edição 304 - de 25 a 31 de dezembro de 2008

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Aprimorar a Revolução Cubana: esse é o desejo de quem vive na ilha cari- benha, passados 50 anos da implantação do regime socialista. Em entrevista ao Brasil de Fato, Carlos Trejo, cônsul cubano em São Paulo, afirma que seu povo não quer a volta do capitalismo. Pág. 9 Cuba Durante o seminário Crise - Rumos e Verdades, em Curitiba, cerca de 40 especialistas brasileiros e estrangeiros concluíram que a crise, além de grave, será prolongada e alterará profundamente a econo- mia mundial. Págs. 4 e 5 São Paulo, de 25 a 31 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.br Ano 6 • Número 304 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 ISSN 1978-5134 Uma semana contra a entrega do petróleo e do gás brasileiro Entre 15 e 18 de dezembro, uma ampla articulação de movimentos sociais promoveu protestos de rua, ocupações e greves contra a 10ª rodada de leilão da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Mesmo com a atuação nacional de petroleiros, estudantes e sem-terra, a ANP realizou o leilão no dia 18 de dezembro, após Miséria nas maquiladoras e no campo em El Salvador Exploração da mão-de- obra, pressão por maior produtividade, baixos salários e repressão à ati- vidade sindical são alguns dos problemas enfrenta- dos pelas mulheres que trabalham nas fábricas de tecidos desse país da Amé- rica Central. Já no campo, políticas de incentivo às maquiladoras, importação de alimentos dos Estados Unidos e a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC), entre outros fatores, são alguns dos motivos que contribuem para a migra- ção e o abandono do peque- no produtor local. Pág. 10 Após demissões e férias coletivas, agora é a vez do patronato brasileiro iniciar suas investidas contra a le- gislação trabalhista bra- sileira. Os empresários afirmam que ela seria temporária, apenas para 2009, para deter os efeitos da crise eco- nômica no setor, mas as principais centrais sin- dicais do país rejeitam qualquer tipo de acordo nesse sentido. Pág. 7 AFOGANDO EM NÚMEROS R$ 5,15 milhões é o valor gasto pela gestão do prefeito Gilberto Kassab para realizar a decoração natalina da cidade de São Paulo. Com este valor, poderiam ser construídas 128 casas populares, dando abrigo a 512 pessoas. Ou 5 creches para mil alunos Homenagem do cartu- nista Carlos Latuff, por ocasião da comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao governador do Rio, Sérgio Cabral Fi- lho, por todas as mortes durante operações poli- ciais nas favelas cariocas. Em especial a do menino Matheus Rodrigues, de 8 anos, morto pela polícia com um tiro na cabeça quando saía de casa para comprar pão, na favela Baixa do Sapateiro. ordenar a repressão de manifestantes contrários a ele. Foram vendidos 54 blocos entre os 130 oferecidos. Para João Antonio de Moraes, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), há uma situação propícia para se avançar rumo a uma nova campanha, aos moldes da vitoriosa “O petróleo é nosso”. Pág. 6 Em defesa do mandato de Jackson Lago Movimentos sociais e entidades da sociedade civil protestam contra o pedido de cassação do governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e de seu vice, Luiz Carlos Porto (PPS). Lago é acu- sado de compra de votos e abuso de poder econômi- co nas eleições de 2006. No entanto, organizações denunciam que a cassa- ção é uma tentativa de golpe da família Sarney, que está movendo o pro- cesso. Se Lago deixar o cargo, quem irá assumir será a senadora Roseana Sarney (PMDB), segunda Entidades tentam evitar cassação do governador do Maranhão colocada nas eleições. O Tribunal Superior Elei- toral (TSE) interrompeu, dia 18, o julgamento do governador do Maranhão, e de seu vice. O ministro Felix Fischer pediu vis- ta do processo e não há previsão de retomada do caso. Pág. 7 Economistas atestam: crise é grave e longa Agora é oficial: a Bo- lívia é um país livre do analfabetismo. A con- quista do governo de Evo Morales se dá após 30 meses de trabalho com os governos de Cuba e Venezuela. Ao lado desses, a Bolívia passa a ser o terceiro país lati- no-americano sem anal- fabetos. Calcula-se que 819.417 bolivianos se al- fabetizaram com o méto- do cubano Yo, sí puedo, também usado por Hugo Chávez. Pág. 12 Bolívia, um país onde todos podem ler e escrever Empresários usam crise para atacar direitos trabalhistas APN Reprodução Everson Bressan/SECS Caio Guatelli/Folha Imagem Manifestação na sede da ANP contra a 10ª rodada de licitação do petróleo

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Entre 15 e 18 de dezembro, uma ampla articulação de movimentos sociais promoveu protestos de rua, ocupações e greves contra a 10ª rodada de leilão da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Mesmo com a atuação nacional de petroleiros, estudantes e sem-terra, a ANP realizou o leilão no dia 18 de dezembro, após Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo, de 25 a 31 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno6•Número304 AFOGANDO EM NÚMEROS Reprodução Everson Bressan/SECS

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Page 1: Edição 304 - de 25 a 31 de dezembro de 2008

Aprimorar a Revolução Cubana: esse é o desejo de quem vive na ilha cari-benha, passados 50 anos da implantação do regime socialista. Em entrevista ao Brasil de Fato, Carlos Trejo, cônsul cubano em São Paulo, afirma que seu povo não quer a volta do capitalismo. Pág. 9

CubaDurante o seminário

Crise - Rumos e Verdades, em Curitiba, cerca de 40 especialistas brasileiros e estrangeiros concluíram que a crise, além de grave, será prolongada e alterará profundamente a econo-mia mundial. Págs. 4 e 5

São Paulo, de 25 a 31 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno 6 • Número 304

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

ISSN 1978-5134

Uma semana contra a entrega do petróleo e do gás brasileiroEntre 15 e 18 de dezembro, uma ampla articulação de movimentos sociais promoveu protestos de rua, ocupações e greves contra a 10ª rodada de leilão da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Mesmo com a atuação nacional de petroleiros, estudantes e sem-terra, a ANP realizou o leilão no dia 18 de dezembro, após

Miséria nas maquiladorase no campo em El Salvador

Exploração da mão-de-obra, pressão por maior produtividade, baixos salários e repressão à ati-vidade sindical são alguns dos problemas enfrenta-dos pelas mulheres que trabalham nas fábricas de tecidos desse país da Amé-rica Central. Já no campo,

políticas de incentivo às maquiladoras, importação de alimentos dos Estados Unidos e a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC), entre outros fatores, são alguns dos motivos que contribuem para a migra-ção e o abandono do peque-no produtor local. Pág. 10

Após demissões e férias coletivas, agora é a vez do patronato brasileiro iniciar suas investidas contra a le-gislação trabalhista bra-sileira. Os empresários afirmam que ela seria temporária, apenas para 2009, para deter os efeitos da crise eco-nômica no setor, mas as principais centrais sin-dicais do país rejeitam qualquer tipo de acordo nesse sentido. Pág. 7

AFOGANDO EM NÚMEROS

R$ 5,15 milhões é o valor gasto pela gestão do

prefeito Gilberto Kassab para realizar a decoração

natalina da cidade de São Paulo. Com este valor,

poderiam ser construídas 128 casas populares,

dando abrigo a 512 pessoas.

Ou 5 creches para mil alunos

Homenagem do cartu-nista Carlos Latuff, por ocasião da comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao governador do Rio, Sérgio Cabral Fi-lho, por todas as mortes durante operações poli-ciais nas favelas cariocas. Em especial a do menino Matheus Rodrigues, de 8 anos, morto pela polícia com um tiro na cabeça quando saía de casa para comprar pão, na favela Baixa do Sapateiro.

ordenar a repressão de manifestantes contrários a ele. Foram vendidos 54 blocos entre os 130 oferecidos. Para João Antonio de Moraes, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), há uma situação propícia para se avançar rumo a uma nova campanha, aos moldes da vitoriosa “O petróleo é nosso”. Pág. 6

Em defesa do mandato de Jackson Lago

Movimentos sociais e entidades da sociedade civil protestam contra o pedido de cassação do governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e de seu vice, Luiz Carlos Porto (PPS). Lago é acu-sado de compra de votos e abuso de poder econômi-

co nas eleições de 2006. No entanto, organizações denunciam que a cassa-ção é uma tentativa de golpe da família Sarney, que está movendo o pro-cesso. Se Lago deixar o cargo, quem irá assumir será a senadora Roseana Sarney (PMDB), segunda

Entidades tentam evitar cassação do governador do Maranhão

colocada nas eleições. O Tribunal Superior Elei-toral (TSE) interrompeu, dia 18, o julgamento do governador do Maranhão, e de seu vice. O ministro Felix Fischer pediu vis-ta do processo e não há previsão de retomada do caso. Pág. 7

Economistas atestam: crise é grave e longa

Agora é oficial: a Bo-lívia é um país livre do analfabetismo. A con-quista do governo de Evo Morales se dá após 30 meses de trabalho com os governos de Cuba e Venezuela. Ao lado desses, a Bolívia passa a ser o terceiro país lati-no-americano sem anal-fabetos. Calcula-se que 819.417 bolivianos se al-fabetizaram com o méto-do cubano Yo, sí puedo, também usado por Hugo Chávez. Pág. 12

Bolívia, um país onde todos podem ler e escrever

Empresáriosusam crise para atacar direitos trabalhistas

APN

Reprodução Everson Bressan/SECS

Caio Guatelli/Folha Imagem

Manifestação na sede da ANP contra a 10ª rodada de

licitação do petróleo

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Que venha o jornalismo

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sa-les de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper,

João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

Ano novo, novas lutas

EM 6 de dezembro, o Estado grego assassinou Alexis Grigo-ropoulos, de 15 anos, com um tiro no coração. Mais uma vítima numa longa lista de estudantes, imigrantes, trabalhadores, pessoas comuns que tiveram a infelicidade de serem jovens, revoltados, de-sesperados por uma vida nova.

Ao contrário do que o Estado e a maioria dos meios de comuni-cação hipocritamente alegam, não foi uma questão de falta de trei-namento dos policiais gregos, que atiram sempre “acidentalmente”. Não foi uma questão de estar no lugar errado, no momento errado. O Estado grego sempre atira no alvo de propósito e com precisão. Às vezes porque, mesmo após três décadas e meia de ditadura militar e seis após a guerra civil que ter-minou com a derrota da esquerda, a polícia e o Estado continuam carregando uma mentalidade fascista, racista e totalitária, que gerou milhares de vítimas desde a 2ª Guerra Mundial nesta chamada terra da democracia. Às vezes ape-nas para praticar sua brutalidade, mostrar sua determinação e escla-recer quem é o dono do pedaço. Às vezes só para acalmar a burguesia ameaçada – dentro da sua ilusão de segurança – pela esquerda ex-traparlamentar, a juventude rebel-de e inconformada, pelos imigran-tes famintos, “escuros” ou estra-nhos demais para esta sociedade conservadora e perdida entre sua realidade Balcânica-oriental e sua vontade de se mostrar ocidental.

Na mesma noite de 6 de de-zembro, entre 90 minutos após a notícia ter se espalhado através de fóruns eletrônicos e celulares, cen-tenas de estudantes e trabalhado-res saíram nas ruas para protestar contra o assassinato. E nessas duas semanas, diariamente, em todo o país, as ruas das cidades são toma-das pela raiva, pela revolta, mas também pela esperança de mudar a realidade grega. Mais de 300 bancos e dezenas de lojas de em-presas nacionais e transnacionais foram destruídas e queimadas, e quase todos os ministérios no cen-tro do capital e os departamentos policiais foram atacados.

Os prejuízos econômicos são enormes. A maioria das escolas secundárias e todas as universida-des no país são ocupadas por uma juventude que busca uma nova identidade, uma identidade pró-pria e não imposta por um sistema educativo falido, num país que se tornou caro demais para se viver depois da introdução do euro. E a polícia grega, após ter acabado seu estoque de quase 5 toneladas de gás lacrimogêneo – cerca de 6 mil bombas – contra os manifestantes, busca desesperadamente novos suplementos junto ao exército isra-elense e polícia alemã.

A violência desta revolta pegou muitos de surpresa dentro e fora do país, mas a maioria da socie-dade grega sabe que o assassinato do jovem era apenas a chama perto de um barril de pólvora. Os estudantes não protestam apenas

pela morte do seu colega. Protes-tam contra o governo do Kostas Karamanlis, eleito com a bandei-ra de limpeza da administração pública pelo fi m da corrupção e do nepotismo, mas que se afunda debaixo de novos escândalos da mesma espécie. Protestam porque os investimentos em pesquisa e no sistema de educação pública – que nunca superam 3% do PIB, um dos percentuais mais baixos na zona do euro – são sempre menores do que os gastos militares. Entre os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), fi ca apenas atrás dos EUA.

Protestam porque, enquanto os impostos diretos e indiretos pa-ra a sociedade aumentam nesta conjuntura de crise fi nanceira, a igreja ortodoxa grega fi ca isenta de qualquer imposto, mesmo sendo a maior proprietária de terras no país depois do Estado, sendo uma das maiores investidoras na bolsa de valores de Atenas e no exterior. Além disso, possui dezenas de empresas em paraísos fi scais para lavagem de dinheiro, em colabora-ção com as elites políticas e econô-micas do país.

Protestam porque a Grécia é o primeiro país da Europa em de-semprego de jovens entre 15 e 24 anos. São 25%, segundo a Organi-zação para Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE). E as perspectivas para o ano que vem são ainda piores.

Protestam porque, mesmo sen-do bem capacitados e com alto índice de mestres e doutores na faixa etária de 25 a 35 anos, 70% dos jovens profi ssionais trabalham sem alternativa em algo diferente do que estudaram.

Protestam porque, enquanto eles e seus pais se afogam debaixo de dívidas e juros que aumentam – contrário às diretrizes do Banco Central Europeu e à maioria dos outros países que nesta conjuntu-ra de crise do sistema fi nanceiro diminuíram os juros –, o Estado grego decidiu resgatar os bancos privados e assim incentivar o mer-cado, com um pacote de 28 bilhões de euros de dinheiro público. No mesmo momento, o governo ain-da tenta achar os 400 milhões de euros previstos para 2009 para o fundo que iria benefi ciar alguns

dos 20% de cidadãos gregos que hoje vivem abaixo da linha de po-breza. Os jovens protestam na Gré-cia porque não têm outra escolha.

Apenas o prelúdioNeste contexto de crise global, os

olhos do mundo inteiro estão vira-dos para as ruas de Atenas. Deze-nas de manifestações de solidarie-dade por jovens igualmente desilu-didos aconteceram e acontecem da Turquia a Nova York e na maioria das grandes cidades européias. Ao mesmo tempo, governos de vários países, principalmente da Europa, expressaram solidariedade e ofe-receram apoio ao governo grego, temendo que as chamas das ruas de Atenas se espalhe nos seus “barris de pólvora”. O presidente francês Sarkozy, após ter manifestado sua solidariedade para o primeiro mi-nistro grego, retirou o projeto de lei para a reforma do sistema de edu-cação secundária, temendo que os jovens franceses “sujem” Paris.

É verdade que as chamas de Ate-nas podem cruzar as fronteiras. Aliás, muitos dizem que devem. Vivenciamos uma época que a humanidade nunca enfrentou. O sistema fi nanceiro, a segurança alimentar e energética e o clima global no limite de um colapso.

