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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS MESTRADO EM LETRAS PRISCILLA GREZZI PINTO TEIXEIRA Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos NITERÓI 2006

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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS MESTRADO EM LETRAS

PRISCILLA GREZZI PINTO TEIXEIRA

Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem

n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos

NITERÓI

2006

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2

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENESE

INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM LETRAS SUBÁREA LITERATURA

PORTUGUESA E LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA

PORTUGUESA

PRISCILLA GREZZI PINTO TEIXEIRA

Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem

n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos

NITERÓI

2006

3

PRISCILLA GREZZI PINTO TEIXEIRA

Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem

n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos

Dissertação apresentada ao Curso

de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para obtenção do Grau

de Mestre. Área de concentração:

Literatura Portuguesa e Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª Drª Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira

NITERÓI

2006

T266 Teixeira, Priscilla Grezzi Pinto. Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos / Priscilla Grezzi Pinto Teixeira. – 2006.

104 f. Orientador: Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2006. Bibliografia: f. 98-102.

1. Metalinguagem. 2. Escrita. 3. Ficção. 4. Queiroz, Eça, 1845-1900 - Correspondência. I. Oliveira, Maria Lúcia Wiltshire de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 410

4

PRISCILLA GREZZI PINTO TEIXEIRA

Eça: autor e protagonista; um estudo da metalinguagem

n’A Ilustre Casa de Ramires e em cartas aos amigos

Dissertação apresentada ao Curso

de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para obtenção do Grau

de Mestre. Área de concentração:

Literatura Portuguesa e Literaturas

Africanas de Língua Portuguesa.

Aprovado em setembro de 2006.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Profª Drª Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira – Orientadora

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________

Profª. Drª. Dalva Calvão

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________

Profª Drª Regina Michelli

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

NITERÓI

2006

5

Ao meu pai,

Caetano Pinto Teixeira

Pelo seu ar questionador, pelas suas críticas precisas e pelo seu bom-humor que

tanto me influenciaram e serviram de estímulo para a luta.

(...) Enfim tudo se resume na grande máxima, (...) aquela que

consideram a (...) mais alta descoberta social e filosófica – Ninguém

sabe nada de coisa nenhuma! (QUEIRÓS, 2000, p. 482)

Ao meu noivo (e futuro marido)

Wilsinho - Wilson Pereira Machado Júnior

Pela paciência, pela compreensão, pela doçura, pelos belos sábados perdidos em

virtude desse trabalho, pelo precioso auxílio tecnológico e emocional, sem o qual esse

projeto não seria possível...

Por que não posso eu ter ai de mim essa suave tranqüilidade? Por

que não serei eu também (...) inexcitável? Por que não sei eu escrever

essas cartas serenas, sossegadas, (...) onde se revela uma natureza

tão límpida e calma (...)?

(QUEIRÓS, 2000, p 482)

6

(...) Eu dou-vos um borrão de romance - e vocês em lugar de publicar o romance publicam o borrão! (...) um artista escandalizado na sua vaidade (...) é capaz das maiores infâmias (...) O inferno vos abrase, facínoras. (...) Faltavam tiras, monstros. (...) (QUEIRÓS, 2000, pp. 67, 68)

7

SINOPSE

Leitura de A Ilustre Casa de Ramires e de seleta de Cartas

aos amigos, de Eça de Queirós. Discussão e análise da questão da

escrita no romance e nas cartas aos amigos. Reflexão acerca da

metalinguagem e, para além disso, da função que essa escrita

revela no horizonte do personagem (protagonista do romance) e

do escritor. Estudo das diversas facetas queirosianas presentes nas

cartas aos amigos e a possível teatralização identitária aí

existente, em diálogo com o personagem do romance numa

tentativa de relativização e reflexão sobre as fronteiras e o

estatuto do real e do ficcional nos espaços do romance e da

correspondência do autor. Contraponto com a correspondência de

Flaubert.

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. EÇA FICCIONAL – A ILUSTRE CASA DE RAMIRES..........................21

1.1. ANÁLISE GERAL...............................................................21

1.2. A ESCRITA..........................................................................44

2. EÇA NÃO-FICCIONAL.............................................................................53

2.1.CARTAS AOS AMIGOS......................................................53

2.2. A PAIXÃO PELA FORMA: EÇA E FLAUBERT..............87

3. CONCLUSÃO..............................................................................................95

4. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................98

RESUMO .........................................................................................................103

ABSTRACT......................................................................................................104

9

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca discutir a questão da escrita e como esta se liga à

posição social, política e econômica do autor. Pensamos refletir sobre a escrita em si e

suas possíveis conseqüências, a forma como o ato de escrever pode se transformar em

algo muito além de um simples passatempo, tornando-se socialmente importante para

aquele que produz o texto, importância esta manifestada através dos diversos vieses

acima explicitados.

Existe, socialmente, grande curiosidade e admiração pelos textos, especialmente

os literários. Admiração por se observar, no ato da leitura, a beleza e a harmonia das

palavras que se seguem, uma após outra, como num perfeito bailado vocabular, onde se

encaixam tão naturalmente de uma forma que parece espontânea e simples para quem a

produz. E aí nos perguntamos: como tais autores e autoras conseguem escrever aquelas

maravilhas tão facilmente, enquanto as pessoas em geral têm grande dificuldade para

produzir e organizar de maneira compreensível as idéias? O desejo de conhecer este

processo é algo que pode surgir. São estes escritores “seres iluminados”? Ou será que

eles sofrem também do mesmo mal: pensar, buscar, angustiar-se na escolha de uma

palavra, de uma frase ou de um título?

Com o objetivo de desvendar este “mistério”, dedicamos parte desse trabalho ao

estudo da metalinguagem. Para tal, pretendemos estudar A Ilustre Casa de Ramires1.

Porém, para investigar os bastidores desta “superprodução” literária, precisamos de

elementos de caráter pessoal e íntimo capazes de revelar algo mais sobre o tecer da

trama textual. Para isto, recorreremos às cartas de Eça a alguns de seus amigos mais

próximos. Assim, podemos alcançar duas visões do mesmo Eça: o escritor, através de

sua obra ficcional e o homem de letras, por meio de suas cartas. Mais que comparar,

pretendemos analisar a questão da escrita pelo diálogo entre essas duas reveladoras

produções textuais.

Em síntese nossa proposta tem como meta ler atentamente a obra literária em

questão e as cartas de Eça de Queirós, fazendo uma análise sob a perspectiva da

metalinguagem, dialogando com estas duas diferentes formas de expressão escrita.

1 Doravante a obra será designada pelas iniciais ICR e, nas citações, seguida do número das páginas, da edição: QUEIRÓS, Eça de. A Ilustre Casa de Ramires. São Paulo: Brasiliense, 1961.

10

Além disso, pretende-se observar os caminhos que essa escrita pode levar como

realização pessoal (vaidade artística), como “trampolim” para atingir a esfera política

(status social) e como forma de transação comercial (o livro como um produto vendável

e financeiramente compensador). Discutir estas três diferentes motivações da escrita,

nas cartas e na ICR, de Eça, é também nosso objetivo.

Chamar Eça de Queirós de autor é dizer o óbvio. Mas protagonista... Pois bem.

Eça, autor, todos nós conhecemos. É aquele que criou, dentre outras obras, a ICR e

aquele que produziu ainda a sua epistolografia, endereçada a alguns amigos. Nas cartas

o escritor parece ultrapassar as fronteiras da autoria, uma vez que, ao produzi- las, se

coloca como protagonista, transformando sua própria realidade. Ao retratar seu

cotidiano, suas frustrações, angústias e dúvidas, utiliza-se da escritura, “artificializa”

esta realidade, transforma-a numa verdadeira narrativa, altera o seu estatuto onde passa

de autor a personagem, protagonista da história de sua própria vida, ficcionalizando-se,

portanto. Desse modo, trabalhar a questão da metalinguagem, dentro dos dois

territórios, o da “ficção tradicional”, com a ICR, e o do “real ficcionalizado”, através

das cartas a amigos, parece ser algo instigante no trabalho a ser desenvolvido.

Gostaríamos de reiterar o fato de que a principal reflexão que propomos tem

como base o cruzamento de análises das leituras de A Ilustre Casa de Ramires e de

algumas cartas destinadas a amigos de Eça de Queirós, sob a perspectiva das diversas

temáticas já mencionadas, todas, entretanto, convergindo para a questão da escrita. A

ICR tem como protagonista Gonçalo, homem que deseja escrever um “romance

histórico” baseado na história de sua própria família. Este personagem volta e meia se

depara com as dificuldades da escrita e com as pressões para a entrega do volume.

As cartas de Eça, não todas, obviamente, mas as que foram selecionadas como

corpus deste estudo, falam sobre as dúvidas do autor quanto à produção de seus

romances, solicitando, inclusive, opiniões e sugestões para a elaboração dos mesmos.

Ambos – romance e cartas – no fundo discutem o mesmo tema: a escrita.

Portanto, esta é uma das questões presentes no trabalho: refletir acerca das angústias e

alegrias proporcionadas por este ato tão pessoal e solitário, que é o ato de escrever.

Acreditamos ser possível estabelecer uma análise entre dois sujeitos

enunciadores, Gonçalo e Eça, sendo que este, ao escrever suas cartas, se “ficcionaliza”,

pois, a escrita possui esse poder de transfigurar a realidade. Pensamos que Gonçalo não

11

parece estar muito distante de Eça, e vice-versa, no que diz respeito à questão da

metalinguagem. Não que Gonçalo seja Eça quando este usa o personagem para contar

sua história. Apenas cremos nos impasses da escrita vividos por ambos, uma vez que

Gonçalo demonstra ser um instrumento no romance para explicitar esta questão. Daí

acreditarmos na pertinência desta proposta, que também considera outras questões

relacionadas à escrita, como a relação autor/leitor, escritor/“escriptor”, obra/texto e

narrador (em seus diferentes tipos), refletindo-se ainda sobre as conseqüências do ato de

escrever e publicar, bem como os caminhos que ele pode levar, no plano da realização

pessoal, política e financeira.

Pretendemos estudar os vários “Eças”, ou seja, as diversas facetas por ele

apresentadas, tomando como base sua própria correspondência. O Eça que se realiza

pessoalmente é o lado do artista, vaidoso, que vê o resultado de seu trabalho nos

romances que produz e que são lidos, comentados, admirados. Há também o Eça gestor

do seu negócio, que vê uma possibilidade viável de unir literatura e dinheiro,

transformando suas obras em mercadorias aceitáveis e lucrativas, e junto a isso os

respectivos problemas financeiros que sempre acompanharam o escritor sem deixar de

lado, é claro, todo o trabalho de ficcionalização que parece envolver a feitura dessas

cartas. Em contrapartida, temos o outro lado – Gonçalo – como o personagem que

produz uma obra com um objetivo bem claro: a ascensão política. Para obter o cargo de

deputado, Gonçalo produz uma novela e consegue assim o prestígio necessário,

atingindo seu propósito.

Se o nosso principal objetivo é discutir a questão da escrita em Eça de Queirós,

precisamos, antes de tudo, refletir sobre a metalinguagem. Como nos revela Samira

Chalhub:

(...) O próprio sentido do prefixo meta, segundo o Novo dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda, remete-nos à sua etimologia grega que significa: (...) “reflexão crítica sobre”. (...) Nesse sentido, portanto, linguagem da linguagem (tomando-se linguagem como um sistema de sinais organizado) é metalinguagem – uma leitura relacional, isto é, mantém relações de pertença porque implica sistemas de signos de um mesmo conjunto onde as referências

12

apontam para si próprias, e permite, também, estruturar explicitamente a descrição de um objeto. (...) 2

A partir do que foi dito pela autora, pode-se entender metalinguagem como a

linguagem (em nosso caso, especificamente a literária) que fala de si própria. Isto é,

numa obra literária, que é uma linguagem escrita, existem reflexões a respeito do

próprio ato de escrever. Conforme Chalhub destacou, segundo a definição do dicionário

de Aurélio Buarque de Holanda, metalinguagem é, dentre outros sentidos, “reflexão

crítica sobre”. E é justamente isto que encontramos em ICR em que o protagonista

pretende escrever uma novela histórica. Fazendo esta escolha, Eça parece demonstrar

um desejo de falar sobre si mesmo, ou seja, de narrar as agruras e realizações de quem

escreve, de quem pretende produzir um texto literário. Também na sua correspondência

pessoal, Eça pratica metalinguagem.

A metalinguagem é um procedimento da modernidade, sendo um recurso

largamente utilizado pela ficção do século XX no intuito de se posicionar quanto às

intensas transformações ocorridas no mundo, principalmente após a Revolução

Industrial e observar de que forma estas mudanças repercutiram na literatura. Daí falar-

se em “crise” na literatura do século XX, pois esta evidencia um olhar crítico do escritor

sobre o seu próprio trabalho, numa tentativa de acompanhar tantas alterações na

sociedade. A arte, ali, mostra-se dessacralizada, perdendo sua “aura”. Porém, vale frisar

que este uso metalingüístico já se mostrava presente, de uma forma nítida, em textos do

século XIX, como provam as Viagens de Garrett e a ICR de Eça. Observemos outros

fragmentos do texto de Samira Chalhub que nos falam sobre o uso metalingüístico dessa

“literatura em crise”, retrato da modernidade:

O que a metalinguagem indica é a perda da “aura” uma vez que dessacraliza o mito da “criação”, colocando a nu o processo de “produção” da obra. (...) A metalinguagem, como traço que assinala a modernidade de um texto, é o desvendamento do mistério, mostrando o desempenho do emissor na sua luta com o código. (...) Um metapoema não é aurático, e isso porque sua feitura está à mostra, dessacralizada e nua. Resultado da multiplicação dos códigos, que colocou em cheque o ideal de representação da arte. (...)

2 CHALHUB, 1988, p. 7 e 8.

13

O objeto único (a prática textual), sacralizado, é aurático porque leva o espectador a contemplá- lo, em função de um significado inalcançável, e o objeto moderno tem sua “sacralidade” exposta a um leitor já interiorizado na sua própria linguagem, esta por sua vez, materializada. Aquele é resultado da expressão, este, da construção. Expressão “psicológica”, construção de engenharia. De um lado a naturalidade das funções referencial e emotiva e, de outro, a arquitetura das funções poética e metalingüística. Na verdade, o declínio da aura da arte que caracteriza sua transformação nada mais é do que uma crise da idéia de representação da linguagem. (...)3

Com a postura inovadora de Eça ao adotar em sua obra uma personagem que

está produzindo uma nove la, o escritor português rasga o véu do sagrado e da inspiração

divina que envolve a escrita e traz à luz uma outra realidade: a do trabalho e a da

elaboração da escrita. Esta passa a ser fruto de uma construção contínua, verdadeiro

trabalho de transpiração que, de uma vez por todas, toma o lugar da inspiração no

espaço da criação textual, algo que veremos mais claramente, adiante, quando

mencionarmos a correspondência eciana. Dessa forma, como podemos notar, Eça, n’ A

Ilustre Casa visa, dentre outras coisas, a desenvolver um panorama do trabalho que

envolve a escrita, dentro de seu próprio texto. Para tanto, o autor não só elege como

protagonista Gonçalo, um fidalgo com pretensões políticas e que, objetivando

concretizá- las, resolve escrever um romance histórico exaltando os feitos heróicos de

seus antepassados, os Ramires ilustres e remotos, como também desenvolve, dentro

desta narrativa principal, uma outra, a do próprio personagem Gonçalo Mendes

Ramires, a Torre de Dom Ramires.

A questão da metalinguagem em ICR já foi pensada por Daniel-Henry Pageaux,

que afirma:

(...) A Ilustre Casa de Ramires constitui, a nosso ver, um momento importante da interrogação de Eça sobre a natureza da escrita romanesca e sobre a sua função estética e social. (...) A Ilustre Casa de Ramires torna o leitor contemporâneo daquilo que pode ser literatura como atividade criadora, como gênero literário; ele deve interrogar-se sobre o sentido a dar à atividade de escrever. (...) Pela atenção prestada às condições de produção da escrita, à sua materialidade, a escrita é de alguma maneira examinada e desmistificada: a escrita em processo transforma-se em processo da escrita. (...) a escrita posta em

3 CHALHUB, 1988, 42 e 47.

14

questão, o questionamento da escrita em processo transforma-se em processo da escrita. (...) a escrita posta em questão, o questionamento da escrita é talvez o modelo ou a estrutura segundo os quais é produzido o romance intitulado A Ilustre Casa de Ramires. 4

Falando mais especificamente sobre o processo de produção textual de Gonçalo,

é através da escrita que ele se realiza. Ao produzir o texto de sua novela, o personagem

projeta nela os seus desejos. Por meio de seus antepassados, homens viris e valentes,

narra aventuras épicas, vitórias e honras que somente podem ser vivenciadas pelo

protagonista através do mundo da escrita. Fora dele, dificilmente poderia concretizar

tais feitos.

Sobre a questão do desejo e também da realização do sonho dentro do texto,

Laura Padilha muito bem nos esclarece:

A escrita de Gonçalo, (...) é uma escritura do desejo pela qual ele obtém o prazer. No texto seus desejos se realizam e é possível a sua sublimação (...). Tem o texto de Gonçalo a mesma função de seus sonhos e um completará o outro, daí porque ambos sejam chaves para que se chegue ao sentido da obra. Pode-se dizer, para Gonçalo, o que se poderá dizer com relação a Eça de Queirós posteriormente: quando Gonçalo muda seu estatuto de personagem e passa a autor, vai mostrar o que se esconde em seu inconsciente. (...) 5

Assim, a metalinguagem na ICR, sendo um recurso de que o autor se utiliza para

tecer reflexões sobre o ato da escrita, resulta em uma forma de encaixe de uma narrativa

dentro da outra e, a partir da segunda (numa estrutura literária bastante inovadora), Eça

nos permite, através de Gonçalo e de sua novela, estabelecer relações existentes entre o

ato da escrita e o desejo. Ao escrevemos algo estamos projetando, consciente ou

inconscientemente, nossos anseios e desejos. As passagens destacadas do texto de Laura

Padilha parecem ilustrar tal fato que se dá entre Gonçalo e sua novela.

Sobre o fato de o romance refletir sobre o ato da escrita, podem nos servir de

exemplo as seguintes passagens:

4 PAGEAUX, 1991, p. 191-196. 5 PADILHA, 1989, p. 72.

15

(...) estou otimíssimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma chávena de chá verde, muito forte... Leva também as torradas. (...) E momentos depois, na livraria, com um roupão de flanela sobre a camisa de dormir, sorvendo lentos goles de chá, Gonçalo relia junto da varanda essa derradeira linha da novela tão rabiscada e mole, (...) De repente, numa rasgada impressão de claridade, entreviu detalhes expressivos para aquela noite de castelo e de verão. (...) Achegou devagar a cadeira, consultou ainda no volume do Bardo o poemeto do tio Duarte. E, desanuviado, sentido as imagens e os dizeres surgirem como bolhas de uma água represa que rebenta, atacou esse lance do capítulo I. (...) 6

Os fragmentos mostram a preparação para o início da laboriosa tarefa que é

escrever e a alegria quando o produtor textual encontra o caminho certo e os “bons

traços” para o seu texto. Revelam ainda todo o ritual que cerca o trabalho da escritura,

pois, na livraria, “(...) sorvendo lentos goles de chá (...) achegou devagar a cadeira (...)”.

E “desanuviado” sentiu “as imagens e os dizeres surgirem (...)”. Parece haver

necessidade de um “clima” que deve cercar aquele que escreve para que possam brotar

“as imagens e os dizeres” como “bolhas de uma água represa que rebenta”.

A literatura, isto é, a escrita, parece projetar os anseios e incertezas daquele que

escreve textos, especialmente os classificados como ficcionais. Eça parece se ver

refletido em sua própria escrita, através do personagem Gonçalo. Verifica-se, portanto,

um tom levemente autobiográfico que perpassa o romance eciano, principalmente no

que se refere aos conflitos e decepções vividos, por Gonçalo, ao produzir sua novela.

Daí parece-nos ser Gonçalo a imagem de Eça destorcida em seu espelho. Alguns trechos

da correspondência de Eça, neste sentido, parecem dialogar com algumas passagens do

romance. Nessas cartas, Eça, como Gonçalo, sofre com questionamentos diversos sobre

o escrever e o publicar, conforme podemos observar na seguinte passagem:

Acabo de receber a tua carta e estou verdadeiramente indignado. Pois quê! Eu dou-vos um borrão de romance – e vocês em lugar de publicar o romance publicam o borrão!

(...)

6 QUEIRÓS, 1961, p. 48 e 49.

16

Nós ficamos em que eu corrigiria as provas (...) e vocês não esperam pelas provas – e publicam o informe e o absurdo. É verdadeiramente insensato! Vocês sacrificaram o meu trabalho ao desejo de encher a revista de matéria – sem atenção a que a matéria fosse boa a má (...)7

No trecho acima notamos o quanto Eça de Queirós se preocupava com seu texto.

Em sua carta ao amigo Jaime Batalha Reis (que será estudada mais detidamente

adiante), revoltado, queixava-se da publicação de O Crime do Padre Amaro sem ter

passado pela revisão do autor. Esta carta ilustra a preocupação do escritor português em

relação ao seu próprio texto e à necessidade de seu aprimoramento.

Além disso, podemos notar também, através de sua correspondência, que a

escrita impunha ao autor obrigações, compromissos com datas e entrega de obras que

exigiam alguns sacrifícios na vida pessoal de Eça de Queirós, uma quase reclusão.

Assemelha-se ao Gonçalo de a ICR que, pressionado para que seu romance histórico

fosse publicado nos “Anais”, “abancava-se” em sua “cadeira de couro” para trabalhar:

(...) Gonçalo Mendes Ramires (...) trabalhava numa novela histórica A torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA (...). (...) da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das tiras de papel almaço, roçando pela testa a rama da pena de pato, avistava sempre a inspiração da sua novela – a torre. (...) 8

Falando mais um pouco a respeito da correlação entre as dificuldades da escrita

vividas tanto pelo Eça quanto pelo personagem Gonçalo, observemos o que nos diz

Beatriz Berrini sobre a questão:

(...) Na solidão, longe de todos, [Eça] passava horas e horas cobrindo as folhas de papel com sua escrita, entregue ao ato criador, como se nada mais existisse. Escrevia de pé, o que lhe permitia caminhar e gesticular pelo gabinete, a viver em companhia das suas personagens, os seus “abutres”, como ele dizia, habitante ele também desse mundo imaginário, fruto da sua invenção. (...)

(...) Quem tiver curiosidade em acompanhar de perto essa atividade intelectual de criação, deve retomar a leitura d’ A Ilustre Casa de Ramires. Gonçalo parece um alter ego de Eça de Queirós, abancado

7 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 67. 8 QUEIRÓS, 1961, p. 1.

17

na sua livraria, empenhado na redação da sua Novela; ele também totalmente alheio aos homens, sem ouvir a chamada sonora, sem sequer lembrar-se de se alimentar... 9

Este fragmento mostra a entrega de Eça de Queirós ao seu trabalho e o quanto a

escrita o absorvia. Talvez não da mesma forma, mas também Gonçalo (ICR) sentiu-se

dominado e, por que não dizer, influenciado pelos próprios personagens que criou.

A epistolografia, para além de refletir os impasses e temores do escritor, nos

revela um Eça ficcionalizado. O ato da escrita é algo artificial. Dessa forma, ao

explicitar no papel suas ânsias, Eça realiza a mesma prática de suas “criaturas”,

adquirindo, assim, o estatuto de mais um de seus inúmeros personagens. Afinal, quando

se escreve, quase sempre se usa um ornamento ou até um exagero, para aumentar a

carga dramática do texto, alterando os fatos “reais”. Até que ponto Eça em sua

correspondência mantém uma fidedignidade em relação ao real? Até onde Eça, na

qualidade de autor, se torna o personagem nessas cartas? Em contrapartida, Gonçalo

Mendes Ramires, personagem do romance, não se torna também um autor dentro da

obra?

Segundo Foucault, no século XVI, quando se acreditava na linguagem como

uma porta mágica para o saber – e não como nstrumento neutro para fazer ciência –

não existia a distinção entre o não-ficcional (o real, o mundo) e o ficcional (o

imaginário). A linguagem escrita não era vista com um compromisso com a “verdade”

ou que representasse as coisas existentes. Havia uma aliança entre o real e o imaginário

que se quebra a partir do século XVII, com o desenvolvimento do saber científico. Uma

nova epistemologia (teoria do conhecimento) surge a justificar essa separação daí para

frente. Nesse contexto só a literatura contraria a episteme da linguagem como

instrumento da ciência, da verdade. Ela tenta repor “a linguagem no seu ser” 10, usando

a linguagem como contradiscurso, repudiando a sua função meramente representativa

ao se referir ao mundo e ao real. Assim ela cria mundos, torna-se plena de significados

a serem decifrados, vira um objeto de exegese, de comentários.

(...) a literatura só existiu em sua autonomia, só se desprendeu de qualquer outra linguagem, por um corte profundo, na medida em que

9 BERRINI, 1996. 10 FOUCAULT, 1981, p. 60.

18

constituiu uma espécie de “contradiscurso” e remontou assim a função representativa ou significante da linguagem. (...) 11

Assim, a linguagem não mais se remete, imediatamente, às coisas que nomeia.

