao: ambasdicotomías que se constituem como as duas metades simbólicas de nossa sociedade, porisso sua real importancia nesta pesquisa, que ao contrario de dicotomizar, opor urnacontra a outra, tentará utilizá-las concomitantemente, a fim de compor um panoramamais abrangente do movimento intitulado ENEP.Urna historia que nao tenta se apropriar de um esquecimento que aflora, mas antes, seinebria com este esquecido e replica as possibilidades passadas de existencia, que searrastando através dos tempos, influenciam ainda o hoje.Diante de tudo isso, historia e memoria, farao o eixo deste trajeto aqui proposto, com aidéia de que "nao se trata de ouvir urna serie de frases que enunciam algo; o queimporta é acompanhar a marcha de um mostrar" (Figueiredo, 1994, p.64).Abre-se espago para o quarto e último eixo conclusivo.

Porque um movimento?Movimento por advir de urna agao do real e tentar gerar sempre urna agao no real.O ENEP se insere nos movimentos sociais, que podem ser entendidos como esforgodespendido por um grande número de pessoas que se definem como um grupo queobjetiva resolver coletivamente problemas e demandas sentidas como comuns e queemergem do cotidiano das relagoes sociais mais gerais; e também está inserido nosmovimentos estudantis, que emergem de questoes mais específicas ligadas ao cotidiano

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escolar e/ou universitario, mas, com maior freqüéncia, nascem do descontentamentocom a cultura vigente e que podem ser entendidos como um:

entrecruzamento de planos, passando por afluxos erefluxos cuja intensidade é condicionada pelacapacidade mobilizadora das minorías, pelo estado dasrelagóes entre a instituigao universitaria e a sociedade,e pelos problemas com que esta se depara. Suahabilidade peculiar consiste em conectar essesdiferentes planos, articulá-los num alvo de contestagaoe impregnar ideológicamente a estrategia dacontestagao (Foracchi, 1972, p.81).

Inserido nos movimentos sociais e no movimento estudantil geral, o ENEP também é ummovimento, específico, mas definido como tal, pois tende a ser um fenómeno processuale coletivo, no qual um grupo de pessoas tenta, em conjunto, atingir um objetivo comum,muitas vezes através de urna reagao a um estado de coisas que provoca urna agao ao semanifestar. O ENEP tenta movimentar alguma coisa e a reconstrugao histórica dos ENEPstambém, tentando dar continuidade a este ciclo ininterrupto da historia.

Método

InstrumentosForam utilizadas duas fontes de informagao: a escrita e a oral, representadas pelosdocumentos e pelos depoimentos, respectivamente.Os documentos eram, principalmente, de fonte primaria, ou seja, aquela cujo produto édireto e original da experiencia, investigagao e expressao de um autor (Jiménez, 1977,p.70), encontrados em arquivos particulares, segundo a classificagao de Lakatos &Marconi (2004, p.57), na forma de atas, relatórios, boletins, jomáis, artigos, mogóes derepudio e correspondencias.Os depoimentos seriam o relato de algo que o sujeito presenciou, viveu, experimentou,podendo assim dizer sobre isso, sem um roteiro previamente estabelecido, como ñasentrevistas, mas num livre curso do pensamento; livre curso esse guiado por um recortefeito pelo pesquisador, que circunscreve o relato a um setor da experiencia do narrador.O depoimento é relativo a urna regiao da experiencia do narrador e nao a um assunto,como ñas entrevistas (Schmidt, 1990).Os depoimentos, portanto, nao obedeceram á nenhum roteiro formal, mas seconcentraram em um eixo condutor, neste caso a experiencia relativa aos ENEPs, e tudoque a cerca, na tentativa de trazer a tona regióes da experiencia do narrador que nao seoferecem de ¡mediato á compreensao e onde está inscrito o que Ihe inquieta -possibilidade de falar ñas sombras, sem preocupagóes explicativas.Na presente pesquisa foi utilizada, entao, a historia oral temática, através dedepoimentos, visto que a proposta é a reconstrugao histórica dos ENEPs, eixo condutordo trabalho, tendo o depoimento o papel de resgatar a experiencia de vida de pessoasque tenham vivido o fato histórico em questao (Bom Meihy, 1991).Após a coleta dos primeiros depoimentos mais gerais, todos os subseqüentes seguiram omesmo modelo, a saber: comegaram bem abertos e foram se afunilando no final,perpassando por todos os tópicos-chave previamente estipulados. Sao eles:a) A organizagao do encontró - que incluiu o panorama geral do evento, condigóes emque foi realizado, atuagao e constituigao da comissao organizadora e local-sede.b) A natureza do encontró - se foi de caráter político ou académico ou se mesclou os doisaspectos ou privilegiou apenas o contato entre seus participantes.c) A programagao - se houve mais espago para a atuagao docente ou discente ou sehouve maior valorizagao do estudante ou do profissional.d) Temática proposta e discutida - levantamento das preocupagóes e interesses de cadaépoca, ou seja, se havia mais discussao de estágio, de currículo ou de conjunturanacional.

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Ribeiro M. A. (2007). Historia do movimento estudantil na psicología: leituras e reflexoes acerca do 105ENEP (Encontró Nacional dos Estudantes de Psicología) Memorándum, 13, 100-119.Retirado em / / , da World Wide Webhttp://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/al3/ribeiro01.pdf

Os tópicos-chave foram estipulados a partir de um estudo previo da documentagáoescrita obtida e das inquietagoes iniciáis do pesquisador, mas também pela constatagaodo aparecimento repetitivo de alguns aspectos durante o desenrolar dos depoimentos,que foram englobados ao seu rol. Constituíram, também, o eixo estrutural para redagaodo texto final da pesquisa.O trabalho com o oral (depoimentos) e o escrito (documentos), concomitantemente,como instrumental de coleta de dados para urna reconstrugao histórica, vai na linha deevitar tanto o subjetivismo e a emergencia apenas da memoria individual (relato oral), oque renegaría tudo o que foi produzido históricamente e deixado como memoria oficial,como também apenas utilizá-la (documentagao escrita), e deixar o coletivo engolir asexperiencias individuáis ou de um dado grupo, que sao fonte daquilo que nao consta namemoria oficial e podem ajudar a constituir um campo de significagoes mais ampio,inclusive ao permitir que brechas na historia se abram.

SujeitosO método utilizado na selegao dos depoentes trilhou dois caminhos: foram selecionadosdas informagoes advindas dos documentos, mas também pela indicagao dos própriosdepoentes, que já relataram suas experiencias e sugeriram nomes para os próximosdepoimentos, no sistema intitulado de rede (Bom Meihy, 1991).Desta forma, os sujeitos foram, no primeiro momento pessoas que puderam dar umpanorama da comunidade psi na década de 1960, para depois serem alunos queajudaram a organizar os ENEPs, alunos que participaram dos ENEPs e alunos que forammembros da Executiva Nacional e/ou Regional dos Estudantes de Psicología, além deprofissionais que participaram dos ENEPs, como expositores ou como auxiliares na suaorganizagao. A idéia central foi tentar obter um número grande de visoes acerca domovimento a ser estudado - o ENEP.

