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MARCO ANTÔNIO MONTEIRO PEREIRA A METALINGUAGEM NO CINEMA: Um estudo do discurso metalingüístico presente na obra de Woody Allen Belo Horizonte 2007

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metalinguagem no cinema

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Page 1: A Metalinguagem No Cinema

MARCO ANTÔNIO MONTEIRO PEREIRA

A METALINGUAGEM NO CINEMA:

Um estudo do discurso metalingüístico presente na obra de Woody Allen

Belo Horizonte

2007

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MARCO ANTÔNIO MONTEIRO PEREIRA

A METALINGUAGEM NO CINEMA:

Um estudo do discurso metalingüístico presente na obra de Woody Allen

Belo Horizonte

2007

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social, do Departamento de Ciência da Comunicação do Centro Universitário de Belo Horizonte - UNI-BH, como requisito parcial para obtenção de título de bacharel em Jornalismo. Orientadora: Luiz Henrique Magalhães

Page 3: A Metalinguagem No Cinema

3

Agradeço a mim, aos estudiosos da arte, à indústria do tabaco

(sem os cigarros talvez não conseguisse finalizar este trabalho),

aos vendedores ambulantes, aos corajosos, aos subversivos, ao

meu orientador Luiz Henrique, pela paciência e o conhecimento

que tem e, é claro, ao pequeno grande neurótico Woody Allen.

Page 4: A Metalinguagem No Cinema

4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................5

1 A METALINGUAGEM ...........................................................................................8

2 A METALINGUAGEM NO CINEMA....................................................................24

3 WOODY ALLEN E A METALINGUAGEM…………………………………….37

CONCLUSÃO................................................................................................................53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS………………………………………………56

Page 5: A Metalinguagem No Cinema

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como propósito estudar a metalinguagem no cinema, a partir da

análise de filmes que utilizam a auto-referência e o artifício do “filme dentro do filme”,

ou seja, filmes que falam do próprio universo do cinema e dos mecanismos utilizados na

produção de um longa metragem. Para isso, o trabalho foi dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo, será abordada a questão da metalinguagem nas artes em geral

(literatura, artes plásticas, música, poesia, propaganda, teatro e cinema). Para introduzir

o assunto, será fornecido ao leitor o conceito do termo metalinguagem – o sentido

denotativo da palavra – encontrado em alguns dos principais dicionários da língua

portuguesa. Nessa primeira parte será abordada, portanto, a forma como o recurso

metalingüístico se manifesta nas diferentes artes, como o autor se refere a si próprio

dentro de sua obra, como ocorre o recurso da citação e como o autor se refere a si

próprio dentro de sua obra, como ocorre o recurso da citação e como o autor se refere à

arte que faz e os mecanismos utilizados para se produzir um poema, um quadro, uma

música etc. Será abordada também a relação do autor da obra com o espectador

(público).

Na segunda parte do trabalho serão abordadas as formas como a metalinguagem

se manifesta especificamente no cinema. Para isso, serão analisados filmes de diversos

diretores que, desde os primórdios da chamada “sétima arte”, utilizam o recurso da

metalinguagem. Quando o cinema ainda ensaiava seus primeiros passos, no início do

século passado, diretores já se preocupavam em envolver o espectador no sentido de

provocar identificação. O cinema, então, começava a perceber que uma eficiente

estratégia seria se auto-referir. Nesses primeiros anos, o inventário imagético do

espectador ou “enciclopédia intertextual” – termo proposto por Umberto Eco – estava

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ainda no começo de sua construção. Será abordada a definição do termo “enciclopédia

intertextual”, segundo a visão de Umberto Eco acerca dos mecanismos utilizados pelos

diretores de cinema para se referir a outros filmes, solicitando um conhecimento prévio

do espectador. Eco divide os espectadores em dois níveis de leitura, o “leitor ingênuo” e

o “leitor crítico”, e explica como cada uma dessas pessoas lê as obras cinematográficas

segundo a bagagem cultural e a experiência empírica que tem. Ainda nessa parte do

trabalho, serão analisados os diversos tipos de metalinguagem fílmica. Segundo Ana

Lúcia Andrade (1999), a metalinguagem pode se manifestar no cinema através de duas

formas básicas. A primeira acontece nos filmes que se referem ao universo

cinematográfico com ênfase na temática. É o caso dos filmes que tratam de biografia

dos atores, diretores ou pessoas ligadas à indústria do cinema. Este recurso pode ser

considerado simplesmente uma auto-referência. A segunda forma de metalinguagem no

cinema se dá quando num filme o discurso é explicitado em sua própria estrutura. Aí se

inclui também o recurso do “filme dentro do filme”. Com a pretensão de complementar

– ou esclarecer - as considerações de Andrade acerca do tema, neste trabalho se

encontram cinco subdivisões do que a autora chama de “o filme dentro do filme”. A

primeira subdivisão acontece quando um filme é mostrado dentro da narrativa de outro

filme com a intenção de ser apenas uma citação de outra obra, ou seja, uma referência; a

segunda acontece quando em um filme há duas narrativas diferentes que se entrelaçam.

Neste caso, uma narrativa complementa a outra, ou seja, o “filme dentro do filme” é

essencial para que a trama se desenrole – as duas narrativas têm, entre si, uma conexão

com o roteiro da obra. Ações e diálogos têm uma relação complementaridade; a terceira

se manifesta quando num filme é desvendado para o espectador os “mistérios” do

processo de produção de um longa-metragem. Trata-se de obras que apresentam ao

espectador o dia-adia de um set de filmagem e as angústias dos cineastas durante todas

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as etapas da produção cinematográfica: roteiro, escolha do elenco, produção, filmagem,

montagem e edição; a quarta subdivisão se refere a filmes que mostram a sala de

projeção e como a platéia se comporta dentro desse espaço – o autor (diretor) critica as

atitudes do público ao ver um filme e, com isso, o espectador se identifica com a obra,

já que se vê retratado nela; a quinta e última subdivisão funciona como o

distanciamento proposto pelo teatro épico. Trata-se de quando um personagem – ou o

próprio autor da obra – olha para a lente da câmera e dialoga com o público a respeito

da cena que está sendo rodada, estabelecendo uma relação de cumplicidade com o

espectador.

Para o último capítulo, que se refere à análise do material coletado, foram

escolhidos quatro filmes do diretor, ator e roteirista Woody Allen. Trata-se das obras:

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Crimes e

Pecados (1989) e Dirigindo no Escuro (2002). Primeiramente, será feito um breve

retrospecto da carreira do diretor. Em seguida, serão analisadas as diversas formas como

o cineasta utiliza o recurso da metalinguagem dentro dos filmes propostos. O artifício

metalingüístico é uma característica marcante na obra de Allen. Daí, a “dificuldade” de

alguns espectadores em compreender, ou decodificar, o conteúdo de seus filmes.

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A META-LINGUAGEM

O termo metalinguagem é muito amplo, pois se refere a toda leitura relacional,

equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem. Seriam infinitos

os exemplos de metalinguagem, já que, “enquanto extensão conceitual, linguagem

acerca de linguagem se refere a tudo desde que o homem é um animal simbólico, o ser

da fala” (CHALHUB, 1988, p. 8). A gramática, por exemplo, é um discurso

essencialmente metalinguístico porque se trata do código explicando o próprio código

(WALTY, 1999). Roman Jackobson, em seus estudos sobre as funções da linguagem,

considera função metalinguística quando uma linguagem fala dela mesma: “Sempre que

o remetente e/ou destinatário tem necessidade de verificar o mesmo código, o discurso

focaliza o Código; desempenha uma função METALINGUÍSTICA” (JAKOBSON

apud WALTY, 1999, p.12).

Quando consultamos o dicionário para nos inteirarmos do significado da palavra metalinguagem, estávamos nos valendo da função metalinguística, pois o dicionário é um repertório de palavras sobre palavras, à disposição do falante, nativo ou não. É interessante registrar, contudo, que o que parece ser uma mera lista de palavras no seu sentido denotativo, mais corriqueiro e imediato, já contém potencialmente a múltipla carga de significações e, consequentemente, de sedução da lingua (WALTY, 1999, p. 12).

De acordo com Samira Chalub (1988), o processo metalinguístico se define por

uma “leitura relacional”. Ou seja, manifesta-se quando se utiliza sistemas de signos de

um mesmo conjunto, onde as referências apontam para si próprias. Em outras palavras,

a metalinguagem é uma função da linguagem que permite explicar a estrutura de um

objeto. Quando analisamos as características próprias de uma determinada linguagem, -

numa operação de conhecimento - e traduzimos essas peculiaridades, na tentativa de

dizer sobre tal linguagem, como é e como funciona, nos deparamos com a

metalinguagem. Em uma operação em que uma linguagem A se refere a uma linguagem

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B, cujos signos são constituídos da linguagem A, deparamo-nos com a metalinguagem

(CHALUB, 1988).

O prefixo meta pode expressar diversas idéias, dependendo da palavra em que ele

se encontra. Conforme o Dicionário Etimológico Nova Fronteira, o prefixo meta

“expressa as idéias de comunidade e participação, mistura ou intermediação e sucessão”

(WALTY e CURY, 1999, p. 11). Na palavra metamorfose, por exemplo, o prefixo meta

denota o sentido de sucessão, de transformação e mudança de forma ou estrutura. Já na

palavra metalinguagem o referido prefixo transmite a idéia de participação ou mistura

(WALTY E CURY, 1999). De acordo com o dicionário Aurélio, a metalinguagem é a

linguagem utilizada para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de

significação: todo discurso acerca de uma língua, como as definições dos dicionários, as

regras gramaticais, etc. O Aurélio diz ainda que a função metalingüística é a função da

linguagem em que o código se apresenta como objeto de descrição. “A função

metalingüística reenvia o código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos”

(WALTY e CURY, 1999, p.12)”.1 O código é um sistema de convenções explícitas e

socializadas, pelo menos ao nível de um determinado grupo humano. Ele estabelece

uma relação arbitrária entre o que se deseja comunicar e o processo pelo qual se

consegue essa comunicação. O processo de codificação é um acordo entre os

utilizadores do signo, que reconhecem a relação entre o significante e o significado e

que a respeitam no emprego do signo. O entendimento de uma mensagem (fatos,

relações, imagens, figuras, idéias ou conceitos) através de códigos, portanto, pressupõe

um conhecimento prévio de quem está lendo2 (LAVRADOR, 1984). Portanto, a

compreensão do recurso da metalinguagem exige um processo de codificação por parte

do leitor. 1 É preciso destacar a diferença entre língua e linguagem. Toda língua é linguagem, mas nem toda linguagem é uma língua. A língua é uma linguagem verbal. 2 Ler no sentido de receber uma determinada mensagem, de qualquer natureza – seja ela, impressa ou audio-visual.

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Umberto Eco analisa esta questão da recepção do leitor em seu ensaio “A

inovação no seriado”. Eco diz que existem o “leitor de segundo nível” ou “leitor

crítico”, que consegue reconhecer os códigos e estratégias da narrativa, e o “leitor de

primeiro nível” ou “leitor ingênuo”, o qual tem uma visão mais superficial daquilo que

está lendo. Segundo Eco (1989), o que faz um leitor ler criticamente ou não

determinado texto é a sua “enciclopédia intertextual”, ou seja, o repertório cultural do

indivíduo. O leitor deve possuir “não somente o conhecimento dos textos, mas também

um conhecimento do mundo, ou seja, das circunstâncias externas aos textos” (ECO,

1989, p. 127). Portanto, o conhecimento dos textos anteriores é pressuposto necessário

para a compreensão do texto com o qual o leitor se depara. Quando temos textos que

citam ou fazem referência a outros textos, é preciso que se conheça os textos anteriores

para a antecipação do texto em exame. Isto é o que Eco denomina enciclopedia

intertextual. Este assunto será desenvolvido mais adiante, quando será abordado o

inventário imagético do espectador - termo formulado por Ana Lúcia Andrade. De

acordo com Samira Chalub (1988), o que um emissor ou um receptor forem capazes de

organizar, relacionar, criar ou perceber enquanto novas formas de combinação diz

respeito à noção de repertório (bagagem teórica ou cultural). A noção de repertório é

importante para se perceber a postura de um determinado leitor diante de um texto ou

objeto artístico. Uma pintura figurativa, por exemplo, é mais “compreensível”, porque a

figura representa algo já conhecido do repertório do público.