Neste contexto, as elites mun-diais mostraram descaradamente suas prioridades, fi nanciando os bancos e a estabilidade do sistema fi nanceiro com 3.000 bilhões de dólares até agora – quase o mesmo que a invasão do Iraque têm custa-do – enquanto as pessoas famintas no mundo alcançaram a marca de um bilhão.

2009 chega com previsões para o aprofundamento da crise em todo o mundo. Os encapuzados jovens da Grécia talvez não possuam propos-tas concretas para a saída desta cri-se. Mas defi nitivamente mostram qual deve ser o primeiro passo, não apenas para a sociedade grega, mas para todos os trabalhadores do mundo. Foi explícito o banner que um grupo de manifestantes levan-tou em rede nacional após a ocupa-ção da TV estatal, interrompendo a fala do primeiro ministro: “parem de olhar e saiam para as ruas”.

Kostis Damianakis é colaborador do Brasil de Fato em Atenas (Grécia).

debate Kostis Damianakis, de Atenas (Grécia)

Na Grécia, uma revolta anunciada crônica Elaine Tavares

A CRISE do sistema financeiro in-ternacional ainda não atingiu seu ápice. Essa é a avaliação dos prin-cipais analistas de esquerda em todo o mundo. No entanto, as pri-meiras conseqüências da tal “ma-rolinha”, como defi niu o presiden-te Lula, já dão sinais da gravidade dessa crise e o que virá no próximo ano. Somente nos Estados Unidos, já são 11 milhões de desemprega-dos atualmente. A previsão é de 25 milhões de desempregados em todo o mundo no próximo ano.

No Brasil, o cenário não é dife-rente: demissões, férias coletivas em montadoras, queda da pro-dução industrial, diminuição da capacidade produtiva, queda nos empregos formais em dezembro, diminuição do consumo etc.

A crise também tem revelado uma profunda e cínica sinceridade por parte dos capitalistas. Vide as declarações de Roger Agnelli, testa-de-ferro do capital fi nanceiro na Vale – ex-estatal Companhia

Vale do Rio Doce – exigindo fl exi-bilização dos direitos trabalhistas. Ou os desesperados pedidos de recursos públicos justamente pe-los setores que mais especularam e absorveram dinheiro público nos últimos anos: as montadoras e o agronegócio.

É verdade que o Estado pode ser o fi el da balança dessa crise. Pode-ria adotar medidas como a redução da jornada de trabalho, o estímulo ao mercado interno, a regulamen-tação do mercado fi nanceiro e a construção de uma saída integrada com os países sul-americanos atra-vés da Alternativa Bolivariana para as Américas, como propõe a Carta dos Movimentos Sociais, entregue há duas semanas.

No entanto, infelizmente, o go-verno Lula parece mais disposto a salvar mais uma vez bancos, especuladores e transnacionais.

O pacote de medidas do governo, anunciado há poucos dias, dá um pequeno fôlego para a classe média e permite que as montadoras pos-sam enviar mais lucros para suas matrizes falidas no exterior. Mas não consegue – ou não pretende – atingir os problemas estruturais dessa crise. Mais preocupado com o projeto “Dilma 2010”, o governo parece querer salvar primeiro os habituais fi nanciadores de campa-nha do que os trabalhadores.

Segundo a própria Agência Bra-sil, da estatal EBC, o governo fede-ral já injetou R$ 360 bilhões para conter a “marolinha”, e a maior parte destes investimentos foi para o setor fi nanceiro, R$ 98 bilhões, para que os bancos disponibili-zassem créditos. Neste caso, os recursos não foram transformados em créditos, mas reaplicados pelos próprios bancos na compra de títu-

los do governo. Ou seja, voltaram para o carrossel fi nanceiro sem ge-rar empregos nem créditos.

Porém, o governo e os empresá-rios não são os únicos atores. Para a classe trabalhadora, a crise pode ser um importante momento para fazer lutas. Ou seja, representar uma sa-ída para o descenso de massas que assola o país nos últimos anos.

As manifestações de petroleiros e movimentos sociais contra os lei-lões de petróleo na última semana podem ser indícios de que, fi nal-mente, entraremos em um novo período de mobilizações. Nesse sentido, é fundamental a unidade da esquerda para enfrentar a crise e defender os direitos da classe trabalhadora. Assim, vemos com bons olhos a decisão das centrais sindicais de realizarem, em janei-ro, mobilizações conjuntas para defender os empregos de metalúr-

gicos. Essas iniciativias são sinais de que as lutas virão, e com elas, as conquistas.

A derrocada dos projetos de monocultivo de celulose no Sul do país, dando lugar à expansão dos assentamentos naquela região, re-presentados na conquista da fazen-da Southall, neste mês, são sinais de que, fazendo luta, as vitórias são possíveis.

O fato é que os cenários para a crise ainda estão em aberto. Se a classe trabalhadora demonstrar unidade, clareza nos seus alvos, capacidade de organização e for-ça de mobilização, estimulando as lutas sociais, poderemos ter uma saída pelo projeto da classe trabalhadora. Se resolver apenas antecipar o calendário eleitoral, seremos derrotados de antemão. E, se permanecermos passivos, já conhecemos a saída do capital: mais exploração, menos empregos, menos direitos. Portanto, todos à luta em 2009!

de 25 a 31 de dezembro de 20082

editorial

O JORNALISMO no Brasil é uma vergonha. Quase tudo o que se vê na TV ou se lê nos jornais e revistas semanais pouco tem a ver com a vida das gentes. As fontes são as ofi ciais e raros são os que se aventuram pelas estradas vicinais, poeirentas, da vi-da real. Melhor é fi car no gabinete, nas salas acarpetadas, com ar-condicionado, a sorver cafezinho e ouvir, reverente, a voz do poder. Isso dá muito mais lucro. Pode colocar um jornalista nas graças dos que mandam. Isso signifi ca verbas adicionais e fama.. Quem não quer?

O ser humano normal sonha com isso. Trabalhar na Globo, aparecer em rede nacional, ser reconhecido no supermerca-do. E, de quebra, ainda ter uma boa poupança para os tempos difíceis. Para isso, só vale uma regra: não brigar com o poder. Servilismo, servidão. Dar murro em ponta de faca pra quê? Bo-bagens de quem não tem família para sustentar.

Pois o jornalista iraquiano Muntadar al-Zeidi fez o imprová-vel. Ele não escreveu qualquer matéria, não fi cou perdido entre anotações, não usou câmera escondida, não foi para frente de batalha, não mergulhou em documentos, sequer narrou a vida desgraçada dos seus compatriotas, acossados pela ganância esta-dunidense. Ele apenas arremessou um sapato contra o rei. Numasituação absolutamente normal, quando os jornalistas se aglo-meram para fazer perguntas idiotas a um energúmeno completo como é o presidente estadunidense, sem que absolutamente seja aventada qualquer possibilidade de um questionamento emba-raçoso paro o poder, o homem, jornalista, explodiu.

Não era terrorista, nem homem-bomba, nem nada. Só uma pessoa cansada de servir àquele que nada mais era do que um gângster de terceira classe. Mas que, por tanto tempo nos pín-caros da glória, comandando o exército mais poderoso da Terra, havia de ser temido. E assim, não bastando ter destruído toda a cultura do Iraque, matado sua gente, destruído sua auto-estima, massacrado sua honra, ainda se deu ao luxo de ir dizer good bye. Tripudiava , pisoteava, humilhava um pouco mais aquele povo que, até hoje, passados cinco anos, ainda morre pelo sim-ples fato de ser o que é.

O jornalista não ouviu os dois lados, não contou histórias, não checou informações. Ainda assim merece ganhar todos os prêmios do mundo. E por quê? Porque, num tempo em que o normal é servir ao poder, ele disse: Não! Sem armas, mas sem medo, ele usou o que mais prosaico se poderia usar, o sapato. E num ato de digna raiva o arremessou contra o boneco esta-dunidense, que tal e qual um estúpido, ria sem entender a grandeza do gesto. O jovem iraquiano que, aos gritos de “ca-chorro”, tentou atingir o presidente do país mais armado da Terra, fi cará eterno ao protagonizar uma hora histórica. No lu-gar improvável, entre os serviçais, ele se levantou e arremessou o sapato. Um gesto pueril, inglório, tolo, mas que redimiu parte da humanidade.

Não é sem razão que pelo mundo todo seu gesto ingênuo este-ja sendo saudado como a maravilha das maravilhas. Porque no planeta dos escravos de Jó teve um que decidiu sair da casinha do jornalismo cortesão e dizer ao mundo a palavra aprisiona-da: “cachorro!”, que, pensando bem, é uma ofensa contra esses lindos animais. Vai-te para o inferno, George W. Bush, porque, como já dizia Ali Primera, “hermano de mi pátria usted no es”.

Foi bonito, foi redentor, mas, e agora? Será diferente com Obama? É diferente dos demais carrascos? Trará paz ao mun-do? Acabará com Guantánamo? Findará a tortura? Deixará de ingerir sobre a vida das gentes nos países que têm riquezas para eles roubarem? Duvido muitíssimo!

O bravo jornalista do Iraque enfrentou a ira dos deuses e está a receber aplausos de todos os cantos do mundo. Legal, isso é bom. Mas quisera eu que os coleguinhas do mundo todo principiassem a realizar o insólito, tal qual o iraquiano, não atirando sapatos, mas narrando a vida, a vida mesma, essa que escorre pelos dedos da história real e que não encontra espaço para se expressar.

Sim, foi orgástico ver o sapato voando. Talvez fosse tudo o que aquele homem pudesse fazer. Mas nós, aqui na terrinha, podemos mais do que um sapato no ar. Nós podemos contar da vida, dos podres do poder, da dominação. Nós podemos narrar o horror do cotidiano e mais, nós podemos anunciar a boa nova. Outras formas há de se viver no mundo. Boas e bonitas. Os atiradores de sapatos são bem-vindos, sim, mas é chegada a hora dos Jeremias a insistir contra todo o bom senso: “ainda hão de nascer fl ores neste lugar”. Viva o jornalista iraquiano que arremessou os sapatos, mas vivam também os loucos que, a despeito de tudo, jogam a merda do capital no ventilador. Eles não aparecem em rede nacional, mas estão aí, insistindo e lutando. Há mais sapatos voando por aí do que pode sonhar nossa vã fi losofi a!

Elaine Tavares é jornalista.

Reprodução

Page 3: Edição 304 - de 25 a 31 de dezembro de 2008

NATAL DAS ELITES

de 25 a 31 de dezembro de 2008 3

brasil

Márcio Zonta de São Paulo (SP)

A prefeitura da cidade de São Paulo investiu nesse fi -nal de ano R$ 5,15 milhões em decorações natalinas, referen-te ao projeto Natal Iluminado 2008. Dinheiro esse, que po-deria ser empregado na cons-trução de até cinco creches para mil alunos ou destinado a problemas que assolam a ci-dade, como o defi cit de mora-dia que já ultrapassa um mi-lhão, ocasionando a degra-dação dos mananciais, proi-bidos de urbanização, já ocu-pados em 36,5 km² de sua ex-tensão por aproximadamente 500 mil famílias.

O prefeito Gilberto Kassab (DEM) não poupou energia elétrica para destacar os prin-cipais pontos de representa-ção da economia, do consu-mo, do lazer e da cultura da elite paulistana, entre outros. Ao todo, estão sendo utiliza-das 2,3 milhões de lâmpadas espalhadas pela av. Paulis-ta, Marginais, MASP, edifício Matarazzo, Teatro Municipal, Vale do Anhangabaú, represa Guarapiranga e o Parque Tria-non, que está iluminado com 1 milhão de lâmpadas.

No domingo, 7 de dezem-bro, na continuação da espe-tacularização natalina, Kas-

Alexania Rossato de São Paulo (SP)

A CRISE do capitalismo, que desde outubro tem sido pauta no Brasil e no mundo, já afeta o setor elétrico brasileiro. Os dados são do Operador Nacio-nal do Sistema Elétrico (ONS), que, em novembro, acusa-ram uma queda no consumo nacional de energia de 3,3% com relação ao mês anterior. Ou seja, nesse período, o país deixou de consumir um volu-me de energia equivalente ao abastecimento de uma região de 2,2 milhões de habitantes.

Essa queda é verifi cada principalmente na indústria, já que o consumo comercial e residencial apresenta uma li-geira alta em função das festas natalinas e do período mais quente do ano. Só em São Paulo, o Sinalizador da Pro-dução Industrial, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas e pela distribuidora de ener-gia AES Eletropaulo, indicou que o desempenho da indús-tria em novembro baixou pa-ra padrões semelhantes aos de dezembro de 1997, no auge da crise fi nanceira asiática, com queda de 6% na atividade, se comparada a outubro.

Essa pesquisa foi feita com base no consumo de ener-gia e, dessa forma, a tendên-cia é que os consumidores li-vres, ou seja, que as grandes indústrias comecem a vender parte da energia que já estava contratada e que não vão mais usar no ano que vem, como já vem sendo anunciado. Em de-claração à imprensa, o presi-dente da Empresa de Pesqui-sa Energética (EPE), Maurí-cio Tolmasquim, disse que, se a demanda cair consideravel-mente, haverá aumento de ex-cedentes e que não é desejá-vel que essa sobra seja muito grande para que o consumidor não tenha que pagar por isso.

A redução na produção in-dustrial já é percebida, po-rém os dados sobre a queda

sab, ao lado da apresentado-ra de televisão Hebe Camar-go (SBT), inaugurou no Par-que do Ibirapuera uma árvore de natal de 70 metros de altu-ra, o equivalente a um prédio de 24 andares. Com 31 metros de diâmetro, a mesma ador-nará 800 mil lâmpadas.

Com certeza, Kassab e He-be não fazem parte das esta-tísticas de brasileiros que se-quer possuem energia elétri-ca para acender uma só lâm-pada em sua moradia. Dados do Instituto Brasileiro de Ge-ografi a e Estatística (IBGE) apontam para aproximada-mente 10 milhões de pes-soas sem luz elétrica em ca-sa. Tampouco, precisariam ir muito longe da cidade de São Paulo para vivenciar a situação. Cidades próximas sofrem com a falta de ener-gia elétrica, como é caso da comunidade da Bela Vista I, na cidade de Barra de Turvo, que fi ca a 280 km da capital. Cerca de 400 moradores têm difi culdades para armaze-nar alimentação, estudar, ter acesso a outras cidades, além das informações, que só che-gam pelo rádio de pilha.

O que eles dizemKassab nem sabe quanto a

cidade vai gastar de energia elétrica nessa época do ano, e não estabeleceu qualquer ti-

po de compensação ambien-tal pelo aumento da emissão de gás carbônico provoca-do pelo consumo de energia. Em coletiva à imprensa, pa-rece que sua única preocupa-ção é o trânsito que as decora-ções podem causar. “As pesso-as curtem o natal, elas querem conhecer as decorações nata-linas, evidente que o trânsito tende a acontecer”, afi rmou.

Já a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente da cidade de São Paulo, que seria a responsável pelo assunto, se isenta. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, diz que a questão tem que ser tra-tada com a SPTuris, empresa de promoção de turismo.