Se nos outros campos faz-se a distinção entre o ficcional e o não-ficcional, na literatura

surge um espaço mesclado que funciona como “contradiscurso”, rompendo com o

compromisso de representação da verdade.

Hoje em dia, diferentemente do que acontecia no século XVI, a interpretação

não se faz mais na esperança de uma Verdade a ser desentranhada dos textos, pois na

modernidade perdeu-se a crença em verdades absolutas. A exegese tornou-se um

movimento infinito da linguagem sobre a linguagem, daí a metalinguagem como marca

essencial da modernidade. Daí a fusão que a linguagem faz entre o real e o imaginário,

entre o ficcional e o não-ficcional, dissolvendo estas fronteiras estabelecidas pela

episteme do século XVIII.

(...) Na idade moderna, a literatura é o que compensa (e não o que confirma) o funcionamento significativo da linguagem. Através dela o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental (...) cada vez mais, a literatura aparece como o que deve ser pensado; (...)12

A literatura reage à linguagem como um instrumento de representação do mundo

e cria novos objetos a pensar, discutir e interpretar. E a interpretação dá espaço a

diferentes visões, e por que não dizer, criações. Essa literatura re-entroniza a aliança

entre o real e o imaginário que foi repudiada a partir do século XVII (Iluminismo) com

o desenvolvimento do saber científico. Ao usar a linguagem como contradiscurso, a

literatura destrona a função meramente representativa da linguagem. Ela cria mundos,

torna-se plena de significados a serem decifrados, tal como, em certa medida, acontecia

antes do império da racionalidade científica:

(...) O que é próprio do saber não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar. Comentário das Escrituras, comentários dos antigos, comentário do que relataram os viajantes, comentário das lendas e das fábulas: não se solicita a cada um destes discursos que se interprete seu direito de enunciar uma verdade; só se requer dele a possibilidade

11 FOUCAULT, 1981, p. 60. 12 FOUCAULT, 1981, p. 60.

19

de falar sobre ele. A linguagem tem em si mesma seu princípio interior de proliferação. (...) 13

Tal discussão vem a propósito do corpus do trabalho que se classifica em dois

tipos segundo a episteme da ciência moderna: cartas seriam textos documentais, não-

ficcionais; romances seriam textos imaginários, ficcionais. Eça é autor de ambos os

tipos. E a hipótese deste trabalho é justamente a de mostrar a não-compartimentação

entre estes dois tipos e, pelo contrário, revelar que recursos da ficção (ICR) são usados

nos textos documentais (Cartas)

O que se pretende é que as Cartas, entendidas como pura representação do

mundo e da realidade eciana, na verdade rompem esta fronteira e são em parte ficção,

apresentando semelhanças com o discurso ficcional da ICR. Deste modo, podemos fazer

do “Eça das Cartas” um ser da linguagem, um personagem.

Podemos também dizer que o personagem Gonçalo, para criar seu romance,

partiu de um texto primeiro, o “poemeto” do seu tio Duarte. O fidalgo não “enunciou

uma verdade” em seu texto relativo ao poemeto, apenas solicitou “a possibilidade de

falar sobre ele”, isto é, de desenvolvê-lo e criar, com base nele, um novo discurso, ou

seja, sua própria novela. Em suas cartas, Eça de Queirós parece fazer trajetória inversa.

Partindo de um tipo de linguagem que tem como fundamental característica o ar

documental, subverte este estatuto ao criar narrativas aparentemente ficcionais dentro de

seus relatos epistolares que teriam, a priori, valor de documento e não valor literário.

Esta escrita demonstra um caráter artificial com uma linguagem que mais “inventa” do

que representa o real. Estudar e analisar estas fronteiras sensíveis existentes entre o

ficcional e o não-ficcional, cruzando dados colhidos no romance ICR e em algumas

cartas de Eça de Queirós é uma questão a desenvolver neste trabalho.

Para atingir nossos objetivos, concentramos nossas reflexões em dois capítulos.

No primeiro, trabalharemos o Eça ficcional, iniciando por uma análise geral do romance

ICR, para depois abordar a problematização da escrita no romance. O segundo capítulo

será destinado ao estudo do Eça não-ficional, a saber, nas cartas aos amigos, seguido de

uma comparação com Gus tave Flaubert, escritor francês, a quem Eça muito admirava, e

13 FOUCAULT, 1981, p. 56.

20

cujas cartas revelam o quanto o escritor português estava afinado com a preocupação

formal com a linguagem, de resto uma característica da época.

21

1. EÇA FICCIONAL - A ILUSTRE CASA DE RAMIRES

(...) a literatura leva a tudo em Portugal. (...) A pena agora como a espada outrora, edifica reinos... (...)

(ICR, p. 12)

1.1. Análise geral

Para iniciar nossa análise convém estabelecer a diferença existente entre obra e

texto. Observemos primeiramente o que nos diz Roland Barthes no capítulo “Da obra ao

texto”, em Rumor da Língua:

(...) A diferença é a seguinte: a obra é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca). Já o Texto é um campo metodológico. A oposição podia lembrar (...) a distinção proposta por Lacan: “a realidade” se mostra, o “real” se demonstra; da mesma forma, a obra se vê (nas livrarias, nos fichários, nos programas de exame), o texto se demonstra, se fala segundo certas regras (ou contra certas regras): a obra segura-se na mão, o texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (...) o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto. Ou ainda: só se prova o texto num trabalho, numa produção. A conseqüência é que o Texto não pode parar (por exemplo, numa prateleira de biblioteca); o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra, várias obras). 14

Assim temos, por exemplo, a obra de Eça de Queirós ICR ou ainda a obra

epistolar queirosiana, isto é, o conjunto de cartas do escritor português reunidas em

volume. E por falar em volume, podemos entender o conceito de obra vinculado a essa

idéia. Conforme nos esclarece Barthes, “a obra segura-se na mão”, podendo

compreendê- la como uma dimensão mais concreta, mais palpável, enquanto que o texto

seria mais abstrato, flutuante justamente por só existir “tomado num discurso”. O texto

liga-se à idéia de travessia por ele perpassar as obras. Porém, o contrário não pode

14 BARTHES, 1988, p. 72 e 73.

22

ocorrer. Cada obra é única, ocupando o seu devido espaço nas prateleiras, nas

bibliotecas etc.

O real, que é mostrado pela obra (através, principalmente, de sua concretude

enquanto volume visível e palpável), é demonstrado pelo texto, por meio da prática do

discurso que “exercita-o” através da discursividade, ilustrando esse real com as idéias

contidas no texto, sendo apontada numa prateleira. A realidade do texto é dinâmica,

uma vez que se transforma constantemente, contendo até certa virtualidade (se é que

assim é possível dizer-se), pois essa dimensão de concretude inexiste nele.

Desse modo o volume de cartas ecianas e o exemplar do romance ICR

constituem obras, pois estão vinculadas ao concreto, à finitude, àquilo que possui

limites bem definidos. Quando se lê “fim”, o volume simplesmente termina. Estas

fronteiras encontram-se bem demarcadas. Entretanto, ao falarmos em textos das cartas

ou o texto da ICR, os limites se relativizam, os significados se multiplicam e o texto

parece não ter fim, pois, a cada nova leitura, outros sentidos serão anexados a ele não

sendo esse texto algo palpável, pelo contrário, daí seu caráter de “virtualidade”.

Portanto, segundo Barthes,

O texto aborda-se, prova-se com relação ao signo. A obra se fecha sobre o significado. (...) a obra funciona como um signo geral, e é normal que ela figure uma categoria institucional da civilização do signo. O texto, pelo contrário, pratica o recuo infinito do significado. O texto é dilatório; o seu campo é o do significante; o significante não deve ser imaginado como “a primeira parte do sentido”, seu vestíbulo material, mas, sim, ao contrário, como o seu depois (...) a lógica que regula o texto não é compreensiva (definir “o que quer dizer” a obra), mas metonímica; o trabalho das associações, das contigüidades, das relações, coincide com uma libertação de energia simbólica (...) A obra (no melhor dos casos) é mediocremente simbólica (...) o texto é radicalmente simbólico: uma obra que se concebe, percebe e recebe a natureza integralmente simbólica é um texto. O texto é assim restituído à linguagem; como esta, ele é estruturado, mas descentralizado, sem fechamento. (...) 15

Após tais diferenciações, cabe relacionar os conceitos de obra e texto a outros

dois não menos importantes: escritor e autor. Correlaciona-se a noção de obra à de

escritor no sentido de que ambos são estáticos e estão ligados à concretude. Isto é, uma

15 BARTHES, 1988, p. 73 e 74.

23

obra que se encontra numa estante de biblioteca supõe sempre um escritor, este

vinculado ao volume, ao elemento palpável que constitui o livro, sendo manuseado,

levado de um ponto a outro. Esta noção de escritor ligada assim à idéia de pessoa física,

tendo uma existência além do texto, atingindo a vida real, corresponde à “pessoa no

sentido psicológico”. Já o texto apresenta outras peculiaridades e é análogo ao exposto

acima devido a sua “virtualidade”. O texto, como já destacado, encontra-se na dimensão

das idéias, portanto sua existência se dá num universo flutuante e a noção de autor

embarca justamente nesta idéia de virtualidade, uma vez que ele só existe enquanto

texto, ou melhor, sua existência está estritamente ligada à produção textual: sem texto

não há autor. Este sentido de autor é também entendido por “escriptor”, segundo

Barthes e “autor implícito”, conforme o pensamento de Booth. Ambos os conceitos

apontam para a definição de autor como um “ser de papel” no caso das autobiografias,

entendido como elemento correlacionado exclusivamente ao texto e não como “matéria

viva” ou ser que transcende os limites textuais passando para o real (escritor). Daí texto

e autor apresentarem esta ligação direta.

Continuando o exame dos conceitos ligados à idéia de obra e texto, não podemos

deixar de observar o narrador sob as perspectivas do romance queirosiano a ICR e das

cartas do escritor português, pois para melhor compreender o conceito de narrador, é

preciso falar também sobre autor e escritor, noções que se entrecruzam e que se

mostram fundamentais para o presente estudo.

Assim sendo, pode-se dizer que há dois narradores no romance ICR: o narrador

do próprio romance e Gonçalo, narrador da novela que está inserida na obra. Seguindo-

se as duas classificações básicas de narrador, o marinheiro comerciante e o camponês

sedentário, segundo Benjamin, Gonçalo Mendes Ramires encaixar-se- ia no segundo

tipo. O fidalgo não viaja pelo mundo para buscar inspiração para sua obra. Ele produz

sua novela com base em acontecimentos locais ocorridos com seus familiares, seus

antepassados, os Ramires valentes e ilustres. Segue passagem que mostra o segundo tipo

de narrador mencionado, isto é, Gonçalo como narrador de sua novela A Torre de D.

Ramires:

Ao avistar tão rijo troço de cavaleiros e peões, espalhado até á beira do riacho por entre a sombra dos freixos, Lourenço Ramires sofreou,

24

susteve a leva, junto de um montão de pedras onde apodrecia, encravada, uma tosca cruz de pau. (...) (...) (...) E o filho de Tructesindo, erguido nos estribões de ferro, (...) descerrou a viseira do casco para que lhe mirassem bem a face destemida (...). (...) Através da grossa poeirada e do alevanto zunem os garruchões, as rudes balas de barro despedidas (...) Almogarves de Santa Irenéia, almogarves da hoste real, em turmas ligeiras, carregam, topam, com baralhado arremesso de ascumas que se partem, de dardos que se cravam; e ambas logo (...) refluem - enquanto no chão revolto, algum mal ferido estrebucha aos urros (...). 16

Vejamos agora fragmento que ilustra o primeiro tipo de narrador citado, o do

próprio romance:

Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa de lebre acossada! (...) julgando entrever, longe, (...) uma mancha clara, algum jornaleiro em mangas de camisa, atirou um berro ansioso (...) A mancha indecisa fundira na indecisa folhagem. (...) Estremecendo, Gonçalo retomou a carreira (...). (...) Com o chapéu na mão, enxugando o suor, entrou na horta (...) E agora subitamente sentia uma cólera amarga pelo desamparo em que se encontrara (...). 17

Pode-se identificar em Eça de Queirós um relevante traço de modernidade ao

trabalhar, em seu texto, a exposição desses dois tipos de narradores que surgem,

concomitantemente, durante a obra. Esses narradores se entremeiam, não havendo uma

separação explícita ou uma prévia preparação, no texto, para a inserção do outro

narrador. Assim, não há limites determinados para um e para outro. Ao longo do

romance ocorre uma inesperada interrupção e se reinicia a novela de Gonçalo e vice-

versa no decorrer de todo o texto da ICR. Isto denota claramente uma atitude pioneira

do escritor português diante de sua obra, adotando uma estrutura bastante moderna em

seu romance ao intercalar, ora o romance em si (texto da ICR), ora a novela de seu

16 QUEIRÓS, 1961, p. 122 e 123. 17 QUEIRÓS, 1961, p. 129 e 130.

25

personagem (A Torre de D. Ramires). Vale destacar ainda que, ao final do romance, o

fidalgo viaja, vai para a África, retornando posteriormente a Portugal, com a promessa

de histórias fantásticas, porém elas não serão utilizadas na confecção de uma outra

novela do protagonista, uma vez que ele, nesta altura, não mais precisa da escrita, pois

já garantiu ascensão social e promoção pessoal com a Torre de D. Ramires.

Faz-se necessário reforçar as diferenças entre os conceitos de autor, escritor e

narrador, antes de adentrarmos nas discussões relativas à escrita e à ficcionalidade dos

textos. É preciso delimitar as fronteiras de cada uma dessas noções a fim de que

possamos trabalhar mais conscientemente e de forma clara essas três idéias que se farão

presentes, de alguma maneira, no decorrer de todo o trabalho. E, para além delas,

tratarmos também das questões ligadas à narrativa e ao romance, fundantes para o

desenvolvimento da pesquisa.

Assim, as idéias sobre autor e narrador diferem-se muito quando comparadas às

instâncias da “narrativa” e do “romance” segundo as acepções utilizadas por Benjamin.

Na narrativa, predominantemente vinculada à oralidade, na maioria dos casos não cabe

falar-se em autoria, uma vez que se trata, em geral, de produções coletivas que, com o

passar do tempo, podem ou não ser acrescidas de novos elementos. Não há a noção de

um autor uno e individualizado. Neste caso, a figura do narrador relaciona-se com a do

contador de histórias que, em voz alta, narra lendas e histórias que se perpetuam, sendo

repetidas de geração em geração. Já em relação ao romance, tem-se um quadro diverso.

Devido ao momento sócio-histórico no qual se dá o seu surgimento, período esse em

que as experiências não mais eram comunicáveis, inviabilizando assim o seu

compartilhamento entre grupos, o romance apresenta, no que tange ao autor e ao

narrador, características bastante distintas se o compararmos à narrativa. No romance, o

autor apresenta-se como uma figura isolada que produz o seu texto de maneira

silenciosa e solitária.

A narrativa desses novos tempos também é diferente. Não expressa mais uma

interação com grupos de pessoas, reflete não uma experiência comunicável, comum ao

coletivo, mas sim uma vivência individual, que pode ou não gerar uma identificação por

parte dos leitores. Conforme nos diz Walter Benjamin, em seu texto O Narrador, o

romance denota isolamento, justamente o oposto da idéia vinculada à narrativa,

sinônimo de coletividade, agrupamento, reunião de pessoas:

26

(...) de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. (...) O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. (...)18

Fazendo a conexão entre romance e modernidade, Benjamin completa:

(...) A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. (...) ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta, sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narrativas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá- los. (grifo meu) 19

O romance, diferentemente da narrativa, parece ser fruto de uma experiência

individual, solitária, retrato de uma época onde as vivências “deixam de ser

comunicáveis”. O homem, então, assim como faz o escritor, segrega-se, isola-se. E o

romance torna-se desse modo uma forma possível de exposição dos acontecimentos

particulares de um indivíduo, mas que de alguma maneira, reflete o que ocorre com a

coletividade. Ou, ainda, um grande número de pessoas identifica-se com essas

experiências individuais, particularizadas e passam a consumir tais livros. Vale lembrar

que essas vivências particularizadas não devem ser confundidas com fatos

autobiográficos.

Retomando as idéias contidas na citação de Walter Benjamin, ao pensar-se na

ICR, temos bem ilustrada essa distinção entre romance e narrativa oral. Gonçalo está a

escrever sua novela, isolado do resto do mundo, trancado em seu quarto, “abancado” em

sua escrivaninha. Forma muito diversa daquela dos narradores que, vinculados à

tradição oral, contavam histórias e até criavam outras novas, de improviso, junto ao

18 BENJAMIN, 1985, p. 200 e 201. 19 BENJAMIN, 1985, p. 201.

27

povo que as ouvia. No romance temos uma leitura individual e de maneira destacada

dos demais. O leitor apropria-se daquele texto, toma-o como seu, identifica-se com ele,

cria um mundo a partir dele. O texto é finito, há uma cronologia, um início, um meio e

um fim para a história lida. No caso da narrativa, temos uma situação bem diferente. A

apreensão do texto se dá coletivamente e não de forma silenciosa (como no romance),

mas, pelo contrário, de maneira bem audível (leitura oral). Não existe uma noção de

finitude, na narrativa é sempre deixado um espaço em aberto para o leitor/ouvinte

preenchê- lo da forma que melhor compreender porque ela não é totalmente explicada.

Na ICR este narrador vinculado à oralidade é o Videirinha, amigo de Gonçalo,

uma pessoa simples, do povo, uma espécie de trovador, que cantava em versos as

histórias conhecidas da família Ramires. Ele parece ser a figura que resgata os antigos

narradores, quase extintos naquela época. Talvez esta tenha sido a forma que Eça de

Queirós encontrou para inserir, em seu romance, um personagem que relembra as

saudosas figuras dos narradores tradicionais de um tempo em que as experiências ainda

eram comunicáveis.

Sobre essas duas figuras do romance, Videirinha e Gonçalo, pode-se notar um

contraste existente entre eles. Contraste este talvez até proposital, por parte do escritor,

para mostrar as distinções entre narrativa e romance, o antigo resgatado e o novo, que

reflete a atualidade. Vejamos essas diferenças. Videirinha é um personagem popular,

que retrata o povo em sua simplicidade. É um rapaz humilde, que trabalha numa

farmácia e, nas horas vagas, cria canções baseadas nas fantásticas histórias da família

Ramires (que são do conhecimento geral dos habitantes da região) mostrando-as,

posteriormente, ao fidalgo da torre, que as aprecia. Gonçalo, ao contrário, representa o

erudito. Na maioria das vezes encontra-se isolado, o que lhe rendeu a alcunha de “o

fidalgo da torre” e sua própria origem nobre já denota esta erudição e certo

distanciamento do povo.

Outra importante distinção no que diz respeito aos dois personagens dá-se entre

as formas de expressão de cada um. Videirinha exprime-se pela oralidade através de

suas canções, como um verdadeiro trovador. Narra as aventuras dos vetustos Ramires e,

até mesmo, as do próprio fidalgo. Já Gonçalo tem como expressão característica a

escrita. Passa grande parte do romance envolvido com a produção de sua novela, o que

lhe rende, muitas vezes, um profundo isolamento, peculiaridade do romance e que

28

caracteriza também tanto aquele que o escreve quanto quem o lê. Ambos vivenciam o

isolamento ao envolverem-se com o romance.

Há ainda uma diferença a ser destacada que é a que se refere à arte como fim

versus a idéia de arte como meio. Para Videirinha, compor aquelas músicas de exaltação

a uma família ilustre (que, além de enobrecerem também contam um pouco da história,

resgatada através dessa arte) é o seu objetivo final, é o fim que deseja atingir. Com sua

arte, Videirinha não almeja mais do que isso: sair pelas ruas presenteando gratuitamente

as pessoas com um pouco de história e música. Sua arte, assim, apresenta-se como fim,

basta-se. O personagem Videirinha não possui nenhuma outra meta com a sua arte, a

não ser as já destacadas. Entretanto, em Gonçalo verifica-se uma outra intenção que fica

muito clara ao produzir sua obra. O fidalgo, com a sua arte, deseja eleger-se deputado.

Sua arte, então, apresenta-se nitidamente como meio para atingir seus objetivos. Trata-

se de uma arte que ultrapassa os limites do meramente artístico; ela se mostra como

moeda de troca, trampolim para alçar vôos maiores e realizar conquistas. A arte, dessa

forma, revela-se como um meio, ela por si só não basta, precisa ser acompanhada por

outros elementos que, preferencialmente, ofereçam a promoção social.

Passando do romance aos textos epistolares, pode-se dizer que há uma

circunstância especia l. As cartas geralmente são entendidas como textos documentais.

Entretanto, quando falamos na epistolografia de Eça de Queirós podemos contestar essa

visão tradicional. Apesar de, em sua quase totalidade, elas estarem na primeira pessoa, o

emissor certamente não corresponde à figura de Eça. Ainda que este emissor possua as

características acima destacadas, algo que nos levaria a confundi- lo e associá-lo à figura

do autor, não parece ser o que ocorre. Isto porque este “eu” é ficcionalizado. Trata-se de

mais uma máscara, fruto da criação eciana. Com base em suas vivências, ao transpô- las

para o papel, Eça cria um outro que, apesar de algumas semelhanças, não é ele. Assim,

apesar de o gênero epistolográfico ter este cunho confessional, parece ultrapassar este

modelo, ficcionalizando o conteúdo das cartas, pondo-se não como sujeito que confessa

algo, mas como protagonista de uma espécie diferenciada de obra ficcional ao

teatralizar seu cotidiano.

Vale aqui retomar as diferenças entre autor (que corresponde aqui, para nós, ao

“autor implícito”, pois não há autor sem texto), escritor e narrador. Sabemos que o

primeiro está relacionado estritamente ao produto texto. Ele surge como uma

29

“entidade”, como uma função social, associada à idéia de atividade realizada, de

produto. Enquanto que o escritor estaria mais ligado à noção de sujeito civil, a um

ofício, a sentimentos e sensações que ultrapassam os limites do texto que escreveu, ou

que venha a escrever, para a vida real. Antoine Compagnon no capítulo “O autor”, do

livro O demônio da Teoria – Literatura e senso comum, esclarecendo as idéias de

Roland Barthes, nos fala da lógica barthesiana na qual a figura do autor é conceituada

como “escriptor”. Vejamos:

Ao autor como princípio produtor e explicativo da literatura, Barthes substitui a linguagem, impessoal e anônima, pouco a pouco reivindicada como matéria exclusiva da literatura por Mallarmé, Valery, Proust, pelo surrealismo, e enfim, pela lingüística, para a qual “o autor nunca é mais da que aquele que escreve, assim como eu não é outro senão o que diz eu” (...) O autor cede, pois, o lugar principal à escritura, ao texto, ou ainda ao “escriptor”, que não é jamais senão um “sujeito” no sentido gramatical ou lingüístico, um ser de papel, não uma “pessoa” no sentido psicológico, mas o sujeito da enunciação que não preexiste à sua enunciação mas se produz com ela, aqui e agora. (...) (grifos meus) 20

Nesta passagem pode-se verificar a semelhança que é demonstrada entre autor

implícito e “escriptor” (Barthes), ambos direta e estritamente ligados ao texto. E ainda

citando Barthes para se complementar o sentido do “escriptor”, temos que,

(...) sucedendo ao Autor, o escriptor não possui mais em si paixões, humores, sentimentos, impressões; mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode ter parada: a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais que um tecido de signo, imitação perdida, infinitamente recuada. 21

Logo o autor de uma carta também é um “escriptor” (Barthes) ou um “autor

implícito” (Booth), considerando que também a epistolografia, apesar de ser vista como

“vida real”, “imita o livro”. Assim, a “pessoa no sentido psicológico” corresponde ao

escritor, associado à pessoa física, aos sentimentos e sensações pessoais ao nos

referirmos a Eça de Queirós, com seu estilo vibrante e crítico. Mas, ao tematizar as

20 COMPAGNON, 2001, p. 50 e 51. 21 BARTHES, 1988, p. 69.

30

dificuldades e angústias do ato da escrita, ele expressa as aporias do autor como

simplesmente aquele que escreve. Em diversos momentos das suas cartas podemos

observar tal visão, ao notarmos a explicitação das agruras e impasses do produtor

textual, durante a construção de sua obra. Porém, pode-se contestar este princípio ao

notar que, em outros momentos, há a presença da vaidade artística e de todo o cuidado

com o texto, que parece provir do homem Eça. No entanto, estas marcas subjetivas do

eu da enunciação transitam do texto para a vida e da vida para o texto, sendo difícil

separar os dois territórios. Nas cartas, observa-se que Eça não se considerava apenas

como aquele que escreve. Ele é mais do que isso, pois se apropria dos textos. Neste

aspecto, não parece ser Eça somente “aquele que escreve”, segundo a concepção do

autor (“escriptor”) de Barthes, mas sim o escritor responsável pela obra, sendo assim o

“dono” dela, no sentido de mentor e de “pai” da criação.