A variabilidade ou relatividade do repertório – que, grosso modo, podemos conceituar como sendo o “arquivo cultural” de cada um de nós – implica uma relação dialética entre repertório e informação. Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e formas já adquiridos pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cultura, o público se amplia, na medida em que este conhecido repele o novo e traz à tona o velho (CHALUB, 1988, p.15).

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Maria Nazareth Soares Fonseca afirma que ler é uma atividade produtora de

sentidos, mas ler criticamente é metalinguagem, “é descrever os processos de feitura do

texto com o auxílio de um referencial teórico que sirva de alicerce e de sustentação de

pontos de vista” (FONSECA apud WALTY e CURY, 1999, p. 7 e 8). Ou seja, a

metalinguagem muitas vezes é um olhar crítico sobre um texto, do qual se analisam os

elementos estruturais. “A maioria das produções culturais vale-se desse processo auto-

reflexivo” (WALTY e CURY, 1999, p.24). Um livro sobre metalinguagem é um livro

metalingüístico, assim como uma música que fala sobre fazer uma canção

(CHALHUB,1988). Como exemplo, podemos citar a música Samba de uma nota só, de

Tom Jobim: “Eis aqui este sambinha, feito de uma nota só/ Outras notas vão entrar, mas

a base é uma só...”. A melodia realiza exatamente o que diz a letra, pois esses versos

são, de fato, cantados numa só nota musical. Essa manipulação explícita dos recursos

musicais configura a função metalingüística presente na canção. E a intenção do

compositor era mostrar ao público uma nova concepção de música popular, que

incorporava à melodia a dicção da fala, estilizada na repetição insistente da mesma nota

musical.3 (informação extraída do site: www1.folha.uol.com.br/folha/educação). O próprio

texto que o leitor está lendo neste momento é um texto metalingüístico, já que é uma

análise do recurso da metalinguagem, escrita por um estudante que interpretou a

linguagem de autores que se basearam em outros autores, e assim por diante.

Viver/Escrever: duas faces da mesma moeda? Fica a pergunta para as possíveis respostas, já que tudo o que se escreve sobre o assunto não se esgota, pois sempre se escreve sobre textos. Nossa escrita é nossa leitura. Escrever sobre textos, no múltiplo sentido da palavra sobre: “a respeito de” e “em cima de”. E isso foi também nós que fizemos: escrever textos sobre textos, ampliando essa rede metalinguística que também é entretecida por você, leitor: de nosso texto, dos textos que ele contém, de outros que você leu e da queles que escreve enquanto lê (WALTY, 1999, p. 128 e 129).

3 Informação extraída do site: www1.folha.uol.com.br/folha/educação.

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Segundo Jakobson apud Chalub, a lógica moderna aponta para uma linguagem-

objeto, que se refere à nomeação das coisas, e a uma metalinguagem, cujo objeto é a

linguagem-objeto. Quando o emissor e o receptor precisam verificar se o código que

utilizam é o mesmo, o discurso está desempenhando a função de se auto-referencializar.

Na sala de aula, por exemplo, a relação professor – aluno é uma relação metalingüística,

pois ambos estão utilizando códigos de uma mesma linguagem. Quando um professor

tenta explicar algo ao aluno, “o que se faz é sempre uma operação substitutiva –própria

do código – fornecendo informações sobre o código de uso” (CHALUB, 1988, p.27). O

processo de tradução de uma língua para outra é um trabalho de operação

metalingüística com o código. Quando um poeta traduz um poema, não é somente o

código que está em questão, mas também a mensagem estética. É a metáfora, com seu

sentido conotativo – diferente do dicionário, que estabelece o sentido denotativo, que é

convencionado. Na literatura, há textos narrativos que trabalham os significados dos

termos, tentando explicá-los figuradamente, ampliando sua rede de significações, já que

expõe outros sentidos aos termos que não os que estão no dicionário (CHALUB, 1988).

“A tradução transcriativa procura a “invenção” da mensagem sensível, tradução de

forma” (CHALUB, 1988, p. 28).

A função metalinguística se encontra contextualizada em articulação com as

outras funções da linguagem, principalmente a função poética (CHALUB, 1988). A

música Metáfora, de Gilberto Gil, estabelece esse jogo metalinguístico. O autor brinca

com a palavra metáfora, figura fundamental na poesia, e relaciona a palavra ao fazer

poético. A metáfora, palavra em que o prefixo meta tem o sentido de substituição,

transporte, consiste na “aproximação analógica de dois termos diferentes na criação de

um terceiro com maior carga semântica” (WALTY e CURY, 1999, p.24). Nessa

música, que é um poema, Gilberto Gil explora o termo meta de várias formas. Utiliza-o

ora como prefixo da palavra metáfora, ora como verbo – como sinônimo de pôr dentro,

colocar -, ora como substantivo – no sentido de um objetivo a se alcançar. O compositor

transforma, assim, o próprio termo meta em uma metáfora.

Metáfora Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: "lata" Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo Mas quando o poeta diz: "meta" Pode estar querendo dizer o inatingível

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Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudonada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha caber O incabível Deixe a meta do poeta, não discuta Deixe a sua meta fora da disputa Meta dentro e fora, lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora (GIL, 1982)

O cinema, os quadrinhos, a propaganda, as artes plásticas, a música e a literatura

fazem amplo uso da função metalingüística. “Quando um escritor escreve um poema e

discute o seu próprio fazer poético, explicitando procedimentos utilizados em sua

construção, ele está usando a metalinguagem (WALTY, 1999, p. 16)”. Como se pode

observar no seguinte poema de Manuel Bandeira:

Eu faço versos como quem chora

De desalento… de desencanto…

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…

Tristeza esparsa…remorso vão…

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

(BANDEIRA apud WALTY, p. 16)

O poeta, ao escrever o poema acima, expõe seu conceito de poesia, retratando

através de sua obra a função catártica do fazer poético – ou seja, um meio de se purgar

os sentimentos, de aliviar os sofrimentos vividos pelo autor. Fundem-se em seus versos

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as noções de poema e vida e, paradoxalmente, a de representação da morte. Neste texto,

o poeta não se distingue do eu lírico, já que avisa para o leitor, logo de início, que ele

mesmo é o autor.

A intertextualidade também é uma forma de metalinguagem, já que se toma como

referência uma linguagem anterior. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, utiliza

esse recurso, aludindo em seus textos a outros textos pertencentes à sua própria obra.

Isto acontece em “Procura da Poesia”. O poema é um modo de reescrever

explicativamente (mas não explicitamente) “Poema de sete faces”, “No meio do

caminho”, “Confidências de um Itabirano”, “Os mortos de sobresaca” e “Mãos dadas”.

Procura da poesia Não faça versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a

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memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

(DRUMMOND, 1945)

Repare que, nas duas primeiras estrofes do poema acima, Drummond se refere a

“Poema de sete faces”, também de sua autoria:

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.

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O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.

O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

(DRUMMOND, 1930)

Na terceira e sétima estrofes de “Procura da poesia”, o autor faz uma alusão – ou crítica

- a “Confidências de um Itabirano” – poema que apresenta um forte caráter

autobiográfico (tema que será abordado mais adiante).

Confidências de um Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

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E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil, este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

(DRUMMOND, 1940)

Drummond utiliza, assim, um procedimento autotextual, refazendo algumas

inquietudes de seu trabalho poético (CHALUB, 1988). O escritor também faz referência

a obras de outros autores. Em seu livro Farewell, por exemplo, toma como tema de

alguns poemas quadros famosos, apropriando-se inclusive de seus títulos. Assim fala de

O grito, conhecido quadro de Edward Munch: “a natureza grita, apavoradamente. Doem

os ouvidos, dói o quadro” (ANDRADE apud WALTY e CURY, 1999, p. 18). De

acordo com Samira Chalub , na literatura sempre haverá esse diálogo intertextual, já que

a metalinguagem é sempre um processo relacional entre linguagens.

É importante refletir um pouco sobre o processo enunciativo das narrativas auto-

biográficas e seu caráter metalinguístico. Estas narrativas investigam o lugar ocupado

pelo autor, pois mesmo sendo factual, expondo memórias verdadeiras, não escapam do

ficcional (WALTY, 1999). “O pacto auto-biográfico presente nas memórias propõem

uma identidade entre o autor empírico, com seu nome na capa, e o narrador que é

também personagem” (WALTY, 1999, p. 43). Em O Ateneu, de Raul Pompéia, o autor

descreve as mazelas sofridas por ele mesmo durante sua infância na escola. Para isto,

ele cria um personagem chamado Sérgio, um menino pobre que ganha uma bolsa para

estudar em um colégio aristocrático. Lá o menino recebe todo tipo de punições e

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humilhações. Raul Pompéia, curiosamente, ilustra todo o seu texto com desenhos feitos

por ele mesmo a lápis creon. O autor, portanto, utiliza sua obra para purgar seus

sentimentos, numa atitude catártica de recorrer às suas memórias e reproduzí-las numa

obra fictícia. O livro Batismo de Sangue, de Frei Beto, também possui uma forte carga

autobiográfica, à medida que o autor expõe acontecimentos de sua própria vida,

ocorridos durante o período da ditadura militar.4 Entretanto, esta obra é escrita na forma

de um documentário. Não é uma estória fictícia, e sim uma história real, elaborada

através de relatos de Frei Beto. Isto é o que diferencia Batismo de Sangue de O Ateneu,

do ponto de vista autobiográfico.

O procedimento ou recurso metalingüístico se manifesta de diversas formas na

narrativa literária. E uma das mais instigantes é aquela que envolve o processo

enunciativo. Por isso, é necessário compreender os conceitos de enunciado e enunciação

(WALTY, 1999). “A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos

socialmente organizados. Toda palavra tem duas faces: ela procede de alguém e se

dirige para alguém” (BAKTHIN apud WALTY e CURY, 1999, p. 39 e 40). De cada

processo enunciativo ocorre, conseqüentemente, um ou mais enunciados. O enunciado

é, portanto, o produto de uma enunciação e pode conter outras enunciações. Ao escrever

uma reportagem, por exemplo, um jornalista, enunciador, constrói a notícia, que é um

enunciado onde pode incluir falas de outras pessoas (outros enunciados dentro do

mesmo enunciado). O processo de enunciação literária é complexo, pois envolve uma

gama de sujeitos enunciativos. São eles: o autor empírico, o autor implícito, o narrador e

as personagens (WALTY, 1999).

Quando um autor se projeta dentro de sua própria obra, também aí há o uso da

metalinguagem. Maurício de Souza, por exemplo, na elaboração de seus quadrinhos,

4 Batismo de Sangue ganhou o prêmio Jabuti em em 1985 - e foi transformado filme em 2006, com a direção de Helvécio Ratton.

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usa e abusa do procedimento metalingüístico. Em muitas de suas histórias, o autor se

faz personagem, contracenando com seus heróis, - ou seja, o criador se misturando à

criatura. O cineasta Alfred Hitchcock também utiliza esse recurso, quando se mistura às

personagens, fazendo uma pequena ponta em seus filmes de suspense. A aparição de

Hitchcock em seus filmes equivaleria à sua assinatura de autor (WALTY e CURY,

1999). Como veremos, o roteirista, diretor e ator Woody Allen também aparece em seus

filmes, porém quase sempre como um dos personagens principais. A aparição de Allen

na tela não é apenas uma assinatura, mas é algo indispensável para o desenrolar da

trama.