Procedimento e tratamento dos dadosComo primeiro passo, cabe delimitar o objeto de estudo espago-temporalmente. Quantoá amplitude temporal, tomou-se como base o período entre a década de 1960 e a décadade 1990, pois foi aproximadamente o tempo em que o movimento a ser estudado tevesuas sementes e se desenrolou.Quanto á amplitude espacial, se restringiu ao Estado de Sao Paulo, pois foi onde opesquisador teve maior contato com o movimento, mas principalmente como forma deviabilizar na prática a pesquisa.Realizado o levantamento, catalogagao e descrigao dos documentos escritos direta ouindiretamente referentes aos ENEPs, criou-se um arquivo; e de posse dos depoimentosdevidamente textualizados e revisados, teve inicio o trabalho de reconstrugao histórica.Esse trabalho teve como eixo condutor as relagoes entre o micro (ENEP) e o macro(movimentos sociais e movimento estudantil), se utilizando das informagoes conseguidasda documentagao oral e escrita, além das obtidas com a revisao bibliográfica; relagoesestas que deram o sentido aos ENEPs na medida em que os situaram dentro de umcontexto mais ampio, constituido pelo horizonte histórico a que pertencem, sendo estasrelagoes fontes de urna significagao mais objetiva a cada documento.Teve como ponto de partida, entao, um microcosmo, que é o ENEP (contexto específico),para localizá-lo dentro de um contexto mais geral, que é a dinámica do movimentoestudantil, que, por conseguinte, está dentro de outro contexto mais geral ainda, que saoos movimentos sociais, através de um movimento mais densamente estudado no seuponto de partida e ficando mais rarefeito quando alcanga um ámbito mais geral, que é adinámica dos movimentos sociais no Estado de Sao Paulo.Após a localizagáo do ENEP dentro de contextos mais ampios, pudemos visualizar qual foisua contribuigáo para o desenvolvimento, compreensáo crítica e insergáo da Psicologíadentro da sociedade brasileira, mediante o resgate das interrelagoes entre o saberpsicológico, as identidades culturáis, a comunidade psie o seu papel político.

Memorándum 13, novembro/2007Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP

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O texto final foi processado pelo pesquisador baseado em todo material colhido eidentificou 8 fases de atuagao estudantil com características semelhantes e localizou asquebras e mudangas ocorridas ao longo do espago temporal delimitado. Sao elas:1) Os primordios da Psicología no Brasil (7/1957);2) A constituigao do estudante de Psicología (1958/1964);3) O comego do movimento estudantil na área de Psicología (1965/1969);4) Momento pré-ENEP - a rearticulagao do movimento estudantil (1970/1975);5) Surgimento do ENEP com os grupos políticos estudantis no comando (1976/1982);6) Período de transigao - o ENEP tenta mudar (1983/1985);7) O retorno dos grupos políticos estudantis ao comando do ENEP (1986/1991);8) Os grupos políticos perdem terreno e entram em cena as regionais (1992/1998).

Resultados e discussao: escute um dizer que se abreA hipótese inicial do trabalho versava que a nao-constituigao de um legado histórico naopermitía o avango do movimento estudantil da Psicología, mas que foi seguida de urnaoutra questao: o que seria um avango em termos de política estudantil?Idealmente, e inebriados pelos conceitos emergentes do próprio movimento estudantil,diríamos que um movimento estudantil deveria ter um contingente bom de estudantesmobilizados, interessados pelas questoes de ordem política, que produzissem bastante,com muitas conquistas, tivessem o reconhecimento dos estudantes e, principalmente,conseguissem fazer a discussao avangar: mas o que seria fazer a discussao avangar?Um militante diria que é fazer com que as conquistas possam ser passadas adiante e queos novos estudantes continuem do lugar onde os antigos pararam, como se fosse aconstrugao de um predio. Cada grupo a frente do movimento estudantil seria responsávelpor um andar desse predio: mas será que o processo é mesmo esse?Esse seria um caminho, mas qual foi o caminho do movimento estudantil da Psicología,ou mais específicamente, dos ENEPs?O primeiro passo é se desvencilhar dos conceitos previos, como nos aconselhariaBenjamín (1940/1985), e deixar se envolver pela reconstrugao processada, verificando oque o ENEP tem a nos dizer sobre sua historia e memoria, sobre o estudante dePsicología, sobre o movimento estudantil, sobre a constituigao da identidade dessemovimento e da própria Psicología.

A exigencia de rememoragao do passado nao implicasimplesmente a restauragao do passado, mas tambémurna transformagao do presente tal que, se o passadoai for reencontrado, ele nao fique o mesmo, mas seja,ele também, retomado e transformado (Gagnebin,1994, p.19).

Fundo de onde emerge o movimento estudantil na Psicología

Ia fase - Os primordios da Psicología no Brasil (?/1957)A Psicología é um campo do saber que foi se constituindo paralelamente as grandesdisciplinas como a Pedagogía, o Direito e a Medicina, ganhando nos seus primordiostragos de cada urna délas, que foram, gradativamente, se misturando ao que estavasurgindo enquanto urna nova área intitulada de Psicología.Durante o desenrolar da primeira metade do sáculo XX, a Psicología foi abrindo espagos ese tornando algo mais que um mero apéndice de outras disciplinas, mostrando que elanao era um aspecto das outras, mas sim se constituía como urna área específica esingular, que atravessava as demais áreas.Desde entao, foi marcada pela proximidade entre os precoces psicólogos, que, por seunúmero pequeño, perfizeram relagoes de amizade e reciprocidade, mas também decompetigao. Dessas relagoes de proximidade, foi surgindo um sentimento comum de quealgo deveria ser feito em prol da Psicología, explicitado pelos encontros, associagoes emovimentos das pessoas envolvidas com o campo psicológico.

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Da vivencia desses espagos de encontró, é que foi possível a Psicología emergirconcretamente no cenário social, se configurando como urna área de saber distinta eimportante, tanto que ela só foi regulamentada pela pressao das associagoes dePsicología da época.