Eça de Queirós era um escritor burguês que escrevia para a burguesia. Em seus

livros várias vezes a criticou (seus pensamentos e atitudes). Porém é essa mesma

burguesia que o ajudava a sustentar-se, ao ler seus livros. No entanto, as “denúncias”

feitas pelo escritor português, em suas obras, não pareciam abalar as estruturas sociais

burguesas do seu tempo. Observemos agora o que nos diz Walter Benjamin em sua

Magia e técnica, arte e política (capítulo “O autor como produtor”) sobre a

problematização da relação autor/leitor:

(...) O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos. (...) a tese do intelectual como produtor precisa recorrer ao exemplo da imprensa. Porque é nela (...) que se percebe que o processo de fusão, já mencionado, não somente ultrapassa as distinções convencionais entre os gêneros, entre ensaístas e ficcionistas, entre investigadores e vulgarizadores, mas questiona a própria distinção entre autor e leitor. Nesse processo, a imprensa é decisiva, e por isso é dela que tem que partir qualquer análise do intelectual como produtor. (...) 22

Sobre a “tese do intelectual”, levantada por Benjamin, pode-se dizer que há nela

um questionamento acerca da distinção que se fazia entre autor e leitor. A respeito dessa

distinção refletida por Walter Benjamin em seus estudos, Eça de Queirós mostra-nos, na

22 BENJAMIN, 1985, p. 125.

31

ICR, a passagem de um simples leitor a autor, através de um personagem. Gonçalo que

era leitor dos textos do tio Duarte passa a autor, pretendendo consagrar-se como

escritor, uma vez que o fidalgo produzirá uma novela a partir de sua condição de leitor.

Com essa atitude, Eça de Queirós desmistifica a figura do autor, mostrando que uma

pessoa, não exatamente um intelectual, é capaz de produzir textos, desde que trabalhe e

sue. O narrador da ICR mostra também, por meio deste personagem, todos os percalços

e alegrias daquele que escreve. Adota uma postura metalingüística ao revelar os

“bastidores” da escrita, retirando a aura em torno da figura do escritor, este como

sinônimo de intelectual e de “ser iluminado” no pacto do autor com o leitor. No

contexto da diegese, no entanto, a aura é preservada para garantir o devido prestígio

social a Gonçalo. Esta visão tradicional e de exaltação do escritor, entretanto, parece ser

questionada, demonstrando haver uma via de mão dupla, no texto queirosiano, que

simultaneamente eleva e contesta a “aura” do escritor.

Sobre as questões do narrador expostas anteriormente, podemos agregar outras

reflexões. Vimos que há na ICR dois narradores. Tem-se primeiro o narrador do próprio

romance, mais tradicionalmente conhecido como “narrador de terceira pessoa” ou

“onisciente”. Este tipo de narrador é também classificado como agente ou testemunha.

No caso da ICR trata-se de um “narrador testemunha com existência anônima”, pois de

sua vida pouco ou nada conhecemos. Mas há também um outro narrador, o segundo,

que conforme nos diz Walter Benjamin, poderia ser entendido como o “camponês

sedentário” que é o personagem-protagonista Gonçalo Mendes Ramires. Entretanto, o

que nos interessa verificar é a forma como este segundo narrador se “comporta”. Será

que da mesma maneira que o primeiro? No que concerne ao assunto narrador,

observemos o que diz o Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem :

O processo narrativo possui três protagonistas pelo menos: a personagem (ele), o narrador (eu) e o leitor (tu); ou ainda: aquele de que se fala, aquele que fala, aquele a quem se fala. (...) na maior parte do tempo, o narrador tem seu próprio papel, inconfundível. Esse papel varia de um texto para outro: o narrador pode ser uma das personagens principais (...) ou então simplesmente emitir um julgamento de valor. (...) 23

23 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 294.

32

Conforme a passagem anterior nos esclarece, podemos depreender que este

segundo narrador (Gonçalo) não se caracteriza da mesma forma que o primeiro. Pelo

contrário, trata-se de um personagem que entre outras ações (dentre elas a de narrar),

também escreve. Assim, na ICR, dá-se, simultaneamente, os dois processos abaixo

descritos:

A narrativa pode apresentar-se como evidente, natural e transparente; ou então, ao contrário, o ato de enunciação pode encontrar-se representado no texto (ou) seja representar o próprio ato da escritura: neste caso é dito explicitamente que aquilo que lemos é um livro e descreve-se o processo de sua criação. (...) 24

Assim é dessa maneira que se pode compreender este segundo narrador, bastante

diverso do primeiro, “comportando-se” mais ativamente e que, além de narrar, pratica

ações, dentre elas a de escrever. Nestes momentos da narrativa o “próprio ato da

escritura” é representado sendo possível acompanhar “o processo de sua criação”. E

ainda:

O narrador está presente ao nível do universo evocado ou ao da narrativa. No primeiro caso, existe contigüidade entre personagens e narrador; no segundo (...), o narrador não intervém no universo representado, mas se descreve explicitamente, escrevendo o livro. As duas soluções podem combinar-se (...) 25

Refletindo-se acerca de categorias como escritor e autor, não poderíamos deixar

de relacionar o nome de Eça de Queirós ao de seu “mestre”, e modelo, Flaubert,

conforme veremos. Antes de se buscar uma classificação para Eça, entendendo-o como

autor, escritor ou ambos, pensemos primeiramente no seu trabalho com a escrita. Faz-se

necessário instituir uma reflexão inicial sobre o ato de escrever e o que ele representava

na visão de Eça. Analisar a questão da forma como ele encarava a produção textual e

suas conseqüências é de extrema relevância para a presente pesquisa. E ao se realizar tal

análise, é também fundamental ponderar-se a respeito da relevância de Flaubert na

composição do material artístico queirosiano.

24 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 295. 25 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 295.

33

Há quem compare, diretamente, Eça de Queirós com Flaubert, afirmando que

este último inspirou o escritor português na produção de algumas (ou talvez muitas) de

suas obras. Tal comparação parece ter procedência, senão vejamos. Flaubert foi o

fundador da chamada escritura artesanal, ou seja, a escrita como labor e, assim,

sinônimo de trabalho com a forma. Além disso, na concepção flaubertiana, “o estado

burguês é um mal incurável que se guarda ao escritor”. Estas duas temáticas, o trabalho

com a escritura e a crítica ácida à sociedade burguesa, são recorrentes no universo

textual queirosiano. Daí esta comparação ser considerada pertinente. E, ao considerá- la

desta maneira, pode-se, também, melhor entender a escritura de Eça sob o viés da

“labuta textual”, isto é, do árduo trabalho dele com sua escrita, quase uma obsessão

durante o desenvolvimento de seus textos. Sobre este aspecto, esclarece-nos Barthes em

seu Grau zero da escritura, no capítulo “O artesanato do estilo” cujo título remete-nos à

idéia que Eça transmite: o artesão das palavras. É assim que podemos compreendê- lo,

em especial quando se tem acesso à sua epistolografia, que mostra, assim como na ICR,

os “bastidores” de uma produção literária. Através desses “bastidores” (evidenciados

por meio das cartas) e também pelo contexto sócio-cultural, vivido por Eça de Queiros,

é possível compreender o porquê de sua postura crítica e laboriosa diante dos textos que

produzia. Segundo nos diz Barthes:

(...) por volta de 1850 começa a surgir para a literatura um problema de justificação: a escritura vai procurar álibis para si; e justamente porque começa a aparecer uma sombra de dúvida quanto ao seu uso, uma classe inteira de escritores preocupados em assumir a fundo a responsabilidade da tradição, vai substituir o va lor-uso da escritura por um valor-trabalho. A escritura será salva não em virtude de sua destinação, mas graças ao trabalho que tiver custado. Começa então a elaborar-se uma imagética do escritor-artesão que se fecha num lugar lendário, como um operário na oficina, e debasta, talha, pole e engasta sua forma, exatamente como um lapidário extrai a arte da matéria, passando neste trabalho horas regulares de solidão e esforço. (...) 26

A escrita se apresenta como “transpiração” e esforço em busca de um efeito

lapidar que é resultado de um trabalho árduo com a linguagem, o que caracteriza o texto

queirosiano. Ainda segundo Barthes,

26 BARTHES, 1971, p. 75 e 76.

34

(...) o labor da forma constitui o signo e a propriedade de uma corporação. Esse valor-trabalho substitui de certa maneira o valor-gênio; há uma certa vaidade em dizer que se trabalha bastante e longamente a forma (...)27

Nota-se que a idéia de inspiração é substituída pela de “transpiração”. Percebe-se

também que esta noção, identificada na epistolografia queirosiana, faz-se presente, na

ICR. Ali, o personagem Gonçalo recria, reduplica a figura do próprio Eça através da

“reconstituição” de diversas passagens da existência do escritor e que se encontram,

nitidamente, presentes em trechos do referido romance. E neste movimento reflexivo no

qual, metalingüisticamente, a escrita é pensada, há também certa “tristeza” e

“franqueza” ao adotar-se tal postura. Mais uma vez citando Barthes e retomando

Flaubert:

(...) esse código do trabalho literário, essa suma de exercícios relativos ao labor da escritura, mantêm uma sabedoria, por assim dizer, e também uma tristeza, uma franqueza, já que a arte flaubertiana avança mostrando sua máscara com o dedo. (...) 28

Assim, a função social e crítica do mundo burguês, evidenciada nos textos desse

período, em especial na literatura queirosiana talvez, ousadamente pensando-se, sirva

como pretexto para, na realidade, apresentar a esta burguesia, público alvo e

consumidor voraz dessas produções, uma literatura predominantemente artística, na

qual sobressaia a forma, o árduo trabalho com a linguagem. O escritor é um operário,

um trabalhador como seu público. Conclui-se que o escritor possui:

(...) a responsabilidade de sua forma, a fazer da escritura que a História lhe entregava uma arte, isto é, uma convenção clara, um pacto sincero que permitisse ao homem ocupar uma situação familiar numa natureza ainda disparatada. O escritor dá à sociedade uma arte declarada visível para todos nas suas normas, e em troca, a sociedade pode aceitar o escritor. (...) 29

27 BARTHES, 1971, p. 76. 28 BARTHES, 1971, p. 77. 29 BARTHES, 1971, p. 78.

35

Ao pensarmos nas instâncias do narrador, do autor e do escriptor, sobressai outra

de extrema relevância para a compreensão do todo artístico de uma obra ou de um texto,

aliás já mencionada através da figura de Gonçalo. Trata-se da noção de personagem.

Elemento vital num texto literário, não poderia deixar de figurar entre os conceitos

fundantes para o entendimento das questões aqui trabalhadas. O personagem é o dado

mais cativante e que conquista o leitor, que suscita ódios e paixões, que estabelece

possíveis identificações. Analisemos seus diferentes tipos e classificações.

Para se falar a respeito dos tipos de personagens, comecemos identificando a

conceituação de personagem. Observemos o que nos diz Antônio Candido n´A

Personagem de Ficção:

(...) avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transparência etc. A personagem vive o enredo e as idéias e os torna vivos. (...) é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna. (...) 30

E ainda segundo Todorov e Ducrot: “(...) podemos denominar personagem o

conjunto dos atributos que foram predicados ao sujeito no curso de um relato. Este

conjunto pode ser organizado ou não. (...)” 31

Saindo das definições, quanto à classificação dos diversos personagens

existentes, passemos às chamadas “tipologias formais” (Todorov), isto é, de acordo com

as diferentes formas com que se apresentam as personagens numa determinada obra,

elas recebem as respectivas classificações que são as seguintes: estáticas; dinâmicas;

protagonistas; secundárias; planas; espessas; aquelas submetidas à intriga ou Cordel

(denominação de H. James) e; aquelas que são servidas pela intriga.

Algumas dessas classificações se assemelham, senão vejamos. Conforme a

concepção de Todorov e de Ducrot pode-se entender personagem estática como aquela

que se mantêm inalterada no decorrer de um relato e dinâmica aquela que se altera.

Dentro da chamada personagem estática inclui-se uma outra, denominada “tipo” na qual

“(...) não só os seus atributos mantém-se idênticos mas são em número extremamente

reduzido e representam amiúde o grau superior de uma qualidade ou de um defeito

30 CANDIDO, 1972, p. 54. 31 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 210.

36

(...)”32. Há também as personagens protagonistas, conhecidas ainda como princ ipais ou

heróis, cuja importância num relato é evidente e as secundárias, mais inexpressivas.

Quanto ao grau de complexidade, as personagens podem ser planas (incapazes de nos

surpreender) e esféricas (que são surpreendentes, possuindo atributos contraditórios).

No que se refere aos dois últimos tipos, Cordel e as que são servidas pela intriga, pode-

se dizer que “(...) as do primeiro tipo (...) só se apresentam para assumir uma função no

encadeamento causal das ações. As segundas se adequam ao “relato psicológico”: os

episódios têm por objetivo principal precisar as propriedades de uma personagem(...).”33

As personagens planas são também chamadas “personagens de costumes”,

conforme a visão de Antônio Candido:

As “personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados (...) Como se vê, é o processo fundamental da caricatura, (...) Personagens, em suma, dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo revelada. 34

Nota-se uma coincidência entre os conceitos de personagens estáticas, planas, de

costumes e tipos, todos parecendo convergir para um mesmo ponto. E por falar em

“tipo”, uma personagem bastante característica é o marido de Gracinha, o Barrolo

(alcunha “Bacoco”), da ICR. Seu aspecto roliço, arredondado já denota ser uma figura

jocosa, sua face constantemente avermelhada, esbaforida, o contraste que cria sempre

que comparado à noiva e, posteriormente, esposa Gracinha e sua falta de personalidade

ao tentar, constantemente, agradar Graça, seu cunhado (o fidalgo Gonçalo) e até os

amigos da família (como o impetuoso Cavaleiro, a paixão reprimida de Gracinha) são

elementos evidentes que nos levam a crer que de fato Barrolo encarna o tipo ou

personagem plana. Realmente ele não aponta, durante o romance, nenhuma alteração de

postura ou pensamento, uma atitude contraditória que pudesse surpreender. Tudo que é

esperado dele, de fato se concretiza não demonstrando nenhuma “curva”, por isso

entendida como plana. Além de plana é secundária, pois não exerce papel de destaque e

também é cordel, uma vez que é submetida à intriga da trama, é apenas mais uma peça

32 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 211. 33 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 211. 34 CANDIDO, 1972, p. 61 e 62.

37

da engrenagem, manipulada por outros personagens para que os fins fossem atingidos (o

casamento por conveniência com Gracinha convinha a ela, pois tinha posses e era um

tolo, facilmente influenciável). Barrolo pode ser ainda compreendido como uma

personagem estática porque, conforme mencionado, não apresenta alterações,

permanece o mesmo durante todo o romance.

Um exemplo de protagonista, presente na ICR, é Gonçalo Mendes Ramires. É

incontestável que esta personagem é o centro da trama (não se esquecendo de que há

outras personagens também importantes), sendo entendida, ainda, como principal ou

herói. Ademais é espessa, denotando grau de complexidade com aprofundamento

psicológico e sendo, conseqüentemente, dinâmica, pois se há complexidade e

aprofundamento psicológico, há instabilidade, o que denota movimento e dinamismo,

redundando no termo que dá nome à classificação. Pode-se dizer que Gonçalo é uma

personagem que, simultaneamente, submete e é submetida à intriga, daí a sua

complexidade. Ele ao mesmo tempo que age para movimentar a engrenagem da trama,

sofre ações dela, usa e é usado.

Entretanto, segundo nos esclarecem Todorov e Ducrot, além desses dois pólos,

as personagens secundárias e as protagonistas, há “numerosos casos intermediários” 35.

Um desses casos é Gracinha. Mesmo não sendo a protagonista, tem grande importância

no romance uma vez que é o elemento-chave para salvar a família da ruína financeira

(casando-se com Barrolo) e é a causa da interrupção de uma importante amizade

existente entre seu irmão Gonçalo e seu futuro pretendente Cavaleiro (que rompeu o

compromisso, sendo este o motivo da discórdia entre ambos). O término desta amizade,

que acabou tornando-se ódio, resultou em intensa angústia e dúvida por parte do

protagonista que, em diversos momentos no romance, hesitou com relação a essa

questão. Este fato ocasionou até certa “crise de consciência” em Gonçalo que, por

interesses pessoais, precisaria retomar a amizade com Cavaleiro (homem influente), mas

não deveria (por causa de sua irmã Gracinha, enganada, mas ainda apaixonada por ele,

apesar de casada com outro). Deste modo, nota-se certa importância de Gracinha para o

desenrolar da intriga do romance.

Assim, podemos perceber a importância que as personagens exercem sobre a

obra, são elas que dão vida, que movimentam o texto. Como diz Antonio Cândido,

35 DUCROT e TODOROV, 1988, p. 211.

38

Neste mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria. São mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido, ao contrário do caos da vida – pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes. (...) 36

Quando se trata de narrativa de 1ª pessoa, há uma nova personagem em cena: o

narrador que pode ser heterodiegético (fora da estória) ou homodiegético (dentro da

estória). Este último pode ser testemunha, como no conto A civilização, ou pode ser

autodiegético, como em A Correspondência de Fradique Mendes.

Entendido o que é a personagem em teoria, passemos à prática dessas definições

ao estudarmos dois deles, presentes na ICR: Gonçalo e Videirinha. O primeiro com

notória relevância no romance enquanto que o segundo, apesar de não gozar do mesmo

destaque, exerce uma função pontual no texto. Através da analogia entre personagens

tão diferentes (mas que apresentam um ponto em comum) analisaremos agora as

apropriações realizadas por Gonçalo (vinculado à escrita) e por Videirinha (relacionado

à tradição oral) a fim de melhor compreendermos a função da intertextualidade na

produção do texto literário. Esta relação existente entre esses personagens do romance

português, já citada anteriormente, será mais especificamente investigada neste

momento. Para auxiliar a assimilação dessas “influências”, vejamos um fragmento de

Leyla Perrone-Moisés a esse respeito:

(...) As “influências” não se reduzem a um fenômeno simples de recepção passiva, mas são um confronto produtivo com o outro, sem que se estabeleçam hierarquias valorativas em termos de anterioridade-posteridade, originalidade- imitação. (...) 37

Sobre essas influências muito se pode observar, especialmente em relação a

esses dois personagens. Nota-se em ambos não uma mera reprodução ou “recepção

passiva”, mas sim uma transformação de dados anteriores, já existentes, em algo novo

num verdadeiro “confronto produtivo com o Outro” embora, por narcisismo, Gonçalo

esconda a fonte de sua influência. Assim, ele se apropria do texto anterior de um tio seu

(o tio Duarte), um poemeto, e a partir dele cria uma novela altamente desenvolvida,

36 CANDIDO, 1972, p. 67. 37 PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94.

39

criativa e até, pode-se dizer, original, pois transforma as remotas histórias de seus

antepassados e o poemeto do tio Duarte (nelas baseado) em algo surpreendentemente

novo e vivo. Há uma linha tênue entre o que pertence originalmente a essas histórias

familiares e aquilo que já passa a ser propriamente “criação” de Gonçalo. Este, diversas

vezes e por conta própria, enriquece e “floreia” a narrativa para torná- la mais

interessante e dramática, dispõe da chamada “liberdade criadora” com a qual, sem se

dar conta, Gonçalo acaba tornando-se um produtor textual, um autor, apesar de não

valorizar tanto esta posição em si mesma. Seu fascínio é pelo status de “escritor”,

aquele que se eleva socialmente e que faz uso do seu texto com fins “extraliterários”, ou

seja, que estão além da literatura e se fixa nos ganhos secundários.

Nota-se que Gonçalo está vinculado à tradição escrita, aquela de maior prestígio,

pois sua sociedade é letrada onde “vale o que está escrito”. Deste modo, o protagonista

precisa escrever algo que valorize a si próprio para atingir seu objetivo, isto é, a

ascensão social. Gonçalo é um personagem que retrata o típico homem de seu tempo

(século XIX) e, como tal, é movido por uma ética romântica do gênio. Assim, tem em

mente um juízo de valor bem nítido no que se refere à “cronologia dos textos”. Por isso

ele valoriza tanto a produção que veio antes dele e considera o que surge depois como

mera cópia, segundo a visão crítica romântica da criação, daí sua vergonha em citar o

tio. Esta noção encontra-se bem clara em ICR ao notarmos que o fidalgo tem certo

receio e pudor ao fazer uso do poemeto de seu tio. Gonçalo o faz como um “gatuno”,

como alguém que pratica um ato ilícito e, assim sendo, este deve permanecer em

segredo para evitar a execração moral e, conseqüentemente, a social. Vejamos:

(...) o trabalho, a composição moral dos vetustos Ramires, a ressurreição arqueológica do viver afonsino, as cem tiras de almaço a atulhar de prosa forte - não o assustavam... Não! Porque felizmente já possuía a “sua obra” - e cortada em bom pano, alinhavada com linha hábil. Seu tio Duarte, irmão de sua mãe (...) nos seus anos de ociosidade e imaginação (...), fora poeta - e publicara no Bardo, semanário de Guimarães, um poemeto de verso solto, o Castelo de Santa Irenéia, que assinara com duas iniciais D.B. (...) Esse volume do Bardo (...) ficara no arquivo da casa como um trecho da crônica heróica dos Ramires. (...)

(...) pensava regaladamente que nem teria a canseira de esmiuçar as crônicas e os fólios maçudos... (...) Toda a reconstrução histórica a realizara, e solidamente, com um saber destro, o tio Duarte. (...)

40

Na realidade só lhe restava transpor as formas fluidas do romantismo (...), para a sua prosa tersa e máscula (como confessava o Castanheiro), de ótima cor arcaica (...). E era um plágio? Não! A quem, com mais seguro direito do que a ele, Ramires, pertencia a memória dos Ramires históricos? (...) E de resto, quem conhecia hoje esse poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanário que perpassara, durante cinco meses, há cinqüenta anos, numa vila de província?... Não hesitou mais, seduzido. (...) 38

Naquela época percebe-se que assumir as “influências” na produção de textos

não era algo socialmente aceito. Os escritores deviam esconder tais informações,

mantendo intacta sua “aura” ao sustentar o discurso da “inspiração divina”, isto é, ser o

escolhido, o eleito, caso contrário estariam sujeitos à reprovação geral e a acusações de

plágio. Por isso, dever-se-ia zelar pela “aura” do escritor e Gonçalo não procedeu de

modo diferente, mantendo esta mesma postura e princípios, pois não queria ver a

concretização de seus planos ameaçada.

Esta postura romântica é hoje contestada. Conforme nos esclarece Julia Kristeva:

“todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e

transformação de textos, ele é uma escritura-réplica (função e negação) de outro (dos

outros) texto(s)” 39. A construção de um texto sofre, direta ou indiretamente, a

influência das leituras anteriores realizadas por aquele que o escreve e, mesmo

inconscientemente, essas leituras se refletem na produção textual. Assim, ainda segundo

o pensamento de Kristeva, “as “fontes” deixam de interessar por elas mesmas; elas só

interessam para que se possa verificar como elas foram usadas”. 40

Parece-nos que Eça de Queirós faz uso do personagem Gonçalo para mostrar o

quanto se mostra improcedente essa visão do fidalgo que se revela impregnada dos

conceitos românticos de criação literária (“inspiração divina”, o escritor é um ser

especial, diferente dos demais, é um “escolhido”). A visão explicitada por Gonçalo no

romance pode ter sido um expediente utilizado pelo escritor para evidenciar o equívoco

da noção, que contrasta com a postura inovadora de Eça. Deve-se entender que o que de

fato importa é a maneira como os dados já existentes são utilizados e transformados em

algo novo, procedimento que, aliás, é realizado com sucesso por Gonçalo.

38 QUEIRÓS, 1961, p. 13 a 15. 39 PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94. 40 PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94.

41

O fidalgo parece fazer a antropofagia proposta por Oswald de Andrade. O

personagem queirosiano realiza uma “devoração crítica” em relação à obra do tio,

ocorre uma “devoração antropofágica” na qual se dá “uma seleção como nos processos

da intertextualidade” 41. Assim, Gonçalo seleciona os elementos mais relevantes do

poemeto do seu tio para atingir o objetivo pensado e faz uso deles aplicando-os numa

composição própria, desvinculada da obra-fonte de sua inspiração.

Sobre o outro personagem em questão, o Videirinha, já dissemos que ele está

associado à tradição oral, pois é uma espécie de trovador, cantando em versos as

aventuras dos altivos e remotos Ramires. Como Gonçalo, Videirinha também realizava

uma “devoração antropofágica” ao se “apropriar” de histórias que, na realidade, são do

conhecimento geral dos habitantes da região. Videirinha faz uma seleção só

“devorando” aquilo que lhe será útil e que considera interessante. Neste movimento

antropofágico, o personagem produz algo novo, diferente daquilo que já existia.

Videirinha de fato inova, surpreendendo até Gonçalo Mendes Ramires a quem o jovem

rende homenagens ao expor suas canções.