No cinema, a metalinguagem se manifesta por meio da análise de filmes em que

“o narrado se configura como questionamento da própria linguagem utilizada pelo

filme” (WALTY e CURY, 1999,). No filme Sonhos, de Akira Kurosawa, o episódio

“Os corvos” mostra a relação da obra com seu produtor e receptor: um rapaz que visita

o museu entra em um dos quadros de Van Gogh e dialoga com o pintor. Há aí um jogo

de sujeitos: o diretor do filme, o espectador do museu, Van Gogh, e o espectador

empírico (que está assistindo ao filme).

Nas artes plásticas, a metalinguagem se dá através da investigação de elementos

produzidos com motivação estético-literária, assim como no cinema. Em alguns

quadros, um pintor também utiliza a metalinguagem, como em As Meninas, quadro de

Diego Velásquez, onde o autor se retrata pintando um quadro, com o pincel e a palheta

nas mãos. “Num jogo de olhares com o espectador, ele o traz para dentro do quadro,

deslocando lugares instituídos. È a pintura retratando o ato de pintar” (WALTY, 1999,

p. 23). Nesse quadro, o pintor retratado na tela olha para frente, e não para as meninas,

que estão ao seu lado. Este pintor pode estar olhando para um modelo à sua frente ou

para o próprio espectador (quem está diante da obra). Á primeira vista, não é possível

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20

ver o que está sendo pintado na tela que se encontra no canto esquerdo do quadro - o

espectador vê somente a parte de trás do quadro que o pintor/personagem está pintando.

Mas, se observarmos com atenção o fundo do cenário em que situa as personagens, há

um espelho que reflete duas pessoas – os modelos para os quais o pintor olha. É

estabelecido aí, portanto, um jogo entre o autor (Velásquez), o pintor – que é

representado dentro da obra –, os personagens, as imagens e o espectador que está

diante da obra.

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. (FOUCALT, 1999, p. 20)

 Las Meninas, de Diego Velásquez 

Também o pintor Mauritus Cornelis Escher atua metalingüisticamente, quando faz

um desenho que, tal qual uma espécie de círculo vicioso, desenha a si mesmo, fundindo

no espaço da tela as noções de produto e produtor da obra. Uma mão desenha outra, ao

mesmo tempo que também está sendo desenhada. Percebe-se aí a utilização do recurso

metalinguístico, à medida que o criador se confunde com a criatura:

Page 21: A Metalinguagem No Cinema

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Norman Rockwell, pintor e ilustrador norte-americano, no quadro a seguir,

representa ele mesmo pintando seu auto-retrato. O espelho e os auto-retratos de outros

pintores reforçam a atmosfera metalinguística da obra. O homem sentado na cadeira é o

próprio Norman Rockwell, olhando para sua imagem refletida no espelho. Esta, por sua

vez também olha para o autor. O auto-retrato que vemos na tela é uma representação do

que o autor está vendo no espelho. Nesta obra, há um complexo jogo metalingüístico,

articulado pelo autor da obra (autor empírico), o autor representado na obra

(autor/personagem), a imagem do autor refletida no espelho, o auto-retrato que está

sendo pintado e os auto-retratos de outros autores:

Page 22: A Metalinguagem No Cinema

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A publicidade utiliza constantemente o recurso da metalinguagem. No comercial

das sandálias havaianas, em 1997, Chico Anísio discute com o diretor de filmagens,

dizendo que todas as características do produto já foram mencionadas em comerciais de

anos anteriores. Assim, a propaganda, ao mesmo tempo em que mostra a forma como é

feita, constitui-se do conjunto das propagandas anteriores, reafirmando a qualidade do

produto. Na propaganda do Sprite, percebe-se uma crítica à própria linguagem

publicitária. O comercial mostra um homem que foge aos padrões de galã sendo

assediado por mulheres enquanto bebe o citado refrigerante. No desfecho do video, o

personagem diz: “Imagem não é nada. Sede é tudo. Beba Sprite.” (WALTY e CURY,

1999). A publicidade comumente utiliza o “belo” para seduzir o consumidor. Neste

comercial, o anunciante contraria aquilo que geralmente é usado na publicidade,

jogando com o “feio” no intuito de produzir algo cômico – provocar o riso – e reforçar a

qualidade do produto. É uma sátira ao padrão estético próprio da linguagem publicitária,

feito por uma agência de publicidade – portanto, constitui-se metalinguagem. Na lata de

azeite Carbonell, observa-se a figura de uma camponesa que mostra, em sua mão, uma

lata de azeite Carbonell. Esta lata, por sua vez, reduplica a camponesa, que mostra o

azeite Carbonell, e assim por diante, até o ponto zero, onde não mais enxergamos a lata

de azeite Carbonell que a camponesa mostra.(CHALUB, 1988). A metalinguagem pode

se manifestar, portanto, como num jogo de espelhos.

É possível encontrar traços de metalinguagem no Teatro Épico, de Bertold Brecht.

O teatro brechtiano tem como alicerce o distanciamento, produzido entre encenação e

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platéia. Trata-se de uma relação entre o ator e o público que está assistindo à encenação.

Nas peças de Brecht, ao atores se preocupam em deixar bem claro para a platéia que

aquilo que está sendo visto é apenas uma encenação, não é realidade. O Teatro Épico

funciona como o oposto do Teatro Realista/Naturalista, que pretende convencer o

público de que o que está sendo representado é real. Preservando a “magia” do teatro, o

realismo teatral introduz uma “quarta parede”, que separa os atores da platéia. Já no

Teatro Épico de Brecht, a quarta parede é quebrada. Os personagens das peças

brechtianas são também narradores. Os atores devem, no decorrer da trama, se despir do

personagem e narrar o que está acontecendo na estória, porém como se estivesse fora da

cena. Enunciador e enunciado se confundem. É o teatro falando dele mesmo. A isso se

dá o nome de distanciamento. 5 O gênero épico no teatro é, portanto, essencialmente

metalingüístico.

Em síntese, a função metalingüística centraliza-se no código. Na metalinguagem,

o código fala do código. É linguagem falando de linguagem, é música dizendo sobre

música, é literatura sobre literatura, é palavra da palavra, é teatro “fazendo” teatro.

Aprender uma língua também é operar metalinguisticamente (CHALUB, 1988).

“Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem. O objeto –

a linguagem-objeto – dessa metalinguagem é a obra de arte, sistema de signos dotado de

coerência estrutural e de originalidade” (CAMPOS apud WALTY e CURY, 1999, p.

11).

Uma operação de conhecimento acerca de algo é, na relação eu-outro, uma tradução de linguagem, onde um termo A – que podemos considerar como a emissão que organiza os signos referentes ao objeto, operando um conhecimento acerca desse mesmo objeto – descreve, explica, identifica, reproduz/produz, cria, equaciona, equivale a um termo B. [...] Em termos gerais, a isso denominamos metalinguagem (CHALUB, 1988, p.7).

5 Como exemplo, podemos citar a peça Mãe Coragem e seus filhos, um drama político. A estória ocorre durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Trata-se da estória de uma mulher que lucra com a guerra, vendendo mantimentos aos guerrilheiros. Porém seus filhos acabam morrendo em decorrência da mesma guerra. Antes das cenas começarem, a platéia recebe avisos do que vai ser tratado no enredo. Os atores trocam de papéis e de figurino, revelando ao público o próprio fazer teatral.

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A META-LINGUAGEM NO CINEMA

A arte do século XX apresenta como uma de suas principais características a

capacidade de auto-reflexão, e o cinema, como forma artística moderna, não poderia

deixar de se auto-referir, através do que os teóricos do discurso denominam

metalinguagem (ANDRADE, 1999).6 Quando essa arte ainda ensaiava seus primeiros

passos, cineastas percebiam que uma das abordagens mais fascinantes do cinema

poderia ser ele próprio. O cinema industrial norte-americano, ou seja, aquele voltado

para o grande público, ainda que incipiente, já se preocupava em envolver o espectador

no sentido de causar reconhecimento, identificação. Em 1901, Robert W. Paul, da

Companhia de Thomas Edison, realizou o filme The Countryman and the

Cinematograph (O Caipira e Cinematógrafo – EUA - 1901). Este filme é um bom

exemplo de quando o cinema começou a olhar para si mesmo, surpreendendo-se com a

possibilidade de se auto-retratar diante do público:

Plano médio. Palco de um teatro com uma tela de projeção à direita do quadro. Um homem de pé à esquerda observa a tela a seu lado na qual aparece a imagem de uma bailarina dançando. O homem também dança acompanhando os movimentos da bailarina. A tela escurece, o homem olha para a frente, como se conversasse com uma suposta platéia diante dele. Surge então na tela a imagem de um trem como se viesse em direção ao homem. Ele se assusta e sai correndo, deixando o quadro. Novamente a tela escurece e o homem retorna vendo surgir a imagem de um casal namorando. O homem se surpreende ao reconhecer a si próprio na tela e, entusiasmado, sorri para a suposta platéia (ANDRADE, 1999, p.15)

Neste fragmento do filme de Paul verificam-se várias estratégias de utilização da

metalinguagem. Há referência ao estilo do teatro de variedades do início do século XX,

em que num mesmo programa eram apresentados vários filmes curtos. Além disso, o

6 O recurso da auto-reflexão já existia há muitos séculos atrás, mas é no século XX que esta prática se torna mais comum.

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diretor faz uma citação a um dos primeiros filmes exibidos da história do cinema, A

Chegada do Trem na Estação (Arrivée d’um Train em Gare à La Ciolat - França –

1895), dos irmãos Lumiére. Diz a lenda que na exibição deste filme o público fugia

assustado com a perspectiva de o trem vir em sua direção, assim como o personagem

“caipira” faz no filme de Paul. A reações do “caipira” fazem uma alusão, portanto, à

recepção do público perplexo diante das primeiras projeções das imagens em

movimento, além de representar o processo de identificação do espectador com a

personagem – isto se verifica quando o caipira se reconhece dentro da tela. E,

finalmente, há nesse filme a idéia do filme dentro do filme, em que a metalinguagem se

dá de forma mais clara. O que está sendo visto na tela é essencial para o desenrolar da

trama, e não apenas uma alusão ao cinema (ANDRADE, 1999).

Segundo Ana Lúcia Andrade, a metalinguagem pode se manifestar no cinema

através de duas formas básicas. A primeira acontece nos filmes que se referem ao

universo cinematográfico com ênfase na temática. É o caso dos filmes que tratam de

biografia de atores, diretores ou pessoas ligadas à indústria do cinema. Este recurso

pode ser considerado simplesmente uma auto-referência. A segunda forma de

metalinguagem no cinema se dá quando num filme o discurso cinematográfico é

explicitado em sua própria estrutura. “Estes filmes explicitam o discurso, utilizando o

próprio discurso para isso, dando ao espectador a noção de um filme sendo realizado”

(ANDRADE, 1999, p.17). Trata-se da “metalinguagem na estrutura”, em que se faz

referência ao próprio código cinematográfico. Aí se pode incluir também o chamado

“filme dentro do filme”.

A metalinguagem permite que o público experimente, ainda que de forma

imaginária, do processo de construção da narrativa. “Desta forma, a utilização deste

recurso propicia um jogo mais aberto e, de certa forma, mais democrático com o

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espectador” (ANDRADE, 1999, P. 67). O discurso metalinguístico também pode ser

verificado em filmes que não se utilizam da temática sobre cinema, em que as regras do

fazer cinematográfico estão articuladas na trama, dando ao espectador a ilusão de

participação na construção da narrativa (ANDRADE, 1999). É o caso, por exemplo, de

Janela Indiscreta (1954), do cineasta inglês Alfred Hitchcock. O filme trata de um

fotógrafo que fratura a perna e por isso se vê confinado em seu apartamento, numa

cadeira de rodas. Sem nada para fazer, o fotógrafo pára diante de uma grande janela e

espiona a vida de seus vizinhos. Com o passar dos dias, parado na mesma posição, o

protagonista começa a suspeitar de um possível assassinato ocorrido no apartamento ao

lado. Hichkock utiliza o recurso da “câmera subjetiva”, já que a imagem da janela

representa o que o personagem está vendo. Há neste filme a ilusão de participação,

citada anteriormente. O espectador tem a sensação de que está participando da trama,

como se estivesse no lugar do protagonista. Este, por ser fotógrafo, utiliza diversas

lentes de sua câmera para conseguir visualizar melhor o que acontece por trás da janela.