2a fase - A constituicao do estudante de Psicología (1958/ 1964)Configurada a Psicología como tal, surgem os cursos de formagao, que naturalmentetrouxeram consigo a constituigao da figura do estudante de Psicología, alvo dos nossosestudos. Quem era, no inicio, o estudante de Psicología?A Psicología era considerada um curso escolhido por pessoas excéntricas ou, entao, quenao sabiam o que queriam de suas vidas; a opgao mais obvia seria fazer Medicina ou irpara Pedagogía. Em que contexto surgiu esse estudante?O estudante de Psicología surgiu em meio a um crescente movimento político mais gerale emergiu do interior da FFCL (Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras), carregandosuas tradigoes políticas.O comego dos anos 1960 foi marcado pelos constantes estudos e debates acerca do queseria melhor para o Brasil, que estava sendo invadido pelo capitalismo. A solugaopredominante nos meios universitarios vinha do modelo soviético, que era quase ummito, de onde se extraía que o socialismo era a saída para o país. Mas que socialismo eraesse?Era um socialismo baseado nos dogmas marxistas-leninistas, que versavam que arealidade era urna eterna luta de classes, num confuto que deveria ser resolvido pelarevolugao, que implantaría um novo sistema, quebrando essa dicotomía intransponívelentre proletariado e burguesia/Estado. Diante disso, muito se discutía sobre essasolugao, como preparagao para a revolugao que estava por vir.Um espago que tinha destaque nos idos de 1962 e também ao longo de toda décadaforam as reunioes, que aconteciam a todo momento, em apartamentos de estudantespara discutir idéias revolucionarias. Apesar de sua clandestinidade, se constituíam numsegredo mal contado, que pairava sobre o ar, abrindo possibilidade de participagao paramuitos. Foi justamente nesse espago mais privado, que comegaram a emergir questoesrelativas ao curso de Psicología e a necessidade de urna discussao mais ampia, pois aPsicología havia sido criada pelo mesmo processo que se faz urna colcha de retalhos, ouseja, nao foi parida, mas antes se configurou através da uniao de varias teorías epráticas, que vinham sendo desenvolvidas em outras áreas, como a Pedagogía e aFilosofía.A primeira metade da década de 1960 foi marcada mais pelas discussoes do que pelaagao propriamente dita, num clima de efervescencia política, que trazia ideáis grandiosose globais rumo ao socialismo. A revolugao deveria vir de urna alianga popular através deum movimento único contra o Estado, principalmente após o Golpe Militar de 1964.Se antes de 1964 a revolugao contava com o apoio do Governo Federal, na figura doentao presidente Joao Goulart, após essa data, tinha a repressao como coibidora dequalquer manifestagao contra a ordem vigente e imposta pela ditadura.Os estudantes de Psicología acompanhavam o andar dos acontecimentos e travavamsuas lutas específicas, através de ocupagoes e manifestagoes, apesar de que oimportante era o ideal maior da revolugao popular para a instalagao de urna novasociedade, de cunho socialista.

3a fase - Comeco do movimento estudantil na área de Psicología (1965/1969)Após 1964, os estudantes de Psicología comegaram seu movimento próprio embaladospela questao curricular, imposigao do Governo Federal em 1962, da qual gostariam deter participado. Era um movimento pela possibilidade de decisao dos seus problemas,contra qualquer arbitrariedade ou autoritarismo por parte de quem quer que seja.Encontraram como resistencia o Estado e os próprios professores, muitos favoráveis aoesquema vigente, e com receio de perder seu poder; mas também receberam o apoio detantos outros professores, na sua maioria jovens ex-alunos.

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O comego da atuagao estudantil na Psicología se deu na barca dos movimentos maisgerais, mas serviu como excelente fonte de acumulo de experiencias, que eclodiriamanos mais tarde, principalmente a partir de 1965, ano que presenciou a primeiratentativa de um encontró mais ampio dos estudantes de Psicología, batizado de ENEPsi.O I ENEPsi foi marcado, portanto, pelas questoes gerais da realidade brasileira, mastambém pelas questoes específicas da realidade psi, representada pelo currículo e foi oencontró que marcou essa iniciativa, pois a necessidade de um contato mais global erapremente, já que se vivia a época de um ideal coletivo comum de transformagao darealidade brasileira. Se fazia, pois, necessário, o encontró para que estrategias de luta,para o Brasil e também para a Psicología, fossem configuradas.O encontró e a vivencia estudantil vao marcar o movimento estudantil da Psicología,sendo, na maior parte do tempo, mais significativo que a própria questao política, apesarde que o encontró marca o ser político em sua esséncia; política nao no sentido que viramais adiante, ou seja, burocratizada e ligada aos órgaos representativos, mas sim comoemergente do cotidiano.Dentro da Psicología, curso considerado de élite, existiam as mais variadas posigoes, masa radicalidade, como a historia nos mostrará, nunca fez parte da maioria dos estudantespsi, que preferiam manter posigoes mais moderadas.Nesse momento, já existia um embriao do que viria a se tornar a AUEP (AssociagaoUniversitaria de Estudos Psicológicos) da Universidade de Sao Paulo, batizada com essamáscara académica para escapar da repressao que se acirraria cada vez mais,principalmente com a Lei Suplicy (4464) que extinguía os Centros Académicos,substituindo-os pelos Diretórios Académicos, subordinados á diregao da Faculdade(Sanfelice, 1986).O ano de 1968 marcou um momento de sintonía geral, no qual eclodiram os maisvariados movimentos ao redor do mundo, todos com a ilusao da concretizagao do sonhode instalagao de urna nova sociedade.Neste ponto cabe-nos urna parada para urna breve reflexao.A maioria dos movimentos populares da época, inclusive o movimento estudantil, tinhamcomo meta a revolugao, mas nesse ponto se processava urna divisao:a) Alguns enxergavam a revolugao como a destituigao do poder vigente e a instalagao deurna nova ordem, de cunho socialista;b) Outros viam a revolugao como um rompimento das regras do jogo político vigente, naqual, normalmente, se cedia a vantagens parciais dentro do sistema estabelecido. Oproblema nao era o capitalismo em si, mas a burocracia que vinha junto a ele e quebarrava qualquer possibilidade de avango e mudanga, tornando todo movimento urnasubversao do sistema. A guerra posta era, entao, urna guerra antiburocrática.Nesse contexto a oposigao do Maio de 1968, por exemplo, vinha como um movimentosem diregao, nao ligado á disciplina de um partido e sempre se explicitando sob o signoda improvisagao.O primeiro grupo citado, que era a maioria, via no segundo urna impotencia e urnaimaturidade; faltava estudo e maior conscientizagao, pois a solugao estava posta, elesque nao conseguiam enxergar.A grande maioria do movimento estudantil tinha urna estrutura mental rígida, quetransformava a revolugao, numa ditadura de urna postura só: a nova ordem eranecessária a qualquer custo, sendo essa a linha de pensamento da luta armada.Mas apesar de tudo isso, a principal vitória dos movimentos de 1968, por mais que naofosse clara, foi a revelagao de fissuras no sistema vigente, pois se abriu urna brecha quepermitiu visualizar na estrutura social urna linha de ruptura. O movimento estudantil foi¡novador nao por assumir novos papéis na sociedade, mas precisamente por negar-se apermanecer neles. Mas, o que aconteceu na Psicología?Já nos primordios das atividades estudantis se via urna preocupagao que partía docotidiano, que era a questao curricular, que movimentava a todos.Desde entao, a questao curricular e organizativa do curso de Psicología comegou a serdiscutida, trazendo em seu bojo questionamentos, que se transformariam em agao maisadiante, a partir de 1966, com o movimento dos excedentes.