O presidente da SPTuris, Caio Carvalho, diz não ter ne-nhum projeto formalizado que possa trazer uma com-pensação ambiental, no en-tanto, afi rma que as lâmpa-das utilizadas nesse ano, con-somem menos energia. “Ain-da não temos um estudo de compensação ambiental pa-ra o projeto Natal Ilumina-do, mas temos uma preocupa-ção constante com o tema. Pa-ra este ano de 2008, já substi-tuímos uma boa parte de lâm-padas incandescentes por LE-ds (sigla em inglês para Dio-do Emissor de Luz), que con-somem cerca de 70 % menos energia”, conclui.

Para o professor do Insti-tuto de Eletrotécnica e Ener-gia da Universidade de São Paulo Ricardo Santos d’Avila, mesmo utilizando essas lâm-padas, o consumo de ener-gia aumenta, pois todas essas lâmpadas não estavam aces-sas antes. “A observação é simples, impacta o consumo de energia elétrica. Qualquer coisa que não esteja ligada e passe a funcionar, consome energia a mais”, comenta.

Os shoppings, também campeões em investimen-to destinado às decorações natalinas, com o objetivo de atraírem mais público, de-

sembolsaram de R$ 400 mil a R$ 4 milhões neste ano. Po-rém, não evidenciam nenhu-ma preocupação com o fa-tor ambiental e sequer qui-seram se pronunciar sobre o assunto.

A AES Eletropaulo contra-diz a própria peça publicitária que veiculou na televisão em meados de outubro e novem-bro, enfatizando sobre o des-perdício de energia elétrica e aconselhando a população a não deixar as luzes acessas e economizar ao máximo a energia elétrica no dia-a-dia. Frente as 2,3 milhões de lâm-padas a mais acesas nas ruas

Prefeito Kassab gasta R$ 5,15 milhões em decorações natalinas em São PauloA cidade de São Paulo usa energia equivalente ao porte de uma central hidrelétrica para manter seu enfeite natalino

Crise mundial já afeta o setor elétrico ENERGIA A redução na produção industrial já é percebida, MAB defende que governo não construa novas obras

no consumo de energia serão mais claros a partir de março do próximo ano. Essa é pre-visão do professor da Univer-sidade Federal de Mato Gros-so, Dorival Gonçalves Junior, que aponta para um agrava-mento da crise sobre os tra-balhadores das diversas ca-deias produtivas. “Acontece-rá uma reação em cadeia e es-sa queda em alguns setores da indústria se refl ete nega-tivamente nas condições de vida da classe trabalhadora, principalmente dos trabalha-dores da indústria automoti-va e das companhias eletroin-tensivas, como as dos setores de alumínio, siderurgia e mi-neração. Além disso, setores intermediários a essas indús-trias também sentirão os efei-tos da crise”, afi rmou.

Esta declaração do professor Dorival confi rma as informa-ções do último período refe-rentes ao efeito da crise sobre os trabalhadores, principal-mente das indústrias que mais consomem energia, como as eletrointensivas, por exem-plo. Atitudes drásticas como concessão de férias coletivas, demissões em massa e fl exi-bilização das leis trabalhistas, como propôs o presidente da Vale, Roger Agnelli, estão sen-do recorrentes nesses setores.

Possibilidade de mudançasA crise expôs os limites do

sistema e defl agra a necessi-dade de rediscutir o atual mo-delo energético e de desenvol-vimento, afi rmam as lideran-ças do Movimento dos Atingi-dos por Barragens (MAB). “A

atual crise abre a possibilida-de de discutirmos uma rees-truturação profunda, que par-ta das necessidades reais de superação das contradições do atual modelo e que carre-gue os princípios da soberania a partir de um projeto popu-lar”, disse Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do movimento. Segundo ele, nos últimos anos não existia a possibilidade de abrir esse debate com a sociedade, pois as grandes empresas – com o apoio das políticas de Estado e utilizando-se do falso discurso de falta de energia associado à possibilidade de novo “apa-gão” – impediam e discrimi-navam os que levantassem es-sa bandeira. “A regra era pro-duzir energia, mesmo que is-so acarretasse diversos crimes

ambientais e sociais e a entre-ga das nossas riquezas para os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros”, fi -naliza Cervinski.

Porém, mesmo com a ten-dência de queda do consumo já neste ano e também no pró-ximo, a regra continua sen-do produzir energia em bar-ragens novas. Ou seja, existe um interesse do governo fede-ral em grandes obras, como as barragens do rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.

Segundo o professor Do-rival Gonçalves, os projetos prioritários do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) não sofrerão os efeitos da crise, pois são obras pro-jetadas em longo prazo. “As usinas hidrelétricas de San-

to Antônio e Jirau, no rio Ma-deira, por exemplo, são obrasde seis a oito anos, desde osestudos iniciais até a gera-ção; portanto esses projetosestão na lógica da retomadado crescimento econômico eda acumulação do capital. Aregra continua sendo a mes-ma: o investimento de gran-des cifras em obras de infra-estrutura do setor de ener-gia. Exemplo disso foi a lici-tação das linhas de transmis-são dessas duas barragens,cujo leilão feito recentemen-te foi quase que garantido pe-lo Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e So-cial (BNDES).”

Outra prova desse interes-se do governo em manter pro-jetos de novas barragens é o Fundo de Garantia a Empre-endimentos de Energia Elétri-ca (FGEE), criado pela Medi-da Provisória n° 450, em 9 de dezembro de 2008. O objetivo do Fundo não seria o fi nancia-mento direto às obras de in-fra-estrutura energética, mas sim, prover garantias que são dadas sempre que uma em-presa solicita empréstimos, no BNDES ou seja em bancos privados, [para as obras].

Dentro da proposta de re-discutir o atual modelo ener-gético, o MAB afi rma que omomento não seria do gover-no continuar incentivando aconstrução de novas obras,principalmente as da Amazô-nia, e sim de investir recursospara as possíveis alternati-vas no setor elétrico. Uma de-las seria uma ampla repoten-ciação das usinas antigas, quesegundo estudos do professorCélio Bermann, da Univer-sidade de São Paulo, pode-ria agregar mais 8 mil mega-watts ao sistema elétrico na-cional sem construir nenhu-ma usina nova. Signifi ca que, com apenas uma medida, se-ria possível agregar ao siste-ma nacional mais energia doque Santo Antônio e Jirauproduzirão a um custo sociale ambiental irreparável.

de São Paulo, a empresa pre-fere atribuir a crise fi nancei-ra à responsabilidade pelocontrapeso do consumo deenergia. “A crise fi nanceira fez com que muitas empresasmarcassem férias coletivas deseus funcionários durante es-te período de festas, portan-to não teremos um aumentoabusivo”, afi rmou sua asses-soria de imprensa.

Modo de vida insustentávelPara Ricardo Baitelo, que

atualmente coordena a Cam-panha de Energias Renová-veis, promovida pelo Gre-enpace, a situação é preo-cupante e vai muito alémdo contrapeso proposto pe-la Eletropaulo. “Por baixo,se calcularmos 10 watts pa-ra cada lâmpada, temos oequivalente a um porte deuma usina a mais funcionan-do só para isso; ou calculan-do mais baixo ainda, 1 watt,que seja, ela equivale poruma pequena central hidre-létrica”, avalia.

Baitelo ainda chama aten-ção pelo fato de que hoje o país pode utilizar energias de matrizes limpas, mas adverte: “Mesmo com a utilização das hidrelétricas, em médio pra-zo não teremos mais matrizes limpas, qualquer uso provoca-rá a emissão de gases”.

Para Baitelo, a saída de um modo de vida insustentável,perante às questões ambien-tais, está voltado a modelosde vida alternativos e cons-cientes, que não extrapolemo consumo já existente. “Oquanto antes precisamos re-ver nosso modo de consumode energia. Prefeituras, em-presas e residências não po-dem desperdiçar tanto, te-mos que nos perguntar atéque ponto podemos destinartanta energia a um fi m deco-rativo, sem função social al-guma”, conclui.

Cachoeira de Santo Antônio, no Rio Madeira, que será cobertua com construção de barragem

Wilson Dias/ABr

Inauguração da árvore de Natal do Ibirapuera

Eduardo Anizelli/Folha Imagem

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de 25 a 31 de dezembro de 20086

brasil

Emprego ameaçadoAs centrais sindicais da América

do Sul entregaram documento aos chefes de Estado reunidos na Cú-pula da América Latina e do Caribe (CALC), ocorrida na Bahia entre os dias 15 e 17 de dezembro, no qual pedem garantia de emprego nas empresas que receberem ajuda go-vernamental. Aqui no Brasil vários setores econômicos que receberam incentivos fi scais e pegaram dinhei-ro público no BNDES, Banco do Brasil, CEF continuam a demitir. Quem vai segurar?

Serviço ruimAlém de promoverem um aumen-

to absurdo nas tarifas, as empresas privadas de telefonia continuam abusando da paciência dos brasi-leiros: segundo o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, o cadastro de reclamações de 2008 registrou 34 mil denúncias contra os serviços de telefone celular, de um total de 93.872 reclamações. Em segundo lugar, fi caram as em-presas de cartão de crédito.

Mordomia privadaDeputados federais de vários

partidos, do DEM ao PCdoB, esti-veram juntos no show de Madonna, no Morumbi, patrocinados pela Claro, TAM e outras empresas con-cessionárias de serviços públicos. Não apenas aceitaram a cortesia dos camarotes vips, uma espécie de propina para celebridades, como vestiram botons e camisetas com as marcas das empresas. Isso não fere o decoro parlamentar?

Pizzaria cariocaDos 11 militares que entregaram

três jovens do morro da Providência para trafi cantes da favela rival, em ju-nho de 2008, apenas três continuam presos. Os demais foram soltos pela Justiça Federal, embora os jovens da Providência tenham sido brutalmente assassinados. Tudo indica que mais esse crime bárbaro, com a participa-ção de integrantes do Exército brasi-leiro, acabará na impunidade.

Antiga formaçãoVira e mexe o ministro das Minas

e Energia, Edison Lobão, demonstra publicamente que continua saudoso dos tempos da ditadura militar. Ou-tro dia, questionado pelos jornalis-tas sobre o modelo de exploração do pré-sal, ele deu como exemplo o que fez o ministro Roberto Campos, no governo Castello Branco: “Contratou um grande advogado que fez todas as leis do país”. Para que servem os órgãos e funcionários públicos?

Dinheiro fácil O governo federal não apenas

mudou as regras do jogo e montou lobby para a empresa de telefonia Oi comprar a Brasil Telecom, negócio que merece investigação cuidadosa, como também entregou R$ 6,8 bi-lhões dos cofres públicos – BNDES e Banco do Brasil – para os comprado-res. Da mesma forma, R$ 8 bilhões foram entregues para as empresas privadas da hidrelétrica Santo Anto-nio, no Rio Madeira. Moleza!

Modelo falidoVárias universidades privadas de

São Paulo, entre elas a São Marcos e a Ibirapuera, estão com atrasos nos salários dos professores, enfrentam movimentos grevistas e inadimplên-cia crescente. A crise do ensino supe-rior é uma herança do modelo cons-truído durante a ditadura militar, que os governos civis de 1985 para cá não quiseram enfrentar. Quem paga o preço da péssima qualidade das escolas é a juventude brasileira.

Sapatos voadoresMais do que atirar dois sapatos

contra o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, o jornalis-ta Muntazer Al Zaidi gritou a frase que o mundo todo deve ao Iraque: “É o seu beijo de despedida do povo iraquiano, seu cachorro. Isso é pe-las viúvas, órfãos e pelos que foram mortos no Iraque”. Principalmente para lembrar os mais de 200 mil iraquianos mortos em função da ocupação militar daquele país. Uma dívida impagável!

Armação supremaA investigação sobre o suposto

grampo ocorrido numa ligação te-lefônica do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, “revelado” pela re-vista Veja há mais de quatro meses, não chegou a nenhum culpado ou indício de que tenha havido mesmo o tal grampo. Tudo indica que a gra-vação foi interna, coisa da segurança do STF, e divulgada para comprome-ter a Abin e a Polícia Federal.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Renato Godoy de Toledoda Redação

ENTRE 15 e 18 de dezembro, uma ampla articulação de movimentos sociais promoveu a maior jorna-da de lutas contra o leilão do pe-tróleo brasileiro. De petroleiros a sem-terra, dezenas de pólos da Petrobras foram paralisados e, sobretudo no Rio de Janeiro, pas-seatas reuniram milhares de pes-soas, com direito a repressão da polícia local. A sede da Petrobras foi ocupada no Rio de Janeiro e os manifestantes foram submeti-dos a uma reintegração de posse solicitada pela empresa.

Mesmo com esse movimento nacional, no dia 18 de dezembro, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) leiloou 48 mil km2 dos 70 mil km2 oferecidos para a explo-ração deste combustível. Os blo-cos oferecidos estão localizados nas bacias sedimentares de Poti-guar, Amazonas, Parecis, Sergipe-Alagoas, Paraná, Recôncavo e São Francisco.

Ainda que o objetivo principal dos movimentos não tenha sido atingido, a semana demonstrou que há a possibilidade de uma uni-dade oriunda da luta pelo controle nacional das reservas energéticas.

Para João Antonio de Moraes, coordenador da Federação Úni-ca dos Petroleiros (FUP), o pe-tróleo tem sido um fator agre-gador dos movimentos. Otimis-ta com o encerramento da sema-na de lutas, Moraes afi rma que o Brasil pode estar vivendo uma reedição da campanha “O Petró-leo é nosso”, que culminou na criação da Petrobras, em 1953. Confi ra abaixo entrevista.

Brasil de Fato – Qual é a sua avaliação sobre essa semana de mobilizações? Tanto em relação à unidade entre os movimentos, quanto à repressão.João Antonio de Moraes – A gente faz um balanço muito po-sitivo das mobilizações. Foi uma jornada extensa de lutas. Segura-mente, dos 10 leilões que a Agên-cia Nacional do Petróleo (ANP) organizou, este foi o que teve mais resistência, principalmente porque ela foi articulada entre os movimentos sociais. Nas outras vezes, tínhamos uma resistência apenas da categoria dos petrolei-ros. Fazíamos atos, pressionáva-mos, questionávamos na Justi-ça, mas sempre focado na cate-goria petroleira. Agora, a inser-ção dos movimentos sociais foi muito positiva em vários aspec-tos: na questão da unidade e da descentralização, pois tivemos atos em diversos lugares. Outro ponto positivo dessa semana foi a greve de 24 horas chamada pe-la FUP, que efetuamos em todas as nossas bases. Foi uma greve de muito sucesso, pois não envolvia nenhuma outra questão [além da oposição aos leilões]. Foi uma greve essencialmente política. Esses são os pontos positivos.

No entanto, não houve a sen-sibilidade do governo e da ANP, que não foram demovidos de sua posição de entregar o petróleo na Bacia das Almas. Realizaram o leilão em plena crise econômi-ca, com a perspectiva de arreca-dar muito pouco, perante o que valem as reservas brasileiras. Es-sa foi a parte negativa. Quanto ao Judiciário, em relação às ações que nós promovemos na Justiça, ele oscilou entre não se pronun-ciar e em negar nossos pedidos. As ações continuam seguindo em seu curso normal, em relação a mérito, mas as liminares foram todas negadas. Tivemos também a questão da violência. No dia 17 de dezembro, a Petrobras pediu a reintegração de posse [para reti-rar manifestantes que ocupavam a sede da empresa no Rio de Ja-neiro] de um patrimônio que per-tence ao povo. Como é que o po-vo pode ceder a reintegração de posse de algo que lhe pertence?