Esse é um elemento de extrema relevância, e que demonstra todo o conhecimento

técnico de fotografia do diretor. As imagens mudam conforme o protagonista muda de

lente. O espectador, com isso, tem a impressão de que um filme está sendo feito – e que

ele é o diretor/protagonista.

Antes de ser o meio de expressão que conhecemos, o cinema foi um simples

processo mecânico de registro, de conservação e de reprodução dos espetáculos visuais

móveis, baseados em fatos da vida (espelho do real)∗ ou em encenações tipicamente

teatrais. Quando o cinema se deparou com os problemas de narração, foi preciso

elaborar processos significantes específicos (METZ, 1972), e foi aí que, aos poucos, ele

se tornou uma linguagem, transmitindo pensamentos e veiculando idéias. A linguagem

∗ Segundo Lacan, o espelho é um fenômeno-limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico (ECO, 1989).

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cinematográfica – assim como toda forma de linguagem – utiliza signos, símbolos e

códigos que lhe são específicos. Como toda linguagen estética (artísticas), o cinema tem

o sentido conotativo como fator de extrema importância. Segundo Christian Metz

(1972), para causar alguma impressão ou sentimento (significado da conotação), um

cineasta deve utilizar uma técnica de filmagem que enfatiza as qualidades de iluminação

e fotografia do cenário ou do personagem (significante da conotação).

A linguagem cinematográfica utiliza técnicas específicas para sugerir algo –

transmitir idéias, alusões e sensações que são decodificadas pelo espectador. Para Jean

Cocteau, por exemplo, “um filme é uma escrita em imagens” (COCTEAU apud

MARTIN, P. 16). Alexandre Arnoux considera que “o cinema é uma linguagem de

imagens, com seu vocabulário, sua sintaxe, suas flexões, suas elipses, suas convenções,

sua gramática” (ARNOUX apud MARTIN, 2003, p. 16). A montagem, de acordo com

Marcel Martin (2003), constitui o fundamento mais específico da linguagem fílmica. O

processo de montagem pode ser definido como a organização dos planos de um filme

em certas condições de ordem e de duração. Há também elementos estéticos que são

essenciais na construção de uma narrativa cinematográfica. Estes fatores estéticos

correspondem a “alguns elementos materiais que participam da criação da imagem e do

universo fílmicos tais como aparecem na tela” (MARTIN, 2003, p. 56). Trata-se da

iluminação, do cenário, da cor, do vestuário (figurino) e dos efeitos sonoros utilizados

em um filme.

Para entender o que tais elementos da linguagem cinematográfica querem dizer, o

espectador precisa ter um inventário imagético que propicie este entendimento. Ana

Lúcia Andrade (1999) aborda a relação entre metalinguagem e espectador, e como os

códigos cinematográficos são assimilados pelos indivíduos. A autora diz que a

utilização do recurso da metalinguagem solicita uma cumplicidade com o público. Ou

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seja, o espectador precisa ter uma bagagem teórica e imagética para perceber alguns

códigos presentes nos filmes. Para isso, os diretores e produtores, desde os primórdios

do cinema, sempre se preocuparam em construir o que Umberto Eco (1989) denomina

enciclopédia intertextual, conceito que Ana Lúcia Andrade define como inventário

imagético. Como já foi citado anteriormente, existem o “leitor de segundo nível” ou

“leitor crítico”, que consegue reconhecer os códigos e estratégias da narrativa, e o

“leitor de primeiro nível” ou “leitor ingênuo”, o qual tem uma visão mais superficial

daquilo que está lendo.

“O prazer do leitor consiste em encontrar-se mergulhado em um jogo do qual se

conhecem as peças e as regras, e mesmo o desfecho fora algumas variações mínimas”

(ECO apud ANDRADE, p. 67). Segundo Eco (1989), em alguns filmes existem textos

que citam outros textos, e o conhecimento dos textos anteriores é pressuposto necessário

para a antecipação do texto – no caso do cinema, esse texto citado é constituído de

imagens, diálogos e efeitos sonoros - com o qual o espectador se depara em seguida.

Muitas vezes o espectador deve possuir não somente um conhecimento dos textos, mas

também um conhecimento do mundo, ou seja, das circunstâncias externas aos textos

(ECO, 1989):

Mais interessante, para uma análise da nova intertextualidade e dialogismo dos meios de comunicação de massa, é o exemplo de ET, quando a criatura espacial (invenção de Spielberg) é levada à cidade durante o Halloween e encontra um outro personagem, fantasiado de gnomo de O império contra-ataca (invenção de Lucas). ET sobressalta-se e tenta ir ao encontro do gnomo para abraça-lo, como se se tratasse de um velho amigo. Aqui o espectador deve saber muitas coisas: deve certamente saber da existência de um outro filme (conhecimento intertextual), mas deve também saber que ambos os monstros foram projetados por Rambaldi, que os diretores dos dois filmes estão ligados por várias razões, não só porque são os diretores de maior sucesso da década.(ECO, 1989, P. 127)

O inventário imagético possibilita um pacto entre o espectador e o cineasta. O

“espectador crítico” (de segundo nível) aprecia o jogo irônico da citação e compreende

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a proposital incongruência de algum acontecimento dentro de um filme, ao passo que o

“leitor ingênuo” (de primeiro nível), ao se deparar com algum acontecimento

“inesperado”, pode no máximo ficar impressionado com o aparecimento de algo que

não espera ver. (ECO, 1989). O cinema, ao longo de mais de um século de existência,

foi construindo lentamente o inventário imagético do espectador. “O processo do

cinema para se constituir enquanto linguagem se daria passo a passo, fazendo com que o

espectador se familiarizasse progressivamente com os códigos aprimorados”

(ANDRADE, 1999, P. 24).

Inicialmente, os filmes retratavam a própria sala de projeção e, apesar de

utilizarem códigos diferentes, utilizavam o recurso da metalinguagem para provocar

uma identificação imediata naquele que assistia. Posteriormente, a metalinguagem se

torna mais sofisticada, apresentando ao público o processo de produção de um filme (os

bastidores).

O cinema como conhecemos hoje, com uma linguagem propriamente

cinematográfica, data do período de 1910-1915, com os pioneiros Méliès, Porter e

Griffith. Porém, estes autores não se preocupavam com a mensagem simbólica,

filosófica ou humana de seus filmes. Queriam simplesmente contar uma estória, mas,

para isto, tiveram que inventar alguns recursos e processos de filmagem – mesmo que

ainda rudimentares – que fazem parte da linguagem cinematográfica atual. Foi Griffith

quem primeiramente codificou esses diversos processos em relação à narração fílmica,

organizando-os em uma “sintaxe”, ou sintagmática, coerente.7

A metalinguagem no cinema existe desde os primórdios da “sétima arte”. Ana

Lúcia Andrade (1999) analisa como diversos diretores, ao longo de mais de um século

de existência do cinema, utilizam os recursos técnicos, estéticos e psicológicos para 7 Griffith filmou várias estórias que tinham o valor de experimentos, de pesquisas. Entre estes filmes o mais importante é O nascimento de uma Nação, de 1915 (METZ, 1972). O filme conta a história de dois irmãos, chamados Phil e Ted Stoneman, que acabam em lados opostos em meio à Guerra Civil americana.

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fazer referência ao próprio cinema e sua linguagem.8 Desde o seu início, o cinema já

tinha a preocupação de envolver o espectador emocionalmente para que ele

“participasse” da trama, como se fosse um dos personagens. “Uma ilusão de

participação que é imprescindível e só o cinema pode proporcionar, devido à infinidade

de possibilidades narrativas” (ANDRADE, 1999, p. 18).

Portanto, a metalinguagem pode se manifestar de várias formas no cinema. Segundo

Ana Lúcia Andrade (1999), pode ser simplesmente uma auto-referência (no nível

temático) ou explicitar o discurso, utilizando o próprio discurso para isso, dando a

noção de um filme sendo realizado, incluindo-se também o chamado “filme dentro do

filme” (metalinguagem na estrutura).

A metalinguagem vai se destacar no cinema principalmente através dos filmes que se referem ao universo cinematográfico com ênfase na temática e dos filmes que, mesmo abordando uma temática sobre o cinema, desenvolvem uma dramaturgia específica em que o discurso cinematográfico é explicitado até mesmo em sua própria estrutura. (ANDRADE, 1999, p.16).

A metalinguagem pode se manifestar no sentido de provocar uma cumplicidade

com o público, desvendando os “mistérios” da produção cinematográfica. O filme que

fala sobre cinema utiliza o recurso da metalinguagem como elemento temático, e não

como parte essencial da narrativa – como ocorre no “filme dentro do filme”

(ANDRADE, 1999). O recurso do “filme dentro do filme” pode ser entendido como

uma narração por reflexo, na qual o filme e o filme nele exposto se misturam e se

confundem. Um filme mostrado dentro de outro filme pode ou não ser parte essencial da

trama, ou seja, se for retirado, pode comprometer ou não o entendimento do enredo por

parte do espectador.

8 São inúmeros os filmes que, desde 1895 até o final do século XX, utilizam elementos como fade in, fade out, fusões e diálogos, que transportam o espectador para o universo do cinema.

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Grifth registrou sua impressão do ritual cinematográfico em Those Awful Hats

(EUA – 1909), um dos primeiros filmes curtos do cineasta (3 minutos de duração).

Nesta comédia, Grifth satiriza a moda dos grandes chapéus usados pelas senhoras da

época, até mesmo nas salas de exibição de filmes, causando transtornos aos demais

espectadores:

Tudo se passa em uma sala de exibição com a tela de projeção ao fundo e a platéia, de costas para a câmera, em primeiro plano. Surge então uma senhora com um enorme chapéu atrapalhando a visão do espectador, que está sentado logo atrás dela. Eis que então surge, do teto da sala, uma espécie de guindaste que retira o chapéu da senhora, levando o público presente ao riso. Outra senhora chega atrasada, também usando um grande chapéu, cheio de adereços, causando igual furor. O espectador sentado atrás dela tenta chegar a um acordo com senhora que discute com ele de pé, transtornando, assim, os demais espectadores. Desta vez, o guindaste surge retirando não apenas o chapéu, mas também a senhora.

Neste filme, “a ação é centrada na “platéia/personagem” que se encontra no

primeiro plano do enquadramento, requerendo toda a atenção” (ANDRADE, 1999,

p.20). O espectador não acompanha o filme que está sendo exibido ao fundo, portanto o

filme dentro do filme não é parte essencial para que a trama se desenvolva, é apenas

uma referência. A metalinguagem, aí, se manifesta através da crítica ao comportamento

dos espectadores dentro de uma sala de exibição. Além disso, Grifth passa a sensação de

“ampliação” da sala de projeção real, como se o espectador estivesse posicionado logo

atrás da “platéia/personagem”, assistindo não a Those Awful Hats, mas ao filme

projetado dentro dele. “Dessa forma, o cineasta ‘transporta’ os espectadores para dentro

de seu filme, revelando um de seus principais talentos – o de envolver o público”

(ANDRADE, 1999, p.20).São muitos os exemplos de filmes que, desde os primórdios

do cinema, utilizam esse artifício metalinguístico, no intuito de envolver o espectador.

Após a introdução do recurso do som no cinema, aumentaram-se as possibilidades

narrativas dentro de um filme e, com isso, as formas de manifestação da metalinguagem

se ampliaram. King Kong (EUA-1933), dos diretores, Merian C. Cooper e Ernest B.