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A Psicología tinha sua base marcada por algo que nao foi elaborado por sua própriacomunidade, e a reforma curricular simbolizava a idéia de mudanga da própria Psicología,se constituindo na utopia da comunidade psi. Estava fundada a primeira bandeiraespecífica de luta da Psicología: o currículo.O cotidiano trouxe mais urna manifestagao, com o movimento dos excedentes por maisvagas no curso de Psicología, através da ocupagao do saguao da Maria Antonia (antigopredio paulista que abrigava a Faculdade de Psicología da Universidade de Sao Paulo).O movimento durou um mes e pouco, até ter sucesso em suas reivindicagoes, o quesignificou um crescimento do curso, institucionalizado em sessenta vagas, aumentandopara o número atual (70 vagas) alguns anos depois. Essa decisao do aumento de vagastrouxe por detrás déla a possibilidade do surgimento de cursos de psicología em EscolasParticulares, o que realmente se concretizou a partir de 1969.Com isso, abriram-se as portas para as particulares e os empresarios da educagaoinstalaram seus escritorios em Sao Paulo, batizando-os de Faculdades, e mais tarde deUniversidades preconizando urna mudanga no perfil do estudante de Psicología, deexcéntrico a massificado.No geral, houve urna influencia marcante do movimento mais geral com as paritarias (6),que faziam com que os estudantes saíssem da sua posigao de meros espectadores dacena que se desenrolava na Universidade, para se tornarem atores coadjuvantes com amesma parcela de poder e responsabilidade que tinham os professores, únicos atoresprincipáis nesse jogo. Qual era, nesse contexto, o principal ponto em discussao? Ocurrículo e os problemas organizativos do curso de Psicología, dos mais gerais aos maisespecíficos.Em nivel nacional, a principal bandeira era também o currículo, que se constituía numaforma de crítica á ordem vigente através de urna realidade cotidiana, que traria a taosonhada mudanga para a Psicología.É bom frisar que a sensagao de 1968 era de que os estudantes tinham assumido o podersobre o curso, tornando sua revolugao concreta, mas que pedia a todo momento aparticipagao dos professores no processo de mudanga. Se para alguns, a conquista dopoder era o alvo principal e o grande ideal por detrás das lutas de 1968, também era arevelagao de que a burocracia e o nao-movimento tornavam o desenvolvimento daPsicología urna coisa abstrata.O Estado, que sentiu o poder das mudangas que estavam aflorando, endureceu suarepressao e levou o movimento estudantil a sofrer um processo de paralisia, restandoaos persistentes, diante da firmeza ideológica e da repressao, o caminho da luta armada.Na psicología a luta continuou, lenta, mas sem parar e alguns se aventuraram na lutaarmada, sendo presos e até mortos, enquanto outros tentavam resistir no interior daspróprias universidades.

4a fase - Momento pré-ENEP: a rearticulagao do movimento estudantil(1970/1975)Durante a primeira metade da década de 1970, o ideal máximo era a reorganizagao dasentidades estudantis para se concretizar a revolugao contra a ditadura militar, naoconseguida nos anos 1960. Os grupos políticos clandestinos agiam através da lutaarmada, mas também no interior das universidades ligados aos Centros de Estudos(disfarces académicos para as organizagoes estudantis), tentando continuar o movimentode 1968. O ENEP nasceu dentro dessa perspectiva e surgiu como mais um fórum deorganizagao estudantil para realizar a revolugao.Mas será que ele tinha apenas esse caráter?Cabe-nos lembrar que o ENEP surgiu com essa fungao exclusivamente política de cunhogeral, mas também adveio do movimento dos próprios estudantes da Psicología, quecareciam de um espago de encontró para discussao de suas questoes específicas, ouseja, como a Psicología poderia se configurar enquanto urna agente de transformagaosocial. Essa era a principal preocupagao das Semanas de Psicología, estrategiasemblemáticas de agao dessa, que preconizaram os ENEPs.

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O ENEP surgiu, entao, da confluencia de fatores gerais (a revolugao) e de fatoresespecíficos (a Psicología transformando o geral da realidade social), tendo como ideal-mor a reforma curricular (utopia ps¡), e tendo como fator aglutinante o encontró,responsável pela energía motora do movimento estudantil da Psicología.

A consolidacao do movimento estudantil na Psicología

5a fase - a rearticulacao do movimento estudantil na psicología: Surgimento doENEP com os grupos políticos estudantis no comando (1976 /1982 )A fase anterior denotadamente representou o chamado período de resistencia, no qual setentava de todas as maneiras reorganizar o movimento estudantil, desmantelado pelarepressao do regime militar, através de grupos de estudos, reunióes gerais ñas escolas,contatos entre as escolas, as Semanas de Psicología e finalmente os encontros de área -os ENEPs.É importante reafirmar que todos esses espagos eram instituidos pela questao políticamais geral, ou seja, o encontró entre as diversas tendencias políticas para discutir arealidade brasileira e organizar a luta contra a ditadura, fazendo, consequentemente, arevolugao socialista.O ENEP surgiu nesse contexto e tinha um objetivo partidario advindo das tendenciaspolíticas, nao sendo um objetivo interno da psicología, mas sim mais um fórum dediscussóes para pensar a revolugao e a luta contra a ditadura: o grande objetivo eraorganizar a sociedade civil contra a ditadura.O instrumental de lutas eram as mogoes de repudio ou apoio, que seriam divulgadas pelacomunidade estudantil de urna forma mais ampia, além é claro, de serem levadas paratodas as faculdades de psicología do país.As mogoes de repudio representavam bem o caráter do movimento estudantil da época,ou seja, representavam horas e horas de discussao, passadas para um pedago de papel,que pouco ou nada produzia de efeito prático. A discussao era o prazer da época,enquanto o prático ficava um pouco de lado. Ainda se vivia imerso na realizagao degrandes ideáis, muitas vezes distantes, como era o caso da revolugao - ideal maior domovimento estudantil.