Consideramos muito negativa essa ação por parte da empresa. Hoje [18 de dezembro] tivemos uma ação violenta em frente à ANP. Houve uma dispersão mui-to agressiva da polícia na esquina entre as avenidas Presidente Var-gas e Rio Branco.

Como se deu a articulação dos movimentos sociais na luta contra os leilões? O processo de unidade foi facilitado pela descoberta do pré-sal?

O petróleo, historicamente, foi um fator de unidade dos movi-mentos. Nós, dos movimentos so-ciais, sempre defendemos a ener-gia como um bem social, não o en-xergávamos com uma visão mera-mente econômica. Não temos a vi-são de que “temos que proteger o petróleo porque ele vale muito di-nheiro”. Acreditamos ser impor-tante proteger o petróleo porque o conjunto da sociedade precisa de energia e de petróleo. Se você dei-xar um bem social ser dominado pelos interesses meramente eco-nômico das transnacionais, certa-mente o país não estará bem. In-dependentemente do pré-sal, nos-sa visão sempre foi essa. O pré-sal favorece essa articulação na me-dida em que ele sensibiliza a opi-nião pública. Nós estamos colhen-do assinaturas para a criação de uma nova lei do petróleo. A aceita-ção desse abaixo-assinado é mui-to grande.

Outro fator que ajuda a unida-de é a crise global, porque ela de-monstra a falência do neolibera-lismo. Tenho dito que, assim co-mo a queda do Muro de Berlim em 1989 foi um baque para todos nós, inclusive para os companhei-ros que eram críticos do socialis-mo real, agora, com o crash da crise do subprime nos EUA, cai o muro na cabeça dos neoliberais. Acho que essa conjuntura global nos favorece, porque todos aque-les que condenavam a participa-ção do Estado na economia aca-bam de estatizar o setor mais li-beral deles, que é o setor fi nan-ceiro. Ideologicamente isso não é pouca coisa. Não sou daqueles que ousaria dizer que o capita-lismo acabou, mas certamente a versão recente dele sofre um aba-lo gigantesco com a crise.

Para mim, está nascendo uma nova campanha do “petróleo é nosso”, com a mesma força e magnitude que varreu o país no fi nal dos anos de 1940 e início dos de 1950. A etapa do leilão é ape-nas uma batalha. A guerra é pe-lo controle dos recursos naturais e por uma nova lei do petróleo. Não podemos deixar que essa ri-queza tenha o mesmo fi m que te-ve o ouro.

Quais são as diferenças essenciais entre o marco regulatório atual e o defendido pelos movimentos?

As diferenças são substanciais. Não tratamos a atual legislação co-mo marco regulatório, mas como desregulamentação – é uma lei que desregulamenta. A Constituição prevê que o Estado tem o mono-pólio das jazidas petrolíferas. Até 1995, o Estado brasileiro detinha o monopólio e a executora era a Pe-trobras. A partir daí, com os tucanos (PSDB), o monopólio continuou, mas a Petrobras deixou de ser a executora. Com a promulgação da Lei nº 9.478, de 1997, foi permitida a realização de leilão para que em-presas privadas assumam a pes-quisa e a produção do petróleo. A emenda 9, que tirou da Petrobras a execução do monopólio, foi apro-vada pelo Congresso com dois ter-ços de apoio dos deputados.

A Lei nº 9.478 é uma lei ordiná-ria, aprovada com maioria simples. Ela reduz a Constituição, promo-vendo uma desregulamentação. O que temos proposto é a retoma-da do monopólio e o fortalecimen-to da Petrobras como uma empre-sa pública com um aspecto muito importante: o controle social. Ela nunca foi o modelo de empresa que nós sonhamos, claro que já es-teve numa situação bem mais favo-rável quando o Estado tinha mais controle, mas a Petrobras dos mili-tares, por exemplo, não era a nos-sa Petrobras. Nós propomos uma regulamentação de fato, que ho-je não existe. O que temos hoje é o “monopólio da rocha vazia”. Isso é, a Lei nº 9.478 diz que o petróleo que está embaixo da terra é do povo, mas, quando se extrai a primeira gota, ele pertence a quem extraiu.

Qual tem sido, na sua avaliação, a visibilidade da campanha contra os leilões diante da população?

Eu presencio mobilizações aqui no Rio de Janeiro há mui-tos anos. No dia 17 de dezem-bro, fi zemos uma passeata aqui na Avenida Rio Branco. Nunca ti-nha visto uma aceitação tão gran-de da população.

Vocês defendem que as ações da Petrobras sejam recompradas pelo Estado? Sejam elas de pessoas físicas e jurídicas?

Exatamente. E principalmente as ações que estão nas mãos de es-trangeiros, na bolsa de Nova York ou mesmo aquelas que estão na Bovespa, sobre a propriedade de estrangeiros. Essa é a defesa que fazemos: fortalecimento da Petro-bras com o controle do Estado.

Há uma promiscuidade entre o setor público e privado? Existem denúncias, desde o governo FHC, de que alguns diretores da ANP e da Petrobras têm relações com o setor privado. Há mesmo esse vazamento de informações?

Isso é capilarizado na indústria como um todo. A Petrobras tem 60 mil trabalhadores próprios e 180 mil terceirizados. Então, as empresas privadas e empreiteiras permeiam o cotidiano de atuação da Petrobras. Seguramente, elas têm à sua disposição informações privilegiadas, isso é perfeitamen-te possível. Agora anuncia-se que um ex-diretor da ANP foi contra-tado pela OGX, empresa quase de

papel do Eike Batista, que tem le-vado muitos quadros da Petrobras. Esse vazamento de informações se dá por esse mecanismo, em que o setor privado absorve antigos fun-cionários da Petrobras. Isso nos preocupa muito.

Quando tínhamos o monopó-lio estatal do petróleo no Brasil, a Petrobras era a única que atu-ava. Então, todas as informações estratégicas das nossas bacias se-dimentares fi cavam sob o contro-le da empresa e os profi ssionais que detinham esse conhecimento não tinham como passar essa in-formação para outras empresas, a não ser que ele saísse do país. Ho-je temos grandes executivos, qua-dros técnicos da Petrobras, saindo para outras empresas. Esses vão receber por mês o que ganhavam em um ano. Esse é um preço que o Brasil paga por ter tirado o mono-pólio da Petrobras.

Na sua opinião, qual deve ser a lição tirada dessa primeira etapa do processo de mobilização unitária contra os leilões?

É importante reforçarmos que a batalha não acabou, mesmo com a realização do leilão. Vamos conti-nuar a guerra por uma nova legis-lação e continuaremos realizando um esforço para aglutinar todos os movimentos sociais em torno des-sa questão. Precisamos vencer as pequenas coisas que nos diferen-ciam e mirar o que é mais impor-tante: a soberania nacional e o fu-turo das gerações que estão por vir. Se não fi zermos essa ação de controle agora, o futuro das no-vas gerações será muito pior. Ou-tro aspecto importante é a questão do meio ambiente: o petróleo é a energia mais importante do pla-neta, mas ela é poluidora, concen-tradora de renda e gera inúmeros problemas. A única forma que te-mos de atenuar esses problemas é o controle do Estado. O petró-leo explorado pelos interesses ca-pitalistas, certamente, será muito mais poluidor e causará mais pro-blemas ao planeta do que se fos-se controlado pelo Estado e pela sociedade. Por isso, propomos a criação do Fundo Social Soberano, para poder usar a renda do petró-leo para a dívida social com o povo brasileiro, sobretudo com os mais pobres. Essa verba iria para a edu-cação, saúde e reforma agrária.

Mesmo com leilão, movimento contra a venda do petróleo obtém vitóriaENTREVISTA Petroleiro afi rma que processo de unidade é o principal ganho da semana de mobilização

“Para mim, está nascendo uma nova campanha do ‘petróleo é nosso’, com a mesma força e magnitude que varreu o país no fi nal dos anos de 1940 e início dos de 1950”

João Antônio de Moraes, 44 anos, é diretor do Sindipetro Unifi cado do Estado de São Pau-lo. Em 2008 assumiu a coorde-nação da Federação Única dos Petroleiros (FUP) para o período 2008-2011. Moraes entrou na Petrobras em 1984 e é técnico de operação da Refi naria de Ca-puava, em Mauá, na Grande São Paulo. Desde então, milita no movimento sindical.

Quem é

Manifestação realizada dia 18 de dezembro na sede da ANP

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MARANHÃO

de 25 a 31 de dezembro de 2008 7

brasil

Patrícia Benvenutida Redação

O julgamento do Tribunal Su-perior Eleitoral (TSE) sobre o pedido de cassação do governa-dor do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e de seu vice, Luiz Carlos Porto (PPS) foi adiado para 2009. Dia 18, após um pedido de vista do ministro Felix Fischer, a ses-são foi suspensa.

Lago é acusado de compra de votos e abuso de poder econô-mico nas eleições de 2006. No entanto, entidades da socieda-de civil denunciam que o pedi-do de cassação, na verdade, é uma tentativa de golpe da famí-lia Sarney, que comandou o Es-tado por 42 anos. Isso porque o processo é movido pela coligação “Maranhão a Força do Povo”, for-mada pelo então PFL (atualmen-te DEM), PMDB, PTB e PV e en-cabeçada pela senadora Roseana Sarney (PMDB), segunda coloca-da nas eleições.

Na avaliação da integrante da União por Moradia Popular no Maranhão, Creuzamar de Pinho, a tentativa de cassação do man-dato de Lago é uma “perseguição política” da família Sarney ao atu-al governador, que tem como ob-jetivo que Roseana assuma o car-go. “Para nós, é de fato uma ten-tativa de golpe. Já houve tantos problemas em governos anterio-res e nunca houve tentativa de cassação”, lembra.

Acampamento balaiadaCreuzamar esclarece que os

movimentos sociais não estão avaliando a veracidade das de-núncias, já que esse tipo de inves-tigação não é de competência das organizações. De acordo com ela, é preciso haver a devida apuração das denúncias contra Lago, o que até agora não ocorreu.

Foi para evitar a cassação de

da Redação

Em seus 42 anos de governo no Mara-nhão, a família Sarney acumula uma sé-rie de denúncias. A mais grave delas tor-nou-se conhecida em 2005, quando oMinistério Público Federal (MPF) entroucom uma ação na Justiça para devolverao patrimônio do Estado um dos imóveismais valiosos do centro histórico de SãoLuís, o Convento das Mercês.

O prédio, tombado pelo Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacio-nal (Iphan), foi doado em 1990 pelo go-verno de Epitácio Cafeteira (PRR-MA)para a fundação de propriedade do en-tão senador José Sarney (PMDB-AP), umdos remanescentes da Arena da época daditadura. De acordo com o MPF, a açãofoi ilegal, já que a legislação federal pro-íbe a doação ou venda de qualquer edifi -cação pública tombada para uma pessoajurídica de direito privado – no caso, aFundação José Sarney.

A ligação entre Cafeteira e Sarney foi comprovada em 2007 durante a chama-da Operação Navalha, da Polícia Federal, quando Cafeteira, senador pelo PTB-MA, foi escalado por Sarney para atuar em favor do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), um dos acusados no caso.

A partir de 2003, o grupo Sarney pas-sou a organizar todos os anos, dentrodo Convento das Mercês, uma festa-co-mício chamada de Vale Festejar. Rosea-na Sarney Murad é a idealizadora, coor-denadora e anfi triã do evento, e a viabi-lidade da festa, inclusive a parte de cap-tação de recursos vem de uma organiza-ção não governamental (ONG) vincula-da a Fernando Sarney, irmão de Rosea-na e diretor da Confederação Brasileirade Futebol (CBF).

Entre os principais doadores de di-nheiro do evento está o Banco do Brasile a Companhia Vale do Rio Doce. Gran-de parte da verba é destinada para o Sis-tema Mirante, retransmissora da re-de Globo no Maranhão, cujos sócios sãoos organizadores do evento: Roseana eFernando Sarney.

José Sarney, pai de Roseana e Fernan-do, além de comandar a fundação, é opresidente de honra da ONG Associaçãodos Amigos do Bom Menino das Mercês,que viabiliza o dinheiro para a festa-co-mício Vale Festejar. (PB)

Dafne Meloda Redação

OPORTUNISMO. É assim que algumas das principais centrais sindicais do país classifi cam a recente investi-da do empresariado brasilei-ro de buscar fl exibilizar a le-gislação trabalhista tempora-riamente, por conta da crise econômica mundial.

Um dos primeiros a defen-der a proposta publicamente foi Roger Agnelli, presidente da Vale – ex-estatal Compa-nhia Vale do Rio Doce –, que afi rmou ter debatido o tema com o presidente da Repúbli-ca. “Eu tenho conversado com o presidente Lula no senti-do de fl exibilizar um pouco as leis trabalhistas. Seria algo temporário, para ajudar a ga-nhar tempo enquanto essa fa-se difícil não passa”, declarou à imprensa.

Em São Paulo, o governo estadual, junto com empre-sários, elaborou um projeto de fl exibilização que foi apre-sentado dia 17 de dezembro ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo de Traba-lho (Codefat) e também ao go-verno federal.

Entretanto, tanto Lula co-mo Guido Mantega (Fazen-da) e Paulo Bernardo (Pla-nejamento) se posicionaram contrários à fl exibilização via Medida Provisória, conforme sugerido pelo governo paulis-ta. Mas também não demar-caram posição. “Quanto mais distância o governo tiver da relação entre capital e traba-lho, melhor”, afi rmou o pre-sidente. “Os dirigentes sindi-cais estão muito habituados

Centrais rechaçam possível flexibilizaçãoLEIS TRABALHISTAS Usando a crise econômica como justifi cativa, empresariado tenta retirar direitos dos trabalhadores

a fazer acordos. Os empresá-rios, também. Eles se sentam à mesa e encontram um acor-do”, completou.

Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), admitiu que uma fl exibiliza-ção em nível nacional é muito difícil, mas afi rmou que as ne-gociações devem ocorrer entre empresas e sindicatos.

RepercussãoPara os sindicalistas ouvi-

dos pela reportagem, o em-presariado está aproveitando o momento para colocar em pauta uma de suas reivindi-cações que não foi para frente durante o governo Lula: a re-forma trabalhista. Ainda que se insista que as alterações se-riam temporárias – o gover-no paulista sugere 10 meses – há o entendimento de que as mudanças criariam um fa-to consumado e viriam para fi car. “Nada mais permanen-te do que soluções classifi ca-das de temporárias, especial-mente quando benefi ciam in-teresses imediatos e históri-cos de grandes grupos que de-têm forte infl uência”, afi rmou em nota o presidente da Cen-tral Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique.

Zé Maria, da direção nacio-nal da Conlutas, observa que essas são atitudes esperadas dentro dessa conjuntura. “Em crises, o capital sempre procu-ra aumentar a exploração, au-mentar a mais-valia, de on-de vem o lucro, gastando me-nos com a mão-de-obra, dimi-nuindo salários e benefícios dos trabalhadores”. O diri-gente chama a atenção para o fato de que, com ou sem fl exi-

bilização, as demissões devem continuar e aumentar. “E se fl exibilizar, o empresário usa esse dinheiro que gastaria pa-ra pagar as indenizações das demissões”, conclui.