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Shoedsack é um bom exemplo dessa fase de transição – do cinema mudo para o cinema

falado, sonoro. O filme resgata um tipo de interpretação do cinema mudo, porém

acrescentando gritos e efeitos especiais bem eficientes para a época. Segundo Ana Lúcia

Andrade, trata-se de uma obra-prima, que critica o próprio cinema holywoodiano. A

metalinguagem neste filme ocorre não apenas como auto-referência, pois retrata o fazer

cinematográfico, o processo de produção e construção de um filme. King Kong conta a

história de um cineasta que pretende filmar uma lenda, algo jamais visto, para

impressionar o público. Para isso, precisam de uma bela mulher, que seria a mocinha da

trama. Evidencia-se aí uma crítica ao cinema norte-americano da época, à idéia de que

um bom filme teria que ter um romance (ANDRADE, 1999). É um filme que mostra as

dificuldades e os segredos do cinema, além de ser um grande avanço do ponto de vista

tecnológico. A obra faz alusão ao estilo de interpretação dos atores do cinema mudo, na

seqüência em que a personagem Ann (Fay Wray), aspirante a atriz, faz um teste de

câmera a fim de verificar suas possibilidades dramáticas. Ela reage como se estivesse

diante de uma fera gigantesca. As expressões faciais e corporais exageradas (olhos

arregalados e respiração extremamente ofegante) lembram os atores do cinema mudo.

Mas de repente a atriz dá um grito ensurdecedor, evidenciando a introdução do efeito

sonoro no cinema. Esta sequência causou grande impacto no público, já que é algo

bastante inovador para a época e representa um aperfeiçoamento técnico que o cinema

havia alcançado (ANDRADE, 1999). “Enfim temos a obra que fala de si mesma: não a

obra que fala do gênero ao qual pertence, mas a obra que fala da própria estrutura, do

modo como é feita” (ECO, 1989, p. 128).

As pesquisas de linguagem no cinema, tanto sonoras quanto imagéticas,

apresentam sinais de maturidade já na década de 40. Um dos principais destaques que

refletem o aperfeiçoamento da linguagem cinematográfica é o filme Cidadão Kane

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(Citizen Kane - EUA – 1941), de Orson Welles, no qual também se verifica o recurso

da metalinguagem:

Já no primeiro plano, uma placa avisa no trespassing (entrada proibida). A câmera “ultrapassa” grades e portões “negligenciando” o aviso, e através de várias fusões, aproxima-se lentamente de uma mansão ao longe, até chegar a uma janela. Em um próximo plano, avista-se a janela, do lado de dentro de um quarto onde se vê um corpo deitado em uma cama [...] Em um corte brusco, surgem, em detalhe, lábios que pronunciam a palavra Rosebud. Uma enfermeira surge no quarto [...] Ela junta as mãos do homem sobre a cama, sugerindo que está morto, cobrindo-o com um lençol. Novo plano da janela silhuetando o corpo. Escurecimento. Em seguida, surge bruscamente a legenda News on the March (Notícias em Marcha), que revela ser um cinejornal, narrando a vida de Charles Foster Kane, o homem que acaba de falecer. (ANDRADE, 1999, p. 34)

O cinejornal, com sua linguagem ágil, clara e objetiva, assim como os “jornais de

tela” da época, já denota a utilização da metalinguagem, à medida que propõe a idéia do

filme dentro do filme. Porém, o cinejornal denota mais que isso. Pode-se dizer que tal

recurso é uma crítica ao cinema clássico e sua estrutura linear, em que a ordenação das

informações acontece de forma lógica e objetiva, sem dar margens a ambigüidades.

Essa linguagem “ultrapassada” é relida por Welles, sendo confrontada com as

possibilidades não-lineares de se contar a história de vida pública e privada do

personagem principal. Na transição entre a sequência inicial do filme e o cinejornal,

ocorre uma contraposição entre o “ficional” e o “documental”. O cinejornal funciona

como uma espécie de curta-metragem dentro do filme, mas não basta para que se capte

as nuanças da vida de um homem. É necessário outra narrativa para que se saiba, por

exemplo, o significado da palavra Rosebud. Os flashbacks no decorrer do filme,

explicitados através dos depoimentos das pessoas ligadas a Kane, revelam diferentes

interpretações da vida do protagonista. “Dessa forma, Welles revê o cinema clássico e

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revela seus limites” (ANDRADE, 1999, p. 36). O espectador participa do

desvendamento de um mistério, esclarecido somente no final do filme, que é o

significado da palavra Rosebud.

Com o advento da televisão, nos anos 50, houve a necessidade de reavaliação da

história e da trajetória do cinema até então. Surge aí uma intensa autocrítica por parte do

cinema. Atores consagrados do cinema mudo ficaram desempregados, desamparados, já

que os novos recursos tecnológicos exigiam um outro tipo de interpretação. A voz é

introduzida de forma definitiva, apesar de alguns cineastas – principalmente Charles

Chaplin - não aceitarem tal mudança. O filme Crepúculo dos Deuses ( Sunset Boulevard

– EUA - 1950), de Billy Wilder, um dos críticos norte-americanos mais ácidos da

história, narra a decadência do cinema mudo. Segundo Ana Lúcia Andrade, este filme é

uma das mais fortes denúncias que Holywood já fez contra si mesma. É uma história

trágica, de um roteirista mal sucedido que se envolve com uma estrela do cinema mudo

que vive do passado, interpretada por Gloria Swanson, que na vida real foi uma grande

estrela do cinema mudo. Seu mordomo Max é interpretado por Erich Von Strohein, que

na vida real havia sido diretor de cinema mudo e inclusive já havia dirigido Gloria em

outro filme. Percebe-se aí a ironia do diretor. Joe, o roteirista, critica Norma (a

personagem de Glória Swanson), dizendo que sua carreira como atriz havia acabado,

pois ninguém se lembrava mais dela e seu texto era deprimente e ultrapassado. Glória é

tomada por um ataque de fúria e mata Joe. O filme faz constantes referências ao cinema

através dos diálogos, mostrando que a metalinguagem não é somente imagética e pode

ser enriquecida através de diálogos e sons. O personagem Joe, o roteirista fracassado

que é morto, é quem narra a história. “Ora, não é de se surpreender um roteiro de

cinema do irônico Billy Wilder ter um cadáver como narrador. Uma estratégia coerente

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com o que Wilder propõe, já que sua narrativa aponta para algo que está morto para a

indústria: o cinema mudo” (ANDRADE, 1999, p. 40 e 41).

Ainda nessa época surge um novo gênero no cinema: o musical. Havia a

necessidade de que o som acompanhasse a imagem no cinema. A criação do gênero

musical é conseqüência, portanto, de uma readaptação da linguagem cinematográfica e

suas técnicas, em busca de um cinema sonoro. Um filme que exemplifica bem essa fase

é o clássico Cantando na Chuva (Singin` in the Rain – EUA – 1952), de Stanley Donen

e Gene Kelly. Trata-se de um musical e, como a maioria dos filmes deste gênero, a

metalinguagem está presente e se relaciona com a própria estrutura narrativa do cinema

e seus bastidores. O filme remete ao contexto em que se insere a criação deste gênero,

com a ampliação das possibilidades sonoras através do desenvolvimento do telefone e

do rádio. Logo no início do filme, um programa de rádio anuncia a pré-estréia de um

filme, do qual a personagem de Gene Kelly (Don) é protagonista. Nota-se aí a idéia do

filme dentro do filme, como em Those Awful Hats, porém o foco da atenção do

espectador é o próprio filme dentro do filme, e não a platéia/personagem. Don, assim

como a atriz/personagem de Crepúsculo dos Deuses, é um decadente ator do cinema

mudo que vê sua carreira se acabar com a ascensão dos talkies (filmes falados). Seu

estilo de interpretação era ultrapassado – muito exagerado, próprio do cinema mudo - e

não tinha uma boa voz, portanto foi naturalmente banido do cinema. Apesar de

preocupado com o futuro de sua carreira, o ator/personagem canta sua felicidade por

estar apaixonado por uma garota. (ANDRADE, 1999). O número em que Gene Kelly

dança sob a chuva é, segundo a Ana Lúcia Andrade, um dos mais fascinantes e

carismáticos da história do cinema.

Já na década de 90, o cinema, com 100 anos de existência, tem um largo

repertório de imagens que fazem parte do inventário do espectador. Com isso, o cinema

Page 36: A Metalinguagem No Cinema

36

atenta para as possibilidades de nuanças dentro de estruturas já conhecidas. “A

preocupação com o já conhecido pelo espectador possibilita que este “participe” da

trama, tentando antecipá-la, para ser surpreendido logo em seguida” (ANDRADE, 1999,

p. 148).

Page 37: A Metalinguagem No Cinema

37

WOODY ALLEN E A METALINGUAGEM

Allan Stewart Konigsberg nasceu no Bronx, Nova York, em 1º de dezembro de

1935, mas foi criado no Brooklyn, onde escolheu seu nome artístico: Woody Allen. Sua

infância, assim como a de milhões de crianças nova-iorquinas de famílias imigrantes,

incorporou muito mais elementos europeus do que americanos. Mesmo vivendo na

cidade de Nova York, Woody Allen teve sua vida dominada pela sociedade judaica, que

seus pais abandonaram na Europa, mas cujos hábitos mantiveram. Começou sua carreira

como escritor de comédias, mandando piadas e tiradas curtas para diversos colunistas

sociais de jornais nova-iorquinos. Por ser tímido, não queria que seus colegas pegassem

o jornal e vissem seu nome. Esta é uma das razões de ele ter escolhido um nome

artístico, um pseudônimo (LAX, 1991). Além disso, “todos no show business mudam o

próprio nome; isso é parte do mito, parte do glamour” (LAX, 1991, p.19). Em 1952,

Woody Allen inicia sua carreira como escritor e comediante, e mais tarde se tornará um

dos mais consagrados e respeitados cineastas do cenário mundial. “Tratado nos Estados

Unidos como um cineasta marginal, Allen é, há trinta anos, considerado pelo público

francês como um verdadeiro semideus” (TIRARD, 2006, p. 81). Os filmes de Allen têm

como uma de suas características mais marcantes a presença de longos diálogos,

carregados de ironia e sarcasmo – o que contraria o estilo hollywoodiano de fazer

cinema, que privilegia as ações em detrimento dos diálogos.

Allen é um artista multifacetado. É roteirista, diretor, ator e músico. Sua

personalidade polêmica também é um fator que chama a atenção do público. Ganhou

vários prêmios como diretor, roteirista e ator, mas nunca foi receber esses prêmios

pessoalmente na cerimônia, alegando ter que se apresentar com sua banda de Jazz, na

qual toca clarineta. Poucos diretores tem uma obra tão extensa quanto a de Woody

Page 38: A Metalinguagem No Cinema

38

Allen. São 38 filmes em 40 anos de carreira no cinema. Recebeu seis indicações ao

Oscar de melhor diretor, ganhando em 1977 por Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – por

este filme, também recebeu uma indicação ao Oscar de melhor ator e ganhou mais dois

Oscars (melhor roteiro original e melhor filme); recebeu 14 indicações ao Oscar de

melhor roteiro original; 4 indicações ao Globo de Ouro de melhor diretor; 5 indicações

ao Globo de Ouro de melhor roteiro; 2 indicações ao Globo de Ouro de melhor ator;

ganhou em 1995 o Leão de Ouro no Festival de Veneza, em celebração ao 100º

aniversário do cinema; ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim, pelo conjunto de

sua obra; ganhou o Prêmio Pasinetti de Melhor Filme no Festival de Veneza, por Zelig

(1983); ganhou o Prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes, por A Rosa Púrpura do

Cairo (1985) e diversas outras indicações e premiações do cinema mundial.