Definicao do ENEP e seus principáis grupos participantesO ENEP, como o próprio nome diz, é um Encontró Nacional de Estudantes de Psicología,ou seja, sua nomeagao nos permite dizer que é um encontró, em nivel nacional, dacategoría estudante, da área específica da Psicología, que surgiu do desejo latente deencontró da comunidade psi, mas, de forma manifesta, como urna ampliagao do espagode encontró dos diversos grupos políticos, que tentavam organizar a revolugao, e, desdeo inicio, foi marcado por dois grupos distintos que se apresentavam para participar dosENEPs: urna minoría, com interesses pré-concebidos, e urna maioria, com o mero desejode encontró.Touraine (1991) aponta a coexistencia de tres mundos no interior de urna sociedade:a) Um mundo social caracterizado por fenómenos que emergem diretamente da vidasocial, sem nenhuma mediagao institucional;b) Um mundo político, que comporta em seu interior mediadores entre o Estado e omundo social; ec) Um mundo intermediario, que habita entre os mundos político e social, fazendo aintermediagao entre ambos, via imprensa, televisao, clubes e intelectuais. É o mundo daopiniao pública, lugar de passagem entre as demandas sociais e as respostas políticas.Partindo dessa classificagao, podemos dizer que o grupo minoritario participante dosENEPs, marcado pelos grupos políticos, faziam parte do mundo político, apesar daclandestinidade inicial; e o restante advinha diretamente do mundo social, nao trazendo,portanto, nenhuma linha institucionalizada de discussao ou agao.Os grupos políticos utilizavam o ENEP como mais um espago de discussao e brigaideológica, visando urna delimitagao de poder e urna imposigao de seus ideáis, ou seja,

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nao aproveitavam o que emergía do instante de encontró, pois estava tudo mais oumenos planejado: a abertura para o inusitado nao encontrava espago.Em contraposigao, os demais estudantes, sem verdades pré-concebidas, inauguravamum espago de criagao durante os ENEPs, como nos propoe Foracchi (1972) ao dizer que omovimento estudantil tem como alvos centráis a universidade e a sociedade em geral, etraduz um esforgo que é de criagao, nao de compromisso, devido á transitoriedade emque vive imerso o estudante.Nesse sentido, estudante é um vir-a-ser, imerso num momento de transigao, por issopotencialmente criativo, pois nao se encontra vinculado, enquanto estudante, a nenhumgrupo social: "... é na medida em que se diversifica o modo de vinculagao ao sistema eque se reelaboram as alternativas de emancipagao que o jovem se constituí comocategoría social" (Foracchi, 1965, p.59).O estudante vive, portanto, a morada do entre, que Ihe permite urna atuagaodescompromissada de qualquer vinculagao, sendo essa sua principal característica. Avinculagao com os partidos políticos retira a espontaneidade do movimento estudantil edespoja-o de seu caráter ¡novador, pois o mundo político está institucionalizado.A identidade militante que determina os grupos políticos, como nos indica Figueiredo(1995), vive norteada por dois enquadres temporais: o tempo longo dos ideáis(inalcangáveis e nao sujeitos as vicissitudes do tempo) e o tempo curto das urgencias(plano de agoes repetitivos) e promove urna dissociagao entre essa duas temporalidades,gerando um modo de vida que leva á estagnagao, pois promove repetigoes esteréis decondutas institucionalizadas e idealizadas, sendo em sua esséncia urna identidaderesistente.A militáncia estabelece um fosso intransponível entre o reino das metas fabulosas e o dasrotinas cotidianas, retirando dos acontecimentos qualquer chance do inusitado, pois tentaprevé-los com suas agoes repetitivas.Apesar da pré-concepgao de urna linha para o ENEP, o grupo que se formava nomomento do encontró, propiciava a constituigao do ENEP enquanto um ator coletivo(Touraine, 1991), surgindo e desaparecendo no mesmo instante que surgía, masdeixando urna verdade no ar. Era um movimento diretamente do mundo social, por issonao mediatizado pelo mundo político, e, dessa forma, com o espontáneo em suaesséncia.É como se, metafóricamente, um batismo fosse operado, e urna nomeagáo tivesse lugar.Nomeagáo no sentido que nos propoe Figueiredo (1994), ao dizer que nomear é chamarpelo nome, mas também responder a um chamado, que aparece como urna oferta.Batizar é colher, a-colher, re-colher. Re-colher é agrupar o que se colheu.O ENEP se constituiría, entáo, como um espago de abertura, se despojando daquilo queacreditava possuir, e nao se consumindo somente naquilo que está enunciando. Seria uminstante de abertura, no qual urna clareira emerge, e aponta um dizer, revela urnaverdade, que se estende diante, mas se recolhe no mesmo instante que aparece, comoversava Heráclito ao falar da physis (Garcia-Roza, 1990).Por isso que na maioria das vezes, o ENEP é descrito como tendo um caráter mágico einatual, que desaparece em seu final. Ele se constituí numa suspensao do cotidiano,dando margem a aparigao de urna verdade outra, que pode encontrar os participantes doENEP, se esses abandonarem a vontade de compreensao ¡mediata.Mas o grupo que organiza os encontros parece resistente a esse escutar atento, ficandopreso ao dizer cotidiano, cristalizado em seus discursos pré-concebidos e se sentindodonos do ENEP (identidade militante).Havia, portanto, urna dicotomía e urna separagao muito grande entre os personagensdentro do ENEP. Aqueles, que queriam discutir a Psicología e tentar mudar algo, eramatropelados pela briga pelo poder entre as tendencias políticas. O que importava era adelimitagao de poder, e nao as decisoes e os encaminhamentos do movimento, por issoeles quase nunca aconteciam.O movimento estudantil era um fim em si mesmo; ensimesmamento dañoso aomovimento, que só levava á repetigao de fórmulas e agoes. Essa era sua característica

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inerente trazida dos anos 1970 e que teimava em permanecer: a grandiosidade dasteorías e das grandes lutas e o desprezo pelas questoes cotidianas mais práticas.Nesse sentido, o ENEP parecía pertencer a grupos de estudantes, que inebriados pelosseus próprios propósitos, nao conseguiam se envolver com a abertura que ele propicia,gerada pelo encontró entre os estudantes, que se configurava, em suma, no granderesponsável pela magia de um ENEP. Mas quem eram os personagens dentro de umENEP?Se pensarmos no geral do movimento estudantil na Psicología veremos de um lado umgrupo menor tentando organizar e fazer seguir o movimento, no intervalo entre osENEPs, e temos de um outro lado um grupo maior que freqüentava os ENEPs.Essa era a linha geral, sempre a oposigao entre um grupo com linhas definidas e outrocom linhas indefinidas, dando espago para que algo se construa durante o próprioencontró.No comego, os freqüentadores dos ENEPs eram apenas estudantes vinculados aos grupospolíticos, tornando o grupo participante, apesar da diversidade ideológica, um grupohomogéneo em termos estruturais, fazendo com que as questoes mais geraispredominassem, mas com a introdugao de questoes específicas da própria Psicología,outros estudantes interessados no curso, mas nao ñas discussoes mais ampias,emergiram.Tínhamos, entao, os grupos políticos, a entidade representativa dos estudantes dePsicología, a comissao organizadora dos ENEPs, os participantes do encontró e, a partirde 1982, os turistas, que se aproveitavam da estrutura do ENEP para conhecer o Brasil,sem muitos gastos, se configurando como os principáis personagens dos ENEPs.