Greves e mobilizaçõesNivaldo Santana, vice-pre-

sidente da Central dos Tra-balhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), acredita que após um momento de cresci-mento e euforia, a classe do-minante quer manter seus lu-cros altos mesmo durante a crise. “Quando vai bem, nós,

trabalhadores, somos os últi-mos a usufruir, mas quando começa a ir mal, somos sem-pre os primeiros a pagar”, alerta. O sindicalista afi rma que a orientação que tem si-do dada aos sindicatos da CTB é que não negociem nenhum tipo de fl exibilização e que, diante de demissões, “usem as formas de luta cabíveis em cada contexto, de cada cate-goria, na região em que se en-contra”.

A CUT também afi rma que não aceitará nenhum tipo de acordo nesse sentido. “A CUT

e seus sindicatos fi liados or-ganizarão mobilizações e gre-ves para forçar empresariado e governos a adotarem ins-trumentos explícitos e fi r-mes em defesa dos empregos e dos salários”, informa a no-ta da direção. A Conlutas, ex-plica Zé Maria, adotou o le-ma “demitiu, parou”, e tam-bém afi rma que não negocia-rão direitos trabalhistas nos seus sindicatos.

ValePara Zé Maria, é preciso des-

construir a idéia de que a úni-

ca saída para a crise é sacrifi -car ainda mais a classe traba-lhadora. “Outra saída é que as empresas arquem com o cus-to”, afi rma. Usando o exem-plo da Vale, ele afi rma que o mesmo Roger Agnelli que defende a fl exibilização afi r-mou à imprensa recentemen-te que a mineradora tem pou-co mais de 15 bilhões de dóla-res em caixa, quantia sufi cien-te para pagar todos os salários da Vale por 10 anos. “A em-presa pode perfeitamente ar-car com os salários, continuar lucrando e não perder o valor de seu patrimônio. Então, por que os trabalhadores tem que pagar?”, questiona.

Desde o início da crise, a Va-le demitiu 1.300 funcionários e deu férias coletivas a outros 5.500. A transnacional tam-bém cortou 30 milhões de to-neladas métricas da sua pro-dução anual de minério de fer-ro, adequando-se à diminui-ção da demanda por parte das siderúrgicas. Essas medidas atingiram sobretudo os traba-lhadores de Minas Gerais, que correspondem a 20% das de-missões e 80% das férias co-letivas. Diante disso, diver-sas entidades e organizações assinaram a “Carta de Itabira ao Povo Brasileiro”, onde con-vocam os trabalhadores para um greve geral na cidade, dia 8 de janeiro. Também resga-tam a reivindicação da reesta-tização da empresa. “Se a ini-ciativa privada não é capaz de preservar o patrimônio do po-vo brasileiro, que se retire do comando da empresa, que de-ve voltar às mãos do Estado, sob controle das comunida-des, do povo e dos seus traba-lhadores.”, diz a carta.

Lago que, desde o dia 9 de de-zembro, integrantes de organi-zações populares, movimentos sociais e de sindicatos rurais estiveram acampados em fren-te ao Palácio dos Leões, em São Luís. O acampamento recebeu o nome de Balaiada, em homena-gem à revolta popular que ocor-reu no Maranhão, Piauí e Cea-rá, no fi nal do século 19, contra o coronelismo vigente.

Na opinião do integrante da coordenação estadual do Movi-mento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) Jonas Borges, o acampamento teve um caráter muito positivo, já que, além de dar visibilidade política às de-núncias das organizações, ser-viu como um “exercício de cida-dania” para o povo maranhen-se. Nos dez dias em que esteve montado, o acampamento rece-

beu cerca de 20 mil pessoas de todos os municípios do Estado. “O acampamento ajudou a mos-trar a tentativa de golpe, conse-guindo furar o controle da mídia local, que é praticamente toda da família Sarney”, avalia Borges.

Legitimidade do pleitoO integrante do MST reitera

que as entidades não estão em-penhadas em defender um go-verno, mas sim a legitimidade política do pleito. Contudo, é ine-gável, segundo ele, que o manda-to de Jackson Lago trouxe um evidente avanço em relação aos movimentos sociais, na medida em que se propôs ao diálogo – atitude bem diferente dos mem-bros da família Sarney.

“A base histórica de Sarney é formada pelo latifúndio, ele sempre deu subsídios bancários

a grandes empresas. Foi assim que ele garantiu seus 40 anos de governo”, recorda.

Para Creuzamar de Pinho, a suspensão do julgamento para o próximo ano já representa uma vitória antecipada do povo do Maranhão, que poderá continu-ar lutando, em 2009, pela absol-vição de Lago. “Para Roseana, is-so representaria o maior presen-te de Natal, mas para nós, mara-nhenses, seria a pior desgraça se ela assumisse o poder.”

Manobras dos SarneyO subchefe da Casa Civil Emi-

lio Azevedo espera que o Tribu-nal Superior Eleitoral não acate as denúncias que, de acordo com ele, são manobras da família Sar-ney para retomar o poder.

“O governo respeita as insti-tuições e respeita o Poder Judi-ciário. Esperamos que esse mes-mo Judiciário aja com bom sen-so. E o governo também acredita na força da mobilização popular como instrumento de denúncia para todo o Brasil do golpe que o grupo Sarney está tentando dar no Maranhão.”

Em entrevista a duas rádios de São Luís, no dia 16 de dezembro, Jackson Lago classifi cou a tenta-tiva de cassação como “manobra política do grupo Sarney” e afi r-ma ter confi ança na decisão do TSE. “O Brasil hoje é outro. Não tem nada a ver com aquelas ma-nobras. Essa fase passou. Hoje nós temos aí os olhos da nação, os olhos do país estão lá, cravados para saber se a decisão vai ser jus-ta ou se a decisão vai ser o retorno do coronelismo, o retorno da cor-rupção, de forma que eu não te-nho dúvida nenhuma.”

O acampamento em frente ao Palácio dos Leões foi desmontado na sexta-feira (19), mas as entida-des seguem com as mobilizações no Estado, principalmente pelas cidades do interior.

Tentativa de cassação de Lago é perseguição política da família Sarney, afi rmam entidades Empenhados em defender “a legitimidade política do pleito”, movimentos comemoram adiamento do julgamento do governador do Maranhão, Jackson Lago

Os mandos e desmandos da família Sarney

Roger Agnelli, presidente da Vale: proposta oportunista

Roosewelt Pinheiro/ABr

O governador do Maranhão, Jackson Lago

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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de 25 a 31 de dezembro de 20088

brasil

Danilo Darada Redação

QUANDO A guerra total vol-tava a se distanciar do front europeu, as grandes potên-cias imperialistas vitoriosas, do lado ocidental, se anteci-param para construir uma nova normalidade capitalista que “superasse” aquela longa e prolongada crise global. An-tes de se consolidarem novos marcos sociais que buscassem realmente evitar a repetição do terror de Auschwitz, mais uma vez priorizaram-se os in-teresses econômicos.

Com o objetivo de discutir o funcionamento da econo-mia no pós-guerra, 44 países enviaram cerca de 700 re-presentantes para uma gran-de reunião, iniciada em 1º de julho de 1944, na localidade de Bretton Woods, nos Es-tados Unidos. Na abertura da conferência, o secretário do Tesouro estadunidense, Henry Morgenthau, falou so-bre a “criação de uma eco-nomia mundial dinâmica na qual os povos de cada nação terão a possibilidade de re-alizar suas potencialidades em paz e de gozar mais dos frutos do progresso material, numa terra benzida por ri-quezas naturais infi nitas”. Ora, uma das primeiras me-didas do seu governo no sen-tido de garantir essa paz to-tal, já no ano seguinte, foram os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki.

Exceção permanenteAssim, antes mesmo da fun-

dação da Organização das Na-ções Unidas (ONU), em 1945, e da proclamação de sua Decla-ração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) – que aca-ba de completar 60 anos – fo-ram criadas, em Bretton Woo-ds, as principais instituições do sistema monetário-fi nanceiro internacional: o Banco Mun-dial, o Fundo Monetário Inter-

Declaração Universal dos DireitosHumanos: entre conquistas e derrotasBALANÇO Aos 60 anos, documento permitiu o surgimento de movimentos políticos, mas seu conteúdo segue sendo violado

nacional (FMI) e o Novo Siste-ma Cambial Global (lastreado diretamente em dólar, e, indi-retamente, em ouro).

A ONU e sua Declaração Maior de princípios já nas-ciam em segundo plano, fi -nanciadas e subordinadas aos interesses econômicos das grandes potências. Na prática, surgiam esforçan-do-se para criar a institucio-nalização e a normatização cosmopolitas daqueles direi-tos, que seriam provinciana-mente violados pelas guerras quentes que se seguiriam dali em diante por todos os lados, sobretudo na periferia neoco-lonizada do mundo.

A primeira dessas guer-ras viria já no ano da procla-mação da Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos, e anunciava, ao mesmo tempo, o fracasso total de sua propo-sição jurídica: o início do lon-go confl ito militar árabe-isra-elense, ocasionado pela im-posição do Estado de Israel ao povo palestino, que há sé-culos habitava aquele territó-rio (portanto, numa exemplar violação de seus direitos hu-manos mais elementares), e a conseqüente não-aceitação dessa imposição pela Liga dos Povos Árabes. Não à toa, nes-se 10 de dezembro de 2008 em que se completaram os 60 anos da DUDH, a guerra ain-da persistir como regra em to-da região do Oriente Médio.

Politização dos DHEntretanto, nenhuma ide-

ologia sobreviveria sem mo-mentos fundamentais de ver-dade. E, de fato, a proclama-ção da Declaração Universal não deixou de ser uma impor-tante conquista política – rei-vindicada até hoje por mui-tos militantes sociais em to-do o mundo –, fruto das for-tes pressões de setores funda-mentais da humanidade.

Uma politização que vive-ria períodos intensos nas dé-cadas seguintes à chamada 2ª

Guerra Mundial: a intensifi ca-ção das lutas de libertação na-cional na África, a própria Re-volução Econômica e Cultural Chinesa, a inusitada Revolu-ção Cubana etc.

Tamanha polarização talvez tenha culminado justamente em 1968 (no 20º aniversário da DUDH), com o acirramen-to da luta por direitos civis dos negros nos EUA, os levan-tes do Maio Europeu, a luta por liberdades políticas mais amplas nos países do eixo “so-cialista” (reprimida exemplar-mente na Primavera de Pra-ga), a campanha global contra a guerra do Vietnã e a resis-tência (muitas vezes armada) às ditaduras militares no Cone Sul da América Latina.

A derrota da grande maioria desses processos de resistên-cia não pode, no entanto, obs-curecer uma importante lição a ser tirada de todos eles: nes-se contexto de profunda po-larização político-ideológica (e militar), as lutas por am-

plos e irrestritos direitos hu-manos, levadas adiante pe-los mais diversos movimen-tos sociais laicos, ou até mes-mo religiosos, cumpriram um papel fundamental na inspi-ração e politização radical da resistência ao poder estabele-cido planetariamente.

Além disso, em grande par-te dos países sul-americanos, organizações voltadas para a defesa dos direitos humanos (muitas delas ligadas inclusive à Teologia da Libertação, que nascia no bojo dessas ditadu-ras) tiveram um papel funda-mental na luta pela redemo-cratização, num momento em que muitas organizações polí-ticas revolucionárias haviam sido postas na ilegalidade, e seus militantes, isolados.

Reação neoliberalSegundo a educadora po-

pular argentina Claudia Ko-rol, da organização Pañuelos em Rebeldia (lenços em rebel-dia), a era neoliberal foi mar-

cada por uma reação político-ideológica violenta a esse pro-cesso de conscientização, le-vando a uma despolitização profunda da luta pelos direi-tos humanos.

O neoliberalismo, funda-do há cerca de 30 anos com a experiência prototípica dos pacotes econômicos no Chi-le de Augusto Pinochet (na meia-vida da DUDH), teria produzido um potente dis-curso ideológico. Centrada na idéia de “redemocratiza-ção do Estado” e num “pen-samento econômico único”, essa ideologia teria relegado a um segundo plano discus-sões políticas mais profundas que efetivamente questionas-sem a realidade econômico-social reprodutora de viola-ções. Na verdade, uma nova rodada de agressões aos direi-tos mais básicos dos trabalha-dores e trabalhadoras.

Assim, a luta por direitos humanos teria sido cada vez mais delegada às próprias ins-

tituições dos Estados econo-micamente “modernizadas”, supostamente “redemocrati-zadas”: capturada por meio dos chamados “técnico-espe-cialistas no assunto” (via de regra do meio acadêmico e ju-rídico); traduzidas degrada-damente nas chamadas “po-líticas de segurança pública” (na prática, políticas de con-tenção e violação constante dos principais direitos huma-nos da população pobre); e/ou terceirizadas nas atuações das “organizações não gover-namentais” (de meios públi-cos e fi ns privados).

Enfi m, entrávamos num processo de declínio político e pasteurização da outrora radi-cal luta por direitos humanos amplos, gerais e irrestritos, abrindo passo à decadência conservadora de muitos pro-jetos e organizações políticas (partidos, sindicatos etc.), an-tes mais radicais.

Nova CriseTrês décadas depois do iní-

cio da era neoliberal, uma no-va crise global ameaça jogar uma pá de cal não apenas so-bre toda essa construção ideo-lógica, mas sobre toda a ordem econômica mundial fundada há sessenta e poucos anos, jus-tamente em Bretton Woods.

Se as crises mundiais do pe-tróleo, durante a década de 1970, já haviam abalado e ge-rado uma redefi nição de todo o sistema (exatamente o pro-cesso que produziu o neolibe-ralismo), dessa vez o impacto e os efeitos (devastadores) po-dem ser ainda maiores.

E, como horizonte de “su-peração” dessa nova crise, nem mesmo o mais cínico dos representantes do Estado nor-te-americano teria a ousadia de repetir que “os povos de ca-da nação terão a possibilida-de de realizar suas potenciali-dades em paz e de gozar mais dos frutos do progresso mate-rial, numa terra benzida por riquezas naturais infi nitas”.

Maurício Campos

No dia 10, organizações de-fensoras dos direitos huma-nos, familiares de vítimas da violência estatal e moradores de comunidades do Rio de Ja-neiro, mais uma vez, fi zeram belas atividades simbólicas para chamar a atenção para a dor e o sofrimento que cas-tigam o povo. A data marcava os 60 anos da Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos.

Em frente ao Tribunal da Justiça e à Assembléia Le-gislativa do Rio de Janei-ro (Alerj), na praça e na rua, os manifestantes procuraram chamar a atenção do Judici-ário, do Legislativo e da po-pulação. Buscaram tocar, um pouco que seja, suas mentes e corações para que o extermí-nio e o preconceito parem de condenar a juventude pobre ao abandono e à morte.

Por parte da grande maio-ria dos transeuntes, não hou-ve rejeição, mas, tampouco, empatia, adesão e solidarie-

dade. Parece que, na mente de muitos, ou mesmo da maioria, algo dizia: “mais uma mani-festação, quanta morte e tris-teza, é verdade, mas fazer o quê? De que adianta eu parti-cipar disso se a coisa não mu-da? Vou trabalhar, resolver meus perrengues, garantir al-guma dignidade ao menos pa-ra a minha família”.

BofetadasHostilidade mesmo veio,

ao longo do mesmo dia, da parte dos poderes do Estado diante dos quais as manifes-tações aconteceram. Foram verdadeiras bofetadas na ca-ra do povo, demonstrações ar-rogantes de que o Estado não se sensibiliza nem um pouco com as dores e medos das pes-soas, e de que continuará a ex-terminar e a manter um apa-rato repressor fascista e cor-rupto para garantia dos privi-légios de uns poucos.