Nota-se, entretanto, uma diferença entre Gonçalo e Videirinha no que se refere

ao movimento de apropriação do alheio. Videirinha, diferentemente de Gonçalo, não

omite ou esconde da sociedade as suas apropriações, pelo contrário, menciona que as

faz e com certo orgulho. Não se nota nele talvez a “falsidade” presente em Gonçalo que

mascara suas fontes, induzindo a inverídica idéia de quase “inspiração divina”. Em

Videirinha dá-se o oposto. Ele não só cita que se baseou em determinada aventura

histórica dos Ramires como expõe (especialmente para Gonçalo) o seu processo de

criação sobre o qual, certas vezes, o fidalgo até chegou a opinar.

Gonçalo (...) exclama logo, num sincero interesse: - Então, queria que Vossa Excelência ouvisse um amigo meu,

que é verdadeiramente sublime no violão, o Videirinha!... Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o

fidalgo, singelamente: - É um rapaz muito meu amigo, de Vila-Clara... O José

Videira, ajudante da farmácia... (...) - Agora tem ele uma cantiga admirável que chamou o Fado dos

Ramires. A música é com efeito um fado de Coimbra, um fado

41 PERRONE-MOISÉ, 1990, p. 96.

42

conhecido. Mas os versos são dele, umas quadras engraçadas sobre coisas da minha casa, lendas, patranhas... Pois ficou sublime! (...)

(...) quando Gonçalo, enlevado no trabalho (...) - sentiu

realmente, do lado da torre, um gemer de sons graves que crescia através dos limoeiros. Deteve a pena - e eis que o Fado dos Ramires se eleva ofertadamente da horta, em serenada, para a varanda florida de madressilva:

Ora, quem te vê solitária, Torrre de Santa Irenéia... O Videirinha! - Correu alvoroçadamente à janela. Um chapéu

coco tremulou entre os ramos; um brado estrugiu, aclamador: - Viva o deputado por Vila-Clara! Viva o ilustre Deputado

Gonçalo Ramires! 42

Isto parece ocorrer porque Videirinha não faz uso desta literatura (no caso

literatura oral) como instrumento de ascensão social, assim não demonstra a

preocupação e cautela de Gonçalo. O fato mesmo de sua literatura ser oral é mais um

indício do descompromisso de Videirinha com a produção de uma obra que lhe

proporcione prestígio social. Ele não tem em mente este objetivo, Gonçalo sim, daí as

conseqüentes diferenças existentes entre os personagens.

Retomando o tema da “apropriação antropofágica”:

(...) A devoração proposta por Oswald (...) é uma devoração crítica, que está bem clara na metáfora da Antropofagia. Os índios, ponto de partida desta metáfora, não devoravam qualquer um de qualquer modo. Os candidatos à devoração, antes de serem ingeridos, tinham que dar provas de determinadas qualidades do devorado. Há, então, na devoração antropofágica, uma seleção nos processos da intertextualidade. (...) o futuro da literatura não se decidirá pela simples linha sucessória, mas por essa interação sincrônica que faz com que a literatura seja mais um espaço de escritura- leitura do que uma seqüência simples de fontes puras e influências degradadas.43

Assim, ao visualizarmos as diferenças entre os processos criadores (e criativos)

de Gonçalo e Videirinha e suas respectivas maneiras de absorver e transformar as

apropriações intertextuais, podemos melhor discutir alguns gêneros textuais, tão

42 QUEIRÓS, 1961, p. 76-77 e 172. 43 PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 95, 96 e 99.

43

pertinentes ao nosso estudo: a narrativa, a autobiografia e as cartas. Caracterizar e

estabelecer distinções em relação a cada um deles mostra-se primordial para a

viabilização de nossos objetivos.

Pode-se dizer, de forma sintética, que a narrativa constitui um texto ficcional que

geralmente apresenta uma estrutura clássica, tradicional (isto é, tem um enredo com

início, meio e fim, apresentando o típico “era uma vez”). Cremos ser os dois últimos

gêneros, a autobiografia e as cartas, os mais intrigantes, pois parecem apresentar pontos

de contato. Diferençá- los mostra-se fundamental para iniciarmos uma análise

epistolográfica. Mais adiante (Capítulo 2), abordaremos, então, primeiramente, a

questão da autobiografia, gênero que pelas suas próprias peculiaridades, apresenta-se

ambíguo, sinuoso e subjetivo (por isso mesmo aproxima-se tanto da carta), no qual a

“verdade” talvez se mostre fugaz ou controvertida.

44

1. 2. A ESCRITA

(...) no calor e silêncio de domingo de junho, labutava, empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole (...). (ICR, p. 18)

Ao pensarmos na ICR sob a perspectiva de seu protagonista, o personagem

Gonçalo Mendes Ramires, podemos vislumbrar uma temática nele recorrente: a escrita,

ou melhor a dificuldade em se produzir um texto. Obviamente que outros assuntos

cercam o protagonista, mas parece que todos eles se apresentam como pano de fundo,

convergindo para uma mesma discussão: a produção textual (no caso, uma novela) e

suas implicações. Abordando esse tema, o romance queirosiano realiza,

predominamente, a metalinguagem que não parece ser o meio e sim o fim que o escritor

português pretende atingir. O verdadeiro protagonista do romance talvez não seja

Gonçalo, mas a própria escrita, constantemente posta em questão e presente em grande

parte dos acontecimentos do livro.

Entretanto, não devemos pensar que a metalinguagem fecha-se em si mesma,

bastando-se. Muito pelo contrário, essa plataforma metalingüística adotada pelo

romancista expande-se, vai muito além discutindo a escrita, suas funções e

desdobramentos, problematizando suas implicações num desejo, consciente ou

inconsciente do artista, de expor suas dificuldades, angústias e alegrias ao escrever,

revelando essa atividade como sinônimo de árduo trabalho. Mas que funções teria a

escrita? Na ICR podemos observar que Gonçalo não produz o texto de sua novela pelo

simples prazer de escrever. Pelo contrário, o protagonista só começa a desenvolver esse

hábito e a dedicar-se a essa tarefa a partir do surgimento de um objetivo claro: ser

deputado. Eis que surge a primeira função da escrita: a ascensão social. Assim, Gonçalo

escreve uma novela sobre sua família e seus ancestrais de relevância para Portugal.

Desse modo, elevando o nome de sua família ao expor, através da obra, as heróicas

façanhas de seus antepassados, eleva a si próprio, pois também é um Ramires. E,

elevando-se, obtém o destaque necessário para sua candidatura e conseqüente eleição.

Aí está uma das nítidas funções da escrita presente no romance.

45

Mas, atrelada à função de ascensão social, estão associadas outras como o

reconhecimento social e o retorno financeiro. Na ICR esse reconhecimento social

manifesta-se em Gonçalo através da vaidade de artista que, em alguns momentos, o

toma. A preocupação com a linguagem utilizada e até a surpresa que tem ao ler alguns

trechos escritos por ele próprio, considerando-os de rara beleza, revelam que há,

embutida no desejo de atingir seus objetivos políticos, uma certa vaidade artística. Isto

se dá também no momento em que outras personagem elogiam o texto e a “veia”

literária de Gonçalo. Este se regozija docemente com tais comentários.

Sobre a “vaidade artística” de Gonçalo acerca de sua novela, veja-se o fragmento

abaixo:

(...) [Gonçalo] Acendeu um charuto; voltou à livraria. E, imediatamente releu o final magnífico: “De mal com o reino e com o rei, mas de bem com a honra e comigo!” - Ah! Como ali gritava a alma inteira do velho português, no seu amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira de almaço entre os dedos, juntos da varanda, considerou um momento a torre, as poeirentas frestas engradadas de ferro, as resistentes ameias, ainda inteiras, onde agora adejava um bando de pombas...44

A respeito dos elogios de outros personagens em relação à novela produzida

pelo fidalgo vale destacar a seguinte passagem:

A novela, portanto, marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional. E depois (acrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonçalinho surde com um estilo terso, másculo, de boa cor arcaica... De ótima cor arcaica! (...) Sim senhor! Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas crônicas, temos enfim nas letras um homem que sente bem o torrão, sente bem a raça! 45

Através do romance de Eça de Queirós nos é permitido constatar a importância

da escrita na sociedade daquela época (século XIX), importância essa que pode ser

observada, em menores proporções, ainda nos dias atuais. Essa relevância da escrita

44 QUEIRÓS, 1961, p. 65 e 66. 45 QUEIRÓS, 1961. p. 6 e 7.

46

pode ser notada na ICR ao se comparar a espada de outrora à pena, comentando-se

acerca da forma como a escrita era entendida na época em que viviam:

(...) um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que, para mostrar a heroicidade da pátria, abre simplesmente, sem sair do seu solar, os arquivos da sua casa, velha de mais de mil anos. É de rachar!... E você não precisa fazer um grosso romance... (...) Não se trata de pecúnia, mas de uma grande renovação social... E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal. (...) amigo, de folhetim em folhetim, se chega a São Bento! A pena agora, como a espada outrora, edifica reinos... (...) 46

No horizonte do personagem Gonçalo, a questão do retorno financeiro

relacionado a sua novela não se mostra evidenciada no romance. O que se pode notar é

que, através dessa produção textual, de alguma forma Gonçalo acaba atingindo sua meta

política e, por conseqüência, beneficia-se financeiramente (pois passa a receber salário

de deputado). Gonçalo não é um profissional das letras, é um fidalgo com pretensões

políticas em vias de ruína. Assim, a possível rentabilidade oriunda de sua novela,

apesar de não explícita, existe. Parece haver, por parte do fidalgo, um interesse

financeiro dissimulado, pois uma pessoa na posição dele não poderia esboçar tal

interesse, tinha de estar acima dessas “mesquinharias”. Porém esse interesse financeiro

existe sim e é manifestado por Gonçalo em diversos momentos do romance através da

satisfação pelo casamento burguês (que se traduziu em muitas cifras) da irmã Gracinha

com um herdeiro (Barrolo) e também quando o fidalgo demonstra interesse em se casar

com uma viúva, a Ana Lucena, vislumbrando logo o seu dote, casamento esse que não

veio a se concretizar por motivos outros. Entretanto, tais atitudes parecem ser

inconscientes não demonstrando, o protagonista, uma objetividade fria e calculista em

seus atos, aparentando fazê-los mais por impulso ou influência de terceiros. Assim,

pode-se até se estabelecer uma analogia entre Gonçalo e Portugal, ambos como

sinônimos de auto-desconhecimento, daí a dificuldade de progredir, de estarem perdidos

em busca de uma solução, mas sem saberem que solução é essa. Aliás, o atraso

português é apontado durante o romance em tom crítico, característica da escrita de Eça

46 QUEIRÓS, 1961. p. 12.

47

de Queirós. Segue fragmento de fala do protagonista Gonçalo que retrata uma crítica ao

país:

-Vocês não compreendem... Vocês não conhecem a organização de Portugal. (...) Portugal é uma fazenda, uma bela fazenda, possuída por uma parceira. Como vocês sabem, há parcerias comerciais e parcerias rurais. Esta de Lisboa é uma parceria política, que governa a herdade chamada Portugal... Nós os portugueses pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou vivem nela a olhar (...) e que pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a parceria, que recebem e que governam. Ora, eu (...) desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar na parceria política, o cidadão português precisa uma habilitação – ser deputado, para acabar como parceiro e governar... (...) 47

Retomando a questão da temática econômica, esta não parece focalizada de

maneira direta quando relacionada à obra (romance). Tal não ocorre em relação ao autor

(Eça de Queirós), conforme observamos em sua epistolografia. O mesmo pode-se dizer

sobre os outros temas, isto é, as demais funções da escrita. Em Eça de Queirós as

questões do papel da literatura como elemento que promove a ascensão social do

escritor apresentam-se de forma bastante diversa da de seu personagem. Isto veremos

adiante a partir da análise da correspondência do escritor no que diz respeito aos

assuntos mencionados.

Analisemos neste momento passagens do romance ICR que podem corroborar

com as reflexões acerca das temáticas anteriormente expostas. Vejamos inicialmente as

motivações primeiras que levaram o personagem Gonçalo a desejar escrever uma

novela. O fragmento a seguir revela a correlação existente entre literatura e política,

demonstrando que os valores estéticos e artísticos da obra pareciam ter pouca

relevância, que a literatura era mero veículo de ascensão social (obter o cargo de

deputado) e, por decorrência, de independência financeira.

(...) Pois bem, ressuscitar estes varões, e mostrar neles a alma façanhuda, o querer sublime que nada verga, é uma soberba lição aos mais novos... Tonifica caramba! Pela consciência que renova de termos sido tão grandes, sacode este chôcho consentimento nosso em permanecermos pequenos! É o que eu chamo de reatar a tradição... E

47 QUEIRÓS, 1961, p. 102 e 103.

48

depois feito por você próprio, Ramires, que chic! Caramba, que chic!48

Esse patriotismo do personagem Castanheiro, mencionado na passagem anterior,

parece questionável. Castanheiro é uma figura que durante o romance evoca de forma

ardorosa o patriotismo através da exaltação das tradições e da história. Entretanto

percebe-se, entremeado ao seu discurso, sempre um outro interesse totalmente

desvinculado desses valores elevados. Castanheiro, interessado em prestigiar sua revista

(os Anais de Literatura e de História) incentiva Gonçalo a escrever, daí o eloqüente

discurso proferido ao fidalgo, conforme observamos. Além disso, essa “exaltação à

pátria” proposta por Castanheiro está constantemente atrelada a planos políticos, a

interesses de ascensão social “(...) a literatura leva a tudo em Portugal. (...) de folhetim

em folhetim, se chega a São Bento! (...)”. Assim, esse “patriotismo” exacerbado do

personagem Castanheiro soa como uma ironia do autor.

E ainda:

(...) consistência, nomeada, afeições políticas, como se conquistam? (...) realmente, nesse muro que o separava da fortuna só descobria um buraquinho, bem apertado mas serviçal – OS ANAIS DE LITERATURA E DE HISTÓRIA (...) Apareceria pois nos ANAIS com a sua Torre, revelando imaginação e saber rico. (...) Assim avançava, bem chegado aos regeneradores, constituindo e cinzelando o seu pedestal literário, até que os regeneradores voltassem ao ministério, e no muro se escancarasse a desejada porta triunfal. (...)49

A literatura, a partir deste fragmento, não se mostra como fruto de uma criação

prazerosa, elemento benéfico ao mundo. Há uma substancial diferença entre a literatura

libertadora, que de fato é, e aquela que parece, isto é, a literatura de autopromoção

produzida por Gonçalo.

Além das metas objetivas que cercavam a produção da novela histórica A Torre

de D. Ramires havia ainda questões da subjetividade de Gonçalo que envolviam a

elaboração dessa novela. Nota-se que o fidalgo, ao escrevê- la demonstra, apesar dos

interesses políticos predominarem, certa preocupação com o estilo e a linguagem de sua

obra. Um pouco de vaidade artística manifestando-se? O certo é que Gonçalo revela

uma evidente preocupação de fundo ultra-romântico ao escrever seu texto (preocupação

48 QUEIRÓS, 1961, p. 11. 49 QUEIRÓS, 1961, p. 25 e 26.

49

essa, aliás, também presente nas Cartas do autor). Essa preocupação do fidalgo se revela

na produção de um texto que impressione, que cause efeito e não que seja

necessariamente verdadeiro. Segue o fragmento:

- Irra! Estou perfeitamente estúpido! É este calor! (...) Ainda releu, coçando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e suja: “... Na sala altaneira e larga, onde os largos e pálidos raios da lua...” Larga, largos!... E os pálidos raios, os eternos pálidos raios!... Também este maldito castelo, tão complicado!... E este D. Tructesindo, que eu não apanho tão antigo! Enfim, um horror!

Atirou, num repelão, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto nos dentes; e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, num tédio imenso da sua obra, daqueles confusos e enredados paços de Santa Irenéia, e dos seus avós, enormes, ressoantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos. 50

Percebe-se um destacado senso de autocrítica que parte do personagem

avaliando severamente seu próprio texto. Situação semelhante podemos constatar em

Eça de Queirós, através de suas cartas. A passagem anterior, além de mostrar a faceta

artística do fidalgo, denota também a escrita em processo. Isto é, o movimento da

produção de um texto, os seus “bastidores” são revelados numa atitude metalingüística

presente no romance e adotada, de forma pioneira, pelo autor.

Adentramos agora no ponto crucial dessa discussão e da obra: a questão da

escrita e sua reflexão presentes no texto da ICR. Conforme já mencionado a

metalinguagem não parece ser o meio e sim o fim desse romance. Todo o enredo

abordado demonstra ser mero pretexto para que a reflexão sobre a escrita aflore dentro

da obra queirosiana. Talvez a ICR tenha sido um instrumento de que Eça fez uso para

exprimir suas impressões e sentimentos acerca da atividade que consumiu boa parte de

sua existência. Escrever parecia uma mescla de obrigação, trabalho, fonte de renda e

prazer, realização pessoal e artística. Mistura parecida com aquela vivenciada pelo

“fidalgo da torre”. Observemos algumas passagens relevantes que refletem essa

discussão sobre a escrita e a postura metalingüística dentro do romance. O trecho a

seguir merece destaque, pois reve la a escrita como um trabalho, concepção moderna

porém ocultada em oposição à idéia romântica de “inspiração divina”, amplamente

50 QUEIRÓS, 1961, p. 19.

50

difundida e adotada pelos escritores de então. O fragmento mostra ainda a dificuldade

que cerca essa atividade, dificuldade essa geralmente omitida:

(...) no calor e silêncio de domingo de junho, labutava, empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole, ora num rebuliço, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinelos (...). ora imóveis e abandonados à esterilidade que o trancava, com os olhos esquecidos na torre, na sua dificílima torre (...).

Por fim, descorçoado, arrojou a pena que tão desastrosamente emperrava. (...)51

O fragmento abaixo aponta o momento de “criação do artista” que depois de

tanto sofrer em busca da forma perfeita, finalmente encontra o caminho da escrita de

sua novela. O fidalgo enfim vê surgir “bolhas de uma água represa que rebenta”:

(...) Estou otimíssimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma chávena de chá verde, muito forte... Leva também torradas.

E momentos depois, na livraria, com um roupão de flanela sobre a camisa de dormir, sorvendo lentos goles de chá, Gonçalo relia junto da varanda essa derradeira linha da novela, tão rabiscada e mole (...) De repente, numa rasgada impressão de claridade, entreviu detalhes expressivos para aquela noite de castelo e de verão (...)

– Bons traços! Achegou devagar a cadeira (...) E, desanuviado, sentindo as

imagens e os dizeres surgirem como bolhas de uma água represa que rebenta, atacou esse lance do capítulo I. (...)

Louvado Deus! A pena desemperrara! (...) 52

Gonçalo, satisfeito com o resultado e orgulhoso com seu feito, nutre uma oculta

“vaidade de artista” pela obra que produzira e com ela sente-se aproximar de seus

antepassados heróicos:

Com a ceia no arraial (...) Gonçalo terminou, nessa noite, o seu capítulo quarto, lançando à margem outra nota: – “Meia-noite... Dia cheio. Batalhei, trabalhei. ” – Depois no seu quarto, enquanto se despia, traçou todo o alvoroto da briga curta em que o Bastardo como lobo em fojo quedaria cativo, à mercê vingadora dos de Santa

51 QUEIRÓS, 1961, p. 18. 52 QUEIRÓS, 1961, p. 48 e 49.

51

Irenéia... (...) Então, reviveu a história, simulando com o chicote sobre o divã (que terminou por esgarçar) os golpes que arremessara, imitando os tombos meio desmaiados do valentão (...), quando já o sangue o alagava. (...) 53

Junto ao sentimento de vaidade, segue a idéia de posteridade, de fixar seu nome

na “história” através de sua obra. Aliás, essa noção de posteridade parecia também ser

algo perseguido por Eça de Queirós, desejo que pode ser identificado por meio de

alguns indícios deixados em sua correspondência. Voltando ao personagem Gonçalo e

ao desejo de se eternizar através de sua novela num exercício de auto-emulação, ele se

projeta no futuro gozando, no presente, as delícias de um reconhecimento do seu valor

como pessoa e literato:

(...) desejaria ele que os críticos insistissem ao estudar depois a Torre de D. Ramires (...) os rico-homens de Santa Irinéia reviviam no seu neto, se não pela continuação heróica das mesmas façanhas, pela mesma alevantada compreensão do heroísmo... (...) sentia a grandeza e o préstimo histórico desse arrojo (...) ressuscitava pelo saber e pela arte; (...) dentro do espírito e das expressões do seu século era pois um bom Ramires – um Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas intelectuais. (...) 54

Mais uma vez faz-se presente a importância da escrita como meio de

reconhecimento social (“nobres energias intelectuais”). Assim, através de diversas

passagens extraídas do romance de Eça de Queirós, podemos notar a relevante presença

de reflexões acerca da escrita e de seu peso na sociedade da época. Isto devido à postura

metalingüística adotada pelo escritor pondo a nu o processo da produção de um texto,

suas etapas, dificuldades, impasses e alegrias. Tudo isso contemplado numa obra

arrojada, crítica de seu tempo e de seus costumes, mas que, acima de tudo, realiza uma

exaltação à escrita:

Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforço de quem empurra um arado por terra pedreira – gastara Gonçalo essa doce semana de setembro. E no sábado, cedo, na livraria, com os cabelos ainda molhados do banho de chuva, esfregava as mãos diante

53 QUEIRÓS, 1961, p. 312 e 313. 54 QUEIRÓS, 1961, p. 126.

52

da banca – porque certamente com duas horas de atento trabalho, findaria antes do almoço a sua novela, a sua obra! (...) 55

55 QUEIRÓS, 1961, p. 320 e 321.

53

2. EÇA NÃO-FICCIONAL

(...) leu o primeiro capítulo (...)? Que lhe parece? A mim pareceu-me mau; (...) os personagens são todos empalhados – (...) se eles tivessem algum sangue (...), bebia- lho. Sou uma besta: sinto o que devo fazer, mas não o sei fazer. (...) (QUEIRÓS, 2000, p. 135)

2.1. CARTAS AOS AMIGOS

Podemos fazer uma comparação entre Jean-Jacques Rousseau e Eça de Queirós

no que tange ao campo da expressão da “verdade”, à forma como cada um desses

artistas a encara e busca explicitá- la (ou não) em seus textos. Rousseau, ao menos

inicialmente, acredita ser possível concretizar seu projeto de “transparência literária” no

qual o material produzido seria reflexo da “pura verdade”. Nas palavras de Starobinski.

(...) Rousseau quer acreditar que todos os seus movimentos afetivos são legíveis em seu rosto. A vida subjetiva, para Rousseau, não é por si mesma uma vida “oculta” ou recolhida na “profundeza”; aflora espontaneamente à superfície, e a emoção é sempre demasiadamente poderosa para ser contida ou reprimida. Assim, Jean-Jacques proclama: (...) Meu coração transparente como o cristal jamais soube ocultar durante um minuto inteiro um sentimento um pouco vivo que ali se houvesse refugiado. 56

Parece-nos que esta última afirmação sobre Rousseau nada condiz com as

características do autor Eça de Queirós. Teria este um “coração transparente como o

cristal” e que jamais soube ocultar um sentimento vivo? Definitivamente este perfil não

combina com o escritor português, especialmente se utilizarmos como corpus de análise

sua epistolografia, marcada por qualidades determinantes como a teatralização do

próprio cotidiano e a excessiva preocupação formal com os textos dessas epístolas

(estamos aqui nos referindo às cartas aos amigos, especificamente).