O ENEP e seus principáis personagensOs principáis personagens dos ENEPs eram:a) Grupos políticos: freqüentavam os ENEPs com o objetivo de ganhar mais espagos,dominar mais grupos obtendo mais poder, e impor suas idéias, sem se preocupar muitocom a especificidade da área, para aumentar os quadros de seus partidos.b) Executiva Nacional: tinha como objetivo, como o próprio nome diz, executar asdeliberagoes dos ENEPs, fazendo com que o movimento estudantil caminhasse nointervalo entre os encontros, o que parecía ser urna tarefa nao possível de ser realizadaao longo da historia dos ENEPs.c) Comissao Organizadora: tinha como fungao organizar o ENEP, teóricamente emconjunto com a Executiva Nacional, fazendo acontecer o encontró segundo as diretrizesdo movimento estudantil da Psicología e tentando dar urna continuidade ao movimento.Nem sempre isso acontecía e o ENEP acabava por funcionar como urna auto-realizagaopessoal do grupo que o organizava, as vezes fugindo totalmente do fio histórico quevinha se configurando.d) Participantes dos ENEPs: chegavam ao encontró sem idéia do que iria acontecer(quase total ausencia de idéias pré-concebidas sobre um ENEP), se constituíam como amaioria e acabavam formando grupos no seu desenrolar. Promoviam agoes coletivas queemergiam no momento do Encontró, e acabavam por propiciar o clima de magia dosENEPs pela sua espontaneidade. Surgiam diretamente do mundo social sem nenhumamediagao do mundo político, nem qualquer planejamento previo e costumavam estarabertos ao que vinha e dessa maneira, agiam de forma nao-institucionalizada, dandopossibilidade ao novo. Podiam gerar o movimento, mas seu movimento era, muitasvezes, subaproveitado, sendo priorizadas as metas da Executiva Nacional ou da comissaoorganizadora.e) Turistas: utilizavam-se da infra-estrutura do ENEP para conhecer o país de formamenos dispendiosa.Podemos dizer que os tres primeiros grupos eram regidos por idéias previas e tendiam ainstitucionalizar o movimento estudantil; o quarto grupo, que instaurava o ENEP, tendía adesinstitucionalizar o movimento estudantil; e o último grupo era alvo de discussao emplenárias, mas nao interfería significativamente na esséncia dos encontros, apesar de

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que cada vez mais crescia esse grupo, mostrando que o envolvimento com o movimentoestudantil era gradativamente menor.Os tres primeiros grupos, apesar de serem transitorios, contavam em seusposicionamentos e agoes com linhas de atuagao pré-concebidas, que, se garantiam porum lado urna diregao, impossibilitavam, muitas vezes, a emergencia do novo.O grupo dos participantes do ENEP era sempre maioria, transitorio e, geralmente,desprovido de pré-conceitos sobre um ENEP. Pelo papel que desempenhavam,correspondiam mais ao que foi definido como a categoría social de estudante, já que suacondigao era transitoria, eram questionadores por natureza e viviam imersos no entre,ou seja, entre o que já foi e o que ainda nao é. Nesse contexto, podiam criar e trazernovidades aos ENEPs, em todos os sentidos, pois seu compromisso era com sua condigaode transitoriedade, sendo, por isso, levados pela espontaneidade do momento.Sobrevivem na transitoriedade, pois participam de grupos que tém sua duragao limitadapelo tempo de permanencia na universidade, o que marca profundamente o movimentoestudantil, pois retira-lhe a característica de manifestagao e engajamento permanente, ediversifica as orientagoes contestatórias ou reivindicativas, tornando os interesses emtorno dos quais os estudantes se unem, de natureza mutável e instável.O movimento estudantil tem como fundamento organizativo o sentimento departicipagao, marcado pela idéia de que os estudantes sao diferentes e especiáis emrelagao aos outros, mas idénticos a si próprios. No convivio estudantil se descobre umnovo mundo: o mundo do diálogo com os iguais.Por conta dessa característica transitoria, o ENEP sempre teve 90% do seu públicodiferente, o que invariavelmente gerava um eterno recomego, nunca urna eternacontinuidade.Se, por um lado, essa característica permitía o novo, por outro lado, promovía urnadescontinuidade, fazendo com que o ENEP sempre se inaugurasse quando comegava.Justamente este sentido comunitario de participagao (unidade de vivencia do mundoestudantil), constituí urna condigao favorável e ilustradora da disposigao potencial ámobilizagao, pois sendo o movimento estudantil transitorio, em termos dos seusparticipantes, permite sua eterna continuidade, pois deixa sempre um projeto inacabadoa ser desenvolvido pelos grupos subseqüentes. O elo de ligagao entre as geragoesuniversitarias e a transmissao de urna heranga do movimento estudantil é fundamentalpara que novas conquistas sejam pleiteadas e obtidas com sucesso. A historia e amemoria de um movimento permitem seu eterno caminhar.A transitoriedade complicava o livre desenrolar do movimento estudantil da Psicología,pois o intervalo entre os ENEPs era grande, tornando os projetos inacabados em projetosnovos a cada momento, muitos sem ligagao histórica e, sendo a massa imediatista, adiscussao nao prosseguia depois de um ENEP.Toda vez que um encontró se instaurava ocorria urna quebra no cotidiano psi e urnadesinstitucionalizagao tinham lugar, enquanto que, toda vez que urna entidaderepresentativa agia, ela reinstitucionalizava o movimento estudantil a todo momento.Como seria possível aproveitar a abertura do instante do encontró e tornar o intervaloentre eles frutífero?

6a fase - Período de transigao: o ENEP tenta mudar (1983/ 1985)De inicio temos que marcar, de forma redundante, que no intervalo entre os EncontrosNacionais, poucos espagos de encontró ocorriam, sendo de responsabilidade da ExecutivaNacional fazer com o que o movimento caminhasse.Poderemos comegar nossa reflexao pensando que durante muito tempo a entidaderepresentativa dos estudantes de Psicología (Executiva Nacional) esteve ligada asentidades gerais como o CA (Centro Académico), DA (Diretório Académico), DCE(Diretório Central dos Estudantes), UEE (Uniao Estadual dos Estudantes) e UNE (UniaoNacional dos Estudantes), entrando no círculo vicioso em que elas se encontravam,funcionando apenas como aparelho para os partidos políticos formarem seus quadros.

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Essas entidades possuem ideologías particulares e defendem interesses que nem sempreatingem as mais variadas situagoes do cotidiano: um partido político nao corresponde agrupos sociais. Nesse sentido, o geral engole o específico.Mas nao é o específico que é reivindicado pela comunidade psi desde os primordios domovimento estudantil?A Executiva Nacional dos Estudantes de Psicología, por muito tempo, esteve envolta pelainfluencia dos grupos políticos, nao conseguindo enxergar as questoes específicas daPsicología, reivindicagáo daqueles a quem ela deveria representar.