Os filmes de Woody Allen constantemente fazem referência ao próprio universo do

cinema. Para isto, o diretor-roteirista-ator recorre a signos e códigos cinematográficos

que transmitem ao espectador alguma idéia ou analogia. O artista utiliza a linguagem

cinematográfica no sentido de sugerir algo (sentido conotativo). A compreensão do

conteúdo cômico de seus filmes depende da bagagem cultural ou inventário imagético

de quem assiste. As metáforas e símbolos muitas vezes passam desapercebidos pelo

leitor de primeiro nível, ou seja, aquele espectador ingênuo, que tem uma visão

superficial das imagens, diálogos e efeitos sonoros. (ECO apud ANDRADE, 1999).

A obsessão de Woody Allen pelo recurso da metalinguagem parece ter nascido de

sua admiração pelo mais popular diretor do cinema italiano: Frederico Fellini. Dois dos

melhores filmes de Allen foram inspirados em clássicos do mestre italiano. A rosa

púrpura do Cairo (1985) descende de O abismo de um sonho (1951), enquanto A Era

do Rádio (1987) é equivalente a Amacord (1972). A obra-prima de Frederico Fellini

(altamente metalingüística e autobiográfica), Oito e meio (1963), também recebeu uma

Page 39: A Metalinguagem No Cinema

39

homenagem de Allen. “Memórias (1980) é uma espécie de autocrítica sobre cineasta

tragado por espiral de lembranças e devaneios artísticos e afetivos”. 9

Os filmes de Woody Allen são peculiares e famosos por ilustrarem as

excentricidades e preocupações da alta-sociedade de Nova Iorque, grupo ao qual ele

pertence. Não são poucos os indícios que apontam para um caráter autobiográfico de

sua obra, apesar de o próprio cineasta não concordar com tal idéia: “Cinema é ficção.

Os enredos dos meus filmes não têm nenhuma relação com a minha vida”.10 Muitos de

seus trabalhos são sobre um diretor de filmes e quase todos têm como personagem

principal um escritor. Allen costuma atuar como personagem principal, freqüentemente

protagonizando um nova-iorquino neurótico e fracassado. O diretor, supostamente,

retrata em seus filmes suas neuroses pessoais, – o que também é uma forma de

metalinguagem. “Se Woody Allen – diretor e ator de cinema – andou vestindo uma

camiseta que o estampou, Woody Allen, num curioso narcisismo metalingüístico,

referia-se a si próprio” (CHALHUB, 1988, p. 8).

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) é um filme onde a

metalinguagem se manifesta de várias formas. O filme, protagonizado por Woody

Allen, narra a história de Alvy Singer, um dos comediantes mais brilhantes de

Manhatan – nota-se aí uma alusão de Woody Allen a ele mesmo, o que já denota um

caráter autobiográfico e, portanto, metalingüístico da obra – que se apaixona por Annie

Hall (Diane Keaton), uma cantora de clubes noturnos. Alvy e Annie iniciam um

relacionamento amoroso, que acaba sendo destruído rapidamente pelas inseguranças e

neuroses do comediante. Annie deixa Alvy e vai viver uma nova vida em Los Angeles,

ao lado de outro homem. Sabendo que pode ter perdido Annie para sempre, Alvy não

mede esforços e vai à procura de seu verdadeiro amor. 9 Texto disponível em: http://www.geocities.com/hollywood/location/9137/woody.htm. Acesso em: 27/10/2006 10 MARYRINK, Geraldo. Sexo na cabeça. Revista Veja, v. 26, n. 2 , p. 84-85, jan,1993.

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40

Logo na cena inicial do filme, Alvy (Woody Allen) dá uma espécie de depoimento

sobre suas inquietudes e angústias com relação à vida e os relacionamentos amorosos.

Diz que a vida é cheia de solidão, miséria, sofrimento e tristeza, e que acaba rápido

demais. Parafraseando Freud, diz, tentando explicar suas neuroses com relação às

mulheres: “Não quero ser sócio de nenhum clube que aceite alguém como eu de sócio”

(00:01:22 a 00:01:26). Ele apresenta e antecipa, desta forma, a personalidade do

personagem que será o protagonista da história. A metalinguagem está presente aí à

medida que o diretor e roteirista do filme dialoga com o público, com o olhar

direcionado para a lente da câmera. Isso, de certa forma, confunde o espectador, já que,

inicialmente, não se sabe se quem está falando é o personagem Alvy ou o próprio

Woody Allen. Ao final da cena, fica claro que quem está falando é Alvy, pois ele se

refere a seu relacionamento com Annie (personagem de Diane Keaton). Alvy tenta

achar uma explicação, um porquê de seu relacionamento com Annie não ter dado certo.

Na sequência seguinte, tentando encontrar a causa de sua personalidade neurótica,

Alvy relembra sua infância. Ele diz que foi criado no Brooklin, durante a II Guerra

Mundial – exatamente o local e a época em que Woody Allen nasceu (referência

autobiográfica). Relembra que foi uma criança deprimida, que fazia indagações

filosóficas sobre o universo. Diz que morava debaixo de uma montanha russa, e que

talvez por isso seja um tanto nervoso. As cenas seguintes são flashbacks da infância do

protagonista. Alvy tem seis anos de idade e está na sala de aula. A voz em off de Alvy

diz que seu interesse pelas mulheres começou cedo. O menino Alvy beija sua colega

que está ao lado e é advertido pela professora. Neste momento, Alvy, já adulto, entra em

cena, sentado na carteira, e retruca a professora: “Eu só expressei uma curiosidade

sexual” (00:04:46 a 00:04:48). É interessante ressaltar que o protagonista, interpretado

pelo próprio diretor do filme, viaja do presente para o passado de sua própria vida. Há aí

Page 41: A Metalinguagem No Cinema

41

um complexo jogo metalingüístico, em que o personagem, que também é autor – já que

a cena advém de seu pensamento (lembrança) que é exteriorizado – interfere em sua

obra. Alvy invade uma situação vivida em seu passado para fazer um comentário – o

personagem do filme invade o “filme dentro do filme” e intervém na estória narrada por

ele mesmo. Quando o autor se projeta dentro de sua obra, temos metalinguagem. Nesse

caso, o autor empírico (Woody Allen) se projeta dentro de seu filme e o

autor/personagem se projeta em sua lembranças, como num jogo de espelhos. Alvy diz

que perdeu o contato com seus colegas de sala e não faz a menor idéia do que eles se

tornaram no futuro. Na cena seguinte, é mostrada uma entrevista de Alvy na TV. O

filme dentro do filme, neste caso, tem somente a função de reforçar que Alvy, apesar de

ter sido um garoto deprimido na infância, acaba se tornando um comediante.

Alvy e Annie estão em frente à bilheteria de um cinema. Alvy diz que não vai entrar

porque já se passaram dois minutos de filme, e ele tem que ver um filme do começo ao

fim. O personagem aí explicita sua neurose como espectador. Enquanto está na fila para

entrar no cinema, Alvy se incomoda com um homem que está atrás dele e que discute

sobre alguns diretores de cinema. Alvy não concorda com os comentários do homem e

se sente irritado. Nesse momento, o protagonista se vira para a lente da câmera e

comenta com o espectador: “O que faz quando fica na fila de um filme com um cara

assim?” (00:11:58 a 00:12:02). O homem que está na fila também fala com a câmera,

dizendo que pode dar sua opinião, pois está num país livre. Observa-se aí novamente o

personagem dialogando com o público. O espectador tem a sensação de que está dentro

do filme, participando da trama, o que também é um recurso metalingüístico. Ainda

nessa cena, Alvy e o homem da fila começam a discutir sobre o estudioso Marshall

McLuhan. Alvy diz que o homem da fila não sabe nada sobra McLuhan. O homem diz

que dá aula de TV, mídia e Cultura na Universidade de Columbia. Nesse momento,

Page 42: A Metalinguagem No Cinema

42

Alvy diz: “Verdade? Engraçado, pois o senhor McLuhan está aqui.” (00:12:24 a 00:12:

26). Alvy então chama o próprio McLuhan para dar sua opinião. McLuhan diz: “Você

não sabe nada sobre minha obra. Diz que minha falácia é errônea.” (00:12:34 a

00:12:36). Alvy novamente comenta com o espectador, dizendo que seria bom se a vida

fosse assim. Woody Allen com isso está se referindo à magia do cinema. No cinema,

tudo é possível. O artifício de dialogar com o espectador é repetido várias vezes durante

o filme, proporcionando maior ilusão de participação e cumplicidade com o público.

Em uma cena em que Alvy está indo jogar tênis com o amigo, ele comenta que a

cidade de Nova York está dominada pelo anti-semitismo. O amigo diz que todo grupo

que discorda de Alvy é anti-semitista. Novamente, percebe-se uma referência de Allen a

ele mesmo, já que ele foi criado por uma família de judeus em Nova York. Annie, ao

conhecer Alvy, diz que sua avó diria que é um judeu perfeito. Mas sua avó não gostava

de judeus, falava que eles só sabem ganhar dinheiro. Woody Allen se refere aí ao

preconceito e discriminação com relação à religião que segue.

Em uma conversa de Alvy e Annie no terraço do prédio de Annie, o pensamento dos

dois personagens é exteriorizado, através de uma legenda. Eles discutem sobre

fotografia e arte. Alvy diz: “Fotografia é interessante porque é uma nova forma de arte.

Ainda sem critério estético” Na parte superior do quadro há uma legenda que diz:

“Como ela é pelada?” Annie diz: “Pra mim é tudo instintivo”. A legenda que revela seu

pensamento diz: “Espero que ele não seja um idiota como os outros”. Novamente

Woody Allen dialoga com o espectador, mostrando o que se passa na cabeça dos

personagens. A subjetividade dos personagens é exteriorizada e transmitida através da

linguagem escrita. O diretor conta uma espécie de “segredo” ao público, que até mesmo

os personagens desconhecem, daí a relação de cumplicidade do filme com quem está

assistindo.

Page 43: A Metalinguagem No Cinema

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Na sequência em que Alvy conversa com as pessoas na rua, ele se lembra de quando

sua mãe o levou para ver Branca de Neve em desenho animado no cinema. Ele diz que

todos amaram a Branca de Neve, e ele adorou a rainha malvada. Nesse momento, há

uma cena de desenho animado, em que os personagens são a rainha malvada e o

protagonista do filme, Alvy Singer (Woody Allen). O filme dentro do filme, neste caso,

é a exteriorização de uma lembrança e uma explicação acerca da personalidade do

personagem. O personagem Alvy entra no filme, se materializando como um desenho

animado e participando da trama, no intuito de justificar suas neuroses acerca das

mulheres. Aí, o filme dentro do filme, portanto, não é uma mera citação, mas é parte

integrante do enredo do filme, essencial para a compreensão do estado psicológico do

personagem. A metalinguagem se manifesta, neste caso, na estrutura da narrativa, e não

somente como auto-referência.

Em A Rosa Púpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo – EUA – 1985), de

Woody Allen, há duas narrativas que se relacionam diretamente, portanto o “filme

dentro do filme” é imprescindível para que a trama aconteça. A história se passa durante

a Grande Depressão norte- americana (início dos anos 1930), que coincide com o

período em que começaram a surgir os filmes sonoros e o gênero musical no cinema –

considerado escapista e de grande apelo popular. Cecília, personagem de Mia Farrow –

até então mulher do diretor na vida real -, é uma cinéfila pobre e humilde, que passa os

dias assistindo sempre ao mesmo filme – que, curiosamente, também é intitulado A

Rosa Púrpura do Cairo -, encantada com o glamour das personagens. Ela é desatenta no

trabalho, pois só consegue pensar em cinema, que é um meio de fuga dos problemas que

passa no dia-a-dia com o marido Monk - interpretado por Danny Aiello - que a maltrata.

Estão em época de recessão e a vida está difícil para todos. O marido de Cecília reclama

da falta de emprego e ela diz que talvez indo ao cinema ele esqueça seus problemas.