Para Rousseau, na opinião do crítico, “não basta viver na graça da transparência,

é preciso ainda dizer sua própria transparência, dela convencer os outros” 57. Ele tinha

56 STAROBINSKI, 1991, p. 188. 57 STAROBINSKI, 1991, p. 189.

54

tal necessidade e a demonstrava explicitamente. Eça também denota este desejo, porém

de forma não tão efusiva apesar de estar sempre atuante na concretização dele. Mais

uma vez estamos nos referindo à correspondência queirosiana que mesmo não se

tratando de um material claramente autobiográfico (afinal, cartas são encaradas como

documentos e existem para fins comunicativos), acaba por atingir este objetivo,

tornando-se também uma espécie de autobiografia, mesmo que conscientemente esta

“não” tenha sido a intenção do autor ao produzi- las. Bem sabemos que não foi assim e

que Eça não as escreveu de forma ingênua e despretensiosa. Nota-se através desse tipo

de texto autobiográfico uma certa necessidade de “reconhecimento vindo de fora”,

numa espécie de “apologia pessoal”, própria dos artistas vaidosos, sedentos pelo clamor

do público. Assim, voltando a Rousseau,

(...) O que os escritos autobiográficos vão colocar em discussão não será o conhecimento de si propriamente dito, mas o reconhecimento de Jean-Jacques pelos outros. O que é problemático aos seus olhos, com efeito, não é a clara consciência de si, a consciência do “em si” e do “para si”, mas a tradução da consciência de si em um reconhecimento vindo de fora. 58

E ainda sobre a necessidade dos outros conhecerem a “verdade” pessoal de

Rousseau:

(...) A apologia pessoal e a autobiografia se tornam necessárias a Jean-Jacques porque a clareza da consciência de si lhe é insuficiente na medida em que não se propagou para fora e não se desdobrou em um claro reflexo nos olhos das testemunhas. 59

Rousseau crê na pureza da linguagem, pois para ele não basta viver na

transparência, é preciso fazer o uso correto do instrumento que viabiliza a ampla

divulgação dela, ou seja, a linguagem, por meio de uma manifestação “pura”. Em Eça a

linguagem é uma ferramenta de trabalho, não relacionada a virtuosos conceitos como

pureza ou ingenuidade. A linguagem, para o escritor português, é um instrumento

elástico, flexível e incansável, pois necessita constantemente adequar-se aos novos

58 STAROBINSKI, 1991, p. 189. 59 STAROBINSKI, 1991, p. 189.

55

moldes, na sua busca pela perfeição formal. Rousseau, ao contrário, encara de certo

modo ingenuamente a escrita, acreditando ser ela “pura” ao transmitir um sentimento

sincero. Não pensa a escrita como algo artificial, carregada de instrumentos:

Quero que todo o mundo leia no meu coração. Eu desejaria poder de alguma maneira tornar minha alma transparente aos olhos do leitor (...) 60

Rousseau defende a idéia de que não há ninguém melhor para escrever sobre a

vida de um homem do que ele próprio. Assim, concede ao pintor um olhar meramente

externo e limitador não possuindo as possibilidades amplas do auto-retrato:

“(...) O que se vê não passa da menor parte daquilo que é; é o efeito aparente, cuja causa interna é oculta e freqüentemente muito complicada. Cada um adivinha à sua maneira e pinta à sua fantasia; (...)” 61

O autor francês, base do pensamento romântico, defende o projeto de revelar-se,

segundo o ideal da existência de um “eu” que precisa se mostrar. Eça com suas cartas

não parece demonstrar tão claramente tal intenção. Entretanto, não se revela menos que

Rousseau, apenas o faz com um sentido diferente. O autor português não mostra

intenção de veicular uma “verdade”, pelo contrário, essa não parece ser sua meta. Seu

principal objetivo é o trabalho com a linguagem, o aprimoramento formal.

Mesmo com o objetivo bem delimitado, Rousseau tem dificuldade em encontrar

um tipo de linguagem que dê conta da enorme diversidade de aspectos que compõem a

“vida real” de uma pessoa. Deste modo, é preciso fazer-se uma seleção de alguns fatos.

Assim, vítima das contradições do seu próprio pensamento, Starobinski, a seu propósito

se pergunta:

“(...) com que direito decidir que um momento possui uma importância determinante em comparação com tal acontecimento, que não é mais que um simples efeito? Distinguir as causas e os efeitos é um ato de julgamento.” 62

60 STAROBINSKI, 1991, p. 189. 61 STAROBINSKI, 1991, p. 194. 62 STAROBINSKI, 1991, p. 200.

56

E ainda falando acerca da escolha de certos fatos e da ordem em que vão

aparecer no aspecto de gerar um determinado sentido que se quer dar, Starobinski

reflete:

(...) Estabelecer uma ordem de sucessão de causa e efeito é já estabelecer um sentido, não apenas porque se impõe uma ordem interpretativa que destaca tais momentos privilegiados, mas ainda porque a própria escolha desse tipo de interpretação indica de imediato um certo sentido de existência. (...) 63

Isto posto já se pode concluir que a noção rousseauniana de “linguagem pura”

torna-se impraticável, uma vez que se faz necessária a escolha da explicitação de alguns

fatos e outros não, o que já implica na alteração da verdade (tão buscada por Rousseau)

e aponta para a modernidade do pensamento queirosiano que se volta para o trabalho

com a linguagem, vista como artifício. Por fim, o projeto idealizado por Rousseau,

diferente do de Eça, pode ser assim resumido:

(...) Rousseau quer pintar sua alma contando-nos a história de sua vida; o que importa acima de tudo não é a verdade histórica, é a emoção de uma consciência deixando o passado emergir e representar-se nela. Se a imagem é falsa, ao menos a emoção atual não o é. A verdade que Rousseau quer comunicar-nos não é a exata localização dos fatos biográficos, mas a relação que ele mantém com o seu passado. 64

Podemos notar o quanto a autobiografia pensada pelo autor das Confissões é um

gênero que, apesar de sua intenção de veracidade, não escapa ao caráter da

ficcionalidade tal como a epistolografia de qualquer autor, sobretudo a de Eça, cujo

perfeccionismo verbal é o objetivo acima de todos. Assim, parece-nos ainda mais clara

a proximidade existente entre autobiografia e cartas. Apesar disso é necessário

distingui- las, pois, de fato, são gêneros diversos. Entretanto, ambos apresentam, cada

um por um motivo próprio, uma relação com o factual, ou seja, uma necessidade de

expor ao leitor uma “verdade”. Observa-se isto no caso da autobiografia por se tratar de

63 STAROBINSKI, 1991, p. 200. 64 STAROBINSKI, 1991, p. 204.

57

um texto que propõe narrar uma “história da vida real”, contar fatos verídicos que

ocorreram com uma pessoa que existe (ou existiu). No caso das cartas tem-se uma

explícita e tradicional relação com o documental. Isto é, em geral entende-se a carta

como sinônimo de documento, daí seu compromisso com a verdade acima mencionado.

Porém, em se tratando das epístolas de Eça de Queiros, cremos que essa lógica será

transgredida e seus textos epistolográficos exercerão funções diversas das já

tradicionalmente conhecidas: comunicar e documentar fatos. As cartas do escritor

português, assim entendidas, poderão figurar noutros espaços gozando o status e o

prestígio dos textos ficcionais, marcando presença como obras literárias.

A carta pode ser compreendida a partir dos seus elementos básicos: o lugar de

onde é escrita; a data em que foi produzida; o destinatário, ou seja, quem irá recebê-la; e

a assinatura, pois a carta é um objeto assinado e essa assinatura “responsabiliza jurídica,

moral e literariamente quem faz uso dela”. 65 Além desses dados há outros que também

devemos levar em consideração ao analisarmos uma correspondência. São eles: o

segredo, a divulgação e publicação, o valor biográfico e estético e, finalmente, o

conteúdo da carta. Vejamos uma definição de carta:

A carta é um meio de comunicar por escrito com o semelhante. Compartilhado por todos os homens, quer sejam ou não escritores, corresponde a uma necessidade profunda do ser humano. Communicare não aplica apenas uma intenção noticiosa: significa ainda “pôr em comum”, “comungar”. Escreve-se, pois, ou para não estar só, ou para não deixar só. (...) vale no plano afetivo como no plano espiritual, e participa, embrionário ou pujantemente, do mecanismo íntimo da literatura (...) 66

A carta, por mais que se apresente como um “texto documental”, reflexo de

acontecimentos reais, constitui uma modalidade de texto escrito. Como se sabe a escrita

é artificial. Ao transpor para o papel alguns fatos, estes tomam outra conotação em

virtude do veículo em que estão sendo divulgados: o texto. Assim, outro relevante fator,

presente nas cartas, responsável por esta elaboração da correspondência, é o

epistológrafo, uma vez que ele

65 ROCHA, S.D., p. 19. 66 ROCHA, S.D., p. 13.

58

(...) requinta o que tem para dizer conforme o destinatário a quem confia. Àqueles que preza ou àqueles que combate, procura dar de si uma imagem lisonjeira e sutil, por meio duma expressão graciosa ou percuciente, duma lógica sem defeitos, duma confidência exclusiva. (...) 67

Deste modo, pode-se depreender certa intencionalidade na produção de algumas

cartas. Escrever com os “olhos da posteridade” talvez seja uma linha de pensamento

plausível para buscar a compreensão de tamanho cuidado e requinte no texto das

epístolas de certos escritores. A partir dessa premissa, cada vez mais nota-se a presença

da perfeição formal nas cartas que se aproximam, progressivamente, da “literatura

propriamente dita” 68. E é este ponto, o da literariedade epistolar (especialmente em

relação às cartas queirosianas) que desejamos alcançar. Entendê- las não somente como

meros veículos de comunicação, mas como expressão artística, como literatura.

Parece-nos pertinente destacar que a carta projeta:

(...) a distinção entre o irradiar loquaz da aventura e o retraimento taciturno da rotina. E este fato tem uma influência decisiva sobre o conteúdo da carta. A ausência não só motiva, pela nostalgia dos contatos humanos perdidos ou interrompidos, um desejo de reafirmação no campo dos afetos, como provoca também um considerável enriquecimento daquilo que se tem a dizer. (...) 69

A fim de melhor compreendermos essa nova visão do texto epistolar,

observemos o que nos diz a professora Matildes Demétrio dos Santos em seu texto

“Amar por Cartas – Este Inferno de Amar” no qual nota-se afinidades entre os poemas

de Folhas Caídas e as Cartas de amor à Viscondessa da Luz, ambos de Almeida

Garrett. Tal aproximação também pode ser pensada no que diz respeito ao romance A

Ilustre Casa de Ramires e às epístolas de Eça de Queirós aos amigos. Os dois textos

refletem, metalingüisticamente, sobre a questão da escrita e exprimem as dificuldades e

angústias do produtor textual.

Conforme salienta Matildes Demétrio,

67 ROCHA, S.D., p. 18. 68 ROCHA, S.D., p. 20. 69 ROCHA, s.d., p. 14.

59

“(...) os críticos costumam caracterizar o livro [Folhas Caídas] como documento histórico, um exemplo de realismo circunstancial, memórias, um detalhe passional, confissão. Juízos que desmerecem o autor e que, de certa forma, diminuem o valor literário da obra poética e, por extensão do texto epistolar (...).” 70

O mesmo cuidado devemos ter em relação às obras queirosianas. Na ICR temos

o protagonista Gonçalo, fruto da inventividade de Eça, ficção. Por isso não devemos

buscar uma associação entre personagem e autor, fazendo-se uma identificação entre o

escritor português e o fictício “fidalgo da torre”.

Entretanto, nossa proposta vai mais além. Entendemos ainda a epistolografia

queirosiana como uma obra ficcional, de natureza diversa da do romance, claro está,

mas também marcada pela ficcionalidade. Daí essa tentativa de aproximação entre os

dois estilos de textos de Eça, as cartas aos amigos e ICR que, em nosso entender,

constituem obras de ficção lato sensu que refletem, basicamente, sobre o mesmo tema:

o ato de escrever.

Ao estudarmos as missivas de Eça de Queirós não buscamos traçar sua biografia

através desses textos. Isto seria empobrecer uma espetacular produção artística que se

deu por meio de epístolas. Ao contrário, pensamos tomar como ponto de partida a

análise das cartas queirosianas aos amigos para melhor compreender a gênese de sua

obra, encarando tais produções como literatura, produto artístico, e não mero registro de

uma época, ou um texto apenas documental.

Como típico português, Eça carregava consigo a tradição lusitana de escrever

cartas, e a escrita dessas correspondências, mais do que uma tradição, parecia ser um

hábito prazeroso para o autor. Isto se evidencia no esmero com que elaborava a

produção das missivas, algumas tão laboriosas, detalhadas, extensas e bem estudadas

que mais pareciam um romance. Às vezes todo esse cuidado dava-se por motivos

comerciais, ou seja, interesses do autor em convencer um amigo a participar de uma

nova empreitada. Entretanto, nota-se a intenção do escritor de produzir mais do que uma

simples carta com finalidade comunicativa, nota-se o desejo de deleitar o seu

destinatário, brindando-o com comentários que mesclavam informação, crítica social,

70 DEMÉTRIO, 1999, p. 155 e 156.

60

análises literárias, humor, diversão, ironia compondo, enfim, o que podemos chamar de

literatura.

Na Obra Completa: quatro volumes (que contempla grande parte da

correspondência queirosiana) há um texto introdutório, produzido por Beatriz Berrini,

que nos esclarece acerca da natureza das epístolas de Eça de Queirós e o objetivo de se

estudá- las. Segue o fragmento que explicita a função dessas cartas no que tange ao

conhecimento de Eça não apenas como pessoa, mas principalmente como escritor,

profissional altamente comprometido com a produção elaborada de suas obras:

(...) Não se trata (...) de somente pormenorizar o conhecimento da biografia de Eça de Queirós. (...) deve ser levado ao conhecimento público tudo aquilo que de alguma forma possibilitar um melhor acesso a um autor e a uma obra, favorecendo uma interpretação mais fundamentada e legítima de sua escrita. O que se deve ter sempre em vista é alcançar uma leitura crítica aturada desta ou daquela obra, leitura que terá por objetivo muito mais colocá- la perante o leitor interessado, e muito menos expressar a personalidade do intérprete. 71

Segundo a crítica, a correspondência é um dos instrumentos que levam à

avaliação da obra literária:

No caso de Eça de Queirós, é possível através da correspondência ver o germinar de uma idéia sua ou o desenho de um plano de trabalho; acompanhar o seu desenvolvimento; tomar conhecimento das dificuldades de edição e posteriores e sucessivas correções de provas; como ainda chegar a saber o porquê do abandono de determinado manuscrito ou a desistência de uma coleção já esboçada. Ou então, capta-se uma confidência a um amigo íntimo a respeito do silêncio da crítica, nesta ou naquela carta; outra revelará uma particular perspectiva estética; noutros momentos, a leitura de missivas proporcionará a exposição e a análise crítica do autor a respeito de suas próprias criações, numa auto-avaliação lúcida e implacável... 72

Vejamos na correspondência do escritor passagens que ilustram as diversas

situações enumeradas por Beatriz Berrini na citação anterior. Primeiro sobre o germinar

de uma idéia:

71 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 13. 72 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 13 e 14.

61

Concebi o livro, uma tarde em casa duma senhora, estando só com ela; ela tocava ao piano (...) e eu ao pé do lume acariciava um cão. De repente sem motivo, sem provocação - lembrou-me, ou antes flamejou-me, através da idéia, todo esse livro tal qual o descrevo: singular, não? Fiquei aterrado: supus ser ou um pressentimento, ou uma visão. Depois a minha segunda exclamação mental foi esta: - que escândalo no país! Você - conhece-me - e está aí a ver que me despedi da senhora, e vim para casa, lançar o esboço do escândalo para o país. (...) Além do escândalo - quero dinheiro. Se o Primo Basílio se vendeu - porque se não há-de vender a Batalha no Caia? (Cartas, p. 128) 73

A respeito do “desenho de um plano de trabalho”, segue fragmento de carta a

Ramalho Ortigão, de1888, na qual Eça de Queirós tece considerações acerca da criação

de uma Revista:

Que importa? Isso é um empreendimento de literatura e não de dinheiro (...). Mas tive (...) o meu fogacho de patriotismo. A imprensa entre nós domina, fala do alto, faz e desfaz a História - é mais sórdida e vil que o vômito de um ébrio: por outro lado não há em Portugal um bocado de papel onde se discutam seriamente, e com especial saber as coisas vitais do país (...) onde se produzam os espíritos elevados, que hoje (...) não têm um jornal decente onde decentemente digam o que pensam. Ora, nestas condições, eu decidi sacrificar-me, e fundar esse bocado de papel. É, até certo ponto, um ato patriótico (...). (Cartas, p. 162).

E ainda sobre as “dificuldades de edição e posteriores e sucessivas correções de

provas” destaca-se passagem de carta de 1882 endereçada, mais uma vez, ao amigo

Ramalho:

(...) não lhe falo do que tenho suportado a essa corja: as fastidiosas demoras de provas, as páginas de original saltadas com claro na composição, o grosseiro desdém por todas as minhas reclamações, o bestial propósito de nunca responderem às minhas cartas, os desleixos de trabalho que deixam as folhas impressas maculadas de erros, etc., etc., etc. (...) Por outro lado, para não sobrecarregar a tipografia, eu

73 As citações das cartas de Eça de Queirós foram extraídas da Obra Completa. Volume IV. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar SA, 2000, organizada por Beatriz Berrini. Doravante a indicação será feita após a citação por “Cartas,”, seguida do número da página.

62

que trabalho principalmente sobre as provas, tenho-me abstido heroicamente de emendar à larga. (...) Mas levei os sacrifícios mais longe: dispensei as segundas provas!! não recebo segundas provas, mas logo provas de página, fixas, que não permitem alteração. Tudo isso para quê? Para ter no fim de catorze meses quatro capítulos impressos! (...) Para mim, esta absurda luta com a tipografia, estas provas que é necessário arrancar à força de cartas e telegramas, esta tediosa suspensão de semanas entre cada página têm tido um efeito desastroso como artista: têm-me enervado (...). Não vejo a tudo isso senão um remédio: ir Você à tipografia, reclamar o meu original, reclamar as folhas impressas, pagá- las, e levar tudo a outra tipografia mais apta e mais honesta para se continuar lá a publicação. Isto é a única coisa razoável. Qualquer tipografia pode obter papel igual, tipo igual, feitio igual ao das folhas já impressas: e qualquer outra tipografia terá decerto mais decência e melhor fé. (Cartas, pp. 142 e 143).

Assim, muito além de um simples retrato de uma época, tem-se, por meio das

cartas, uma fecunda possibilidade de aprofundamento e compreensão do processo

criativo do escritor português. Através desses textos pode-se ter acesso à gênese de suas

obras, graças ao constante exercício metalingüístico presente nas missivas de Eça. O

perfeccionismo que parecia perseguir e sua obsessão pela linguagem cada vez mais

apurada, levavam-no a uma necessidade de discutir o seu próprio texto.

Esse profícuo diálogo ocorria, principalmente, entre Eça de Queirós e seus

amigos, em geral também “homens das letras”. Daí a importância dessas produções para

o presente estudo e a pertinência da seleção do corpus das missivas ao elegermos

analisar as “cartas aos amigos”, pois nelas há, além da metalinguagem, uma rica mistura

de diversos elementos, citados anteriormente. São “cartas fundamentais” uma vez que

o romancista expõe suas idéias perante as mais variadas questões; (...) fala com humor sobre as mulheres inglesas ou lamenta a agonia do seu velho amor pela França, face às questões políticas que a agitavam; ou (...) ele se põe a descrever cenas cômicas presenciadas em viagem ou personagens ridículas que se atravessavam no seu caminho... 74

74 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 15.

63

Daí a literariedade de suas cartas. Pelo esmero com que as compunha, Eça

traçava, com vivas cores, cenas que poderiam perfeitamente fazer parte de um romance

como se observa no fragmento abaixo de carta ao amigo Ramalho Ortigão do ano de

1873. Através da riqueza descritiva presente nestes textos epistolares, podemos viajar

junto ao escritor, visitando diversos lugares do mundo:

(...) Do lago Ontário, querido, vim pelo rio St. Lawrence - a esta linda cidade do Canadá. Montreal é uma pequena cidade - que a gente inveja (...). Imagine que por causa da neve os tetos das casas, as cúpulas das igrejas, os torreões, as torres das catedrais tudo é coberto de lata! Imagine isto visto de longe, por um dia de sol faiscando, reluzindo (...) no meio duma espessura verde-escura de alamedas, bosques, parques... é um encanto! (...) (Cartas, p. 103).

Assim, com tantos pormenores explicitados, o leitor sente-se, talvez, um pouco

cúmplice, um pouco companheiro de suas aventuras e desventuras e, desse modo, fica

“satisfeito e feliz com a convivência breve ou prolongada com o seu autor [e assim]

parte sofregamente em busca de outras páginas igualmente interessantes. (...)” 75. E

ainda, segundo Beatriz Berrini, o leitor tem a oportunidade de se identificar de alguma

forma com o autor:

(...) Como todos nós, Eça é um, específico e diferente, no seu diálogo com cada receptor. Por isso a correspondência expõe uma multiplicidade de facetas de sua personalidade, que se apresentam muito bem caracterizadas, por vezes até mostrando-se contraditórias entre si. Facetas distintas, com diferentes tonalidades, conforme o interlocutor, compondo ao fim um todo fascinante. 76

Há ainda um outro gênero textual que se relaciona com o gênero cartas: o

romance epistolar. Entretanto, não devemos confundi- los. Este último é, basicamente,

um romance cuja estrutura formal fundamenta-se em cartas, estas produzidas pelo

personagem da obra em questão. Ou seja, cartas, personagem, romance, tudo é fruto da

ficção e da inventividade do artista que os criou, isto é, do escritor que os produziu, não

necessariamente possuindo uma correlação com a vida pessoal do autor que os compôs.

Pensando-se em romance epistolar podemos citar de Eça de Queirós A correspondência

75 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 15. 76 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 15.

64

de Fradique Mendes que utiliza a carta em sua estruturação o que denota a importância

das epístolas para o escritor português. Assim, faz-se necessário estabelecer as

diferenças entre esses dois gêneros, cartas e romance epistolar, especialmente no que

tange à produção artística queirosiana. Para elucidar o tema em questão, baseamo-nos

no que diz Andreé Rocha, na Introdução d’A Epistolografia em Portugal:

A carta é um meio de comunicar por escrito com o semelhante. Compartilhado por todos os homens, quer sejam ou não escritores, corresponde a uma necessidade profunda do ser humano. (...) Escreve-se, pois, ou para não estar só, ou para não deixar só. (...) 77

Nota-se, entretanto, uma evolução deste conceito. A carta passou a ser não

apenas um mero veículo de comunicação entre pessoas, mas adquiriu status literário.

Vejamos o fragmento do texto de José Rodrigues de Paiva a esse respeito:

Essencialmente um meio de comunicar, a carta evoluiu da sua função pragmática para a relevante dimensão estética e reflexiva, quando adotada por pensadores para inserção em obras narrativas ou mesmo para a estruturação delas ou ainda para reflexão ideológica. (...) 78

A passagem acima nos esclarece a respeito das diferentes funções da carta após

sua evolução. Nas obras de Eça de Queirós podemos observar o largo uso que o escritor

português fez das cartas como um expressivo recurso textual. Porém, tal uso deu-se de

maneiras diversas. Quando lemos que a carta evoluiu da “(...) função pragmática para a

relevante dimensão estética e reflexiva (...) para inserção em obras narrativas ou mesmo

para a estruturação delas (...)” 79, pensamos n’A Correspondência de Fradique Mendes,

em que a carta é “(...) estratégica ficcional na experiência de novos recursos narrativos

(...)” 80. Poder-se-ia mencionar ainda a ICR na qual é inserida no seu final uma carta do

protagonista Gonçalo relatando suas experiências em África.

Observando igualmente as classificações de cartas segundo José Rodrigues

Paiva, temos que Eça de Queirós usa a carta em suas obras numa “função estruturante”.

77 ROCHA, S.D., p. 13. 78 PAIVA, 2002, p. 242. 79 PAIVA, 2002, p. 242. 80 PAIVA, 2002, p. 243.

65

Nela a “(...) epistolografia ficcional, propõe-se como forma de estruturar um romance de

assumido modelo epistolar (...).” 81

Existe ainda a correspondência de Eça propriamente dita, isto é, os textos de

suas cartas que, em virtude do estilo e da riqueza conteudística (dentre outros

elementos), podem ser considerados ficção, segundo nossa visão. Desse modo,

retomando um fragmento inicialmente citado, as cartas queirosianas, neste caso, podem

ser entendidas como “suporte textual para reflexão ideológica” 82. Como “desculpa”

para se comunicar, Eça tece em suas cartas profundas análises e reflexões sobre os mais

diversos assuntos: Portugal, política, economia, dentre outros, sem esquecer o principal

deles, a gênese de suas obras. Pensamos, então, não ser pertinente o enquadramento

dessas missivas na primeira função da carta, segundo a concepção de José Rodrigues de

Paiva para a função retórica, também chamada de função poética, pois ela “(...) serve

de meio operacional para dar realidade literária a uma “outra voz” ou, mais exatamente,

a uma “outra escrita”. (...)” 83. E mais:

(...) São, entretanto, em qualquer dos casos, as “destinatárias” ou “destinatários” dessas cartas o “tu” ou o “outro”, ausente, desconhecido ou inexistente ao qual o eu que escreve se dirige previamente consciente de que não terá resposta. Cartas para monologar, que explicitam a impossibilidade do diálogo (...). 84

Tendo em vista as características expostas, entendemos não se poder enquadrar

as epístolas de Eça de Queirós na chamada função retórica.

A carta teve largo uso durante o século XIX (época em que viveu Eça) e tal uso

se expandiu até a modernidade, como diz o autor:

(...) Ao longo do século XIX o romance utilizará a carta principalmente como recurso da narrativa voltado para o convencimento do leitor, para acentuar passagens de mais intensa dramaticidade (...) ou como estratégia ficcional na experiência de novos recursos narrativos (...). É com estas funções que o texto epistolar alcança a literatura moderna. Autores contemporâneos vão

81 PAIVA, 2002, p. 247. 82 PAIVA, 2002, p. 242. 83 PAIVA, 2002, p. 246. 84 PAIVA, 2002, p. 246.

66

enriquecê- lo, ampliando- lhe as possibilidades estruturais e poéticas. (...) 85

Eça de Queirós, como típico português, não nega suas origens e faz uso corrente

da carta tanto no âmbito pessoal quanto no profissional. Ela revela-se para o escritor não

só como um importante veículo de comunicação, mas principalmente um meio de

aproximação das pessoas, uma vez que o autor encontrava-se muito ausente em virtude

das viagens que seu trabalho exigia. Neste aspecto do uso pessoal e particular da carta é

relevante destacar que o noivado de Eça de Queirós deu-se quase que completamente

através de epístolas, fato que se estendeu durante todo o seu casamento com Emília de

Castro, dentre outros dados curiosos e importantes a esse respeito.