Geral ou específico?Esse é um eixo de discussao que transpassa toda historia do movimento estudantil, e,particularmente, na Psicología encontra urna tendencia para o específico, no sentido depensar como a Psicología (específico) através de sua agao pode ajudar a modificar ogeral.Teóricamente, poderíamos dizer que ambos sao importantes, que um nao vive sem ooutro, já que o geral (interesses comuns da massa estudantil) funda e unifica omovimento estudantil; enquanto que o específico de cada área de saber e/ou faculdadeou universidade, viabiliza e fortalece o movimento estudantil em cada urna de suasbases, mas a coisa nao é tao simples assim.O radicalismo dos anos 1960 e 1970 nao permitía dar importancia ao específico, mas eleera um desejo latente, já que urna das bandeiras de luta da Psicología era a reformacurricular. A discussao de currículo poderia ser urna fonte de movimento no intervaloentre os ENEPs, tanto que viraram encontros específicos em varios momentos dahistoria, e dar o reconhecimento mais global necessário á continuidade do movimentoestudantil na Psicología. A idéia era que ela deveria partir dos estudantes e atingir aPsicología, e, ao atingi-la, promovesse urna mudanga na filosofía e agao da profissao dopsicólogo, alcangando o geral da realidade social.Decidiu-se que o debate acerca da análise de como estava a Psicología, naquelemomento, era de fundamental importancia e que seriam trazidos profissionais, quepudessem fornecer um panorama das varias práticas psi, para subsidiar as discussoesdos estudantes, que aconteceriam em grupos, além de incentivar a sua participagao.Ficava claro que urna quebra na historia dos ENEPs estava se configurando, pelo menosna concepgao do encontró pela comissao organizadora, através de urna mudanga defilosofía e dinámica.Quais seriam as principáis mudangas de mentalidade que estavam emergindo?Ñas discussoes que vinham acontecendo, como já foi apontado, se percebia que o fundode onde nasceu o ENEP, ou seja, da rearticulagao das entidades estudantis e de todabriga política clandestina contra a ditadura, estava gradativamente perdendo o sentidopela abertura política que se processava no Brasil.Diante disso, o ENEP havia se tornado um espago exclusivo para o embate entre asvarias tendencias estudantis, agora vinculadas aos partidos políticos recém-oficializados,o que afastara a maioria dos estudantes de Psicología, que buscavam alguma outra coisacom um ENEP. Com essa mudanga na coordenagao do movimento estudantil daPsicología, se criou a possibilidade de um comego de quebra da dinámica cristalizada emque vinha ocorrendo sua atuagáo, e a configuragáo de um novo formato, principalmentepara o ENEP. Era urna fase de transigáo, e o futuro ENEP serviría de ponte para algumastransformagoes que comegavam a se processar.A programagáo seria, entáo, em cima dos temas das áreas de atuagáo, das alternativasde atuagáo em Psicología, da questáo do currículo e dos estágios. Seriam trazidosprofissionais para subsidiar a discussao e, após os debates, seriam constituidos gruposde estudo de estudantes para se tirar diretrizes para o posterior encaminhamento daslutas.Dentro desse prisma, qual seria o caráter o ENEP?

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O caráterdo ENEPVemos, desde entao, que o ENEP surgiu do encontró como fonte de energía, trazendourna questao política manifesta e urna questao afetiva latente (lagos de amizade comofator unificador).Num primeiro momento esse era o quadro, no qual se discutía o geral da realidadesocial, embalados pelo apelo passional.A partir do momento que se viu a necessidade da entrada do específico, o académicoganhou espago no interior programático dos ENEPs, inclusive com a participagao deprofissionais, pois até entao os ENEPs eram exclusivamente dos estudantes.Ai surgiu a questao: o ENEP era político ou académico?Alguns encontros se intercalaram tendo o político como principal, ou o académico comocentral, e alguns nos quais o académico das práticas profissionais serviría para umquestionar político da Psicología e da formagao do futuro psicólogo.Todos tinham como paño de fundo a questao vivencial-afetiva.A reconstrugao da historia e memoria dos ENEPs mostra urna passagem por todas aspossibilidades de encontró, sendo de cada urna está marcada pelo contexto ondeaconteceu, pelo grupo que a organizou e pelo momento do movimento estudantil. Pareceque, históricamente, o ENEP se constituí como um encontró afetivo-político-académico,nessa ordem de grandeza.Além disso, urna outra bandeira de agao foi a configuragao dos EREPs (Encontró Regionaldos Estudantes de Psicología), como forma de envolver grupos menores no movimento etambém levantar questoes específicas de cada regiao, o que trouxe a tona um dilema:Haveria urna identidade do estudante de Psicología do Brasil ou seriam identidades?

A identidade do estudante de PsicologíaComo forma de iniciar essa reflexao, algumas características gerais sobre o estudante dePsicología poderiam ser apontadas:a) Ele necessita do encontró e da vivencia para conseguir gerar seu movimento;b) Seu movimento geralmente parte das questoes específicas para atingir o geral (areforma curricular é sua utopia);c) O ENEP é o instante no qual as coisas acontecem e o movimento se faz: sem ENEPnao há movimento estudantil na Psicología;d) Nao é radical em seus posicionamentos, assumindo sempre posturas e agoes maismoderadas, mas sempre participa ativamente dos grandes movimentos;e) Seu movimento históricamente pouco atingiu a Psicología de forma geral, só o fazendodurante as questoes curriculares;f) A influencia do movimento estudantil na formagao do estudante de Psicología se dáindividualmente, nunca de forma coletiva;g) O grupo de estudantes de Psicología consegue conquistas locáis e focáis, quase nuncaultrapassando os seus próprios limites;h) Vive ainda imerso em problemas internos de sobrevivencia enquanto movimentoestudantil, nao conseguindo atingir o geral (Psicología), nem a realidade social.Essas sao algumas constantes surgidas nessa reconstrugao, mas será que podemos aindafalar em identidade de um estudante de psicología? Eis urna questao que fica.Em fungao dessa construgao identitária do estudante de Psicología, a organizagao domovimento estudantil sempre foi urna tarefa complexa, que se enrijecia com os grupospolíticos no comando, mas que corría o risco de ficar á deriva sem esses grupos que,após alguns anos afastados da coordenagao dos ENEPs e incentivados pelo contextonacional de mudangas da segunda metade da década de 1980, retornaram a essafungao.