Page 44: A Metalinguagem No Cinema

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Certo dia, Cecília é despedida do emprego e vai ao cinema, assistir pela quinta vez

o mesmo filme. Só que desta vez Tom, um dos personagens do “filme dentro do filme”

– que também leva o nome de A Rosa púrpura do Cairo – desvia seu olhar para Cecília,

que está na platéia, se apaixona pela moça e literalmente sai da tela para viver um

romance com ela no mundo real. O personagem Tom encontra algumas dificuldades de

adaptação ao mundo em que Cecília vive, o que demonstra a incompatibilidade entre

ficção e realidade. Mas Tom não desiste de viver esse amor com sua fã e não pretende

voltar para dentro da tela onde se passa o filme.

Tal fato gera conflitos entre os outros personagens dentro da tela e entre Tom e

seu criador, o “ator-personagem” do mundo real Gil Shepherd, interpretado por Jeff

Daniels. O produtor do filme convoca Gil para convencer sua “criação” a voltar para a

tela e, assim, dar continuidade à projeção do filme. Cecília acaba tendo que escolher

entre o mundo da fantasia e a realidade. Ela chega a entrar na tela com Tom, mas é

convencida pelo ator Gil, que promete se casar com ela, caso ela saia da tela. Ao

escolher a realidade, descobre que foi enganada. O ator vai embora e a deixa sozinha.

Na seqüência final, apesar de frustrada e infeliz, Cecília entra no cinema e sua feição vai

mudando aos poucos, até abrir um sorriso - demonstrando todo o fascínio que o cinema

causa.

Segundo Ana Lúcia Andrade (1999), neste filme o recurso da metalinguagem

funciona no sentido de abranger a cumplicidade do público com relação à magia do

cinema. Possibilita ao espectador se sentir dentro do filme, já que a personagem

principal entra na tela e vive um fantástico romance – o qual só pode haver no mundo

do cinema. É importante ressaltar que Cecília é uma espectadora erudita. Sabe tudo

sobre os bastidores do cinema, e por isso possui um vasto inventário imagético que a

permite reconhecer as principais regras do “jogo” cinematográfico – o que garante uma

Page 45: A Metalinguagem No Cinema

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maior ilusão de participação. “Cecília é uma grande porta de entrada para se estabelecer

o princípio de interatividade com a narrativa das imagens em movimento” (ANDRADE,

1999, p. 135). Verifica-se na obra em questão um complexo jogo metalingüístico, em

que o filme e o “filme dentro do filme” estão intimamente ligados na trama – um

fazendo parte do outro. Há no filme um diálogo entre ficção e realidade, entre o filme

que os espectadores reais vêem e o filme que os personagens da ficção vêem. Trata-se

de um bom exemplo de metalinguagem na estrutura.

Allen, em A Rosa Púrpura do Cairo (1985), faz referência ao cinema utilizando

como código a própria sala de projeção, em que a protagonista cinéfila – vivida por Mia

Farrow, até então mulher do diretor – assiste incansavelmente ao mesmo filme – que,

curiosamente, também é intitulado A Rosa Púrpura do Cairo. Nesse filme, Allen

também faz referência a uma fase da história do cinema. O cenário e o figurino aludem

aos Estados Unidos dos anos 30, logo após a crise de 1929, quando o cinema era uma

forma de fuga contra os problemas sociais. Daí surge a febre dos filmes Musicais nos

Estados Unidos, uma tentativa de retomar a abalada auto-estima dos americanos.

Woody Allen, neste filme, faz uma alusão também às suas próprias lembranças de

infância, já que ele nasceu na época em que se passa a trama. Nota-se aí o caráter

autobiográfico – e, portanto, metalingüístico da obra -, já que o diretor , assim como a

protagonista da história, durante sua infância fugia para dentro da tela, adentrando no

mundo fantasioso do cinema, tentando esquecer seus problemas:

Fui um garoto altamente impressionável, que cresceu durante a chamada época de Ouro do Cinema, quando surgiram todos aqueles filmes maravilhosos que vimos [...] Eu estava sempre fugindo para dentro daqueles filmes. Você podia esquecer a sua casa pobre, os problemas com a escola, a família e tudo o mais indo ao cinema, onde haveria apartamentos de cobertura e telefones brancos, mulheres bonitas e homens de senso de humor perspicaz, onde as coisas eram engraçadas e tudo terminava bem, onde os heróis eram genuínos e isso tudo grandioso. [...] Assim, sinto que nos meus filmes sempre há um sentido penetrante da grandeza da vida real, ou da fantasia contra o desconforto da realidade. (ALLEN apud ANDRADE, 1999, p. 134)

Page 46: A Metalinguagem No Cinema

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Em Crimes e Pecados (1989) há a utlização da metalinguagem tanto na temática

como na estrutura. O enredo do filme se divide em duas histórias, cujos personagens,

apesar de viverem situações diferentes, têm que tomar uma decisão difícil, que irá

mudar o rumo de suas vidas. São duas narrativas que se desenrolam separadamente

dentro de um mesmo filme, sendo que uma delas trata uma situação dramática de

maneira cômica e a outra é uma tragédia, em cujo final o vilão não é punido por seus

atos. O protagonista Cliff Stern, vivido por Woody Allen, é um cineasta idealista que

recebe a oferta de um trabalho lucrativo filmando a biografia de um pomposo produtor

de TV – nota-se aí a metalinguagem como auto-referência, ou seja, o cinema falando

dele mesmo (metalinguagem na temática). Judah Rosenthal, interpretado por Martin

Landau, é o protagonista de outra história dentro desse mesmo filme. É um homem

respeitado na comunidade em que vive, é bem sucedido e tem um casamento estável.

Porém, Judah tem um relacionamento extraconjugal com outra mulher há dois anos e

pratica estelionato.

Judah quer romper o relacionamento com a amante, interpretada por Angelica

Huston, mas ela ameaça revelar tudo à mulher de Judah sobre as artimanhas financeiras

e extraconjugais do marido. Judah e a amante têm uma discussão. Ele diz que foi bom o

tempo que ficaram juntos, mas desde o início os dois já sabiam que o relacionamento

não iria durar muito. A amante diz que não aceita a separação e que foi enganada,

porque ele havia feito promessas que não foram cumpridas.

Na cena seguinte, Cliff, o cineasta, assiste a um filme com sua sobrinha. O filme é

Mr. And Mrs. Smith (Alfred Hitchcock – 1941). Trata-se de uma comédia sobre um

casal que descobre que seu casamento foi um grande engano. A cena que Cliff e a

sobrinha estão assistindo narra uma situação semelhante a que Judah e a amante

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viveram na cena passada. Um casal tem uma discussão, a mulher diz: “Você vai me

jogar fora como um bagaço. Eu lhe dei os melhores anos da minha vida e você não

queria nada.” (00:07:45). Nota-se que o “filme dentro do filme” é um comentário ou

crítica da cena anterior, e não apenas uma referência ou citação. Na saída da sala de

projeção, Cliff comenta com sua sobrinha a respeito do filme que acabaram de assistir:

“os smokings, as roupas luxuosas. Devia ser maravilhoso viver assim” (00:08:01 a

00:08:05). Com essa fala, Woody Allen faz uma crítica ao cinema clássico

hollywoodiano e o mundo fantasioso que ele retratava. O diretor alude, portanto, à

própria magia do cinema e à fascinação que ele provoca no público.

Cliff está filmando um documentário sobre um professor de filosofia, quando o

milionário produtor de TV Lester - interpretado por Alan Alda – , que é cunhado de

Cliff, lhe oferece uma proposta de trabalho. Lester quer que Cliff filme sua biografia,

para que possa ser exibida na série “Mentes criativas”, programa produzido por Halley

Reed, personagem de Mia Farrow. Cliff inicialmente rejeita a oferta, já que é um

cineasta que segue radicalmente seus princípios e não quer se envolver com o

showbusiness. Apesar de discordar ideologicamente de Lester e considerar o produtor

uma pessoa extremamente pedante, Cliff acaba aceitando filmar a biografia, pensando

no dinheiro e prestígio que ganharia. Percebe-se aí uma crítica à indústria

cinematográfica e o monopólio das super-produções milionárias, em detrimento dos

filmes “artísticos” de baixo orçamento. O processo de produção da biografia é

explicitado em algumas cenas. Cliff posiciona a câmera em direção a Lester, que está

sentado em um banco no Central Parque, relatando sua visão sobre a cidade de Nova

York. Cliff interrompe a gravação dizendo que o rolo de filme acabou, e que já tinham

sido gastos dez rolos só com a primeira pergunta respondida por Lester. Woody Allen

faz aí uma alusão às dificuldades técnicas encontradas pelos diretores ao fazer um filme.

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Cliff conhece Halley Reed no set de filmagem e propõe que ela exiba em seu

programa o documentário ele está fazendo sobre o filósofo Louis Levy. A produtora vai

até à casa de Cliff para assistir à parte do documentário que já foi filmada. Nesta cena,

em que os dois assistem ao documentário, também observa-se o recurso do filme dentro

do filme. Não é apenas uma auto-referência, já que o protagonista é que está produzindo

o filme. A metalinguagem aí se encontra presente na estrutura da narrativa. O filme

dentro do filme é parte essencial para o desenrolar da trama.

Judah se encontra com seu irmão mafioso Jack, vivido por Jerry Orbach, e lhe conta

que sua amante pretende acabar com seu casamento e atrapalhar seus assuntos

financeiros. Diz que precisa tomar alguma providência rapidamente, e pede ajuda ao

irmão, que sugere que a amante seja assassinada. Assim como Cliff vive um dilema ao

decidir filmar ou não a biografia de Lester, Judah tem que tomar uma decisão que

envolve dinheiro e valores morais: matar ou não sua amante. Na cena seguinte ao

encontro de Judah e o irmão, Cliff assiste a um filme na companhia de Halley. Trata-se

de The Last Gangster (1937). Na cena que está sendo exibida na sala de projeção, dois

gangsters planejam um assassinato de forma que pareça um suicídio. Logo após a cena,

Cliff comenta com Halley: “Isso só acontece no cinema”. Novamente a metalinguagem

se manifesta através do filme dentro do filme, como comentário ou ênfase daquilo que

acabou de ser mostrado na trama, e através da fala de Cliff – uma crítica ao mundo

fantasioso do cinema.

Judah se encontra com seu amigo rabino - interpretado pó Sam Weterston – e lhe

pede conselhos sobre o que fazer a respeito do problema que vive com sua amante. O

rabino, que é um homem extremamente religioso e seguidor dos princípios éticos e

morais, aconselha Judah a contar tudo à sua mulher, pois dizendo a verdade ele será

perdoado e ficará com a consciência limpa. Judah, então, encontra-se dividido entre “o

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reino dos céus” e a realidade, representada por seu irmão Jack, um criminoso. Após a

visita ao rabino, Judah opta por matar a amante e liga para Jack, que contrata um

matador de aluguel para fazer o serviço. Após a morte da amante, Judah vivencia um

sentimento de culpa e, ao visitar a casa onde morou durante a infância, Judah lembra

dos conselhos de seu pai, que dizia que Deus vê tudo, e que os pecadores irão sofrer por

toda a eternidade. Judah então se sente culpado e por um momento se arrepende do que

fez. Para ironizar o drama vivido por Judah, Woody Allen volta para a história de Cliff,

que agora assiste ao musical Happy Go Lucky (Curtis Bernhardt – 1943), na companhia

de sua sobrinha. Exibe-se a cena em que a atriz Betty Hutton canta a música Murder, he

says (Morte, ele diz): “toda vez que ele me beija é como se ele dissesse morte! Não

faço festa para a morte de ninguém, mas para a dele eu vou fazer!” (01:14:01 a

01:14:14). O filme dentro do filme, nesta cena, é, portanto, uma ironia ao sofrimento

vivido pelo personagem Judah na cena anterior. Não é apenas uma citação, pois se

relaciona com a trama. Sempre que há a passagem da história de Judah para a de Cliff

há uma quebra na atmosfera do filme – do trágico ao cômico - apesar de Cliff também

passar por situações trágicas, como as frustrações no trabalho e no amor.