Assim, pelo seu perfil característico, o povo português tem enraizado o gosto

pela carta, pois se trata de um

“Povo de descobridores e, mais tarde, de emigrantes, a ausência prolongada determina nele um largo uso da forma epistolar, e dilata substancialmente a matéria sobre a qual pode especular por escrito.” 86

Por motivos outros, essa mesma “ausência prolongada”, muito evidente nos

textos epistolares, levará o escritor português Eça de Queirós a produzir cartas cuja

nostalgia e distância provocam um “considerável enriquecimento daquilo [que] tem para

dizer” 87. Para ilustrar tal pensamento, segue passagem de carta do escritor português ao

amigo Ramalho Ortigão do ano de 1873:

(...) Estive no Niágara uns dez dias (...). (...) O Niágara sacudiu-me porque eu estava só e descontente: se estivesse com um amigo - consideraria que o Niágara é simplesmente um rio que desaba - e não teria extraído daquela circunstância natural e geológica outras imagens ou outras sensibilidades. Mas como estava só - a paisagem infinitamente doce, vasta e plana das margens daquele rio sagrado na religião dos índios (...) tudo aquilo - me fez passar uns dias excessivamente nervoso e romanesco - e tanto que deixei o Niágara e vim para o Lago Ontário. Formoso, adorável (...) só queria que (...) o visse, imenso, azul, pálido e liso como uma peça de cetim azul em cima do mostrador... perdoe, querido, esta imagem. Estou- lhe a

85 PAIVA, 2002, p. 243. 86 ROCHA, S.D., p. 14 e 15. 87 ROCHA, S.D., p. 14.

67

escrever depois do jantar, um pouco pesado, e a minha maneira hoje deve ressentir-se duma pesada torta de amoras que não me fez bem. (...) (Cartas, p. 102 e 103)

A correspondência queirosiana é recheada por diversas notas a respeito do local

onde está. Isto enriquece a epístola e faz da ausência um estímulo à produção mais

loquaz dessas cartas. Nota-se também que a distância da pátria faz aumentar o grau de

valorização do seu próprio país, ou melhor, vislumbrar seus vícios, distância esta que

constitui um outro elemento enriquecedor da carta. Tal fato pode, mais uma vez, ser

observado em Eça como nos mostra Beatriz Berrini em seu texto introdutório:

(...) O afastamento, de resto, permite ver melhor o “tabuleiro” nacional. Como dizia chãmente Eça de Queirós a Ramalho, de Havana: “Estar longe é um grande telescópio para as virtudes da terra onde se vestiu a primeira camisa”. Mas é ainda, quando o amor foi ferido, um grande telescópio para ver seus vícios. (...) 88

A correspondência de Eça de Queirós ultrapassa as fronteiras da mera

comunicação interpessoal e avança para um outro terreno, teoricamente impensável em

relação às cartas: o da arte. Sim, ao estudarmos mais detidamente a correspondência

queirosiana podemos notar que tais textos são dotados de um especial trabalho com a

linguagem (uma das principais características do escritor), uma preocupação não só com

o conteúdo mas também com a forma. Mas é a partir do primeiro que classificamos sua

epistolografia segundo o critério das temáticas abordadas. São elas: a) o artista em busca

da perfeição; b) o artista e a reflexão sobre seu texto; c) o artista como personagem

(ficcionalização do eu); d) o artista, a obra e o mercado; e) o autor e suas finanças

(problemas financeiros). Comentaremos tais cartas ainda sob o prisma da relação

epistolar que Eça de Queirós travou, durant e sua vida, com diversos amigos como Jaime

Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Mariano Pina, Luiz de Magalhães, Joaquim Pedro,

Manoel da Silva Gayo, Eduardo Prado, dentre outros.

Como mencionamos, a correspondência queirosiana será estudada por temática,

isto é, em relação a cada assunto anteriormente destacado. E em cada tema explicitado

nota-se um Eça de Queirós preocupado não apenas em se comunicar com os amigos

88 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 16.

68

,mas, principalmente, ansioso para produzir arte. O esmero com que escrevia

determinadas epístolas, a riqueza de detalhes, a elaboração vocabular, a dramaticidade

que por vezes empregava nestes textos são relevantes evidências que nos levam a

encarar a produção epistolar de Eça mais do que simples documentos, registros (como

costumeiramente vê-se as cartas). Pode-se entendê-las não como meros textos

documentais e sim como obras artísticas, como Literatura.

Assim, para melhor compreender esse outro tipo de Literatura ou de “textos

ficcionais” produzidos por Eça de Queirós é que escolhemos estudar as cartas dele aos

amigos, pois nelas podemos, como nos diz Beatriz Berrini, “melhor (...) captar a

importância desta forma de escrita em Eça de Queiroz”:

Penso que é o caráter intimo do relacionamento que é possível de se estabelecer através da troca de epístolas o que mais seduzia o escritor. Permitia- lhe uma expansão sobretudo de caráter afetivo além de intelectual, que o seu quotidiano em meio a estrangeiros não favorecia. Através da correspondência alcançava ele manter o diálogo com os amigos, que a distância impedia de ver e conversar frente a frente. (...) a ânsia de falar e ouvir, de dialogar enfim com os entes mais caros, seja para o intercâmbio de idéias ou a exposição dos próprios sentimentos, e ainda para o comentário irônico ou pessimista sobre a situação do país, e assim por diante. (...) Por vezes avisa (...) que não dispõe de tempo, mas quando não lhe falta, derrama o seu verbo sedutor a respeito tanto de coisas importantes como de ninharias, substituindo pela carta o encontro pessoal que desejaria ter com esta ou aquela pessoa amiga. 89

Sobre os pontos mencionados por Beatriz Berrini acerca da correspondência de

Eça, cabe destacar um dos fragmentos de cartas queirosianas que ilustra um dos tópicos

citados na passagem anterior. Acerca da “exposição dos próprios sentimentos”, citada

por Berrini, entre os amigos ela é feita, porém um de seus melhores destinatários (senão

o melhor) neste quesito parece ser sua noiva (e posteriormente esposa) Emília de Castro.

Nas epístolas remetidas a ela, Eça desenvolve como nunca essa capacidade de expor

seus próprios sentimentos por escrito. O trecho seguinte é de carta do ano de 1885:

Porque não posso eu ter, ai de mim, essa sua suave tranqüilidade? Porque não serei eu também pacífico e inexcitável? Porque não sei eu

89 BERRINI, 2000, p. 18 e 19.

69

escrever essas cartas serenas, sossegadas, onde nenhuma palavra treme de emoção, e onde se revela uma natureza tão límpida e calma como a água num copo? (...) Enfim tudo se resume na grande máxima, a minha profunda máxima aquela que meus amigos consideram a minha mais alta descoberta social e filosófica – Ninguém sabe nada de coisa nenhuma! (...) Em quanto à beleza moral isso, querida, depende de si: se não quer que eu sofra uma desilusão, adorne-se espiritualmente de todas as virtudes e de todas as qualidades, e de todas as graças da alma: aperfeiçoe-se; (...) Em quanto à beleza material ... infelizmente para mim, parece-me que a minha noiva é uma das mais lindas mulheres que existe. Pelo menos, de todas as mulheres que tenho conhecido é a mais mulher: - e todo o encanto feminino reside nisso. Eu disse infelizmente para mim porque estou quase receando a sua extraordinária influência sobre mim. Estou temendo que o seu raro e singular encanto me enleie para sempre, numa dessas completas paixões, semelhantes a escravidões, que penetram a existência inteira, e quase a governam absolutamente. (...) (Cartas, p. 482, 483 e 484)

Através da passagem de Beatriz Berrini ficam melhor explicitadas as razões da

escolha do corpus deste estudo. Podemos ainda entender esse cuidado com os textos de

suas cartas como um desejo (objetivo ou subjetivo) do escritor de ficar para a

“posteridade”. Aí entraríamos no tema da “vaidade artística”, um dos tópicos de nossa

análise. Esta e outras temáticas pretendemos abordar, a partir de agora, neste trabalho,

estudando também os relacionamentos epistolares mantidos entre Eça e seus diversos

destinatários, estabelecendo semelhanças e diferenças, entre eles.

Comecemos com a primeira temática: a) o artis ta em busca da perfeição

(vaidade artística). Para melhor ilustrar o assunto, segue uma passagem emblemática (e

muito bem-humorada) disso que estamos falando. Nela podemos notar a fúria exagerada

de Eça e como este sai em defesa imediata de sua obra e de sua reputação como artista e

profissional das letras. A carta em questão tem como destinatário Jaime Batalha Reis,

foi escrita no ano de 1875 e refere-se ao romance O Crime do Padre Amaro.

Observemos o fragmento:

Acabo de receber a tua carta e estou verdadeiramente indignado. Pois quê! Eu dou-vos um borrão de romance – e vocês em lugar de publicar o romance publicam o borrão! (...) vocês não esperam pelas provas – e publicam o informe e o absurdo. (...) Vocês sacrificaram o

70

meu trabalho ao desejo de encher a revista de matéria (...) Se vocês publicaram a primeira parte – tal qual eu a li – nas provas que me mandaram – podem-se gabar de que publicaram a maior borracheira de que a estupidez lusitana se pode gloriar. É indispensável que V.V. façam uma declaração – dizendo – que estando eu em Newcastle – e não tendo podido corrigir as provas, o romance sai tal qual está no borrão. Se V.V. não fizerem essa declaração faço-a eu. V.V. sabem que um artista é pior que uma mulher – e um artista escandalizado na sua vaidade de colorista e de estilista é capaz das maiores infâmias. (...) eu não penso nem cismo senão em arte, em estilo e em cor: estou portanto com a vaidade literária (grifo meu) em brasa. (...) Sou ofendido na minha estética – vingo-me. (...) Os Diabos vos levem, carrascos. O Inferno vos abrase, facínoras. (...) Faltavam tiras, monstros. Satanás vos devore, assassinos. (Cartas, p. 67 e 68)

Percebe-se todo um tom teatral nessas palavras de Eça de Queirós. É latente a

indignação do escritor ao ver mutilada sua obra, pois “faltavam tiras” e foi publicado o

“borrão” ao invés do romance. Depreende-se desta carta o alto grau de intimidade que

deveria existir entre os missivistas uma vez que Eça acusa o amigo, sem pudores, de

“assassino”. Além disso, “solta o verbo” desprendidamente, sem receio de ofender, o

que denota de fato grande intimidade. Aliás, sobre a relação epistolar mantida entre Eça

e Batalha Reis pode-se dizer que, apesar de muito amigos, os conteúdos das cartas

trocadas por eles não parecem muito eloqüentes. Isto pode talvez ser explicado pelo alto

grau de proximidade entre ambos. Conforme observamos, a amizade epistolográfica de

Eça e Batalha Reis é marcada pela troca de “farpas”, iniciando-se desde cerca de 1870

até a década de 90.

O ar exagerado e dramático, presente na missiva, é um dos elementos relevantes

que nos levam a pensar na literariedade dessa e de outras cartas do escritor português. A

partir do fragmento não notamos a simples intenção de comunicar ao amigo a

reprovação do procedimento adotado em relação ao seu romance. Há muito mais do que

isso. Ocorre um movimento de tensão e revolta no texto no qual Eça coloca-se como

protagonista, personagem dessa narrativa. Nela a vaidade do artista é exposta. Revela-se

o lado humano do escritor que se mostra exageradamente preocupado com a imagem e

as aparências. É o artista que sai, de peito aberto, em defesa incondicional de sua obra,

sua “cria”, independentemente de prazos e dados concretos, exigências da “vida real”.

Põe, a sua obra e a si mesmo, como artista, acima dessas “mesquinharias” e da pequenez

71

cotidiana. O que é um prazo ou a necessidade de se preencher uma revista com matéria

diante da grandiosidade da Literatura? Eça de Queirós, nesse momento, parece colocar-

se à parte da realidade, “pairando”, tanto ele, como artista, quanto sua obra, “um palmo

acima do chão”, exigindo uma retratação pública e acusando os “malfeitores”, que

mutilaram seu romance, de facínoras e assassinos. Essa é a faceta temperamental do

artista vaidoso e passional.

Essa mesma paixão (ou a necessidade dela) em seu trabalho com a escrita pode

ser observada numa epístola destinada a outro amigo: Ramalho Ortigão. Nela Eça de

Queirós se lamenta com o amigo, queixando-se de sua “luta com uma tipografia” que o

deixava, como artista, “enervado”, “desmoralizado” e “sem veia”. O escritor português

demonstra o quanto sua alma artística é sensível e pode ser abalada e como se sentia

“menor” e desmoralizado ao ter de esperar por provas enviadas pela tipografia, orgulho

de artista ferido. Segue o fragmento da carta de 1882 que se refere à obra Os Maias:

Para mim, esta absurda luta com uma tipografia, estas provas que é necessário arrancar à força de cartas e telegramas, esta tediosa suspensão de semanas entre cada página têm tido um efeito desastroso, como artista: têm-me enervado, têm-me desmoralizado. Estou terminando o romance, sem paixão, quase sem gosto, e portanto sem veia. (Cartas, p. 143)

Segundo Maria José Marinho, depreende-se que Ramalho Ortigão foi para Eça

de Queirós:

(...) além do seu mais íntimo amigo, aquele a quem sempre confiou “os seus projetos, os problemas da sua arte e as suas constantes dificuldades monetárias” numa atitude quase filial, relação que, na verdade, nunca teve com próprio pai. 90

A amizade entre Ramalho e Eça não parece ter sido abalada por nenhum grande

problema. O relacionamento epistolar de amizade mantido por ambos revela a carta

como um importante instrumento que, além de comunicativo, tornou-se metalingüístico,

90 QUEIRÓS, v. 4, 2000, p. 41.

72

transformando-se num rico espaço de reflexão acerca de temas relacionados à literatura

e às artes.

Cabe ressaltar que ao abordarmos o tema da vaidade artística, além de citarmos

as cartas queirosianas destinadas aos seus amigos, faz-se necessário também, neste caso,

mencionarmos algumas epístolas remetidas aos editores de seus livros. Editores esses

que, pela natureza do trabalho que desenvolviam, exerciam grande influência sobre o

humor e o “estado de espírito” do artista. Eles podiam, em alguns casos (conforme

notamos em certas cartas), tanto acelerar quanto retardar o processo de produção da

obra.

Mas voltemos ao tema da vaidade artística. Na missiva do ano de 1894 em

destaque, cujo destinatário era o editor Lugan, Eça mostra-se, de forma desprendida (e

não se sabe até que ponto isto é verdadeiro), ser um artista despreocupado com o valor

concreto e mercadológico de suas obras. Conforme o próprio romancista explicita, seus

livros constituíam “uma questão de gloríola e de arte”. É importante frisar que Eça

emprega o verbo no tempo passado (“eram”). Talvez isso demonstre que tal

pensamento, desprendido e despreocupado em relação às questões monetárias que

pudessem envolver suas obras, não correspondesse mais a uma realidade naquele

momento. Aqui as fronteiras entre o real e o ideal parecem pouco claras:

“(...) Os livros eram para mim, nesse tempo, uma questão de gloríola e de arte. Nunca considerei lucros e interesses – e muito menos os defendi. (...)” (Cartas, p. 890)

Passando para o segundo tema a ser abordado, pode-se dizer que a

metalinguagem é um dos assuntos mais presentes nas epístolas queirosianas. Eça fazia

uso da carta buscando suprir sua ausência e, mais do que isso, estabelecer diálogos com

seus amigos acerca da arte, da cultura, da política, mas, especialmente, de suas obras. O

romancista, em virtude de suas atividades profissionais, viajava muito. Encontrando-se

distante do seu “ambiente natural, isto é, de Portugal e dos seus amigos, restava- lhe a

carta para desenvolver, detalhadamente e com vagar, suas idéias sobre os projetos

literários que tinha em mente. Mais do que simplesmente propagar idéias sobre suas

produções artísticas, solicitava dos amigos críticas. Sim, críticas “ferozes” e severas

acerca de seus textos.

73

Assim, através dessas missivas metalingüísticas, podemos acompanhar o

processo de composição de parte de suas obras. Os “bastidores” da produção nos são

revelados e toda a angústia do escritor é mostrada. A aura do romancista, nessas

circunstâncias, inexiste e a noção de “inspiração divina” e de “ser iluminado” saem de

cena para entrar o profissional das letras, o “trabalhador da linguagem” que labuta, com

grande esmero, a sua escrita. É isso que se depreende a partir da leitura de grande parte

da correspondência de Eça de Queirós que trata desse assunto. Tal procedimento

metalingüístico encontra-se presente não só nas cartas do escritor português como

também (e principalmente) em seus livros. E não poderia ser diferente. Eça, artista

pertencente ao Realismo, buscava dessacralizar a figura do escritor, romper a aura que

cercava o produtor textual. Há diversas epístolas que comprovam e bem ilustram esse

procedimento do escritor em seus textos. Vamos a elas.

Em carta endereçada a Jaime Batalha Reis, notamos o esforço de Eça para

acelerar a “produção” do romance Os Maias. Tal esforço leva o escritor sacrificar

momentos importantes em família, como o Natal. Mostra ainda como ele se coloca na

posição de “trabalhador das letras”, uma vez que diz ao amigo que está “puxando para

diante a carriola da Arte.” Segue passagem da missiva do ano de 1883:

Depois de te escrever no sábado, em plena esperança de ir estar breve contigo, vejo que serei obrigado a demorar por duas ou três semanas mais a minha visita. Estou com uma quantidade imensa de trabalho, a fazer os Maias (...) que devem ser entregues em manuscritos a prazos fixos. Ora vou tão atrasado com o segundo volume, que depois de meditar diante da banca e de calcular tudo o que tenho ainda a fazer, decidi não me dar feriado de Natal, e de ficar aqui puxando para diante a carriola da Arte. (...) (Cartas, p. 73)

Em outra carta, esta enviada em 1876 a Ramalho Ortigão, Eça mostra sua faceta

perfeccionista solicitando ao amigo críticas severas, férreas e impiedosas sobre seu

romance O Crime do Padre Amaro que o escritor já adjetivou até de “bestial”:

(...) Pegue no Padre Amaro, e escreva sobre ele, com justiça, sem piedade, com uma severidade férrea – o seu juízo – e remeta-mo. Tenho absoluta necessidade disto: mas nada de improvisos espirituosos, ou de fantasias – uma crítica (...) – austera, carrancuda e salutar. (...) (Cartas, p. 115)

74

Em carta de 1888 ao amigo Mariano Pina, Eça comenta as críticas deste,

principalmente em relação aos “erros de gramática” e “de sintaxe” que Pina diz estarem

presentes nos livros queirosianos publicados. Vejamos:

(...) um escritor que não tenha gramática e que não tem sintaxe, não é de fato um escritor – e portanto os Críticos não têm ocasião de se ocupar dele (...) se essa é a sua opinião, caro Pina – que eu não tenho nem gramática nem sintaxe – fez V. admiravelmente [bem] em o dizer. (...) O que eu não compreendo muito bem, é quando V. diz que os meus livros, cheios de erros de gramática e de erros de sintaxe, prendem e dominam o público! Aqui, perdoe-me V., caro amigo, mas creio que há trapalhada! (...). (Cartas p. 181)

Eça de Queirós, um obcecado pela forma e pelo trabalho com a linguagem, faz,

num tom bem-humorado, uma exaltação aos críticos, pois conforme menciona o próprio

romancista “(...) Onde ela falta (...) há logo (...) anarquia e balbúrbia (...)”. Isto reflete a

severidade de Eça em relação ao rigor formal e sua reprovação dedicada àqueles que

escreviam “(...) prosas reles que correspondem a sair à rua em ceroulas e chinelos (...)”.

Tais reflexões metalingüísticas, devido ao peculiar cuidado do escritor português com a

escrita, não são raras em sua correspondência. Porém ele, aqui, as realiza naquele tom

que lhe é tão característico: com ironia e bom humor. Observemos Eça de Queirós

“vociferar” em conversa epistolar com o amigo Luiz de Magalhães, datada de 1887:

(...) Com efeito a Crítica não é só a Consciência escrita duma literatura; é também a polícia da literatura. Onde ela falta (...) há logo (...) anarquia e balbúrdia na cidade literária. Se nós tivéssemos um Corpo constituído de Críticos (...) armados dum grosso cacete – já a rapaziada não escrevia essas prosas reles que correspondem a sair à rua em ceroulas e chinelos, nem escrevia esses versos insensatos que correspondem a cantar bêbado a uma esquina. Assim, sem polícia crítica, não tem medo. Não se dão ao trabalho de vestir um estilo decente para aparecer aos seus concidadãos; (...) Por isso mal avisto um Crítico, bato as palmas, com uma inesperada garantia, que surge, de decência e ordem. (...) (Cartas, p. 125 e126)

Nota-se o quanto o autor da ICR valoriza a função da crítica no processo de

feitura de uma obra. Tal fragmento ilustra o posicionamento de Eça no que concerne aos

“padrões” estilísticos, a certas “normas” que deveriam nortear a escrita, especialmente a

75

artística e que os “mais jovens” pareciam ignorar ao produzirem, segundo o escritor,

“esses versos insensatos que correspondem a cantar bêbado a uma esquina”. Ao

defender de forma veemente os críticos pode-se melhor compreender o ácido crítico que

o próprio Eça de Queirós aplicava às suas obras. Daí a conseqüente valorização da

função crítica, por parte do autor, para a melhoria da qualidade do que era produzido

literariamente. Eça, seu próprio “algoz”, crítico mordaz daquilo que escrevia, ao

desenvolver tais idéias, acabava produzindo textos metalingüísticos, ao expor a gênese

de sua obra. Procedimento esse que modernamente também (e principalmente)

encontrava-se presente em suas obras.

Para encerrarmos esta parte referente à metalinguagem, observemos as idéias

que Eça tem da Arte e de como esta, segundo o romancista, depende do “equilíbrio” do

artista. Daí a correlação que faz entre este conceito e a necessidade de se casar. Para tal,

segue o fragmento da missiva endereçada ao Conde de Ficalho (ou apenas Ficalho,

como comumente era chamado por Eça), datada de 1885:

(...) Descobrimos que nunca se devia adorar nada em êxtase ou na imprecação. (...) O desgraçado que se conservava no ponderado equilíbrio dos sentimentos justos, passava por burguês, recebia injúrias (...) Descobrimos que nunca se devia adorar nada em êxtase, que nunca se devia amaldiçoar nada em cólera – mas que se devia sempre explicar tudo, tranqüilamente: - e a Arte, passando a ser um frio ato de observação, necessitou logo, como condição essencial para ser bem realizada, o calmo e pacífico equilíbrio do Artista. Ora a Ciência, a Filosofia, a experiência dos séculos, a nossa própria experiência (...) dizem solenemente, que, fora do casamento, não há para o homem, verdadeiro equilíbrio moral. (...) Em todo caso (...) desejo afirmar-lhe que eu não sou levado a casar – unicamente em obediência a estas altas razões da Filosofia e de Estética (...) (Cartas, p. 352).