7a fase - o retorno dos grupos políticos estudantis ao comando do ENEP(1986/1991)O movimento estudantil brasileiro vivia imerso no marasmo e na falta derepresentatividade, muito em fungao da imobilidade dos partidos políticos de esquerda,que aguardavam urna chance para marcarem presenga no palco brasileiro. Essa chance

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surgiu com a eleigao dos deputados e senadores que comporiam a Assembléia NacionalConstituinte, o que deu um novo estímulo aos grupos políticos estudantis, vinculados aoPC do B (Partido Comunista do Brasil) e as varias tendencias do PT (Partido dosTrabalhadores).O IX ENEP foi reflexo disto e marcou urna nova fase com o ressurgimento das tendenciaspolíticas direcionando o movimento estudantil da Psicología, só que agora com maisenvolvimento com as questoes específicas da Psicología. Configurava-se um retorno eurna mudanga, sendo urna das armas para essa mudanga a reforma curricular, que muitomais que urna mudanga de conteúdo, deveria se constituir na aproximagao do curso dePsicología com a realidade nacional.O tema do Encontró foi o psicólogo e a constituinte, assunto da época, inaugurando ocostume de eixos temáticos norteadores das discussoes, com esperanga de que adiscussao nao se perdesse em assuntos secundarios e tivesse um núcleo comum, o quese acreditava ser muito produtivo.Outro caminho foi á aproximagao com a UNE (Uniao Nacional dos Estudantes), entidaderepresentativa máxima dos estudantes, vista agora com bons olhos pela ExecutivaNacional dos Estudantes de Psicología.Esse momento marcou o resgate das armas de luta históricamente construidas pelomovimento estudantil da Psicología: a UNE (Uniao Nacional dos Estudantes) e a reformacurricular.Apesar disso, os grupos políticos nao conseguiram garantir seu espago nos ENEPs ecomegaram a perder sua representatividade junto aos estudantes, principalmente peladescrenga na UNE (Uniao Nacional dos Estudantes) como entidade de representagao.Operando urna retomada histórica breve em termos de processos organizativos domovimento estudantil na Psicología, primeiramente tivemos a COEP (ComissaoOrganizadora dos Encontros de Psicología); que se tornou COEP (Comissao Organizadorados Estudantes de Psicología) formada pelas entidades estudantis; com a reconstrugaoda UNE (Uniao Nacional dos Estudantes) se vinculou a esta se tornando SEPUNE(Secretaria de Psicología da UNE) tendo urna Executiva Nacional constituida por algumasentidades estudantis e, depois, por chapa de estudantes eleitos em Plenária Final dosENEPs; e, por fim, se desvinculou da UNE (Uniao Nacional dos Estudantes), se auto-intitulando Executiva Nacional dos Estudantes de Psicología.

A paralisia e a falta de rumos do movimento estudantil na Psicología

8a fase - Os grupos políticos perdem terreno e entram em cena as regionais(1992/1998)Diante dessa crise de representatividade, houve um rompimento das Executivas de Áreacom a UNE, configurando-se numa tentativa de que algo novo pudesse emergir nosentido de urna (des)institucionalizagao do movimento estudantil, o que poderia ser urnasaída.O certo era que o movimento estudantil na Psicología vivia afundado na luta pela suasobrevivencia, nao conseguindo atingir o global, nem a própria Psicología, se renova acada ENEP, mas nao aproveitando essa energía proveniente dos encontros.Qual seria seu papel para a Psicología no Brasil?O movimento estudantil na Psicología promove um eterno questionar pelo espiritoirrequieto inerente á condigao de estudante, mas nao consegue coletivamente atingi-la,sendo raros os momentos de agao coletiva do movimento estudantil, que atingiram aPsicología diretamente.Indiretamente a situagao é um pouco melhor, pois se o movimento estudantil naoconsegue um efeito de grupo, exerce influencia marcante nos estudantes de Psicología,futuros psicólogos, que poderao assim, visualizar sua profissao de urna outra maneira,muito mais crítica e pluralista. Assim, a influencia do movimento estudantil sobre aPsicología se dá indiretamente através dos estudantes, que se formarao psicólogos epoderao agir sobre ela, sendo a reforma curricular a ponte mais eficaz entre estudantes eprofissionais.

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E o movimento estudantil na Psicología?Seu ideal é a continuidade e o seu real é a transitoriedade: será, entao, que o ideal émesmo o ENEP ter urna linha continua?A historia aponta que nao. Parece que o mais significativo nos ENEPs é o seu carátermágico, inatual e espontáneo, como apontou um depoente:

Acho agora que um ENEP vocé só sabe o que évivendo, indo a um encontró, conhecendo, porque é ummomento único e indescritível, e por mais que eudescreva, fica difícil captar exatamente o que que é umENEP, sem estar vivenciando este tipo de movimento. Éurna coisa maravilhosa, é um momento decongragamento entre as pessoas, é um momento emque vocé senté que tem muitas pessoas com idéiasparecidas as suas, e aonde vocé vé reflexos domovimento em geral dentro do particular,principalmente quando a coisa caminha mais para olado político.O ENEP é o único espago que vocé vé coisasacontecendo, que jamáis verá de novo, ñas festas, ñasdiscussoes, ñas vivencias, que conta muito com urnapredisposigao das pessoas que vao aos ENEPs emestarem abertas as experiencias e vivencias, que emoutras situagoes nao teriam espago. Acho que aprincipal fungao dos ENEPs é justamente propiciar umespago que permite muito mais coisas do que no seucotidiano, á nivel de discussao académica, á nivel dediscussao política, á nivel de encontró pessoal,realmente com um caráter afetivo-político-académico,nessa ordem de grandeza, porque é muito mais do queum simples encontró, vocé acaba fazendo política, vocéacaba aproveitando um pouco do lado académico, masficando como fatia mais importante o lado da troca, doque acontece em termos de Psicología pelo Brasil e,principalmente, aprender coisas novas e descobrirnovas realidades.

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Notas(1) Essa pesquisa teve o apoio financeiro do CNPq.(2) Conforme consta no Relatório do I ENEP, realizado em Ribeirao Preto/SP em 1976.(3) Texto redigido em 24 de Janeiro de 1988, pela comissao organizadora do X ENEP edistribuido aos participantes do encontró.(4) A palavra historia será sempre redigida com h minúsculo, quando se referir a urnareconstrugao histórica e nao á Historia, enquanto campo de saber, disciplina, que, assimcomo as demais áreas, exige o maiúsculo em seu comego.(5) Com os processos tecnológicos, este campo está se ampliando a cada dia, através derelatos oráis, filmes, gravagoes digitais, entre outros meios.(6) Reivindicagao pela participagao paritaria, ou seja, de proporgao igual de estudantes eprofessores nos órgaos de discussao e decisao universitaria.

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Nota sobre o autorMarcelo Afonso Ribeiro é Professor de Graduagao e do Programa de Pós-Graduagao emPsicologia Social e do Trabalho e Pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidadede Sao Paulo (Brasil), Doutor em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade deSao Paulo (Brasil). Atualmente coordena o CPAT (Centro de Psicologia Aplicada aoTrabalho) do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (Brasil). O enderegopara contato é: Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco D - Sala 163. Cidade Universitaria,Sao Paulo/SP, Brasil. CEP 05508-030. E-mail: [email protected].

Data de recebimento: 19/10/2006Data de aceite: 30/12/2007

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