O tapa mais forte veio do Judiciário. Em pelo menos dois julgamentos, realizados naquela data tão simbólica, agentes do Estado que ma-taram sob suas ordens foram absolvidos ou libertados. O caso que está aí nas manche-tes para todos verem, e que mais chamou a atenção, foi, é claro, a absolvição do primei-ro policial julgado pelo homi-cídio do pequeno João Rober-to, e por tentativa de homicí-dio de sua mãe e seu irmão.

Resultado surpreendente para todos, devido à reper-cussão do ocorrido, pelo fato da vítima não ser uma crian-ça de favela. Alguém poderá dizer que a bofetada não par-tiu do Estado, mas da “socie-

dade”, já que a decisão foi de um júri popular. Mas não es-tamos falando apenas, nem principalmente, das pessoas que estão nos diferentes apa-ratos estatais, mas do con-junto do sistema, incluindo suas regras, normas, omis-sões e práticas.

O júri popular, ao menos no Brasil e em países semelhan-tes, jamais representará a so-ciedade fi elmente. Em primei-ro lugar, pelas razões expli-

cadas pela companheira Val-dênia Paulino, na sessão fi -nal do Tribunal Popular, rea-lizado em São Paulo entre os dias 4 e 6: as regras de sorteio do júri excluem explicitamen-te analfabetos, algumas pesso-as com necessidades especiais e aqueles que não se enqua-dram num conceito mal de-fi nido de “idoneidade”. Além disso, deixam de fora, impli-

citamente, os desemprega-dos, subempregados e todos que vivem tão atribulados tentando sobreviver e que não têm como acompanhar, informar-se e preparar-se pa-ra os sorteios.

AtentadoA outra bofetada do Judici-

ário foi o adiamento do novo julgamento – que estava mar-cado para o dia 10 – dos poli-ciais acusados do assassinato dos jovens da favela de Acari, Lindomar e Rafael, por pro-blemas com uma suposta pro-va apresentada na última hora pelos advogados dos policiais.

A postergação levou esses mesmos advogados a conse-guirem o relaxamento da pri-são dos PMs, alegando que os prazos do processo eram mui-to dilatados. Ora, em nenhum momento o juiz levou em con-sideração que o caso depen-de, fortemente, de uma teste-munha que teve que entrar no programa de proteção devido a ameaças.

Agora, os policiais estão li-vres e, provavelmente, na rua (não foram afastados da cor-poração e compareceram far-dados ao Tribunal), ou seja, as chances de que o processo continue com lisura são muito remotas. Dentro das normas técnicas que zelam pela “cele-ridade do processo”, o juiz não cometeu nenhum erro; mas, diante da realidade opressi-va em que vivem os morado-res de favelas, ele cometeu um atentado contra a justiça.

A terceira bofetada veio do Legislativo. Simbolicamente, a votação do relatório da Co-missão Parlamentar de Inqué-

rito (CPI) das milícias foi mar-cada, também, para o dia 10. O trabalho da Comissão foi claramente cuidadoso e tími-do, limitando-se a casos já em investigação pela Polícia Civil, e evitando chamar para de-por políticos de peso que de-ram declarações explícitas de apoio aos paramilitares, como o atual prefeito do Rio de Ja-neiro, César Maia, e o eleito, Eduardo Paes.

SistemaMesmo com todos esses

cuidados (ou seriam conces-sões?), visando uma aprova-ção fi nal do relatório na ínte-gra, isso não aconteceu. Apre-sentando emendas para re-tirar certos nomes do docu-mento, alguns deputados con-seguiram impedir e adiar sua votação. Isso tudo diante de galerias lotadas de pessoas pressionando pela aprovação.

Não adianta eximir o Le-gislativo culpando os ditos “maus políticos”. Uma ins-tituição onde os “maus” são invariavelmente maioria tem que necessariamente ser vista com desconfi ança. Mais uma vez, não podemos olhar ape-nas para as pessoas que estão nos aparatos, mas para o sis-tema como um todo.

A democracia representati-va tem seus próprios defeitos intrínsecos, e certamente está muito longe do ideal de uma sociedade auto-governada. Mas, mesmo uma assembléia de representantes eleitos po-deria aproximar-se um pouco disso se algumas regras e me-didas estivessem garantidas, por exemplo: 1) se a maioria dos representantes fossem

mulheres, negros e de renda inferior a três salários míni-mos; 2) se todos eles, uma vez eleitos, não pudessem ganhar mais que o salário mínimo que eles mesmos aprovassem em sua legislatura; 3) se todos tivessem que manter seus fi -lhos em escolas públicas e só pudessem fazer atendimen-to médico de suas famílias no sistema público de saúde.

Máquina de matarAlguns “dinossauros” mar-

xistas como eu nunca deixa-mos de acreditar que o Esta-do representa tão somente os interesses de um punhado de grandes capitalistas, e que é, no fundo, uma máquina para oprimir os trabalhadores e ex-plorados, sejam eles favelados ou de classe média. Depois dos ocorridos no dia 10, tenho que mudar um pouco meus conceitos. O Estado não é ape-nas uma máquina de oprimir, é uma máquina de matar.

Como todos, vivo essa an-gústia: como mostrar àqueles transeuntes ansiosos que não basta ver, é preciso participar? Pois temos que lhes apresen-tar resultados concretos em nossas lutas, mostrar que elas obrigam este Estado a nos fa-zer concessões, que elas lhe causam derrotas reais, mesmo que ainda não defi nitivas.

Temos que demonstrar não apenas, nem principalmente, a nossa dor, mas o nosso po-der. E ele está nas ruas, nas ruas fechadas por manifesta-ções e barricadas, como em Oaxaca, El Alto e Atenas.

Maurício Campos é militante da Rede contra a Violência.

No dia da Declaração, o Estado esbofeteia o povoANÁLISE Alguns “dinossauros” marxistas como eu nunca deixamos de acreditar que o Estado representa tão somente os interesses de um punhado de grandes capitalistas Hostilidade mesmo

veio (...) da parte dos poderes do Estado diante dos quais as manifestações aconteceram. Foram verdadeiras bofetadas na cara do povo, demonstrações arrogantes de que o Estado (...) continuará a exterminar

O ministro da Secretaria dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e o presidente Lula

Wilson Dias/ABr

Page 9: Edição 304 - de 25 a 31 de dezembro de 2008

Quem éCarlos Trejo é cônsul geral de Cuba em São Paulo.

de 25 a 31 de dezembro de 2008 9

américa latina

Igor Ojeda e Tatiana Merlino

da Redação

EM CUBA, ninguém deseja o retorno ao capitalismo. O que o povo quer é um socia-lismo melhor e mais profun-do. As palavras de Carlos Tre-jo, cônsul cubano em São Pau-lo, procuram não deixar dúvi-das quanto à consolidação dos princípios da Revolução entre a população do país. Segundo ele, as transformações profun-das pelas quais passa a ilha ca-ribenha desde janeiro de 1959 fazem com que seus habitan-tes não abram mão do sistema implantado por Fidel Castro.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o diplomata reconhe-ce (e celebra) o fato de que os cubanos tenham inúmeras crí-ticas aos dirigentes e aos ru-mos do regime, mas, sem-pre, com um espírito de apri-moramento. “O cubano sem-pre acreditou na necessidade de renovação constante. Em Cuba, começamos a renovação em 1959, e não parou. Conti-nua mudando, aperfeiçoando. E vamos seguir assim”. Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Brasil de Fato – Passados 50 anos do triunfo da Revolução, quais são seus principais legados?Carlos Trejo – A primeira conquista foi o resgate da me-mória histórica do país, de su-as lutas. Em segundo lugar, o cubano deixou de se sentir um cidadão de segunda ou tercei-ra classe. A dignidade cuba-na é tão grande que até aque-les que decidiram deixar o pa-ís não aceitam imposições. E, quando chegam a países capi-talistas, querem se projetar co-mo se estivessem em Cuba. Na ilha, o trabalhador não acei-ta pressão de um emprega-dor ou uma decisão injusta. No capitalismo, não é assim. O dono diz: “é assim, se não gosta, vai embora”. Além dis-so, em Cuba, cada coisa é fei-ta, praticamente, com a parti-cipação de todos. Para as deci-sões mais importantes do pa-ís, na esfera social, econômica, política, é necessário um refe-rendo. Atualmente, há em cur-so um referendo para mudar a idade de aposentadoria que já é motivo de seis meses de dis-cussão em cada centro de tra-balho, bairro, em toda parte do país. Em qual lugar no mundo o governo consulta a popula-ção para promover uma mu-dança desse tipo?

Se você pergunta o que os cubanos acham do sistema, eles respondem que há difi cul-dades, problemas, e que que-rem refrigerá-lo. Porque es-se não é o socialismo que que-remos. Queremos um socia-lismo ainda mais profundo. Em Cuba, aceita-se com mui-to pesar as atividades na eco-nomia privada. Porque esta-mos acostumados com o fa-to de que o que temos é dis-tribuído para todos. A unida-de é outro aspecto muito im-portante, porque tem permi-tido que o socialismo cubano tenha uma couraça de aço que o protege dos americanos. Há outras coisas inegáveis: a eco-nomia cubana não tem nada a ver com a economia de 1959 e de muitos países da America do Sul. Éramos um país que só produzia açúcar para os Esta-dos Unidos e nada mais. Hoje, em Cuba, o açúcar é importan-te, mas não é o principal pro-duto da exportação. O princi-pal é uma produção de valor agregado, como a biotecnolo-gia, a engenharia genética, que é de ponta no mundo.

Nesses 50 anos, quais foram principais obstáculos, tanto internos quanto externos?

Internamente, foi o subde-senvolvimento que o país her-dou. Quando a Revolução che-gou ao poder, perto de 30% da população era analfabeta, 25% era analfabeto funcional, havia um desemprego gigan-

Por um socialismo mais profundo50 ANOS DE REVOLUÇÃO Segundo Carlos Trejo, cônsul de Cuba em São Paulo, mesmo após meio século da vitória dos homens de Fidel sobre o exército de Fulgencio Batista, regime socialista segue fortemente consolidado

tesco... Por conta desse cená-rio, a primeira decisão do go-verno revolucionário foi fa-zer a campanha de alfabetiza-ção, tirar as pessoas da escuri-dão. A mulher era basicamen-te objeto de satisfação do ho-mem. Havia o jogo, a droga. As principais fi guras da máfi a americana estavam em Cuba, e eram proprietárias de cassi-nos. Um dos principais pro-blemas que nós tivemos, já em 1959, 1960, foi que, dos 6 mil médicos que havia em Cuba, 3 mil foram embora es-timulados pelos EUA. E havia uma dívida social enorme com a população: a expectativa de vida estava abaixo de 60 anos. A pobreza era enorme, princi-palmente no campo.

Outra difi culdade foram as tentativas dos EUA de evitar o triunfo da Revolução Cuba-na. Nosso povo nunca teve paz para traçar seu caminho para o desenvolvimento. Afortuna-damente, estabelecemos re-lações amistosas com o cam-po socialista. É claro que ha-via diferentes pontos de vista, mas as relações eram muito respeitosas. A difi culdade foi quando o bloco socialista, com quem Cuba tinha 80% do seu comércio, caiu. Os americanos aproveitaram para reforçar o bloqueio. Ficamos na pior si-tuação de toda nossa história.

Com relação à condução do processo revolucionário em Cuba, quais foram as decisões equivocadas?

O entusiasmo do país com o avanço rápido que a socieda-de cubana estava tendo. Achá-vamos que o socialismo esta-va na esquina. E começamos a implementar muita coisa do socialismo profundo, quan-do ainda não tínhamos con-quistado algumas coisas im-portantes – a gratuidade, por exemplo. Claro que é impor-tante ter saúde, lazer, cultura de graça, mas tinha muita coi-sa que era dada gratuitamen-te, como roupa e comida. Mas o essencial era a necessida-de de transformar a realidade econômica e social do país. E, para se desenvolver, é neces-sário criar um capital humano forte. Isso foi criado. A certeza dessa decisão aparece hoje em seus projetos.

Um dos maiores consensos reiterados pela imprensa internacional é que em Cuba vigora uma ditadura. Como o senhor responde a isso?

Acho que a ditadura é a da grande mídia. Cuba é um exemplo de luta, de liberda-de, de tratamento do ser hu-mano, onde vigora um siste-ma diferente, socialista de jei-to cubano, que surgiu das ne-cessidades do povo e da cultu-ra cubana. Ditadura é aquilo que houve aqui no Brasil, por exemplo, onde não havia par-tidos, expressão popular, se-

gurança, respeito pelos direi-tos humanos. Somos um pa-ís que tem o povo politizado, 1 milhão de graduados universi-tários, 3,5 milhões de estudan-tes no ensino superior. Cada criança tem escola, leite, comi-da, emprego, saúde, cada vez mais acesso à educação.

E, além disso, o que não é di-to é que o sistema eleitoral de Cuba é o mais perfeito que há no mundo. Existe o partido, mas ele não tem direito cons-titucional de nomear e apoiar candidatos. Em Cuba, os can-didatos a vereador e deputado são escolhidos pelo povo. Essa escolha é feita assim: há reuni-ões dentro dos bairros, quan-

do o povo faz a proposta da-quele que considera ter mais condições para ser candidato a vereador. Este vai, depois, para uma eleição secreta e di-reta. O vereador não tem salá-rio. Trabalha como professor, médico, advogado, qualquer coisa, e, quando acaba a jor-nada de trabalho, tem que fa-zer atendimento à população na sua casa, em seu escritório. Duas vezes ao ano, esse verea-dor tem que prestar contas pa-ra a população. E, se a popu-lação acredita que ele não tem agido corretamente, seu man-dato é revogado na hora. Exis-te outra forma de democracia mais participativa e popular

do que essa? 50% dos depu-tados que vão para a Assem-bléia Nacional são eleitos den-tre aqueles vereadores que já foram eleitos pela população. E ninguém recebe salário. Isso é ou não é uma democracia? Por que os EUA não deixam seus cidadãos visitarem Cuba, já que eles levam o espírito da democracia, da participação?

Em sua campanha presidencial, Barack Obama disse que estava disposto a conversar com Raúl Castro. Mas, se dirigindo à comunidade cubana que vive nos EUA, ele fez duras críticas à Cuba, e disse que não iria levantar o embargo. O que esperar, de fato, de sua política?

O tema cubano sempre foi motivo de medo nos EUA. Cuba não faz parte da dis-cussão da política externa dos EUA. Os primeiros emigrados de Cuba para os EUA ou eram torturadores e criminosos da ditadura de Fulgencio Batis-ta, ou gente de muito dinhei-ro. Saíram de maleta cheia pa-ra os EUA, e investiram esse dinheiro lá. Eles conseguiram uma infl uência econômica im-portante. Esse núcleo duro de cubanos nos EUA ajudou a sustentar uma política mais ofensiva, fi nanciando candi-datos de origem cubana den-tro do aparato político. A vi-tória de George W. Bush em 2000 se deve aos cubanos da Flórida. Então, o presidente fi cou com uma dívida gigan-tesca com eles, o que fez au-mentar a infl uência dentro do governo dos EUA. O presiden-te é dono da política exterior do seu país e, dentro dessa po-lítica, tem que respeitar Cuba.