Cliff assite a Dançando na Chuva na companhia de Halley. Diz que o filme ajuda a

levantar seu astral. Como já foi dito anteriormente, o filme é um musical que retrata a

história de um ator fracassado que canta por estar apaixonado por uma garota. A

metalinguagem está presente nesta cena apenas como uma auto-referência ou citação.

No desfecho do filme, os protagonistas das duas histórias se encontram em uma

festa da alta sociedade. Cliff está sentado ao lado de um piano, arrasado, pois

descobrira que Halley está prestes a se casar com Lester, a pessoa que mais despreza.

Além disso, não consegue terminar o documentário, pois o professor de filosofia havia

falecido. Nesse momento Cliff se encontra com Judah, que aborda o cineasta dizendo

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que tem uma idéia de roteiro fantástica para contar, uma ótima história de assassinato.

Judah conta sua própria história, dizendo que tem um estrando desenlace. Diz que o

personagem da história, o assassino, sente-se culpado e apavorado devido à educação

religiosa que recebeu da família e pretende contar tudo à polícia. Mas um dia, segundo

Judah, esse personegem acorda e vê que o sol está brilhando e que sua família está ao

seu redor. Ele faz uma viagem com a família e percebe que a crise passou e ele não foi

castigado. O personagem continua vivendo tranquilamente, sem ser punido e sem culpa

alguma. Cliff diz que é uma história mórbida, que ninguém conseguiria viver com esse

peso na consciência. Judah retruca, dizendo que a realidade é assim, todos carregam

erros terríveis, e os negam para continuar vivendo. Cliff diz que mudaria o roteiro

sugerido por Judah. O assassino iria se entregar no final, o que, segundo Cliff, faria

tomar proporções trágicas. Judah está seguro de que não contará nada à policia,

continuando a viver tranquilamente, como se nada tivesse acontecido. Ele então diz a

Cliff, a respeito do desfecho de seu roteiro: “Você vê filmes demais. Estou falando da

realidade. Se quer um final feliz, vá ver um filme de Hollywood” (01:38:52 a 01:38:59).

Nesta cena, o espectador participa da construção de um roteiro, o que é uma forma de

metalinguagem, já que desvenda uma etapa do processo de produção de um filme. Há

também, na fala de Judah, uma crítica ao cinema holywoodiano, em que os vilões

sempre são punidos no final dos filmes.

Um filme de Allen que exemplifica bem o artifício utilizado pelo cinema para

evocar o ritual cinematográfico é Dirigindo no escuro (2002). O filme conta a estória de

um cineasta fracassado, Val Waxman – diretor de filmes B - que recebe um convite para

realizar um filme cuja produção é milionária. É a maior oportunidade de sua vida,

porém antes mesmo de começar a filmar o longa-metragem, o diretor, vivido pelo

próprio Woody Allen, fica cego devido a um estresse emocional. Esta cegueira

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psicossomática o impediria de trabalhar. Como não podia perder tal oportunidade, o

diretor resolve dirigir o filme mesmo estando cego. Para cumprir sua missão sem que

ninguém descubra seu segredo, Val decide contratar um operador de câmera coreano

que não sabe falar uma só palavra em inglês e um diretor de fotografia que seria o

tradutor e seu guia durante as filmagens. O diretor de fotografia, portanto, orienta o

diretor no espaço do set de filmagem. Evidencia-se aí uma crítica à segmentação dos

profissionais de cinema e as dificuldades de comunicação entre os integrantes de uma

equipe dentro de um set de filmagem.

Uma jornalista acompanha todo o processo de produção do filme que Val está

dirigindo, indo diariamente ao set e entrevistando os atores, produtores e o diretor. Ela

coleta informações sobre tudo que acontece durante o processo de filmagem e acaba

descobrindo, através de uma conversa de Val com seu empresário, que o diretor do

filme que ela está cobrindo está cego. Ela então publica a matéria no jornal e acaba com

a reputação de Val – o que pode ser visto como uma crítica à relação do cinema com a

Imprensa. O filme acaba sendo finalizado, apesar das limitações do diretor, e todos

acabam descobrindo o segredo que Val guardara até então. O filme de Val é um

fracasso nos Estados Unidos, mas faz um grande sucesso na França. No desfecho do

filme, com a visão recuperada, Val se muda para Paris. Nota-se aí, novamente, uma

referência de Woody Allen a ele mesmo (caráter autobiográfico), já que seus filmes são

mais admirados na França do que em sua terra, os Estados Unidos da América.

Nesse filme, Woody Allen faz referência aos bastidores do cinema, em que o

código é o próprio fazer cinematográfico, ou seja, o processo de construção de um

longa-metragem. Mais uma vez Allen vive o protagonista, um diretor neurótico, como

ele próprio – o que também é metalinguagem, já que o autor faz referência a si mesmo.

O filme retrata as dificuldades encontradas por um diretor no o dia-a-dia das filmagens

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de um longa- metragem. Allen leva ao exagero as situações à medida que propõe um

diretor cego. É possível hipotetizar que essa cegueira – psicossomática - é uma metáfora

das limitações encontradas em um set de filmagem. Trata-se do desvendamento daquilo

que está por trás do produto final (o filme), dos mecanismos de produção e filmagem.

Há aí, portanto, uma relação de cumplicidade do cinema com o espectador.

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CONCLUSÃO

Como foi proposto inicialmente, foi realizado um estudo da metalinguagem nas

artes em geral, no cinema especificamente e na obra do diretor, ator e roteirista Woody

Allen. O primeiro e o segundo capítulo serviram de base teórica para a análise dos

filmes propostos. Foram expostas as definições do conceito de metalinguagem, de

acordo com diversos autores. Foi verificado que em todas as artes a metalinguagem se

manifesta, à medida que o autor se projeta em sua obra, ou se refere à arte que faz ou

explicita os mecanismos utilizados para a produção dessa arte. Verificou-se que a

metalinguagem é uma forma de provocar reconhecimento ou identificação no público, e

que o reconhecimento (codificação) das estratégias de auto-referência utilizadas pelos

autores depende da bagagem cultural ou inventário imagético do espectador.

Verificou-se que o cinema utiliza o recurso da metalinguagem desde seu

“nascimento”, ou seja, esse sempre foi um artifício muito recorrente na “sétima arte”.

Com o avanço das descobertas tecnológicas áudio-visuais, ampliaram-se as

possibilidades de metalinguagem na estrutura da narrativa cinematográfica. Foram

analisados os seguintes filmes de Woody Allen: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa

(1977), A Rosa Púrpura do Cairo, Crimes e Pecados (1989) e Dirigindo no Escuro

(2002). Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa o autor – Woody Allen- se projeta dentro

da obra. É um filme que apresenta um forte caráter autobiográfico, já que o diretor trata

de aspectos de sua vida pessoal dentro do filme. Como foi visto no primeiro capítulo,

quando o autor se refere a ele mesmo dentro de sua obra, temos metalinguagem. Em A

Rosa Púrpura do Cairo (1985), Allen utiliza o recurso metalingüístico através da auto-

referência e do “filme dentro do filme”. A auto-referência se dá à medida que o filme se

refere à uma fase da história do cinema, no início dos anos 1930, quando o os EUA

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passavam por uma recessão e uma das únicas formas de diversão, ou fuga da difícil

realidade, era o cinema. Trata-se também da época em que começaram a surgir o gênero

musical no cinema, visto como uma forma de levantar a auto-estima abalada dos norte-

americanos. Além de se referir ao cinema, Woody Allen se refere a ele mesmo, já que o

diretor viveu sua infância nessa mesma época e tinha o cinema como seu principal

divertimento. Nota-se aí, novamente, o caráter autobiográfico presente na obra do autor.

Através do recurso do “filme dentro do filme”, Allen faz uma alusão à magia do cinema

e à identificação que essa arte provoca no espectador. O filme exposto dentro do filme A

Rosa Púrpura do Cairo também se chama A rosa Púrpura do Cairo. O filme dentro do

filme, neste caso, é parte essencial da narrativa, ou seja, é imprescindível para que a

trama se desenrole. Quando o ator do “filme dentro do filme” sai da tela e encontra com

a espectadora que o assiste, Allem alude, aí, à cumplicidade que o cinema provoca no

público. É uma ilusão que só pode acontecer no cinema. Este filme, Allen mistura

ficção e realidade, num complexo jogo metalingüístico.

Em Crimes e Pecados a metalinguagem se manifesta na temática, já que conta a

história de um cineasta fracassado, e na estrutura do filme , à medida que expõe as

dificuldades e os dilemas no processo de produção de um filme. Há nesse filme também

o recurso do “filme dentro do filme”. Woody Allen insere na narrativa trechos de vários

filmes que se referem à situações que acontecem no decorrer da trama. O filme se refere

constantemente ao universo cinematográfico, seja através da temática, seja através de

citações. No desfecho do filme, os protagonistas das duas histórias dentro do filme se

encontram e discutem a respeito da construção de um roteiro para um novo filme.

Em Dirigindo no Escuro, Allen expõe os bastidores da produção cinematográfica,

as várias etapas e dificuldades pelas quais um diretor deve passar para conseguir

finalizar um filme. Trata-se de um filme que utiliza a metalinguagem tanto na temática

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como na estrutura, já que desvenda para o espectador como funciona o dia-a-dia em um

set de filmagem.

Foi verificado, portanto, através da análise dos filmes propostos, que existem

inúmeras formas de se utilizar o recurso da metalinguagem no cinema, e que o

reconhecimento das estratégias utilizadas pelos diretores solicita uma certo grau de

“atenção” do público. Através de exemplos de outros filmes de outros diretores, foi

demonstrado que a metalinguagem é um recurso mais comum do que se imagina. Daí a

importância de se estudar o tema.

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CRIMES e pecados. Título Original: Crimes and Misdemeanors. Gênero: Drama. Tempo de Duração: 104 minutos. Ano de Lançamento (EUA): 1989. Distribuição: Orion Pictures Corporation. Direção: Woody Allen. Roteiro: Woody Allen. Produção: Robert Greenhut. Elenco: Woody Allem, Marin Landau, Angélica Huston, Alan Alda e Mia Farrow. A ROSA púrpura do Cairo (1985). Título Original: The Purple Rose of Cairo. Direção Woody Allen. Produção: Robert Greenhut. Roteiro: Woody Allen. Intérpretes: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aiello e outros. EUA: Orion Pictures Corporation, 1985. 1 DVD (81 minutos). DIRIGINDO no escuro. Título Original: Holywood Endig. Direção Woody Allen. Produção: Letty Aronson. Intérpretes: Woody Allen, George Hamilton, Téa Leoni e outros. Roteiro: Woody Allen. EUA: DreamWorks SKG / Gravier Productions / Perdido Productions, 2002. 1 DVD (112 min.) KING Kong (1933). Direção: Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Produção: Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Intérpretes: Fay Wray, Robert Armstrong, Bruce Cabot e outros. Roteiro: James Ashmore Creelman e Ruth Rose, baseado em estória de Merian C. Cooper. EUA: RKO Radio Pictures Inc., 1933. I DVD (94 min.). CIDADÃO Kane. Direção Orson Welles. Título Original: Citizen Kane. Produção: Orson Welles. Intérpretes: Orson Welles, Joseph Cotton, Dorothy Comingore e outros. Roteiro: Herman J. Mankiewicz e Orson Welles. EUA: Mercury Productions / RKO Radio Pictures Inc., 1941. I DVD (119 min.). JANELA indiscreta. Título Original: Rear Window. Direção Alfred Hitchcock. Produção: Alfred Hitchock. Intérpretes: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey e outros. Roteiro: John Michael Hayes, baseado em estória de Cornell Woorich. EUA: Paramount Pictures, 1954. 1 DVD (107 min.). O GABINETE do Dr. Caligari. Título Original: Das Kabinett des Doktor Caligari. Direção Robert Wiene. Intérpretes: Conrad Veidt, Werner Krauss. Alemanha (1919-1920). 1 fita de vídeo, preto-e-branco.