Tomando-se este último fragmento, em especial o trecho que diz: “(...) fora do

casamento, não há para o homem, verdadeiro equilíbrio moral”, a passagem não parece

demonstrar, nem de longe, os reais sentimentos que Eça nutria em relação ao casamento

e, especialmente à noiva (e futura esposa) Emília. Muito distante de objetivar, com o

casamento, meramente uma “vida higiênica” (palavras do próprio escritor) Eça de

Queirós, nas cartas endereçadas à Emília, mostrava-se um homem apaixonado. Assim,

já se nota a contradição existente entre os dois discursos, o da missiva ao Conde de

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Ficalho, anteriormente explicitada, onde o escritor alude ao “calmo e pacífico equilíbrio

do Artista” como “condição essencial” para que uma obra possa “ser bem realizada” e o

das cartas à Emília cujos textos revelam um Eça passional, exagerado, mostrando uma

postura contrária àquela prezada na correspondência ao Ficalho na qual dizia, entre

outras coisas, que “nunca se devia adorar nada em êxtase” ou “que nunca se devia

amaldiçoar nada em cólera (...)”. Pois parece ser exatamente isto que o escritor

demonstra ter feito em relação aos sentimentos que nutria pela noiva, como podemos

observar nas passagens a seguir:

Depois de refletir parece-me que não lhe devia ter escrito ontem, como fiz, na impressão primeira, no fugitivo abalo que me deu a sua carta, a sua melancólica carta. E estou quase com remorso, com medo mesmo (...). É certo que eu não disse senão o que sentia; e tudo o que disse é bom que fosse dito; mas o tom não era talvez o melhor (...). (...) Aqui está, minha querida amiga, o que é uma mulher lidar com homens de imaginação! Eles vibram facilmente de mais, e são de sua natureza tempestuosos. (...) Ora se eu fosse como esse noivo ideal não lhe teria escrito ontem num tom arrebatado (...). É verdade que por outro lado, também, não a adorava com a mesma adoração. E esta é a moral do caso: é que me impressionei tanto com as suas menores palavras – porque a adoro (grifos meus) (...). (Cartas, pp. 467 e 468)

E numa demonstração de cólera explícita, parecendo uma mescla de irritação,

sentimento passional e brincadeira para com a noiva:

O correio, como me dizia na sua carta, com efeito nunca chega! Estou receando que em vez de seguir direto (...) ele flana pelas estradas, pára à sombra das árvores a fumar o cachimbo da vadiagem, e dorme a sesta (...). Nenhuma carta sua, nem ontem, nem hoje – (...) contando pelos dedos que é um dos meus processos matemáticos, eu concluo que já aqui devia estar essa carta, e essas cartas (plural) tão ardentemente desejadas. Mas nada! Se isto porém não é culpa do correio – então retiro todas as injúrias a essa (...) Instituição; e queixo-me de si – a si própria. Queixo-me com mágoa, queixo-me com alardo! Exijo que se castigue a si mesma: feche-se no quarto escuro, prive-se de sobremesa, condene-se a conjugar oitenta vezes o verbo aimer (...) e imponha-se outras penitências que em sua justiça julgar justas por ter deixado sem uma linha, sem um simples cá recebi, quem nada fez

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para merecer tal desleixo senão o adorá- la incorrigivelmente. (grifos meus) (Cartas, p. 469)

Vale frisar que destas missivas de Eça de Queirós destinadas à noiva Emília, o

primeiro fragmento destacado expressa, prioritariamente, o sentimento de “adoração”

do escritor em relação à noiva. No segundo, este mesmo sentimento também se encontra

presente, porém nota-se uma certa cólera em seu texto. Portanto, em ambas as epístolas

identifica-se os dois elementos observados (e condenados pelo escritor) na

correspondência ao Conde de Ficalho anteriormente destacada: a adoração e a cólera,

sentimentos extremos que, num momento são criticados, mas, no outro, são vivenciados

pelo romancista, contradições do artista.

Retomando o fragmento da carta ao Conde de Ficalho, pode-se notar que Eça de

Queirós muito brincava com seus amigos, especialmente nos textos epistolares, que são

menos formais, mesclando momentos sérios e outros mais palradores. Neste jogo de se

esconder e se mostrar, de “verdade” e “mentira”, estabelece-se uma “teia” textual,

tecida por Eça em suas epístolas, na qual torna-se pouco claro o limite existente entre o

ficcional e o real. E nesse jogo, o romancista por vezes adota uma postura ambígua,

brincando com essas duas faces da mesma moeda. Assim, objetiva ou subjetivamente,

ele se coloca numa posição curiosa: a de protagonista de sua própria história. Sim,

protagonista uma vez que, ao desenvolver relatos em suas missivas, dramatiza, ironiza,

exagera ou suaviza, de acordo com a intencionalidade pensada e os objetivos propostos

para aquele texto/correspondência.

Sabemos que quando se produz uma carta, faz-se uma pré-seleção daquilo que se

quer dizer e do que se pretende omitir. Tal seleção já evidencia uma parcialidade em

relação ao pretenso “real” que se quer transmitir. Uma vez que se escolhe o que será

explicitado e também omitido, toda a dimensão de “verdade” fica desestruturada. Não

há, portanto, nestas circunstâncias, a possibilidade de se pintar, com fidedignidade, um

retrato da realidade. O que há, nestes casos, é uma visão pessoal, bastante

particularizada de um determinado “recorte” dessa realidade. Obviamente, tal recorte

selecionado e os fatos escolhidos para ilustrá- lo favorecerão o remetente, isto é, o autor

da epístola. Sendo assim, o caráter documental da carta, tão difundido, nesta situação

pode ser questionado. E é exatamente nessa circunstância que a correspondênica

queirosiana parece ser produzida. Vaidoso, Eça poderia estar preocupado com a

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“posteridade”, pois tendo a consciência de sua relevância como artista, talvez

imaginasse que, postumamente, aquelas cartas pudessem transformar-se em material

perfeitamente publicável. Assim, sua vaidade artística, somada a sua capacidade criativa

de ficcionista, poderiam plenamente trabalhar em prol de um tipo diverso de ficção:

aquela produzida através de cartas pessoais.

Entretanto, além dessa noção de “posteridade” que talvez possamos identificar

na postura do autor há uma outra que se mostra ainda mais latente: o prazer de escrever

bem. Apesar de a escrita ser, para Eça, um meio de trabalho, era também fonte de

prazer. O cuidado e atenção dedicados à elaboração de seus textos denotam que o

escritor português “degustava” prazerosamente o que escrevia, daí o demasiado e quase

obsessivo trabalho em desenvolver sempre mais a forma, sendo Eça de Queirós um

incansável perfeccionista em busca da frase impecável e do estilo primoroso.

Mas retomando a questão de Eça parecer colocar-se como “personagem” em

suas cartas, isto pode ser encarado como uma extrapolação de um desejo de discutir e

problematizar, no espaço do texto, questões íntimas do homem e profissional das letras

Eça. Tais questões podem ser identificadas na ICR que justamente discute o tema da

escrita, fazendo uso do recurso da metalinguagem em grande parte da obra. Nela pode-

se notar que o protagonista expõe as angústias, impasses e agruras daquele que se

dispõe a escrever. Tormentos semelhantes aos vividos por Eça e explicitados em sua

correspondência particular, especialmente a destinada aos amigos. Como já dissemos

antes, não há uma identificação biográfica entre o escritor e seu personagem, mas

pensamos que Eça poderia ter feito uso do personagem para ser uma espécie de “porta-

voz” das suas dificuldades como produtor textual. Assim, pode-se compreender as

cartas queirosianas que contêm reflexões metalingüísticas como um transbordamento,

para outro gênero textual, dessa recorrente inquietude do escritor.

A partir do exposto, pensamos ser possível estabelecer uma correlação, sob esse

aspecto, entre o romance A Ilustre Casa de Ramires e as cartas, estas entendidas como

um outro tipo de texto ficcional, bastante peculiar e característico do escritor português,

pois parecia ser a epístola uma espécie de produção textual bastante apreciada pelo

autor d´A correspondência de Fradique Mendes.

Desse modo, adentramos no terceiro tema foco de nossa análise: Eça como

personagem ou a teatralização do seu cotidiano. Observemos algumas outras missivas

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que podem melhor ilustrar a presente temática. Para começar, vejamos passagens de

carta enviada a Ramalho Ortigão em 1878:

Acrescente (...) a dificuldade da minha vida financeira. As dívidas serviram, diz-se a excitar o gênio de Dickens e de Balzac: não encontrando em mim – um gênio a excitar, vingam-se da humildade do seu papel, torturando-me. Os meus rendimentos são superiores às minhas dívidas – mas eles dependem do meu trabalho, e dos regulamentos oficiais que são imutáveis; - e as minhas dívidas acumulam-se todas, a um tempo, como sete espadas contra um coração. (...) Não sei às vezes, como me resta coragem – para entender os desgostos dos meus personagens, quando tenho de os observar através da espessura dos meus. Acresce a isto o absoluto isolamento moral – isto é – a viuvez de alma: - a família não se substitui senão pela paixão. Eu não tenho aqui família, nem paixão. Não gosto de falar de minha carreira sentimental – mas creia Você que ela tem sido triste há seis anos para cá (...). (Cartas, p. 124)

E ainda sobre a natureza de sua crise financeira e as desastrosas conseqüências

na vida do escritor:

(...) a minha crise tem um duro caráter de indestrutibilidade. Até aqui – um bom humor que todos os dias agradeço ao Deus Universal, tem-me mantido o sorriso dos fortes e dos simples. Mas começo a mudar. Surpreendo-me a passear na sala horas, de cabeça baixa a ruminar coisas tristes. Tenho sofrivelmente cabelos brancos – e, porque não direi tudo, dá-me às vezes vontade de recorrer ao cognac, para me criar um paraíso artificial. Felizmente, o meu estômago tem ódio aos álcoois (...). (Cartas, p. 125)

Eça traça aqui um retrato dramático de sua existência. Compara-se a outros

escritores que, como ele, também tinham problemas com dívidas citando Dickens e

Balzac. Entretanto, a comparação mais relevante realizada pelo escritor nesta epístola é,

de fato, em relação aos seus próprios personagens. Comparação essa que se apresenta

implicitamente quando ele diz “Não sei às vezes, como me resta coragem – para

entender os desgostos dos meus personagens, quando tenho de os observar através da

espessura dos meus.” Isto é, assim como seus personagens Eça também tinha desgostos,

estabelecendo-se aí certo grau de comparação e mostrando, subjetivamente, ao discorrer

sobre as mazelas de sua vida, que talvez ele tenha uma existência ainda mais dramática

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do que aquelas retratadas em seus textos ficcionais. O escritor pinta, com riqueza de

detalhes, o cenário típico de uma tragédia. Fala de sua crise de forma tão lúcida e

analítica que podemos até nos surpreender com a capacidade de se manter são diante de

circunstâncias existenciais tão adversas. Talvez o desejo de “romancear” seu próprio

cotidiano o tenha levado a “apimentar” ou realçar alguns pontos para que se produzisse

um tom mais dramático ao texto lançando mão, assim, de alguns recursos artísticos para

atribuir determinados “efeitos” à missiva, recursos esses amplamente trabalhados em

sua ficção e também presentes em seus textos epistolares. Desse modo, a fronteira entre

ficção e realidade mostra-se tênue e mais difícil de ser delimitada devido à mescla de

elementos reais e ficcionais existente nesse tipo de produção. A “teatralização do

cotidiano”, conforme nomeamos esta postura de Eça, revela-nos um texto perturbador

que nos põe a refletir acerca das tradicionais concepções de real e ficcional que fazem

vacilar o conceito que temos da carta como texto documental, relato, retrato da

realidade, etc.

Há também momentos mais bem humorados do escritor em sua amizade

epistolar no que se refere à teatralização de seu cotidiano. Eça, como vimos

anteriormente, parece pôr-se como protagonista. Agora, conforme veremos no

fragmento a seguir, mostra-se como o personagem principal de uma comédia deixando,

a si próprio, numa situação até jocosa no texto da carta ao mencionar a sua “soltura” que

o deixa de “calças na mão”, isto por causa das “comidas feitas à francesa”. O fragmento

em questão foi extraído de carta a Oliveira Martins datada de 1884.

Estive ontem ainda bastante incomodado; estou agora à espera do meu Doutor; e não creio que possa ainda hoje fazer essa peregrinação de amizade, a Santo Antero e ao bom Lobo. Pois apetecia-me bem esse passeio! Estou aborrecido com a persistência desse incômodo e indignado por ter descoberto que a sua causa está nestas comidas do Hotel feitas à francesa. (...) e eu agora sempre que me dirijo ao water-closet, de calças na mão, vou rosnando as piores pragas contra os Enciclopedistas! Quando voltará este desventuroso país à sua tradição que é o Sr. João VI, o padre, o arrieiro, o belo caldo de galinha, e o rico assado de espeto, e o patriótico arroz de forno! Mas não! Querem ser liberais, filósofos, franceses, polidos e ligeiros... Conseqüência: o país como tu sabes, e eu com soltura há oito dias. Irra! (Cartas, p. 238)

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Este desabafo, cheio de humor e irreverência, revela algumas “pitadas” que

visam a incrementar o texto, transformando o relato de um problema intestinal (que

provavelmente o levou à morte) em matéria humorística e crítica, uma vez que salienta

os defeitos de sua terra natal e da comida francesa. O seu problema “nos intestinos”

parece ser mero pano de fundo para que Eça desenvolva uma breve crônica de

costumes, criticando Portugal e também os franceses. O escritor põe-se, ainda, como

“vítima” desse sistema, ou seja, de um país que busca um referencial em outro (França),

país esse considerado como “melhor” ou “superior” pelos portugueses, segundo a visão

que Eça transmite em sua carta. Daí depreende-se a tentativa de se aproximar da cultura

francesa até pela gastronomia, esta muito criticada pelo romancista. A partir de um

pequeno incidente cotidiano (“soltura”), Eça produz um texto humorístico no qual

desenvolve uma crítica de costumes irreverente sendo, o escritor, a figura central.

Em carta a Joaquim Pedro, Eça faz uso de um fato ocorrido durante seu trabalho

como cônsul em França para, novamente, traçar um quadro cômico no qual o escritor

mostra-se como “vítima” e protagonista da história. É interessante notar que, como

numa narrativa ficcional, Eça vai, passo a passo, discorrendo sobre o episódio,

acrescentando detalhes que enriquecem e atribuem, de certa forma, uma dimensão

cênica ao texto, algo que permite ao leitor visualizar com clareza a cena, tal a precisão

da descrição realizada. Observemos a passagem da carta de 1888:

(...) Basta saber que quando fui ao Consulado daqui tomar posse – foi a Viscondessa de Faria que me recebeu como sendo ela o cônsul. Não sei se a conheces. É uma espécie de virago, no gênero potiche, com uma voz grossa e arroucada, e o gesto tremendo. Fez-me uma pavorosa cena de berros, de protestos, de imprecações, de ganidos, de murros na mesa – que eu escutei varado, atônito, de chapéu na mão, ora recuando quando ela erguia o punho ameaçador, ora dando um passo para a porta, em movimento de fuga, quando por um instante ela voltava as costas. Em resumo a medonha criatura declarou que só ela era o cônsul, aquele consulado era o dela (...) Num intervalo que ela interrompeu esfaldada, dei um salto para o reposteiro, varei a porta, galguei escadas, precipitei-me num fiacre, e só parei em casa dos Valbom como num asilo seguro. (Cartas, p. 252 e 253)

Sobre o tema “o artista, a obra e o mercado” estabeleceremos um contraponto

em relação ao primeiro tema trabalhado, “o artista em busca da perfeição” (vaidade

artística). Essa oposição é relevante ao observarmos as diferenças entre os discursos das

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diversas cartas apresentadas. Dentro desta última temática, notamos um Eça lírico,

apaixonado por suas obras, obcecado pela perfeição da linguagem e, relativamente,

alheio às questões práticas como prazos para a entrega dos textos. Já em relação ao “Eça

empreendedor” (o artista, a obra e o mercado) vemos uma mudança radical em sua

postura. Há em sua correspondência a presença de um outro discurso, já não é mais o

artista quem fala e sim o “homem de negócios” que vê seus livros como mercadorias,

isto é, produtos perfeitamente comercializáveis. Transformá-los em capital, nestas

circunstâncias, torna-se algo de suma importância, pois o escritor passava por graves

problemas financeiros e suas obras tornavam-se, então, preciosas fontes de subsistência

para o romancista, atormentado pelas dívidas. Eis o fragmento de carta ao amigo

Mariano Pina, de 1888, que ilustra esta questão:

(...) Oh, meu caro Pina, pois no estado inicial desta empresa, que importava a homens de negócio (...) o saber qual é a cor da capa da Revista, e quantos centímetros tem de altura o volume? Oh, poeta!... O que importa a homens de negócio, é saber que garantia dão os fundadores da Revista; que poder de atrair o leitor têm os que nela colaboram; qual é a sensibilidade do mercado, neste momento, relativamente a publicações por assinatura; que capital é necessário fazer rolar; quantas vezes no ano é possível fazer passar esse capital; que comissão há a dar aos intermediários; qual será a facilidade da cobrança no Brasil; a como está o câmbio; (...) por aí diante, no campo sempre dos cálculos de negócio. A grossura da Revista, a cor da capa, os centímetros de altura, o tipo mais ou menos faiado, tudo isso, querido Pina, são detalhes, meros detalhes para depois. (...) (Cartas, p. 188)

Se compararmos o fragmento anterior a esta passagem: “(...) estou indignado (...)

vocês não esperam pelas provas – e publicam o informe e o absurdo. (...) sacrificaram o

meu trabalho ao desejo de encher a revista de matéria (...) estou (...) com a vaidade

literária em brasa. (...)” (Cartas, p. 67) podemos depreender o contraste entre as falas. A

primeira, objetiva e calculista enquanto que a segunda, vaidosa e passional. São as

diferentes facetas do mesmo Eça de Queirós, só que em momentos diversos. O escritor

adapta seu discurso conforme a necessidade e a circunstância.

Diferentemente de seus personagens, em sua maioria pessoas ricas, Eça sofria

com as constantes dificuldades financeiras que enfrentava. Nota-se a oscilação de

temperamento: ora ele se mostra como um artista vaidoso, ora como um “capitalista”

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pronto para vender seu produto (livro). Talvez o escritor usasse em seus romances, com

freqüência, personagens ricos para de alguma forma extravasar um desejo de estar

naquela situação de abundância e riqueza. Tais dificuldades financeiras influenciavam a

produção artística do romancista, atrapalhavam-no, deixando-o atordoado e dividido

entre o seu compromisso com a arte e com a qualidade de seus textos – algo que

consumia tempo – e os prazos exigidos pelos editores, “homens de negócio” – prazos

esses que, quando respeitados, na maioria das vezes significavam entrada de capital para

o escritor. Tal sofrimento pode ser constatado em suas cartas que retratam a angústia do

escritor.

A seguir, outra passagem da correspondência querosiana, esta destinada a

Joaquim Pedro (1888). Nela encontramos um Eça empreendedor ao esboçar idéias para

a criação de uma Revista que seria uma “obra de caráter nacional”:

(...) É uma Revista – uma grande Revista (...) uma obra de caráter nacional (...) Eu desejo fazer dessa publicação, querendo Deus, uma verdadeira obra nacional, colaborada por tudo o que há de melhor, em todas as especialidades, e mostrando enfim que Portugal não é tão estúpido como por aqui se pensa. Demais a Revista seria o órgão dos nossos interesses, perante a Europa (...) a Revista penetraria em todas as chancelarias da Europa, e nos gabinetes de todos os homens importantes desde Bismarck até o Papa! (...) (Cartas p. 251)

Podemos identificar no fragmento apresentado que mesmo tratando de negócios

Eça, aqui, ainda mantém uma explícita preocupação com a qualidade da Revista e com

aquilo que será veiculado, ou seja, seu conteúdo, pois nela constaria “(...) o que há de

melhor, em todas as especialidades (...)”. E ainda sobre essa Revista idealizada por Eça

de Queirós, três anos depois da carta anterior, o romancista escreve outra, desta vez a

Manoel da Silva Gayo, mencionando as dificuldades pelas quais atravessava a referida

Revista. Carta essa do ano de 1980. Vejamos:

(...) E agora faço-o para lhe anunciar as transformações que se deram na organização geral da Revista. Encontrei aqui este negócio em plena dificuldade. O prejuízo que ele estava dando não podia ser, segundo os bons princípios de comércio, sustentado por mais tempo pela casa Genelioux. (...) eu próprio tive de consentir na reforma do contrato e em consideráveis sacrifícios de interesses. (Cartas, p. 391 e 392)

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Mais uma vez percebe-se, além da lúcida visão comercial de Eça, a presença das

dificuldades financeiras, problema que freqüentemente o acompanha e o perturba. Esses

problemas econômicos têm grande relevância na vida do escritor uma vez que, para

além de todas as dificuldades que eles trazem, atrapalhavam ainda a sua capacidade de

criar. As dificuldades financeiras enfrentadas por Eça de Queirós e como isto se refletia

em sua produção artística é o nosso próximo tema, pois sua postura empreendedora e de

“homem de negócios” está atrelada a essas dificuldades financeiras e ao grande desejo

do escritor de superá- las. Vejamos como isto se dá em sua correspondência.

Nota-se um transbordamento dessas questões, reais e concretas, para a produção

textual de Eça. O personagem Fradique Mendes do romance A Correspondência de

Fradique Mendes talvez fosse o seu ideal de homem e de estilo de vida, quem sabe um

reflexo de como Eça de Queirós desejasse viver... Viagens, luxo, ausência de problemas

monetários, enfim, uma vida serena dedicada ao conhecimento do mundo, às leituras, às

discussões de temas mais elevados como se pode constatar através da passagem da obra

mencionada:

Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha família dos Açores; e descendia por varonia do navegador da casa da Troba, e donatário duma das primeiras capitanias criadas nas Ilhas por começos do século XVI. Seu pai, homem magnificamente belo, mas de gostos rudes, morrera (...), dum desastre, na caça. Seis anos depois sua mãe, senhora tão airosa, pensativa e loura (...) morria também duma febre trazida dos campos, onde andara bucolicamente (...). Carlos ficou em companhia e sob a tutela de sua avó materna, D. Angelina Fradique (...). (...) Sabia[-se] apenas que Fradique, livre e rico, saíra (...) a começar uma existência soberba e fogosa. Com um ímpeto de ave solta, viajara logo por todo o mundo, a todos os sopros do vento(...). Nestas jornadas (...) achara-se envolvido em feitos históricos e tratara altas personalidades do século. (...)91

O romancista português sentia-se incomodado diante da situação de dificuldade

que enfrentava. Mais que incomodado, vivia oprimido e angustiado com tamanhos

problemas que, por vezes, pareciam insolúveis. Esses problemas podem ser

91 QUEIRÓS, 1902, p. 14, 16 e 17.

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identificados em diversas cartas do autor aos seus amigos. Para estes, as dificuldades

financeiras de Eça não eram segredo. Elas exercem papel relevante na produção artística

queirosiana, uma vez que o escritor tinha como fonte de renda também a sua literatura,

porém como escrever com tantas pressões, enfrentando tamanhos problemas

monetários? Conforme passagem já explicitada, “(...) as dívidas (...) vingam-se (...)

torturando-me. (...) Não sei (...) como me resta coragem (...).” Essas adversidades

dificultavam a produção literária de Eça de Queirós, produção essa que parecia

configurar-se segundo os padrões capitalistas, industriais, com muito trabalho e quase

nenhum descanso para o escritor/trabalhador das letras, pois obter o capital era

necessário e vital para o romancista português.

Podemos observar que além de expor seus problemas financeiros ao amigo

Ramalho Ortigão, Eça desenvolve, em sua missiva, toda uma dramaticidade ao discorrer

sobre a temática principal de sua carta. Nota-se que o escritor, consciente disto ou não,

coloca-se como o protagonista de uma narrativa dramática cujas nuanças são muito bem

trabalhadas pelo escritor durante o seu texto epistolar a fim de comover seu

destinatário/leitor.

Merece destaque um fragmento de outra correspondência endereçada a Ortigão,

também do ano de 1878. Nela, Eça de Queirós evidencia esse tom dramático e a

teatralização do seu próprio cotidiano, realizada através de sua correspondência.

Observemos o trecho abaixo:

Tomei devida nota da recomendação que (...) me faz de não lhe roubar o seu tempo com queixumes; já recebi de V. uma recomendação idêntica, quando há meses, lhe pedi algumas palavras amigas, num momento de abatimento moral: perdoe-me querido Ramalho, (...) fi- lo na inocência de minha alma: julguei que em qualquer dificuldade moral ou material um homem tinha o direito de interessar nela, o seu melhor e mais simpático amigo (...). (Cartas, p. 133)

Apesar de toda carga emotiva empenhada em sua missiva, Eça finaliza esse

assunto com o humor que lhe é peculiar, suavizando o tom dramático do texto,

encerrando-o com uma risonha autocrítica.

Destacaremos mais uma carta, também endereçada ao amigo Ramalho Ortigão

(que parecia ser grande apoiador e confidente do escritor), na qual percebe-se como Eça

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de Queirós de fato vivia afogado em dívidas, observando-se ainda as desastrosas

conseqüências disto. Segue o fragmento de correspondência do mesmo ano:

Eu como todo mundo tenho um orçamento: - o meu é assim - dum lado os meus rendimentos, do outro as minhas dívidas. As minhas dívidas - que eu quero pagar este ano - são este ano a minha despesa. (...) Parece pois que a minha situação é simples: é só não gastar os meus rendimentos, - e pagar as minhas dívidas. - Pois bem, a minha situação é desgraçada. (...) As dívidas serviram a Balzac para aprofundar o mundo bancário, agiota, notário, e forense: mas eu nem tenho essa consolação, que as dívidas me tragam a revelação de tipos essenciais: elas só servem para me envelhecer e me bestificar. (...) (Cartas, p. 118)

Assim parece clara a correlação existente entre os problemas financeiros e o

“trancamento” da mente do autor, como conseqüência. Diz-se “trancamento” referindo-

se ao bloqueio criativo que tais dificuldades causavam ne le em oposição a outros

escritores citados por Eça (como Balzac, por exemplo) que transformaram essa situação

crítica, sublimando a angústia e convertendo-a em criação. Entretanto, para Eça de

Queirós, as dívidas só serviam para o “bestificar”. Pode-se depreender desse termo,

utilizado pelo próprio escritor relacionando-o ao sentido mesmo de besta de carga,

trabalhador braçal, forma como se sentia Eça em oposição àquilo que ele de fato era,

isto é, um intelectual. Nestas circunstâncias logo se compreende o porquê de tamanhas

dificuldades vivenciadas pelo escritor, produzindo suas obras através de uma “prosa

forçada, arrancada das névoas da reminiscência”.