Obama conhece isso. Mas, a experiência que nós temos, nestes 50 anos de muitas ad-ministrações que não presta-vam, nos leva a ver depois o que acontece. Nós temos ouvido com muito interesse as coisas que ele tem falado, de levantar as proibições feitas por Bush. Ora, o que o Bush fez foi adi-cionar coisas a mais dentro da hostilidade americana contra Cuba. Portanto, o que o Oba-ma fala seria retomar o ponto anterior, menos agressivo do que o que o Bush implantou.

Em relação ao embargo, até que ponto ele ainda determina ou já determinou as decisões da política cubana?

Muito fortemente. Nós te-mos uma perda anual de mais de 3 bilhões de dólares só por causa do embargo. Até agora, o acumulado é de 93 bilhões de dólares. Com isso, estarí-amos muito à frente. Porque, sem dinheiro nenhum, temos o sistema de saúde mais for-te da América Latina. Um sis-tema de ensino superior, uma população muito bem prepa-rada. Foram feitas muitas coi-sas sem esses 93 bilhões de dólares. E isso sem falar dos 54 bilhões de perdas huma-nas. Estamos falando de qua-se 150 bilhões de dólares. Ou seja, qualquer planejamento tem que levar em conta isso.

Com a saída do Fidel e o novo momento político da Revolução, quais os desafi os que surgem para a permanência do socialismo em Cuba?

O socialismo cubano é mui-to forte. Fidel educou o po-vo para que nós seguíssemos uma revolução, e não um ho-mem. E ensinou que os prin-cípios são mais fortes e dura-douros do que uma pessoa. Então, quando saiu Fidel, o que aconteceu? Nada! Pelo contrário, houve mais unida-de do povo, para preservar as coisas que obteve ao longo de tantos anos de luta.

Em 1985, pouco antes do Gorbachev instituir a peres-troika, teve início em Cuba um processo de retifi cação de erros. Nas tribunas populares, nos centros do trabalho, nos comitês de defesa, nos bair-ros, nas escolas, em toda par-te se discutia a situação social! Que estava ruim e que tinha de mudar. E a população fa-lando! Criticando seus minis-tros, seus dirigentes, seus di-retores, todo mundo. E dizen-do o que teria que consertar. O que aconteceu? Cinco anos depois, dissolve-se a União Soviética. Então, a priorida-de de Cuba não era mais tan-to essas discussões, e sim sua sobrevivência.

Por que agora começa, de novo, uma discussão sobre su-as políticas, seus erros? Por-que estamos saindo da par-te mais dura do Período Es-pecial. Mas é um projeto que já tem mais de 20 anos. O que houve foi uma pausa obriga-tória. A Revolução Cubana es-tá se aperfeiçoando cada vez mais. Se você pergunta ao po-vo: “Você está contente com o socialismo que temos?”. Eles respondem: “Não, queremos um socialismo melhor”. Nin-guém fala em capitalismo, em voltar atrás. Todo mundo fa-la na necessidade de traba-lhar mais, fazer tudo melhor. Aprendemos a fazer tudo sozi-nhos, sem ajuda de ninguém. Temos um povo muito pre-

parado para continuar o pro-cesso, um socialismo cada vez mais sólido, com cada vez me-nos erro, menos voluntaris-mo, mais patriotismo.

Nesse sentido, o senhor acredita que o povo cubano vê a necessidade de uma renovação da Revolução Cubana?

Claro. O cubano sempre acreditou na necessidade de re-novação constante. Em Cuba, começamos a renovação em1959, e não parou. Continuamudando, aperfeiçoando. Evamos seguir assim.

O governo do Raúl Castro passou a promover uma maior abertura econômica. Como avaliar quais serão os limites dessa abertura de modo que se mantenham os princípios da revolução?

Essa abertura está dentro dos princípios da Revolução. A Constituição do país não diz que a propriedade é apenas estatal. Num governo socialis-ta, é possível a coexistência da propriedade pública, de coo-perativa – que é uma forma de propriedade privada interme-diária – e a privada. Foi a Re-volução que inventou o cam-ponês privado.

Quando se menciona abertura econômica, também se fala em acesso a bens de consumo. Qual é o limite disso, principalmente levando-se em conta a juventude?

Cuba não está planeja-da para ser uma socieda-de de consumo. Nunca se-remos. Não é nada estranhoque uma pessoa tenha acessoa celular. Não promovemos oconsumismo, que é diferen-te do consumo. Nós acredi-tamos que o padrão de vi-da dos Estados Unidos e daEuropa é insustentável eco-nomicamente, por conta dosrecursos naturais e do meioambiente. De onde vai se ti-rar tanta energia? O que quero povo cubano? Ter um pa-drão de vida, continuar comsaúde de altíssima qualida-de, cultura de qualidade...De onde Cuba tiraria energia,nos anos de 1990, para man-ter equipamentos eletrônicosse ela perdeu todo o forneci-mento de petróleo da UniãoSoviética, que era de 14 mi-lhões de toneladas por ano?O país fi cou com 5 milhões.

Aqueles que viveram o período anterior à Revolução são seus grandes defensores. Qual é o desafi o que se coloca à juventude? Ela não pode fi car suscetível aos encantos do capitalismo? Como manter o espírito revolucionário vivo entre os mais novos?

Essa é a aposta que o Impé-rio faz; com a morte natural da dirigência histórica, o país estaria próximo do capitalis-mo. Os jovens criticam a len-tidão, a má administração de algumas coisas... eles querem apressar o passo, mas não cri-ticam o socialismo. Os 36 mil cubanos que estão trabalhan-do em mais de 100 países do mundo, em solidariedade com outros povos, não estão em Nova York, São Paulo, Buenos Aires ou Tóquio. Eles estão no mato, na selva, sem salário nenhum. Nossa juventude es-tá educada nos valores patri-óticos do país, com os princí-pios fundamentais da Revolu-ção. Eles são responsáveis pe-las mudanças que são neces-sárias. Temos uma ideologia consolidada e com a vantagem de saber que muitos países do mundo têm tomado a Revo-lução Cubana como exemplo, que ela fez com que a América Latina, hoje, seja diferente.

Se você pergunta ao povo: “Você está contente com o socialismo que temos?”. Eles respondem: “Não, queremos um socialismo melhor”. Ninguém fala em capitalismo, em voltar atrás. Todo mundo fala na necessidade de trabalhar mais, fazer tudo melhor

Cubanos celebram o 1º de maio em Havana; população quer aprimorar o socialismo no país

Klaussi-CC

Cubana agita bandeira diante de monumento a Martí

Reprodução

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américa latina

Pedro Carrano e Venâncio de Oliveira

de La Libertad (El Salvador)

“SOMOS SERES humanos e não bestas de cargas”, excla-mou uma das 170 trabalha-doras de diferentes maqui-las de tecidos. Elas se reuni-ram no litoral de El Salvador, por meio da organização Mé-lida, para discutir esta forma de trabalho marcada pela ex-ploração da mão-de-obra fe-minina. “Alcançamos as me-tas de produção, mas não ga-nhamos horas-extras”, recla-ma Ana Gloria, mulher que precisa costurar 700 peças de roupa por dia. Mãe solteira, ela precisa garantir a comida dos dois fi lhos.

As maquiladoras são im-plementadas desde a década de 1990, com um discurso de modernização e novos empre-gos. “Importam o mesmo que exportam, geram demandas sociais e não pagam impostos por isso. Saem do país mais fácil do que vieram. Deman-damos um fundo de seguran-ça contra este tipo de desem-prego”, explica Marina Ríos, da Mélida.

Desde o começo de 2008, 14 empresas fecharam no pa-ís, ao contrário do que apon-tam os números do Ministério da Economia, que fala em so-mente quatro. De acordo com o Sindicato General de la Cos-tura, foram 10.508 mulheres despedidas neste ano. Nem todas as plantas e zonas fran-cas contam com sindicato de costureiras, devido à coação por que passam as trabalha-doras junto aos chefes da pro-dução. “O trabalho de orga-nização tem de ser clandes-tino. Uma vez nos descobri-ram organizando um sindi-cato e a maioria das mulheres

Na época da guerrilha dos anos de 1980, as mulheres integravam de 25 a 30% das tropas guerrilheiras, de on-de saíram combatentes, como Ana Maria Melida, quadro do Sindicato de Professores que integrou a guerrilha da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e inspirou a organização de mulheres Melida. A organiza-ção atua em quatro áreas: capacitação feminista e laboral, atenção jurídica, organização de comitês e formulação de leis. “Nos inserimos nas comunidades, formamos associa-ção e comitês com as mulheres, em seus locais de mora-dia. Nas fábricas temos difi culdades: há repressão, tem de ser um trabalho clandestino. Ajudamos com a organização sindical, diferente do tradicional: uma mulher sindicalista com posto de direção e com conhecimento de seus direitos trabalhistas”, descreve Marina Ríos. Buscam, ainda, orga-nizar marchas, mobilizações de ruas e inserção em greves.

de Suchitoto (El Salvador)

Terra e tortilhas de milho produzidas pelos camponeses, algumas das reivindicações do povo salvadorenho. As políti-cas de incentivo às maquila-doras, importação de alimen-tos e a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC), en-tre outros fatores, contribuem para a migração do campo e o abandono do pequeno produ-tor local. A crise alimentar dei-xou de ser assunto na mídia, mas no mundo real segue im-pactando a vida das pessoas. Com a assinatura do TLC em 2006, alimentos básicos pas-sam a ser motivo de depen-dência com os Estados Uni-dos. A presença das transna-cionais no processo produti-vo subordinou o camponês. O milho amarelo, até pouco tem-po produzido internamente, tem hoje 70% da sua produção controlada pela transnacio-nal Monsanto. “Já não se pode comprar carne, frutas, não te-mos acesso a salários. Quando temos, não pode cobrir a cesta básica”, denunciam os traba-lhadores em Jornada do Setor Campesino, ocorrida no dia 20 de novembro.

O acesso a crédito para a compra de insumos é ou-tra demanda do campesina-to. “Os camponeses não têm acesso ao crédito, [os bancos] dizem que estamos endivida-dos”, reclama um camponês durante a jornada. Os oligo-pólios transnacionais baixam o preço de compra dos ali-mentos e o encarecem para o

Miséria nas fábricas maquiladoras, no campo, no mundo do trabalho EL SALVADOR Mulheres são exploradas e submetidas à opressão por empresas de tecidos; no campo, as políticas de incentivo às maquiladoras, importação de alimentos e a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC), contribuem para a migração

consumidor. “Baixou o petró-leo novamente, mas o preço dos alimentos congelou. Nos-sos produtos baixaram 50%. Em meio ao alto custo dos medicamentos, os campone-ses têm que vender o produto

porque têm que pagar o crédi-to”, alerta o documento da jor-nada dos campesinos.

Com as remessas vindas de familiares dos Estados Uni-dos, muitos camponeses com-pram os insumos para plan-

tar. Com a sua diminuição, a semeadura e a entrada de dinheiro vão cair. O acesso aos insumos e dinheiro pa-ra a produção é um problema pendente para a reativação da agricultura como forma de po-

foi demitida”, conta Marina. Dentro da fábrica, as mulhe-res sofrem pressão por maior produtividade. Fora dela, está a violência, quando o trabalho acaba de noite.

Francisca é uma trabalha-dora organizada há seis me-ses, porém com 16 anos de trabalho nas maquiladoras. Ela conta que as operárias de-vem produzir com metas de trabalhos, uma cota diária que revela-se impossível de ser cumprida. Nada de pagamen-to de horas extras. A meta en-tão deve ser alcançada nos fi -nais de semana ou no dia se-guinte, uma hora mais cedo. As mulheres trabalham em diferentes atividades e linhas de produção ao mesmo tem-po. Francisca aplica oito dife-rentes modalidades de costu-ra, em máquinas e fi os que, de acordo com ela, estão des-gastados. “Não podemos falar durante o serviço”, lamenta a trabalhadora Ana Gloria. As mulheres sofrem com pressão moral. “Se uma operária não cumpre as metas, sofre com um apelido, colam o adesivo de uma tartaruga na sua má-quina. Se tiver produtivida-de, ganha um adesivo de fura-cão”, explica Marina Ríos.

Francisca, assim como Ana Gloria, Juana e tantas outras mulheres, aponta que não usam equipamento de segu-rança e que acidentes acon-tecem nas máquinas de costu-rar. “Uma companheira con-duzindo uma máquina sofreu um acidente, a agulha entrou em seu dedo”, ressalta Fran-cisca. As mulheres são subme-tidas à exploração do traba-lho e de gênero, sofrem pres-são sexual, os supervisores pressionam as mais jovens. “As maquilas de tecidos ex-ploram especialmente as mu-lheres, pois são trabalhos que

elas aprenderam em casa. Ar-ticulam-se as opressões, o pa-triarcalismo e o lucro, querem uma mulher com determina-do estereótipo, pagam menos que aos homens. Os empre-sários pressionam para que as mulheres façam exame de gravidez e Aids, isto é proibi-do por lei, mas continua ha-vendo esta prática”, comenta Marina Ríos.

De acordo com o Sindicato General de la Costura, o segu-ro social computa 70 mil tra-balhadoras no país. Porém há cerca de 20 mil não registra-das. Cerca de 60% das traba-lhadoras são mães solteiras, com idade entre 18 e 26 anos. Férias são uma difi culdade

para elas, as empresas demi-tem neste período ou pressio-nam para seguir trabalhan-do. Seus baixos salários não permitem que tomem café da manhã. Depois de jornadas de 8 a 12 horas, fi cam debi-litadas e não têm tratamento médico adequado. As mulhe-res lutam contra fl exibilida-de laboral. “Liberdade de jor-nada, dos salários, da disposi-ção das trabalhadoras, ruptu-ra com o contrato do trabalho são estratégias de exploração. As mulheres não podem atra-sar o horário de chegada, não têm hora para sair, são facil-mente demitidas, não se pa-gam horas extras e noturnas”, completa Marina Ríos.

Mulheres e a resistência política

Campesinato, história de um abandono SOBERANIA ALIMENTAR Com a assinatura do TLC em 2006, alimentos básicos passam a ser motivo de dependência com os Estados Unidos

Números do campoApenas 25% dos pequenos produtores têm acesso ao mercado; 38% dos pequenos produtores não têm acesso à terra; 47,5%, número de habitantes de El Salvador atingidos pela pobreza; $ 157,20 valor do salário mínimo;

Fonte: Jornada do Setor Camponês, Documento da Red Regional de Monitoreo DR-Cafta, organização Mélidas. (PC e VO)

lítica alimentar. A questão da hipoteca, as inundações, o alto custo dos insumos desestimu-lam a produção camponesa.

Outro problema apontado é a relação com os intermediá-rios para a venda do produ-to: os agricultores reclamam dos baixos preços pagos pelos chamados “coiotes”. A dolari-zação da economia é prejudi-cial para a circulação da pro-dução agrícola, os pequenos produtores vendem tendo co-mo referência a moeda local e pagam os insumos em dólar. Ocorre o aumento de custos e a diminuição de margens de lucro. A eliminação do Impos-to de Valor Agregado (IVA) sobre os alimentos é outra rei-vindicação para a diminuição do preço da cesta básica.

Apostas no FMLN A possível eleição de Maurí-

cio Funes, da FMLN em 2009 gera expectativas de mudan-ças entre o campesinato. As organizações estão se rearti-culando e a vitória eleitoral aparece como uma saída, afi r-ma Miguel, camponês da re-gião do Alto Lempa.

Os camponeses se preocu-pam em fortalecer os movi-mentos sociais depois de um possível governo da Frente. O programa da FMLN ofere-ce saídas para os agricultores, buscando conciliar interesses dos grandes e pequenos pro-dutores. A produção de cana-de-açúcar é apontada como uma vantagem para a expor-tação. O projeto do etanol do governo Lula busca alcançar a produção salvadorenha e cen-tro-americana. “A promoção de cultivo para o etanol é pa-ra alimentar os carros”, criti-ca a Jornada do Setor Campe-sino. A concentração de terras e a produtividade para expor-tação não desaparece com tal política. Na vizinha Guatema-la, a produção de açúcar para

o agroetanol está controlada por cinco grandes engenhos e 14 famílias das elites locais.

Um importante setor se está rearticulando desde 2006, por meio do Movimento Justiça e Equidade. “Muitos campone-ses estavam novamente per-dendo suas terras, as linhas de crédito já não eram mais visí-veis, ninguém nos estava re-presentando”, diz Miguel so-bre o surgimento do Justiça e Eqüidade. Os camponeses re-clamam que nos anos de go-verno de Arena (desde 1989) suas reivindicações foram desprezadas, o que está levan-do a um crescimento dos pre-ços dos alimentos. “O governo da Arena planejou leis contra os pobres. A trajetória do go-verno é a privatização, defen-der as grandes empresas pri-vadas para se manter no po-der”, aponta a jornada.

Em El Salvador, houve um princípio de reforma agrária nos anos de 1980, incomple-ta e impulsionada pela pró-pria burguesia, frente à insur-reição de massas que a região vivia. Com os Acordos de Paz, de 1992, a transferência de terras para os camponeses se-gue pendente. (PC e VO)

As eleições de março de 2009 trazem a novidade de uma possível vitória da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). A Frente agregou o es-forço unitário de cinco organizações po-lítico-militares que estiveram em guer-ra contra o governo durante toda a déca-da de 1980. Com a assinatura dos Acor-

Para entender a situação de El Salvador dos de Paz, em 1992, a Frente se converte em um partido. A rival Arena venceu até aqui as eleições, desde 1989. No atual pe-ríodo, o partido ofi cialista está desgasta-do devido às medidas aplicadas ao longo das duas últimas décadas. A Frente car-rega a expectativa de todo o setor popular do país. (PC e VO)

Trabalhadoras salvadorenhas em fábrica de tecido de San Salvador

Reprodução

Expulsos do campo, trabalhadores acabam em favelas nas periferias das cidades

Ralph De Leon

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américa latina

Na Bolívia, complô para assassinar Evo Morales

Waldo Mendiluzade La Paz (Bolívia)

AS AUTORIDADES bolivianas denunciaram, dia 22 de dezem-bro, a existência de um complô da ultradireita para assassinar o presidente Evo Morales.

Os organizadores do esque-ma pretendiam aproveitar o

permanente contato do pre-sidente com o povo, princi-palmente nas atividades com grandes multidões, advertiu o ministro Alfredo Rada. De acordo com o ministro, o lí-der do Movimento ao Socialis-mo (MAS) seria vitimado em um desses encontros por um camponês humilde, facilmen-te mascarado entre os presen-

tes. A justifi cativa do executor do crime estaria relacionada à suposta traição do chefe de Es-tado às classes sociais que o le-varam ao poder em janeiro de 2006, explicou.

Rada acusou a extrema direi-ta boliviana por esses planos de descabeçar o processo revolu-cionário encaminhado a refun-dar a nação andina no âmbito

político, econômico e social.“Nosso serviço de inteligên-

cia descobriu o projeto e infor-mou o presidente, que comen-tou em público alguns elemen-tos do complô”, acrescentou.Essa situação obrigou o gover-no a fortalecer a segurança deMorales (Prensa Latina).

Leia mais sobre a Bolíviana pág. 12.

DENÚNCIA Autoridades afi rmam a existência de complô da ultradireita para assassinar o presidente do país

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américa latina

Fernanda Chavesde Cochabamba (Bolívia)

JÁ NÃO existe analfabetismo na Bolívia. Numa grande fes-ta realizada no Coliseu de la Coronilla, em Cochabamba, o presidente Evo Morales Ay-ma anunciou o resultado de 30 meses de trabalho conjun-to com os governos de Cuba e Venezuela: 819.417 bolivia-nos que não sabiam ler e es-crever agora possuem esse co-nhecimento básico, transmiti-do com o método cubano Yo, sí puedo (Eu posso, sim). Com isso, a Bolívia é o terceiro pa-ís latino-americano livre do analfabetismo, depois de Cuba (1961) e Venezuela (2005).

“Eu li que os primeiros aima-ras que aprenderam a ler tive-ram os olhos arrancados e os que começaram a escrever ti-veram as mãos cortadas”, dis-se Evo. O presidente boliviano também recordou que, duran-te sua passagem pelo Exército, sua mãe tinha que pedir ajuda aos vizinhos para lhe escrever cartas, e que, na sua época de sindicalista, via que dirigen-tes participavam das assem-bléias com seus fi lhos para que eles anotassem as resoluções. “Agora isso acabou”, afi rmou Evo, que agradeceu aos facili-tadores e apoiadores da cam-panha de alfabetização, espe-cialmente aos colaboradores cubanos e venezuelanos.

A cerimônia contou com a presença de representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organiza-ção dos Estados Americanos (OEA), que legitimaram o pro-cesso que alfabetizou 99,5% dos bolivianos iletrados (se-gundo a ONU, um país pode ser considerado livre do anal-fabetismo quando pelo menos 96% da população adulta sabe ler e escrever). Também este-ve presente à festa Fernando Lugo, presidente do Paraguai, próximo país a adotar o pro-grama Yo, sí puedo.

UnidadeO representante da Organi-

zação das Nações Unidas pa-ra a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para os paí-ses andinos, Edouard Mato-co, disse que o fato de a Bolí-via, um país economicamen-te pouco desenvolvido, conse-guir erradicar o analfabetismo é um exemplo para as demais nações: “A declaração contri-bui para que a comunidade in-ternacional tome consciência de que há países que podem alcançar esse objetivo mesmo com poucos recursos”.

No total, foram investidos pelos três governos (Bolívia, Cuba e Venezuela) apenas 36 milhões de dólares, cerca de 43 dólares por pessoa alfabe-tizada. A ONU trabalha com uma estimativa de orçamento na ordem de 150 dólares por pessoa ou, no caso do número de alunos na Bolívia, um total de 123,6 milhões de dólares.

Os responsáveis pelo Pro-grama Nacional de Alfabeti-zação ressaltaram a unidade criada em torno do projeto, que recebeu o apoio de todas as autoridades, mesmo nos municípios controlados pela oposição. “Em primeiro lu-gar o programa torna aquele município livre do analfabe-tismo, depois possibilita que o município execute a verba destinada para educação e, em terceiro lugar, o progra-ma leva todo o necessário ao município, como os televiso-res, as cartilhas, painéis sola-res, professores”, disse Pablo Quisber, coordenador-geral.

SaúdeEssa unidade permitiu a er-

radicação do analfabetismo, que chegava a 13,3% da po-pulação adulta boliviana, sen-do que, entre as mulheres das áreas rurais, esse índice che-gava a 37,9%. Entre as pecu-liaridades da implementação do Yo, sí puedo na Bolívia, es-teve a abertura de cursos es-peciais para surdos e mudos, defi cientes físicos e presidiá-rios, além das cartilhas pre-paradas nas línguas originá-rias quéchua e aimara. Outro detalhe interessante foi a atu-ação em todos os 327 municí-pios, mesmo os que não pos-suem energia elétrica. O su-cesso do programa nesses lugares se deveu à doação, pelo governo venezuelano, de cerca de 8 mil painéis de captação solar, sendo que muitos chegavam aos pontos de alfabetização carregados por burros e lhamas.

Os técnicos do governo tam-bém fazem questão de ressal-tar o vínculo estabelecido en-tre a educação e a saúde, “vis-to que as condições básicas de saúde são fundamentais para o processo de aprendizagem”, diz o relatório fi nal do Minis-tério da Educação. Assim, nos 30 meses de programa, os mé-dicos cubanos realizaram mais de 250 mil consultas e três mil cirurgias de vista, além de te-rem distribuído cerca de 210 mil óculos de grau.

Ainda na festa, o governo anunciou a segunda etapa do programa para 2009. Intitu-lado Yo, sí puedo seguir (Eu posso continuar, sim), ela terá como objetivo desenvolver e melhorar a capacidade de lei-tura e escrita dos recém-alfa-betizados, além de agregar ou-tros conhecimentos, como Ci-ências, Matemática, Geografi a e História.

Para Edouard Matoco, da Unesco, o fato de a Bolívia, um país economicamente pouco desenvolvido, conseguir erradicar o analfabetismo é um exemplo para as demais nações: “A declaração contribui para que a comunidade internacional tome consciência de que há países que podem alcançar esse objetivo mesmo com poucos recursos”

Na Bolívia, todos sabem ler e escreverALFABETIZAÇÃO Presidente Evo Morales declara que já não há bolivianos iletrados; país é o terceiro da América Latina a alcançar o feito

“Como trabalhadores so-ciais comunitários, depois da graduação tivemos, como primeira missão, a alfabeti-zação das pessoas que não sabiam ler e escrever. Come-çamos pelas ladeiras de La Paz. Nosso trabalho era de formiga, já que devíamos ba-ter nas portas de todas as ca-sas que visitávamos, sem sa-ber como iriam nos receber.

Apesar disso, começamos animados, a maioria dos en-trevistados expressava me-do, pois pensava que teria que pagar pelo curso. Ou-tros diziam que não podiam se dedicar porque eram ve-lhos, outros porque não ti-nham tempo, já que preci-savam trabalhar. Mas o ca-so particular era o da maio-ria das mulheres: elas ti-nham que pedir permis-são aos seus esposos para fa-zer o curso.

Outro fator foi a vergonha de não saber ler e escrever. Um caso muito singular foi o de uma família de alcoóla-tras que viviam em uma casa muito humilde. Toda a famí-lia se interessou em ser alfa-betizada e o mais comoven-te foi quando um dos fi lhos menores, de aproximada-mente nove anos, pegou-me pela mão e disse: ‘Eu tam-bém posso participar desses cursos? Quero aprender a ler e escrever”.

O curso estava dirigido pa-ra jovens e adultos que por algum motivo não pude-ram estudar. Já tínhamos

de Cochabamba

O método de alfabetização cubano “Yo, sí puedo” é apli-cado em 25 países do mundo e já alfabetizou cerca de 2,2 mi-lhões de pessoas. A metodo-logia é baseada na linguagem audiovisual e cada ponto de al-fabetização recebe uma televi-são, um reprodutor de vídeo, um jogo de 17 fi tas contendo 65 teleaulas e uma cartilha de cada aula com exercícios.

O método é fl exível e se adapta aos contextos sócio-culturais das regiões onde é

Total de inscritos no programa de alfabetização: 824.101

Total de alfabetizados: 819.417

Custo por aluno: 43 dólares (valor estimado pela ONU: 150 dólares)

Custo total do programa: 36 milhões de dólares

Assessores do Ministério da Educação: 300

Coordenadores Municipais: 327 (um por município)

Supervisores: 4.949

Facilitadores: 46.460

Pontos de alfabetização: 28.450 em todo o país

Grupos de alfabetização: 50.582

Taxa média de analfabetismo antes do programa: 13,3%

Taxa máxima de analfabetismo antes do programa: 37,9%, entre mulheres de áreas rurais

A alfabetização boliviana em números

“Que difícil é para uma pessoa ter vivido tanto tempo com os olhos vendados, sem poder ler o que diziam os le-treiros por não conhecer as letras e os números, porque em minha infância não tive a oportunidade de ir à escola. Agora é diferente, e agradeço ao meu presidente Evo Mo-rales Ayma, a Cuba e Venezuela porque já sei ler e escre-ver. E quer que o programa continue para seguir apren-dendo mais a cada dia.”

Simona Paiba Condori, 64 anos

“Fui alfabetizado junto com 944 companheiros. Não há mais analfabetos em Totora Marca. Por essa razão, em nome de meus irmãos agradeço profundamente a nos-so presidente, irmão e companheiro Juan Evo Morales. Nós, aqui em Totora, como um povo originário, temos si-do esquecidos pelos governos anteriores. Fomos massa-crados, humilhados e discriminados. Por essa razão, pe-dimos que sigam realizando as mudanças em nosso país, até que consigamos a justiça social. Nós estamos a seu la-do, senhor presidente, oferecendo nossas vidas.”

Andrés Condori Condo, 61 anos

“Antes não sabia ler nem escrever, meus pais não ti-nham a possibilidade de me colocar na escola porque não tínhamos dinheiro. Quando eles morreram, foi ainda mais difícil, fi quei só e não foi possível aprender. Agora, com o Programa de Alfabetização, aprendemos a ler e escrever, por isso nós, participantes, nos senti-mos muito felizes e contentes pelo que aprendemos. Pensamos em continuar e seguir adiante, preparando-nos cada dia mais”.

María López Mamani, 79 anos

O testemunho de quem saiu da escuridão

“Uma experiência humanizadora”Abaixo, o depoimento da facilitadora Stael Alvarez, engenheira de sistemas, de 26 anos

um bom número de pesso-as para alfabetizar e váriospontos de alfabetização paraabrir. O Ministério da Edu-cação nos dotou de um tele-visor, um VHS, os vídeos eas cartilhas. Por nossa con-ta, levamos lápis, borracha ealguns doces e biscoitos pa-ra que os alunos não desani-massem, ainda que já esti-vessem convencidos de queo curso era gratuito.

As mulheres consegui-ram a permissão dos mari-dos e vinham muito entu-siasmadas aos cursos, ou-tros arrumavam tempo pa-ra assistir às aulas e, sobre-tudo, os participantes eramconscientes de que ninguémmais os iria enganar, porquesabiam ler e escrever. Já nãobaixam sua cabeça com me-do dos outros por se sen-tirem menores que todos;agora, olham com a cabeçaerguida, pois sabem que suavida será digna.

Em geral, essa foi umaexperiência humanizado-ra, sociável, realista e fei-ta com amor, a base funda-mental para levar a cabo umfeito digno como esse: nos-sa Bolívia livre do analfabe-tismo. Não alcançamos tu-do isso sem a ajuda dos nos-sos irmãos cubanos e ve-nezuelanos. Como está es-crito em nossa moeda: “Aunião faz a força”. É o mo-mento de nos unirmos pa-ra termos uma socieda-de digna e livre diante dequalquer opressão”.

O método “Yo, sí puedo”aplicado, sendo que o tem-po médio do curso varia en-tre quatro e seis meses, de-pendendo da disponibilida-de dos participantes. Na Bo-lívia, foram produzidas au-las em aimara e quéchua,além do castelhano, e as re-giões desprovidas de energiaelétrica receberam painéisde captação solar do gover-no venezuelano. Em 2002e 2003 o “Yo, sí puedo” rece-beu a menção de honra ReySejong da Organização dasNações Unidas para a Edu-cação, a Ciência e a Cultura(Unesco). (FC)

O presidente boliviano, convidados e representantes da ONU e da OEA durante a cerimônia no Coliseu de la Coronilla, em Cochabamba

Jose Luis Quintana/ABI

Jose Luis Quintana/ABI

Evo Morales durante a cerimônia