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2.2. A PAIXÃO PELA FORMA: EÇA E FLAUBERT

(...) Eu amo acima de tudo a frase nervosa, substancial, de músculo saliente (...); amo as frases machas e não as frases fêmeas (...). (FLAUBERT, 1993, p. 26)

Conforme já mencionado, há quem compare Eça de Queirós a Gustave Flaubert

afirmando-se ainda que este se configurou como fonte de inspiração para o escritor

português. De fato existem semelhanças se analisarmos, por exemplo, a

correspondência de ambos. É a partir desses textos epistolares que pretendemos

evidenciar essa proximidade existente entre os autores. Assim, com base nas cartas

desses escritores, uma característica mostra-se fundamental: a obsessão. Uma obsessão

que persegue, esgota e alucina: trata-se da obsessão pela perfeição formal da escrita. Os

textos, tanto de Eça quanto de Flaubert, são elementos sempre inacabados que precisam

de constantes alterações e reparos.

Essa paixão é levada até a exaustão pelo escritor francês, algo que também pode

ser notado em Eça de Queirós. Desse modo, pode-se depreender das missivas de

Flaubert a constante presença da metalinguagem ao expor não só sua obsessão pela

perfeição formal como também suas dificuldades de escrita, além da fabulação de suas

obras, planos de construção de futuros textos, projetos literários. Dados que se

manifestam também nas correspondências querosianas.

Sobre a paixão de Flaubert pela escrita, podemos citar carta do escritor a um ex-

professor de literatura, Gougaud Dugazon, que o estimulava a escrever. Nessa epístola

de 1842 o autor francês menciona ainda, esboçando certa insegurança, algumas obras

que pretende produzir:

(...) o que me freqüenta a cada minuto, o que me tira a pena das mãos quando estou tomando notas, o que me faz deixar o livro quando leio, é meu velho amor, é a mesma idéia fixa: escrever! É por isso que não faço nada, embora me levante bem cedo e saia pouco.

Cheguei a um momento decisivo, é preciso recuar ou avançar, tudo para mim está mesmo nisso. É uma questão de vida e morte. Quando eu decidir, nada irá me deter, nem que eu seja vaiado (...) por todo mundo. O senhor conhece bem minha teimosia (...) para ficar convencido do

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que digo (...). Eis o que decidi. Tenho na cabeça três contos de gêneros bem diferentes e cada um exigindo uma maneira bem particular de ser escrito. É o bastante para poder provar a mim mesmo se tenho ou não tenho talento.

Vou colocar aí tudo de que sou capaz em questão de estilo, de paixão, de espírito, e depois veremos. 92

Vale ressaltar ainda outra passagem, esta retirada de missiva a Louise Colet,

amante do escritor, de 1852:

Eu estou prestes a recopiar, corrigir e rasurar toda a primeira parte de Bovary. Os olhos me doem. Eu gostaria de ler com um só golpe de vista estas cento e cinqüenta e oito páginas e captá- las em todos os seus detalhes com um só pensamento. (...) Que coisa desgraçada que é a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre. (...)93

Flaubert era intenso, sua existência apresentava-se absolutamente envolvida com

suas obras, seus personagens. Tudo isso o tomava de forma a absorvê-lo grandemente.

Ainda assim, essa atividade tão exaustiva, a escrita, constituía sua grande paixão,

verdadeira motivação para viver. Segue fragmento de carta de 1846 destinada a Maxime

du Camp, amigo do escritor:

É estranho como eu nasci com pouca fé na felicidade. Eu tive, muito jovem, um pressentimento completo da vida. Era como um odor nauseabundo de cozinha que escapa por um respiradouro. Não é preciso ter comido para saber que vai nos fazer vomitar. Eu não me queixo disso, aliás; minhas últimas infelicidades me deixaram triste, mas não me surpreenderam. Sem perder nada da sensação, eu as analisei como artista. Esta ocupação [com a escrita] recriou melancolicamente minha dor. Se eu tivesse esperado coisas melhores da vida, eu a teria amaldiçoado; algo que não fiz. 94

Escrever configura-se como caminho possível para suportar o “peso da

existência” que, segundo Flaubert, parecia algo sem sentido e talvez a escrita (e

conseqüentemente o ato de refletir) justificasse essa existência. Observemos passagem

de correspondência a Alfred Le Poittevin, grande amigo do autor francês, do ano de

1845.

92 FLAUBERT, 1993, p. 25. 93 FLAUBERT, 1993, p. 77. 94 FLAUBERT, 1991, p. 29.

89

Trabalhe, trabalhe, escreva, escreva o quanto você puder, o quanto sua musa possa lhe arrebatar. Este é o melhor corcel, a melhor carruagem para trafegar na vida. O cansaço da existência não nos pesa mais nos ombros quando compomos. (...) 95

Queixas a respeito de sua própria vida e a escrita como provável solução ou

alternativa são indícios também encontrados nas missivas de Eça de Queirós. Tendo em

vista a importância que o ato de escrever tinha na vida de Flaubert, podemos constatar

que essa relevância é proporcional ao espaço que essa atividade detém em grande parte

das cartas desse autor. Assim, a metalinguagem perpassa sua correspondência de

diversas maneiras em diferentes momentos da sua vida. Isso pode ser notado desde as

mais simples e recorrentes queixas acerca das dificuldades ao escrever até exaltações da

arte e manifestações de vaidade artística, dentre outros elementos. A metalinguagem em

Flaubert (assim como em Eça) apresenta, portanto, muitas facetas. Vejamos algumas.

Numa de suas cartas o escritor francês apresenta um certo tom de teatralização,

pois parece colocar-se como personagem, protagonista de seu próprio texto. Segue

trecho de carta ao amigo Louis Bouilhet, de 1850:

(...) Eu me sinto tornar dia a dia mais sensível e mais emocionável. Um nada me põe lágrimas no olho. Há coisas insignificantes que me pegam pelas entranhas. Eu caio em divagações e distrações sem fim. Eu me sinto sempre um pouco como se eu tivesse bebido demais; por isso, cada vez mais inapto para compreender o que me explicam. Em seguida, grandes raivas literárias. Prometo a mim mesmo pândegas na volta. É isso. 96

Em outra epístola, enviada ao amigo Alfred Le Poittevin, em 1845, pode-se

perceber menos a vaidade artística e mais a consciência de estar produzindo algo de

qualidade (“base firme”) no intuito de elevar sua auto-estima, através de um movimento

de autovalorização proporcionado pela escrita que produzia e que demonstrava ser fonte

de orgulho e prazer para o autor (apesar de, em alguns momentos de cansaço,

“maldizer” seus próprios textos):

95 FLAUBERT, 1993, p. 28. 96 FLAUBERT, 1993, p. 43.

90

(...) A única maneira de não ser infeliz é encerrar-se na Arte e contar como nada o resto; o orgulho substitui tudo, quando está assentado sobre uma base firme. Quanto a mim, estou de fato muito bem, depois que aceitei estar sempre mal. Você não acha que há muitas coisas que me faltam e que eu jamais poderei ser tão magnânimo quanto os mais opulentos, tão terno quanto os mais apaixonados, tão sensual quanto os mais frenéticos? No entanto eu não lamento nem riquezas, nem o amor, nem a carne, e todos se espantam em me ver tão sábio. Eu disse à vida prática um irrevogável adeus. Eu não peço daqui em diante senão cinco ou seis horas de tranqüilidade em meu quarto, uma boa lareira de inverno e duas velas para me alumiar. (...) 97

Na passagem anterior nota-se também certo tom “teatral” quando Flaubert

lamenta não possuir uma série de características que parece considerar importantes

como ser “magnânimo”, “terno” e “sensual” e, ao mesmo tempo, diz estar “assentado

sobre uma base firme”, ou seja, a sua literatura, o que nos leva a crer que, na realidade,

tais qualidades acima mencionadas não demonstram ser tão importantes para o escritor.

Talvez este seja mais um “movimento cênico” de Flaubert para “dramatizar” e tornar

mais instigante sua epístola. Em outros momentos de sua correspondência o autor

francês “simula” um desespero em relação à produção de uma obra, porém o próprio

diz, por diversas vezes em várias cartas, que sabe bem o que fazer, que já possui um

plano de trabalho. Daí dizer-se que tal desespero demonstra ser dissimulado, mais uma

encenação presente em seu texto epistolográfico. Segue fragmento de carta a Colet de

1852 que, além do acima destacado, contém reflexões acerca da arte:

(...) A Bovary anda a passos de tartaruga; há momentos em que fico desesperado (grifo meu). Sessenta páginas quer dizer três ou quatro meses, e eu tenho medo que continue sendo assim. Que máquina pesada de construir que é um livro, e complicada sobretudo! (...) A arte é uma representação, nós só devemos pensar em representar. (grifo meu) É preciso que o espírito do artista seja como o mar, bastante vasto para que não se vejam os limites, bastante puro para que as reflitam até o fundo. 98

97 FLAUBERT, 1993, p. 27. 98 FLAUBERT, 1993, p. 82 e 83.

91

Esta teatralização evidenciada em Flaubert também se revela na correspondência

de Eça. Talvez neste, até pela forma com a qual a realiza, a encenação pareça algo mais

intencional, mais consciente. Quem sabe isto se desse pelo fato de Eça ter mais noção

do valor até, por que não dizer, mercadológico dessas cartas, além de um vivo desejo de

ficar “para a posteridade”, quem sabe? O escritor português tinha família, esposa e

filhos que dependiam totalmente dele. Sua saúde era frágil, preocupava-se com o futuro

dos seus descendentes queridos, como se vê em cartas à esposa Emília, sempre com

inúmeras recomendações. Flaubert parecia ser um homem mais livre. Não era casado

(mantinha apenas casos amorosos) e nem tinha filhos, somente uma sobrinha, muito

querida por sinal. Assim, a escrita não se configurava de forma tão evidente como fonte

de renda. Neste momento adentramos em outro ponto de destaque: os livros como

mercadoria. Ponto este que se liga a outro não menos relevante, as dificuldades

financeiras, estas enfrentadas por ambos, Eça e Flaubert.

Apesar de Flaubert só ter a sobrinha como parente mais próximo, ela exercia

papel semelhante ao de filha e, desse modo, o escritor não escapou das “agruras

monetárias” que, direta ou indiretamente, ela lhe causou. Nutrindo profundos e sinceros

sentimentos paternais em relação à Caroline, foi ao seu socorro quando o marido ficou

falido, arruinando-se também a fim de salvá- la. Observemos o trecho da carta do ano de

1875. Flaubert refere-se ao “sobrinho Commanville”, trata-se de Ernest Commanville,

marido de sua sobrinha Caroline. Vejamos o fragmento:

Minha última carta era “lúgubre” (...). Mas tenho

motivo para estar lúgubre, pois preciso dizer- lhe a verdade: meu sobrinho Commanville está absolutamente arruinado! E eu próprio vou ficar muito atingido.

O que me desespera nisso é a posição de minha pobre sobrinha. Meu coração (paternal) sofre cruelmente. Começam dias bem tristes: aperreios de dinheiro, humilhação, existência perturbada. É tudo de uma vez só e meu cérebro está aniquilado. Sinto-me incapaz do que quer que seja. Não me reerguerei (...). Fui atingido bem fundo. 99

Essa mesma sensação de impotência e aniquilamento gerada pelos problemas

financeiros também pode ser identificada nas cartas de Eça de Queirós. Flaubert, como

99 FLAUBERT, 1993, p. 244.

92

o escritor português, se vê perturbado diante das dificuldades monetárias, amargando

ainda “dias bem tristes” e sofrendo com “aperreios de dinheiro, humilhações”, enfim,

levando uma “existência perturbada” muito semelhante a de Eça. Tais problemas

financeiros, que acompanharam este último por grande parte da vida, levaram-no a

adotar uma postura bem clara em relação à sua obra, encarando seus “livros como

mercadoria”.

Nas cartas queirosianas tal pensamento pode ser encontrado de forma bem

explícita. Entretanto, nas missivas de Flaubert esta noção não parece tão evidente. Cada

plano explanado surge com um novo projeto, uma nova motivação para a sua vida não

necessariamente atrelado ao possível retorno financeiro que tal projeto poderia

proporcionar-lhe. Não se quer dizer com isso que o escritor francês fosse um completo

“ingênuo” ou um doce “sonhador”, desprezando em absoluto o dinheiro. Apenas se

deseja frisar que a idéia em si parecia o mais importante. O ganho com as vendas seria

uma conseqüência.

E por falar em elementos característicos das cartas de Flaubert, há ainda outros

que merecem ser salientados. Lamentos a respeito da vida, autodepreciações,

rebaixamentos do valor artístico de suas obras e a paixão pela escrita são alguns dos

principais elementos presentes nas correspondências de Flaubert e também de Eça que

nos permitem estabelecer convergências entre eles. Vejamos ainda um dado recorrente

na epistolografia flaubertiana (e também muito presente na de Eça) que nos remete à

obsessiva preocupação do autor francês com sua escrita, base das reflexões

metalingüísticas dos dois escritores. Segue fragmento de carta a Louise Colet de 1852

que faz referência a outro tópico de destaque de nossa análise: a metalinguagem.

Observemos a passagem a seguir:

(...) Há sete ou oito dias que faço correções, tenho os nervos irritados. Eu me apresso e seria necessário fazer isto lentamente. Descobrir em todas as frases palavras que devem ser retiradas etc! é um trabalho árido (grifo meu), longo e no fundo muito humilhante. É aí que ocorrem aquelas pequenas mortificações interiores. (...) Eu não creio que a pena tenha os mesmos instintos que o coração. (...) Sim, é uma coisa estranha, a pena de um lado e o indivíduo do outro. (...) Ao ver o meu aspecto, acreditar-se-ia que eu deveria escrever epopéia, drama, fatos brutais, e o que me agrada é ao contrário, o tema

93

analítico, anatônico, se se pode dizer assim. (...) Os livros que mais ambiciono fazer são justamente aqueles para os quais eu tenho menos meios. (...) 100

É importante notar no trecho anterior a expressão empregada por Flaubert ao se

referir à escrita: “trabalho árduo”. Maneira semelhante, quase igual, à utilizada por Eça

de Queirós que por diversas vezes compara-se ao operário empurrando a “carriola da

arte”. A busca pelo “tema analítico”, como salienta o escritor francês, também é um

dado característico da obra queirosiana. Eça disseca questões, analisa e descreve com

uma precisão cirúrgica as mais diversas cenas.

Entre tantos pontos em comum, nota-se uma divergência entre Eça e Flaubert no

que diz respeito às missivas endereçadas às respectivas amadas, Emília de Castro e

Louise Colet. O primeiro parece não dialogar com Emília sobre suas produções e seu

processo criativo. Talvez Eça, como típico burguês, considerasse sua amada incapaz de

compreendê- lo, apesar dos inúmeros elogios relacionados ao porte, beleza, educação e

elegância de sua noiva e, posteriormente, esposa. Eça, portanto, parece refletir, através

de sua correspondência, um “aburguesamento” maior que Flaubert, não apenas em

razão deste ponto, mas também devido à linguagem, bem mais comedida e

“politicamente correta”, empregada nesses textos. O mesmo não se pode afirmar acerca

do escritor francês. Para começar, sua musa não seria “sua futura esposa” numa relação

institucional e respeitável, mas sua amante, situação não oficial e à margem do

socialmente aceito. Além disso, Flaubert não anula intelectualmente sua amada,

elogiando apenas seus atributos físicos ou sentimentais; ao contrário, estabelece com ela

profícuo diálogo sobre a gênese de suas diversas obras. Colet (como Flaubert a

chamava) parece ser uma mulher livre, à frente do seu tempo e que rompe com as

convenções sociais (diferentemente de Emília, moça recatada à espera de um

casamento), tem seu trabalho sendo, também ela, uma artista das letras, pois escreve

poemas.

Desse modo percebem-se relevantes diferenças existentes entre os dois tipos de

relacionamento amoroso mantidos pelos dois escritores, diferenças essas que se refletem

através dos conteúdos das cartas.

100 FLAUBERT, 1993, p. 78 e 79.

94

Nota-se no trecho abaixo que Flaubert vai expor as dificuldades do seu processo

de criação, em carta do ano de 1853:

(...) Deus! Como minha Bovary me chateia! Chego à convicção às vezes que é impossível escrever. Tenho que fazer um diálogo de minha mulherzinha com um padre, diálogo canalha e espesso (...). A idéia e as palavras me faltam. Tenho apenas o sentimento. (...) Depois de cada passagem, fico esperando que o resto vá mais depressa e novos obstáculos aparecem! 101

Apesar dessas pequenas diferenças não há como negar os evidentes pontos de

convergência entre os dois autores. Eça de Queirós e Gustave Flaubert, apesar de

nascidos em países diferentes, têm formas semelhantes de encarar a escrita. A entrega, o

envolvimento, o perfeccionismo e a obsessão pelo rigor formal são traços indeléveis

desses dois escritores e que os unem, neste trabalho, sendo possível estabelecer entre

eles essa aproximação.

101 FLAUBERT, 1993, p. 108.

95

3. CONCLUSÃO

Cabe aqui retomar uma pergunta realizada no início desse trabalho. Como os

autores conseguem produzir obras literárias tão bem escritas se, de modo geral, as

pessoas têm imensa dificuldade para escrever e organizar suas idéias? A resposta a que

chegamos não nos parece completa e definitiva mas, de modo parcial, pode ser

formulada. Através das passagens explicitadas e das leituras realizadas, concluímos que

as obras não são tão facilmente produzidas, como talvez possam parecer em seu

resultado final. Pelo contrário, por meio das reflexões metalingüísticas expostas nas

cartas de Eça de Queirós e Gustave Flaubert, assim como no romance A ilustre casa de

Ramires, observamos que a produção literária é algo penoso e cansativo que requer

trabalho e esforço enormes. Tais escritores, marcados pela modernidade que lhes é

peculiar, dessacralizam a figura do escritor como “ser iluminado” e desconstroem sua

“aura” ao introduzirem a noção do “trabalhador das letras”: nos novos tempos da

modernidade, vê-se a figura do “operário intelectual” incansável na produção frenética e

acelerada de suas obras.

Ao final desta pesquisa e análise, a escrita parece ter se tornado mais fascinante

e, apesar da revelação do seu processo, mostra-se ainda mais rica, enigmática e

instigante. Na correspondência dos autores, em especial na de Eça de Queirós, ela

denota diversas facetas. Nas cartas do escritor português acompanhamos as peripécias

do Eça empreendedor que, como um “homem de negócios”, buscava transformar suas

obras em produtos – livros – capazes de render lucro, numa tentativa de solucionar ou

amenizar os graves problemas financeiros por ele enfrentados. Finanças precárias e

dívidas atormentavam o autor, prejudicando sensivelmente sua produção artística. Em

contraposição ao materialismo presente nestes textos, em outros, dentro da própria

correspondência do escritor, encontramos um Eça passional, fortemente envolvido pela

feitura de suas obras a ponto de, por vezes, deixar de lado prazos e acordos em nome da

qualidade artística do texto que estava a produzir. Chegava a fazer acusações e a

proferir ofensas como “facínoras” e “assassinos” a alguns de seus destinatários,

colocando-se como “protagonista” de uma cômica ou trágica narrativa, em que

teatralizava o seu próprio cotidiano.

96

A preocupação com a perfeição formal dos textos levou-o necessariamente ao

exercício da metalinguagem, também detectada em sua epistolografia. Conforme se viu,

as cartas põem à amostra o processo de criação artística de Eça, revelando a escrita

como sinônimo de trabalho, numa incansável luta com a palavra. Em sua obra ela se

manifesta em especial com o personagem Gonçalo que, como escritor de uma novela

histórica (A Torre de D. Ramires), luta com a dificuldade da escrita em muitos

momentos da narrativa.

Diante do ato de compor, observamos que Gonçalo como narrador se coloca

numa posição diversa da de outro personagem, o “trovador” Videirinha. O primeiro é o

fidalgo representante da elite e da literatura escrita socialmente privilegiada, que busca

produzir um tipo de obra que seja valorizada no seu meio e que lhe dê o prestígio

necessário para a ascensão social. O segundo é um simples empregado de farmácia, de

origem humilde, sem grandes aspirações. Ele é o representante de outro tipo de

produção artística, a literatura oral, que em termos de status social não tem expressão.

Entretanto, tal fato não é um problema para o personagem que não associa sua produção

oral, sob forma de cantigas, à ascensão social ou ao poder. Sente-se gratificado apenas

com o fato de levar alegria às pessoas com sua música que conta um pouco da história

de alguns importantes personagens da região, inclusive os da família Ramires. É o

oposto da literatura escrita, erudita, individualizada, isolada e incomunicável, pois toca

o coração, emociona, interage e se aproxima da coletividade de maneira informal. Neste

jogo feito por Eça, vemos o contraponto do escritor (modelo da modernidade) com o

trovador (pré-modernidade), marcando duas formas de linguagem na cultura

portuguesa.

Ao trabalharmos A Ilustre Casa de Ramires, obra classificada naturalmente

como ficção, adentramos numa discussão sobre as fronteiras entre o real e o ficcional. A

motivação para tal debate originou-se a partir do caráter documental atribuído

tradicionalmente às cartas, vistas como representação de uma “realidade” e de uma

“verdade”. A leitura e análise deste material nos revelaram textos que vão muito além

dessa função meramente comunicativa e informativa, mostrando qualidades estilísticas e

de conteúdo, tal como encontramos em textos literários e artísticos. Também se revelam

como frutos de um processo de ficcionalização do real construído por Eça ao encenar

fatos do seu dia-a-dia num processo que subverte as fronteiras de “real” e “ficcional”,

97

realizando aquilo que chamamos de teatralização identitária em que estes limites não se

apresentam de forma clara, fundindo-se.

Algo semelhante também detectamos na epistolografia de Gustave Flaubert, uma

das razões de sua analogia com Eça. Mas, para além de simplesmente constatar as

semelhanças entre eles, o ponto fundante a ser destacado é a real importância que a

escrita demonstra ter na vida desses dois grandes artistas. Tal pode ser constatado pela

maneira como essa escrita se manifesta através das inúmeras reflexões metalingüísticas

que, conforme apresentado, revelam-se nas epístolas de ambos. Assim, este material

mostra-se relevante, fonte de estudo e pesquisa da gênese da produção artístico- literária

destes mestres da escritura.

Ao acompanharmos o processo criativo de Eça podemos melhor compreender a

complexidade que envolve o ato da escrita, as angústias e também alegrias desse ato

solitário e individual. Talvez não seja tão solitário quando ele dialoga com seus próprios

personagens ou com os amigos, exigindo- lhes críticas austeras ao trabalho

desenvolvido. Escritor, personagem, homem de negócios, racional, passional, reflexivo,

crítico, apaixonado, enfim, Eça de Queirós é um pouco de tudo isso e talvez não seja

nenhum destes “Eças”. Talvez seja um “outro” que jamais conheceremos.

De todo modo foi a sua genialidade que nos impulsionou a este estudo. A partir

do interesse por suas cartas, a fim de melhor se compreender a gênese de seu processo

criativo, abriu-se diante de nós um leque de possibilidades, revelando não somente a

elaboração da escrita do autor, mas ainda inúmeras facetas que viabilizam diversos

estudos e interpretações, inclusive no que tange ao questionamento do estatuto do real e

do ficcional. A curiosidade em se conhecer o como e o porquê da escrita e a sedução

pela palavra que cria mundos e nos faz viajar por eles são nossas fontes de interesse,

nossa motivação. Essa é uma busca que não se encerra por aqui. Este é apenas um

início, pois cremos que há ainda muito a descobrir.

98

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103

RESUMO

O presente trabalho realiza a leitura do romance A Ilustre Casa de Ramires e de uma seleção de cartas aos amigos de Eça de Queirós, buscando discutir e analisar a questão da escrita. A meta é refletir sobre a metalinguagem não apenas no que diz respeito ao ato de escrever, mas analisar igualmente a função que essa escrita revela no horizonte do personagem (protagonista do romance) e do escritor. Para tanto estuda as diversas facetas queirosianas presentes nas cartas aos amigos e a possível teatralização identitária aí existente, estabelecendo-se um diálogo com o personagem do romance numa tentativa de se relativizar e refletir sobre as fronteiras e o estatuto do real e do ficcional nos espaços do romance e da correspondência do autor. Como Gustave Flaubert é considerado referência e inspiração para Eça como romancista, desenvolve-se um contraponto com a correspondência produzida pelos dois, evidenciando as semelhanças e diferenças entre ambas.

104

ABSTRACT

The present work carries through the reading of the romance A Ilustre Casa de Ramires and an election of letters to the friends of Eça de Queirós, searching to argue and to analyze the question of the writing. The goal is to reflect on the metalanguage not only in what it says respect to the act of writing, but to analyze equally the function that this writing discloses in the horizon of the personage (protagonist of the romance) and of the writer. For such, it studies the diverses Queirós´s faces in the letters to his friends and the possible existing identifying theatricalization on them, establishing a dialogue with the personage of the romance in an attempt of relativizing and reflecting on the borders and the statute of the real and the fictional in the spaces of the romance and the correspondence of the author. Since Gustave Flaubert is considered a reference and inspiration for Eça as romancist, a counterpoint with the correspondence produced by the two is developed, evidencing the similarities and differences between both.

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